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 169 Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.2, p. 169-179, 2009 A CRIANÇA E SEU ENTORNO: PESQUISANDO A OBESIDADE NA INFÂNCIA Renata Lisbôa Machado 1  Maria Cristina Poli 2  RESUMO Este trabalho objetiva problematizar a constituição psíquica do sujeito que porta a obesidade infantil. A opção metodológica seguida neste trabalho é a psicanálise, por ser uma prática específica que permite estudar a dinâmica das trocas emocionais que acompanham a relação de um ser humano com outro. A partir de verbalizações de 16 crianças e adolescentes, realizadas através da escuta clínica, além da aplicação de um questionário de anamnese, destacamos a importância de se pensar o sujeito da obesidade infantil no a posteriori da experiência de uma jovem pesquisadora. A partir dos dados levantados, conclui-se que as crianças e adolescentes evidenciam um empobrecimento de experiências, e um padecimento psíquico. O estudo mostra a importância de se investir neste campo de atuação do psicanalista e do pesquisador em psicanálise, bem como da interlocução com as outras áreas do saber envolvidas na assistência a este público.  Palavras-chave: Obesidade infantil, família, psicanálise. THE CHILD AND HIS/HER SURROUNDINGS: RESEARCHING ABOUT CHILD OBESITY ABSTRACT The objective of the present research is to explore the psychological constitution of the obese subjects. We adopted the psychoanalytical method to conduct our evaluation because it contributes actively to the understanding of the dynamic interaction between two human  beings. We have listened to the narratives of 16 o bese infants and teen agers obtained fro m clinical interviews, besides the application of an anamnese questionnaire. Based on that material we emphasize the necessity of reflecting upon the subject of child obesity during the a posteriori of the conduction of a young researcher experiment. Analyzing the collected data we conclude the obese children and adolescents present a decrease in the quality of their experiences and, therefore, psychic suffering. This research demonstrates the importance of investing in that field of work for psychoanalysts and for psychoanalysis researchers, as well as creating the possibility of dialoguing with other areas of knowledge involved with that public. Keywords: Child obesity, family, psychoanalysis.  1 Psicóloga Especialista em Cardiologia pelo Programa de Residência Integrada em Saúde: Cardiologia, do ICFUC/RS. Mestre em Psicologia Social e Institucional - UFRGS. Pós-Graduanda do Curso de Formação em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica    Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre    ITIPOA. 2  Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris 13 e pós-doutora pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Coordenadora,  junto com Edson de Sousa, do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política - LAPPAP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Pesquisadora do CNPq.

Obesidade na infancia

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  • 169

    Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.2, p. 169-179, 2009

    A CRIANA E SEU ENTORNO: PESQUISANDO A OBESIDADE NA INFNCIA

    Renata Lisba Machado1

    Maria Cristina Poli2

    RESUMO

    Este trabalho objetiva problematizar a constituio psquica do sujeito que porta a

    obesidade infantil. A opo metodolgica seguida neste trabalho a psicanlise, por ser

    uma prtica especfica que permite estudar a dinmica das trocas emocionais que

    acompanham a relao de um ser humano com outro. A partir de verbalizaes de 16

    crianas e adolescentes, realizadas atravs da escuta clnica, alm da aplicao de um

    questionrio de anamnese, destacamos a importncia de se pensar o sujeito da obesidade

    infantil no a posteriori da experincia de uma jovem pesquisadora. A partir dos dados

    levantados, conclui-se que as crianas e adolescentes evidenciam um empobrecimento de

    experincias, e um padecimento psquico. O estudo mostra a importncia de se investir

    neste campo de atuao do psicanalista e do pesquisador em psicanlise, bem como da

    interlocuo com as outras reas do saber envolvidas na assistncia a este pblico.

    Palavras-chave: Obesidade infantil, famlia, psicanlise.

