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SONIA SAJ PORCACCHIA
OFICINA DE LEITURA COMO INTERVENÇÃO
PSICOPEDAGÓGICA:
LITERATURA E ESPAÇO POTENCIAL
Osasco Centro Universitário FIEO – UNIFIEO
2009
SONIA SAJ PORCACCHIA
OFICINA DE LEITURA COMO INTERVENÇÃO
PSICOPEDAGÓGICA:
LITERATURA E ESPAÇO POTENCIAL
Osasco Centro Universitário FIEO - UNIFIEO
2009
Trabalho apresentado ao Curso de Pós-Graduação “Stricto Senso” Psicologia Educacional do Centro Universitário FIEO – UNIFIEO, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª Dra. Leda Maria Codeço Barone. Área de concentração: Intervenção Psicopedagógica na dificuldade de aprendizagem.
FOLHA DE APROVAÇÃO SONIA SAJ PORCACCHIA Oficina de Leitura como Intervenção Psicopedagógica: Literatura e Espaço
Potencial.
Dissertação apresentada no Centro Universitário UNIFIEO para obtenção do título de Mestre em Psicologia Educacional.
Aprovada em: 08/06/2009.
Banca examinadora
Prof ª. Dra. Leda Maria Codeço Barone.
Centro Universitário FIEO – UNIFIEO . Assinatura: ___________________________
Prof ª. Dra. Tânia M. J. Aiello Vaisberg.
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP.
Assinatura: _________________________________________________________
Prof ª. Dra. Márcia Siqueira de Andrade.
Centro Universitário FIEO – UNIFIEO. Assinatura: ___________________________
Ao meu marido Leonildo e
aos meus filhos Leo, Allan e Éber,
pelo apoio constante,
em todos os momentos de minha vida.
AGRADECIMENTOS
Às crianças desta pesquisa pelos momentos de aprendizagem, e por me incentivarem a buscar e criar sempre. Pela oportunidade de acompanhá-los no caminho da descoberta de si mesmos Aos meus pais, Josef e Margarete pela oportunidade da vida. Vocês tornaram tudo digno e sagrado. Ao meu marido Leonildo pela companhia preciosa. Aos meus filhos Leo, Allan e Éber, cuja compreensão, carinho e convivência ensinaram-me que todo esforço vale a pena. À querida professora Dra. Leda Maria Codeço Barone, pela paciência, devoção, acolhimento e disponibilidade com que me orientou no decorrer deste trabalho. Guardo comigo a eterna lembrança de uma professora e orientadora “suficientemente boa”. À querida professora Márcia Siqueira de Andrade, minha primeira ensinante na Psicopedagogia e que despertou o meu interesse pelos trabalhos acadêmicos. Às professoras Tânia M. J. Aiello Vaisberg e Beatriz J. L. Scoz pela leitura atenta do trabalho e pelas sugestões apresentadas no exame de qualificação. À querida amiga Flávia Teresa Lima, pelo companheirismo e solidariedade durante os meus estudos e trabalhos na Psicopedagogia. Á Karina Codeço Barone por suas valiosas contribuições. À Áurea Rampazzo, pela cuidadosa revisão do texto. A todos os professores que fizeram parte deste mestrado e que, como ensinantes, ampliaram o meu conhecimento e o meu olhar sobre o ser humano. Ao Centro Universitário - UNIFIEO pela oportunidade de realizar esta pesquisa na Clínica Psicopedagógica da Instituição. E a todos que contribuíram direta ou indiretamente com esse trabalho.
NARRATIVA E CURA1
A criança está doente. A mãe leva-a para a cama e senta-se junto a ela. Então
começa a contar-lhe histórias. Como devemos compreender tal coisa? Pude fazer
uma idéia quando N. me falou do poder curativo que sua mulher tinha nas mãos. No
entanto, sobre elas disse-me o seguinte: “Seus movimentos eram extremamente
expressivos. Porém, não se poderia descrever sua expressão... Era como se
contassem uma história”. A cura pela narrativa, já a conhecemos através das
palavras mágicas de Mersenburger - e não porque repitam a fórmula mágica de
Odin. Narram, antes, o contexto no qual ele as utilizou pela primeira vez. Também
se sabe o quanto a narração que o doente faz ao médico, no início do tratamento,
pode tornar-se o começo de um processo de cura. Surge, assim, a questão: a
narração não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável
de uma cura? Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela
correnteza da narração até a foz? Se considerarmos a dor uma barreira que
bloqueia a corrente da narração, podemos ver claramente que ela se quebra quando
o declive é suficientemente acentuado para arrastar tudo que encontra em seu
caminho em direção ao oceano do venturoso esquecimento. O afago desenha um
leito para essa correnteza.
Walter Benjamin
1 Publicado em: Jornal de Psicanálise, São Paulo, 35(64/65): 115-116, dez. 2002.
RESUMO PORCACCHIA, Sonia Saj. Oficina de Leitura como Intervenção
Psicopedagógica: literatura e espaço potencial. Osasco, 2009, 160 p.
Dissertação de Mestrado. Psicologia Educacional. Centro Universitário - UNIFIEO
Este trabalho tem como objetivo discutir uma Intervenção Psicopedagógica realizada
através da experiência de uma Oficina de Leitura de literatura infantil entendida
como um Espaço Potencial apoiado no pensamento de Winnicott. A Oficina de
Leitura aconteceu na Clínica Psicopedagógica do Centro Universitário – UNIFIEO
durante os meses de fevereiro a dezembro de 2008. Os sujeitos que dela
participaram foram cinco crianças – três meninos e duas meninas -, de oito anos,
com dificuldade de aprendizagem da leitura e da escrita, encaminhadas para
atendimento psicopedagógico. A partir da idéia da existência de uma função
terapêutica da literatura, buscamos aproximar a Literatura, como a entendemos aqui,
ao Espaço Potencial, conforme desenvolve Winnicott. Acreditamos que a leitura de
histórias de literatura infantil gera um Espaço Potencial na medida em que a
Literatura com sua função de humanização, defendida por Candido, se aproxima ao
“viver criativo” ou ao “estar vivo” de Winnicott. A partir da análise da experiência com
a Oficina de Leitura supomos ser legítima a aproximação que fizemos dela ao
Espaço Potencial de Winnicott. Pudemos observar, ao longo de trabalho com a
Oficina de Leitura, mudanças significativas no modo de ser das crianças do grupo.
Elas não só se aproximaram de maneira mais genuína da atividade de leitura e
escrita como se mostraram tornaram mais vivas e criativas demonstrando com mais
autonomia que a vida vale a pena ser vivida.
Palavras chaves: Intervenção Psicopedagógica, Oficina de Leitura, Literatura,
Espaço Potencial, Dificuldade de aprendizagem na leitura e na escrita.
ABSTRACT
PORCACCHIA, Sonia Saj. Reading Workshop as Psychopedagogic Intervention:
literature and potential space. Osasco, 2009, 160 p. Dissertação de Mestrado.
Psicologia Educacional. Centro Universitário - UNIFIEO
This paper aims to discuss a psychopedagogic intervention conducted through the
experience of a Reading Workshop about child literature like a potential space
supported by the Winnicott’s ideas. The Reading Workshop happened into the
Clinical Psychopedagogic in the Centro Universitário - UNIFIEO during the months
February to December of 2008. The subjects who participated were five children -
three boys and two girls – who are eight years old, with learning disabilities of
reading and writing, sent to care psychology. From the idea of there is a literature
therapeutic function, we bring the literature, as we understand it here, to the Potential
Space as Winnicott develops. We believe the read of child literature’s stories creates
a potential space while the literature with its function of humanization, defended by
Candido, approaches to the “creative living to the "be alive" of Winnicott. From the
analysis of experience with the Reading Workshop we suppose to be legitimate the
approach we did between it and the Potential Space of Winnicott. We observed,
through the work with the Reading Workshop, significant changes in the way of being
of the group’s children. They didn’t only get close as a more genuine way of the
activity of reading and writing, but they became more lively and creative showing with
more autonomy the life is worth being lived.
Keywords: Intervention psychology, Reading Workshop, Literature, Potential Space,
Learning difficulty in reading and writing.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 1 Primeiro desenho da Família feito por Gustavo ....................
62
FIGURA 2 Capa do livro..............................................................................
66
FIGURA 3 Cópia da capa do livro: “Quando a mamãe virou um
monstro” ...................................................................................
68
FIGURA 4 Desenho de Gustavo: “Aprendente”.......................................
72
FIGURA 5 Desenho de Gustavo: “Figura Humana” ................................
73
FIGURA 6 Desenho de Gustavo no final da oficina de Leitura:
“Família” ...................................................................................
74
FIGURA 7 Primeira Sondagem da escrita de Gustavo ...........................
75
FIGURA 8 Segunda Sondagem da escrita de Gustavo ..........................
76
FIGURA 9 Primeiro desenho de Jade: “Aprendente” .............................
79
FIGURA 10 Segundo desenho de Jade: “Aprendente” ............................
80
FIGURA 11 Primeira Sondagem da escrita de Jade .................................
83
FIGURA 12 Segunda Sondagem da escrita de Jade .................................
84
FIGURA 13 Primeiro desenho de Bruna: “Aprendente” ...........................
92
FIGURA 14 Segundo desenho de Bruna: “Aprendente”...........................
93
FIGURA 15 Primeira Sondagem da escrita de Bruna ............................... 94
FIGURA 16 Segunda Sondagem da escrita de Bruna ..............................
95
FIGURA 17 Primeira Sondagem da escrita de Luis ..................................
100
FIGURA 18 Segunda Sondagem da escrita de Luis .................................
101
FIGURA 19 Primeira Sondagem da escrita de Valter ................................
106
Figura 20 Segunda Sondagem da escrita de Valter ...............................
107
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO.................................................................................
14
1.1
FUNÇÃO TERAPÊUTICA DA LITERATURA ..................................
14
1.2
A IMPORTÂNCIA DO AMBIENTE: CONTRIBUIÇÕES
WINNICOTTIANAS..............................................................................
30
1.3
INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: A OFICINA DE LEITURA
COMO UM ESPAÇO POTENCIAL ....................................................
33
1.3.1
A importância da voz .......................................................................
35
1.3.2
A importância do livro ......................................................................
38
1.3.3
A importância da literatura como espelho .....................................
39
1.3.4
A importância da organização da Oficina de Leitura como um
Espaço Potencial ..............................................................................
41
1.3.5
A importância de contribuições da psicanálise à Intervenção
Psicopedagógica ..............................................................................
42
2
A “OFICINA DE LEITURA” .............................................................
50
2.1
A ANÁLISE DE CADA CRIANÇA DO GRUPO ..............................
52
2.2.1
Gustavo .........................................................................................
60
2.2.2
Jade ................................................................................................
76
2.2.3
Bruna ..............................................................................................
85
2.2.4
Luis ................................................................................................
95
2.2.5
Valter ..................................................................................................
101
2.3
ANÁLISE DO GRUPO ....................................................................
107
3
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................
122
REFÊRENCIAS ..............................................................................
126
APÊNDICE
A - RESUMOS DAS HISTÓRIAS QUE FORAM SIGNIFICATIVAS
PARA AS CRIANÇAS DA “OFICINA DE LEITURA” ........................
133
ANEXOS
A - TÍTULOS DAS HISTÓRIAS LIDAS E SEUS RESPECTIVOS
AUTORES.........................................................................................
B – APROVAÇÃO NO COMITÊ DE ÉTICA................................ .......
138
140
OFICINA DE LEITURA2 COMO INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA:
LITERATURA E ESPAÇO POTENCIAL
PARTE 1 - INTRODUÇÃO
1.1 FUNÇÃO TERAPÊUTICA DA LITERATURA
A idéia de uma função terapêutica da literatura3 não é recente, parece
universal, e surge na Antiguidade Clássica, por exemplo, em Aristóteles, que, na
Arte poética, pensa a criação artística e a feitura de obras como tendo um fim
terapêutico. Isso provoca no espectador um prazer que “consiste num desafogo,
num repouso, num modo de ocupar lazeres – num gozo intelectual -, numa
vantagem que não é útil aos bons costumes; enfim, opera a catarse, palavra que uns
traduzem por purificação e outros por purgação” (ARISTÓTELES, 2004, p.16). Para
Aristóteles o conceito é amplo e pode ser entendido como:
[...] uma expulsão provocada de um humor incômodo por sua superabundância. Do mesmo modo que a música apaixonada, a tragédia, bem concebida, deve determinar no auditório, que se deixou empolgar pelas paixões expressas, um gozo que, no final do espetáculo, dá impressão de libertação e de calma, de apaziguamento, como se a obra tivesse dado ocasião para o escoamento do excesso de emoções (ARISTÓTELES, 2004, p.18).
A função terapêutica da literatura também está presente na clássica obra
oriental As mil e uma noites, tão bem retratada por Purificacion Barcia Gomes (2000)
em O método terapêutico de Scheerazade: mil e uma histórias de loucura, de desejo
e cura, e na obra de Daisy Wajnberg (1997), Jardim de arabescos: uma leitura das
mil e uma noites.
Gomes (2000) fala do método terapêutico de Scheerazade, uma jovem que
pode ser identificada com uma terapeuta bem-sucedida, que, por mil e uma noites,
contou diferentes histórias ao sultão, seu marido, até que ele se viu curado de sua 2 Nomeamos “Oficina de Leitura” um espaço que tem como instrumento principal a leitura de histórias de literatura infantil, a partir da qual se abrem espaços para a existência de diálogos que surgem do paciente e, conseqüentemente, a realização de diversas atividades provenientes dessa leitura. Lembramos ao leitor que estamos aproximando este conceito ao Espaço Potencial de Winnicott. 3 Estamos chamando de literatura a manifestação universal de todos os homens em todos os tempos, ou seja, conforme Candido (1988,p.174), “da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações”.
doença (após a noite de núpcias sempre matava todas as suas esposas), passando
a confiar nas mulheres e viver satisfatoriamente o seu amor por Schererazade.
Os encontros para contar e ouvir histórias, para Gomes (2000, p.14), são uma
atividade “propriamente psicoterapêutica: o sultão sofre, e, através dos encontros
com Scheerazade, esta lhe diz coisas que aliviam o seu sofrimento”.
“Esse ‘método’ nos vem sendo repetidamente narrado há muitos anos, e se
confunde com nossa história” (GOMES 2000, p.15). Nesse sentido, a autora fala da
importância dos narradores e das narrativas, entre eles aponta Alexandre Magno,
que tinha como entretenimento ouvir histórias contadas por homens especializados;
e, mais recentemente, relata a importância da tradição oral no Oriente, desde os
primeiros séculos da fundação do Islã, com os pregadores e comentadores do
Corão, contadores de histórias religiosas, contadores populares de ditos anedóticos
supostamente religiosos, e também o grupo de contadores com origem nas farsas e
pantomimas provenientes de raízes do teatro clássico.
Para Gomes (2000, p.20), os narradores árabes e, aqui, incluí Scheerazade,
parecem perceber que “a narrativa interrompida e retomada tem o condão de,
artificialmente, criar uma necessidade de mais narrativas. Acrescentaríamos nós: de
alguma forma, essas novas narrativas se enganchariam em outras, pessoais, de
histórias da vida do ouvinte”.
Para Wajnberg (1997, p.17), “Sheherazade é o próprio paradigma do
narrrador e só cobra o seu sentido de personagem enquanto ocupa este lugar” e “é
a hábil voz de Sheherazade que se ergue e se cala, a que instaura o discurso das
Noites” (WAJNBERG, 1997, p.12). A leitura das histórias perpassada pela voz da
narradora acabava “por operar um certo efeito terapêutico em relação ao sultão”
(WAJNBERG, 1997, p.12), levando-o à cura da sua fúria homicida. A autora conclui
que “Sheherazade é o paradigma do fôlego incessante da narrativa, sempre pronta a
se refazer, fantástico castelo reerguido na próxima história, mais uma, sempre mais
e ainda” (WAJNBERG, 1997, p. 184).
Na atualidade é vasta e diversificada a bibliografia, vinda de diferentes áreas -
crítica literária, biblioteconomia, psicopedagogia, psicanálise, antropologia - que trata
dessa questão, não se devendo ignorar, também, o depoimento de leitores e relatos
de experiência utilizando a narrativa.
A partir da crítica literária é importante o pensamento de Walter Benjamim,
Antonio Candido e de Adélia Bezerra de Meneses, entre muitos outros.
Walter Benjamin (1992) concebe a narrativa na perspectiva de transmissão e
organização da experiência. Aqui o autor fala da “experiência que anda de boca em
boca é a fonte onde todos os narradores vão beber... experiências que foram
registradas como histórias (BENJAMIN, 1992, p.28-29)”.
Nesse sentido, Benjamin (1994, p.114) conta uma parábola que existia em um
de seus livros de leitura:
[...] um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.
Nesse trecho podemos perceber a transmissão da experiência de vida do pai
aos filhos, na qual a relação que o narrador tem com a sua matéria, a vida humana,
é artesanal, uma construção de vida única.
Para esse autor a narrativa de uma história também é importante porque “o
extraordinário, o maravilhoso, são narrados com a maior precisão, sem que, no
entanto, seja imposta ao leitor a coerência psicológica da ação. O leitor tem a
liberdade de interpretar as coisas como as entende” (BENJAMIN, 1992, p.34).
Antonio Candido (1988) afirma que não há homem que possa viver sem a
literatura, pois ela “aparece como manifestação universal de todos os homens” e é
fator indispensável de humanização. Candido (1988, p.180) entende por:
[...] humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.
A literatura é importante nas formas de educação familiar, grupal e escolar, e
possui papel fundamental na formação da personalidade do ser humano como “força
indiscriminadora e poderosa da própria realidade”, diz Antonio Candido (1988,
p.176); e ainda mais, “ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo
livremente em si o que chamamos o bem e o mal, humaniza em sentido profundo,
porque faz viver”.
Para esse autor, (1988, p174) “não há homem que possa viver sem a
possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação...”, “a literatura
é o sonho acordado das civilizações, (...) confirmando o homem na sua humanidade,
inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente”. As
produções literárias satisfazem as necessidades básicas do ser humano e trazem a
possibilidade de o sujeito viver dialeticamente os seus problemas.
Para Candido (1988, p. 176) “a função da literatura está ligada à
complexidade da sua natureza”, que se apresenta simultaneamente nestes três
aspectos :
1. É uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado;
2. É uma forma de expressão;
3. É uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e
inconsciente.
Como um primeiro nível de humanização, “a produção literária tira as palavras
do nada e as dispõe como todo articulado” estabelece Candido (1988, p.177), em
que a “organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se
organizar; em seguida, a organizar o mundo”.
Tudo isso pode acontecer nas formas mais rudimentares de produção
literária - quadrinha, provérbio etc, que resumem experiências em simples
espetáculos mentais e que podem auxiliar na superação do caos, determinadas que
são “por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido”
(CANDIDO, 1988, p. 178).Essa proposta de sentido é a passagem do sentimento do
estado de mera emoção para o da forma construída e pertinente, nomeada por
Candido (1988) como humanização.
Nessa mesma linha de pensamento, temos Adélia Bezerra de Meneses
(2005), que fala da literatura como promovedora da passagem do caos de
sentimentos e percepções a um cosmos, a um mundo organizado. Por meio das
palavras, do nomear de emoções e situações existenciais até então inarticuladas,
“ela permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o da
forma construída, e é essa forma que lhe assegura a generalidade e a permanência”
(MENESES, 2005, p.122).
Meneses (1995, p.13) destaca as relações entre literatura e psicanálise:
[...] em mais de um nível: desde a utilização da Palavra como matéria comum, até a refinada fórmula lacaniana do ‘inconsciente estruturado enquanto linguagem’, passando pelo substrato comum a sonhos, mitos, lendas, lapsos, epopéia, romance, poema – a emersão do inconsciente.
Para essa autora, a arte é um espaço em que o inconsciente pode aflorar, e a
psicanálise é o reconhecimento desse inconsciente.
Para Meneses (1995, p.17) “se Literatura e Psicanálise fornecem uma leitura
do humano, vista do ângulo da Literatura, a Psicanálise propicia um instrumento de
leitura... para o literário”. Essa leitura do humano postula um trabalho de
interpretação que “onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se
ergue para interpretar” (RICOEUR apud MENESES, 1995, p.18) surgindo assim, o
processo da simbolização, possibilitando-se uma representação da realidade.
Essa realidade foi construída de tal maneira que suscita e provoca a catarse
das emoções, que, para Meneses (2005, p.123), significaria “quase que reconhecer
uma função ‘terapêutica’ da obra literária, parte da premissa de que ela age sobre
nós, atua no nível psíquico”. Das observações dessa autora, gostaríamos de
destacar a referência que faz a duas obras, As mil e uma noites, clássico da
literatura oriental, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Quanto à primeira
obra, a autora ressalta o papel da contadora de história, que permite ao Sultão
acessar o mundo simbólico por meio de uma linguagem que consiste numa
reorganização estrutural da personalidade e busca recuperar a capacidade amorosa
do Sultão.
Assim, conclui a autora que há em Mil e uma noites, como sugere Walter
Benjamin, “uma ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a carícia”, uma vez que
“as narrativas de Scherazade se seguiam às suas noites de amor com o Sultão – e
são suas histórias que lhe facultam a possibilidade de dormir a próxima noite com
ele. É a narrativa que possibilita o encontro futuro”(MENESES, 1995, p.55).
