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1
O VOO DO
MORCEGO
2
Dedico este livro às minhas filhas, Simone e
Andrea. Creio em muitas coisas que outras
pessoas não creem! Nem por isso sou mais
crente. Meu voo nesta vida me não permitiu
persuadir com as paisagens, exigiram-me a
relação recíproca de confiança e muito
trabalho. Neste momento de férias forçadas
faço coisas que não pude fazer antes, escrever
foi uma delas. Este livro de ficção é prova de
minha ousadia após os meus sessenta e três
anos. Ofereço ao leitor fatos reais, alinhavados
com criatividades.
O AUTOR
3
I
Rojões explodiam entre os prédios de
apartamentos do condomínio na Asa Norte da cidade.
Ouviam-se dolentes sons musicais entrecortados pelos
gritos e brincadeiras de crianças no pátio do
estacionamento.
Do sétimo andar uma voz juvenil tentava
passar uma mensagem a alguém, como se a conversa
cifrada não deveria ser de domínio público.
Lia olhou para o relógio, faltavam cinco
minutos para meia-noite. Não era uma meia-noite
qualquer, mas sim, a passagem do século XX para o
século XXI, momentos de expectativas e esperanças
com a chegada do novo ano.
Passaram oito anos, desde o retorno da
Alemanha. Ainda mantinha a esperança de um dia
Percival, o ex-marido, aparecesse para que tudo
voltasse aos anos noventas. Estava deprimida em
consequência da expectativa deste a chegada.
Enquanto isso se mantinha acatada, sem prestigiar os
conselhos, mesmos de sua mãe, dona Ignez. Até
porque, a mãe foi incansável opositora ao seu namoro,
nunca se deixou levar pela aparência do jovem
estudante paulistano. Quisera sim, proteger a filha das
agruras da vida. Sabia avaliar como seria doloroso
mergulhar de cabeça num relacionamento amoroso, ter
como pagas, sofrimentos e decepções.
Diziam os amigos e familiares, sabendo da
oposição de dona Ignez:
- Praga de mãe pega!
4
Não! Ela nunca rogou praga. Entretanto,
vejamos se por acaso não teria razão. O instinto
feminino previa acontecimentos com a sua única filha.
Pouco adiantou os conselhos e as manifestações, pois,
a paixão cega e deforma o sentimento de amor.
Fortalecida por uma grande dose de otimismo,
naquela noite em especial, Lia tentava compreender os
detalhes da separação. Tornou-se difícil aceitar
passivamente o desenrolar dos acontecimentos. Tudo
acontecia como se o esposo estivesse de viagem, a
qualquer momento anunciariam a presença dele pelo
interfone.
Faltavam ainda dois minutos para meia-noite e
os fogos ribombavam em toda a cidade. De repente,
toca o telefone. Dirigiu-se ao aparelho com expectativa
e curiosidade. Quem poderia se lembrar dela, naquele
momento de festividades?
- Alô! Quem?
- Ah! Como vai Elizabeth?
- Como sempre! Estou aqui com a mesa-posta.
Uma amiga ficou de vir na passagem do ano, mas
infelizmente até agora não chegou. Estou preocupada!
Ouvia e respondia perguntas de sua prima
Elizabeth, de forma simples e desembaraçada.
- Obrigada querida! A você também desejo o
melhor do mundo. Se não fosse o compromisso
assumido, eu teria viajado para São Paulo e estaria
com vocês.
- Obrigada! De um abraço no Virgílio por mim.
Feliz ano novo! Beijos.
Passaram-se alguns segundos com o fone na
mão. Cabisbaixa, reflexiva, dominada pela melancolia,
5
pensava lá com seus botões, só Deus sabe o quê! Num
gesto automático e instintivo descansou o fone no
aparelho e, dirigiu-se ao quarto.
Burburinhos e agitações ecoavam no pátio de
estacionamento. O som invadia os apartamentos. A
todo instante subiam ao céu riscas de ouro, deixavam
as marcas das trajetórias. Logo a seguir explosões,
com matizes verdes, amarelas e vermelhas.
As janelas cerradas evitavam entradas de
fumaças. Mantinham-se as luzes dos apartamentos,
mas, mesmo assim, pouco adiantava fechar às janelas,
o cheiro de pólvora queimada penetrava pelas
pequenas frestas e reentrâncias.
A fumaça levada pelo vento escureciam os
prédios do condomínio. Quem olhasse de outro prédio
não enxergavam as luzes, que de vez em quando
ressurgiam entre nesgas de fumaças densas.
Nestas épocas de fim de ano extravasam os
sentimentos. Lia do sexto andar, deslumbrada com o
pátio, onde predominava as roupas brancas, hábitos
ainda remanescentes do litoral Brasileiro.
Próximo à meia-noite a multidão saiu às ruas a
festejar com vizinhos e amigos. Admiravam as
queimas dos fogos e, seguiam rumo ao Clube Social da
cidade.
Mais uma vez a prima, Elizabeth, não a
esquecia. O motivo tinha conotação direta com a
separação, embora se evitasse qualquer conversa sobre
o assunto.
A separação deixou o professor Cândido
extremamente aborrecido. Ele criou grande afeição ao
ex-aluno da Universidade de Brasília. Não por acaso,
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sentia-se responsável. Arrependia-se de tantas vezes
ter elogiado o aluno na presença da filha e esposa,
embora, manifestações absolutamente verdadeiras.
Quem sabe, pensava ele, não foi este o ponto decisivo
na minha participação nesta união.
Toda vez que surgia tal pensamento, mais se
angustiava. Dona Ignez nunca viu com bons olhos o
namoro. Também nunca escondeu seus sentimentos e
os manifestavam abertamente. Sabia sobre o
casamento e não adiantavam comentários, nem mesmo
teria alguém o direito de se manifestar.
Todo pai pensa que pode fazer alguma coisa
para evitar os sofrimentos dos filhos. Ah! Se filhos
fossem utensílios de nossas propriedades. Os filhos são
feitos para o mundo e para a vida. Nascem e têm
identidades próprias. Uma vez libertos da tutela dos
pais, agem como cidadãos comuns. Havia alguns
parentes que manifestaram as opiniões, acharam
preferível a separação, agora enquanto ainda jovens.
Mera suposição! Não sabendo o que diz, tenta
frases de conforto. E se porventura tivessem filhos? Ou
muitos anos de união permanente? Aí sim! O problema
seria mais complexo, no mínimo renderia maiores
dissabores. Queira ou não, a sorte foi lançada.
Restabelece-se a vida e convive-se com o “passado”.
Quem pode dizer sobre a vida, se a cada
momento as perspectivas de futuro são mais
comprometedoras. A sobrevivência, a cada instante
tornam-se mais difícil. Somente com pés firmes e
cabeça boa pode-se enfrentar o futuro e, as suas
deliberações, mesmo que este futuro seja “imaginário”.
7
II
Não seria o Doutor Percival um bom exemplo!
Andava sempre irritado. Tentava sem conseguir,
adaptar-se às novas condições de vida em Portugal,
precisamente na cidade de Faro, no Algarves, Sul de
Portugal.
Raquel, a nova esposa de Percival era uma
moça tímida, doutorada em geologia, mantinham os
hábitos e costumes do povo português. Sem sombras
de dúvidas acabou-se a revelar ares de mandona.
Seguravam as rédeas nas decisões que envolviam o
casal.
Se imaginássemos o motivo de preocupação,
diríamos ser exatamente pelo mesmo da separação, ou
seja, a forma encontrada pelo marido ao desfazer o
casamento. Tudo poderia eventualmente acontecer
novamente? É evidente que sim! E como não poderia?
Neste caso, quem seria a parte mais desprotegida? Em
outras palavras, quem sofreria maior consequência na
separação?
O Dr. Percival mal acabara de doutorar. Será
que isto tem alguma coisa a ver? Até porque, a forma
dissimulada não proporcionaria a ninguém supor que,
as pesquisas realizadas fossem diretamente repassadas
aos órgãos do Governo Português.
O quê ele precisaria, seria o emprego logo ao se
doutorar. A verdade é que este emprego aconteceu,
bem antes que ele supunha.
Diante de tantos acontecimentos nos últimos
oito anos, ele havia relaxado com as correspondências
aos familiares no Brasil. Estava na hora de saber
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notícias. Ele acreditava que a família ainda morava na
mesma casa e, no mesmo bairro pobre de São Paulo.
Como passou rápido o tempo! Restaram-lhe as
lembranças e o velho dizer de seu pai:
- O tempo não passa mais ou menos rápido.
Passa rápido se temos muito a fazer. Sem nada a fazer,
como demora!
Pareciam que, oito anos simplesmente se
compactaram em um ano. Quantas emoções foram
despendidas. Restou-lhe ainda uma grande doze de
culpa, da qual não conseguia se livrar.
Será que valeu à pena tudo que viveu até
aquele momento? Teria a conduta comprometida desde
épocas de Universitário em Brasília?
Sim! Havia finalmente se doutorado.
Naqueles segundos finais de passagem do ano,
do alto onde morava avistava toda a cidade iluminada.
Muito raramente havia fogos em celebração à ocasião.
Tudo era bem diferente do gosto festivo da população
brasileira.
Neste instante, um brilho surgiu naqueles
pequenos olhos de Doutor. As responsabilidades
aumentaram, enquanto o tempo se escoou como água
entre os dedos. Continuava o caminho escolhido aos
catorze anos. Serpenteava através da razão, à procura
de uma nova forma de se desvencilhar dos obstáculos.
A sua conduta prática o havia transformado num
homem, que só pensava em vencer. Não havia
consciência do método a utilizar.
Raquel pouco tinha a somar aos ensejos do
companheiro. Enquanto amigos fizeram todos os
esforços para bom relacionamento. A princípio, sem
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nenhuma outra intenção, que infelizmente ou
felizmente, o tempo, este misterioso invisível tomou
conta.
Da janela de sua casa na parte alta da cidade,
em noites quentes olhava o céu azul e as estrelas. As
estrelas traziam lembranças das brincadeiras infantis.
Tinha consciência de mudança, mas as estrelas
permaneceram em testemunho ao passado.
Exatamente! Tudo que balizou a vida do
Doutor Percival visava à perspectiva de futuro. Pelo
menos era a visão fixa da sua personalidade. Com esta
conduta não identificava os limites entre o passado,
presente e futuro.
Pobre homem, não sabia que o futuro é
imaginário! O momento presente é realização, instante
por instante.
Perseverante em seus ideais, não se deu conta
que não estava só neste mundo. Sem perceber foram
necessários alguns pontos de apoios. Assim conseguiu
atingir objetivos. Não necessariamente utilizam-se as
pessoas próximas. Acontece ao surgir aqui ou ali, os
guardiões em vida, mostrando o caminho. Geralmente
eles surgem em momentos e locais que menos se
esperam.
Percival, um pobre estudante em Brasília sem
posição social, sem conforto, subia as escadarias do
edifício da Faculdade envergonhado da sua roupa
surrada, sem ter outras, mais envergonhado se sentia.
Fazia seu curso com interesse e dedicação. Não tinha
um vintém furado, mas sentia possíveis grandes
realizações.
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Intuitivamente sabia a falta que faz às pessoas,
não possuírem ideais superiores. Completou o curso de
hidrologia na Universidade de Brasília.
Partiu decididamente a fazer pós-graduação.
Não pretendia ficar por aí, dizia a si mesmo:- Vou-me
doutorar no exterior, custe o que custar!
Ouvia dos mestres durante as aulas afirmarem
sobre a substância primordial, para a sobrevivência dos
seres vivos no planeta. Pensou muito sobre o tema. É
um dever se preocupar com este artigo imprescindível,
água.
Diante do que ouvia e estudava, escolheu a
especialização em águas do subsolo, ou seja, águas
profundas dos cerrados brasileiros, em especial o
cerrado do Planalto Central.
Os cerrados brasileiros se estendem por dois
milhões de quilômetros quadrados, da origem à
aproximadamente onze mil espécies de plantas. É seco
no inverno e chuvoso no verão. São conhecidos como
savanas brasileiras.
Ainda em Brasília, em companhia dos colegas
frequentava os ambientes estudantis. Não demorou ser
apresentado a uma jovem durante uma visita à casa do
Cardoso, seu colega de curso.
Havia confidenciado ao Cardoso todas as
histórias de infância na “Vila do Sacrifício” em São
Paulo. Confidenciou-lhe também o apelido recebido,
por gostar de ver os morcegos sobrevoarem a casa
grande e abandonada, nas proximidades da residência
de seus pais.
Reunidos em grupos falavam sobre os estudos.
De repente, aproximou-se uma jovem loira, olhos
11
verdes, corpo escultural e bem vestido. Ela ao
cumprimentar os colegas, aproximou-se de Percival e
disse:- Este eu não conheço!
Realmente, ela ainda não o conhecia.
De bom ânimo, Cardoso completou:
- Este é o nosso colega de Universidade.
Girou o corpo e com a mão direita espalmada
indicou à amiga.
- Cival! Esta é Ofélia, filha do professor
Cândido.
Surpreso, o jovem simplesmente deu a mão
sem pronunciar qualquer palavra. Cardoso sorriu
maliciosamente, como a querer chamar à atenção para
o nome não tão comum no país. Ela percebeu o
propósito. Havia se formado em psicologia e conhecia
mais do que muitos, os meandros dos pensamentos
humanos.
Muitas vezes propositalmente Cardoso a
chamava pelo verdadeiro nome, como forma de
provocação. Ela ouvia algo detestável, o seu próprio
nome, Ofélia. Não escondia sua preferência por Lia,
abreviatura simples, muito a gosto e prazer.
Sem reagir à provocação, manteve a serenidade
e ainda passou a alguns elogios, com base nas
conversas do professor na intimidade da família,
dizendo diretamente ao Percival.
Lia era simplesmente deslumbrante, mostrava-
se educada e recatada, muito a gosto do jovem, que
não tirou o olho da mais ressente apresentada.
Ninguém sabia das dificuldades daquele jovem
tímido, estudante paulistano. Às duras penas concluiu
o colégio estadual na “Vila do Sacrifício”, do outro
12
lado da ponte dos Remédios, marginal esquerda do
Tietê, periferia da grande São Paulo. Depois, como
todos os demais jovens, sem muitas condições
financeiras, partiu para um cursinho preparatório para
concorrer a uma vaga na Universidade. Sem sombras
de dúvidas era um privilegiado entre dezenas de outros
colegas.
Tentou o vestibular para a Universidade mais
próxima de onde morava, na USP, cidade Universitária
de São Paulo, não conseguiu classificação. Resolveu
partir para o vestibular da Universidade de Brasília,
onde obteve sucesso.
Diante dos desafios que se apresentaram, teve
muita coragem e tomou a grande decisão: Meus
sonhos hão de se consolidar, por que não são somente
sonhos, é a minha vida. Vou fechar os olhos a tudo. Ir
em frente como uma capivara, mergulhar fundo e sem
medo de ser devorado por monstros das águas
desconhecidas. Vou trabalhar duro como um animal,
abrir meu caminho nesta vida. Com certeza deixarei
minhas marcas, vestígios de minha passagem neste
Planeta.
O pai, o senhor Agostinho, era um pequeno
feirante. Mantinha a família, além de manter o filho
estudando. Tanto um, como o outro, viviam em
constantes atritos. Um por ter dificuldade em se manter
longe da família com tão pouco dinheiro, o outro com
o compromisso de enviar ao filho todos os meses, o
valor necessário para as despesas comuns e estadias,
independente da receita do pequeno comércio popular.
O velho, assim conhecido, haviam completados os
seus cinquenta anos de idade. Demonstrava ter muito
13
mais, sempre à volta com a bronquite asmática, que o
não deixava em paz. Foi este o motivo principal de sair
de Portugal e vir para o Brasil. Se um dia estava bem,
no outro o peito chiava e faltava-lhe o ar suficiente.
Não era para menos os ataques de bronquite, pois,
escolheu residir em local, onde o ar era extremamente
poluído, com cheiro característico de esgoto de São
Paulo, o rio Tietê.
A condição era caótica, não só para quem já
possuía doença psicossomática, mas também, para as
outras pessoas sadias residentes na mesma região.
O rio Tietê tão importante na história do país
com 1080 quilômetros de extensão, até o mais leigo
percebia a degradação do histórico rio, caminho dos
Bandeirantes para o Oeste do país.
Agora, como dizia o senhor Agostinho, a coisa
era diferente. Sumiram as vidas nas águas, mataram
impiedosamente o rio. Ele dizia sentir vergonha dos
malefícios humanos com a poluição. Destruíram as
florestas ciliares, exterminaram os animais e pássaros.
