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ob jet perdu 28.01.2010 – 13.03.2010 PLATAFORMA REVÓLVER António Contador Hugues Decointet Simeon Nelson Pedro Penilo Anabela Santos Julião Sarmento Carlos Sousa

OBJET PERDU Catálogo

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António Contador, Hugues Decointet, Simeon Nelson, Pedro Penilo, Anabela Santos, Julião Sarmento, Carlos Sousa, Curadoria: Mário Caeiro Objet Perdu. A arte que é contemporânea suspeita da relevância dourada que a indústria lhe oferece. Prefere o caminho da imaginação (Marcuse), resistindo à mercantilização da sua processualidade e aferindo o seu valor enquanto estratégia cognitiva. Ela irrompe com um sentido de auto-poiesis que a projecta para a escuridão do futuro. Ela é o território da autosuficiência do dispositivo. Sacrifício e perda, esta é a arte que se perde para (não) se encontrar.

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28.01.2010 – 13.03.2010PLATAFORMA REVÓLVER

António ContadorHugues DecointetSimeon NelsonPedro PeniloAnabela SantosJulião SarmentoCarlos Sousa

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Agradecimentos

Vítor Pinto da FonsecaJean-Paul LefèvreIsabel e Julião SarmentoJoão FernandesInês VeladeLaurentina PereiraSilva! DesignersJosé MouraCarlos LampreiaJoão RibeiroCátia BonitoA.Escola Superior de Artes e Design das Caldas da RainhaInstituto Franco-PortugaisFundação SerralvesCâmara Municipal de LisboaTodos os artistas e seus colaboradores!

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objet perdu

António ContadorHugues DecointetSimeon NelsonPedro PeniloAnabela SantosJulião SarmentoCarlos Sousa

CuradoriaMário Caeiro

O trabalho de curadoria para Objet Perdu começou porreflectir sobre o carácter material e imaterial do espaço, sobrea sua dinâmica e identidade, e sobretudo a função quecumpre no circuito artístico. Na PLATAFORMAREVOLVER, a arte é um campo de encontros, uma linguagem em aberto, uma ideia em construção.

A dimensão íntima do espaço – uma casa, para todos os efeitos – levou a uma concepção da exposição radicada na ideia de objecto, da obra de arte – contemporânea, sim –,porém ancorada numa tradição de troca, mágica, implícitanum circuito simbólico em que conhecimento, poder, posse, partilha, dádiva, compra, comentário, decorrem numambiente relativamente restrito, familiar, na proximidade de objectos particulares.

Objet Perdu é uma exposição que labora a partir daquela premissa, mas tomando-a como um território contingente, em que um par de referências e hipóteses, deixadas em suspenso – como num aforismo, ou num poema –, colocam cada obra em diálogo não apenas com as outras,com o espaço e a sua identidade, mas ainda com um argumentário acerca da contemporaneidade da arte.

O que parece evidente – embora esta seja uma opinião claramente capaz de suscitar o debate – é que todas as obrastêm em comum uma abordagem da arte como possibilidadede superação de âmbitos, modalidades, categorias e linguagens estéticas, num registo particularmente crítico e de certa forma distanciado das grandes narrativas, tanto culturais como ideológicas.

A problemática da cidade, do espaço público, de uma arteurbana interessada nos valores do imponderável, do efémero,do colectivo; a promoção de operações estéticas independentes em que vários artistas tomam contacto, frequentemente pela primeira vez, com o real quotidiano da cidade, sobre os quais são chamados a intervir – quasesempre em equipas interdisciplinares –, são traços identitários do meu trabalho enquanto activista cultural.Costumo promover uma atitude e metodologias de trabalhotendencialmente transversais, abertas e transdisciplinares.

No espaço eminentemente restrito da PLATAFORMA, no território dos objectos e menos dos contextos, a mostraObjet Perdu funciona como um exercício retórico de aproximação ao artworld, da parte de alguém que costuma caminhar ao longo das suas margens.

Quero agradecer a todos os artistas participantes, colaboradores e responsáveis institucionais o facto de teremtornado esta exposição possível. E em particular ao Vítor Pinto da Fonseca, pelo convite e a cumplicidade.