Na narrativa oral, a Palavra é corpo: modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso: ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão sensorial (MENESES, 1995, p.56)
Em relação a Grande sertão: veredas, Meneses (2005, p.126) informa que o
narrar aparece;
[...] como uma busca desesperada de sentido para o vivido, é a verbalização de situações existenciais na presença de um Outro, ou melhor, para um Outro, (numa situação transferencial) que fornece a possibilidade de reorganizar o próprio mundo interior.
Riobaldo, personagem que detém o poder do discurso:
[...] conversa a sós numa situação de intimidade com um ‘doutor da cidade’ que nunca fala, mas de presença significativa e cujas manifestações são inferidas por algumas observações do próprio narrador, às vezes na linha de uma leitura gestual (MENESES, 2005, p.126).
Ao narrar sua vida, Riobaldo estrutura a experiência repetindo textualmente:
“o senhor me organiza”. Ele seleciona fatos de sua vida e os reúne num todo. “A
palavra poética vai lhe propiciar, sim, uma passagem do Caos ao Cosmos”
(MENESES, 2005, p.135).
Da mesma maneira, com Meneses (2005), podemos perceber que a literatura
organiza a nossa experiência quando apresenta um universo ordenado, ficcional,
que nos permite expressar, verbalizar nossas emoções, sensações e vivências que
não conseguíamos nomear. O texto literário apresenta situações humanas que
refletem a nossa condição de vida. A narrativa dessa condição monta um enredo, dá
forma aos sentimentos e quando damos forma aos sentimentos, à visão do mundo,
a literatura nos organiza; nos liberta do caos e nos humaniza. (Candido, 1988),
Assim podemos realmente pensar na existência de uma função ‘terapêutica’
da obra literária partindo do princípio de que age sobre nós, atuando no nível
psíquico. Nesse sentido, outra contribuição importante para o presente trabalho vem
dos estudos da biblioterapia, que, segundo Clarice Fortkamp Caldin (2001, p.8),
admite a possibilidade de uma terapia por meio da leitura de textos literários, e se
configura como:
[...] o encontro entre ouvinte e leitor em que o texto desempenha o papel do terapeuta. Além da leitura, os comentários, os gestos, os sorrisos, os encontros são também terapêuticos à medida que fornecem a garantia de que não estamos sozinhos. O texto une o grupo.
Para essa autora, os estudantes de biblioteconomia4, bibliotecários e aqueles
que se interessam pelo tema têm um bom referencial teórico que embasa a
realização de trabalhos com a função terapêutica da leitura, no seu artigo
denominado “A leitura como função terapêutica: Biblioterapia” (CALDIN, 2001).
Caldin (2001, p.1 e 2005, p.3) admite “a possibilidade de a literatura
proporcionar a pacificação das emoções – a catarse..., uma vez que “a leitura do
texto literário, portanto, opera no leitor e no ouvinte o efeito de placidez, e a literatura
possui a virtude de ser sedativa e curativa”. Também tem a possibilidade de
“produzir a identificação com as personagens por meio da projeção e introjeção; e
4 Biblioteconomia é uma parte da bibliotecologia (ciência da constituição e do funcionamento das bibliotecas) que trata dos aspectos da armazenagem, do acesso e da circulação das coleções de livros (conforme Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2001).
de favorecer a introspecção. A literatura tem, portanto, uma função terapêutica”
(CALDIN, 2005, p.5), uma vez que:
[...] na psique infantil o imaginário e a fantasia podem ser liberados pelo contato literário (escrita, audição ou leitura), pois são constitutivos da atividade criadora da criança sobre a realidade. Existe, portanto, um caminho para chegar ao prazer estético, que na criança passa pela influência do literário, da brincadeira, dos jogos em seu imaginário, em sua fantasia, mas que se manifesta como atuação no mundo, como linguagem (CALDIN, 2004, p.73).
Caldin (2001, 2004, 2005), entre outros, entende o uso da biblioterapia e, em
especial, a leitura de textos literários, em classes de aceleração na escola pública,
em hospitais, asilos e nos tratamentos psicológicos em crianças, jovens, adultos,
deficientes físicos, doentes crônicos e viciados.
A partir da psicanálise, podemos também lembrar os trabalhos de Bettelheim
(2008, p.12), quando utilizou os contos de fadas na psicoterapia, afirmando que eles
lidam com:
[...] problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criança, essas histórias falam ao ego que desabrocha e encoraja o seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que aliviam pressões pré-conscientes e inconscientes (...) [mas] (...) num sentido bem mais profundo do que qualquer outro material para leitura, começam no ponto em que a criança efetivamente se acha em seu ser psicológico e emocional. (BETTELHEIM, 2008, p.13).
Ainda para esse autor, “ler e ouvir outros lerem são meios essenciais de
educação” (BETTELHEIM, 2008, p.13).
Também Gilberto Safra (1984), em sua Dissertação de Mestrado, em
abordagem winnicottiana, utilizou histórias infantis como meio de intervenção por ser
uma forma lúdica de expressão compatível com a vida mental da criança, e por
favorecer o aparecimento do espaço transicional, possibilitando que a criança
introjete a intervenção sem ser invadida.
O referido autor fala da importância dos contos de fadas para a humanidade,
uma vez que:
[...] em todos os povos encontramos estórias, mitos, através dos quais os seus membros buscam a elaboração de suas angústias comuns, e a transmissão de sua cosmovisão com seus sistemas de valores, em relação aos quais os seus membros buscam referências (SAFRA,1984, p.7).
No trabalho citado, Safra (1984, p. 7, 8, 9 e 10) apresenta vários autores que
utilizaram os contos de fadas de maneira satisfatória: Hellmuth, como técnica
interpretativa; Erich Berne, como utilidade de ilustração da própria vida do paciente;
Wittgenstein, como técnica em que o cliente narrava o que se lembrava das estórias
de fadas que ouviu na sua infância, nas quais considerava suas distorções como
indicação da sua problemática pessoal; Heusher usou os contos na psicoterapia;
Gardner usou uma técnica em que cliente e terapeuta contam mutuamente estórias
para um fim terapêutico; Ramon e outros utilizaram os contos populares como
técnica terapêutica na qual a criança escolhe um personagem para dramatizar ou
modelar em argila, havendo, assim, estimulo à simbolização e à expressão de
sentimentos, propiciando oportunidades para elaboração dos problemas; Clamam,
numa psicoterapia ego-orientada, em que o terapeuta tem um papel de colaborador,
direcionando as estórias para o problema e estágio de desenvolvimento da criança,
propôs contar estórias para crianças ao lado do jogo do rabisco, técnica terapêutica
proposta por Winnicott.
Pavlovsky, citado por Gutfreind (2005a), serve-se dos contos para criar um
“espaço lúdico”, onde a criança pode imaginar, criar, brincar, inventar, e se refugiar
nos momentos mais difíceis de sua vida, como uma forma de alimentar a sua
imaginação, encontrando outra forma de enfrentar a sua realidade.
Celso Gutfreind (2005a), psiquiatra, psicanalista, poeta e escritor, em seu livro
O terapeuta e o lobo refere-se à existência na França de ateliês de contos
terapêuticos - encabeçados por Pierre Lafforgue e Marie Bonnafé - que participam,
ativamente, no tratamento de crianças com diferentes patologias, em diversas
instituições psiquiátricas. Segundo Gutfreind (2005a), Lafforgue mostra alentadores
resultados no uso de histórias como mediadoras no tratamento de crianças
psicóticas e autistas. Por sua vez, Bonnafé emprega o conto com bebês como forma
de reintegrar famílias socialmente marginalizadas, na região parisiense. Esses
autores visam, sobretudo, o aspecto lúdico e o desenvolvimento da imaginação das
crianças, de onde advém o seu efeito terapêutico. Esse ponto de vista também se
encontra em Diatkine, quando este afirma que as histórias lidas para as crianças
antes de dormir permitem a elas suportar melhor o escuro, o medo de morrer e o de
perder os pais.
Gutfreind (2005a) se inspirou nesses trabalhos para realizar suas pesquisas,
por meio de um ateliê, aplicando o conto na psicoterapia de crianças com carência
afetiva. O autor fala da importância das narrativas curtas como antídoto contra o
medo e para o reforço de identidade das crianças.
A leitura de histórias tem, para Barone (1982), um duplo sentido: transmitir
valores de uma cultura e uma função terapêutica, na medida em que afirma que
A literatura, oral ou escrita, é a principal forma de transmissão de valores, de símbolos, em diferentes culturas e, através dela, o homem pode tomar consciência de sua realidade, externa e interna, que é síntese de seu passado, e recriá-la, pois o leitor encontra no texto elementos seus ligados à sua própria indagação sobre a vida, seus conflitos, valores, desejos e crenças (BARONE 1982, p.4).
Barone (2006), baseada em Cabrejo-Parra, propõe a idéia da leitura como
fundadora do psiquismo. Afirma que desde o nascimento a criança é capaz de
reconhecer a voz da mãe e de maneira muito rudimentar fazer uma primeira leitura.
Ressalta ainda que nesse contato a criança constrói a própria voz a partir da
prosódia da língua, ao internalizar a voz da mãe. Sugere também que “essa voz, ao
mesmo tempo tão pessoal e íntima, é construída a partir da voz de alguém. E é essa
acolhida pelo outro que permite que passemos do grito à voz” (BARONE, 2006,
p.92). Reafirmando essa idéia de trazer a presença simbólica do outro, Barone cita
Cabrejo-Parra: “ser porta-voz é ao mesmo tempo entrar na cadeia simbólica, porque
a voz faz parte de uma cadeia, de uma língua que está aí” (CABREJO-PARRA apud
BARONE 2006, p.92-93). Por esse motivo, para Barone (2006):
[...] ler é uma necessidade imperiosa do homem: faz parte de seu processo de humanização e de sobrevivência; inicia nos primeiros contatos mãe-bebê se prolonga na vida contribuindo de maneira importante para a constituição do sujeito humano (BARONE, 2006, p.92).
Em outro trabalho: “O leitor e o texto: função terapêutica da literatura”, Barone
(2007a) aproxima a psicanálise de algumas idéias desenvolvidas por críticos
literários, como Antonio Candido, Umberto Eco e Walter Benjamin, de maneira a
fundamentar esse valor na leitura. A autora, em seu artigo “Entre o leitor e o texto:
espaço para subjetivação”, busca refletir sobre o valor da literatura na construção do
sujeito, destacando um possível efeito terapêutico da leitura de textos literários na
escola, sustentando teoricamente essa aplicação como meio de desenvolvimento
subjetivo dos alunos. A autora propõe a função terapêutica da literatura considerada
a partir de dois aspectos essenciais e inter-relacionados: o aspecto catártico e o
aspecto estruturante, próprios à experiência de leitura. Dessa maneira:
A literatura oferece ao leitor ou ouvinte a forma do humano, levando-o a compreender melhor de si e o seu mundo, [uma vez que] as histórias permitem à criança encontrar palavras para nomear, dar forma e significar a massa indiferenciada e excitante do fluxo vivido; palavras que nomeando as coisas do mundo o tornam habitável (BARONE, 2008, resumo).
Para a psicopedagogia, Gillig (1999, p.17) sustenta a “pedagogia do conto
como um apelo à motivação da criança para a leitura”, abrindo assim “o espírito da
criança para o mecanismo da construção da narrativa que a encantou”.
O autor faz uma reflexão com relação à função simbólica e iniciadora dos
contos pela pedagogia escolar. Para Gillig (1999, p.19), o desinteresse da criança
pela coisa escolar “pode ser interpretado como uma barreira entre seu mundo, ainda
fechado por razões ligadas tanto ao psicoafetivo quanto ao social, e o espaço
escolar, que simboliza a cultura onde têm êxito aqueles que sabem decodificar os
seus segredos”.
Desse fato derivam as dificuldades encontradas por essas crianças, no plano
afetivo ou no plano intelectual, “de acesso ao simbólico, de distanciamento do real
em relação ao imaginário, de expressão do desejo de vencer e de relação com
outrem” (GILLIG, 1999, p.19). Para esse autor o emprego do conto serve de
mediador entre o imaginário da criança e a construção de competências, que a
escola espera do aluno e que tenta tornar desejáveis para ele.
Tudo isso está relacionado ao processo de maturação de qualquer indivíduo,
continua o autor, e associa o seu pensamento a Winnicott, quando traz o fato de que
a:
[...] experiência cultural, para a criança pequena, começa no brinquedo, na fantasia, no ‘sonho’, e inscreve-se em um espaço potencial. Prossegue na adolescência e na vida adulta por meio do contato com as artes, com a religião e com o trabalho científico criativo (GILLIG, 1999, p.19).
O autor conclui que o conto “poderia ser para a criança um objeto transicional
que lhe permitisse passar do mundo da onipotência imaginária àquele da
experiência cultural, e em que o prazer e o desejo pudessem encontrar sua fonte de
renovação” (GILLIG, 1999, p.19).
A partir de uma Psicopedagogia Iluminada pela Psicanálise, Barone (2004)
vale-se de uma atividade que denominou de Imaginação (o paciente realizava
desenhos que compunham um livro, a partir da história contada pela terapeuta), e
com isso propôs estudar a função terapêutica do narrar-brincar. A autora aproximou
a visão benjaminiana da proposta de Winnicott, ressaltando a função terapêutica do
brincar. Ao ler uma fábula, o paciente desenhava cada uma das partes que a
compunham e, no final, devia narrar o que havia desenhado. Com isso o paciente
conseguia entrar em contato com suas questões traumáticas e ressignificava as
próprias dores.
Já na antropologia temos os estudos de Michèlet Petit (2006a) sobre a leitura
como instrumento que possa vir a ajudar crianças, adolescentes e adultos a superar
momentos de crise, com resultados positivos na re-elaboração pessoal de suas
crises internas.
Para essa autora, o que configura um espaço de crise se relaciona a
situações – provenientes de guerras, violência ou deslocamentos forçados – em que
os modos de regulação social e psíquico, que se mostravam funcionais até aquele
momento, tornam-se disfuncionais. Muitas vezes no decorrer da vida o sujeito é um
espaço em crise, como reconhece Petit (2006a), quando afirma que os recursos
pessoais, sociais, psicológicos e econômicos não são mais suficientes para fazer
frente às situações vividas, provocando perda total do sentido de viver e uma
inibição das funções mentais. Nesses momentos de total desamparo do indivíduo,
aos quais a autora refere-se, a leitura de um livro pode contribuir para a construção
ou reconstrução de si mesmo, trazendo benefícios na produção de significados, na
elaboração da história pessoal e na recomposição dos vínculos sociais.
Petit (2006a, p.149) sugere que a leitura tem uma função reparadora, uma
vez que “uma obra é capaz, literalmente, de nutrir a vida”. Nessa perspectiva a
autora fala de três hipóteses essenciais para que aconteça a função terapêutica da
leitura de literatura, possibilitando a elaboração de sentidos:
1ª) permite um encontro personalizado para ouvir o outro, um espaço de
intersubjetividade, de acolhimento e hospitalidade;
2ª) as leituras dão lugar ao outro de ser sujeito, ou seja, de falar em nome
próprio, permitindo assim “um espaço psíquico, como sustentar um processo de
autonomização, de constituição de uma posição de sujeito” (PETIT, 2006a, p.153);
3ª) ler desencadeia uma atividade narrativa interna, permitindo uma
verdadeira apropriação, isto é, “uma metáfora em que o corpo é tocado” (PETIT,
2006a, p.153).
Mas, conforme a autora é de importância crucial nas situações de crise, que
se recrie um espaço transicional, para que se reencontre a capacidade de
restabelecer os laços seja com o mundo interno, seja com o externo, para que se
recupere a capacidade de brincar, simbolizar, aprender, pensar, criar. Como escreve
Didier Anzieu (1981, p.22):
[...] a recriação de um espaço transicional é a condição necessária (mas não suficiente) para permitir que um indivíduo ou grupo recupere a confiança na própria continuidade, em sua capacidade de estabelecer laços
consigo próprio, com o mundo e com os outros, em sua capacidade de brincar, de pensar, de criar.
Petit (2006a, p.159) ressalta que ler pode “desenredar em si aquilo que
estava atado e ligar os fragmentos de uma história, criar pontes entre episódios, dar
um pouco de continuidade, de coerência a um percurso”. Assim, ler “permite
inscrever-se numa história”, com a possibilidade de realizar mudanças naquilo que
foi vivenciado por nossos ancestrais.
Percebemos que a leitura de um texto muitas vezes ajuda na reorganização
da nossa própria história, fazendo uma ligação do mundo interior com o mundo
exterior. Como afirma Petit (2006a, p.159), “a leitura coloca o pensamento em
movimento, relança uma atividade de simbolização, de construção de sentido”,
permitindo ao sujeito se abrir para a fantasia, para o mundo imaginário. Podemos
afirmar que a leitura ajuda a pessoa a se construir e a se descobrir autora de sua
vida, sujeito de seu destino, mantendo a humanidade, o sentido da vida.
Para Petit (2006b) a leitura de literatura é uma experiência insubstituível, na
qual o íntimo e o compartilhado ligam-se de forma indissolúvel. O desejo de saber, a
exigência poética, a necessidade de relatos e a necessidade de simbolizar nossa
experiência constituem a especificidade humana.
Assim, podemos pensar que a leitura de histórias possui uma potência na
construção e reconstrução do sujeito.
Também não podemos esquecer ou deixar de lado o depoimento de leitores
que fazem referência à função terapêutica da leitura.
Segundo Petit (2006a), temos ao longo da história alguns exemplos de
possibilidades reparadoras da leitura,
[...] basta pensar no século XX e no papel que a literatura desempenhou para tantos deportados nos campos nazistas (lembremo-nos de Primo Levi recitando Dante a seu companheiro Pikolo, em Auschwitz), no exílio stalinista ou nas prisões argentinas (PETIT, 2006a, p.150).
Assim a autora entende que a leitura tem uma função reparadora, uma vez
que uma obra é capaz, literalmente, de nutrir a vida.
Petit (2006a) conta uma experiência de Beatriz Robledo na Colômbia, quando
leu histórias para adolescentes, meninos e meninas, envolvidos no conflito armado
que transpassou o país, que conviveram com a morte de pessoas amigas e
inimigas, nos combates corpo a corpo. Robledo (apud PETIT, 2006a, p.152)
comenta que:
Para cidadãos que vivem em condições normais de desenvolvimento, um livro é uma porta a mais que se abre; para aqueles aos quais foram negados os direitos fundamentais, ou que vivem em condições subumanas, talvez um livro seja a única porta que lhes permitiria ultrapassar o limiar e saltar para outro lado.
Um livro, mais especificamente a leitura de literatura, é a única porta que se
abre para ver alguma coisa, para poder sonhar, para despertar a imaginação. Enfim,
poder contar de formas diferentes,a si mesmo, o que foi perdido. Petit (2006a),
também, relata o trabalho de Mira Rothenberg, nos Estados Unidos, quando esta
lecionou para 32 crianças judias entre 11 e 13 anos de idade, que passaram pelos
horrores da segunda guerra mundial. Essas crianças não conseguiam aprender
nada. Com a leitura de histórias sobre a perda das terras pertencentes aos índios
americanos e de poemas indígenas que falavam do amor pelas terras, pelos animais
e pela liberdade, as crianças reagiram. Afirma Rothenberg (apud PETIT, 2006a, p.
151):
Alguma coisa se modificara nelas. Os índios deviam sentir pela América o mesmo que elas sentiam por seus países de origem. E nos tornamos todos indígenas. Tiramos os móveis da classe. Instalamos tendas e pintamos um rio no assoalho. Construímos canoas e animais de tamanho natural, de papier mâché. [...] As crianças começaram lentamente a desfazer suas carapaças.
Os diferentes autores e depoimentos aqui trazidos apontam várias situações
que podemos considerar como de crise para o sujeito. Nesse trabalho, gostaríamos
também de ressaltar outra situação dessa natureza. Referimo-nos à impossibilidade
de ler e escrever. Ninguém desconhece o valor da leitura e da escrita na atualidade,
a ponto de esta impossibilidade trazer uma marca indelével para a constituição
subjetiva. Saber ler e escrever no mundo moderno é um divisor de águas, podendo
relegar aqueles que não têm acesso à leitura e à escrita a um lugar inferior no grupo
social e trazer uma ferida narcísica importante.
Reconhecendo essa importância, Morais (1996) salienta que nas sociedades
modernas as conseqüências, os ônus e danos para quem não sabe ler são
relevantes, uma vez que a leitura é fator indispensável à vida cotidiana do sujeito.
Cada vez mais existe a necessidade de se ler informações diversas, como: as bulas
de remédios, as instruções de equipamentos eletrodomésticos, informações por
computador, pela televisão, leitura de linhas de ônibus e metrô, e outros. O mesmo
autor afirma que “a leitura já é indispensável na vida cotidiana, mesmo fora da esfera
profissional...” (MORAIS, 1996, p.21), acreditando mesmo que a leitura e a escrita
não só pertencem ao círculo dos intelectuais, mas que são exigidas em todas as
atividades do homem moderno.
Para Manguel (2006, p. 89), aprender a ler faz parte de uma iniciação, de uma
“passagem ritualizada para fora de um estado de dependência e comunicação
rudimentar”, em todas as sociedades letradas. Dessa maneira, aprendendo a ler
existe a possibilidade de comunicação, o que pode ajudar a criança a caminhar
rumo à sua independência. Quando aprende a ler, a criança pode inserir-se em sua
cultura, na sociedade, tem acesso a diversas situações passadas e presentes.