Total degradação da Natureza deste rio totalmente
paulista, conhecido pelos índios que habitavam às suas
margens como Anhembi.
Houve tempo em que o senhor Agostinho
acreditava na recuperação do rio. Não somente ele, até
o Ministro Reis Veloso, na época dos militares no
poder se manifestou:- “Dentro de oito ou dez anos
haverá peixes nadando nas águas do rio Tietê, na
grande São Paulo.”
O velho português dizia tratar-se de conversa
para “boi dormir”. Passaram-se os anos previstos e um
tanto a mais de quebra, somente agravou a situação
14
deste grande esgoto a céu aberto. A cidade mais
acolhedora do país, onde a população aumenta
desordenadamente, qualquer planejamento ficaria a
desejar. Sem perspectivas, o velho rio Tietê ficou a ver
navios, ou melhor, a ver dejetos humanos e em total
abandono.
Infelizmente o rio não depende somente de
boas intenções políticas, são necessários seriedades nas
aplicações dos recursos. Além disso, é claro, muita
disciplina no cumprimento às Leis ambientais.
Alguns Secretários de Estado, apadrinhados de
Governos do Estado de São Paulo, somente souberam
gastar desordenadamente o dinheiro público. As
dragas, até hoje, desassoreiam o leito do rio. O
resultado positivo nunca se vê. Com as enchentes
periódicas, os alagamentos continuam nas partes
baixas da cidade.
Houve sim, tal Secretário de Governo do
Estado, de notória inteligência, que consumiu todo o
empréstimo recebido do Banco Japonês, para
plantação de gramas às margens do rio. Bastaram às
primeiras chuvas, consequentemente as primeiras
enchentes, lá se foram toda a “grama”. Como me
confunde esta palavra, com a outra com “n”, são muito
parecidas. Ambas sumiram sem deixar vestígios.
Ainda menino, Percival viu quando alguns
vizinhos começaram a tapar os poços existentes nos
fundos das casas, dizendo que o rio estaria
contaminando a água dos poços. O interessante é que,
não foi nenhuma Autoridade de Governo Municipal,
Estadual e, muito menos Federal, que interferiu em
defesa da saúde pública na “Vila do Sacrifício”. As
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Autoridades constituídas nem de perto passavam, ao
contrário, fugiam das barrancas do rio poluído. Se por
acaso forçosamente passassem nas Avenidas
Marginais do rio, os vidros do veículo estariam
hermeticamente fechados, o ar condicionado ligado ao
máximo desempenho.
Percival, o atento menino queria saber:- Como
pode as águas do rio contaminar as águas dos poços?
Não havia ligações diretas entre elas! Era o quê
ele pensava. Infelizmente não há respostas satisfatórias
sem os estudos científicos. Quem sabe ainda um dia
poderei monitorar. Fazer avaliação dos parâmetros do
Aquífero São Paulo, estudar as águas subterrâneas no
solo contaminado da bacia do Tietê, dentro da grande
São Paulo?
16
III
O senhor Agostinho lembrava-se com
satisfação do tempo de menino de Percival, quando ao
chegar da escola, saia pelas ruas do bairro com sua
bicicleta. Algumas vezes jogava futebol no campinho,
em outras oportunidades as bolinhas de gude, pipas e
jogos das cinco pedrinhas praticadas nos degraus da
entrada da casa.
Não raras vezes havia interferências dos pais
para o banho, antes do jantar. Tornou-se quase rotina,
terminava o jantar e saía em correria para a casa de um
colega e vizinho, Luiz Carlos. O menino era morador
na rua de cima da mesma quadra, cujo apelido era
Badeco.
Ao chegar junto ao portão da casa, o senhor
Claudionor, pai de Badeco, resmungava no interior da
casa ao ouvir o tilintar da campainha. Logo a seguir o
som de uma derrapada dos pneus da bicicleta.
- Badeco, o “Morcego” chegou!
O senhor Claudionor dava uma conotação de
carinho, ao dizer tais palavras. O fato é que o menino
chegava com a bicicleta, desviavam dos obstáculos
com agilidade de um artista de circo, para terminar
numa freada em chão duro e pedregoso. O som da
derrapada era ouvido nas dependências da casa,
causando desconforto às pessoas no interior da casa.
Da mesma forma que chegava, saía para ver a
revoada dos morcegos na casa grande e abandonada,
na esquina da mesma rua, conhecida pelos meninos do
bairro como a casa mal-assombrada.
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Os garotos do bairro diziam estórias sobre a
família que havia morado na casa, não sabiam os reais
motivos, o dono da casa havia se enforcado em um dos
seis cômodos. A partir deste fato, muitos moradores,
ouviam pedidos de perdão. Suspeitavam ser o Espirito
do suicida.
A verdade era bem diferente, bastava um gato
miar ou um cachorro uivar, já diziam ser uma alma
penada no interior da casa.
Com medo e muita precaução, Badeco e Cival
ficavam sentados na guia da sarjeta do outro lado rua,
bem em frente à casa abandonada. Aguardava com
atenção redobrada a revoada dos morcegos. Esperavam
sair um após o outro, atiravam pedras para ver com
que facilidade eles se desviavam e seguiam em voos
aparentemente sem rumos.
Percival decidiu dedicar estudo ao mamífero
quiróptero de hábito noturno. Com objetividade passou
a consultar tudo que referisse ao animal. Queria
conhecer os hábitos destes pequenos mamíferos. Foi
grande a dedicação.
Discutia com todos os amigos dizendo sobre a
variação da espécie, onde a grande maioria do grupo é
insetívora ou frutívora, havendo espécies hematófagas
e ictiófagas. O assunto tornou-se preferencial nas rodas
de amiguinhos, reconhecendo-o como um especialista.
Tudo era dito com muito orgulho sobre os
morcegos. Ele admirava o fato de possuírem uma
espécie de sonar, uma verdadeira obra da Natureza,
órgão aperfeiçoado desde época paleozoica, ao sabor
das necessidades de sobrevivências. O mamífero
18
localiza presas em pleno voo. Não duvide da
possibilidade de identificação do alvo. Vivo ou não!
As asas são como panos de guarda-chuvas,
patágio, presos à estrutura óssea dos membros
anteriores, adequadas ao voo. O único animal com a
capacidade de se locomover no meio em que vive, com
voos cegos e aparentemente desordenados, sem chocar
com qualquer obstáculo.
Os dois meninos brincavam até certas horas,
quando dona Mafalda, a mãe de Percival surgia lá na
esquina. Aos gritinhos procurava chamá-lo com todo
carinho do mundo. Encolhia-se como não quisesse
gritar, num misto de altos e baixos, para que ninguém
a ouvisse:- Cival, veeenha!
Continuava a abanar a mãozinha.
Tratava-se de uma senhora magra e tez clara,
estatura mediana, cabelos pretos, olhos castanhos,
natural da cidade de Faro, região do Algarves em
Portugal.
O casal contraiu matrimônio quando ela
completou os dezesseis anos, o senhor Agostinho
completavam os vinte anos.
Percival herdou traços fisionômicos e, até o
temperamento da mãe. Não deixava para outro dia o
que poderia fazer. Demonstrava desta forma um
temperamento forte. O menino obediente largava o que
estivesse às mãos, saía em direção à mãe. Ela o
acompanhava em passos lentos durante o retorno a
casa. Enquanto ele, com impulsos de meias-pedaladas,
equilibrava-se na bicicleta o tempo suficiente a se
manter lado a lado.
19
Por vezes, Cival ouviu pronunciar o seu
apelido, Morcego. Pensava reagir, entretanto, a boa
índole não permitia qualquer resposta. Quem assim o
chamava era um senhor tão respeitável, pai de seu
melhor amigo.
Era mais pela educação recebida, que não
reagia. Ainda que se não demonstrasse ofendido com o
apelido, pressupõe uma forma de defesa sobre alguma
coisa desagradável. Embora se incomodasse, com o
tempo cairia no esquecimento e, contando com a sorte
não chegariam aos ouvidos dos colegas de escola.
Com esta forma de agir, somente os vizinhos e
parentes mais próximos conheciam o apelido. Se bem
que, a mãe o defendia dizendo com severidade, ao
ouvir o apelido:- Ele tem nome, é Percival!
De alguma forma os apelidos sempre são
usados como caricaturais e mimos. O apelido dado ao
Percival somente era caracterizado pelo fato de
aparecer ao anoitecer, pelos cabelos em forma de
topete dividido ao meio, lembrando as orelhinhas do
mamífero.
20
IV
No penúltimo ano do curso universitário já
havia decidido, daria continuidade aos estudos após a
formatura. Queria com todo empenho atingir o grau
máximo. Pesquisou e conseguiu as informações para
uma bolsa no exterior. Evidentemente, não seria fácil,
nem o livrariam de grandes esforços pessoais.
Por ser filho de portugueses conseguiu a
cidadania, que neste caso, a dupla nacionalidade
facilitaria viver na Europa, com passaporte da
Comunidade Europeia.
Sabia da importância das notas de avaliação.
Certificou-se da necessidade de indicação, além das
notas apresentadas para sua inclusão na lista de
candidatos bolsistas.
Durante o período da pós-graduação sentiu não
atingir os objetivos, mas não desistiu. Dizia a si
mesmo:- Vou até onde for necessário ou até onde
minhas forças permitirem. Meu sonho haverá de ser
concretizado.
Lia considerava um amigo especial. De tanto
ouvir de seu pai elogios sem contas, passou a ter maior
interesse no rapaz. Procurou auxiliá-lo no possível e,
esta aproximação deu-lhe a grande e esperada
oportunidade.
Percival juntou o útil ao agradável, passou a
cortejá-la indiscretamente. Esta atitude a deixava feliz,
no mínimo criava ilusões naturais com perspectivas de
futuro.
21
Dona Ignez era a confidente. Em qualquer
situação a primeira, a saber. Aqueles que as conheciam
diziam serem verdadeiras amigas.
Durante este tempo houve muitos dissabores.
Não eram empecilhos criados pela jovem, ela sempre
manteve muita paciência com o recente namorado. E
tudo isso tinha um motivo justo, ele vivia em constante
estresse.
Algumas vezes o motivo era sobre os trabalhos
escolares, outras vezes se queixava do pai, que lhe
enviava pouco dinheiro, enfim, para que não criasse
condição ainda mais vexatória, quando acompanhada
evitavam gastos abusivos, quando acontecia fazia
questão de participar com sua parte.
A rotina mudou completamente a partir do
namoro com Percival. Antes de conhecê-lo participava
de esportes, fazia circuitos de bicicleta com as amigas,
aproveitavam a cidade plana e o clima constante da
capital da República. Agora abdicava de sua vontade e,
alimentava até certo ponto o egoísmo do namorado.
Bem por isso, dona Ignez se preocupava e manifestava
a opinião com severidade:
- Não abrir mão do que gostamos é de boa
prática. Primeiro para quem abri mão; segundo
acostuma mal o parceiro ou namorado. Casados,
forçosamente haverá continuidade de comportamento.
No fundo Dona Ignez tinha toda razão! Se uma
moça aceita como marido um rapaz ciumento e
beberrão, ainda dotados de outros maus hábitos, não
devemos pensar que vá mudar o comportamento com o
casamento. Ninguém muda repentinamente da água
para o vinho, somente porque mudou o estado civil.
22
Pouco adiantava as recomendações daquela
senhora experiente, casada há mais de vinte e cinco
anos com o professor Cândido. A aceitação dos
caprichos do namorado continuou. Submissa às
imposições doentias de ciúmes, Lia passou a ser
apenas a namorada de Percival.
Suas opiniões passaram a serem irrelevantes,
seus gostos espécies de palpites, sobretudo aceitos.
Outras vezes de acordo com o estado de espírito do
namorado.
Ao chegar ao final do curso de pós-graduação,
tudo indicava que, ao terminar casariam e passariam a
cuidar das suas vidas.
Isso realmente veio acontecer. Não obstante,
havia uma situação indefinida, referente à bolsa de
estudos no exterior.
Percival conseguiu finalmente o mais sonhado,
ajuda do governo brasileiro para continuar seus
estudos no exterior. Evidentemente, os méritos foram
do jovem estudante, que não mediu esforços para
atingir o tão almejado objetivo. Claro que houve uma
ajudazinha do professor Cândido na apresentação.
O quê dizer da felicidade do jovem, ao receber
o comunicado de sua aceitação na Universidade de
Berlim, na Alemanha? Além do acontecimento, a
satisfação da namorada e toda a família, que há muito
tempo torciam pelo sucesso de Percival.
O sucesso do jovem ecoou plenamente em Lia.
O casamento foi planejado, casariam e imediatamente
viajariam para a Alemanha. Segundo outros bolsistas
que tomaram o mesmo rumo, o valor da bolsa
permitiria viver normalmente em Berlim, onde o custo
23
de vida é bem controlado com baixa inflação. Sem
dúvida o casal viveria modestamente, mas com
tranquilidade.
Viver em outro país com objetivos de estudos,
sempre é algo de grande alegria aos participantes. Não
se imaginam dificuldades. Quando se trata de jovens
recém-casados adquirem sentimentos de esperanças no
futuro. São ocasiões de complementos, principalmente
com aquisições de bens materiais. Caso ocorra alguma
decepção, há muito tempo para recuperar as condições
desfavoráveis. Há tempo para um passo atrás e,
recomeçar tudo de novo caso necessário.
24
V
A festividade do casamento foi concorrida. Os
colegas e professores da Universidade de Brasília
compareceram. Por motivo de doença houve uma
ausência muito importante, senhor Agostinho.
Tudo muito bem planejado pelo casal, dois dias
após o casamento embarcariam para Berlim.
Estavam confiantes e plenos de esperanças,
mas não houve tempo nem para abrir todos os
presentes recebidos. Dona Ignez guardou-os com
especial cuidado.
A moradia providenciada na capital da
Alemanha, um pequeno apartamento no norte da
cidade, alugado em condição acessível ao casal.
Havia grande ansiedade na chegada à Berlim.
Tudo era novidade, existiria um período de adaptação
com costumes e hábitos diferentes. Principalmente
pelos fatos políticos, com a união entre Berlim
Oriental e Ocidental.
O início da construção do muro em Berlim, 13
de Agosto de 1961, serviram aos ideais políticos.
Deixaram de lado os anseios de liberdade do povo.
Servia à guerra fria entre os Blocos Comunista e
Democrático.
A separação fez das famílias honradas e
trabalhadeiras, prisioneiras dentro de seu próprio país.
Além de tantos outros males causados ao povo alemão,
com opressão de novas políticas sociais e econômicas,
nem sempre a gosto e necessidade do povo germânico.
Após onze dias, precisamente no dia 24 de
agosto de 1961, morria assassinado Gunther Liftin.
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Primeira vítima de um total de 1065 cidadãos alemães
mortos, ao tentarem atravessar para a Alemanha
Ocidental. No entanto, a queda do muro chegou em 10
de Novembro de 1989, onde prevaleceu o agir com
coerência e boa vontade política. Há controvérsias
sobre descuidos políticos, que favoreceram a queda do
muro.
Em frente ao Portão de Brandeburgo, na
Avenida Unter den Linden, cruzava o grande muro.
Não é difícil lembrar, que esta avenida foi utilizada
para os desfiles das tropas do exercito alemão, na
época de Hitler no poder. Mostraram ao mundo o
poderio bélico da ditadura Nazista.
É admirável a manifestação de um artista
plástico, alemão Ocidental, que ergueu uma estátua de
mulher a olhar para o muro, em frente ao Portão de
Brandeburgo. O detalhe importante é que ela estava
tapando os olhos com as duas mãos. Era a expressão
máxima, da vergonha de um país dividido por um
muro. Berlim é uma das cidades mais importante da
Europa (três milhões e meio de habitantes), composta
de famílias que comungavam os mesmos anseios e
ideais de liberdade. Um povo viciado no trabalho.
O casal superou as dificuldades encontradas,
contou com ajuda de alguns brasileiros, adaptaram-se
rapidamente. O curso na Universidade propiciou ao
jovem Percival conhecer minúcias, detalhes, não só do
assunto de sua maior predileção, mas também uma
série de trabalhos de outros bolsistas. Só por estes
aspectos valeu a pena morar no velho mundo.
Lia no início pouco saía de casa, quando
acontecia era acompanhada do marido. Empenhou-se
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em adquirir uma bicicleta, sentia-se segura nas ruas da
cidade, contavam com pistas próprias para o tipo de
utilitário. Passou a se locomover com desembaraço,
apesar das dificuldades com a língua. Chegou à
conclusão que deveria estudar um pouco mais o
idioma alemão, assim propiciaria mais facilidades nas
ações do dia a dia.