Mário Caeiro

Objet Perdu. Da curadoria

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ANTÓNIO CONTADOR

Praia da Rocha6 discos-postais de 45 rotações da Praia da Rocha (1919-1971)18X18 cm Capas PVC, 19,5X19,5 cmMasterização: José Moz Carrapa/2009

6 postais da Praia da Rocha em Portimão que vão de 1919 a 1971 lidos por Davide Balula, Inês Vasques, José Sandoval,Laurence Perrillat, Inês Amado & Pedro Viana e Sílvia das Fadas em 2009. As leituras foram gravadas. As gravações foram masterizadas por José Moz Carrapa e depois impressas em disco de vinil 45 rotações a um exemplar cada.

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HUGUES DECOINTET

Screen PaintingsUma instalação vídeo luminosa, 2006-2010Pinturas em photocryl sobre tela (80 x 120 cm), lâmpadas UV, projecção de vídeo digital, loop 1’30’’, dimensões variáveis

OBSESSION

[…]

Comme tu me plairais, ô nuit ! sans ces étoilesDont la lumière parle un langage connu !Car je cherche le vide, et le noir, et le nu !

Mais les ténèbres sont elles-mêmes des toilesOù vivent, jaillissant de mon oeil par milliers,Des êtres disparus aux regards familiers.

Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal

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SIMEON NELSON

Cryptosphere, 2008Contraplacado recortado a laser, folha de aço galvanizada 0.6mm 700 cm(c) x 200 cm(a) x 500 cm(l)Cryptosphere resultou de uma residência artística na Royal Geographical Society em Londres, no ãmbito de um projecto com curadoria de Jordan Kaplan / Parabola.

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O que há aqui?

Há o mundo. (Há, claro, vida noutros planetas como incontestável possibilidade teórica).

Há a comunidade internacional. (E há talvez ainda uma coisa difusa e irritante como um número de telefone abandonado no bolso).

Há a Cidade onde viveis, vós, aqueles que viveis na cidade em que dizeis viver. Mas também há outrascidades assim: amarelas, laranja, brancas, azuis, violeta, etc. Atiram-se bolas de água, palavras duras,incidentes diplomáticos. E tecnologia quente ou fria de extermínio, se puder ser. Sobem as vendas do papel e da nicotina: resolve-se a questão da participação: jogadores de poker rematam, alternadamente, com a tese, ou o seu contrário, ou qualquer outra coisa que, parecendo a solução, é elaprópria o jogo.

No espaço entre cidades há legendas a dizer Aqui há leões. Há buracos ferozes e indícios de larvas.

Sabe-se isto, respeitam-se as mundividências do outro, há abertura e por aí fora... mas não se vai falarcom uma negação, não se relata um buraco. Vai-se dar voz a uma legenda que foi convenientementedeterminada?

Tudo o que seja novidade, um outro olhar, sonoridades, pesquisa exploratória íntima, visão marcante e distintiva interessa, i. e, corresponde a interesses. Apenas se exige uma única condição de rigor:

1. domínio da técnica2. lograr manter a audiência com o lábio inferior ligeiramente rebaixado por longo período3. elementar asseio pessoal (ou, em alternativa, uma estética do desleixo)4. e um nome e razão de ser absolutamente identificáveis no enquadramento dado.

Acordamos então com a notícia, a voz segura, o ataque terrorista no afeganistão; naquele país ondevivem os civis, os radicais, as ong’s e as forças internacionais de manutenção. No caminho para o trabalho podemos optar pela A5 ou pela B19. Nesta última, ouviremos repetida a mesmíssima notícia,agora mais despertos, enfim. Não fora o novo tema sonoro, seguramente o mesmo conteúdo do ano passado...