    THE CHILD AND HIS/HER

    SURROUNDINGS: RESEARCHING ABOUT CHILD OBESITY

    ABSTRACT

    The objective of the present research is to explore the psychological constitution of the

    obese subjects. We adopted the psychoanalytical method to conduct our evaluation because

    it contributes actively to the understanding of the dynamic interaction between two human

    beings. We have listened to the narratives of 16 obese infants and teenagers obtained from

    clinical interviews, besides the application of an anamnese questionnaire. Based on that

    material we emphasize the necessity of reflecting upon the subject of child obesity during

    the a posteriori of the conduction of a young researcher experiment. Analyzing the

    collected data we conclude the obese children and adolescents present a decrease in the

    quality of their experiences and, therefore, psychic suffering. This research demonstrates

    the importance of investing in that field of work for psychoanalysts and for psychoanalysis

    researchers, as well as creating the possibility of dialoguing with other areas of knowledge

    involved with that public.

    Keywords: Child obesity, family, psychoanalysis.

    1

    Psicloga Especialista em Cardiologia pelo Programa de Residncia Integrada em Sade: Cardiologia, do

    ICFUC/RS. Mestre em Psicologia Social e Institucional - UFRGS. Ps-Graduanda do Curso de Formao em

    Psicoterapia de Orientao Psicanaltica Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre ITIPOA. 2 Psicanalista, membro da Associao Psicanaltica de Porto Alegre. Doutora em Psicologia pela Universidade

    de Paris 13 e ps-doutora pelo Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica da UFRJ. Coordenadora,

    junto com Edson de Sousa, do Laboratrio de Pesquisa em Psicanlise, Arte e Poltica - LAPPAP. Professora

    do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Pesquisadora do CNPq.

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    Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.2, p. 169-179, 2009

    Introduo

    O desejo de realizar uma pesquisa sobre a obesidade infantil se produziu ao longo

    da experincia como residente de um Programa de Residncia Multiprofissional em Sade

    na rea de Cardiologia e se estendeu at o perodo do mestrado acadmico. O percurso por

    esse processo de experimentao se caracterizou pelo contato com diversas reas do

    conhecimento que se ocupam da lide com os problemas cardiolgicos. Entretanto, ao nos

    depararmos com os estudos sobre a obesidade infantil e a preveno de doenas

    cardiovasculares na infncia e na adolescncia identificamos, a, um campo a ser explorado

    e investigado.

    Ao observar as configuraes subjetivas que se produziam e eram engendradas

    neste tempo do ciclo vital, ou seja, o tempo da infncia e da adolescncia, que foi possvel

    compreender quo importante seria desenvolver estudos sobre este tema. Alm disso, nos

    artigos que foram consultados acerca da obesidade na infncia e na adolescncia, muito

    pouco se encontrou de dados que falassem sobre a abordagem psicolgica (Luft, 2004B;

    Balaban & Silva, 2004; Giugliano & Carneiro, 2004).

    Entre os fatores ambientais causadores da obesidade aparecem o sedentarismo e os

    hbitos alimentares inadequados (Balaban, G.; Motta, M. E. de A; & Silva, G. A. P, 2005).

    Contudo, praticamente no existiam artigos que investigassem a interveno psicolgica e

    psicanaltica. Vislumbramos, nesta lacuna, um campo frtil para o desenvolvimento de

    pesquisas com este enfoque.

    De acordo com estudos atuais (Luft, 2004A; Carneiro, E. C.; & Giugliano, R., 2004),

    a obesidade um trao complexo e multifatorial que envolve a interao de influncias

    metablicas, fisiolgicas, comportamentais e sociais. Entre os fatores ambientais, podem-

    se citar hbitos alimentares inadequados e o sedentarismo (Luft, V. C.; Mello, E. D. de; &

    Meyer, F., 2004A).

    Estes dados, indicados pelas pesquisas desenvolvidas, sugerem que a obesidade

    infantil est relacionada com aspectos sociais e familiares importantes (Balaban,2004;

    Silva, 2004). Podemos, portanto, avaliar o impacto das mudanas que, nos dias atuais,

    podem ser observadas no modo de vida das crianas e dos adolescentes. As transformaes

    relacionadas ao fenmeno da obesidade infantil se manifestam, sobretudo, em relao ao

    distanciamento do brincar, que se caracteriza como uma atividade eminentemente social.

