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“Ode Triunfal” vs “Lisbon Revisited” Álvaro de Campos é o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa, e também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria. É o único heterónimo que conhece uma evolução, sendo que passou por três fases: a decadentista, a futurista e sensacionista e, por fim, a intimista. A fase futurista pode muito bem ser ilustrada pela “Ode Triunfal”, em que se verifica a exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro. Assim, a fase futurista/sensacionista assenta numa poesia repleta de vitalidade, manifestando a predilecção pelo ar livre e pelo belo feroz que virá contrariar a concepção aristotélica de belo, "Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos". Campos adopta, para além do verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável. Álvaro de Campos, além de celebrar o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna, canta também os escândalos e corrupções da contemporaneidade, em sintonia com o futurismo. O ideal futurista em Álvaro de Campos fá-lo distanciar-se do passado para exaltar a necessidade de uma nova vida futura, onde se tenha a consciência da sensação de poder e do triunfo. Esta fase está também marcada pela intelectualização das sensações ou pela sua desordem. Como verdadeiro sensacionista, procura o excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman. Contudo, o seu sensacionismo distingue-se do seu mestre Alberto Caeiro, na medida em que este considera a sensação captada pelos sentidos como a única realidade, mas rejeita o pensamento. O mestre, com a sua simplicidade e serenidade, via tudo nítido e recusava o pensamento para fundamentar a sua felicidade por estar de acordo com a Natureza; já Campos sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura

Ode Triunfal

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“Ode Triunfal” vs “Lisbon Revisited”

Álvaro de Campos é o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa, e também o mais nervoso e emotivo, por vezes até à histeria.

É o único heterónimo que conhece uma evolução, sendo que passou por três fases: a decadentista, a futurista e sensacionista e, por fim, a intimista.

A fase futurista pode muito bem ser ilustrada pela “Ode Triunfal”, em que se verifica a exaltação da energia até ao paroxismo, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro. Assim, a fase futurista/sensacionista assenta numa poesia repleta de vitalidade, manifestando a predilecção pelo ar livre e pelo belo feroz que virá contrariar a concepção aristotélica de belo, "Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos".

Campos adopta, para além do verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável.

Álvaro de Campos, além de celebrar o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna, canta também os escândalos e corrupções da contemporaneidade, em sintonia com o futurismo.

O ideal futurista em Álvaro de Campos fá-lo distanciar-se do passado para exaltar a necessidade de uma nova vida futura, onde se tenha a consciência da sensação de poder e do triunfo.

Esta fase está também marcada pela intelectualização das sensações ou pela sua desordem. Como verdadeiro sensacionista, procura o excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman. Contudo, o seu sensacionismo distingue-se do seu mestre Alberto Caeiro, na medida em que este considera a sensação captada pelos sentidos como a única realidade, mas rejeita o pensamento. O mestre, com a sua simplicidade e serenidade, via tudo nítido e recusava o pensamento para fundamentar a sua felicidade por estar de acordo com a Natureza; já Campos sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura sentir a violência e a força de todas as sensações, "sentir tudo de todas as maneiras”

O poema "Ode Triunfal" exemplifica claramente esta fase poética do heterónimo Álvaro de campos. O título sugere logo qualquer coisa de grandioso, não só no conteúdo como na forma. A irregularidade métrica e estrófica, típicas da poesia modernista, afastam logo o poema da lírica tradicional portuguesa. Este ritmo irregular traduz a irreverência e o nervosismo do próprio poeta. A nível estilístico, sobressaem inúmeras metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas (entre outras), a fim de realçar o sensacionismo de Campos. Há que destacar que nem tudo é entusiasmo nesta ode. Assim, logo no início, o poeta escreve "Á dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica" e tem "febre". Ao longo do texto há um desfilar irónico dos escândalos da época: a desumanização, a hipocrisia, a corrupção, a miséria, a pilhagem, os falhanços da técnica (desastres, naufrágios), a prostituição de menores, entre outros. O poeta tanto manifesta o desejo de humanizar as máquinas, através de apóstrofes ("Ó rodas, ó engrenagens, ó máquinas!...), como também de se materializar ao identificar-se com as máquinas (Ah! Poder eu exprimir-me como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina!"). O mais surpreendente no poema é que,

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depois de o poeta ironizar os ridículos da sociedade moderna, ele identifica-se com eles ao exprimir (Ah, como eu desejava ser o souteneur disto tudo!").

É frequente dizer-se que: “Quanto mais se sobe mais alta será a queda”, pois bem, em Álvaro de Campos podemos observar nitidamente essa queda drástica que ocorre na terceira fase da sua obra.

Em clima de loucura excessiva e visão exageradamente figurada e futurista pela “Ode Triunfal”, é-nos apresentado pelo sujeito poético, que mergulha mais tarde na fase intimista, pois, desiludido com a sociedade em que aspirava grandes espectativas e notoriamente incapaz de sentir tudo tal como desejava, deixa-se levar pelo cansaço e pelo pessimismo.

Num misto de negatividade onde se encontra mais especificamente a recusa, revolta, loucura mas também a nostalgia o sujeito poético apresenta-nos “Lisbon Revisited (1923)” como parte extremamente clara de demonstração de solidão e desespero.