Se, contudo, viajamos suavemente, teremos escolhido a A5. Ouviremos então a notícia desenvolvida, o acumulado, o saldo, a compensação, o gráfico, comentados por um especialista que nos assegura que

estamos a vencer

PEDRO PENILO

anunciação, afeganistão, 2010Técnica mista, papel de jornal

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1 Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga curso de silêncio, Assirio & Alvim, 2004, p. 312 Idem p. 603 Idem p. 224 Idem p. 175 Idem p. 306 Idem p. 607 Idem p. 428 Idem p. 619 Idem p. 62

A chave sai da recepção agarrada à minha mão que a trásconsigo. Assim que a maçaneta faz a sua inclinação, eu entroaqui comigo com uma decisão de estar em aberto silêncioenvolvente1.

Um rolo imóvel sobre a mesa, os fotolitos em tamanha confusão, um frasco fechado, um outro à espera de ser aberto, algumas espátulas, uma raclete de tamanho médio, a mesa, a temperatura a 38 graus. E o silêncio, o silêncio dos passos que caminham em direcção às coisas do coração,das mãos que vão compondo a disposição dos objectos. Tudo permanece quieto, apenas se ouve o calor, o calor de Junho que entra pela janela. Enquanto as mãos trabalhammeticulosamente, levo o coração a reger os meus olhos como punho levantado2 preparando-se para levar a tinta a tocarno momento certo o espaço guardado pacientemente para elase encontrar – eu sei que o destino é uma folha muito leve3,onde a forma realiza-se uma só vez4 de uma só vez durante o tempo de uma respiração. Tudo elevado naquele momentoonde se inscrevem as mãos os olhos, a inspecção – elacomeçou agora a compreender que o convívio apaixonado é um princípio da imagem5. Um breve passeio onde as folhassão fragmentos de pregos invisíveis6 tocados por sopros de tinta aqui e ali num momento e num outro durante 150horas, o tempo necessário para escutar uma voz que em silêncio fala eu quero saber mais do mundo para ondeirei7. Uma espera calma e agitada, uma observação constante e aflita do debruçar do corpo e do espírito sobre o papel e a tinta e depois a lavagem das sedas onde os fantasmas se acumulam às cavalitas.

Eram os olhos parados e o corpo a chegar antes da chegada,onde eu, tão contrária à insensibilidade, vejo alguém que me espera, ou que espera em si próprio, que eu chegue8 umaespera sem demora, onde repousa o sossego de saber que nãoé preciso ir, pois o momento chegava acompanhado de si e dizia, este é o instante que não se mede pelo instanteseguinte9 isto é onde o objecto é ganho no momento em queé perdido ou deixado em si para ser encontrado. Isto é o vazio de que falo e faço.

ANABELA SANTOS

Série #9, 2009Gravura e caneta sobre papel15 x 21 cm

Vazio #9, 2009Serigrafia em papel fabriano, estrutura em aluminio.150 cm x 850 cm

Exercícios #1 e #2, 2009 [página seguinte]

Gravura sobre papel150 cm x 850 cm

Pena de chumbo, 2007(parte do processo / exercício) Materiais diversosDimensões variáveis

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JULIÃO SARMENTO

Peça variável – 5 intervenientes, 1976Folhas de papel dactilografadas, com fotografias e desenhos montados num painel 97,2 x 347,5 cmCol. Isabel e Julião Sarmento, em depósito na Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Porto

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CARLOS SOUSA

Clas A CL 25W 230V e27, 2010160 x 55 x 45 cm x2Estruturas de madeira, câmara de vídeo, TV, lâmpada incandescente 25W, sensores de movimento

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Objet trouvé. No jargão artístico, a expressão evoca umasolução imprevista que culmina uma demanda plástica. É uma súbita manifestação formal da serendipidade de um processo mais ou menos inconsciente. Tal como o achado, ou trouvaille, que define o momento em quematéria e discurso, artista e público encontram um ponto de cesura que inscreve uma situação nova no fluxo quotidiano. Na sua imediaticidade, o termo não deixa porémde pressupor a possibilidade de a arte ser um processo de achamento. E aí é um argumento, ou até um programa,acerca de como a arte surge, se configura e se institui. Ou seja, até que ponto nos basta ficarmo-nos pelos encontrosda arte tal como definidos pela icónica imagem do objet trouvé? Será que uma revisão do conceito aponta uma possibilidade de superação do próprio estatuto da arte na contemporaneidade?