Quem não usufrui da leitura tem a inserção social dificultada.
No entanto a leitura não se dá no vazio, para que a criança tenha gosto de ler
é necessário que se leve em consideração a importância do meio.
Vários estudos também mostram a relação entre meio e capacidade de
leitura.
Daniel Penac (1993), em seu livro Como um romance, ressalta a importância
da leitura em voz alta, desde a mais tenra infância, quando os pais gratuitamente
lêem as histórias preferidas de seu filho e, num papel de contadores únicos, de
romancistas, permitem à criança viajar em seus sonhos e pensamentos. Com essa
atitude, ensinam desde muito cedo a idéia do que é um livro e do que é a leitura.
Para esse autor o que “uma criança aprende primeiro não é o ato, mas o gesto do
ato” (PENAC,1992, p. 46).
Outro autor que também fala da importância da leitura em voz alta é Morais
(1996, p.171), que afirma:
A leitura em voz alta feita pelos pais cria na criança o desejo de ler por si mesma, tão irresistível quanto o desejo de começar a andar sozinha. A melhor demonstração disso é o fato de que, muitas vezes, a criança para a qual se lê à noite, antes de dormir, pede para ficar sozinha, só mais um pouquinho, com o livro entre os joelhos abertos, olhando-o, refazendo o que o papai ou a mamãe acabam de fazer, tentando encontrar o eco mágico das palavras lidas.
Nessa afirmação de Morais (1996) podemos perceber a referência ao que é
subjetivo, ou seja, a importância do outro na vida da criança, o que nos faz pensar
nos estudos de Winnicott em relação à influência da família e do ambiente como
facilitadores no desenvolvimento emocional da criança.
Ainda quanto ao processo da aprendizagem da leitura e à influência subjetiva
de outra pessoa, Morais (1996) propõe que “o primeiro passo para a leitura é a
audição de livros”. Essa audição desenvolve-se em três níveis: no primeiro, o nível
cognitivo, por meio da experiência dos outros, é possível estabelecer associações
com a própria vivência, ajudando a ensinar e a compreender os fatos, as
informações, elaborando os roteiros e os esquemas mentais. No segundo, o nível
lingüístico, esclarecem-se as relações entre a linguagem escrita e a linguagem
falada, auxiliando no sentido da leitura, na fronteira entre as palavras, na recorrência
das letras e dos sons. Isso permite à criança ampliar a disposição das palavras e o
desenvolvimento de frases e de textos, levando-a a aprender a parafrasear, dizer de
outra maneira o que compreende. No terceiro nível, temos o afetivo, mediado pela
confiança e pela identificação da voz daqueles que lêem para a criança. A partir da
relação afetiva haverá um incentivo nos níveis cognitivo e lingüístico, que se
manifesta na leitura dos pais, quando estes, com paciência, explicam partes
obscuras da história, ou mesmo, por diversas vezes, repetem as histórias favoritas
da criança, favorecendo, assim, a melhor fixação dos aspectos formais do texto e
das relações entre os signos e a fala.
Morais (1996) propõe que a leitura em voz alta de livro de histórias deve
existir não apenas por parte dos pais, mas também como uma atividade das
escolas. Concordamos com Morais (1996, p.172) quando o autor diz que “o sucesso
da aprendizagem da leitura está correlacionado positivamente com o estímulo
intelectual e ‘literário’ fornecido pela família”.
Petit (2006a) ressalta também que o gosto pela leitura não se relaciona ao
nível socioeconômico da família, mas com a intimidade que esta tem com a leitura,
uma vez que o gosto pela leitura se transmite de uma geração para outra. Segundo
essa autora, para que a criança seja um bom leitor, é muito importante a convivência
física precoce com os livros, a possibilidade de manipulá-lo, para que este não seja
investido de poder e provoque medo. As inter-relações que permeiam o livro são
muito importantes, especialmente as leituras em voz alta, em que os gestos de
ternura e os tons das vozes se misturam a palavras daquele idioma narrado.
Petit (2006a) conta que, na França, as crianças que ouvem histórias, lidas por
sua mãe, todas as noites, têm o dobro de possibilidade de se tornarem grandes
leitores, em comparação àquelas que não passam por essa experiência. A
importância de ver um adulto ler com paixão faz parte do relato dos leitores e, assim,
alguém pode dedicar-se à leitura porque viu um parente ou um adulto que lhe inspira
afeto submergir nos livros. Desse modo a leitura aparece como meio de aproximar-
se das virtudes que ela mesma lhe concede.
Idéia semelhante é defendida por Barone (in ANDRADE E FRANCO, 2006),
quando afirma que:
[...] ler é uma necessidade imperiosa do homem: faz parte do processo de humanização e de sobrevivência; inicia nos primeiros contatos mãe-bebê e se prolonga na vida contribuindo de maneira importante para a constituição do sujeito humano (BARONE in ANDRADE E FRANCO, 2006, p.90).
Também Penac (1993, p.144) compartilha a mesma a idéia, dizendo que “a
leitura humaniza o homem”, pois “tornamo-nos um pouco mais humanos, (...) um
pouco mais solidários com a espécie”, e assim:
[...] a leitura não é um ato de comunicação imediata, é, certamente, um objeto de partilhamento [...] aquilo que lemos de mais belo deve-se, quase sempre, a uma pessoa querida. E é a essa pessoa querida que falamos primeiro. Talvez porque, justamente, é próprio do sentimento, como do desejo de ler, preferir. Amar é, pois, fazer dom de nossas preferências àqueles que preferimos. E esses partilhamentos povoam a invisível cidadela de nossa liberdade. Somos habitados por livros e amigos (PENAC, 1993, p.84).
Ressaltamos e concordamos que os contextos culturais influenciam nas
práticas de socialização das famílias. De acordo com Teberosky (2003,p.19), “nas
famílias onde ocorre o que denominamos práticas de leitura, os adultos contribuem
para o desenvolvimento do conhecimento sobre a escrita e sobre a linguagem
escrita”. A leitura de histórias tem uma função lúdica e criativa e estabelece-se como
atividade prazerosa, permitindo um importante momento de aprendizagem. “Com
essa atividade, as crianças aprendem que a linguagem dos livros tem suas próprias
convenções, e que as palavras podem criar mundos imaginários para além do aqui e
agora” (TEBEROSKY, 2003, p. 20).
Mas o que pensar daquelas crianças que vivem situações não facilitadoras
para a aprendizagem da leitura e da escrita, por exemplo, a pobreza extrema, a
desintegração familiar, o analfabetismo dos pais, as experiências desastrosas na
escola, a má preparação dos professores? Será possível pensar em algo que possa
favorecer a aprendizagem e o gosto pela leitura? O presente trabalho pretende
oferecer algumas respostas a essa questão, tecendo algumas articulações com o
pensamento de Winnicott. Antes, porém, será necessário recortar da obra desse
autor contribuições para nosso argumento.
1.2 A IMPORTÂNCIA DO AMBIENTE: CONTRIBUIÇÕES WINNICOTTIANAS
Winnicott é um autor que valoriza a importância do ambiente no
desenvolvimento do sujeito e posiciona o seu pensamento na importância da família
e do meio na vida da criança.
Winnicott (1975), criticando a forma costumeira de definir a natureza humana
somente em termos de um interno e um externo, insiste na necessidade de se
enunciar uma área intermediária de experimentação, ou seja, a terceira parte da vida
do ser humano, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida
externa do indivíduo.
Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpetua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas (WINNICOTT, 1975, p. 15).
Para o autor, essa área surge do contato mãe-bebê, “constitui a maior parte
da experiência do bebê, e através da vida, é conservada na experimentação intensa
que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico
criador”. (WINNICOTT, 1975, p. 30).
A esse respeito, esclarece Winnicott (1975, p.26):
Desde o nascimento, portanto, o ser humano está envolvido com o problema da relação entre aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido e, na solução desse problema, não existe saúde para o ser humano que não tenha sido iniciado suficientemente bem pela mãe. A área intermediária a que me refiro é a área que é concedida ao bebê, entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade. Os fenômenos transicionais representam os primeiros estádios do uso da ilusão, sem os quais não existe, para o ser humano, significado na idéia de uma relação com um objeto que é por outros percebido como externo a esse ser.
Podemos observar que, segundo Winnicott (1975, p.141), “se a mãe puder
proporcionar as condições corretas, todo e qualquer pormenor da vida do bebê
constitui-se o exemplo do viver criativo”.
Por meio de um processo maturacional, o bebê, com um sentimento absoluto
de confiança na sua mãe, introjetado na experiência da ilusão, começa a lidar com a
separação do objeto e fazer uso deste, iniciando uma transição da dependência
absoluta para a dependência relativa, e o ingresso no Espaço Transicional ou
Espaço Potencial. Segundo Winnicott (1975, p.142):
[...] o espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência, que conduz à confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo.
O autor ainda ressalta a importância de levar em conta a ação do ambiente
acolhedor propício ao desenvolvimento do indivíduo, pois reconhece que, de início,
não existe o bebê, mas o bebê e sua mãe.
Winnicott (1990) dedica uma especial atenção aos estágios iniciais do
desenvolvimento emocional da criança. A evolução do processo de maturação da
criança depende da provisão favorável do ambiente. O sentido de “processo de
maturação”, para Winnicott (1990), refere-se à evolução do ego e do self, o que
inclui a história completa do id, dos instintos e suas vicissitudes, e das defesas do
ego relativas ao instinto.
Esse processo só será possível quando a mãe exerce com o bebê a
preocupação materna primária que também é denominada de mãe suficientemente
boa, mãe devotada comum ou ambiente facilitador que lhe possibilite um ambiente
suficientemente bom. Essa preocupação materna primária é a capacidade de a mãe
“adoecer sadiamente”, e, como diz Winnicott (2002), é um estado especial que
acontece com a mãe quando ao final de seus nove meses de gravidez está
totalmente voltada para o seu bebê e sabe o que ele esta sentindo, podendo este
estado perdurar por algumas semanas ou meses.
Assim, é necessária uma adaptação e disponibilidade da mãe ao bebê como
e quando ele necessitar através do holding/sustentação e do handling/manejo.
A comunicação dessa atuação da mãe é silenciosa e o bebê vai percebendo
os efeitos da confiabilidade no decorrer do seu desenvolvimento. Para Winnicott
(2002, p.87), “o bebê não tem conhecimento da comunicação, a não ser a partir dos
efeitos da falta de confiabilidade”.
Para que o bebê possa alcançar a sua individualidade, o Eu-sou, como fala
Winnicott (1990), é necessário a existência de mãe suficientemente boa, que permite
à criança a ilusão de ter criado o seio que ela lhe fornece , propiciando à criança
“ser-o-seio”. Essa mãe vai ao encontro das necessidades do bebê e fornece a ele a
ilusão da onipotência infantil, encorajando-o, dessa maneira, a desenvolver o seu
self (ser). Essa adaptação quase completa da mãe às necessidades do bebê
fornece a este a oportunidade de conceber que o seio faz parte dele mesmo. Essa
experiência também lhe permite viver a onipotência e o seu narcisismo, dando-lhe “a
ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria
capacidade de criar” (WINNICOTT, 1975, p. 27). Dessa maneira, a ilusão nasce do
interjogo na mente da criança do que é subjetivo (quase alucinação) e do que é
objetivamente percebido (realidade concreta ou realidade compartilhada).
Assim, num constante processo de mutação e desenvolvimento, a capacidade
da mãe em ir ao encontro do bebê permite-lhe uma trajetória de vida contínua,
podendo assim vivenciar situações fragmentárias ou harmoniosas, a partir da
confiança que deposita na mãe. Entretanto, para que isso realmente possa se dar,
muitos acontecimentos importantes devem se passar até que a criança consiga
formar uma membrana divisória entre o Eu e o não-Eu, ou até que o estágio do Eu-
sou possa ser alcançado (estágio de dependência relativa).
Segundo Winnicott (1975), com o crescimento e o desenvolvimento do bebê,
a mãe, após possibilitar a oportunidade da ilusão, dentro do estágio de adaptação,
passa gradualmente a permitir que aconteçam algumas “falhas” naturais que fazem
parte do dia a dia e que ajudam o desenvolvimento do bebê de forma saudável,
facilitando o processo de desilusão e de desadaptação do bebê.
A “falha” materna inaugura o “princípio da realidade”, uma vez que a mãe,
sem sabê-lo, permite ao bebê sentir e experimentar as próprias necessidades,
contribuindo para o desenvolvimento de seu sentimento de self (um self que é o eu
separado da mãe). O bebê que aceita as falhas da mãe e que consegue uma boa
adaptação poderá formar uma concepção da realidade e até mesmo desenvolver
uma capacidade de experimentar uma relação com a realidade externa, passando a
ter maiores integração e maturidade emocional. Assim, o bebê pode estabelecer um
sólido mundo interno, com base nas suas próprias experiências e vivências,
conseguindo ter acesso ao princípio de realidade a partir de seu próprio princípio de
prazer. Pode-se dizer que a criança que se desenvolve a partir de seu centro de
gravidade, a partir de si mesma, e não com as invasões maternas, poderá tornar-se
capaz de uma percepção criativa do mundo, fazendo sentir-se real e ao mesmo
tempo sentir que a vida vale a pena.
Muitas vezes, no decorrer do desenvolvimento da criança, surgem falhas no
ambiente que a levam a permanecer paralisada em determinada fase de
dependência absoluta ou relativa, impedindo que prossiga em seu processo de
aprendizagem.
A variável nos seres humanos de como “os indivíduos vivem criativamente e
sentem que a vida merece ser vivida, ou, então, que não podem viver criativamente
e têm dúvidas sobre o valor de viver”, segundo Winnicott (1975, p.102/103), está
diretamente relacionada à qualidade e à quantidade de provisões ambientais no
começo ou nas fases primitivas da experiência de vida de cada bebê.
A criatividade para Winnicott (1975, p.99) relaciona-se à forma como o
indivíduo vive a realidade externa. No relacionamento de submissão com a realidade
externa, o mundo é reconhecido apenas como algo a que se deve ajustar ou
adaptar-se. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à
idéia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Viver criativamente
constitui um estado saudável, mas a submissão é uma base doentia para a vida.
1.3 INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA: A OFICINA DE LEITURA COMO UM
ESPAÇO POTENCIAL
A partir dessas idéias de Winnicott (1975), podemos pensar na realidade de
uma criança que não consegue aprender a ler e a escrever, esperando que a leitura
e a escrita sejam feitas pelo outro e se colocando num estado de dependência e
submissão. Tais crianças muitas vezes têm dificuldade de ser ativas e
independentes no processo de aprendizagem. Elas são capazes de decodificar um
texto, mas não propriamente de fazer uma leitura, pois o sentido lhes escapa. No
entanto, sabemos que para aprender a criança deve se lançar ao jogo da
aprendizagem e que não basta se submeter.
Saber ler e escrever nas sociedades modernas é fundamental para a
inserção social do sujeito. De posse da leitura, o sujeito não é mais o mesmo. Pela
leitura ele pode entrar em contato com o passado, conhecer sua realidade e melhor
se projetar no futuro. A leitura contribui para aquilo que Winnicott (1975) considera o
viver criativo, de maneira que não saber ler e escrever pode significar um déficit
importante para o sujeito, uma ausência de vida cultural.
Diante do exposto, surge a questão: A Oficina de Leitura de literatura infantil
pode ser entendida como Espaço Potencial que facilita o desenvolvimento da leitura
e da escrita?
A nossa proposta de trabalho é discutir uma experiência de Oficina de Leitura,
entendida como um Espaço Potencial, com apoio no pensamento de Winnicott,
porque o autor em sua obra oferece bastante subsídio que fundamenta a
experiência que vamos tratar: a “Oficina de Leitura”.
Aproximamos a literatura do Espaço Potencial, conforme desenvolve
Winnicott. Acreditamos que o contato com a literatura gera um Espaço Potencial, na
medida em que a literatura, com sua função de humanização, defendida por
Candido, se aproxima do “viver criativo”, ou “estar vivo” de Winnicott. Postulamos a
sobreposição dos conceitos Oficina de Leitura e Espaço Potencial, ancoradas na
concepção de Winnicott, quando este afirma ser a experiência cultural uma extensão
do Espaço Transicional/Potencial, espaço que aconteceu na relação mãe-bebê.
Parece-nos legítima a aproximação feita e a consideração da Oficina de
Leitura como um espaço capaz de promover a elaboração criativa das vivências.
Pensamos a Oficina de Leitura, como um espaço de leitura de diversas
histórias de literatura infantil, com possibilidade para despertar a criatividade pelo
uso e pela experimentação de diversos objetos existentes nesse espaço, permitindo
que a criança reorganize o seu self, ressignifique seus traumas e reelabore suas
perdas.
Essa idéia não é nova. Gilberto Safra (1984) em sua Dissertação de
Mestrado, depois publicada no livro Curando com histórias, apóia-se na idéia de
usar histórias com fim terapêutico. O autor, percebendo a impossibilidade de
estender o atendimento psicológico a toda população que dele necessita, trabalha
com os pais, construindo histórias cujos conteúdos retratam as dificuldades dos
filhos, e que deverão ser contadores repetidamente.
Essa idéia está apoiada em Winnicott (2005), quando diz que podemos
estender o conhecimento da Psicanálise para contextos diferentes e modificando a
técnica, “quando não for possível, ou houver argumentos contra, então se pode criar
uma modificação adequada”. É dessa maneira que entendemos o Atendimento
Psicopedagógico, orientado pela Psicanálise. Vejo semelhanças e aproximações
entre psicanálise e o conceito de humanização de Antonio Candido.
Assim, este trabalho propõe como objetivos: estudar a Oficina de Leitura
como um Espaço Potencial capaz de promover o desenvolvimento do viver criativo
de crianças com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita, favorecendo
esta aprendizagem, bem como a elaboração e construção de uma narrativa pessoal.
1.3.1 A importância da voz
Para Cabrejo Parra (2004) anterior a aprendizagem deste comportamento
ocorrido no caso deste bebê com o livro, existe uma capacidade nesta criança que a
permite manejar as informações do mundo físico e do vasto mundo da subjetividade.
Esta capacidade forma-se no quarto mês da sua gestação, quando a capacidade
auditiva do feto se organiza de maneira que as informações sonoras já são
acessíveis ao seu aparelho auditivo. Com isso, o bebê é capaz de dominar as
informações ligadas à voz para fazer emergir o sentido. Assim, ele já poderá
discriminar a voz de sua mãe, e isso mostra que o bebê já coloca em movimento o
seu pensamento. Com esta capacidade ele se situa como um sujeito no mundo da
intersubjetividade.
Com relação a esse fato, o autor esclarece que o bebê também nasce com a
capacidade de reconhecer seus congêneres, e para que haja um reconhecimento do
rosto da mãe, será necessária uma mobilização da atividade psíquica do bebê, pois
“um rosto não é simplesmente algo como uma boca, um nariz e dois olhos, mas um
‘livro’ que permanentemente envia informações que o bebê domina a cada instante,
sem que possamos perceber”5 (CABREJO PARRA, 2004, p.1). Assim, existe o
tempo todo dentro da pessoa “um trânsito de se ler três livros: o livro da
intersubjetividade, o livro do mundo e seu livro interno”6 - (CABREJO PARRA, 2004,
p.2).
Cabrejo Parra (2004) afirma que com essa capacidade de ler a voz e o rosto,
o bebê põe em movimento uma atividade interpretativa que permanecerá como
centro da criação dos sentidos para a psique humana. Este fato coloca o ato da
leitura na origem da atividade do pensamento, e ele pode ser considerado como um
ancestral necessário para a leitura de um texto escrito, uma vez que sem essa
primeira leitura, outras modalidades de leitura não poderiam se realizar.
Desta maneira, para este autor, desde o nascimento cada ser humano
começa a escrever seu próprio livro psíquico, por meio do seu desenvolvimento
psíquico, um livro que permanecerá para sempre inacabado. O autor fala do livro
5Tradução da autora de: “[...] uma cara no es simplesmente algo con una boca, una nariz y dos ojos, sino un ‘libro’ que permanentemente envia informaciones que el bebé maneja a cada instante, así no nos demos cuenta” 5 (CABREJO PARRA, 2004, p.1). 6 Tradução da autora de: “en tránsito de leer tres libros: el libro de la intersubjetividad, el libro del mundo y su libro interno” (CABREJO-PARRA, 2004, p.2).
como uma metáfora, porque o homem não inventou o livro por acaso, mas já o tinha
dentro de si mesmo. E, graças a este livro psíquico, simbólico, que já está enraizado
na psique de todo ser humano, que se poderá compreender mais tarde todos os
demais livros que existem em todas as culturas do mundo.
Dentro desta mesma idéia, Cabrejo-Parra (2004, p.2), define a literatura como
“a leitura da leitura, porque o escritor, finalmente, escreve lendo seu próprio livro
psíquico. O ato de escrever não vem do nada, vem de alguma parte que poderia ser
o livro psíquico do autor que [se] lê no tempo que escreve”7.
Nesse sentido tínhamos como hipótese o fato de que as leituras das histórias
que a psicopedagoga fazia na Oficina de Leitura serviriam para a criação desse livro
interno das crianças que faziam parte do grupo. Na Oficina de leitura a leitura de
histórias permitiu a percepção criativa, isto é, a experiência da ilusão, auxiliando a
criança a construir a subjetividade na percepção objetiva da realidade e a partir daí a
possibilidade de simbolização.