    Tal aspecto igualmente destacado em estudo sobre a interveno psicolgica associada

    obesidade infantil (Machado et al., 2005).

    Sendo assim, este trabalho tem por objetivo apresentar alguns interrogantes para

    problematizar a obesidade infantil como uma produo subjetiva das crianas e dos

    adolescentes, fundamentado num enfoque tanto clnico quanto social. Conceber essa

    produo pressupe a considerao da expresso narrativa desses sujeitos a partir do

    campo da psicanlise.

    Nesse sentido, nossa ousadia em deslindar a obesidade na infncia caracteriza-se por

    propormos pens-la em sua articulao com linhas de fora que constituem o sujeito que

    padece. Entre construes e sintomas (Freud, 1926), entre inibio e angstia (Freud,

    1932-1936), entre compulso e repetio (Gondar,2001; Marucco, 2007), entendemos que

    a tessitura desses conceitos importantes psicanlise podem enriquecer o entendimento da

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    obesidade infantil por uma via de criatividade, para se ter uma leitura aberta, dinmica e

    fluida acerca do tema.

    Relaes entre Infncia, Obesidade e Psicanlise

    Conforme estudos desenvolvidos por Correa (2003), a criana, desde sua vinda ao

    mundo, requerida a compartilhar os enunciados dos ancestrais, assegurando a

    continuidade geracional e a identidade familiar. Algumas vezes isso se d ao custo da sua

    integridade psquica e at mesmo somtica, j que estes enunciados podero contradizer

    suas prprias percepes, tanto do seu mundo interno como das experincias estabelecidas

    com as pessoas de seu convvio.

    Para Sarti (2004), toda a experincia individual se inscreve num campo de

    significaes coletivamente elaborado. As experincias vividas pelos indivduos, seu modo

    de ser, de sentir ou de agir sero constitutivamente referidos sociedade a qual pertencem.

    Ainda que traduzido e apreendido subjetivamente, o significado de toda experincia

    humana sempre elaborado histrica e culturalmente, sendo transmitido pela socializao,

    iniciada ao nascer e renovada ao longo da vida.

    Com isso, pretendemos enfatizar que essa transmisso psquica vai sendo

    incorporada na subjetividade dos filhos, a partir da subjetividade dos pais. E neste caso

    especialmente, h uma introjeo do ser gordo pelas crianas e pelos adolescentes. Existe, portanto, uma fidelidade inconsciente ao inconsciente parental que, caso seja

    quebrada, poder ser sentida como uma traio tambm inconsciente pelos pais (Machado et. al., 2005).

    Mtodo

    A opo metodolgica que seguimos em nosso trabalho a psicanlise, uma vez que,

    de acordo com Dolto (1988), essa , hoje em dia, uma prtica especfica que permite

    estudar a dinmica das trocas emocionais que acompanham a relao de um ser humano

    com outro.

    Vale salientar, no entanto, que o mtodo de pesquisa em psicanlise no se confunde

    com o uso de um determinado instrumento ou tcnica de produo de conhecimentos. A

    experincia psicanaltica se pauta pela incluso primeira do desejo do pesquisador na

    constituio do enigma que seu trabalho busca desvelar (Poli, 2006). Trata-se, ento, de

    uma pesquisa qualitativa que se sustenta na psicanlise como mtodo de investigao dos

    processos psquicos (Sauret, 2003).

    Segundo Silva (1996, p. 87), a psicanlise se sustenta como mtodo de pesquisa:

    (...) sempre que h interpretao das foras subjacentes a uma experincia humana, ou seu produto, quer ela se apresente como uma relao entre pessoas, ou como uma reao

    individual com qualquer coisa produzida pela mente humana. Portanto, os procedimentos da pesquisa foram realizados atravs da escuta de 16

    crianas e adolescentes com obesidade e/ou sobrepeso, entre 5 e 16 anos, no perodo da

    Residncia Integrada em Sade: Cardiologia (2005/2007), atravs da escuta clnica

    realizada em um setting. O tempo de escuta dessas crianas e desses adolescentes durava

    em torno de 45 minutos. Os participantes foram escolhidos por atenderem aos critrios de

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    sobrepeso e obesidade, determinados pelo IMC (ndice de massa corporal), alm de terem

    sido encaminhados para a residente de psicologia em virtude de apresentarem algum

    padecimento psquico observado pela equipe da nutrio, da medicina e/ou da educao

    fsica. A coleta de dados contemplou o registro e armazenamento das informaes obtidas

    atravs de questionrio, alm da escuta clnica desses participantes durante um perodo de

    12 meses em mdia.