Desde a deriva conceptual que o que mais importa na artenão são os objectos que o imaginário da história vai consagrando, sob a forma de espectros retinianos, mas sim a sua artisticidade, uma qualidade de artefacto e de produçãoartísticos que exige a compreensão simultânea da complexidade da sua contingência e processualidade. Os objectos de arte interessam como formas discursivas – o discurso é ‘fala intencional’ – que reconfiguram, atravésde signos, proposições, a matéria humana e social que é o seu referente inevitável. Parece-me aliás que a missão da arte, o seu desígnio cultural e civilizacional, aparece cadavez mais como uma ideologia de encontro com o mundo que a este se impõe como simultaneidade de impulso vital, labore instituição, e em que a obra não é coincidente com o objecto.

Na arte, a articulação conceito/objecto, de acordo com determinadas configurações que os artistas propõem, realizao sortilégio de expandir o carácter confinado que tendemos a associar à representação, à objectificação. Entre a ansiedademística da criação e o controlo estético do encontro (o dispositivo), a arte é a aparição de um acontecimento cujaoperacionalidade é medida pela capacidade de atingir o estatuto de cognição. Importa portanto que a arte assuma o seu carácter de linguagem e surja como ferramenta e comoofício de encontro com o mundo, dispositivo que afirma a sua própria legitimidade.

Objet perdu. Ao reunir este conjunto de artistas e obras numprojecto de exposição, tive a intenção de objectivar o queatrás sugiro ser a essência da própria arte contemporânea.Para estabelecer uma situação dialógica, de fruição discursivaentre pares, importava que essa situação, esse acontecimento,sedimentasse, se possível, aspectos de um conceito críticodessa mesma arte contemporânea. A convenção tem inúmerasvantagens sobre a radicalidade, se quisermos, por exemplo,explorar o humor sugerido pelo título.

Com efeito, a ideologia dominante na contemporaneidadeconfere ao objecto um sentido que passa por atribuir à arteum papel específico no/como mercado, na/como indústriacultural, na/como comunicação. Era expectável que a ponte a estabelecer entre as intenções da curadoria e o concreto de uma visita à Plataforma, passasse por apresentar um conjunto de objectos. E que a ideologia da arte

se mantivesse imaculada na sua idealidade histórica. Esta era a premissa – a iconoclastia não funciona às quintas-feiras. Mas não deixa de fazer parte da experiência da contemporaneidade o exigir-se à fruição cultural que o espectador seja convidado a elaborar, a partir do seupróprio entendimento das obras, um argumentário – rouboesta palavra ao Pedro Penilo –, o argumentário crítico e construtivo de que as obras se tornam a manifestação. Esse é um âmbito determinante na curadoria contemporânea, o cerne da sua função educacional e formativa.

Assim, quando se me impôs colocar as obras (necessáriaspara que houvesse exposição) num argumentário persuasivo(necessário para que houvesse comunicação), era minhaintenção valorizar nos objectos a expor não a sua inscriçãonum continuum histórico – o de uma qualquer genealogiaestética, nomeadamente face ao objet trouvé –, mas captar, na sincronia, o seu ethos de laboração mimética.

Cabe aqui, nesta aproximação à ideia de contemporaneidade,citar o pensamento de Giorgio Agamben. Em «What is theContemporary?» [What is an apparatus?, Stanford, 2009],Agamben recorre à imagem do céu estrelado para definircomo contemporâneo [aqui o artista] aquele que não se deixaencandear pelos pontos luminosos, mas concentra a suaatenção no escuro do firmamento. Consciente, de acordo coma Astrofísica, de que nesse negrume há tantas ou mais luzes,que apenas não são visíveis porque se afastam mais rapidamente do que a velocidade da luz que emitem, talartista tem por referente algo que sabe existir mas que poralguma razão os do seu tempo são incapazes de conceber, ou que preferem ignorar: To perceive, in the darkness of thepresent, this light that strives to reach us but cannot – this is what it means to be contemporary […] to be contemporaryis a question of courage, because it means being able notonly to firmly fix your gaze on the darkness of the epoch, butalso to perceive in this darkness a light that, while directedtoward us, infinitely distances itself from us.