Retomando, Cabrejo Parra (2007) esclarece que o primeiro livro para o bebê
é o rosto da mãe, a sua voz e os seus gestos. O bebê começa a construir
significados pela entonação da voz e tudo o que o rosto transmite, inscrevendo-se
assim em seu espírito.
Dessa maneira, o bebê aprende a língua, que é um conjunto de operações
mentais muito abstratas que constituem o sujeito, e segundo Cabrejo Parra (2007)
“entrar em uma língua é entrar na cultura, saímos do ventre da mãe para cair no
ventre da língua e permanecemos ali porque a língua se transmite de geração em
geração, é um patrimônio imortal” (CABREJO PARRA, 2007, p.1).
Logo, quando lemos para o bebê, esse está em posição de escuta, quer
compreender algo, existindo uma intencionalidade que se integra ao processo.
Nesta situação, a prosódia8 da língua, o ritmo das palavras lidas instala-se
rapidamente, afirma Cabrejo Parra (2007).
Vemos, nesse sentido, a importância da internalização de uma linguagem
poética, o ritmo, a harmonia da língua, a sonoridade, isto é, a musicalidade das
7 Tradução da autora de: “la lectura de la lectura porque el escritor, finalmente, escribe leyendo su próprio libro psíquico. El acto de escribir no viene de la nada, viene de alguna parte que podría se el libro psíquico del autor que [se] lee al tiempo que escribe” (CABREJO-PARRA, 2004, p.2). 8 Prosódia segundo o dicionário Houaiss (2004) significa parte da gramática tradicional que se dedica às características da emissão dos sons da fala, como o acento e a entonação.
palavras. Podemos até perder na oralidade, mas a organização do texto literário
marca bastante esta forma, que é importante para estruturar futuramente o escritor
na sua língua pátria.
Cabrejo Parra (2007, p.2) diz que a criança entra em uma língua quando
começa a balbuciar e tentar falar as primeiras palavras (ta, ta, ma, ma). A música da
língua e a poesia nascem da mesma matriz simbólica. Por isso, antes de dar a
gramática explicita às crianças, devemos contar-lhes contos, porque por menor que
seja o conto, [nele] está presente toda uma língua”. A leitura em voz alta é uma
maneira de indicar às crianças que existe um significado no textos. Para Cabrejo
Parra (2007, p.3-4):
As crianças que não descobrem a tempo que existe um significado nos textos terão uma aproximação tormentosa com os livros, um sofrimento absoluto. Mas, com uma leitura em voz alta existe uma entrada prazerosa e livre na língua e na cultura, com certeza o destino desse sujeito será diferente.
Nesse sentido lembramos Barone (1993) quando realizou o atendimento de
uma criança com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita, através da
leitura de livros infantis, fábulas ou histórias. Muito interessante neste trabalho foi a
reação de satisfação de seu paciente que maravilhado ouvia e se envolvia com a
sua (da leitora) voz, no decorrer das leituras. Para Barone (1993, p.122) essas
atividades “favoreciam a expansão narcísica fortalecendo o sentimento de si, e
abriam espaços para a identificação” do seu paciente (BARONE, 1993, p.122).
Também neste mesmo texto, a autora, discutindo a importância da leitura de textos
literários para a constituição psíquica, faz referência a Anzieu que esclarece essa
situação como:
[...] a existência mais precoce de um espelho sonoro para a edificação do eu, que é a imagem especular do corpo unificado estudada por Lacan e o espelho do rosto da mãe desenvolvido por Winnicott [...] [...] de uma pele auditivo-fônica, e sua função na aquisição, pelo aparelho psíquico da capacidade de significar e depois de simbolizar. Antes que o olhar e o sorriso da mãe que alimenta e cuida do bebê produzam na criança uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptível e que seja interiorizada para reforçar seu self e esboça seu ego, o banho melódico (a voz da mãe, suas cantigas, a música que ela proporciona) põe à disposição um espelho sonoro do qual ele se vale a princípio por seus choros ( a voz materna acalma em resposta), depois por seus balbucios e, enfim, por seus jogos de articulação fonemática ( ANZIEU apud BARONE,1993.p.122).
1.3.2 A importância do livro
Podemos lembrar que tínhamos como instrumento principal, mas não o único,
a leitura de histórias de literatura infantil. Vários livros, com diferentes histórias que
tratavam de questões diversas, eram levados às sessões e as crianças os
manuseavam livremente, permitindo-se sempre um espaço de liberdade e de
confiança. No Anexo “A” constam todos os títulos das histórias que foram lidas na
Oficina de Leitura. As histórias que foram significativas para as crianças serão
apresentadas com um pequeno resumo para melhor entendimento de nossas
análises no Apêndice A.
Na nossa Oficina de Leitura era muito importante a presença física do livro,
como um objeto cultural necessário para que as crianças pudessem ter acesso à
humanização. Devido à carência de vida dessas crianças, pais analfabetos, com
pouca condição de acolhimento nesta área, e sofrendo carências de toda ordem,
como já relatamos, elas não tinham acesso a este importante objeto cultural.
Como explica Petit (2008, p.12-13), o livro pode “dar lugar a sociabilidades
abertas, onde a oralidade e a escrita se reconciliem, e onde cada um possa
encontrar seu lugar, contribuindo com o que lhe foi transmitido, ou simplesmente
escutando e deixando correr sua imaginação (...) a leitura permite abrir um campo
de possibilidades, inclusive onde parecia não existir nenhuma margem de manobra”.
Também, para Gillig (1999) o livro infantil é um dos presentes importantes
oferecidos a algumas crianças pelos pais. Estas crianças podem assim conhecer um
livro e suas histórias antes mesmo de aprenderem a ler e escrever, caso contrário, o
livro permanecerá um objeto misterioso a ser descoberto.
Reyes (2007) também fala sobre a importância, desde a mais tenra infância,
da convivência com o livro, da necessidade que a criança tem de morder, pegar e
manipular o livro. A autora relata a cena de um bebê de oito a nove meses de idade
que sozinho faz de conta que lê, passa as páginas do livro que está em suas mãos,
como se estivesse imitando um adulto, na voz, no gesto, na postura e na atitude.
Para que isto pudesse acontecer, a autora esclarece que foi preciso que uma figura
intima, importante na vida da criança, tenha mostrado e ensinado, por diversas
vezes, essa atitude e comportamento com o livro.
Também, podemos pensar na presença física do livro que neste caso foi
utilizado como uma espécie de Objeto Transicional, na intenção de oferecer um
objeto que pudesse favorecer o trânsito para a simbolização. Para Winnicott (1975)
o uso desse objeto favorece a passagem entre a inabilidade inicial de um bebê e sua
crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade.
Outros autores também chamaram a atenção para o que comentamos aqui,
na clínica psicopedagógica. Por exemplo, assim comenta Mazzolini (1999, p.146):
A possibilidade de fazer uso dos objetos (pessoais ou compartilhados), durante a sessão, tem como meta auxiliar o amadurecimento emocional do indivíduo, uma vez que facilita a diferenciação do que é parte de seu psiquismo interno, do que é parte do mundo externo compartilhado com a cultura e do que é a parte intermediária.
1.3.3 A importância da literatura como um espelho
Para Cabrejo Parra (2004), o que acontece com o bebê, no início do
nascimento da sua linguagem oral, também ocorre com as histórias da literatura em
geral. Elas também oferecem uma variedade de espelhos que permitirão as crianças
olharem-se através da atividade do pensamento dos autores dos contos. Desta
maneira:
As histórias não são outra coisa senão a colocação em cena de movimentos psíquicos inerentes à espécie humana. Elas utilizam um psicodrama da humanidade em que cada indivíduo poderá jogar seu próprio psicodrama. E se todas as culturas estão inventando contos é porque todos respondem a esta necessidade. Não se pode imaginar uma língua sem literatura9 (CABREJO PARRA, 2004, p.4),
O autor esclarece que um mesmo livro suporta várias interpretações e produz
montagens inesgotáveis. Assim, as pessoas que lêem histórias para as crianças
propõem uma montagem diferente do mesmo livro. Elas possuem o que Cabrejo
Parra (2004) chama de fantasmas psíquicos: o amor, o ódio, os ciúmes. Todos
esses fantasmas psíquicos fazem parte da espécie humana, e as histórias, de
maneira indireta, possibilitam a montagem destas cenas, mostrando para as
crianças que esses fantasmas são comuns a todos, não havendo necessidade de
preocupações, permitindo a simbolização de todas elas de maneiras diferentes.
9 Tradução da autora de: “[...] las historias no son outra cosa que la puesta em escena de movimentos psíquicos inherentes a las especie humana. Éstas utilizam um psicodrama de la humanidad en el cual cada individuo podrá jugar su próprio psicodrama. Y si todas las culturas han inventado cuentos es porque estos responden a necessidades. No se puede imaginar uma lengua sin literatura” (CABREJO-PARRA, 2004, p.4)
Assim, para Cabrejo Parra (2004, p.5) a montagem destas cenas é um
trabalho simbólico que:
[...] leva a criança a um outro espaço psíquico, a outro tempo, retomando assim a temporalidade de uma língua escrita e oral. Na língua oral toda organização está marcada pela enunciação, o passado e o futuro devem ter relação com o agora. A temporalidade da língua se constrói dentro do texto: ‘a próxima semana’ em um texto escrito não quer dizer o mesmo que ‘a próxima semana’ em um texto oral.10
Logo o autor afirma que “aprender a escrever, a ler e a compreender o que
está escrito é aprender uma nova modalidade de tempo. Os contos deslizam em
uma temporalidade particular, remetendo-as para um tempo distante e único com a
fórmula ‘era uma vez’. Assim, a leitura tem em particular o poder de reunir as
informações da intersubjetividade, isto é; da relação entre o mundo interno do leitor
(ou ouvinte) com o pensamento que o escritor montou na cena do texto. Se não
ocorreu essa intersubjetividade a leitura não poderá acontecer porque a
intersubjetividade é inerente à leitura.
Segundo Cabrejo Parra (2004, p.5):
O pensamento do autor, a atividade psíquica do outro, põem em movimento a minha. Toda leitura é um ato de amor porque sempre põe para funcionar o pensamento de um autor ao mesmo tempo em que ponho em movimento minha própria atividade psíquica. Pôr em movimento o pensamento de um autor que não está presente é muito importante, é uma espécie de compromisso dos vivos, uma maneira de dizer que o pensamento é imortal e se põe em movimento quando outro pensamento o solicita. Despertar o interesse das crianças em ler o mundo psíquico lhes permite interessar-se também na leitura do livro. É porque nos interessamos na leitura do próprio livro psíquico e dos outros que o destino humano toma forma11.
Podemos perceber que a leitura está no centro do movimento do
pensamento, tanto para crianças como para adultos. A leitura sempre oferece
10 Tradução da autora de: “[...] lleva al niño a outro espacio psíquico, a outro tiempo, retomando así las temporalidades de la lengua escrita y oral. Em la lengua oral toda organización está marcada por la enunciación, el pasado y el futuro deben tener relación com el AHORA. La temporalidad de la lengua escrita se construye dentro del texto: ‘la semana próxima’ em um texto escrito no qiere decir lo mismo que ‘la semana próxima’ em uno oral” (CABREJO-PARRA, 2004, p.5) 11
Tradução da autora de: “El pensamiento del autor, la actividad psíquica del outro, pone em movimiento la mía. Toda lectura es um acto de amor porque siempre pongo a funcionar el pensamiento de um autor al mismo tiempo que pongo em movimiento mi propia actividad psíquica. Poner em movimiento el pensamento de um autor que no está presente es muy importante, es uma especie de compromisso de los vivos, uma manera de decir que el pensamiento es inmortal y se pone em movimiento cuando outro pensamento lo solicita. Interessar a los niños em leer el mundo psíquico les permite interesarse también em la lectura del libro. Es porque nos interesamos em la lectura del próprio libro psíquico y del otros que el destino humano toma forma” (CABREJO-PARRA, 2004, p.5)
pensamentos novos. Da mesma maneira podemos passar toda a vida tentando ler o
que se passa dentro de nós mesmos, que sempre teremos diferentes formas para
essa leitura. “A leitura deste livro psíquico sempre introduzirá uma dúvida, um talvez
permanente”12, explica Cabrejo Parra (2004, p.5).
Em um sentido semelhante, Moisés (1982, p.26) estabelece que:
[...] o texto literário registra o sonho impossível, sonho de cada um no mais recôndito do ser, guarda uma visão da realidade, de modo que, ao percorrê-lo com o olhar, contemplamos uma visão de mundo. A forma carrega uma visão do real, assinalaria o esforço simbolizador de abranger a totalidade do real visto por um sujeito.
O texto literário, como um saber, se expressa por metáforas, e o leitor terá de
traduzi-las, para poder apossar-se do conhecimento ali colocado, diz Moisés (1982,
p.27), justificando a existência do texto literário pela “impossibilidade de se aceder
diretamente à realidade, impossibilidade não somente do leitor, mas do próprio
sujeito do conhecimento: ele arquiteta o texto para conhecer a realidade, o leitor o
percorre com o fito de lograr o conhecimento desejado”.
1.3.4 A importância da organização da Oficina de Leitura como um Espaço
Potencial
Para a realização desta Oficina de Leitura, tínhamos como ritual a colocação
de tapetes no chão formando uma roda, talvez podendo significar, na realidade, um
espaço de segurança, onde ali todos poderiam experimentar através das histórias
lidas, momentos de prazer, de reflexão, de identificação, enfim de trocas simbólicas
e afetivas entre todos os participantes.
Com inspiração no Espaço Potencial, criamos esse ritual para a nossa Oficina
de Leitura, propiciando um espaço de segurança que dependia da experiência vivida
entre a psicopedagoga e as crianças com problemas de aprendizagem da leitura e
da escrita, que poderá conduzir à confiança. Esse foi o espaço em que existiu a
possibilidade de se experimentar o viver criativo, como postula Winnicott (1975).
Após a leitura da história, possibilitou-se um processo de reflexão e de
elaboração, no qual a criança podia pensar e falar de seus sentimentos e das 12 Tradução da autora de: La lectura del proprio libro psíquico introduce siempre la duda, un tal vez permanente” (CABREJO-PARRA, 2004, p.5)
representações que se faziam presentes naquele momento, a partir da história lida.
Parece-nos que, de alguma maneira, existia uma identificação da criança com o
conteúdo apresentado na história. As crianças tinham a possibilidade de falar,
desenhar, jogar ou realizar outra forma de expressão que podia ser tomada em
consideração pela psicopedagoga.
Sendo assim, a cada sessão permitiu-se a elaboração de diversas atividades,
como desenhos, confecção de personagens da história com diferentes papéis, lápis,
lápis de cor, giz de cera colorido, tinta guache, cola, tesoura, massa de modelar,
argila, e até mesmo a utilização de jogos. Algumas vezes, também utilizamos a
brinquedoteca da Clínica Psicopedagógica como um espaço para possibilitar a
brincadeira. Percebíamos que dessa maneira as crianças podiam trabalhar
concretamente tudo o que sentiram e pensaram a partir da história lida.
A escolha da história no início era feita pela psicopedagoga procurando
algum vínculo entre o texto e a história das crianças, mas, logo se percebeu que tal
técnica era desnecessária, uma vez que as próprias crianças, muitas vezes
individualmente, outras vezes conjuntamente, logo se apropriavam da escolha do
livro e da história que seria lida naquela determinada sessão.
No decorrer das sessões, as crianças sentiam-se mais à vontade para trazer
suas situações de vida, que eram despertadas pela leitura da história.
Todas as situações trazidas foram devidamente coletadas e registradas a
cada encontro. Lembramos que a análise desses dados será realizada
qualitativamente, sendo interpretados à luz do método psicanalítico, em especial a
partir das contribuições de Winnicott.
1.3.5 A importância de contribuições da Psicanálise à Intervenção
Psicopedagógica
A Psicopedagogia pode trabalhar a partir de diferentes enfoques e, nesse
sentido, observamos diversas formas para lidar com os problemas de aprendizagem,
desde aquelas que enfatizam apenas os aspectos cognitivos e instrumentais da
aprendizagem até aquelas que incluem o sujeito que aprende com suas questões
afetivas e emocionais a partir de uma perspectiva psicanalítica.
A partir da Psicanálise vamos citar dois autores, Barone (2007b) sob a
perspectiva de Fabio Herrmann (2001), e Mazzolini (1999) a partir do pensamento
de Winnicott. Esses autores estão se apoiando em teorias que mostram a
importância da mudança da técnica em função da dificuldade encontrada no
atendimento do paciente e uma necessária adaptação do psicoterapeuta neste
sentido.
Barone (2007b) sustenta a utilização do método psicanalítico – a ruptura de
campo 13 – como um interessante e promissor método para a clínica dos problemas
de aprendizagem. Afirma que apenas a segurança metodológica sustenta o trabalho
do terapeuta que poderá inventar sua técnica através do uso da literatura,
dramatização e outras diante da dificuldade de aprendizagem.
Barone (2007b) fala da mudança da técnica porque está apoiada no método,
ressaltando que podemos variar a técnica porque estamos de posse do método.
Esse modo de entender a interpretação psicanalítica é proposto por Fábio Herrmann
(2001). Esse autor, observando teorias, escolas psicanalíticas e psicoterapias
diversas cujos resultados se assemelham, encontra um operador comum a todos no
método psicanalítico – a interpretação – entendida como a operação do campo
transferencial que visa produzir uma ruptura de campo. O autor entende que o
efeito terapêutico é sustentado pela interpretação, isto é, pela ruptura de campo.
Para Herrmann (2001) nas diferentes escolas o que se faz é uma escuta
descentrada que tem como efeito a ruptura de campo, fazendo surgir novas
representações. Cremos que essa proposta de Herrmann (2001), como o próprio
autor reconhece, amplia o alcance da psicanálise fundamentando uma clínica
extensa, em que o método é o coração do trabalho psicanalítico; e uma vez de
posse do método podemos trabalhar clínicas diferentes.
Nesse trabalho também nos apropriamos do enfoque tratado por Mazzolini
(1999) que em sua Dissertação de Mestrado estudou o manejo clínico dos casos de
dificuldade de aprendizagem através das contribuições da Psicanálise, a partir de
Winnicott, uma vez que segundo as palavras da própria autora “o indivíduo apreende
13
Segundo Herrmann (2001) um campo é aquilo que determina e delimita qualquer relação humana, como o tema ou assunto determina um diálogo. ... Campos são regras de organização, dizem o que faz sentido num assunto e o que não faz parte dele, dizem, sobretudo que sentido faz o que está no campo. Ao se dissolver, por ruptura, o campo mostra, portanto os pressupostos que dominavam uma certa forma de pensar e de sentir, que forças emocionais estavam em jogo e qual a sua lógica
a realidade com todo o seu ser e não apenas com o seu aspecto intelectual
(MAZZOLINI, 1999, p.viii). Logo, o “psicólogo, por meio de um manejo apropriado
dentro da relação terapêutica, poderá auxiliar o indivíduo a restabelecer suas
próprias condições de desenvolvimento de uma forma suficientemente boa”
(MAZZOLINI, 1999, p.vii).
Também apoiadas em Winnicott, as autoras Aiello-Vaisberg e Machado (in
Monzani e Monzani, 2008, p.317) em artigo “Pesquisa Psicanalítica de Imaginários
Coletivos: À luz da Teoria dos Campos” entendem a pesquisa psicanalítica da
seguinte maneira:
Entendendo a pesquisa psicanalítica como adoção de um método que opera a partir da expressão e comunicação que é escutada/acolhida pelo psicanalista, lançamos mão de estratégias facilitadoras da instauração de um campo psicanalítico fora do dispositivo padrão. Tais estratégias permitem o encontro entre pesquisador e participante se faça sob a forma de diálogo lúdico, de modo tal que a entrevista de pesquisa acaba se configurando tal como a psicoterapia, como superposição de áreas de brincar.
Temos, portanto um enquadre clínico diferenciado, ou seja, não interpretativo,
mas, baseado no holding winnicottiano - uma sustentação terapêutica
suficientemente boa, buscando uma adaptação às necessidades de cada paciente e
às necessidades do grupo, no sentido de:
Sustentar o encontro inter-humano é algo que tem sentido quando se tem fé na capacidade criadora humana. Significa que o psicanalista aposta no oferecimento de um ambiente suficientemente bom, que por si mesmo humaniza, simplesmente porque aquilo a ser proporcionado se articulará com o potencial criador do paciente. Nada há a ensinar nesse contexto. Nenhuma pedagogia, nenhuma aprendizagem faz aí sentido. Dar essa sustentação é, de certo modo, acompanhar atenta e devotadamente as necessidades existências do paciente, necessidades que devem ser satisfeitas sob o risco de afetar exatamente o sentimento de ser real e estar vivo (VAISBERG 2004, p.56).
Com base no que postula Winnicott (1975, p.161): “psicoterapia não é fazer
interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a
longo prazo, aquilo que o paciente traz”. Assim, acreditamos que a “Oficina de
Leitura” instaura um campo terapêutico fora do dispositivo padrão da psicanálise. A
psicopedagoga e os pacientes estabeleceram uma forma de diálogo lúdico,
respeitando-se as necessidades dos pacientes, sempre propiciando uma
superposição de áreas de brincar, como estabelece Winnicott (1975, p.59):
A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho
efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é.