Não havia dificuldades para fazer compras,
pouco a pouco conheceu os vizinhos. Inscreveu-se na
Escola de Ensino Livre, onde conheceu outros
participantes estrangeiros. A escola administravam
cursos dirigidos às donas de casas, em auxilio às novas
profissões e à economia doméstica. As melhorias nos
conhecimentos científicos e pedagógicos, aos trabalhos
das donas de casas, eram importantes detalhes da
política governamental. Portanto, fatores positivos na
economia e, motivo de satisfação na participação da
população.
Enquanto isto, Percival cumpria rigorosamente
as obrigações. Depois de dois anos de curso, escolheu
o sítio para os estudos de campo, com
instrumentações, medições e controles de acordo com
as exigências da Universidade.
Contava com o orientador da Universidade de
Berlim, que falava a língua portuguesa. Com isto
conseguia esclarecer com exatidão as atribuições a ele
confiadas. Outro aspecto relevante do digníssimo
orientador era o conhecimento dos cerrados brasileiros,
onde a terra é fraca em nutrientes e ricas em ferro e
alumínio.
Após várias tentativas conseguiu convencer Lia
sobre a indicação apresentada pelo orientador.
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Como esposa restou-lhe aceitar à ausência do
marido. Ele teria que viajar para Portugal, Algarves,
local escolhido pelas semelhanças com os cerrados
brasileiros, além de próximo da Universidade de
Berlim.
Não foi possível que ela o acompanhasse. Os
gastos com a viagem e estadias em Portugal, o tempo
integral de dedicação aos trabalhos de campo, tinham
de ser considerados.
O cronograma elaborado em comum acordo
com o orientador exigia a permanência por três meses
em Portugal para pesquisas de campo, e três meses na
Universidade em Berlim, para estudos teóricos e
orientações pedagógicas.
Na decisão contou muito o fator tempo. Afinal,
três meses passariam rapidamente.
Realmente passam rápidos os primeiros três
meses, mas e os demais meses? Era períodos tão
desgastantes, uma eterna espera pelo marido.
Mesmo assim, não se deixou abater e continuou
firme sem demonstrar que sofria solidão. Quando não
era impossível de controlar, ela chorava escondida. Às
vezes pensava que morreria de “banzo”, como os
negros Africanos em tempo de escravidão no Brasil.
De início sentiu o individualismo das pessoas.
Era algo na educação e hábito. Cada qual cuida da
própria vida, sem se preocupar por quem esta ao seu
lado. Até aí é bastante normal, cada um com seus
problemas.
Acontece que os Alemães Ocidentais, têm
tratamentos frios. São extremamente sinceros nas
opiniões. Não que isto seja defeito, muito ao contrário,
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apenas não demonstra nenhum espírito de colaboração,
nos moldes a que ela foi educada. Deveria cuidar de
tudo sem contar com a ajuda de ninguém, nem mesmo
dos familiares tão longe.
Quem chega num país bem organizado percebe
e entende a cultura. Não é necessário ser intelectual,
basta para isso ter um pouco de sensibilidade. As
percepções psicológicas completam as injunções.
Nestes casos, conversas longas com alemães
Orientais tornavam-se confortantes. Talvez, porque
estes foram mais atingidos, sofreram mais com a
divisão do país. Os prédios, casas e apartamentos da
área Oriental em 1961, ficaram até 1989 sem pinturas
novas e sem manutenção adequada. Respeitosamente
eram verdadeiras relíquias, cheias de vidas e
sentimentos por dentro, abandonados para quem olha
de fora. Em geral pessoas de carinhosos tratos, prontas
aos elogios a estrangeiros, mesmo falando muito mal a
língua do país.
Devemos entender que a língua de um país, é
de extrema importância para qualquer visitante ou
trabalhador estrangeiro. A língua falada é a
demonstração mais eloquente da unidade nacional de
um povo.
Ao dizer brasileira, os alemães dificilmente
deixam de dar um sorriso, seguidos de elogios pelo
futebol e carnaval. São reconhecimentos superficiais
do país, chamado Brasil. Por favor, também gostamos
muito de trabalhar.
Acredito no povo brasileiro com muitas
qualidades: São trabalhadores; gostam de gente
educada; são religiosos; amam as mulheres; adoram
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esportes; são solidários; são espertos e inteligentes; são
criativos; são limpos e higiênicos, completando não
são “historicamente” belicosos. Não quero dizer que
outros povos não tenham as mesmas e até mais
características positivas. Há além de futebol e samba,
uma coisinha chamada “vergonha na cara”.
Acreditem! Os brasileiros gostam de ser
reconhecidos pelo que produzem, como frutos dos seus
trabalhos. Além de mais, respeitam o regime
Democrático republicano. Respeitam até em demasia
as Autoridades Políticas e Judiciárias. São muitos
sinceros e respeitosos com estrangeiros, enfim, sabem
dizer a verdade e fazer coisas sérias, “sorriiiiindo”!
Tudo isto não tem valores apreciáveis?
Pense um povo no mundo, com estas
características! Creio haver muito poucos. Sentem-se
felizes ao se encontrarem e sorrir. Falar. . . Falar e
sorrir! Há povos que não entendem como podem se
reunir e rir tanto.
Felizmente houve a união do povo Alemão.
Novamente um só povo, embora houvesse muitas
críticas sobre os alemães Orientais, logo após a união
do país. Os problemas superados do lado Ocidental,
agora deveriam ser também superados no lado
Oriental. O fator principal seria o custo da Política
Social, dadas à desorganização e abandono a que se
encontravam os alemães Orientais, na penumbra do
dominador, a União das Repúblicas Soviéticas.
Percival dependia dos meios de transporte
urbano, usava ônibus e metrôs, que favorecia
sintonizar melhor com a pronúncia da língua. Como
bom observador sentiu como são os hábitos e
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costumes. Mantinha um comportamento discreto e o
mais leal possível. Não por acaso, deu lugar a uma
senhora de idade avançada num ônibus, como deve
fazer todas as pessoas educadas.
Levantou-se e disse:
- Sente–se, por favor! (Sitzen Sie, bitte!).
Não demorou dez segundos, uma senhora de
meia idade sentada do outro lado, levantou-se e quase
aos safanões, fez Percival sentar no lugar dela.
Ela fez a correção que normalmente não é
prática no país. Claro, houve um pouco de severidade
na retribuição da gentileza, mas, como se diz:
- Vale à atitude.
A situação confortável e favorável de um casal
traz sempre paz. Às crises são sempre feridas expostas,
torna difícil cuidar de algo tão sensível, sem atingir a
parte lesionada. Toda relação para ser consolidada é
necessário compreensão. Para isto, além deste
predicado, exigem-se muito amor, caso contrário
converge para a inevitável separação. Poderíamos até
afirmar ser a “prova dos noves” de um casal, morar no
exterior.
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VI
Mais uma partida, mais uma despedida, depois,
a solidão. Não ter com quem conversar amenidades do
dia a dia e, não contar com vizinhos numa emergência.
Quem parte segue sozinho em busca dos seus
sonhos, enquanto para quem fica somente há
esperança. Não é de mais o arrependimento por não ter
também partido. É exatamente onde entra a força que
nos dá a religião, a crença em Deus e ao Santo de
nossa devoção.
A jovem esposa imaginou a viagem até
Portugal como uma obrigação de esposa, acompanhar
o marido aonde for. Com os custos altos impediram
acompanhá-lo.
Às duras penas aprenderam que, nada adianta
sentimentalismos, o tempo é o melhor remédio. Nós
passamos e tudo enfim passa, não há de ser pelo
segundo, nem terceiro ou quarto retorno, que se
demonstre fraqueza.
Percival estava no Algarves. Não foi por acaso
sua permanência naquele sítio. Outras Universidades,
principalmente de Portugal também tinham aquela
região para pesquisas de campo.
Sem dúvidas, as Autoridades de ensino em
Portugal mantinham controle sobre todas as pesquisas.
Uma das condições para uso da região eram os
resultados, conforme especificados nos Tratados entre
países e Universidades.
Percival entendia a aceitação do governo
português, pelo fato em ter a cidadania daquele país.
Era clara à influência da qualidade do ensino das
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Universidades Alemãs, que adquiriu o respeito através
de anos de trabalhos.
Os costumes e hábitos Lusitanos foram de
domínios territoriais. Ao observar os muros de Faro,
nos dá a visão de como prosperou um povo.
Construíram um Forte ao redor da cidade, quando
ainda imperava a conquista pelo mar. Diante das
evidencias percebem como se comportam alguns
povos. Para os séculos e séculos vindouros permanece
o quê se diria, está dando certo.
Temos ainda a considerar que, ninguém, nem
mesmo uma coletividade a qual congrega os mesmos
ideais muda de hora para outra. Não pense transformar
a Europa em um único país, através da União da
Comunidade Europeia. Comportamentos seculares não
se transformam imediatamente. Não mesmo! Talvez
em milênios, isso com grande ressalva.
Percival seguia passo a passo o cronograma dos
trabalhos de campo, sempre acompanhado de Raquel,
uma colega da Universidade portuguesa. Ela fazia
questão de participar de todo o desenvolvimento dos
trabalhos de pesquisas.
Neste espírito de reciprocidade uniram-se numa
bela amizade. Este relacionamento favorecia ambos, o
mais beneficiado, Percival. Durante os períodos de
permanências na Alemanha, muitas providências eram
tomadas por Raquel, que permanecia em sua terra
Natal, Portugal.
As dificuldades transformaram-se em prazer de
servir ao amigo e colega de pesquisas. O importante
era que não havia perda de tempo. Ele acabava de
chegar a Portugal e imediatamente se dirigia à região
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das pesquisas, pois sabia que tudo estaria preparado
para o trabalho. Um aparelho que não funcionou no
momento de utilização, estava devidamente reparado.
Ganhava-se tempo na preparação, sobravam estudos e
dinamismos nas pesquisas.
Quando foi sugerido o sítio em Portugal, com
toda a sinceridade numa simples visão, ele não
percebia qualquer semelhança com os cerrados
brasileiros. Primeiro porque é uma região próxima ao
mar, localizada no sul do país. Segundo porque
normalmente nossos cerrados são de terras pobres em
nutrientes, mas mantém as plantas e arbustos viçosos,
com características próprias. Ao tomar como básico
principalmente a vegetação própria, inconfundível,
adiciona-se no contesto o ecossistema, faz-nos pensar
em fracasso. Contudo, ele tinha toda confiança no
orientador, não poderia jamais pôr em duvida a
indicação.
Sempre que damos início a um projeto, temos
como principal o pensamento. A visão em busca de
objetivo nem sempre é o mesmo. Não conseguir atingir
um objetivo, não quer ao grosso modo ser sinônimo de
fracasso. Com este pensamento Percival acreditava
estar no caminho certo, nos ideais havia grandes doses
de determinismo.
Reconhecia o companheirismo e a lealdade da
esposa. Era gratificante contar com a solidariedade nos
bons e os maus momentos.
Faltava pouco para atingir a meta. O caminho
percorrido se delineava em promissoras satisfações,
diante das perspectivas de futuro. Durante o tempo a
que se dedicava aos estudos, sentia-se fortalecido.
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Aconteça o quê acontecer, só em pensar na esposa, o
seu porto seguro, dava-lhe ânimo.
As estadias em Berlim eram animadoras.
Novamente um carregar de baterias, para nos próximos
três meses ir se debilitando gradativamente.
Talvez uma espécie em metamorfose, iniciada
com voracidade das necessidades de sobrevivência e
estudo, para depois, languidamente perder o impulso.
Às vezes descansava a cabeça no colo da
esposa e, lá ficavam horas e horas caladas. Se a noite
fosse de calor sentavam no gramado do jardim da casa.
Raríssimas vezes insurgiam manifestações que
viessem aborrecer uma das partes. Se o tempo era de
ventos gelados vindo do norte, trancavam-se no
interior da casa. Sempre tinham uma compota de
goiabas brasileiras, guardada no armário da cozinha,
para ser saboreada.
Lia procurava dar ânimo ao marido, ele em
constantes dores de cabeça ocasionadas pelas quedas
de pressão atmosférica na região, pelo vento frio vindo
do Norte. Percebiam-se cansaços impostos pelos
desgastes mental e físico. Poderia até dizer que, a
qualquer instante ele jogaria tudo para o alto,
abandonaria o planejamento e desistiria da bolsa de
estudos.
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VII
O rádio acabara de anunciar:- Em Brasília nove
horas e quinze minutos. A temperatura prevista para o
dia será de vinte e cinco graus mínimos e trinta e um
graus máximos. A umidade relativa do ar é de trinta e
oito por cento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Lia correu, desligou o rádio, pegou a bolsa e
saiu. Pensou na visita à dona Ignez pela manhã, assim
teria toda tarde para cuidar de suas obrigações
domésticas.
A mesa continuava posta, com duas cadeiras
posicionadas. Talheres, pratos e copos necessários para
a refeição. A garrafa do vinho “Tokaji Aszú” de
origem húngara, adquirida nas lojas KDW em Berlim
permanecia no centro da mesa.
Ela estava apreensiva, o seu emprego não era
dos melhores, mas serviam para ganhar o sustento e
manter a mente ocupada. Poderia ter um emprego
melhor em uma loja de grife, talvez, num dos Bancos
espalhados pela cidade.
Abdicou de sua formação de Psicóloga, aceitou
o que apareceu no momento. Seria uma maneira de
concentrar no trabalho, deixar de lado alguns
pensamentos ressurgentes nada abonadores.
As amigas cochichavam dizendo das condições
psicológicas de Lia. Havia sim, certa doze de maldade
naquela gente próxima.
Não tinha qualquer consideração por dona
Ignez, ainda menos com o professor Cândido. Insistia
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em fofocas das mais descabidas, que graças a Deus, as
coisas ditas não chegaram aos ouvidos dos pais.
Dona Ignez havia feito várias visitas ao
apartamento da filha. Como boa observadora via
sempre a mesa-posta.
- Você está recebendo alguém? Perguntou
Dona Ignez.
- Sim! Uma amiga ficou de almoçar comigo.
Outras vezes, jantar. Enfim, havia sim algo de
estranho no comportamento da filha.
Elizabeth se preocupava com Lia. Nas ligações
feitas e conversas não deixava de manifestar aos tios o
seu ponto de vista. No circulo familiar todos tinham
conhecimento do assunto, mas realmente os pais, estes
sofriam com o comportamento da filha enclausurada,
que somente saía para o trabalho e, a suprir as
necessidades da casa.
Em uma destas ocasiões, o professor Cândido e
dona Ignez, estavam em visita ao apartamento da filha.
De repente toca o telefone. O casal ouviu toda a
conversa:
- Não querida, infelizmente hoje não posso,
tenho visita para o jantar! Deixe para outro dia, certo?
De qualquer forma eu agradeço o convite.
Despediu-se e passou certo tempo com o fone
no ouvido. Talvez estivesse a ouvir o som do seu
mundo interior.
Concluíram tratar-se de amigas com convites
para passeios ou festas, e assim pensaram:
- Ainda bem que há amiga, que se preocupa
com ela.
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Porém, o mais triste desta história eram
lembranças da filha antes do casamento. Uma jovem
cheia de vida, sem nenhum problema psicológico a
comprometer a integridade.
Os pais tinham certeza absoluta, o casamento
teria sido um mal irreparável na vida daquela pessoa.
Quando solteira mantinha a serenidade. O rosto
resplandecia juventude. Era amante dos esportes e
nunca foi preciso repreendê-la por qualquer ato. Ao
contrário, sempre foi elogiada pelas amigas e pais de
amigas.
Havia grande esperança que tudo passasse
naturalmente, e Lia voltasse a se comportar como
antes. Aquela pessoa adorável, alegre, tornara-se alvo
das preocupações de todos, principalmente dos pais.
Elizabeth guardava as recordações da infância,
quando saía de São Paulo para passar as férias em
Brasília, na casa dos tios. Lembrava-se com muita
frequência, quando ainda menina de seis ou sete anos
de idade. Ao chegar à casa do tio e professor, ao descer
do carro correu para abraçá-lo. Infelizmente o cachorro
da raça Dobermann estava atento. Instintivamente
interceptou-a e atacou para defender o dono da casa.
Em consequência do ataque várias cirurgias de
correções faciais, além do trauma por cães para o resto
da vida.
Um pensamento martirizava Elizabeth:
- Preciso fazer alguma coisa para ajudá-la.
Talvez um emprego aqui em São Paulo ajude a
minimizar aquele sofrido coração.
Decidida procurou emprego. Não somente ter
um emprego para ganhar o sustento. O principal seria
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reverter àquela fixação de esposa à espera do marido
pelo resto da vida, mantendo a mesa-posta.