A produção cultural e artística surge então portanto comoacção mais ou menos relevante na medida em que relativizaos valores do seu tempo e nesse tempo inscreve umaansiedade única e particular, apontada ao vazio. SegundoNietzsche [e Barthes], o sentido cultural da relevância, quando olha com ansiedade crítica o negro no céu, implica a imediata constatação da irrelevância da proposição do seusaber, uma vez que opera de acordo com valores que a sociedade do seu tempo não é capaz de vislumbrar. Acercadaqueles que são genuinamente contemporâneos, afirmaAgamben: They are thus in this sense irrelevant [innatuale].But precisely because of this condition, precisely through thisdisconnection and this anachronism, they are more capablethan others of perceiving and grasping their own time. Em concreto, e seguindo a lógica de Agamben, o artista temde desconfiar do reconhecimento para se manter não relevante, mas precisamente irrelevante. Só assim persisteuma voz do futuro e do que vem.

Somos portanto criadores contemporâneos na exacta medidaem que soubermos ser ao mesmo tempo, e de acordo comdiferentes contextos e situações, relevantes e irrelevantes. É a atenção à emergência desta consciência específica do anacronismo que nos permite traçar de forma dinâmicaum percurso e nos define a posição, sempre relativa, peranteo nosso tempo. Este excurso sugere que procuro persuadir o leitor acerca da irrelevância de alguns artistas e das suas

Objet perdu. Ao encontro do infinito da arte

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peças e em particular das que faço conviver numa exposiçãocom o título programático de Objet Perdu. De facto, estaminha liberdade poética é uma operação retórica, mais do que filosófica, precisamente porque estabelece uma premissa conversacional – mais convivial que dialéctica –para a própria actividade artística e curatorial. Digo retóricaainda, porque inscrição social, persuasiva, no domínio público. Ao explicitar uma metáfora operativa, a mostrasupõe uma pretensão aforística que dessacraliza a aura dosobjectos de arte e os aborda antes do mais pela evidência dosseus mecanismos cognitivos. A expressão objet perduencadeia assim a filiação dada-surrealista, o contexto institucional da proposta e o humor do desencontro com a contemporaneidade, no anacronismo de um trocadilho.

Daí que a obra que escolhi de Julião Sarmento, surja hoje, no a posteriori da minha anamnese, como um ‘achado’, um momento epifânico. Ela personifica o carácter da condição artística como contemporaneidade.

Peça variável – 5 intervenientes [1976; Alternativa Zero,1977] ostenta já o traço característico da encenação do corpoque determinará o cerne da obra futura de Julião. Ela é umaaproximação ao tema do desejo e da sua encenação que caracterizará as suas intervenções de afirmação e maturidade.Se o punctum da obra de Sarmento será essa perspectivaçãopessoal e fetichista do desejo, a sua longa carreira tem sidouma constante explicitação desse referente em obras que, ao mesmo tempo que nunca deixaram de apontar a um negrume existencial, têm revelando uma simplicidadequase pedagógica dos elementos gráficos, escultóricos,audiovisuais. No contexto da minha abordagem do infinito da arte, a peça é porém particularmente interessante porque é o artista a inscrever a sua identidade através da visão que os outros têm dele. Nela, a multiplicidade dos olhares aprofunda a dimensão performativa de um auto-retrato caleidoscópico. Enquanto auto-retrato conceptual – autopoiético –, revela uma instrumentalidade do própriocampo da arte, com um sentido que o tempo confirmaria.Peça… é um postulado que alia o exercício existencial a umaestratégia cognitiva de achamento de uma função para a arte.

Nas páginas do catálogo da exposição-programa de Ernesto de Sousa, esta era uma das intervenções que de forma mais eficaz se apropriava de um tempo coevo para o reconfigurar na instrumentalidade artística. Perante a actualderiva contextual e relacional da Arte Contemporânea, essesentido já histórico da peça – a sua contemporaneidade –parece-me por demais evidente.