    O primeiro encontro constava de uma aplicao de questionrio com o objetivo de

    conhecer a histria de vida desses sujeitos, destacando-se um aspecto fundamental: o estilo

    de vida que levavam para se ter uma maior compreenso da condio clnica e emocional

    relacionada obesidade ou ao sobrepeso. Alm disso, os cuidadores e/ou responsveis

    assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido autorizando a realizao do

    trabalho.

    Aps o primeiro encontro e atravs da avaliao realizada por meio de entrevistas

    clnicas baseadas no mtodo psicanaltico, os participantes eram encaminhados para o

    acompanhamento atravs da escuta clnica. Em funo de se tratar de um ambulatrio e

    pela demanda dos atendimentos terem um fluxo elevado, os atendimentos eram feitos com

    uma periodicidade semanal e/ou quinzenal.

    Merece destaque o fato de que todos os preceitos ticos e legais foram respeitados,

    mantendo em sigilo a identidade dos participantes. A pesquisa foi autorizada pelo Comit

    de tica e Pesquisa da instituio onde foi realizada.

    A anlise de dados qualitativos foi feita atravs da descrio das respostas dadas

    pelas crianas e pelos adolescentes e da decorrente reflexo e problematizao das

    respostas, articulando-as aos referenciais terico-metodolgicos da pesquisa. Tais dados

    foram pensados e sistematizados no percurso inicial do mestrado, considerando o a

    posteriori da experincia e da necessidade de se aprofundar teorica e metodologicamente o

    objeto de estudo em questo.

    Desdobramentos do Estudo

    Retomando o percurso de escuta das crianas e adolescentes com obesidade infantil,

    oportuno dizer que o mesmo foi descortinando um desenho vincular que situava um

    empobrecimento da prpria vida das crianas e dos laos no tecidos com a cidade, com os

    amigos e, por extenso, com os espaos (possveis) no-habitados por elas. O que ficou

    evidente, a partir dos dados levantados, que essas crianas e esses adolescentes

    apresentavam um empobrecimento de suas experincias e uma vivncia do brincar pouco

    explorada.

    Isto podia ser percebido, sobretudo, nos discursos que mostravam uma escassez ou

    quase inexistncia de atividades de lazer. A ttulo de ilustrao, trazemos algumas dessas

    verbalizaes: Fico em casa. A gente v TV. No fazemos nada. s vezes, vou visitar minha dinda. Minha me no deixa eu ir ao estdio porque diz que muito perigoso. Percebia-se, ento, o aspecto da raridade dos passeios, da no-vivncia no espao pblico, e

    reiterava-se a caracterstica da recluso. Por conseguinte, tratavam-se de crianas e

    adolescentes que, em sua maioria, desconheciam espaos da cidade, como por exemplo: a

    Casa de Cultura Mario Quintana, o Santander Cultural, o Memorial do RS, o Planetrio,

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    entre tantos outros. So famlias que, via de regra, estabeleciam suas relaes dentro do

    universo finito e restrito da casa, da vizinhana, do videogame e da televiso. Assim, o ponto de interrogao crescia e se mantinha aceso como questionamento

    configurao do arranjo familiar, colocando em questo os hbitos e as rotinas desse grupo.

    Tal arranjo trazia como linhas de fora a ausncia de entusiasmo, de encantamento e de

    enriquecimento de experincias afetivas que no ocorriam no ncleo familiar, nem

    tampouco em seus arredores.