- Pobre menina, como deve ter sofrido em
Berlim! O que será de tão mau este rapaz fez para esta
pobre criatura? Teria ela perdido o controle emocional
com as longas ausências do marido?
- Seja lá como for neste momento, é importante
trazê-la a São Paulo. Depois dar todo o apoio
necessário.
Há ainda o relacionamento com a mãe. Quem
sabe aí está o principal! Por que não pensei nisso
antes? É possível! Ela sente-se envergonhada com a
separação, principalmente na presença da mãe, que
sempre foi uma ferrenha opositora ao namoro da filha.
Provavelmente seja tudo isto e, mais algumas
coisas, que jamais saberemos. As recordações são
como martelos batendo em bronze. Criam sons
estridentes e dissonantes como vozes de acusações.
Penetram nas mentes e psicologicamente ecoam.
- Você errou! Eu não lhe disse? Você errou ao
casar com este rapaz minha filha!
Não se pode condenar uma mãe por querer bem
a filha. Não! Não é possível nem pensar, que possa
existir uma mãe desejosa do mal, ao invés do bem aos
filhos.
Lia se recordava que no primeiro ano do casal
em Berlim, sua mãe viajou para visitá-la. Tudo foi
previamente combinado. O casal a esperou no
Aeroporto de Tegel, em Berlim. De táxi seguiu para a
residência rumo ao norte da cidade.
A primeira impressão é sempre que mais vale.
Foi um choque para dona Inez a minúscula habitação.
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Correspondia a uma cozinha, banheiro e um quarto
grande. Sabe-se lá o que ela pensou ao deparar com a
residência da filha. Ainda deve-se considerar o início
de vida do casal, a mais de dez mil quilômetros de
Brasília.
Antes da partida pensou que chegaria e seria
instalada num quarto exclusivo. Não! Nada disso
aconteceu. Foi improvisada uma cama separada por
um biombo, criando-se dois ambientes com banheiro
comum.
Na época, Lia somente observava. As palavras
revelavam os pensamentos escondidos, os quais jamais
se diriam de maneira direta e com frialdade. No bojo
destes pensamentos inconfessáveis, a grande decepção
se fazia presente. Realmente, dona Ignez se incomodou
com as acomodações. Um simples olhar para o
ambiente, presumia o que se passava aquela cabeça.
Não foram necessários grandes esforços, muito menos
as grandes deduções.
Passaram as semanas como haviam planejadas.
Conheceu a bela cidade arborizada, com um sistema de
transporte eficiente, com canais aquíferos enfeitados
de lindos barcos.
Nestes casos, as surpresas são abundantes, dona
Ignez não tinha nenhuma experiência vivida no
exterior, muito menos em países considerados de
primeiro mundo.
Não devemos esquecer o comportamento
quando ainda somos jovens. Nesta fase de vida nada é
demais, e tudo é possível. Não importa onde se vai
morar após o casamento. Importa sim, estar junto e
contar com a companhia na vida solidária.
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VIII
- Então Titia, falei com a Lia! Ela se mostrou
reticente com relação ao convite. Está me ouvindo?
Convidei-a morar aqui em casa pelo tempo que quiser.
O Virgílio apoiou totalmente a ideia. Eu já transmiti
isso a ela, estou com um quarto à espera.
Dona Ignez teria dito alguma coisa, ou
chamado à atenção para qualquer detalhe, quando
novamente interveio Elizabeth:
- Fique tranquila titia, tudo vai correr bem!
Além disso, estamos aqui para dar total apoio, pode
ficar descansada ela estará muito bem aqui. Já orientei
para que me envie o Currículo, acredito ser possível
um emprego.
Elizabeth ouviu a resposta e, em complemento
mais algumas recomendações. Despediram-se com
beijos.
Lia aproveitou a segunda-feira para ligar e
dizer, que tudo estava sendo feito na melhor das
intenções. Ligou primeiro à mãe, deixou-a ciente dos
acontecimentos.
O apartamento onde morava em Brasília
pertencia ao professor Cândido. Houve dificuldades,
para retirar o inquilino e cedê-lo à filha, com a
surpresa da separação. Pelo desenrolar da situação,
nada poderia ser feito além de dar assistência à filha. O
professor comprou móveis simples e úteis, geladeira,
fogão, cama e móveis de sala. Os demais utensílios de
cozinha foram os presentes que ficaram na casa de
dona Ignez, desde a época do casamento.
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Dona Ignez conversava longamente com
Elizabeth a respeito da filha. Demonstrou preocupação
em convencer a filha em procurar auxílio de
especialistas.
Houve sim, grande reação por parte de quem
mais necessitava. Não havia meios em obrigá-la a ir ao
médico, ela não admitia nem pensar no assunto. No
subconsciente da jovem havia uma espécie bloqueio.
Não se sentia capaz de sentar em frente de alguém,
para falar sobre suas intimidades.
Não era difícil entender o velho e conhecido
provérbio:- Casa de ferreiro, espeto de pau!
Era possível que, Lia sentisse a necessidade de
ajuda, mas ao mesmo tempo demonstrava claramente
determinada em prosseguir com o seu ritmo de vida.
Agora surgia uma nova alternativa, sua prima
em São Paulo convidava-a para mudar de ares,
passaria a morar com ela na grande Metrópole paulista.
Estava muito clara a intenção de afastá-la da proteção
dos pais. Toda a família percebia esta mesma
necessidade, embora ninguém manifestasse ou tivesse
condições de opinar.
Mesmo sendo parente ou amigo íntimo de uma
família, nem sempre temos liberdade suficiente para
meter o bedelho em suas vidas. E mesmo convidados,
devem-se ter muita cautela com assuntos familiares.
Não havia segurança de sucesso ao mudar de
cidade. Não lhe saia da cabeça o que fora dito pela
prima:- Estou com um quarto à espera.
Elizabeth pensava ser fácil fazer uma ligação,
propor um convite, supor que a pessoa corresse para as
condições da proposta. Infelizmente, não era assim tão
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fácil. Fazem a vida complicada. Lia não se sentia
preparada para mudar de endereço naquele momento.
Depois, não queria incomodar o casal, mesmo que
fosse sua irmã, não gostaria de criar embaraços.
Os dias passaram sem que Elizabeth recebesse
resposta. Ao mesmo tempo evitava ligar e forçar a
situação. O melhor seria a aceitação sem muitas
conversas paralelas, sem muito diz que diz que. Afinal
o convite havia sido feito com todo prazer.
Durante aquela semana, Lia aproveitou para
decidir se aceitaria ou não o convite. Como estava não
poderia continuar. Sentia-se desvalorizada não só
como mulher, mas como ser humano.
Pensava que não teria outras oportunidades na
cidade de Brasília. Por várias vezes tentou, não
conseguiu uma boa colocação. Sempre era a mesma
exigência:- Faltam-lhe experiências profissionais.
Com razão! Ela estudou e se formou, mas não
trabalhou na sua especialidade. Verdadeiramente não
pensou que um dia precisasse de trabalho. Jamais
imaginou o casamento desfeito. É justamente nestes
momentos, que se veem as dificuldades. Não estava à
procura de nada especial, somente alguma coisa que a
fizesse sentir bem, com dignidade e confiança.
Chegou à sexta-feira, agora havia somente o
sábado e domingo para decidir. Acreditava ser uma das
mais importantes decisões de sua vida.
À noite o vento morno soprava o planalto
central. Lá da janela do apartamento se via a cidade
iluminada, com o céu azul pontilhado de estrelas
brilhantes. Tudo isso, pouco ou nada significavam para
os sentimentos mais íntimos. Às vezes retroagiam,
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escondiam-se lá nas profundezas da psique humana e,
de vez em quando ressurgiam em desconfortos.
A mesa permanecia preparada para duas
pessoas. Mantinha-se a velha perspectiva de chegada
de alguém. Ela perseverava na proposta de não se
desligar daquela fixação, capaz de transformar
qualquer ser humano saudável a patológico.
Ligou para saber se dona Ignez gostaria de
acompanhá-la à igreja para a missa das nove horas, no
domingo. Dona Ignez combinou que passaria no
prédio da filha, iriam juntas.
Em meio a um turbilhão de acontecimentos,
Lia nem mesmo se lembrava da última vez que esteve
numa igreja. Procurou raciocinar e recordou:
- Foi no casamento a última vez, a que assistiu
uma missa.
Daquela época até o atual momento não houve
qualquer aproximação com a religião. Imaginou estar
realmente desatualizada, a igreja modificara alguns
rituais neste ínterim e, no final da Eucaristia, havia
cumprimentos entre os fieis. Aproximavam-se como
verdadeiros irmãos em Cristo, Jesus.
Seria o “Amai-vos uns aos outros como eu vos
amei”? O momento de real felicidade, não por um
suposto sentimentalismo, mas pela oportunidade de
congregarem os mesmos objetivos com superiores
ideais de amor Cristão.
De repente lá de trás, da terceira fila de bancos
surgiu um jovem sorrindo. Era o amigo de outras
épocas, Cardoso.
Com aquele mesmo sorriso aberto e olhar fixo.
Lia reconheceu-o imediatamente. Ele aproximou-se
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gentilmente, não deixou de pronunciar por completo o
nome da amiga:
- Como vai Ofélia, tudo bem?
Cumprimentou dona Ignez e voltou ao lugar
onde se encontrava. Era o momento, quando a vida nos
reserva as lembranças. Dá-nos oportunidade de refletir
o que somos numa simples avaliação. Uma espécie de
sacudidela, quando se manifestam razão e consciência:
- Hei! Você ainda está aí?
- Você ainda é o mesmo de antes?
É evidente que não! Nunca somos os mesmos.
Seguimos os caminhos de menores relutâncias, como
as águas dos pequenos nichos para os riachos, destes
para os rios, e dos rios para os mares.
Ao término da missa saíram caladas. Seguiram
rumo ao estacionamento.
Sem que percebessem, Cardoso também se
dirigia para o mesmo local. Demonstrava coincidência,
pois, até mesmo os veículos estavam estacionados um
atrás do outro.
No afã de encontrar um lugar para o carro,
Cardoso viu a mãe e filha estacionar. Reconheceu-as
de imediato. Não quis se aproximar. Sabia sobre a
separação da amiga, embora, também soubesse que
casamentos desfeitos não são privilégios de ninguém.
Sem muita demora aproximou-se de Lia.
Perguntou novamente como estava? Perguntou sobre o
professor, estas coisas ditas aos amigos que não vemos
há muito tempo e, gostamos de conversar por grande
tempo.
Embora a época seja outra, há restrições à vida
em conversas rápidas. Em nenhum momento citou o
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nome de Percival, Cival ou qualquer coisa que
insinuasse o ex-marido de Lia.
Talvez houvesse intenções recíprocas de não
pronunciar nomes, não focar em detalhes sobre
acontecimentos. As evidencias deixaram claras as boas
intenções. O carinho manifestado por Cardoso, a
educação ao lidar com os sentimentos alheios, tudo
isso não deixou de ser percebido.
46
IX
Os trabalhos de pesquisas de campo deram a
Percival, oportunidades de conhecer novos horizontes
da ciência, as quais jamais pensou existir.
Com as idas e vindas tornou-se conhecido dos
moradores da região do Algarves, base de suas
pesquisas de doutorado.
Havia no falar o jeito brasileiro, embora sendo
filho de portugueses. Alguns duvidavam ser ele
realmente brasileiro, principalmente depois de
habituar-se ao linguajar local. Além disso, trazia a
familiaridade aos gostos portugueses por comidas,
roupas, religiosidade e os gestos banais e comuns ao
povo simples das Aldeias. As raízes do passado presas
à sua alma vicejavam hábitos e costumes, heranças de
tradições milenares se restabeleciam.
Por vezes insurgiam marasmos mentais, forças
depressivas tentavam por todos os meios arrastá-lo
para bem longe dos ideais, enquanto ele insistia, como
se nunca estivesse ultrapassada a linha da chegada.
Desafiavam ilusórios raciocínios, para depois atingir o
alvo e conquistar os louros da vitória.
Poucos conseguiram a façanha de sair do bairro
pobre, das barrancas do mal cheiroso rio Tietê, sem
aparentemente nenhuma chance de vida digna.
Voou alto à procura do seu espaço, reuniu
forças e partiu rumo aos seus ideais. O Doutor em
hidrologia agora residia confortavelmente. Estava
empregado e bem remunerado, colhiam os frutos
meritórios com dedicação e esforços próprios.
47
Jamais se lembraria do Badeco, o senhor
Claudionor, ainda menos de sua infância pobre,
quando manobrava com muita perícia a “magrela”, nas
freadas bruscas com derrapadas. Foram infindáveis
vezes que leu a placa fixa na haste do guidão.
Destacava a marca da bicicleta: Norma. Completava
com o nome do campeão de ciclismo, Merck Swiss.
Como tudo na vida tem seus limites, talvez à bicicleta
terminasse a existência como sucata, em fornos de
alguma fundição de ferro ou aço.
Ainda que sejam citados os cuidados de dona
Mafalda, a pedir com esmero o regresso do filho ao
lar. O pai honrado de quem Percival usufruiu a melhor
parte, ganhava dinheiro com o trabalho duro, para
manter o filho na Universidade. Não tinha hora para
dormir e nem para se levantar, vivia assiduamente do
trabalho, mesmo em constantes crises de bronquite
asmática.
Talvez seja pedir em demasia ao personagem,
as lembranças de sua adolescência. Também não
devemos minimizar as responsabilidades dele no
transcorrer da estória. Portanto, vejamos!
Há lavradores que desprezam a preparação do
campo, e quer usufruir no final da colheita. Outros
preparam a terra, fertilizam o solo, põem-se a semear e
esperam o tempo necessário.
Sempre há períodos de chuvas e de estiagens.
Mesmo assim, sabem eles mais que ninguém, esperar a
germinação, ver o desabrochar das plantinhas. Os
trabalhadores prudentes nunca esquecem, o campo
deve ser cuidado com muito esmero e dedicação.
48
Os menos vigilantes desprezam os cuidados
com a gleba, semeiam sobre a terra despreparada. A
semente também pode não ser de boa qualidade. Os
orgulhosos e imediatistas procuram os benefícios da
colheita somente vendo a chuva e o sol, concluem-se
ter despendidos esforços demasiados. Revoltam-se ao
chegar ao campo e encontrar coberto de ervas
daninhas. Verão que nada restou dos seus ínfimos
esforços, supostamente tidos como extremados e
desgastantes. Em contraponto, não se reconhecem
negligentes com as tarefas.
O dedicado Doutor Percival não deixou a
desejar. Nas más horas surgem os imprevistos, que
exigem ações com seguranças. Nos dias chuvosos, ao
entardecer, ali no campo onde eram feitas as pesquisas,
sempre na mesma área, juraria ter visto morcegos
revoarem sobre as relvas. Depois em espirais subirem
velozes e sem rumos, desapareciam no céu escuro.
Tentou conversar sobre o assunto com Raquel.
Percebeu a falta de interesse e evitou aprofundar-se em
detalhes. Como bom observador marcou os pontos
onde as maiores quantidades de morcegos
sobrevoavam. Nos dias posteriores, sob a luz do sol
verificou com exatidão os locais. Tentava de alguma
forma certificar-se de possíveis fendas ou reentrâncias
no solo.
Conhecia o assunto, guardou para si os
acontecimentos sobre os morcegos. As marcações
locais demonstraram possibilidades de algo mais que
uma simples abertura, por onde entravam e saíam os
mamíferos quirópteros. Notava-se que, detrás de uma
rocha pontiaguda havia uma entrada no solo, com
49
características de constantes utilizações. Não por
acaso, os mamíferos entravam em voos rasantes, num
espécie de mergulho no solo pétreo para quem via à
distância.
Examinou com cuidado o início da entrada.
Havia um estreitamento natural no relevo, que ia se
abrindo como um funil invertido, descendo em plano
inclinado para o interior do solo. Não deixou que
ninguém percebesse. Manteve total discrição. No
entardecer procurou ter certeza sobre a morada dos
morcegos. Utilizou o monitoramento através de
aparelhos, concluiu ter realmente encontrado uma
prodigiosa caverna.
Conseguiu com moradores auxílio na remoção
da grande pedra pontiaguda, um dos maiores
obstáculos para acesso ao interior da caverna.
Os moradores na maioria nascido naquela
região, nunca imaginaram existir ali o que o Doutor
Percival descobriu.
Com a descoberta, ele quis ser o primeiro a
descer pela abertura. Munido de lanterna desceu cinco
metros, deslumbrou-se com monumental criação da
Natureza naquele local do Algarves.