Ainda que o despojamento formal de Julião Sarmentoaparente nada ter a ver com a dimensão ornamental de um trabalho que literalmente enche o olho, não é assimtão diversa a investigação de Simeon Nelson. Uma peçacomo Cryptosphere (Mapping Paradise) [2008] é, tal como a de Sarmento, uma reacção retórica ao constructo social. Ela parte de um desafio de atenção a um fenómeno do foro da História – a monumental colecção de mapas da RoyalGeographical Society – para, enquanto exercício de design,relativizar um poderoso património cultural que é uma súmula gráfica da representação do mundo. A criaçãode Cryptosphere decorreu no âmbito de uma inédita residência artística com a duração de quinze meses naquelainstituição, incluindo longo debate com os investigadores da RGS e membros do Institutte of British Geographers. O resultado é a compactação irónica das múltiplas mutações

nas perspectivas filosóficas e culturais subjacentes à cartografia ocidental, ao longo de um período de mais de um milénio! Comentando, entre inúmeros outros problemas da representação geográfica do espaço, o absurdo da localização física de lugares míticos – o El Dorado,Utopia, o Inferno –, a peça é em certa medida um anti-objecto que é tão bela quanto inútil – é o artista queo diz – sum of all withheld and hidden information in a given system.

Sustentada pelo exercício do ornamental, do modular, da cientificidade da harmonia, Cryptosphere descarta na suaretórica kairótica todos os elementos supérfluos para contrapor às veleidades da ciência cartográfica uma modalidade críptica do desenho e da própria tradiçãoescultórica. Ao projectara hipótese de uma validade do ornamento e da própria arte no território exclusivo da cultura científica, interdisciplinariedades que a alta culturaactual hesita em integrar, Nelson, afinal como Sarmento,também ele dá o seu tiro no escuro cognitivo.

Esta qualidade epistemológica – cujo alcance é a posteridadeque confirma –, é menos evidente no regime de laboriosamaturação que caracteriza os dois artistas mais jovens nestamostra, Anabela Santos e Carlos Sousa. Isso poderá dever-seà manifesta discrição com que ambos empreendem os seusprojectos, em consciência de que o seu encontro com a suaprópria obra pode ainda não estar completamente consumado. Mas quero crer que isso se deve antes do maisao facto de que muito cedo interiorizaram uma convicçãoacerca dos respectivos processos de produção.Aparentemente, a opção por uma paleta de operaçõesextremamente reduzida não contribui para a diversidade plástica; mas se o que procuram é o encontro sempre renovado com a sua techne, que em ambos os casos decorrecomo acto mágico, performativo, total, inscrito com perseverança nos respectivos quotidianos, essa redução formal é simultaneamente um aprofundar do alcance de umaconvicção estética que não abdica da eventualidade de umametafísica do artifício.

Por outro lado, parece evidente que, para os artistas da geração de Carlos e Anabela, a histórica perda da tradicional qualidade objectual da arte – base da operaçãoiconoclasta duchampiana – não chega a implicar um trauma(um facto psicológico que subsiste em traços subtilmenteelegíacos no trabalho tanto de Sarmento como de Nelson).Na materialidade da acção daqueles dois jovens artistas deveprocurar-se portanto, antes do mais, o despojamento autoral.Na consciência da irrelevância do seu gesto, esta é umaoposição que torna tanto um como o outro dos mais anónimos intervenientes no mercado; e as suas obras resíduos – mais do que restos, mas menos do que objectos.

Nestes termos, talvez os discos de António Contador os jornais de Pedro Penilo surjam mais enfáticos a comentar

o perdu da metáfora curatorial.