Logo, nesse encontro era muito importante que a psicopedagoga pudesse
estabelecer uma relação de confiança com a criança, ora se oferecendo para o uso
e ora se recolhendo, o que poderá facilitar a passagem da dependência para a
autonomia, e, dessa maneira levando-a a criar sua própria aventura de aprender. Tal
idéia parece-nos ir ao encontro do pensamento de Winnicott quando salienta a
importância da presença do terapeuta:
A criança está brincando agora com base na suposição de que a pessoa a quem ama e que, portanto, é digna de confiança, e lhe dá segurança, está disponível e permanece disponível quando é lembrada, após ter sido esquecida. Essa pessoa é sentida como se refletisse de volta o que acontece no brincar (WINNICOTT, 1975, p.71).
Desta maneira, podemos pensar que a função do terapeuta para Winnicott
(1975, p.161) é “devolver ao paciente, em longo prazo, aquilo que o paciente traz”. E
se o terapeuta:
[...] o fizer de forma suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se, para relaxamento (WINNICOTT, 1975, p.161).
Outro autor que se apóia no pensamento winnicottiano é Gilberto Safra (1995,
p.199) que também trata da importância do psicanalista adaptar-se às necessidades
do paciente. Segundo esse autor algumas vezes, “o analista apega-se
excessivamente a uma teoria ou técnica psicanalítica, o que o leva a perder a
flexibilidade necessária para adaptar-se às características do paciente”.
Para Safra (1995), o paciente é um indivíduo com características próprias,
com uma história de evolução psíquica que deve ser observada no processo
psicoterápico. A partir daí o analista poderá estar no nível de regressão desse
paciente e “poderá recriar a sua técnica para que ela se adapte às características
psíquicas apresentadas pelo paciente naquele momento da sessão” (SAFRA, 1995,
p.200).
Safra (1995, p.30) estabelece que “o setting analítico é um instrumento
importante para que o paciente possa encontrar as funções que lhe possibilitarão o
evoluir de sua personalidade, do seu eu”. Segundo este autor, para Winnicott, há
duas pessoas na sala: paciente-bebê e analista-mãe. E, nestes casos, “o setting em
psicanálise representa a mãe, na medida em que transmite segurança ao paciente
pelas funções do holding, a manipulação, a apresentação de objetos que irá
desempenhar e representar ao longo do processo” (Safra, 1995, p.31).
Para Safra (1995) em um processo psicanalítico, existem dois aspectos de
trabalho para ajudar na mobilização, transformação e evolução da personalidade do
paciente. Um que o autor chama de “períodos mutativos”, um trabalho paciente
realizado a cada sessão, com as angústias, as defesas e a transferência, onde as
transformações e insights são conseguidos, no decorrer de um longo período de
trabalho. Outro aspecto é nomeado por Safra (1995) como “momentos mutativos”,
que acontece quando ocorre o encontro da necessidade do paciente com o objeto
procurado, da seguinte maneira:
[...] o paciente sente que o analista lhe dá o holding14 e ele (o paciente) busca expor nessa nova relação uma necessidade que não pode ser satisfeita ao longo de seu desenvolvimento, na esperança de que o analista o compreenda satisfazendo assim, de forma simbólica, o que busca para completar a evolução de sua personalidade (SAFRA, 1995, p.35).
Para que possam acontecer esses “momentos mutativos” o autor ressalta a
necessidade de análise pessoal do pesquisador-psicanalista e também um setting
apropriado, mas principalmente promover a emergência de um “Espaço Potencial
dentro do jogo transferencial que possibilita o aparecimento das condições
necessárias para o momento mutativo” (SAFRA, 1995, p.38). Assim, para o paciente
conseguir buscar o objeto e as funções de que necessita, ele irá regredir até as
etapas do desenvolvimento onde houve uma falha do meio ambiente, havendo um
Espaço Potencial favorável.
O aparecimento na relação analítica do Espaço Potencial acontece quando
existe a possibilidade de o analista estar em contato com o seu paciente, dentro das
necessidades que esse possuía, afirma Safra (1995). Quando existe a confiança na
14 Nota de rodapé da autora: Para Safra (1995, p.199) “holding é a compreensão do analista às flutuações psíquicas do analisando dentro da situação analítica. Compreender o paciente significa não só ser capaz de dar sentido àquilo que o paciente comunica, mas também ser capaz de transmitir ao paciente essa compreensão, de forma que seja possível a ele assimilá-la. É aqui que a conceituação de Winnicott de ‘apresentação de objeto’ mostra-se útil”.
relação terapêutica, dentro do Espaço Potencial, “o paciente regride a um estado de
dependência, esperando que o analista supra as funções necessitadas por ele, a fim
de retomar o seu desenvolvimento psíquico” (SAFRA 1995, p.200).
Para Safra (1995, p.201) “é o encontro da necessidade psíquica do paciente
com a função proporcionada pelo analista que permite ao paciente viver uma
experiência, pela primeira vez, que transforma sua maneira de ver a si mesmo e ao
mundo: o momento mutativo”. Sendo assim, toda a experiência que aconteceu no
setting somada à atitude do analista é simbolizada pela interpretação que será
internalizada pelo paciente, esclarece Safra (1995).
Desta maneira, para a discussão dos dados coletados nessa pesquisa,
ressaltamos a grande importância do Espaço Transicional/Potencial postulado por
Winnicott, quando afirma que:
O Espaço Potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz a confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo. [...] A partir daí, talvez seja possível perceber quão importante pode ser para o analista reconhecer a existência deste lugar, o único em que a brincadeira pode ser iniciada, lugar este encontrado no momento da continuidade-contigüidade em que os fenômenos transicionais se originam.
(WINNICOTT, 1975, p.142-143).
Mas nem sempre é possível, para uma criança, o encontro de um espaço
dessa natureza capaz de fortalecer seu sentimento de estar vivo e de que a vida
vale a pena ser vivida.
Muitas vezes, as crianças que não conseguem aprender a ler e escrever,
vivem um abalo em seu sentimento de existir, uma vez que na vida cotidiana, nos
tempos atuais, a leitura e a escrita são fatores indispensáveis para inserção na
nossa sociedade. Quando esta aprendizagem não ocorre, a criança fica em uma
posição de desvalia o que lhe acarreta um pesado ônus, despertando o sentimento
de desvalorização em seu ambiente familiar e escolar.
Considerando, a partir das colocações de Winnicott (1975) sobre o Espaço
Potencial, a possibilidade de estabelecimento de vínculo entre o viver criativo e o
viver propriamente dito, propomos ser o espaço da Oficina de Leitura capaz de
favorecer o sentimento que a criança tem de que a vida é real e significativa.
Assim, podemos supor que o espaço oferecido pela Oficina de Leitura
favorece a criatividade e sustenta várias experiências humanas necessárias no
desenvolvimento do self e por diversos motivos. Primeiro porque se constitui como
espaço de acolhimento e confiança (holding). Segundo porque mediado por um
produto cultural – livro – altamente valorizado. E, por último porque o texto literário
conforme foi amplamente defendido há pouco facilita o processo de humanização.
Nesse sentido pensamos ser legítimo aproximar a experiência da Oficina de Leitura
ao Espaço Potencial de Winnicott. Ler histórias para a criança possibilitar o “viver
criativo” conforme Candido e o “estar vivo” de Winnicott.
O verdadeiro sentido da realização da Oficina de Leitura era restabelecer o
viver criativo a partir de uma realidade: a leitura de literatura infantil para crianças
com problemas de aprendizagem da leitura e da escrita, possibilitando talvez a sua
própria cura, ou seja, se constituir como um sujeito capaz de aprender a ler e
escrever.
Sobre o viver criativo retomamos a idéia winnicottiana a partir de Karina
Barone (2004, p.93): “a qualidade da relação estabelecida entre o bebê e sua mãe
passa a ser a base do que foi considerado por Winnicott como o viver criativo”.
Nesse sentido, o impulso criativo existe no indivíduo, não apenas quando um artista
realiza uma obra, mas principalmente quando esse indivíduo consegue, na
realização de aspectos criativos do seu self, colocar-se de forma saudável na
realidade. “De acordo com Winnicott, o estabelecimento de uma ancoragem
saudável do indivíduo na realidade se expressa através do viver criativo”.
Assim, na Oficina de Leitura tínhamos como inspiração as palavras de
Winnicott (2005b, p. 113) quando postulou um comportamento apropriado por parte
do profissional que exerce o tratamento do paciente, no sentido do “cuidar-curar”, ou
seja, responder às necessidades naturais dos pacientes imaturos, que evocam “nas
figuras parentais, a tendência a fornecer condições que incrementem o crescimento
individual” (WINNICOTT, 2005b, p.113).
Para Winnicott (2005b) com o “cuidar-curar” estaremos oferecendo ao
paciente uma experiência de integração, facilitando o seu crescimento, ajudando-o a
encontrar a solução pessoal para problemas complexos na sua vida emocional e nas
suas relações interpessoais.
Assim, a Oficina de Leitura, assemelhava-se a um setting psicoterapêutico
winnicottiano, que comporta os aspectos relacionados à mãe-ambiente, em que a
psicopedagoga oferecia a constância, a previsibilidade e a confiabilidade, tanto no
ambiente físico, como no cuidado pessoal, aceitando ajustar-se às expectativas das
crianças, estabelecendo um diálogo constante que poderia possibilitar o
aparecimento do verdadeiro self.
Na Oficina de Leitura a psicopedagoga tinha como hipótese realizar um
trabalho de maneira suficientemente bem, para permitir que as crianças
descobrissem o próprio self, para assim serem capazes de existir e sentir-se real,
conforme afirma Winnicott (1975, p.161), “sentir-se real é mais do que existir; é
descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si
mesmo e ter um eu (self) para o qual retira-se, para o relaxamento.”
PARTE 2 - A OFICINA DE LEITURA
Não é possível fazer de conta que os temas dolorosos
não existem. Os maus espíritos, a gente os espanta
chamando-os pelo seu nome real... O objetivo da estória é
dizer o nome, dar às crianças símbolos que lhes permitam falar
sobre seus medos. E é sempre mais fácil falar sobre si mesmo
fazendo de conta que se está falando sobre flores, sapos,
elefantes, patos...
Há estórias que podem ser escutadas em disquinhos ou
simplesmente lidas, sozinhas... São as estórias engraçadas.
Outras devem ser contadas por alguém.
Quando se anda pelo escuro do medo, é sempre importante
saber que há alguém amigo por perto. Alguém está contando a
estória. Não estou sozinho.... Nem o livro que se lê e nem o
disquinho que se ouve têm o poder de espantar o medo.
É preciso que se ouça a voz de um outro e que diz:
-- Estou aqui, meu filho...
Rubem Alves
Este capítulo vai relatar a Oficina de Leitura propriamente dita, buscando
apresentar e analisar os dados coletados observando-se a sua potencialidade
mutativa, a partir da fundamentação teórica apresentada em capítulos anteriores.
Desde já, podemos ressaltar que no decorrer dos nossos encontros ocorreu
uma grande evolução na estruturação individual das crianças e por conseqüência na
organização de todo o grupo, mas especialmente nos resultados obtidos na
aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, tentaremos relatar como as crianças se
organizavam desde os primeiros encontros e como ocorreu esse movimento de
crescimento.
Pretendemos fazer essa articulação a partir de dois planos: um tomando em
consideração cada criança individualmente e outro levando em conta o movimento
do grupo ao longo da Oficina de Leitura.
Em nossa discussão estaremos prestando atenção não apenas ao modo de
aproximação do grupo e das crianças, da leitura e da escrita, mas principalmente
considerando as questões subjetivas, e os momentos mutativos ocorridos no
decorrer do processo.
A Oficina de Leitura aconteceu na Clínica Psicopedagógica do Centro
Universitário – UNIFIEO durante um período de dez meses, de fevereiro a dezembro
de 2008, com intervalo de um mês (julho) para as férias. Foram realizadas 35
sessões de duas horas semanais cada.
Os sujeitos atendidos nessa Oficina de Leitura foram cinco crianças com
dificuldade de aprendizagem da leitura e da escrita. Também, é importante ressaltar
que estas crianças, nas primeiras sessões, se recusavam a ler e a escrever, e se
colocavam como se tivessem uma verdadeira aversão em realizar tais atos.
Antes da Oficina de Leitura propriamente dita e no final foi realizada uma
avaliação psicopedagógica15 da qual vou considerar os dados obtidos na anamnese
com os pais e os dados de algumas provas como: o desenho da família, o desenho
do aprendente, desenho da figura humana e a sondagem da leitura e da escrita. Tal
procedimento nos pareceu útil no sentido de apresentar ao leitor o modo como tais
crianças se colocavam - antes e após a Oficina de Leitura - diante da aprendizagem,
especialmente em relação à leitura e à escrita.
Como dissemos, realizamos algumas provas, mas vamos relatar nesse
trabalho apenas aquelas que nos interessam para a nossa análise. Uma
denominada “Desenho da Família”, que tem como consigna: “desenhe uma família”
e como objetivo tentar compreender o lugar ocupado pela criança na família
buscando investigar como se dá a relação entre seus membros como um todo e
individualmente. Outra prova realizada foi a do “Desenho do Aprendente”, que tem
como consigna: “desenhe alguém aprendendo alguma coisa”, e como objetivo tentar
avaliar e compreender como se estabelece o vínculo entre ensinante, aprendente e
15 Neste trabalho não vamos nos estender aos fundamentos teóricos sobre Avaliação Psicopedagógica, uma vez que esta não é a nossa proposta. Aos leitores interessados indicamos as seguintes autoras: Andrade (1998), Fernández (1991) e (2001), Ferreiro (1999), Paín (1985). Lembramos que estas autoras fazem parte das nossas referências bibliográficas.
o objeto de conhecimento. Na última sessão as crianças desenharam a “Figura
humana”, com a seguinte consigna: “desenhe uma pessoa” com o objetivo de
observar o que ele irá projetar no seu desenho.
Realizamos também uma sondagem da escrita para verificar em qual fase da
escrita elas se encontravam antes e depois dos trabalhos da Oficina de Leitura. Isso
inclui não apenas as condições objetivas da aprendizagem, mas ainda as condições
subjetivas.
Neste trabalho fizemos a opção por ler histórias e não apenas contar histórias
por dois motivos: primeiro considerando o que Cabrejo Parra (2004, 2007) fala sobre
a importância da linguagem escrita para o desenvolvimento do psiquismo; e em
segundo lugar pensamos na importância da presença concreta do livro,
considerando que as crianças aqui atendidas são oriundas de contextos familiares
com carências de toda ordem: afetiva, cultural e material. Essas crianças vêm de
famílias cujos pais são premidos por dificuldades diversas e mal conseguem
subsistir, tendo pouca disponibilidade de tempo e recursos pessoais para tratar dos
filhos. Esse fato gera o pouco uso de uma linguagem narrativa com seus filhos,
dificultando a todos a possibilidade de sonhar e pensar. Neste sentido vale a pena
repetirmos o que disse Beatriz Robledo (apud Petit, 2006a, p.152):
Para cidadãos que vivem em condições normais de desenvolvimento, um livro é uma porta a mais que se abre; para aqueles aos quais foram negados os direitos fundamentais, ou que vivem em condições subumanas, talvez um livro seja a única porta que lhes permitiria ultrapassar o limiar e saltar para outro lado.
2.1 A ANÁLISE DE CADA CRIANÇA NO GRUPO.
Vamos iniciar a análise de cada criança do grupo, tomando em consideração
a sua forma de organização e atuação na Oficina de Leitura.
Assim, em nossa análise destacaremos alguns aspectos: a capacidade de
brincar, a capacidade narrativa, a autonomia e a implicação da criança no ato de ler
e escrever bem como questões subjetivas surgidas durante as sessões.
No primeiro aspecto - a capacidade de brincar - estamos considerando outra
dimensão, “não a que se ocupa com a análise dos conteúdos da brincadeira, mas
aquela que se ocupa com o próprio fato ou possibilidade de fazer essa ação”
(FULGENCIO 2008, p.129).
Entendemos o brincar como um aspecto universal da natureza humana,
conforme propõe Winnicott (1975, p.74), em que “o brincar é por si mesmo uma
terapia” e “é no brincar, e somente no brincar, que o individuo, criança ou adulto,
pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo
que o indivíduo descobre e desenvolve o eu (self) (WINNICOTT, 1975, p.80). Assim,
a observação da capacidade de brincar na Oficina de Leitura estava relacionada ao
uso da criatividade16 das crianças.
Dessa maneira para Winnicott (1975) o brincar está relacionado a uma
determinada relação com o mundo, com o trabalho, com as pessoas com quais
convivemos.
E, como esclarece Fulgencio (2008, p.131) “o brincar e a brincadeira
correspondem à possibilidade de habitar uma área intermediária na qual há uma
união e separação do mundo subjetivo e do objetivamente dado, o que certamente
não ocorre o tempo todo”. Segundo esse autor essa é a área do “lugar em que
vivemos; é a área da experiência, em que o brincar se realiza e que mais tarde
compreenderá o espaço da arte, da religião, do trabalho e da vida social em geral”
(FULGENCIO, 2008, p.131).
É nesse sentido que trabalhamos com o brincar na nossa Oficina de Leitura,
um trabalho psicopedagógico realizado na sobreposição de duas áreas do brincar, a
das crianças e a da psicopedagoga. Como diz Winnicott (1975), eram pessoas que
brincavam juntas, e que com isso tinham a possibilidade de construir a totalidade da
sua existência experiencial.
Entretanto, quando isso não acontecia, a psicopedagoga buscava sempre
trazer o paciente para um estado em que poderia ser capaz de brincar. Conforme
Fulgencio (2008, p.133):
O brincar, como modelo para a prática analítica, é concebido em função do encontro com o si-mesmo, da comunicação e da interseção entre a realidade subjetiva e a objetivamente percebida, encontro que contribui para o amadurecimento, uma vez que corresponde a um tipo de integração da pessoa. Esse conjunto de acontecimentos vividos e repetidos na situação analítica permite que o paciente possa tomar a vida como algo que lhe diz respeito, já que esse encontro se dá na área em que ele cria o mundo em
16 Pensamos como Winnicott: “A criatividade que me interessa aqui é uma proposição universal. Relaciona-se ao estar vivo” (Winnicott, 1975, p.98).
que vive, ao mesmo tempo em que se adapta ao mundo objetivamente dado, sem perda significativa da sua espontaneidade.
Dessa maneira vamos relatar como as crianças se organizavam nas
atividades, como transformavam uma atividade em algo lúdico, como propunham as
tarefas para a psicopedagoga, enfim como foi sua vivência criativa na Oficina de
Leitura.
O segundo aspecto a ser observado é a capacidade narrativa. Vamos tomar
em consideração a construção de uma narrativa pessoal da criança, de sua própria
história de vida, retomando pontos traumáticos, dificuldades pessoais nas suas
vivências. Podemos ressaltar apoiados em Petit (2006a), a fundamental importância
da leitura no processo de autoconstrução e elaboração de sentido, levando em
consideração três hipóteses que se entrelaçam e formam uma única experiência:
1) a relação de confiança que permite trocas inter-subjetivas, encontros
personalizados de acolhimento e hospitalidade;
2) a importância em criar uma narrativa interna. Segundo Petit (2006a) as
leituras abrem outro espaço, um tempo de sonho de fantasia que permite
construir um país interno, um espaço de autonomia - a constituição de uma
posição de sujeito. O que ele sofria, ele vai encontrando uma forma de falar
sobre aquilo, narrar a sua dor. A narrativa torna possível uma narrativa
interna;
3) ler permite desencadear uma atividade narrativa e se estabelecer ligações
entre o acontecimento de uma história, entre universos culturais, entre
aquele que compõem um grupo. “Uma metáfora em que o corpo é tocado”
(PETIT, 2006a, p.153).
E, o terceiro aspecto a ser considerado é a autonomia, ou seja, o espaço que
a criança sai da dependência absoluta, para a dependência relativa, rumo à
independência.
Na dependência absoluta o Eu não está separado do não-Eu, logo o objeto
nestas relações primitivas não se distingue do seu próprio Eu. A este objeto,
Winnicott (1975) referiu-se como “objeto subjetivo” em contraste com o “objeto
objetivamente percebido”. O Eu só está integrado quando ele inicia suas relações
com o objeto. Para que ocorra essa integração é preciso que as necessidades do
bebê sejam satisfeitas e que ele sinta, pelo comportamento adaptativo da mãe
suficientemente boa, que está recebendo aquilo que ele necessitava, para ter um
sentimento de “eu criei isso”. Assim, o suprimento materno que irá facilitar as
primeiras relações objetais, Winnicott nomeia de “apresentação de objeto”, de
acordo com Davis e Wallbridge (1982). Nesse momento, a fantasia e a realidade são
uma só, e ele se sente criador do mundo (a onipotência). Conforme Winnicott (apud
DAVIS e WALLBRIDGE, 1982, p.58) a mãe lhe permite “um curto período no qual a
onipotência é uma questão de experiência”.
A possibilidade de a mãe fomentar a onipotência necessária à própria
sobrevivência do bebê dá origem ao que Winnicott (1975) chamou de criatividade
primária. Para esse autor somente no estado de não-integração17 que existe
condição de surgir o impulso humano criativo.
E assim, como estabelece Winnicott (apud MELLO FILHO, 2001), na
ausência do suprimento materno para a integração do Eu nasce o sentimento de
desintegração e de caos, como uma defesa muito especial produzida pelo bebê na
falta de segurança no estado de dependência absoluta.
Assim, Mello Filho (2001, p.50) afirma que “as falhas maternas produzem
traumas invasivos, sensações de descontinuidade nos processos fisiológicos em
desenvolvimento, dando origem a sentimentos de descontinuidade da vivência do
ser”.