Pouco adiantou pedir sigilo aos presentes
naquele momento. A notícia se espalhou como um
rastilho de pólvora. Toda a região passou a conhecer
mais um promissor ponto turístico.
Sem demora, o Doutor Percival procurou
Raquel sua parceira em pesquisas, contou sobre a
descoberta. Tentou em vão lembrá-la das ocasiões a
que lhe disse a respeito dos morcegos naquele sítio.
50
Enfim, contava com ela para evitar que o seu nome
fosse divulgado nos jornais, revistas e televisão.
Realmente foi uma grande novidade para todos
que conheciam a região, pesquisadores, estudantes
acadêmicos e o Governo Português.
Não! Meu nome não pode de maneira nenhuma
aparecer nos órgãos de imprensa. Qualquer relação
entre a caverna e a minha pessoa, será extremamente
danosa para minha condição de bolsista brasileiro. Não
devo demonstrar qualquer ligação com outro país.
Tudo isto pode me custar muito caro, além do dinheiro
de manutenção da bolsa, cria-me uma situação de
falsidade ideológica, e, neste caso, é crime pelas leis
do meu país.
Depois de muitas reuniões, Raquel assumiu a
responsabilidade da descoberta. Ela, a contragosto se
deixou levar pelo argumento sobre a bolsa de estudo
de Percival.
O Ministério se encarregou das formalidades
políticas, ano trato adequado ao assunto.
51
X
Em consequência desta notável descoberta, o
Brasil perdeu um Doutor em hidrologia, enquanto
Portugal ganhou um novo especialista. Mais um entre
tantos brasileiros a cuidar da própria sorte. Há outros
bolsistas pelo mundo nas mesmas condições:
Matemáticos; Médicos; Físicos; Engenheiros;
Mecatrônicos e Economistas. Diversos especialistas
trabalhando em outros países, formados com bolsas
brasileiras, pagos pelos impostos cobrados dos
brasileiros.
Ele partiu do Brasil com a esposa para um país
da Europa. Conclui todas as tarefas necessárias e
exigidas pelo curso escolhido. Finalmente, quando se
imaginava gozando os louros da vitória, eis a mais
árdua das batalhas, travadas no imo do coração.
Aquele amor belo e duradouro, jurado em presença de
convidados e testemunhas, desmorona diante de uma
paixão avassaladora.
Lá se foi mais uma noite de insônia do Doutor
Percival. Pensava encostar a cabeça no travesseiro e
dormir, entregar-se nos braços de Morfeu. Os sonhos
eram como pesadelos. Não passava uma semana sem
que Lia surgisse em seus sonos. E creia, não eram
faltas de orações. Quanto mais súplicas, mais se
intensificavam os sonhos, com muita clareza em
detalhes. Ela estava sempre sorridente e linda como
sempre.
Desde a separação, não houve mais qualquer
contato, embora o subconsciente mantivessem os
acúleos da curiosidade inconfessável. Não sabia onde e
52
com quem estaria, mas, já sentia ciúmes de quem ainda
não a conhecia. Ele agora vivia a incompreensão dos
seus próprios sentimentos, um jeito característico de
contida impaciência no trato com Raquel, uma
constrangedora pertinência da qual ela nada tinha a
ver.
Raquel por sua vez, mantinha-se dentro do
equilíbrio, desde que foi apresentada ao Percival pela
primeira vez. Em nada mudou nem mudaria seu jeito
requintado. Quem a conhecia admirava pela educação
e trato com os amigos. Foi de uma grande amizade o
início de tudo, gradativamente foi se transformando
em algo mais significativo. As carências de ambos
talvez se complementassem, em mais um caso de
amor.
Por todo este drama pessoal que vivia Percival,
foi necessário passar por consultas médicas e
perseverar no tratamento, a fim de possibilitar um sono
eficaz com ação medicamentosa.
O romance de Raquel nada significava aos
parentes. Viam-no como mais um, entre tantos que
surge nas vidas das pessoas. A diferença agora era que,
Percival não mais teria uma sogra como opositora ao
relacionamento. Infelizmente sua nova companheira
era arrimo de família. A vida agora era intensa, ambos
passavam os dias da semana cuidando de seus
afazeres, ela dando aulas na Universidade e ele nos
infindáveis projetos, designados pelo Ministério do
Governo Português.
Como não poderia deixar de ser? Primeiro à
responsabilidade, os cumprimentos às obrigações, para
53
depois o aconchego do lar, a viver e amar como
cidadão comum entre os comuns.
Reunidos em casa falavam de tudo um pouco,
pensavam sobre os projetos de futuro, discutiam sobre
pontos de vistas técnicos e científicos, nada além do
normal de um casal de especialistas.
O espírito lusitano aparecia como marca de um
povo. Não traziam os cuidados praticados por outros
povos latinos no trato familiar. Raras trocas de
correspondências com seus pais, nenhuma ligação
telefônica possibilitando ouvir mais uma vez aquela
voz meiga e agradável de sua mãe.
Os pais e irmãos sentiam-se afastados de suas
intimidades, desistiram de eficaz aproximação.
Estava próximo do final de ano, quando o
Doutor Percival recebeu uma ligação do Gabinete do
Ministro de Minas e Energia, convidando-o a um
Simpósio sobre Poluição de Águas Subterrâneas.
Tratava-se de um convite formulado por um órgão
ONU sobre o assunto específico, a ser realizado na
América do Sul.
No primeiro instante achou interessante, porém
haveria de sua parte alguns pequenos problemas
domésticos a cuidar. O interesse se tornou maior, a
partir do momento em que foi revelado o local do
evento. Era exatamente onde ele mais desejaria, na
cidade de São Paulo.
Não pestanejou em aceitar, mesmo sabendo do
grande trabalho que teria pela frente. A apresentação
nos moldes a atender tanto aos Políticos e Autoridades
representativas, assim como a outros especialistas e
doutos do assunto específico.
54
XI
- Alô Elizabeth, é Lia!
- Como vai? Tudo bem?
Com o fone no ouvido aguardava a resposta,
até que novamente falou:
- É sobre o convite que fez! Pensei bem e
decidi aceitar. Gostaria de levar algumas coisinhas
minhas, não muitas, mas estou acostumada com elas.
Você sabe! Completou sobre o assunto.
O mais importante estava confirmado, Lia
mudaria de cenário, deixaria Brasília para morar na
maior cidade da América do Sul, São Paulo.
Elizabeth imaginava a mudança como fim de
uma obsessão. Havia esperança em ver a sua prima
completamente livre dos transtornos psicológicos a ela
aludido.
Acertaram os detalhes. Mudaria de ambiente e
viveria numa cidade acolhedora, ao mesmo tempo
impositiva, onde milhões de habitantes fervilham nas
ruas em busca da sobrevivência. São importantes
algumas características da grande cidade de Paulo:
- Quem se chega logo aprende seguir com rigor
seu ritmo pulsante. A cidade exigem correções aos
novos moradores. Queiram ou não, ela não permite
viver de contemplação. Portanto, ou aceita as
imposições ou volta. Não há alternativas. Os horários
devem ser obedecidos, os compromissos assumidos
devem ser rigorosamente cumpridos. Forma
encontrada de desenvolvimento da cidade, que
continua em intenso ritmo.
55
Seria São Paulo uma economia efervescente a
exigir trabalhadores subservientes?
A grande São Paulo se desenvolveu dentro dos
rigores do capitalismo selvagem. Lá no início já
estavam traçadas as metas impositivas pelo dinheiro
abundante de minorias.
Os Coronéis com os negócios do café
perceberam a crise da superprodução. Aplicou suas
economias na industrialização, isso bem antes da
quebradeira, pela crise de mil novecentos e vinte e
nove, dada histórica da queda da bolsa de Nova Iorque.
Depois, aglutinaram-se novos investidores
vindos de todas as partes do Mundo, cada um impondo
o personalismo nas exigências para aplicações dos
recursos, com garantia de retorno ao dinheiro
investido. Tudo se desenvolveu e chegou ao que é
hoje.
Não podemos esquecer o rótulo de extremados
ao trabalho, exagerados na organização. Tudo isto é
verdadeiro, imposições comportamentais na conduta
ao trabalho com exigências patronais. Estes parâmetros
básicos caracterizam os trabalhadores paulistas.
Lia deixou passar o fim da semana. Enquanto
isso, em São Paulo, Elizabeth apreensiva preparava a
chegada da prima. Demorou um pouco mais que
supunha, mas finalmente conseguiu com seu jeito
simples, ajudar a quem mais precisaria de ajuda.
Todas as coisas importantes de Lia couberam
em duas malas. O restante, a maior parte, mais uma
vez ficaria na responsabilidade de seus pais, para
fazerem o que bem entendessem.
56
O professor Cândido utilizou a psicologia, com
tratamento especial repreendia dona Ignez:
- Por favor, deixe que ela decida! Somente
desejamos o bem dela.
- Imagina Cândido, não vou manifestar minha
opinião a respeito, de jeito nenhum!
Lia não pregou os olhos na noite de terça-feira.
Havia desmontado quase por completo o apartamento.
Colocavam em caixas de papelão todas suas louças e
quinquilharias, contudo, um detalhe permaneceu como
estava, a mesa-posta para duas pessoas. Até o vinho
permaneceu pronto para ser degustado.
Na quarta-feira pela manhã, Lia entrou no
avião com destino a São Paulo. Havia se despedido
dos pais. Por uma destas condições momentâneas
despediu-se por telefone de Cardoso.
Ele foi muito atencioso, desejou-lhe tudo de
bom. Pediu não deixasse de ligar com notícias.
Finalmente, ofereceu-lhe ajuda caso necessitasse.
Ao tomar lugar na poltrona e aguardar a partida
do avião, iniciou um principio de choro. Vinha-lhe à
memória, que depois de mais de oito anos ainda não
havia passado as turbulências do casamento desfeito.
O avião levantou voo e logo surgiram novos
pensamentos. Era uma nova chance de vida com
dignidade. Neste misto de pensamento e obsessão,
perguntava a si mesmo sobre a felicidade:
- Por que não?
Afinal o principal ainda se mantém, a minha
boa saúde física e dignidade. O psicológico é um caso
a parte, se não houver melhoras acentuadas com a
57
mudança de endereço, procurarei ajudas dos
profissionais.
Após três horas, desembarcava no Aeroporto
de Congonhas. Elizabeth e Virgílio estavam a postos
no saguão de desembarque de passageiros. Antes que
Lia os localizassem entre as pessoas à espera,
Elizabeth pulava e abanava as mãos chamando à
atenção da prima.
Receberam-na com todo carinho. Virgílio de
posse do carrinho de transporte de bagagens pôs-se a
empurrá-lo e seguiram em frente. As primas falavam
com desenvoltura, a matar as saudades de muitos anos
sem se verem.
Durante o resto da semana foi de arrumação,
das coisas que Lia trouxera.
Ela conhecia São Paulo de uma viagem rápida
e sem planejamento. Agora estava definitivamente,
queria conhecer os pontos turísticos. Conheceria sem
nenhuma dúvida, as casas de Espetáculos, Teatros,
Cinemas e o Parque do Ibirapuera com seu espaço
livre para as caminhadas e eventos culturais.
No início da semana foi com Elizabeth para
conhecer o provável novo emprego. Era uma escola
básica da região central. Após as apresentações, Lia foi
entrevistada com o objetivo de preencher uma vaga
como Psicóloga. Esperançosa com a oportunidade, não
se deixou abater com algumas perguntas a ela
formuladas. Entre as perguntas havia às de caráter
pessoal, sobre sua condição de divorciada.
A entrevista aparentemente não teria o
significado pessoal, mas ela não imaginou que
novamente alguém viesse a mexer na ferida, ainda não
58
cicatrizada. Ao contrário, estava disposta a esquecer de
seu passado e dar novas diretrizes à vida.
É sempre assim! Quando menos se esperava
ressurgiu perguntas sobre o que mais ela temia, o
passado. Apresentava-se de forma dissimulada. Nestes
momentos aprendemos dar valor à boa amizade, ou ter
por perto alguém de nossa confiança. Além de tudo
isso, uma pergunta é muito mais perigosa que centenas
de respostas.
Elizabeth dava amparo aos sentimentos da
prima, com postura firme e gestos carinhosos. Ao
mesmo tempo encorajava-a em busca de outros
possíveis empregos:
- Não se deixe abater, você vai conseguir. Digo
isso não por ser parente próximo, mas porque você
merece ser feliz.
Assim seguiram os dias e semanas. Quando se
dava por excluída do primeiro emprego na cidade,
inesperadamente foi convidada a comparecer junto à
diretoria da escola de base, a mesma que Elizabeth
havia indicado.
Indescritível a alegria que tomou conta de
todos. Vibraram de contentamento. Elizabeth e
Virgílio ficaram eufóricos. Estavam conscientes do
trabalho que realizavam.
São Paulo mais uma vez mostrava sua pujança.
Dava oportunidades a quem precisava, em momento
difícil de vida de uma brasileira.
Iniciou o trabalho na Escola com muita fé e
confiança. Não demorou muito para se firmar como
uma funcionária exemplar. Conquistou a confiança dos
59
demais funcionários e, principalmente dos pais de
alunos.
Elizabeth havia acertado na mosca. A ideia de
tirá-la do ambiente a que vivia foi primorosa. Até
porque, o alívio psicológico com o surgimento de
novas oportunidades, conhecer novas pessoas, novo
ambiente devem ser considerados.
Tornou-se constante as ligações telefônicas de
dona Ignez à filha. Por motivos justos, ela também não
fez nenhuma visita após a mudança de Lia para São
Paulo. Elizabeth tinha em mente, quem estaria de
forma sutil evitado à ida da mãe em visita à filha.
Neste período Lia aprendeu como era o ritmo
desta grande Metrópole. Como encontrar o quê se
deseja. Já estava habituada com o corre-corre nas ruas
e avenidas da cidade.
No transcorrer deste tempo em São Paulo,
batia-lhe a saudade de dona Ignez. Com certeza não
era uma pessoa perfeita, contudo, jamais alguém
negaria as preocupações com a filha.
Qualquer um sente, quando os excessos de
zelos podem ter consequências totalmente contrárias
ao desejado. A maior dificuldade ao lidar com a
questão era por parte de dona Ignez. Porque Lia havia
aprendido a viver longe dos pais, enquanto a mãe em
Brasília não deixou de pensar na filha um só dia,
durante todos os anos em que ela residiu na Alemanha.
Estava na hora de matar as saudades entre mãe
e filha. Antes, porém, deveria combinar os detalhes, de
maneira a não tumultuar a vida do casal que tanto a
ajudara. Magoar a prima e o marido, por qualquer
inconveniência seria indesculpável.
60
Dona Ignez se preparou para ir a São Paulo.
Andava de um lado para o outro a fim de extravasar o
nervosismo. Nesta expectativa, tentava convencer o
Professor Cândido a acompanhá-la na viagem. No
subconsciente havia um ponto a considerar, a
manifestação do Professor lhe restabelecia a necessária
calma. Infelizmente, o Professor não queria estar
ausente dos compromissos assumidos, há mais de três
meses. Além do irrestrito comportamento ao manter
em primeiro lugar o respeito à profissão que escolhera,
quando ainda era jovem. Nesta arte de cumprir
compromissos, fazia da profissão um verdadeiro
sacerdócio.
61
XII
Cinco dias se passaram desde a chegada de
dona Ignez em São Paulo. Não houve um só dia sem
passeios após o expediente da escola.
Iam às compras com frequência. Outras vezes,
saiam para assistir um filme ou peça de Teatro.
Somente o tempo carrancudo prejudicou os
programas. Chovia copiosamente. A temperatura com
novas frentes frias vindas do sul, mesmo assim
proporcionaram momentos de satisfações. Elas se
sentiam felizes, mas lamentavam a ausência do
professor Cândido.
No subconsciente surgiam às interrogações, em
forma de preocupação de esposa e dona de casa:
- Como será que está o Candido? Dizia
cochichando no ouvido de Lia.
Ela sorria com a preocupação da mãe. Sabia do
respeito adquirido ao longo dos anos, quando o amor
não morre, mas a satisfação em estar juntos supera
qualquer expectativa e, estando longe um do outro,
sentem-se deslocados ou perdidos em novos
ambientes.
Desnecessário dizer de almas absolutistas e
irreverentes, onde o casamento passa a ser um ato de
disciplina, transformação do carinho em autoritarismo
e solicitudes em exigências.