As memórias afectivas da Praia da Rocha são despojos de um real definitivamente perdido, cuja dimensão política é exponenciada pela atenção poética ao referente humano. Na intimidade do espaço de exposição, funcionam comoexercícios sociológicos, cujo objecto de investigação é um real definido como palco de tensões sócio-culturais.Estabelecendo uma continuidade evidente com a arte pública,estas intervenções de câmara reflectem a consciência de como no mundo há constantemente algo que se perde (os objectos da nossa nostalgia) e algo que se encontra

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Segunda a Sábado das 14h00 às 19h30 Rua da Boavista 84, 3.º | 1200-068 Lisboa T.: +351 213 433 259 M. +351 961 106 590 [email protected]/plataforma.php

(a obra de arte como inscrição emancipada). Aqui a consciência inscreve-se como mecanismo de comunicação, no território eminentemente mental – e abstracto – da linguagem política. Contador expõe com maior regularidade há pouco tempo, e talvez por isso me ocorramestas palavras de Alberto Carneiro, ainda na AZ: Deita-te no silêncio do teu dia e pensa que a vida é mais importanteque toda a arte-para-burguês-fruir e terás então a tuaprópria arte, uma arte para a tua acção.

Em suma, se em Praia da Rocha a musicalidade do espíritonos leva ao encontro do objecto perdido da paisagem turísticaalgarvia, destruída pela voragem urbanística, ela impõe-sesobretudo como composição contrapontística – um hit? –, em que a concatenação de escritas e vozes de diferentes tempos sugere a importância micro-política da memória.

Também Pedro Penilo propõe uma reflexão crítica acerca da alienação. Anunciação, Afeganistão é um manifesto gráfico que denuncia a neutralidade dos media, apresentadoscomo maquinação de uma distância dramática que se interpõeentre o real como entendimento do mundo e o mesmo mundoreduzido a um jogo de obscuridades e manipulação.Apresentando-se como a reinvenção quotidiana do ciclo dossignos e dos símbolos, a peça pressupõe a fé do artista na cadeia de comunicação, ainda que a consciência da justezada luta não o impeça de permanecer no território de irrelevância que a arte lhe assegura.

O carácter artesanal da instalação confirma uma posição queprojecta o activismo na outridade do ofício artístico e já nãona busca ilusória das vitórias meramente mediáticas que o tardo-capitalismo cinicamente concede. Em Penilo, mastambém em Contador, a diferença constrói-se num distanciamento face ao mainstream e à sua ideologia. Mas o que distingue o seu trabalho, voz activa na distribuição do sensível, é um pathos do afecto.

Finalmente, regresso a Agamben para comentar a instalaçãode Hugues Decointet. O que pode interessar na arte contemporânea contemporânea é a sua capacidade de citar o que no passado e no distante tem condições para encontrarvoz e forma num discurso autocrítico. O que importa é a arterecriar constantemente genealogias, olhos postos no infinitodo seu referente. No seu exigente programa de desconstruçãoda linguagem audiovisual, de que Screen Paintingsé um momento feliz, Decointet problematiza em termosarqueológicos os contornos da imagem. Numa era de acumulação exponencial de capital tecnológico e simbólico,face ao excesso de imagens da indústria visual, o seu é aqui um achamento da própria pintura – mas também da literatura, do cinema e da instalação. Por isso o reencontrocom um gesto arcaico – o pintar – na paradoxal impureza de um dispositivo imersivo que acumula meios.

Nada surpreendentemente, também nesta peça a serendipidadefez das suas. Apercebi-me, já depois de seleccionada – aliásjá durante a revisão deste texto… –, que os versos de Baudelaire que surgem nos écrans são de um premonitóriopoema que anunciava, 25 anos antes da sua invenção, o cinema! . Confirmava-se, in extremis, o sentido desta obrana exposição. Ela representa o território da luz. Numa mostraque é no essencial, e propositadamente, de objectos inanimados, ela é um cabinet apontado à intemporalidadesedutora do movimento.

Mário Caeiro Docente na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha

Objet Perdu. A arte que é contemporânea suspeita da relevância dourada que a indústria lheoferece. Prefere o caminho da imaginação (Marcuse), resistindo à mercantilização da sua processualidade e aferindo o seu valorenquanto estratégia cognitiva. Elairrompe com um sentido de auto-poiesisque a projecta para a escuridão do futuro. Ela é o território da autosuficiência do dispositivo.Sacrifício e perda, esta é a arte que se perde para (não) se encontrar.