Para Winnicott (apud MELLO FILHO, 2001) na aquisição de um
desenvolvimento normal é importante para a criança a constatação da repetição dos
cuidados maternos para que tenha a percepção da existência de uma continuidade
de seus progressos psíquicos e fisiológicos. Segundo esse autor:
Este continuum repetido de experiências possibilitará uma sensação de continuidade que é a base do sentimento de ser, que se relaciona com o que ele [Winnicott] chamou de verdadeiro self. Os traumas invasivos induzirão na criança as angústias de aniquilamento ou, ao invés disto, adaptações precoces a estes traumas, a estas invasões que se fazem dentro do arcabouço protetor constituído pelo holding, sendo a base de formação do falso self, onde tudo passa a ser não-eu, concessões ao mundo, aos outros, ao invés do desenvolvimento harmônico e natural de tendências inatas, pessoais e únicas (WINNICOTT apud MELLO FILHO, 2001, p.51).
17
Não-integração para Winnicott (apud MELLO FILHO, 2001,p.48), não é acompanhado de ansiedade ou de sensações desagradáveis e ameaçadoras do bem-estar [...] a criança - e o adulto depois – retorna à sensação de não-integração em estados de relaxamento, como é o caso dos estados de lazer, quando nossa mente funciona de modo livre e desconectado. A experiência de não-integração é uma das possibilidades de o individuo poder ficar só, uma capacidade que Winnicott considerava uma as mais importantes aquisições do ser humano.
Segundo Davis e Wallbridge (1982) a etiologia do falso self é encontrada
especialmente quando na fase de dependência absoluta a mãe fracassa na
“apresentação-de-objetos” desejados e necessitados pelo bebê. E, para Winnicott
(apud DAVIS E WALLBRIDGE, 1982, p.65):
Por meio deste Falso Eu, o bebê constrói um conjunto falso de relações e, por meio da introjeção, chega a alcançar uma impressão de ser real, de modo que a criança pode crescer para ser como a mãe, a enfermeira, a tia, o irmão, ou quem quer que seja que domina o cenário. O Falso Eu tem uma função positiva e muito importante: esconder o Verdadeiro Eu, o que faz obedecendo às exigências do ambiente.
Quando o “Falso Eu” se apresenta na criança, o verdadeiro eu permanece
escondido, e ela não pode ter uma relação com a realidade, fazendo com que a sua
vida se torne inútil, esclarece Davis e Wallbridge (1982). E, assim nestas pessoas:
Ao invés de ocupações culturais, observa-se uma inquietação extrema, uma incapacidade de concentrar-se, e uma necessidade de colecionar imposições da realidade externa para que o tempo de vida desses indivíduos possam ser preenchidos por reações a estas imposições. (WINNICOTT apud DAVIS E WALLBRIDGE, 1982, p.65-66):
Para Winnicott (apud ABRAM, 2000, p.105) na fase da dependência relativa
“o bebê permite que a mãe saiba quais são suas necessidades. O ‘sinal’ enviado
pelo bebê à sua mãe também pode ser aplicado à relação paciente-analista”. Esse
momento está relacionado ao fato do bebê, ou o paciente, poder pensar por conta
própria. E ele somente poderá fazer isso quando se torna “uma unidade, uma
pessoa completa, com um interior e um exterior, e uma pessoa vivendo dentro de
um corpo, e mais ou menos limitada pela pele” (WINNICOTT, 1983, p.86). Para esse
autor o exterior significa não-Eu enquanto que o interior significa Eu, e Winnicott
(1983, p.86) estabelece que:
A criança agora não é apenas uma criadora potencial do mundo, mas se torna capaz também de povoar esse mundo com exemplos de sua vida interna própria. Assim, gradativamente a criança se torna capaz de abranger quase que qualquer evento exterior, a percepção se tornando quase sinônimo de criação. Eis aí um meio pelo qual a criança assume controle sobre os acontecimentos externos do mesmo modo como sobre o funcionamento interior de seu próprio self.
A partir do momento que a criança pode “se defrontar com o mundo,
desenvolve-se uma verdadeira independência, com a criança se tornando capaz de
viver uma existência pessoal que é satisfatória, ainda que envolvida com as coisas
da sociedade” (WINNICOTT, 1983, p.87). Para esse autor os esforços da criança
pré-escolar e da criança na puberdade significam viver “rumo à independência”.
Assim, a Oficina de Leitura possibilitava às crianças a oportunidade de ter
uma vida e um mundo reconhecido como próprios, podendo se responsabilizar por
suas ações ou inações, sendo “capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as
censuras pelas falhas [...] pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência
para a independência, ou autonomia” (WINNICOTT, 2005, p.10).
E, como último aspecto, vamos considerar a implicação e aproximação das
crianças no ato de ler e de escrever.
Segundo Ferreiro (1999, p.28-29), é provável que a criança aprenda a ler e a
escrever sem dificuldades se ela “está bem lateralizada, se seu equilíbrio emocional
é adequado, se ela tem uma boa discriminação visual e auditiva, se seu quociente
intelectual é normal, se sua articulação é também adequada, etc.”. Mas esta extensa
lista não significa necessariamente um fator positivo para a causa do rendimento
observado na leitura e escrita da criança. O fundamental em tudo isso é tomar em
consideração o “sujeito que aprende basicamente através de suas próprias ações
sobre os objetos do mundo e que constrói suas próprias categorias de pensamento
ao mesmo tempo que organiza seu mundo” (FERREIRO, 1999, p.29). Vemos,
portanto que a autora “coloca o sujeito da aprendizagem no centro do processo”
(FERREIRO, 1999, p.30).
Para Ferreiro (1999, p.193 - 221) existem cinco níveis sucessivos de escrita.
São eles:
Nível 1 – Pré-silábico Neste nível, escrever é reproduzir os traços típicos da escrita que a
criança identifica como a forma básica da mesma. Se esta forma básica é a escrita de imprensa, teremos grafismos separados entre si, compostos de linhas curvas e respostas ou de combinações entre ambas. Se a forma básica é a cursiva, teremos grafismos ligados entre si com uma linha ondulada como forma de base, na qual se inserem curvas fechadas ou semi fechadas (FERREIRO, 1999, p.193).
Neste nível, “a intenção subjetiva do escritor conta mais que as diferenças
objetivas no resultado, e cada criança pode interpretar sua própria escrita, porém,
não a dos outros”.(FERREIRO, 1999, p.193).
Ainda neste nível, podem aparecer “tentativas de correspondência figurativa
entre a escrita e o objeto referido”. (FERREIRO, 1999, p.194) Assim, a criança
espera que a escrita dos nomes de pessoas seja proporcional ao tamanho (ou
idade) dessa pessoa, e não ao comprimento do nome correspondente (FERREIRO,
1999, p.194)
A leitura do escrito, neste nível, “é sempre global, e as relações entre as
partes e o todo estão muito longe de serem analisáveis: assim, cada letra vale pelo
todo” (FERREIRO, 1999, p.202).
Nível 2 – Silábico. A hipótese central deste nível é a seguinte: “para poder ler
coisas diferentes (isto é, atribuir significados diferentes), deve haver uma diferença
objetiva nas escritas “(FERREIRO, 1999, p.202).
Neste nível “a aquisição de certas formas fixas de escrita está sujeitas a
contingências culturais e pessoais” (FERREIRO, 1999, p.205). Assim,
[...] no curso do desenvolvimento, a criança pode ter tido a oportunidade de adquirir certos modelos estáveis de escrita, certas formas fixas que é capaz de reproduzir na ausência do modelo. Destas formas fixas, o nome próprio é o mais importante. (FERREIRO, 1999, p.204)
Também, neste nível é “uma proeminência marcante da escrita em maiúscula
de imprensa sobre a cursiva” (FERREIRO, 1999, p.208)
Nível 3 – Silábico com valor sonoro:
Este nível é caracterizado pela tentativa de dar um valor sonoro a cada umas das letras que compõe uma escrita. Nesta tentativa a criança passa por um período da maior importância evolutiva: cada letra vale por uma silaba (FERREIRO, 1999, p.209).
É o surgimento da ‘hipótese silábica’. Segundo Ferreiro (1999, p.209) com a
hipótese silábica a criança dá um salto qualitativo com respeito aos níveis
precedentes:
[...] a criança supera a etapa da correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída, para passar a uma correspondência entre partes do texto (cada letra) e partes da expressão oral (recorte silábico do nome); mas, além disso, pela primeira vez a criança trabalha claramente com a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala. A hipótese silábica pode aparecer tanto com grafias ainda distantes das formas das letras como com grafias bem diferenciadas. Neste último caso, as letras podem ou não ser utilizadas com um valor sonoro estável. (FERREIRO, 1999, p.209).
Podemos dar como exemplo a palavra SAPO, e a criança escreve AO – uma
escrita silábica baseada em correspondência estável das vogais. Ou outra criança
pode escrever a mesma palavra SP – uma escrita silábica baseada em
correspondência estável de consoantes.
Nível 4 – Passagem da hipótese silábica para a alfabética, ou seja, silábica-
alfabética. Para Ferreiro (1999, p.214):
A criança abandona a hipótese silábica e descobre a necessidade de fazer uma análise que vá ‘mais além’ da sílaba pelo conflito entre a hipótese silábica e a exigência de quantidade mínima de granas (ambas exigências puramente internas, no sentido de serem hipóteses originais da criança) e o conflito entre as formas gráficas que o meio lhe propõe e a leitura dessas formas em termos de hipótese silábica (conflito entre uma exigência interna e uma realidade exterior ao próprio sujeito).
Nesta fase a criança faz muitas perguntas que possam reassegurar a sua
análise sonora da palavra, muitas vezes se referindo a uma sílaba, ou um fonema
isolado. Por exemplo, a criança pergunta qual é o ‘to’?; e pouco depois pergunta
qual é o ‘t’?.
Nível 5 – A escrita alfabética. Neste nível, Ferreiro (1999, p.219) estabelece
que:
[...] a criança já franqueou a ‘barreira do código’; compreendeu que cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores a sílaba e realiza sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever [...] a partir desse momento, a criança se defrontará com as dificuldades próprias da ortografia, mas não terá problemas de escrita, no sentido estrito.
Assim, no decorrer da realização da nossa Oficina de Leitura pensamos em
observar a leitura e a escrita enquanto objeto de conhecimento, e o sujeito da
aprendizagem, enquanto sujeito cognoscente e sujeito desejante18, uma vez que a
obtenção do conhecimento é um resultado da própria atividade do sujeito
aprendente. Afinal, conforme Barone (2005, p.30) “ler é muito mais que decodificar
uma escrita, ou mesmo, é mais que descobrir e reconstruir o sistema de
representação da linguagem”, mas é também desejar ler. Ler é encontrar e criar
sentido, uma vez que na leitura passamos pelo texto e construímos um sentido a
partir da leitura.
Além disso, quando a psicopedagoga fez a opção de ler literatura infantil para
as crianças, também teve a intenção de servir como modelo, como figura de
identificação, possibilitando às crianças despertarem a ação e o desejo de ler. Como
18
Estamos falando nestes termos porque muitos psicopedagogos trazem a questão do desejo como uma posição importante para a aprendizagem, mostrando que a leitura não depende só de aspectos cognitivos, mas também daqueles relacionados ao Self. Sabemos que os autores partem de lugares diferentes, Freud fala da pulsão, enquanto que Winnicott dá importância à necessidade do homem a uma tendência inata ao desenvolvimento, se o ambiente favorecer. Para Winnicott (apud DIAS, 2003, p.301) “não é necessário conceber forças pulsionais em conflito para pôr a vida em movimento e dar sustentação teórica às dificuldades, impasses e distúrbios, mesmo os mais primitivos. O que impulsiona a vida e o psiquismo é o próprio fato de o bebê estar vivo e carregar em si a tendência inata à integração; é desta que decorrem as tarefas e as necessidades vitais”.
afirma Ferreiro (1999), desde a mais tenra infância as crianças têm uma tendência a
imitar os adultos, nos gestos e nas ações pertinentes, compreendidas como segurar,
olhar e falar do ato de leitura. Para a autora, ao imitar a criança aprende e
compreende muitas coisas, “porque a imitação espontânea não é cópia passiva,
mas sim tentativa de compreender o modelo imitado” (FERREIRO, 1999, p.166).
No início e no final da Oficina de Leitura, fizemos uma avaliação da leitura e
da escrita conforme Ferreiro (1999), tendo como objetivo a verificação do nível
conceitual da escrita do paciente.
Para a realização dessa avaliação, entregamos para as crianças, uma folha,
lápis, grafite e borracha. Conversamos sobre o tema “Animais”, perguntando quais
os animais que conheciam, se gostavam de animais, se tinham algum animal de
estimação, se costumavam ir ao zoológico, etc. Assim, solicitou-se que escrevessem
primeiramente o seu nome, e as seguintes palavras: Elefante, Cachorro, Tigre, Rã. E
a seguinte frase: “O elefante pisou na formiga”.
Desde já podemos adiantar que foi surpreendente a evolução da leitura e
escrita das crianças no período que e participaram da Oficina de Leitura. Traremos
os resultados no momento oportuno.
A partir deste ponto trataremos individualmente dos participantes da oficina de
leitura, o que será feito na seguinte ordem: Gustavo, Jade, Bruna, Luis e Valter.
Lembrando que os nomes utilizados aqui são fictícios pela necessidade de
resguardar a identidade delas.
2.2.1 Gustavo:
Gustavo tinha oito anos de idade, estava na terceira série do ensino
fundamental e dizia não saber ler nem escrever. Foi encaminhado para o
atendimento psicopedagógico pela professora da escola estadual em que estuda.
Segundo seus avós maternos, que o trouxeram para o atendimento, ele tinha
dificuldades na leitura e na escrita e era uma criança muito agressiva, não prestava
atenção nas aulas, e sempre se envolvia em confusão com os colegas.
Em entrevista realizada apenas com a mãe de Gustavo, o pai não
compareceu, ela relatou que não gostava e não tinha o hábito de leitura. A
escolaridade de seus pais foi até o ensino fundamental. Relatou também que
Gustavo era fruto de uma gravidez gemelar, e que o outro filho falecera aos três
meses de vida. Contou ainda que desde o namoro ela e o marido eram usuários de
drogas e álcool. Relatou que não amamentou e não cuidou de Gustavo; e que nunca
teve paciência com seus filhos. Durante a entrevista, essa mãe parecia uma pessoa
completamente desligada do mundo, não possuindo coesão nos pensamentos e na
fala. Não sabia nos trazer os dados básicos sobre seu filho, como: com quantos
anos andou, falou, saiu das fraldas, etc. Contou que quem olhou por ele foi sua mãe,
a avó de Gustavo.
Gustavo tinha duas irmãs mais velhas. Mas, nas primeiras sessões, ele traz
apenas a existência de seu irmão gêmeo morto. Percebemos, portanto, que a morte
de seu irmão gêmeo marcou sobremaneira este menino, pois nas atividades que
realizamos no decorrer do atendimento psicopedagógico, ele está sempre se
colocando como alguém que não tem direito à vida. Apresenta-se culpado ou
responsável pela morte de seu irmão em diferentes situações do grupo. Em seus
desenhos sempre há a presença de um duplo que surge como uma sombra ou
fantasma.
Nas sessões, pudemos perceber que Gustavo era um menino triste,
observador, ansioso e muito falante. Sua fala era fragmentada e compulsiva, sempre
trazendo situações da sua própria vida.
Conforme a Figura 1, o primeiro desenho da “Família” feito por Gustavo, que
apresentamos abaixo, percebemos a sua atuação desorganizada e confusa,
misturando as pessoas, os objetos, os lugares. Sobre esse desenho ele conta que:
“estava chovendo, aqui era o shopping, aqui eles compraram um skate e ele queria
comprar essa televisão”. A psicopedagoga perguntou: Quem é ele? Ele respondeu,
“não sei, eu desenhei imaginando”.
Assim, podemos pensar em quem são as pessoas que Gustavo colocava
como família? Não sabemos, e nem mesmo Gustavo sabia, segundo seu próprio
relato. Podemos ver a desorganização e a fragmentação da sua fala refletida no seu
desenho, demonstrando assim a sua fragilidade e imaturidade de Self.
FIGURA 1 – Primeiro desenho da Família feito por Gustavo
No início do atendimento psicopedagógico, percebemos que, nas sessões,
ele tinha uma maneira agressiva de conversar com a psicopedagoga. No
relacionamento com os colegas do grupo ele extrapolava sua agressão, muitas
vezes chutando e empurrando, principalmente os colegas meninos.
Chegava para o atendimento muito bravo e recusava-se a participar das
rodas de leitura que fazíamos em cima dos tapetes onde aconteciam os nossos
encontros semanais. Ele escolhia sentar-se numa cadeira que ficava distante da
roda de leitura. E, a psicopedagoga respeitava a sua escolha, deixando-o muito à
vontade, dizendo que quando quisesse participar da roda seria muito bem vindo, e
apenas observava as suas reações.
Podemos perceber que a forma como Gustavo se colocava na Oficina de
Leitura, não parecia saudável. Para Winnicott (1975) uma ancoragem saudável na
realidade acontece no encontro da realidade subjetiva e a objetivamente percebida,
tornando a vida digna de ser vivida. Parece que Gustavo não se permitia usufruir
dos momentos criativos quando o grupo fazia a leitura de histórias.
Tal situação poderia estar relacionada à maneira como Gustavo foi cuidado
por sua mãe nos primeiros momentos após seu nascimento, instalando talvez um
sentimento de abandono? Os cuidados inadequados realizados por sua mãe,
conforme ela mesma afirmou em entrevista, sugere a existência de uma “Falha” 19
significativa de cuidados promovendo, talvez, quebra na continuidade do
desenvolvimento de seu Self.
Segundo Winnicott (1975, p.102-104) o fato de os indivíduos viverem
criativamente e sentirem que a vida merece ser vivida ou, então, que não podem
viver criativamente e têm dúvidas sobre o valor do viver está “diretamente
relacionado à qualidade e à quantidade das provisões ambientais no começo ou nas
fases primitivas da experiência de vida de cada bebê”.
Como já dissemos, a Oficina de leitura tinha como sentido primordial
restabelecer o viver criativo das crianças.
Assim, começávamos a leitura da história e Gustavo, com a cabeça baixa,
fingia que não estava na sessão. Mas aos poucos, ele levantava a cabeça, e olhava
para a psicopedagoga, interessando-se pelo que estava sendo lido, e aproximava-se
devagar para olhar o livro e as suas figuras, até que acabava sentando-se em um
canto do tapete e fazendo parte da roda. Com essa forma de se colocar, parecia que
Gustavo se perguntava: qual é o meu lugar? Qual é o meu valor?
Este comportamento se repetiu por mais alguns encontros até que Gustavo
aceitou e encontrou um espaço de segurança e confiança junto à psicopedagoga e
seu grupo de trabalho. Então passou a ser o primeiro a pegar os tapetes, os livros e
a organizar a nossa roda de leitura, e a se colocar para realizar a leitura da história.
No decorrer da Oficina de Leitura, Gustavo foi mudando a sua maneira de ser,
de existir no grupo, e o mundo que estava ao seu redor. Muitas vezes nos espaços
de leitura ele chegava até a se deitar no ombro da psicopedagoga, parecendo que
agora já podia confiar e se aconchegar ao lado de alguém. De alguma maneira,
Gustavo parece ter descoberto a importância e o valor de poder estar ao lado de 19
Segundo Winnicott (apud ABRAM 2000, p.104), a palavra “falha” grafada com “f” minúsculo está associada à desadaptação, como um aspecto necessário do desenvolvimento do bebê, necessário por facilitar o processo de desilusão que acontece quando a mãe/mulher é ela mesma (ou continua a viver sua vida). Já a “Falha” grafada com “F” maiúsculo acontece quando a mãe que não corresponde aos anseios do bebê e provoca uma repentina quebra em sua continuidade do ser. Nesse sentido a etiologia da tendência anti-social origina-se a partir dessa forma de falha ambiental.
alguém. Também estava mais calmo, solidário com a psicopedagoga e os colegas
do grupo, mais amigo, e principalmente com um novo “brilho no seu olhar”.
Transparecia a sua alegria em viver, em estar na Oficina de Leitura.
Em toda sessão a psicopedagoga perguntava às crianças quem gostaria de
ler. Oferecíamos a leitura e todas sempre se recusavam, justificando que não
sabiam ler.
Após cinco meses de encontros semanais, a irmã de Bruna com 12 anos de
idade, participou de uma das nossas oficinas, e se ofereceu para ler uma parte da
história. Após a leitura de duas páginas, quando a psicopedagoga retomaria a
leitura, Gustavo tirou o livro das mãos da terapeuta e disse: “Hoje eu também quero
ler”. E, para a surpresa da psicopedagoga, Gustavo realmente leu. Leu devagar, de
forma fragmentada, mas o mais importante era que ele conhecia as letras e as
palavras. Talvez valesse a pena investigar o que o levou a ler nesse momento.
Uma hipótese que arriscamos é pensar que durante nossas sessões algo foi
sendo construído no sentido de facilitar a apropriação do ato de ler. Talvez a Oficina
de Leitura, constituída como espaço de segurança e de confiança, tenha permitido a
Gustavo sustentar posição de Ser ou de integração20 do Self de maneira a poder
suportar ler perante seus colegas apesar de sua dificuldade. Antes isso não era
possível porque ele se mostrava sempre onipotente, entrava em competição com os
colegas, uma vez que não suportava aceitar o fato de não saber realizar
determinadas atividades que apareciam nos nossos encontros.