Sem contar os distúrbios psicológicos iniciados
no dormir à “Valete e Dama”, evitando qualquer
aproximação física, usado como desculpa o “ronco” ou
o calor excessivo. Podemos considerar ainda a velada
repugnância ao contato, que se não manifestou em
62
quatro ou cinco anos de namoro e noivado. Não é
demais dizer, que o desleixo em progressão leva à
separação de camas, depois separação de quarto. Aí
fica consolidada a separação de corpos, independente
do que diz o Direito Civil constituído.
Lia sentia naquele momento de lucidez, um
carinho especial aos pais. A verdadeira adoração à
prima pela dedicação nos momentos mais difíceis de
sua vida, tirando-a da mais grave depressão. Mesmo
assim, os pensamentos percucientes não arredaram
pés. Vinham constantemente a autoavaliação sobre sua
dedicação às causas sociais, uma pequena contribuição
em prol dos mais necessitados. Sim! Na mais pura
verdade nunca havia feito nada de benemerência,
mesmo aos mais próximos dos próximos, os seus
familiares.
Uma amiga convidou Elizabeth para um bingo
a ser realizada num Clube da Vila Leopoldina, bem
próximo da “Vila do Sacrifício”.
O convite recebido, no início da semana
ensejou convidar Lia e dona Ignez. Antes deveria ter
certeza na aquisição de mais dois convites, assim
evitaria qualquer decepção. Convidar e depois frustrar
por qualquer impedimento.
Passaram-se dois dias. A reunião no bingo seria
à noite do sábado. Deveria providenciar os convites
para as duas damas. As mulheres gostam de convites
formulados com antecedência. Há preocupações com
roupas, calçados e principalmente com agendamento
do cabeleireiro e manicure de preferências.
No mesmo dia ao receber os dois convites,
Elizabeth procurou com alegria a prima e tia. Mesmo
63
assim não deixou de pedir desculpas por não ter feito
antes.
Era de completo entusiasmo. Uma cuidava de
uma roupa, enquanto a outra pedia opinião. Tudo
discorria com entusiasmo para o sábado à noite. Nesta
harmonia familiar não escapava nem mesmo Virgílio,
que hora ou outra, era solicitado a sua opinião.
Dona Ignez não se lembrava de quando
participou de um bingo. E, se participou foi em
quermesses de igrejas, não com modelos atuais em
amplos salões, com máquinas automáticas para
sorteios, com os participantes bem acomodados.
Na noite de sábado todos estavam bem
trajados, seguiram para o Clube. Elizabeth vestia
roupas simples. Dona Ignez seguia na mesma linha,
com um vestido também muito simples e confortável.
Lia envolvida pela sua juventude vestia como às
outras, porém, alguns detalhes no modelo realçavam
muito bem o corpo.
Virgílio na sua tranquilidade de homem de
bem, vestia roupas normais para a ocasião, contudo,
caprichou no retoque ao branco do bigode.
No Clube notavam-se a animação dos
presentes, com grande número de pessoas no salão. A
maioria enquanto preenchia as cartelas, ouvia e
conferia o número da bola sorteada. Conversavam e
sorriam espontaneamente. Ora ou outra, um ganhador
se manifestava. Os demais participantes festejavam.
Enquanto isso, as horas corriam e a noite se mostrava
pequena para tão grandioso prazer.
Lá pela madrugada, durante mais uma rodada,
provavelmente havia diversos participantes com
64
expectativas do prêmio. Tratava-se de uma rodada
onde seria maior o valor do prêmio.
Não demorou! Após cantar seis números eis
que surge um ganhador.
Lia e os demais acompanhantes olharam e
viram ao longe a pessoa. O ganhador surgiu lá fundo
junto ao palco para receber o prêmio. Tratava-se de um
cidadão calvo, magro e de estatura mediana. Uma
figura não muito alegre. Ao receber o prêmio das mãos
do responsável, ouviu-se a voz calma e tranquila.
Mesmo à distância, Lia sentiu um calafrio ao
ouvir aquela voz. Ainda sorriu do jeito desconsertado
do ganhador, durante os agradecimentos.
Aquele instante passou quase despercebido. As
brincadeiras continuaram dando vida ao ambiente.
Novas rodadas foram ouvidas em bons sons.
Por algum motivo, Lia a propósito, estendia o
olhar para o lado onde se encontrava o cidadão
premiado. Por mais que se esforçava, não conseguia
vê-lo com clareza. Tudo era festa. Os participantes da
organização rasgavam elogios aos convidados.
Terminou a reunião com muita alegria e
satisfação. Restou a saída com calma, sem que não
comentassem sobre a sorte de uns e azar de outros. No
cômputo geral uma boa verba em benefício às
entidades necessitadas.
Os participantes do evento aglomeraram-se no
rol. Havia uma interrogação:
- Por que será que não saíam de uma vez?
Não demorou que fossem desvendadas as
dificuldades. Em momento algum se imaginaria o
quanto chovia naquele instante. Acontece que, o
65
murmúrio no ambiente não permitia ouvir qualquer
som, vindo da parte externa do prédio.
Embora sempre atendessem aos pedidos:
- Com licença! Com licença!
Outras vezes um pequeno empurrãozinho aqui,
outro esbarrão ali, todos se acomodavam aguardando o
amenizar da chuva.
Em um destes pequenos empurrões, Lia virou
para atender ao pedido de passagem, percebeu tratar-se
de fisionomia conhecida. A seguir, outra fisionomia
mais conhecida ainda.
Naquele instante ela sentiu um calafrio. Os
olhos se encontram num relance, sem que um jamais
pudesse entender, o quê a outra pessoa fazia naquele
ponto de convergência dos destinos.
Os acompanhantes de Lia não perceberam a
presença do Doutor Percival. Ele olhou e, com certeza
a reconheceu. Não manifestou qualquer atitude, seguiu
para melhor acomodação, sob o som de música
ambiente:
Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer. . .
-------------------------------------------
66
XIII
- Quem está? . . . Raquel?
- E aí! Estás bem?
Aguardou o tempo ouvindo a resposta.
- Estou a ligar para dizer que estarei no voo das
onze horas, horário de Brasília. Se não houver atrasos
estarei em Lisboa às vinte e uma horas. Em casa. . .
Deixe-me ver. . . Talvez às duas horas da manhã! Isso
se não houver contratempo.
Novamente ele esperou, ouviu e continuou
falando com a Raquel. Disse sobre a noite na cidade de
São Paulo. Deu explicações como algo natural. Disse
ter sido convidado pela irmã, Fátima, para participar
de uma reunião de benemerência em São Paulo,
acabava de chegar a pouco ao hotel. Disse ir ao banho
e comeria alguma coisa, e logo seguiria para o
Aeroporto.
Ficou longo tempo ouvindo e completou com
algumas palavras curtas. Concordou e desejou as
mesmas palavras de carinho ao finalizar a ligação.
Estava concluída a estadia em São Paulo, não
poderia nunca dizer:
- Deus o havia esquecido.
Até o encontro inesperado, mesmo depois de
horas do acontecimento, ainda parecia não ter um fim.
Talvez um sonho! A qualquer momento acordaria e
tudo voltaria dentro da normalidade.
Sonhou por várias vezes durante anos. Quando
acordava só havia decepção, não eram verdades,
apenas sonhos. Agora não! Esteve frente a frente com
67
ela, percebeu o reconhecimento. Não saberia o porquê
não a cumprimentou.
Por que aconteceu assim. . .inesperadamente?
Ele não resistiu, pôs-se a chorar.
Arrependia-se de todos os sacrifícios para
concretizar sonhos. Realmente era uma vida de sonhos.
Viver para ele foi nada mais que cumprir metas e
objetivos. Nunca pensou parar, conhecer o caminho a
percorrer. Jamais teve susceptibilidade para tratar com
os problemas íntimos, como pensar no amor como
exemplo! Juraria nunca ter posto a sua intimidade
como prioridade pessoal.
Percival dizia a si mesmo:
- Que momento difícil? É deplorável a qualquer
um, não precisa ser nenhum gênio. Sou realmente a
infelicidade ambulante. Tenho o poder de contagiar
todos que me cercam ou acompanham.
- Decepção. . . Este é meu nome!
Enquanto o tempo passava naquele quarto de
hotel, lá fora caía à chuva fina, quase uma garoa. Era
uma parte da vida, que ninguém pudesse lamentar caso
não existisse. Vertia lágrimas de arrependimento.
Juraria não haver mais os familiares, com o
amplo sentido dado à família. Agora se mostravam
arredios. Sentiu-se um estranho ao chegar à casa dos
pais. Amargou o dissabor de não ser reconhecido de
imediato pelo irmão mais jovem.
Pensava lá com seus botões:
- No meu tempo de estudante havia objetivos,
agora só restaram-me lembranças. Não existe em mim
um só momento, a qual não me arrependa. Por que
corri tanto para cruzar a linha de chegada, se nunca
68
soube qual o troféu oferecido? Pior ainda, não soube
nunca dar valores às conquistas humanitárias. Sou
diferente entre os normais da minha espécie, que
creem e vivem espontaneamente. Estes sim! São
agradecidos por encontrar na vida o que ela tem.
- Eu vivi atento aos detalhes ao largo de minha
vida. Sou como o fogo a queimar de dentro para fora.
Para minha sobrevivência exteriorizo minha
complicada forma de pensar, pois, voltar ao meu
interior, é encontrar o fogo que está a queimar há
muito tempo.
A Razão falou mais alto, como Juiz. Rompeu
os limites entre aceitar o ser humano a que se está
investido, ou ignorar os erros e considerar como
aprendizado. Esta última condição depende de cada
um, impossível de ser absorvido sem os princípios que
balizam os atos de humildades.
Percival acabou de tomar os comprimidos na
dosagem prescrita pelo médico, no tratamento da
depressão. Entrou na banheira com chuveiro aberto e
água morna. Lá ficou deitado por longo tempo. Não
considerou os limites com um corpo cansado, onde a
parte psicológica toma conta de nossas vontades. O
corpo pedia descanso e a mente a resistir os efeitos dos
medicamentos. Havia se esquecido de que ingeriu
vinho no Clube. Os efeitos colaterais da reação entre
álcool e medicamento, trouxeram-lhe consequências
imediatas.
69
XIV
Enquanto Virgílio fechava o carro, Lia,
Elizabeth e Dona Ignez saíam a passos lentos. Pararam
algum tempo junto à porta do elevador. Esperaram por
Virgílio.
Aqueles rostos femininos não acostumados
com noites sem dormir, sinalizavam abatimentos
próprios do cansaço. Até por que, houve preparativos
dentro do clima de expectativas. Forçosamente
prejudicaram o corpo, com incremento à noite anterior
mal dormida.
Permaneceram caladas à espera de Virgílio, na
porta do apartamento. Não arredaram os pés enquanto
ele não chegou. Ao entrar no apartamento cada qual
seguiu para o seu quarto, enquanto Virgílio resolveu
tomar uma bebida, destas de fins de festas.
Dirigiu-se à cozinha com o copo na mão, à
procura de gelo. Demorou o suficiente para que
Elizabeth saísse do quarto. Lia e a mãe levou mais
tempo. Saíram para um copo d’água.
Elas ficaram um tanto constrangidas na
presença de Virgílio. Como solução se apartou, de
forma a sentir-se à vontade no canto preferível, a área
de serviços da cozinha do apartamento, para conversar
espontaneamente.
Elizabeth puxou conversa com dona Ignez,
enquanto Lia observava. Virgílio degustava a bebida
com prazer, porém, não deixou de prestar atenção e
ouvia com clareza tudo o quê elas diziam.
Lia evitou comentários e participou de alguns.
Sobre a presença de Percival ela nada disse. Estava
70
convencida, que nenhuma delas havia percebido à
presença do ilustre visitante.
Todos dormiram tranquilos naquela manhã,
com exceção de Lia. Ela tentava entender o significado
daquela presença, depois de dez anos. Como poderia
encontrar alguém de tão longe, embora soubesse que
seu ex-marido viveu com os pais, em São Paulo?
Sinceramente não havia como acreditar no acontecido.
Seria uma simples criação mental, tudo que
vivi neste fim de semana? Não! Não foi ilusão! Tenho
a absoluta certeza que era ele. A mulher que o
acompanhava era a irmã. Lia não deixou de fazer suas
comparações. Meu Deus! O homem está um bofe.
Como o coitado ficou calvo? A calvície o envelheceu
muito.
Tudo isto passou naquela cabecinha, enquanto
virava na cama procurando o melhor conforto. Neste
misto de pensar e os constantes mexe-mexes, a manhã
passou e juraria não ter pregado os olhos.
Se bem que nestes casos, sempre nos
enganamos. A verdade é que dormimos aos poucos,
aos cochilos. Ao despertar sempre juramos não ter
dormido.
Passava a meio-dia, ouviam-se poucos barulhos
na casa, onde cada um levantava no horário que
quisesse.
Lá fora, pela janela via-se um belo domingo de
sol. Lia ao levantar e passar pelo corredor viu a mesa
com pão fresco e tudo necessário para um bom café.
Pensou: Só podem ser providências do Virgílio. Ele
sempre se levantava antes de todos. Com certeza saiu e
comprou o necessário.
71
Aos poucos se juntaram ao redor da mesa. A
última a chegar foi à dona da casa, Elizabeth. Ainda
com cara de sono, demonstrava cansaço. Novamente
os mesmos comentários surgiram. Falavam dos
assuntos mais variados, entretanto, em nenhum
momento Lia manifestou sobre o ilustre visitante no
Clube.
Na segunda-feira pela manhã, Lia se preparou
para ir ao trabalho. Tomou o café com toda rapidez
possível. Pegou apressadamente a bolsa e outros
pertences e saiu.
O mesmo aconteceu com Elizabeth e Virgílio.
No apartamento só ficou a visitante, dona Ignez. Ela
via as notícias na televisão da sala e, lembrou-se do
costume do professor Cândido, que mantinha este
mesmo hábito.
Em certo momento se surpreendeu com uma
notícia extremamente chocante, onde diziam que foi
encontrado pela camareira do hotel naquela manhã, o
corpo de um hóspede de nome Dr. Percival da Gama,
morto dentro da banheira do quarto de hotel. A notícia
continuava dando informações da origem e destino do
hóspede.
Com o choque da notícia, dona Ignez quis
saber se era realmente o ex-genro, ou tratava-se de
outro Percival? Era possível a existência de duas
pessoas com o mesmo nome, mas possuidores do
mesmo título de doutor seria uma grande coincidência.
Imediatamente pensou em ligar para a filha no
emprego. Imaginou como poderia ela reagir com a
informação, principalmente ao se trata de um assunto
como este. Passou dez ou quinze minutos tentando
72
encontrar uma forma de informar a filha. De repente à
intuição, ligar para Elizabeth. Através dela as coisas
poderiam ser bem encaminhadas. Não poderia ser de
outra forma, a notícia recebida por Elizabeth foi com
reservas e muitas dúvidas, teriam que ser confirmadas.
Ligou para o hotel citado por dona Ignez.
Realmente! Tratava-se de Percival, o mesmo que se
doutorou na Universidade de Berlim, aquele jovem
nascido nas barrancas do rio Tietê, na grande São
Paulo. Não havia como evitar, teria que dar a
informação a Lia. Seria inevitável compartilhar de
mais um momento desagradável. Por várias vezes
Elizabeth teve que confirmar se a prima estava
ouvindo. Lia ouvia tudo sem dizer nenhuma palavra,
até que finalmente pronunciou em voz baixa:
- É incrível, mas você sabe que ele estava lá no
Clube?
- Não me diga uma coisa dessas?
- Você o viu?
- É verdade! Não falei nada para não criar um
ambiente ruim, até por que minha mãe poderia
começar dar opiniões, quis evitar qualquer clima
desfavorável entre a gente.
- Por que você não me disse longe dela?
- Desculpe-me Elizabeth, não quis lhe envolver
no assunto, até porque não há qualquer contato entre
nós!
- Lembra quando houve um ganhador do maior
prêmio? Disse Lia à prima.
- Sim, claro que me lembro!
- Pois, era ele o ganhador.
- Não me digas?
73
- Nós estávamos longe do palco. Completou
Elizabeth.
- E agora? Será que já tomaram as
providencias? Disse Lia em tom baixo e preocupante.
- Bem, eu acredito que os parentes aqui em São
Paulo já foram informados, até porque nestas horas em
Portugal sabem do ocorrido.
- Você gostaria de ir ao velório, caso o corpo
for enterrado aqui em São Paulo? Perguntou Elizabeth.
- Sinceramente eu até tenho curiosidades. Acho
que tudo terminou há muito tempo.
Permaneceram alguns instantes sem que
dissessem qualquer coisa. Elizabeth ainda preocupada
perguntou:
- Lia querida, está tudo bem?