    Alm disso, essas crianas e esses adolescentes expressavam estarem amarrados fortemente s suas mes, sem conseguir delas se separar. As tentativas, quando surgiam,

    sobretudo por parte dos adolescentes, esbarravam sempre em muito rechao e proibio

    maternas. Como expressa Maria3, 13 anos: Eu quero sair com as minhas amigas, mas

    minha me no deixa. E quando eu saio, ela liga muitas vezes, sem parar, ao meu celular.

    E quando estou em casa, ela mexe no meu celular e fica lendo todas as minhas

    mensagens.

    Problematizaes em Torno da Obesidade Infantil

    Como prope Kristeva (2007):

    [...] a psicanlise vale-se da vida do ser falante. Consolidando e explorando sua vida

    psquica. Voc est vivo se e somente se tiver uma vida psquica. Intolervel, dolorosa, mortfera ou jubilatria, esta vida psquica que combina sistemas de representaes transversais linguagem lhe d acesso ao corpo e aos outros... sua vida psquica um discurso em ato, nocivo ou salvador, cujo sujeito voc

    (Kristeva, 2007, p.12).

    Tendo como referncia a psicanlise, destacamos a importncia de considerarmos o

    modo pelo qual se d a circulao da palavra. Conceber a palavra como aquilo que faz elo.

    Palavra que circula e que produz uma circulao libidinal, dos investimentos libidinais.

    Segundo Maria Rita Kehl (1998):

    Esta narrativa deve dar lugar, ao longo de uma anlise, a um outro enredo: este, o

    analisando vai escrever sozinho, tendo como primeiro interlocutor (leitor?) seu

    analista. A direo de uma cura, tomando emprestada a expresso de Lacan, passa

    no por uma modificao da estrutura da linguagem que o sujeito habita, mas

    certamente por uma modificao de suas prticas falantes. Dominar (relativamente)

    nossas prticas linguageiras, em vez de sermos inteiramente alienados a elas, eis uma

    possibilidade de cura vislumbrada pela psicanlise (Kehl, 1998, p. 34).

    Tais referncias situam um modo de estudar o lao do sujeito com a cultura e seus

    efeitos da decorrentes. Poder identificar de que lugar o sujeito falado, convoca-nos a uma forma de pesquisar que inclua, necessariamente, qual compreenso de sujeito se tem.

    3 Todos os nomes apresentados ao longo do texto so fictcios.

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    Para Dias (2009), a psicanlise desde os primrdios, ensina-nos que nos constitumos

    como sujeitos em uma relao de alteridade com o outro; logo, pensar o sujeito na

    contemporaneidade implica levar em conta as especificidades do lao social que nos une.

    Em se tratando do tema da obesidade infantil, necessrio compreend-lo articulado

    ao mbito do social. nesse n entre o que se produz no singular e no coletivo que se abre um espao para pensar os vetores que configuram a construo subjetiva dessas

    crianas e desses adolescentes. Neste sentido, a vivncia da residncia convocou-nos a

    construir um espao no a posteriori da experincia que o mestrado acadmico

    proporcionou, para que uma outra escuta fosse possvel.

    De acordo com Garcia-Roza (2004), a palavra o que opera a transmisso do desejo

    e, em termos psicanalticos o que importa no sua funo de informao, mas sua funo

    de verdade. Desse modo, na regncia de leis prprias que o inconsciente ordena que o

    sujeito possa aparecer, no seu equvoco, no seu lapso, no seu vacilo. Todavia, isso no

    sem dificuldade, sem trabalho e sem experincia.

    Por essa razo, compartilhamos com Kehl (2002) da idia de que a produo de

    sentido para a existncia representa um ato coletivo, uma tarefa da cultura, da qual, como

    ela diz, cada sujeito participa com seu gro de inveno. uma tarefa simblica, que se d

    por meio da produo de discursos e de narrativas sobre o que a vida ou o que a vida

    deve ser.

    Ao lanar mo de um questionamento sobre uma verso da psicanlise propriamente

    analtica para leigos, Kehl (2002) situa-a como sendo uma prtica da dvida, e no da

    certeza, colocando a psicanlise como prtica que convoca a palavra a trabalhar, tentando

    escutar os efeitos que ela produz, inclusive no campo social.