Mas, no caso de Gustavo parece-nos que não foi essa a organização de seu
Eu, uma vez que sua mãe apresentou-se na entrevista de anamnese como uma
mãe completamente desorganizada, deixando claro que nunca foi uma mãe
suficientemente boa não lhe propiciando a integração do Eu.
E assim, como estabelece Winnicott (apud MELLO FILHO, 2001) na ausência
do suprimento materno para a integração do Eu nasce o sentimento de
desintegração e de caos, como uma defesa muito especial produzida pelo bebê na
falta de segurança no estado de dependência absoluta.
Desde o início dos nossos encontros, observamos em Gustavo uma extrema
inquietação, uma incapacidade de concentração, com reações de imposição sobre
20
Para Winnicott (apud MELLO FILHO, 2001, p.41) “integração não é algo garantido, é algo que precisa se desenvolver gradualmente em cada criança [...] A integração surge gradualmente a partir de um estado primário não-integrado”.
os outros, sempre numa posição de não suportar viver as suas falhas, as suas
dificuldades.
Assim, numa tentativa de compensação ele se colocava, defensivamente, de
maneira oposta no seu relacionamento, como o “sabe tudo”, o melhor de todos; o
tempo todo precisando disputar com alguém para estar numa ordem de autoridade
superior; numa situação de agir onipotentemente; com defesas maníacas no lugar
de uma integração. Ele nunca estava satisfeito, porque sempre o que era do outro
sempre era melhor.
Podemos dizer que Gustavo não tinha a possibilidade do uso real de sua
potência, devido à ausência de integração do Eu. Assim, defensivamente, oscilava
entre assumir postura onipotente ou postura oposta de impotência.
No entanto, os encontros realizados na nossa Oficina de Leitura permitiram
ao Gustavo certa integração de seu Eu, o que talvez tenha favorecido o aflorar de
seu verdadeiro Eu. O que resultou em seu gesto de tomar o livro da mão da
psicopedagoga e querer ler. Saindo da posição de onipotência, ele usa a sua real
potência, aceitando ler do seu jeito, mesmo com suas falhas e erros.
Na Oficina de Leitura nada era requisitado ou cobrado. Nela a psicopedagoga
oferecia total “cobertura”, termo usado por Winnicott (2005) como já explicamos,
favorecendo a integração do seu “Self” e levando Gustavo a atingir um status de
Unidade. Gustavo então pôde se colocar perante os colegas como um Eu separado
do grupo, um “Eu” que agora sabe e pode ler para os outros. Como esclareceu
Winnicott (2005, p.216), esse “eu possui agora um dentro, onde podem reunir-se as
memórias de experiências e edificar-se a estrutura infinitamente complexa que
pertence ao ser humano”.
A partir da leitura de Gustavo, as outras crianças do grupo também passaram
a querer e desejar ler. Supomos que isso aconteceu quando elas perceberam que
tinham um espaço de segurança e confiança, que podiam ‘ser’ e ‘existir’ na nossa
Oficina de Leitura.
Na Oficina de Leitura, Gustavo foi a criança que mais participou, a que
mostrou maiores identificações com os personagens das histórias.
Vamos discorrer sobre algumas situações trazidas por Gustavo, relatar os
fatos ocorridos a partir da leitura da história “Quando a mamãe virou um monstro” de
Joanna Harrison. A capa do livro, na Figura 2, nos ajudará a entender o que
aconteceu nessa sessão.
FIGURA 2 – Capa do livro
No grupo, percebo que esta história de alguma maneira sensibiliza o menino
Gustavo.
Em seus desenhos sempre havia algo cindido, a presença de um duplo
parecia fazer referência ao irmão morto, que surgia como uma sombra ou fantasma.
Nas primeiras sessões da nossa Oficina de Leitura, essa situação apareceu em
alguns desenhos, mas ao longo da leitura de diferentes histórias pudemos notar
como Gustavo foi encontrando um caminho para dar sentidos e encontrar
significados para suas dores e traumas, o que talvez tenha contribuído para que no
final desaparecessem os duplos ou fantasmas, de seus desenhos. Remetemos o
leitor à Figura 4.
Quando a psicopedagoga perguntou para Gustavo o que achou da história,
ele respondeu: “não muito assustadora, porque pode acontecer que quando a mãe
fica brava, pode se transformar em monstro. Dentro de casa a mãe pode se
transformar em monstro, e qualquer um pode se transformar”.
A psicopedagoga perguntou se dentro da casa dele tem alguém que se
transforma em monstro, e ele respondeu: “meu pai é um chato, porque ele fica me
batendo sem eu fazer nada para ele. Minha irmã fica mexendo comigo, ele pensa
que sou eu e aí ele me bate”. Continuou dizendo que não adianta conversar com o
pai, porque para ele Gustavo sempre é responsável pelas brigas e confusões da
casa, e continua falando de uma briga com sua irmã pela posse de uma máquina
fotográfica.
Gustavo contou que tem duas irmãs e “um irmão que morreu de parada
cardíaca”. Ele relatou também que sua irmã durante a briga lhe diz: “Ah, nós
gostava mais do Ronaldo, catava ele no colo, e não você”.
A história lida parece que teve o efeito de tocar em questões importantes da
vida de Gustavo. Ele trouxe a hostilidade que sofreu de suas irmãs e a falta de
acolhimento por parte de seus pais. Quem, às vezes, vinha a seu encontro era a
avó.
No desenho abaixo, a Figura 3, Gustavo faz, após a leitura da história,
aparecer a mãe-monstro deitada no sofá e um gato. Ele disse que fez uma cópia do
desenho da capa do livro, mas como podemos observar o gato não está na capa.
Depois ele risca todo o seu desenho, dizendo que está pintando. Parecia
pintar com muita raiva, e a sua fisionomia ressaltava esse sentimento.
Seria talvez o sentimento de raiva pelo abandono que vivenciou no início de
seu nascimento, quando não foi cuidado por uma mãe suficientemente boa? A mãe
de Gustavo deixa claro na sua entrevista que não teve paciência e dedicação nos
cuidados de seu filho. Parece-nos que não existiu uma especial atenção de sua mãe
no estágio inicial, na dependência absoluta, podendo existir uma falha para que essa
criança pudesse alcançar a sua individualidade, o Eu-sou, permanecendo assim,
colado nessa mãe, como afirma Winnicott (1990).
FIGURA 3 – Cópia da capa do livro: “Quando a mamãe virou um monstro”
No relato que faz de seu desenho, conta: “A mamãe-monstro ia comer o gato.
Os filhos dela cataram o gato e levou ele para bem longe. E, viveram felizes para
sempre”21.
Gostaria de destacar que este material possibilita diferentes interpretações
que serão analisadas considerando dados de outras sessões de trabalho. Mas, o
que chamou a atenção foi a presença do gato no desenho e na história recontada
por Gustavo.
O desenho e o relato feito por Gustavo ganham muito sentido quando os
colocamos em relação à sua história de vida.
O gato não aparece no texto escrito, apenas como imagem no livro. Como
algo que não é falado, mas que tem uma presença concreta em algumas páginas do
livro. Talvez, ele se projete no gato que pode ser comido pela mãe. Mas, há uma
21
Transcrevemos a forma de falar de Gustavo.
esperança de ser salvo pelos filhos que levam o gato para longe onde vivem felizes
para sempre.
Talvez Gustavo esteja falando aqui da presença de sua própria mãe, aquela
que não o protege, ou seja, uma mãe devoradora. Na sua relação diária com sua
família, Gustavo sentia-se numa situação de desamparo, de não acolhimento. Mas a
leitura dessa história ofereceu elementos para que ele retomasse questões de sua
história; expressando suas angústias e encontrando meios de resgatar e integrar
aspectos fragmentados de seu Self. Talvez isso se aproxime do que propõe Petit
(2006a) quando fala que a leitura tem função reparadora e contribui para a
construção e reconstrução de si mesmo, trazendo benefícios na sua produção de
sentidos e significados, possibilitando assim uma elaboração da sua história
pessoal.
Lembramos que neste trabalho estamos considerando o fracasso na
aprendizagem da leitura e da escrita das crianças como um momento de crise - que
pode ter diferentes causas – no qual faltam recursos à própria criança para dar conta
das exigências da aprendizagem.
Nestes momentos ocorre uma redução na relação lúdica com os objetos e
com a linguagem, havendo uma redução no imaginário destas crianças, ou seja, no
espaço de brincar, de sonhar, os tempos de trocas gratuitas, o imaginário, conforme
afirmou Petit (2006).
A Oficina de Leitura proporcionou um espaço lúdico que possibilitou a
emergência de aspectos expressivos da criança. A leitura dessa história permitiu a
Gustavo romper o aprisionamento de sentido único, como ressaltamos com Candido
(1988). Isto é, por meio de uma metáfora, que lhe permitia o acesso interno a sua
emoção, conseguiu pensar em outras situações possíveis para as dores que sentia
pela ausência de sua mãe, e assim através de uma narrativa tornar possível a
construção de sua história pessoal.
Outra história lida na Oficina de Leitura, “O medo da sementinha” de Rubem
Alves serviu como facilitadora para desencadear atividades narrativas nas crianças,
estabelecendo assim ligações nos acontecimentos da história com o universo
interno de cada um. Como diz Petit (2006a, p.153) “uma metáfora em que o corpo é
tocado”.
Essa história possibilitou às crianças do grupo, momentos de reflexão e de
silêncio. Foi uma história que despertou muito medo nas crianças, segundo seus
depoimentos. Como a sementinha da história, as crianças relataram medo do mundo
desconhecido, e do abandono. Pensamos que o medo do mundo pode deixar a
criança aprisionada na sua aprendizagem, uma vez que não quer conhecer aquilo
que a amedronta, o que, por conseqüência, leva-a a não desejar aprender.
Esta história falava da vida e da morte. Lembremos que Gustavo no decorrer
das sessões estava sempre preso a essa dualidade - vida e morte - o que em nossa
suposição decorria da perda prematura do seu irmão gêmeo, falecido alguns meses
depois de seus nascimentos.
Novamente Gustavo é a criança que mais encontra sentidos e significados
internos com a leitura dessa história e coloca-se a narrar o que passa pelos seus
pensamentos. Ele fala que a principal mensagem dessa história é “a vida”. “A
sementinha perde o medo e consegue sobreviver feliz longe da mamãe árvore”.
A psicopedagoga pergunta o que é sobreviver?
E, Gustavo diz que é “ter vida, mesmo que possa acontecer a morte”
Tais fatos levaram-nos a algumas indagações: Por que esta história faz com
que ele fale tanto, e se sobressaia ao grupo? Será que nesse momento Gustavo
estava falando da sementinha ou de sua própria vida? Parece que de alguma
maneira Gustavo encontrou no texto lido meios de expressar e elaborar suas
questões e conflitos.
Vemos que a Oficina de Leitura permitiu que Gustavo pudesse falar de uma
possibilidade de separação desse irmão, encontrando um espaço próprio, lugar da
sua felicidade longe do irmão morto, não precisando mais ficar atado a ele. Assim,
ele pôde fazer o luto, pensar sobre a morte desse irmão, e ter a possibilidade de
encontrar um novo caminho e seguir a sua vida.
Também podemos pensar na possibilidade desse menino encontrar um modo
de circunscrever um espaço próprio, conseguindo desenvolver o seu self, ganhando
autonomia de uma mãe, e ao mesmo tempo autonomia de um morto, de um irmão
que lhe tirava a possibilidade de existir ou por uma culpa muito grande ou por um
peso sobre ele, sem ter um espaço para viver criativamente.
Lembramos Cabrejo Parra (2007) quando diz que a leitura de um livro suporta
várias interpretações, possibilitando assim a montagem de diversas cenas, ou seja,
permitindo um trabalho simbólico que leve a criança a um outro tempo, a um outro
espaço psíquico, organizando a temporalidade da língua, de um passado e um
futuro dentro de um agora. E, assim podemos pensar que a leitura de literatura
propiciou a Gustavo a intersubjetividade, ou seja, a relação do seu mundo interno
como ouvinte da história lida com o pensamento que o escritor que montou na cena
do texto.
Segundo Cabrejo Parra (2007) para se aprender a ler, escrever e a
compreender o que esta escrito, devemos criar uma nova modalidade de tempo,
logo a leitura está sempre colocando em movimento o pensamento, oferecendo
pensamentos novos. Pensamos que a Oficina de leitura possibilitou a Gustavo e às
outras crianças que dela participaram a vivência de novas cenas, permitindo a
reconstrução de suas cenas de aprendizagem. Gustavo traduziu as metáforas do
texto literário à sua maneira, o que lhe permitiu apossar-se do conhecimento ali
colocado, e reconstruir o seu espaço interno, isto é, a sua subjetividade.
Outra história que ajuda Gustavo a encontrar significados internos para
ressignificar suas dores e traumas foi “A operação de Lili”.
Depois da leitura dessa história, Gustavo diz que achou emocionante a
operação de Lili porque “é uma vida e morte”. Perguntamos por que vida e morte, e
ele responde “porque pode morrer, na história pode morrer”.
Como pode morrer, se ninguém morre na história? Vemos que essa história
na verdade fala de uma possibilidade de acontecer a vida ou a morte, fala de uma
situação de dor, de sofrimento, que termina com a cirurgia da Lili, e que tanto a
elefanta como o sapo, continuou com vida, e felizes da vida.
Talvez o texto tenha servido de suporte a Gustavo para trazer à tona sua
fixação à dor e ao sofrimento em relação à morte de seu irmão e ao mesmo tempo
propiciado espaço para elaboração de sua dor. Nesse sentido, é interessante
observar o que Gustavo disse: “porque pode morrer”. Será que podemos ver na
ressignificação de sua dor, a descoberta de que “é permitido morrer”, ou que, talvez,
“morrer não é um problema?”.
Assim, a partir da leitura dessas histórias, ele não trouxe mais o irmão morto
para a Oficina de Leitura. Talvez, ao afirmar que essa história “fala da vida”, Gustavo
também estivesse falando da sua escolha: viver a sua própria vida e não mais preso
a seu duplo, ou seja, a seu irmão morto.
Também podemos mostrar esse crescimento de Gustavo em outro desenho
que nomeamos de “Aprendente”.
Na primeira sessão da Oficina de Leitura ele fez seu desenho conforme
apresentamos abaixo na Figura 4. Descreveu o que desenhou da seguinte maneira:
“Lua cheia, nuvens, sol, chuva. O goleiro sou eu, e o que chuta a bola é meu irmão
Ronaldo que já faleceu”. Parece que ele tinha que segurar toda a situação da morte
de seu irmão, por isso talvez se colocou como goleiro e o irmão como o artilheiro.
Interessante é que ele desenhou a Lua de forma dividida, metade ele pinta de preto
e a outra metade deixa em branco. Isso pode mostrar a dualidade, vida e morte, ou
seja, ele representando a vida e o irmão à morte.
FIGURA 4 – Desenho de Gustavo: “Aprendente”
E na última sessão, quando Gustavo fez a atividade sobre a Figura humana,
ele conseguiu se desenhar sozinho, e desta vez, chutando a bola ao gol, conforme
desenho da Figura 5, apresentado abaixo. Não desenha mais o seu irmão, o duplo.
Isso pode significar que quando escolheu dizer que a história da sementinha falava
da vida, ele escolhe viver a vida, e mais ainda, viver apenas a sua própria vida, se
desligando assim do seu irmão morto. E agora ele se coloca de posse da sua
própria vida, onde ele é que faz alguma coisa, ele é que chuta a bola ao gol.
FIGURA 5 – Desenho de Gustavo: “Figura Humana”
A partir das leituras de histórias, Gustavo parece ganhar autonomia, pensar
na própria história de vida e fazer escolhas. Escolher, ser um criador potencial do
mundo e ao mesmo tempo povoar esse mundo com exemplos de sua própria vida.
Como diz Winnicott (1983, p.86) poder controlar os acontecimentos externos da
mesma maneira que o seu funcionamento interior do seu próprio Self.
Assim, na penúltima sessão, conforme Figura 6, abaixo, Gustavo faz um novo
desenho da “Família”, e desta vez, projetou em seu desenho a sua própria família,
ele mesmo e suas duas irmãs. Não desenha seus pais, e deve ter razões para isso.
Vale a pena observarmos como a representação gráfica desse desenho é
muito diferente do primeiro, aquele em que ele desenhou “eles no skate”.
Neste desenho o esquema corporal é mais claro e melhor delineado,
sugerindo uma melhor organização de pensamento. Reproduz figuras mais
coloridas, parecendo existir mais alegria e vida.
FIGURA 6 – Desenho de Gustavo no final da oficina de Leitura: “a Família”
Parece-nos que agora Gustavo tem autonomia para pensar na sua
aprendizagem da leitura e da escrita.
No início de nosso atendimento psicopedagógico, analisamos a hipótese de
leitura e escrita de Gustavo conforme Ferreiro (1999) com base no Nível 2, em que
para ler diferentes coisas, ele percebia que havia uma diferença objetiva na escrita.
A sua escrita era silábica, com uma proeminência marcante da escrita em maiúscula
com letra de imprensa sobre a cursiva, conforme Figura 7.
FIGURA 7 – Primeira Sondagem da escrita de Gustavo
No final da Oficina de leitura, retomamos uma nova avaliação da leitura e da
escrita, conforme a figura 8, e concluímos que Gustavo teve uma grande evolução
nesse sentido. Ele se estabeleceu no Nível 5, em que a sua escrita é alfabética. Ele
sabe que os caracteres da escrita correspondem aos valores sonoros, conseguindo
analisar os fonemas das palavras que vai escrever. Assim, Gustavo encontra-se
alfabetizado devendo apenas trabalhar a leitura para que amenize suas dificuldades
na ortografia, não tendo problemas de escrita no sentido estrito.
FIGURA 8 – Segunda Sondagem da escrita de Gustavo
2.2.2 Jade:
Jade tinha oito anos de idade e cursava a segunda série do ensino
fundamental quando foi encaminhada para o atendimento psicopedagógico pela
professora da escola em que estudava. Residia com seus pais e uma irmã de cinco
anos. Sabia escrever apenas seu nome porque aprendeu a copiar. Era filha de pai
analfabeto e mãe com o segundo grau completo. Ambos não gostavam de ler livros,
não tinham o hábito da leitura.
A queixa da mãe é de que sua filha tinha o mesmo problema do pai: não
conseguia memorizar. Provavelmente também seria analfabeta, afirmava a mãe.
Jade tinha muita vontade de aprender a ler e escrever, contaram os pais na
entrevista; fato este que comprovamos no decorrer da Oficina de Leitura. Ela sempre
pedia para a mãe ler os livros de histórias que tinha em casa, mas a mãe esclareceu
que isso raramente acontecia devido à falta de tempo.
Importante ressaltar que ela carregava dentro de si as palavras de sua mãe
como se fosse um estigma: “Jade tem o mesmo problema do pai, ela não consegue
memorizar, e provavelmente também será analfabeta como ele”.
Na primeira sessão Jade perguntou para a psicopedagoga: “Você vai me
ajudar a aprender a ler e escrever?” Esclareceu que esse era o seu maior desejo e
que adorava histórias, dizendo que quando aprendesse a ler e escrever ela não
dependeria mais de sua mãe para ler seus livros de história.
Jade era uma criança com um olhar triste, que falava muito depressa, de
maneira enrolada e infantilizada, sempre contando situações do cotidiano de sua
família (mãe, pai, irmã, avós, tios, tias, primos, etc). Seu tom de voz era baixo. No
decorrer das sessões foi necessário pedir que falasse devagar, num tom mais alto,
para que pudesse ser entendida.
Podemos pensar também que, trazendo as coisas de sua família, ela talvez
fizesse uma tentativa para ser aceita no nosso grupo, ou seja, como se ela
perguntasse: em que medida com as coisas que eu trago da minha família eu
poderei ser aceita na Oficina de Leitura? Era como se Jade buscasse
reconhecimento e um lugar de pertencimento.
Jade era uma criança muito dispersa na sessão, alheia ao mundo que se
apresentava ao seu redor e atuava como se não estivesse implicada nos trabalhos
realizados naqueles momentos. Parecia estar sempre aprisionada na fala do outro.
Jade tinha uma capacidade narrativa de si mesma muito empobrecida, sempre
falando de outra pessoa e nunca dela mesma.
Ela não se posicionava como uma pessoa autônoma. Tinha a necessidade
de falar dos problemas de sua família e trazia sempre o fato de depender de sua
mãe em diversas situações, como por exemplo, pentear o cabelo, fazer a lição
escolar, ler histórias. Na Oficina de Leitura Jade tinha muita dificuldade em entender
as atividades propostas, se colocando como uma menina insegura. Perguntava e
mostrava o que estava fazendo por diversas vezes, necessitando sempre de apoio
da psicopedagoga.
Nos primeiros encontros Jade apareceu muito gripada, com um excesso de
secreção nasal. Foi encaminhada para uma consulta com um otorrinolaringologista.
Após tratamento e realização de exames, concluiu-se que devido a diversas
recidivas de infecção de ouvidos, a paciente possuía um problema no Centro
Auditivo Central, o que a levou a ser encaminhada para avaliação e tratamento
fonoaudiológico.
Após a leitura de histórias, já nas sessões da Oficina de Leitura, Jade também
pedia para se retirar da sala, para beber água, fazer xixi, juntamente com a paciente
Bruna. Pensamos na possibilidade da paciente ter muita dificuldade de entender a
história lida por causa de sua dificuldade no processamento auditivo central.