À excepção das duas últimas estrofes, o poema em questão é repleto de frustração e sentimento de mágoa. O sujeito poético começa por recusar tudo e todos à sua volta como se estas coisas e seres fossem a razão do seu estado de solidão e decadência. O poeta chega mesmo a resumir a sua recusa ao generalizar o seu desejo, “Não: Não quero nada.”, verso este que faz questão de dar ênfase repetindo a mesma ideia no verso logo a seguir “Já disse que não quero nada.”, e mesmo no decorrer de todo o poema expressando-se sempre com revolta e angústia.

Recusa tudo que se mostre como conclusivo e alega que a única certeza é morrer, “Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer”. Nesta parte podemos encontrar, além da solidão e tristeza características do ortónimo, uma semelhança a Ricardo Reis que focava diversas vezes a fugacidade da vida e o inevitável fim de todos, a morte.

O sujeito poético não quer saber de regras nem ideais de conduta ou moral a seguir. Quando na segunda fase o poeta aclamava com odes a evolução da ciência e o avanço num modernismo exageradamente futurista, na fase em questão (a terceira fase) rejeita a civilização moderna. Com toda esta “alergia” ao que observa, tenta encontrar razões de culpa ou de ilibação a estes factos questionando-se “Que mal fiz eu aos deuses todos?”.

Com este poema, o sujeito poético recusa-se a encarar a verdade, “Se têm a verdade, guardem-na!”. Quer, sem dúvida, marcar pela diferença e distingue-se em atitudes de loucura através de palavras e pensamentos muito controversos que, são expressados com tanta convicção e firmeza que nos faz parecer que o poeta é quase consciente do seu estado de desespero e loucura, “Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram?”.

Ainda em estado de revolta, o poeta faz questão de enumerar situações banais que diz não querer aceitar. Situações essas que figuram como críticas à civilização moderna. O que ele quer é ser totalmente o contrário do que querem que ele seja.

Quer estar sozinho seja como e onde for pois visa a solidão perante a sociedade que avista naquele momento Não gosta de servir de “encosto” ou de “companhia”; parece rejeitar a proximidade vendo-se como alguém sozinho e ironicamente conformista com a situação.

Até à antepenúltima estrofe o sujeito poético apresenta-se com uma revolta que prime pelo seu tom irónico e provocador, nas duas ultimas estrofes o tom parece ser diferente uma vez que o sujeito poético começa a recordar a imagem que tinha de Lisboa no passado e a nostalgia de tudo de bom que parecia existir na “idade do ouro”, a sua infância. Novamente se pode observar outra característica em comum com o ortónimo. Na verdade, mesmo que o

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passado não tivesse sido perfeito, ambos encaram de pior forma o presente e falam da infância como a única oportunidade de uma suposta felicidade O tempo que o sujeito poético recorda aparece como o pequeno pedaço de verdade que este tem como agradável. Por isso, ao revisitar Lisboa, o poeta sente mágoa naquilo que vê uma vez que nada se assemelha do que fora outrora. Desta Lisboa, o poeta já não reconhece nada, nem nada lhe desperta sentimento nem vontade de encarar este local como pedaço de vida presente, “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.”.

Por fim, mas dando continuidade ao sentimento de revolta que esteve presente durante todo o poema, o poeta pede novamente solidão e, mesmo enquanto espera por esta, só anseia estar sozinho.

Neste momento, para o sujeito poético, Lisboa não é reconhecida por si, Lisboa não é mais lugar que lhe dá ou tira alguma coisa, não é nada que o faça sentir tudo ou até mesmo nada. O poeta tenta mostrar-se indiferente à civilização que observa e à Lisboa que lhe apresentam.

Ao longo deste poema somos confrontados com algumas figuras de estilo como a ironia (presente em cada verso devido ao tom irónico e provocatório do sujeito poético), a adjectivação e a apóstrofe “oh céu azul…”, entre outras como perífrase “enquanto tarda o abismo e o silêncio quero estar sozinho…”, eufemismo, antítese “eterna verdade vazia e perfeita…”. Outro aspecto é os modos das frases. As frases imperativas estão presentes na maioria das estrofes de uma forma cruel e quase sempre injustificada. Também estão presentes as frases interrogativas e exclamativas que dão muita expressividade e emotividade ao poema.

Assim, em "Lisbon revisited" (1923), o poeta debate-se com a inexorabilidade da morte, desejando até morrer ("Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer."). Todo o poema é disfórico, daí a acumulação de construções negativas. Recusa a estética, a moral, a metafísica, as ciências, as artes, a civilização moderna, apelando ao direito à solidão, apontando a infância como símbolo da felicidade perdida ("Ó céu azul – o mesmo da minha infância - / Eterna verdade vazia e perfeita!"). Desta forma, este poema caracteriza a fase intimista em que Campos se sente vazio, um marginal, um incompreendido ("O que há em mim é sobretudo cansaço –"; "Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: / porque amo infinitamente o finito, / Porque eu desejo impossivelmente o possível"). A construção antitética destes versos é, sem dúvida, o espelho do interior do poeta.

Esta fase caracteriza-se por uma incapacidade de realização, trazendo de volta o abatimento. O poeta vive rodeado pelo sono e pelo cansaço, revelando desilusão, revolta, inadaptação, devido à incapacidade das realizações. Após um período áureo de exaltação heróica da máquina, Álvaro de Campos é possuído pelo desânimo e frustração. Parece apresentar pontos comuns com a 1ª fase, a decadentista , contudo, há que sublinhar que a intimista traduz a reflexão interior e angustiada de quem apenas sente o vazio depois da caminhada heróica.