    Com efeito, uma de nossas interrogaes movimenta-se no sentido de problematizar

    a obesidade infantil como uma expresso escrita do corpo. Como uma escrita corporal. Ao

    percebermos que algo de um registro no faz lugar consistente, no sentido de que h

    necessariamente em jogo a noo de um reabastecimento constante pela via do comer excessivo - sugerindo a idia de um saco sem fundo, ou de alguma coisa que no faz reserva, cogitamos que deva acontecer algo que fica obstaculizando o registro que liga fome ao afeto, saciedade, ao prazer e segurana. Nessa obstaculizao, a comida entra

    como adio, como evitamento do encontro com a falta. E tambm traz conseqncias na

    vida e no cotidiano dessas crianas que so ridas, gozadas pelos seus pares. Como disse um

    menino com sobrepeso: Um colega meu me disse uma coisa na escola que eu no gostei. Que o cho treme quando eu passo (sic).

    Nessa mesma linha de pensamento, trazemos ao dilogo a referncia de Coriat

    (1997), especificamente no que trata de sua contribuio metfora dos possveis papis

    em que se inscrevem o desejo das crianas e de como elas escrevem a sua histria a partir

    de uma herana parental e mtica.

    Em que papel, portanto, est inscrita a histria e a narrativa das crianas e dos

    adolescentes obesos? Coriat (1997) nos d uma pista, ao perguntar do que est feito o

    papel, considerando que tomemos a superfcie corporal como papel.

    Existe um grupo, em que o carter deste papel se mostra, por diversos motivos, mais

    difcil de escrever. Esse pode apresentar uma superfcie rugosa que no permite caneta

    deslizar facilmente, podendo estar entrecortado. Assim, pode-se fazer necessrio remarcar

    variadas vezes a mesma letra para que seja possvel chegar a l-la (Coriat, 1997). Este

    segundo grupo nos faz pensar numa superfcie corporal da criana e do adolescente com obesidade, em que a necessidade da comida em excesso parece fazer lugar a algo que fica

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    Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.2, p. 169-179, 2009

    difcil de fazer registro. Por isso a idia do saco sem fundo.. Nossa proposta usar o exemplo como condio de inspirao e de certa

    criatividade, a fim de ampliar as possibilidades de entendimento da questo e tentar dar um

    matiz mais interessante problematizao.

    Segundo as circunstncias, com certo esforo da parte de quem escreve, possvel

    chegar a obter um resultado to legvel quanto no caso anterior; outras vezes, com o

    mesmo esforo tambm se consegue escrever o que se quer, mas resulta menos

    ntido: possvel chegar a ler o que est escrito, mas no salta vista, preciso um

    pouco mais de tempo para l-lo (Coriat, 1997, p. 154).

    Essa questo nos leva a considerar a relao analista-analisando e os processos de

    inscrio que se fazem acontecer no corpo, numa certa escrita pulsional, a partir da experincia de anlise, sobretudo no que concerne a um encontro analtico que circunscreve

    o prisma da obesidade na infncia. Por essa razo, o acompanhamento e a escuta feita a

    esse grupo poder favorecer a inscrio de novas narrativa, quem sabe mais criativas. Neste

    caso, o menino que escutou de seus colegas que o cho treme, poder dar um outro destino

    para isso , com o gro de criatividade que lhe couber.

    Observaes Finais

    Para Barthes (1990), a corporalidade do falar, da voz, situa-se na articulao entre o

    corpo e o discurso. Segundo ele, nesse intervalo que o movimento de vaivm da escuta

    pode se realizar. Toda nomeao, assim como tudo aquilo que se reconhece como

    participando da seara humana, s se consuma quando encontra o endereo de uma escuta

    em que uma histria pode aportar podemos dizer, ser escrita; endereo de uma escuta que a reconhece como legtima no sistema simblico compartilhado pelos habitantes de uma

    organizao social (Rickes, 2007). O objetivo, portanto, da psicanlise, consiste em

    reconstruir a histria de algum em sua palavra.