- Sim está tudo bem! Estou pensando se ainda
tenho endereço ou telefone dos parentes dele. Não me
custaria nada procurar saber com os familiares. Que
você acha?
- Bem. . .a ideia é muito boa, mas primeiro
seria necessário saber o número do telefone. A
telefônica pode informar se for o mesmo número.
Mais alguns segundos de silêncio.
Lia voltou a falar:- Vou sair na hora do almoço.
Procurarei nas minhas coisas, quem sabe encontrarei o
número do telefone.
Elizabeth se despediu. Pediu calma e
tranquilidade. Enfim, jamais imaginaram um caso de
morte, principalmente ao pensar em Percival. A visão
que se tinha, era de um homem que gozava de
excelente saúde.
74
Lia encontrou o número do telefone dos pais de
Percival, o número havia sido alterado em um dígito,
mas ainda era o mesmo e não houve nenhum obstáculo
para conversar com a irmã de Percival.
Fátima tratou-a com rispidez ao saber com
quem falava, depois, passou a responder com pequenos
soluços e disse sobre o que havia acontecido com o
irmão no hotel. Disse que a atual esposa viria para os
funerais, no Cemitério das goiabeiras, na Vila
Leopoldina, Lapa, São Paulo.
Adiantou alguns detalhes, somente na terça-
feira à tarde seria possível o funeral. Assim, também
daria tempo suficiente para a chegada da esposa.
Dona Ignez na expectativa aguardava o término
da ligação telefônica. Mostrava-se preocupada e
cuidadosa com a filha, pelas circunstâncias dos
acontecimentos.
Havia ligado para o professor Cândido em
Brasília e, possivelmente recebeu algumas orientações.
Depois de um longo período de silêncio, mãe e filha
passaram a conversar. Relatou sobre a presença do ex-
marido no interior do Clube. Dona Ignez não
pronunciou qualquer palavra, não se mostrou surpresa,
até parecia ter conhecimento do fato.
- Elizabeth contou sobre este fato à senhora?
Perguntou Lia.
- Não, estou ouvindo de você pela primeira vez.
Completou em voz calma e serena.
75
XV
Já passavam das dezenove horas, quando
Elizabeth e Virgílio chegaram do trabalho. Não foi
necessário qualquer comentário a respeito do assunto,
o casal já havia conversado sobre os acontecimentos.
- Lia, está tudo bem?
- Tudo bem! Obrigada.
Olhou para Virgílio e saiu tranquilamente para
a cozinha. Dona Ignez aproveitou a oportunidade da
ausência da filha e perguntou:
- Você viu que aconteceu Virgílio? Que sina
deste rapaz, não? Veio a São Paulo, não é que acaba
acontecendo o pior justamente na terra onde ele
nasceu! Já pensou numa coisa dessas?
- É! Estas coisas acontecem em qualquer lugar
dona Ignez, basta estarmos vivos!
- E não é? Confirmou dona Inez.
Virgílio completou em tom de cinismo:
- Ela, a dona Morte vem com a foice e
“chulape”. Passamos para o outro lado sem darmos
conta de onde estamos. E não adiante ser rico ou
pobre, ser príncipe ou plebeu.
Então, podemos misturar a realidade com
ficção. É só lembrarmos Hamlet de William
Shakespeare, o famoso: “Ser ou não ser. . .Eis a
questão”. Parou repentinamente e falou sério. Deu
ênfase ao texto do príncipe da Dinamarca, Hamlet:
- Que é mais nobre para a alma: Suportar os
dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou
armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim
tentando resistir-lhes? Morrer...Dormir...Mais nada... .
76
Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do
coração e aos golpes infinitos que constituem a natural
herança da carne, é solução para almejar-se.
Morrer...Dormir...Dormir... . Talvez sonhar... . É aí que
bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderão
trazer o sono da morte, quanto ao fim desenrolarmos
toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia
que torna verdadeira calamidade a vida assim tão
longa! Pois, quem suportaria o escárnio e os golpes do
mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos
dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis
amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da
inépcia contra o mérito paciente, se estivessem em
suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos
levariam nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não
por temer algo após a morte (terra desconhecida de
cujo âmbito jamais ninguém voltou), que nos inibe a
vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos,
sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De
todos faz covarde a consciência. Desta arte o natural
frescor de nossa resolução definha sob a máscara do
pensamento, e empresas momentosas se desviam da
meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação
perdem. . . . . . . . . . . ..
Naquele exato momento Lia retornava à sala,
pensativa, chegou para participar da conversa, com um
copo d’água à mão.
Virgílio havia parado o monólogo exatamente
ao vê-la se aproximando.
- Mas silêncio! Aí vem a bela Ofélia. Em tuas
orações ninfa, recorda-te de meus pecados.
Terminou o monólogo.
77
Dona Ignez ficou surpresa com a forma
desembaraçada e dinâmica, com que foi dito o
monólogo. Nem mesmo sabia que em Hamlet havia
esta preocupação com morte inconteste, menos ainda
ver pela primeira vez Virgílio romper os limites da
memória e citar tão naturalmente um texto, ainda de
Willian Shakespeare.
Passaram a discorrer sobre o dia seguinte.
Unânimes afirmavam acompanhar Lia até o local,
onde seria realizado o funeral às dezesseis horas.
Chegaram ao cemitério uma hora antes do
horário marcado. Puderam ver algumas pessoas da
família de Percival. Cumprimentaram um por um e
pronunciaram os nomes com bastante clareza, porém,
somente a irmã do ex-marido de Lia a reconheceu. Os
demais familiares jamais imaginariam estar ali à sua
frente, a mesma pessoa a qual viram no casamento de
Percival, em Brasília.
Dona Mafalda e o senhor Agostinho tinham
aparências cansadas. Demonstravam desconsolados.
Era possível sentir o sofrimento dos pais,
principalmente pelo menino dedicado e o estudante
esforçado, que ele foi. Considerando ainda o
casamento, a viagem para a Alemanha, depois a
separação e mudança definitiva para Portugal,
demonstravam claramente uma vida com tribulações.
Lia conheceu a mãe de Percival numa única
vez, no casamento. Imaginou uma cena tragicômica.
Certamente os pais de Percival não conheciam
a nova esposa do filho. Neste caso, parecia ainda mais
constrangedor. Imaginem duas mulheres chorando no
funeral de um único homem?
78
Sentaram contíguos. Dona Ignez, Lia, Elizabeth
e Virgílio. Depois de algum tempo chegou um dos
irmãos de Percival acompanhado de uma mulher.
Concluíram tratar-se da atual esposa do falecido. Ela
em planto alisava as mãos e o semblante do falecido,
enquanto os familiares de Percival tentavam ampará-la
naquele momento difícil.
Virgílio e Elizabeth somente observavam à
distância, porém, dona Ignez além de observar, com
muita frequência falava aos ouvidos da filha.
O funeral foi realizado. Mãe filha saiu pelas
alamedas do cemitério, rumo ao estacionamento.
Permaneceram caladas e de braços dados. Alguns
passos atrás o casal, Virgílio e Elizabeth.
Ao lado, um jovem cabisbaixo parecia sentir a
perda. Talvez fosse amigo do falecido. Naquele
momento as recordações brotavam com viço.
O “ploc-ploc” dos saltos dos sapatos das
mulheres ecoava no ambiente. Ouvia-se cantar os
pássaros nas árvores frondosas do ambiente, deixava o
local menos lúgubre.
Ao se aproximar do estacionamento, Lia virou
e notou a figura do mesmo homem, que ainda
demonstrava todo o sentimento. Junto aos carros
estacionados estava Fátima, a irmã de Percival.
Gentilmente ela veio e apertou as mãos de Lia,
agradeceu pela presença de todos. Diante da atitude
inesperada, Lia simplesmente a abraçou, enquanto o
desconhecido parou ao lado.
Fátima olhou, com um aceno de mão agradeceu
pela presença, pronunciou o nome do homem, Badeco.
Naquele instante Lia relembrou quantas vezes Percival
79
lhe contou sobre o amigo de infância. Sobre as
brincadeiras de menino, os jogos de bolas, passeios de
bicicletas, não deixaram de se lembrar dos morcegos
na casa abandonada.
Criou coragem e perguntou:
- Você é o Badeco, amigo de infância de
Percival?
Ele respondeu com um pequeno sorriso e um
movimento de cabeça afirmando:
- Fomos bons amigos. Só nos separamos
quando ele entrou na Universidade de Brasília.
Com o olhar fixo, ele perguntou:
- Quem é você?
A pergunta quando dita direta e sem rodeios é
quase uma espada no peito. Um pouco desconcertada
Lia respondeu num misto de choro e sorriso, enquanto
nos olhos verdes brilhantes as lágrimas marejavam.
- Sou Lia, a ex-esposa. . .Percival.
Com os mesmos sentimentos íntimos de
outrora, ela foi atingida de chofre na ferida
recentemente cicatrizada. Novamente sentiu a dor
penetrante e funda do dardo de uma simples pergunta.
Ele a olhou demoradamente, depois com bom
jeito, procurou concertar um pouco o estrago que
acabara de realizar.
Disse-lhe com voz calma e suave:
- Pois é Lia, meu amigo que me desculpe, ele
deveria ter problemas de visão. Como pode ter
separado de uma mulher tão linda como você?
Ela sentiu o galanteio e sorriu. Um sorriso
misto de choro. Ela se tornava mais bela quando isto
acontecia, chorava-lhes as maçãs do rosto, os olhos
80
brilhavam e dava um tom especial ao verde, os cabelos
louros lhe emolduravam o rosto rosado.
Outros amigos já lhe haviam dito coisas
semelhantes, mas nenhum foi tão direto e objetivo.
Lia pensou: Que pontaria tem o moço!
De qualquer forma, em poucos minutos
estavam superados os efeitos.
Depois que ele se afastou o suficiente para que
não a ouvisse, Fátima confidenciou ao grupo:
- Ele é um respeitável Advogado aqui em São
Paulo. Foi um amigo inseparável de meu irmão,
manteve a amizade com a minha família.
Todos olharam para o carro saindo do
estacionamento, como a confirmar as informações,
enquanto abanavam as mãos em despedida.
81
XVI
No fim da semana dona Ignez estava de volta à
Brasília. Os dez dias previstos com sua filha passaram
muito rapidamente. Estava concluída a obra do destino
escrita com tinta invisível.
Havia naquela consciência alguma coisa além
dos momentos vividos. Teriam em tão poucos dias de
visitas tantos acontecimentos importantes. Se caso lhe
perguntassem o porquê desta sensação, não saberia
explicar a contento.
Agora se viviam com novas perspectivas. Os
sonhos de felicidade de Lia também seriam os seus
sonhos. Jamais poderiam imaginar a intensidade
daquele amor sem limites entre mãe e filha. A
responsabilidade com o ser que aqui veio fazer
morada, por uma contingência da Natureza Divina foi-
lhe confiada como filha.
Nesta dinâmica havia uma grande dose de
otimismo. Confidenciou ao Professor, que ora ou outra
até poderia desandar, mas pelas condições encontradas
na casa de Elizabeth dava-lhe a visão de equilíbrio.
Enfim, Lia era o maior bem que o casal possuía na
face da terra.
Duas semanas se passaram e somente falou
com Lia no dia da chegada à Brasília. Resolveu ligar.
Ela não se encontrava em casa naquele momento, foi
Elizabeth quem a atendeu:
- Alô, Elizabeth.
- Oi querida! Sou eu, Ignez.
- Titia? Como está, tudo bem?
- Sim meu amor, tudo bem!
82
- E o titio, como está? Insistiu Elizabeth.
Conversaram sobre vários assuntos, até chegar
ao principal, à novidade sobre Lia.
- Como? Ela está namorando? Perguntou dona
Ignez e tom de surpresa.
Elizabeth estava eufórica ao dar a notícia.
- Oh! Titia, namorando! Veja que beleza.
- Quem é o moço, por acaso eu o conheci
durante a semana que estive aí?
- Conheceu! A senhora se lembra do moço que
conversou com a Lia por alguns minutos ainda no
estacionamento do cemitério? Aquele que disse ser
amigo do Percival desde menino.
- Ah! O tal “Badejo”? Completou dona Ignez.
- É ele mesmo, o Badeco. O nome dele é Luiz
Carlos. Estou pedindo a Deus que ela seja mais feliz
desta vez, ela merece. Completou Elizabeth.
- Deus é grande querida, Ele há de ajudá-la a
encontrar uma pessoa especial. Disse dona Ignez com
voz embargada pela emoção.
- Bem titia, o relacionamento ainda está
começando, mas o moço me parece uma boa pessoa,
pode-se considerar não ser mais um garotão.
- Titia, pelo amor de Deus! Não deixe que ela
saiba que bati com a língua nos dentes e, lhe contei
tudo. Não gostaria de deixá-la chateada por eu ser tão
linguaruda.
- Não posso esconder meus sentimentos, torço
tanto por ela, não estava mais aguentando. Digo mais,
se for para dar certo e sem sofrimentos, que seja, estou
apelando a todos os Santos de minha devoção. E olhe
que sou exigente com eles.
83
- Fique tranquila Elizabeth, quando ela vier me
contar faço de conta que nada sei!
- Vou deixá-la que ligue. Não vou dizer nada
ao Cândido, enquanto ela não falar sobre o assunto
comigo. Continuaram falando sobre outras coisas,
concluíram com um beijo e terminaram a conversa.
Dona Ignez passou o resto da semana na
expectativa em receber uma ligação de sua filha. Havia
de supor, que Lia ainda não tinha a confiança
necessária para expor seus sentimentos. Afinal, o
histórico de sua vida afetiva deixou marcas profundas,
alterando a sua maneira de agir, tornando-se mais
exigente e precavida.
Porém, desta vez havia grande expectativa,
com novo relacionamento, com novas perspectivas de
vida. O novo amor surgia quando e onde menos se
esperavam. Não houve tempo suficiente para
maturação, aconteceu muito de repente. Nestes casos,
precaução seria a melhor forma de lidar com o assunto.
Outra semana se passou e Lia não ligou. Nos
pensamentos da mãe zelosa, havia a ânsia em saber
sobre o namoro, sonhava com um futuro feliz,
imaginou a peça que o destino havia pregado.
Num domingo pela manhã, novamente dona
Ignez encontrou casualmente com Cardoso na mesma
igreja que frequentavam. O rapaz, com um sorriso
estampado no rosto gentilmente a cumprimentou.
Logo perguntou sobre Lia, como estava lá em São
Paulo? Completou com o professor Cândido,
demonstrou toda consideração. No final do encontro
ele disse ter conversado com Lia por telefone há
84
alguns dias, ela havia confidenciado sobre a visita de
dona Ignez.
Dona Ignez confirmou a visita. Demostrou-se
muito contente com o passeio, discorrendo sobre
alguns detalhes. Completou sobre a morte de Percival.
Neste instante, Cardoso ficou surpreso, porém,
permaneceu sem comentar o assunto. Apenas ouviu
sobre a coincidência de ambos se encontrarem.
Dona Ignez acabou de chegar. Toca o telefone.
Reconheceu de imediato à voz de Lia.
De propósito, o início foi um tratamento
monossilábico às respostas formuladas. Depois de
falarem sobre diversos assuntos, Lia passou a discorrer
sobre Badeco, dizendo que infelizmente não era
possível continuar aquele início de namoro.
Demonstrou muita insegurança sobre o tema, esperou
uma colaboração por parte da mãe, o que não ocorreu.
Dona Ignez de espírito já preparado permaneceu
calada, não manifestou à opinião. No seu íntimo havia
uma grande dose de decepção, ao ouvir as explicações
da filha.
Não por acaso, Dona Ignez disse ter encontrado
o Cardoso na igreja naquela manhã de domingo.
Despejou uma quantidade de elogios ao jovem amigo
da família, não deixou de falar sobre a principal
virtude do moço, a educação e o carinho,
principalmente para com o professor Cândido.
Ao desligar o telefone perguntou à filha:
- Quando você virá para passar uns dias aqui
com gente?
A resposta foi imediata:- Assim que me
liberarem por alguns dias. Não quero precipitar e criar
85
algum empecilho para a Diretora da Escola. Gosto do
que faço e tenho muito prazer em trabalhar com as
crianças. Vou marcar minhas férias para Julho,
coincidente com as férias das crianças. Assim fico
mais tranquila e aproveito muito mais os momentos de
descanso, a senhora não acha conveniente?
- Sim, filha! Faça o que você achar melhor. Se
for em julho ótimo, vou preparar o Cândido para não
assumir qualquer compromisso na próxima féria. Não
vai ser fácil, ele sempre arranja alguma coisa para
fazer na Faculdade. Desta vez não permitirei! Vamos
ficar juntos e curtir a nossa família. Continuaram
falando por mais alguns minutos.