    Ouvir a palavra de maneira a torn-la novamente vida: esta poderia ser tambm uma

    definio do que visa realizar um processo psicanaltico. A associao livre faz da

    palavra a ocasio de uma interpretao, j que, desde a inveno do inconsciente, entre

    a palavra e o sujeito no pode mais haver coincidncia e familiaridade, mas

    estranheza, incmodo, desconhecimento... Devemos buscar a ns mesmos nos vos

    das palavras, ento, e reinvent-las um tanto para que nelas possamos surgir, relidos,

    mas sempre fonte de novas palavras, novas leituras. A interpretao psicanaltica visa

    no a produo de um sentido em uma explicao que fixa o sujeito, mas a produo

    de novas palavras em um estranhamento do sujeito (Rivera, 2005, p. 9).

    Por fim, as verbalizaes elencadas no texto mostram, ainda que brevemente, a

    importncia de se pensar o sujeito da obesidade infantil e o quanto precocemente se

    constata um sofrimento psquico significativo vivido e sentido por essas crianas e por

    esses adolescentes. Quem so eles e quais so os seus padecimentos, bem como o modo

  • Pesquisando a Obesidade na Infncia 176

    Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.2, p. 169-179, 2009

    que se configura o seu entorno social, clnico e familiar consiste em um desafio para os pesquisadores em psicologia e em psicanlise. Tornar aberto um espao de escuta e de

    testemunho desse padecimento j um indicador importante de que h a condio de uma

    escuta que tem endereamento.

    Alm disso, dar mobilidade a nossas interrogaes demonstra ser fundamental para

    criar espaos de interlocuo com as reas de conhecimento, dentre elas a medicina, que se

    detm a pesquisar e a assistir s crianas obesas, aos adolescentes obesos e s suas famlias.

    Assim, possvel identificar a obesidade pela via do sintoma, da inibio, da angstia,

    da compulso repetio, do desamparo, do empobrecimento da experincia e,

    conseqentemente, de prticas discursivas empobrecidas, de uma escassez do brincar e de

    pouca criatividade.

    Encontrar a soluo para essa equao no se trata do nosso objetivo, mas o

    vislumbramos nas pistas, nas tentativas desse encontro, nessa busca, nesse desejo de

    construo de entendimento que tenha uma inteligibilidade, uma factibilidade, e que possa

    produzir sentido.

    Identificamos que existem essas vias polissmicas de expresso da obesidade na

    infncia, e muitas outras que ainda nos so desconhecidas. Apenas deixamos registradas as

    nossas pegadas, a reflexo de que achamos algo precioso que pendula entre a falta e o

    excesso, pois justamente nesse intervalo que tentamos bordar algo de genuno e

    enriquecedor. Um bordado4 que tem na sua marca o desenho da intimidade, visto que o

    pesquisador em psicanlise nos parece, necessariamente precisa construir uma intimidade com seu objeto de estudo.

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    4 Bordado um significante que usado pela autora deste trabalho e diz respeito experincia de ter

    participado de uma atividade cientfica proposta pelo Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre,

    organizada pelo Ncleo de Bebs da mesma instituio. Tal atividade versou sobre a exibio de um filme

    francs chamado As bordadeiras (que no foi distribudo em circuito nacional nem comercial), em que a histria se desenvolve em torno de duas mulheres e da construo da maternidade. Uma jovem grvida

    acolhida por uma mulher bordadeira talentosa e as duas ao tecer e bordar vo vivendo uma experincia de

    relao em torno da maternidade. Aps o filme, a discusso trouxe uma srie de relatos interessantes sobre a

    relao entre a formao dos terapeutas e a vivncia da maternidade.

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    Endereo para correspondncia:

    Renata Lisba Machado

    Rua Florncio Ygartua, n 69, sala 303.

    Moinhos de Vento

    Porto Alegre-RS

    CEP 90430-010

    E-mail: [email protected]

    Recebido em: 06/12/2009.

    Aceito para publicao em: 24/05/2010.