No fim da mesma semana, dona Ignez como de
costume foi à igreja. Como aconteceu em outras
oportunidades, lá estava o Cardoso. Como sempre
sorridente. Dirigiu-se à dona Ignez cumprimentando-a.
Novamente perguntou sobre Lia, sentou-se nas
proximidades.
Por alguns segundos passou pela memória algo
inusitado, como se alguém lhe dissesse e ela ouvisse:
- Por que não?
- Ba. . . que ideia mais louca! Pensou.
Após a missa ainda na escadaria da igreja
Cardoso sorrindo puxou conversa. Incentivados pelo
bate-papo caminharam juntos até ao carro no
estacionamento.
86
XVII
O sol brilhava naquele sábado, enquanto Lia
preparava as roupas para a viagem. Sua prima
Elizabeth auxiliava fazendo as malas sempre
perguntavam sobre as roupas que desejaria levar. Lia
as escolhiam com simples olhares, ainda dependuradas
no guarda-roupa.
Havia no íntimo do casal, Virgílio e Elizabeth,
uma satisfação especial, a participação em cada
instante vivido por aquela pessoa, a qual decidiu
ajudar.
Ao ver o avião levantar voo, o casal entreolhou
com satisfação. Sabiam da importância ao decidirem
dar apoio a quem necessitava. Ali como estavam,
ficaram alguns minutos abraçados, até que Virgílio em
tom espirituoso disse:
- Enfim sós!
Seguiram rumo ao estacionamento do
aeroporto.
Lia sentia novamente a mesma emoção da
chegada a São Paulo. Durante o tempo de voo, de São
Paulo a Brasília, fez um balanço de toda a sua vida,
não deixou de reconhecer os esforços do casal. Ao
entrar na sala de desembarque, lá estava quem ela mais
desejava, os seus pais. Alegre, abraçou e beijou-os
com todo carinho.
Eles permaneceram muito tempo ao aguardo do
voo. Demonstravam toda alegria por mais uma vez se
reunirem em família.
O professor Cândido demonstrava claramente a
satisfação em rever a filha. O velho professor sentia
87
saudades da filha e procurava não demonstrar. Não
acostumado com “paparicos” mantinha uma postura
séria, não perguntava com frequência a dona Ignez
sobre a filha. Deixava que ela viesse dar notícias.
Como um pai zeloso, mantinha ainda as
lembranças desagradáveis, realçadas com o desfecho
imprevisível sobre o casamento. Sentiu muitas vezes
vontade de ligar e falar com a filha, ouvir a voz, como
faz outros pais. Perguntar:
- Como está minha filha, necessita de alguma
coisa?
Seria o mínimo a dizer. Afinal era única filha.
Na maioria das vezes se continha, aguardavam as
notícias através da esposa, com quem sua filha falava
com frequência. Neste ritmo de vida acabou por se
acomodar.
O Professor sentia a falta de carinho da filha,
muito diferente da época de criança e adolescência,
quando era procurado para conversas amistosas e
prazerosas.
Lia mal acabou de chegar, ligou para Elizabeth
para dar notícias. A viagem transcorreu dentro da
normalidade e tudo estava bem. Não era uma atitude
de subordinação, mas o reconhecimento do verdadeiro
amor fraternal.
No sábado à noite, dona Ignez convidou sua
filha para irem juntas à missa da manhã, no dia
seguinte.
Ao chegar à igreja, mais uma vez lá estava o
Cardoso. Ele caminhou rumo às amigas com aquele
característico sorriso. Cumprimentou-as, depois fixou
88
o olhar em Lia e disse:- Há quanto tempo! Como vai
Ofélia?
Ela um pouco sem jeito olhou para o rapaz e
depois para a mãe. Resgataram do subconsciente as
lembranças, quando para incomodá-la ele pronunciava
o nome completo.
- Bem! E você como tem passado?
Com voz firme Cardoso pôs-se a falar de
diversos assuntos, quis saber se ela havia se adaptado
em São Paulo. A conversa só parou ao entrarem na
igreja.
Na saída continuaram a conversa.
Ao se despedirem, Cardoso convidou-a para a
festa de Aniversário de uma amiga naquela noite.
Ele continuava um solteirão despretensioso e
achou propício o convite. Assim estaria bem
acompanhado pela pessoa que sempre respeitou. Ela
ficou por alguns segundos calados, como a pensar se
aceitava ou não. Acabou aceitando o convite, mas quis
saber os detalhes, se não seria inconveniente sua
presença, pois nem mesmo conhecia a aniversariante.
Ele garantiu que não, seria muito bom, o grupo
não é mais de garotos, completou:- Somos os que
resolveram não casar, o tempo passou, agora curtimos
as manias de solteirões.
Não perdeu a oportunidade e demonstrou suas
características, já esquecida pela colega com uma
pequena e sutil alfinetada:
- Você sabe muito bem como é isso não é
Ofélia?
A resposta foi imediata e direta:
89
- Eu? De jeito nenhum saberia como é isso! É
coisa de terceira idade, somente você poderia falar
sobre isso.
Dona Ignez arregalou os olhos, fitou a filha
espantada com a indelicadeza da resposta. Cardoso se
deliciava com uma estridente gargalhada, levou todos
a sorrir, em parte pela gargalhada do rapaz.
Dona Ignez naquele momento sentiu mais uma
vez, alguma coisa atraia um para o outro. Infelizmente
quando surgem tais pensamentos, não é de bom tom
qualquer comentário.
Havia uma certeza. Aquela menina dos velhos
tempos não mais existia, transformara-se numa mulher
de decisões firmes. Sabia definir as predileções e
tendências de acordo com as necessidades.
A partir do primeiro convite estavam
constantemente juntos, surgiram passeios, festas,
outras vezes cinemas, enfim sobrou pouco tempo para
se dedicar aos pais.
Suas amigas do tempo de colégio e faculdade,
certamente seguiram outros caminhos, casaram-se e
deixaram a cidade do Planalto Central.
Brasília mostrava claramente como vivem seus
habitantes. As gerações se renovam com grande
frequência. Não é possíveis rever os mesmos locais
onde se reuniam para os passeios de bicicletas, não
mais há grupos de jovens dispostos a pedalar
quilômetros e quilômetros de avenidas.
Tudo passou e novos personagens surgiram.
Em algum lugar no tempo ficaram aqueles momentos
de prazer, quando o pensamento era somente o futuro.
O futuro chegou e se apresentou sem constrangimento.
90
Aquele futuro esperado com ansiedade, acaso se
concretizou não há como avaliar. Muitas coisas
aconteceram, restaram lembranças e uma saudade
infinda. O esperado futuro nada revelou, continuou o
momento presente, o ontem e o hoje.
Poucos dias restava pra o fim das férias, Lia
teria que voltar a São Paulo e, novamente tornar à
rotina de trabalho. A partida seria na segunda-feira
pela manhã, Cardoso sabia do retorno, convidou-a para
um jantar naquele sábado, no mais aconchegante
restaurante da cidade. Fez questão da presença do
Professor Cândido e dona Ignez.
Os dias passaram tão rápidos, a ponto de Lia
não ter aproveitado o suficiente para o devido
descanso. Foi na verdade dias cheios de afazeres e
correrias. Quando viu, já estava na hora de voltar. A
responsabilidade lhe obrigava a cumprir com rigor a
palavra dada, os compromissos assumidos. O trabalho
tornou-se a âncora, portanto, imprescindível.
No horário combinado lá estava Cardoso frente
à casa da família reunida. Foram gentilmente recebidos
e, após os cumprimentos entraram no carro para seguir
ao restaurante reservado. Era uma noite agradável, o
céu se apresentava num azul claro sem nesgas de
nuvens, onde as primeiras estrelas surgiam para
enfeitar a noite.
Tudo transcorria dentro de um clima de alegria,
o Professor Cândido estranhou a exigência de sua
presença. Mesmo assim, manteve-se cauteloso, embora
a conversa estivesse deveras agradável. Além de tudo,
o vinho estava realmente de acordo com a comida.
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Depois de um longo tempo, todos já haviam
degustado o suficiente, Cardoso resolveu fazer um
brinde. Levantou-se e disse:
- Brindamos à vida!
Todos levantaram seus cálices e brindaram. De
repente num gesto de muita coragem e discernimento,
começou a falar e se dirigiu à Lia:
- A vida tem sido para mim um misto de bons e
maus momentos. Eu não quero mais deixar que as
oportunidades passem sem tomar atitudes. Tomar
decisão tornou-se para minha vida fundamental.
Continuou:
- Por respeito perdi a grande oportunidade de
declarar meus sentimentos. Com absoluta certeza perdi
você, Lia. Ele foi mais rápido. Sem saída curti minha
dor de cotovelo.
- Agora não! Não vou deixar novamente que
ninguém atropele os meus sentimentos, não quero e
não vou ser passivo e desistir da luta por excesso de
respeito e sentimento.
Olhando firme para Lia, pausadamente disse:
- Ofélia você aceita a casar comigo?
Dona Ignez ouviu aquele pedido com espanto,
ao mesmo tempo em que o Professor olhava
atentamente para a filha, sem entender o que estava
realmente acontecendo.
Lia se sentiu desconcertada. Ficou corada na
mesma hora. Enquanto ele demonstrava que nada de
especial estava acontecendo. De maneira simples e
clara entrou nos detalhes, completando os motivos
com uma explicação simples e sucinta, que o levou a
agir desta forma.
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Naquele momento as lágrimas correram, eram
palavras de pura emoção retidas pela educação e
equilíbrio no trato às pessoas queridas.
Dona Ignez ainda não havia se restabelecido do
choque, também demonstrou um choro contido. O
silêncio imperou naquele momento. Lia manteve-se
calma e ao mesmo tempo não deixou de se preocupar
com os pais. Aguardou o tempo suficiente para que sua
mãe se restabelecesse do choque.
O Professor Cândido calado demonstrou não
entender os acontecimentos, embora soubesse mais
que ninguém sobre o resultado final.
Camargo demonstrava um nervosismo natural,
por mais experiente que se imaginava nunca tinha
enfrentado um momento decisivo, capaz de mudar
completamente a vida, contando ainda com a
expectativa, um não à queima-roupa. E ele sabia que,
isto era possível ao se tratar de Lia. As tensões
aumentaram mergulhadas em expectativas, que
somente a pretendente poderia dar um fim.
De repente, dona Ignez não aguentou e se
manifestou:
- Cardoso seja qual for à resposta de minha
filha, eu me sinto realizada com a sua surpresa.
Sempre tive muita admiração pelo seu jeito, no trato
com as pessoas. O cuidado com nossa filha quando nos
encontramos no estacionamento da igreja. Lembro-me
e muito bem! Foi a primeira vez que a encontrou
depois do regresso de Berlim.
- Digo mais, sempre achei o primeiro
casamento uma atitude impensada de minha filha. Não
vou me estender mais que necessário para não voltar a
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aborrecê-la com este assunto. Ela sabe muito bem
como sempre pensei.
Não demorou mais que alguns segundo, Lia
olhou fixo no rapaz e completou:
- Independente do que pensa minha mãe, na
verdade sou eu quem decide a minha vida.
- Casei-me, como você sabe! Não foi àquela
felicidade esperada. Até por uma questão de respeito à
outra parte, por não pertencer mais a esta dimensão,
não vou continuar o assunto.
O tempo passou, sinto-me amadurecida.
Com o semblante sério, continuou:
- Aceito! Gostaria somente de fazer neste
momento dois pedidos especiais.
- O primeiro: Nunca mais falaremos sobre este
lapso de tempo, viveremos como nunca tivesse
existido, embora, algumas vezes surgirão perguntas
sobre ele. Acredite! Terei todo o cuidado de não
ofender ninguém, mas juro que esta parte de minha
vida não será tema de preferência nas conversas, que
por ventura possa participar.
- Ao meu ex-marido desejo que Deus lhe de
tudo que mereça, nem mais e nem menos.
- E o segundo pedido, o que é? Comentou
Cardoso.
- O segundo é que você nunca mais me chame
de Ofélia.
Ele começou a rir sem parar. O professor
Cândido com jeito simples observava com seriedade
tudo o que diziam. Sua mãe vendo o prazer da risada
do Cardoso, ria com ele. Finalmente todos riam com o
pedido no mínimo engraçado.
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De repente Lia se levantou e estendeu a mão:
- Muito prazer, meu nome é Lia!
Ele aproveitou o momento jocoso, manteve
presa a mão de Lia, com a outra mão retirou uma
pequena caixinha do bolso. Abriu-a sobre olhares
atentos. Lá estava o anel em comemoração.
Mantendo as mãos presas, pegou com a mão
direita e colocou o anel no dedo de Lia. Completando
deu um beijo na mesma mão com o anel.
Estava selado o compromisso.
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XVIII
- Amor, acorda!
- Deixe-me dormir mais um pouquinho! Hoje
não é domingo?
- Sim . . .domingo! Você não ficou de levar o
Vitor para o jogo de futebol com os coleguinhas no
Clube? Ele já se levantou há muito tempo e está à
espera.
Cardoso saltou da cama e seguiu apressado ao
toalete. Ao passar pelo corredor viu o filho com a
mochila pronta no colo, sentado no sofá da sala. O
garoto mantinha a mochila de cara amarrada, não
deixava de demonstrar certo descontentamento.
Cardoso olhou rapidamente e disse ao filho:
- Vou tomar um banho rapidinho e já vamos.
- Tudo bem?
O garoto de sete anos meneou a cabeça
confirmando. Manteve o semblante sério e não abriu
nenhum sorriso em agradecimento.
Tudo não demorou mais que quinze minutos,
enquanto Cardoso pegava os documentos e a chave do
carro disse-lhe:- Vamos?
O filho deixou a mochila cair e correu até ao
quarto, deu um beijo na face de Lia. Ela ainda
sonolenta segurou-o e beijou com todo o carinho, que
uma mãe possa dar a um filho.
Pai e filho seguiram rumo ao elevador,
desceram ao estacionamento do prédio.
Já passava das dez horas quando o telefone
tocou. Cardoso ligou para saber se Lia havia se
levantado, se necessitava de alguma coisa para o
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almoço do dia. Completou com a confirmação da
presença de dona Ignez no almoço naquele domingo.
Exatamente o domingo completavam dois anos
do falecimento do Professor Cândido. Dona Ignez
ainda sentia a falta do esposo e companheiro de todas
as horas. Por mais que tentassem mudar o foco das
conversas, alguma coisa surgia para que ela usasse
como referência o esposo. Outras vezes se fechava,
somente ouvia e observava o que se diziam. Nestes
momentos, qualquer assunto relacionado com o
marido, por si forçava-a num mergulho ao passado.
O neto tinha a força de fazê-la voltar à tona, à
realidade do momento. Todos sabiam o quanto ela
sofria com a perda do marido, assim procuravam
distraí-la ao máximo. O poder de transformação sobre
ela, empreendido pelo neto era impressionante. Com
poucas palavras e gestos ela reacendia para a vida,
revigorava o Espírito. Como tia-avó, ela também não
deixava de ter cuidados com Felipe, filho de sua
sobrinha Elizabeth e Virgílio, o casal que amparou Lia
no momento difícil.
As duas crianças tinham pouca diferença de
idade e, poucas vezes se encontravam. O forte vínculo
familiar permanecia. Algumas vezes, Elizabeth e
Virgílio seguiam para Brasília, principalmente nos
aniversários do Vitor. No entanto, mantinha o carinho
todo especial de outros tempos, quando Lia ainda
morava com eles.
Os garotos cobravam dos pais visitas mais
frequente, tanto em São Paulo como em Brasília.
Enquanto isso, os adultos colocavam em dia os
assuntos familiares.
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Cardoso pediu às crianças para irem dormir.
Depois de várias tentativas, simplesmente disse para
todos ouvir:
- Vitor, você está se comportando como um
“morcego”. Quer passa a noite acordado?
Lia não gostou, mas não se manifestou de
imediato, na presença dos garotos. Levantou-se
imediatamente e foi em direção deles. Impôs a
disciplina levando-os pessoalmente para o quarto. Ao
voltar disse ao marido:
- Lembra-se de nosso trato? Uma ferida
cicatrizada torna-se sensível ao receber qualquer
pancada.
Todos se entreolharam, ninguém pronunciou
nada a respeito. A mensagem foi direta, Cardoso
entendeu perfeitamente.
Dirigiu-se até ela e deu um beijo de desculpas.
Nada falou. Pelo silêncio demonstrou que nunca mais
pronunciaria qualquer coisa que ligasse ao passado,
como houvera prometido ao pedi-la em casamento.
FIM