Segundo informação obtida junto a Fonoaudióloga, nestes casos, a criança tem um
processamento lento, e memoriza apenas o início e o final da história ouvida. Essa
situação deixava-a insegura e, talvez, perdida dentro do contexto compartilhado pelo
grupo, então ela escolhia ausentar-se da sala, para não precisar falar alguma coisa
que pudesse estar errado, e de alguma forma se confrontar com o seu não saber.
Na realização das atividades era muito insegura, precisando o tempo todo de
uma autorização e aprovação naquilo que se propunha a fazer. Tínhamos a
impressão que a paciente não se autorizava a pensar, precisando o tempo todo de
alguém que pensasse e fizesse as atividades por ela, que a impulsionasse, dizendo-
lhe a direção a seguir, parecendo sempre estar perdida nas atividades solicitadas.
Nas atividades desenhava a sua irmã mais nova como a pessoa que tinha a
capacidade de brincar, isto é, era a sua irmã quem possuía o direito de existir e
viver, enfim quem podia aprender. Jade não poderia se colocar nesse lugar, uma
vez que ela não se permitia posicionar num viver criativo. Também porque a sua
mãe já havia predestinado um lugar para Jade: o lugar de uma menina que seria
analfabeta como o pai.
Um exemplo do que estamos falando foi a sessão em que Jade fez o seu
primeiro desenho do “Aprendente”, que mostramos abaixo na Figura 9. Ela conta
que: “a minha irmã está aprendendo a desenhar”.
FIGURA 9 – Primeiro desenho de Jade: “Aprendente”
Com a sequência das sessões, percebemos que a cada história lida Jade
tinha uma atuação diferente, lentamente apossando-se de sua própria vida como
algo que lhe dissesse respeito.
Lembramos que para Winnicott (1975) o brincar está relacionado a uma
determinada relação com o mundo, com o trabalho, com as pessoas com as quais
convivemos. É o lugar/espaço em que vivemos. E, na Oficina de Leitura, o brincar se
colocava como facilitador de um encontro consigo mesmo, na inter-relação da
realidade subjetiva e a objetivamente percebida.
A Oficina de Leitura uma vez sobreposta pelo Espaço Potencial de Winnicott
(1975) tinha a mesma potencialidade deste, ou seja, ser uma área em que a criança
cria o mundo em que vive ao mesmo tempo em que se adapta ao mundo
objetivamente dado. As histórias despertavam seus sentimentos levando Jade a
falar de si mesma, perceber-se viva e aceita pelo grupo.
Já nas últimas sessões, Jade fez o seu segundo desenho do “Aprendente”,
que apresentaremos logo abaixo na figura 10, quando finalmente já pôde apropriar-
se de si mesma, o que supomos porque disse: “Esta sou eu aprendendo a fazer
caminhada”. Agora Jade diz que “existe” – EU-SOU como uma pessoa que se
permite aprender a caminhar com suas próprias pernas, talvez não precisando mais
que alguém faça as coisas por ela.
FIGURA 10 – Segundo desenho de Jade: “Aprendente”
Na Oficina de Leitura algumas histórias contribuíram para o amadurecimento
do Self de Jade. Entre elas vamos pinçar duas delas. A primeira foi quando
realizamos a leitura da história “Nós”.
Jade conta que a menina desta história, chamada Mel, sentiu muito medo e
que ela mesma não gostava de sentir medo.
A psicopedagoga perguntou o que Jade sentiria se estivesse no lugar de Mel?
Ela responde que não sentiria “nada”. Qual seria o significado da palavra “nada”
para Jade? Pensando em um contexto mais amplo, e especialmente na forma como
Jade se colocava nas sessões, “nada” era como ela se sentia, quando não
conseguia ler e escrever. Na primeira sessão ela deixou claro que seu maior sonho
era aprender a ler e escrever.
Também podemos pensar na palavra “nada” como significado de ausente. E,
no caso de Jade, especialmente quando sua mãe tinha um discurso que a colocava
na posição de que seria analfabeta como o seu pai. Assim, ela ficava excluída do
mundo em que vivia, já que não poderia nunca aprender a ler e escrever. Manguel
(2006) afirma que aprender a ler insere a pessoa ao meio em que vive, à sua
cultura, à sua sociedade. Logo, Jade não se sentia incluída em seu meio familiar e
social.
No decorrer das sessões, Jade falava e mostrava nos seus desenhos que
quem podia viver, conhecer e aprender era a sua irmã, pois para essa filha sua mãe
não colocava nenhuma restrição. Talvez devido a essa ausência, Jade falava
compulsivamente sobre os problemas de sua família, para que alguém a escutasse,
na tentativa de encontrar o seu lugar de “existir” dentro dessa família, e assim, poder
viver criativamente. Lembramos que a criatividade para Winnicott (1975, p.98) é
“uma proposição universal [...] relaciona-se ao estar vivo [...] e relaciona-se com a
abordagem do individuo à realidade externa”.
Parece-nos que o que Jade sentia aproximou-se de alguma maneira daquilo
que a personagem Mel vivia na sua cidade. Mel era uma garota que vivia rodeada
de borboletas, e os moradores da cidade achavam muita graça naquilo, riam e se
divertiam desse seu jeito de ser. Ela guardava sua tristeza e não se permita chorar,
sempre acumulando sua mágoa, não tendo ninguém para compartilhar a sua dor.
Então, vários “nós” surgiram em seu corpo, e foi o “nó” no seu nariz que a levou a
tomar a decisão de mudar de cidade, já que onde ela morava não tinha verdadeiros
amigos.
Tal situação pareceu aproximar-se dos sentimentos que Jade poderia ter
dentro de sim mesma, não se sentindo incluída em seu meio familiar quando não
obtinha autorização de sua mãe para aprender a ler e escrever.
Assim, era muito importante para Jade sentir-se incluída e aceita pela
psicopedagoga e pelo grupo na Oficina de Leitura, encontrando um espaço em que
pudesse ser reconhecida como um sujeito aprendente.
Vemos, portanto que a leitura dessa história possibilitou a Jade se aproximar
de seus sentimentos criando uma forma de falar sobre sua dor, enfim tornar possível
uma narrativa interna. Como afirma Petit (2006a) a leitura permite a abertura de um
espaço interno de sonho e de fantasia, um espaço de autonomia, enfim a
recuperação de si mesma.
A história permitiu que Jade colocasse em cena os seus movimentos
psíquicos, oferecendo pensamentos novos, fortalecendo o seu Self e abrindo-lhe
espaços para a identificação.
Outra história importante para Jade foi “Ficar com raiva não é ruim”. Nessa
sessão Luis, Gustavo, Bruna e Jade se ofereceram para ler. Estávamos no início do
mês de novembro, ou seja, já tínhamos oito meses de Oficina de Leitura. Quase
todas as crianças já chegavam para a sessão dizendo: “hoje eu vou ler”, “eu também
quero ler”, com exceção de Valter que ainda se negava a ler.
Mas, Valter colocava-se numa posição de rir e satirizar aqueles que liam de
maneira incorreta. Nesse momento Jade fica muito nervosa e diz em voz alta:
“Quando chegar a vez de Valter vamos todos rir da leitura dele também”.
Quando terminamos a leitura dessa história a psicopedagoga perguntou se
ficar com raiva é bom ou ruim? E Jade respondeu que “quando alguém ri do outro
que está lendo ficamos com muita raiva”. Interessante como Jade traz
imediatamente a raiva que sentiu de Valter porque riu da má leitura dos colegas. Ela
percebeu que pode sentir raiva, e foi a partir da raiva que ela se impulsionou a
reclamar por seus direitos de leitora
Por essa reação podemos perceber a mudança de Jade. Uma menina que
chegou ao atendimento psicopedagógico alheia ao mundo e sem um lugar para
existir e que a partir de determinado momento toma as suas dores e a dor pelo outro
e num tom de voz firme e com palavras acertadas se coloca de maneira ativa na
situação. Postula pelos direitos daqueles que queriam ler, deixando clara a situação
criada por Valter.
Jade apresentou-se com autonomia de pensamento, falando em nome dela
mesma e de todo o grupo, e com uma atitude de proteção ao vínculo criado entre
todos, emergindo assim da dependência rumo à independência, como diria Winnicott
(2005).
Em outra perspectiva, encontramos nas afirmações de Manguel (2006, p. 89)
corroboração à idéia de que a leitura possibilita a independência. Para o autor
aprender a ler faz parte de uma iniciação, de uma “passagem ritualizada para fora
de um estado de dependência e comunicação rudimentar”, em todas as sociedades
letradas. Dessa maneira, aprender a ler favorece a comunicação, o que pode ajudar
a criança a caminhar rumo à sua independência.
Com esse acontecimento podemos também perceber a potência da literatura
no desenvolvimento de Jade, possibilitando-lhe expressar seus sentimentos e assim,
poder entender melhor o seu sentimento da raiva. Ou seja, a forma daquilo que faz
parte do humano, levando-a a compreender melhor a si mesma e o mundo ao seu
redor.
Na Oficina de Leitura Jade foi a criança que mais nos surpreendeu em
relação a sua aproximação ao ato de ler e de escrever. Na primeira avaliação da
leitura e da escrita, figura 11, a sua escrita era pré-silábica. Jade reproduziu os
traços da escrita como grafismos separados entre si, que somente ela conseguia
interpretar. Sua leitura era global não existindo qualquer relação entre as palavras
que lia e o que está escrito.
FIGURA 11 – Primeira Sondagem da escrita de Jade
Depois da realização da Oficina de Leitura, a partir de uma nova sondagem
da escrita, conforme figura 12, Jade estava alfabetizada. Sabia ler e a sua escrita
situava-se no Nível 5, cada fonema correspondendo a um grafema e as letras
formando sílabas e palavras.
FIGURA 12 – Segunda Sondagem da escrita de Jade
Quando finalizamos a coleta dos dados da nossa Oficina de Leitura Jade era
uma menina sorridente, mais presente às sessões, no sentido de mais discriminada
em relação às questões e aos problemas de sua família. Participava das sessões
com mais vontade.
Jade conseguiu melhor organização de seus pensamentos. Hoje sua fala é
clara e objetiva. Diminuiu bastante sua necessidade de falar compulsivamente.
Em uma sessão, com muito orgulho, ela falou que na sua casa, era ela quem
lia as histórias para seus pais e fazia as atividades escolares com sua irmãzinha. O
que aprendeu a fazer na Oficina de Leitura deu-lhe novos significados e sentidos
nas suas vivências familiares. Agora ela se sentia importante, de posse de um
saber, uma vez que podia levar para sua casa o que aprendeu a fazer na Oficina de
Leitura.
2.2.3 Bruna:
Bruna tinha oito anos e meio de idade e cursava a terceira série do Ensino
Fundamental quando foi encaminhada para o atendimento psicopedagógico. A mãe
achava que sua filha tinha problemas na leitura e escrita, e, principalmente,
dificuldade de se relacionar na escola e em outros ambientes fora de casa. A mãe
contou que todos os dias, Bruna chorava quando era deixada na escola, não
aceitando separar-se dela, temendo perdê-la. Bruna morava com os pais e uma irmã
de 12 anos.
Quanto à escolaridade, seus pais têm o ensino médio completo. O pai relatou
que nunca gostou de estudar, tendo repetido as séries por diversas vezes, e que
não gostava de ler. Mas fez questão de dizer que estudar é fundamental, é a base
de tudo. A mãe estudou até a 8ª série quando criança, e retomou seus estudos há
pouco tempo, terminando o ensino médio em 2007. A mãe afirmou que gosta de ler
embora não tenha hábito de leitura.
No início de nossos trabalhos na Oficina de Leitura, Bruna mostrava-se triste,
tímida e insegura. Falava com voz baixa e infantilizada. Quando chegava para as
sessões, escondia-se atrás de sua mãe e mostrava-se muito submetida à vontade
dela (mãe).
Na entrevista de anamnese, os pais de Bruna contaram que durante toda a
gravidez tinham uma preocupação: não conseguirem amar Bruna da mesma
maneira que amavam a primeira filha.
Assim, a mãe foi para a maternidade muito preocupada e com muita culpa por
estar abandonando a primeira filha que ficou na casa da avó materna. Um dia após
o nascimento de Bruna, uma tia, trouxe a notícia, que a outra filha estava sendo
teimosa e desrespeitando a avó e que esta batera na menina.
A mãe de Bruna contou que entrou em pânico e sentiu muita raiva de Bruna,
pois se não fosse o seu nascimento ela não estaria longe da primeira filha. Assim,
ela passou a ignorar a presença de Bruna no quarto e nem mesmo queria
amamentá-la. O pai percebeu esse comportamento da mãe, falou com os médicos,
que diagnosticaram o seu comportamento como uma “depressão pós-parto”, sendo
assim devidamente medicada. Devido a esse fato, Bruna e sua mãe permaneceram
internadas na maternidade por mais algumas semanas. Bruna foi cuidada pelas
enfermeiras, e depois já em casa, foi a avó materna que se colocou disponível para
esses cuidados.
A própria mãe admitiu a sua ausência de cuidados em relação à Bruna na
fase denominada por Winnicott (1983) de dependência absoluta.
Importante aqui relembrar Winnicott (1975, p.141), quando afirma que “se a
mãe puder proporcionar as condições corretas, todo e qualquer pormenor da vida do
bebê constitui-se o exemplo do viver criativo”. Porém, o relato da mãe de Bruna
somado ao que a menor trazia às sessões nos faz supor que ela não recebeu os
cuidados necessários para o desenvolvimento de um viver criativo.
Conforme Winnicott (1975), o viver criativo somente é possível quando a mãe
exerce com o bebê a preocupação materna primária, ou seja, a capacidade de a
mãe “adoecer sadiamente” na atenção e nos cuidados de seu filho.
Para Winnicott (2002), a preocupação materna primária é um estado especial
que acontece com a mãe quando ao final de seus nove meses de gravidez tem sua
atenção totalmente voltada para o seu bebê sabendo o que ele esta sentindo. A
partir daí, ela se coloca na posição incondicional de “estar devotada aos cuidados do
bebê”, estado este que poderá perdurar por algumas semanas ou meses. Assim, é
necessária uma adaptação e disponibilidade da mãe ao bebê como e quando ele
necessitar através do holding/sustentação e do handling/manejo.
A comunicação dessa atuação da mãe é silenciosa e o bebê somente
percebe os efeitos da confiabilidade no decorrer do seu desenvolvimento. Para
Winnicott (2002, p.87), “o bebê não tem conhecimento da comunicação, a não ser a
partir dos efeitos da falta de confiabilidade”.
Outro dado importante relatado pela mãe de Bruna dizia respeito a seu medo
de ter prejudicado sua filha. Ela temia que os medicamentos utilizados durante sua
depressão pós-parto pudessem ter afetado a inteligência da menina. Talvez, por
sentir-se culpada, a mãe encontrasse muita dificuldade em se desligar de Bruna e
permitir que ela tivesse um espaço próprio e independente.
Acreditamos que tais fatos possam ter contribuído para o que observamos em
Bruna: certo receio de não ser amada por sua mãe e mostrar-se muito submissa e
dependente dela.
Estes fatos, também podem estar relacionados à forma de Bruna se
relacionar com sua família, conforme contaram seus pais. Em situações de
discussões na família, entre os pais ou entre o pai e sua irmã, Bruna ficava muito
assustada, chorava e pedia desculpas para todos, como se sentisse culpada por tal
situação.
Na primeira sessão, Bruna estava com uma toalhinha nas mãos. A mãe
tomou a frente da menina e foi explicando que Bruna necessitava daquela toalhinha,
porque ela tinha um excessivo suor nas mãos. Mas, quando ela estava em lugares
desconhecidos, e com pessoas estranhas, esta sudorese aumentava.
Quando a psicopedagoga perguntou para Bruna porque ela estava com a
toalhinha nas mãos, muito assustada e nervosa disse que era para enxugar o suor
que saia de suas mãos.
O uso desse objeto por Bruna, uma criança de 8 anos, nos remete ao que
Winnicott falou sobre o Objeto Transicional22. Talvez ela usasse essa toalhinha
como um objeto que pudesse lhe dar segurança para enfrentar o desconhecido e a
ausência de sua mãe enquanto estivesse em atendimento psicopedagógico.
Winnicott (1975) nos diz que no caso de um desenvolvimento emocional
perturbado, às vezes, não há objeto transicional à exceção da própria mãe, e nesses
casos, a transição não pode acontecer, ou, também, a seqüência dos objetos
usados é rompida. Podemos pensar que talvez no caso de Bruna, poderia haver
uma patologia no uso deste objeto transicional ou uma fixação da criança na mãe;
22 Objetos Transicionais são aqueles objetos eleitos pela criança. Por volta de 4 a 6 aos 8 a 12
meses de idade surge no bebê uma tendência a entremear objetos que Winnicott (1975, p.16), chama de diferentes-de-mim, objetos, esses, que representam o seio como por exemplo: a mão, o polegar, uma ponta do lençol ou cobertor, bolas de lã, sons bucais como ‘mum-mum’, balbucios e outros; e que “pode-se supor que pensar, ou fantasiar se vincule a essas experiências funcionais”. Os objetos transicionais representam a primeira possessão do bebê e a área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido. Eles representam a transição do bebê de um estado em que este está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo separado. Os objetos transicionais oferecem à criança a possibilidade de simbolização.
talvez uma dificuldade de separação dessa mãe levando-a a uma dificuldade na
passagem para o simbolismo. Para Winnicott (1975) os objetos transicionais
oferecem à criança a possibilidade de simbolização.
Segundo este autor, quando o simbolismo é empregado a criança já pode
distinguir entre a “fantasia e o fato, entre objetos internos e objetos externos, entre
criatividade primária e percepção”. E o termo objeto transicional, “abre campo ao
processo de tornar-se capaz de aceitar diferença e similaridade” (WINNICOTT,
1975, p.19). Quando a capacidade de simbolizar ocorre, a criança não necessitará
mais do objeto transicional.
Parece-nos que foi isso que aconteceu, após algumas sessões, Bruna não
trouxe mais a toalhinha. Talvez tenha encontrado um espaço de segurança e
confiança na nossa “Oficina de Leitura” e nunca mais teve sudorese em suas mãos.
Outro fato comum no atendimento psicopedagógico, era o medo e a
insegurança de Bruna quando terminávamos a leitura da história. Todas as crianças
falavam o que sentiam a partir da história lida, e muitas vezes dávamos seqüência
com outras atividades.
Freqüentemente, Bruna permanecia em silêncio, nas primeiras sessões. E
muitas vezes, ela pedia para sair da sala, com desculpas de ir beber água, fazer
“xixi”, como se ela tivesse medo de falar de si mesma e não pudesse ter um espaço
para existir. Também pensamos na possibilidade da paciente querer sair da sala
para verificar se sua mãe realmente estava na sala de espera, aguardando o término
da sessão.
Com relação às atividades, primeiro ela não sabia o que fazer, ficava quieta,
sentada olhando para a psicopedagoga e para as atividades de seus colegas.
Depois quando resolvia fazer alguma coisa, às vezes copiando o que algum colega
estava fazendo, ela não conseguia fazer nada, e ficava perdida.
Percebíamos que Bruna não tinha iniciativa e nem vontade própria. Quando
perguntávamos o que gostaria de fazer ou o que ela tinha vontade de fazer após a
leitura da história, as suas respostas eram sempre as mesmas: “Não sei”. Ficava
claro que Bruna não tinha a capacidade de brincar, ou seja, não sabia fazer uso de
sua criatividade.
Assim, percebemos que a sua relação com a psicopedagoga na Oficina de
Leitura no princípio era de distanciamento e de desconfiança.
No entanto, essa atitude de Bruna foi se modificando, uma vez que tínhamos
a Oficina de Leitura como um Espaço Potencial. Ela tinha a função de devolver a
criança à própria criança. Como postula Winnicott (1975), a essência da terapia é o
favorecimento dos processos de integração da personalidade sustentado pelo
holding do terapeuta (e aqui se incluem o handling e a apresentações de objetos).
Assim, a Oficina de Leitura constituía-se como um espaço terapêutico onde a
posição da psicopedagoga surgia a partir das necessidades específicas de Bruna,
evitando-se assim, invasões que pudessem gerar mudanças subjetivas na paciente.
Aos poucos, Bruna mudou sua forma de se relacionar com a psicopedagoga.
Ela passou a ter uma forte relação de dependência, mostrando sua insegurança,
não conseguindo fazer nada sozinha, buscando sempre uma autorização para fazer
as atividades. Quando se propunha a fazer, queria a perfeição, mas nem sabia como
deveria fazer para consegui-la, então parecia viver o caos. Assim, Bruna ficava
muito perdida na realização das suas atividades, buscando sempre se submeter à
psicopedagoga.
Tal característica mostrava a total dependência de Bruna, como a relação
mãe-bebê, e que na Oficina de Leitura se mostrava na relação psicopedagoga e
Bruna.
Por outro lado, essa dependência fazia muito sentido uma vez que a Oficina
de Leitura era o Espaço Potencial, ou seja, uma área intermediária que é concedida
ao bebê, entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da
realidade; uma área de ilusão, em que um novo espaço poderá ser sobreposto para
expandir o seu viver criativo. Está é uma área em que, conforme Winnicott (1975), a
criança poderá brincar e ter novas experiências culturais.
Lembramos que, conforme Safra (1995), uma vez que existia a confiança na
relação terapêutica, Bruna poderia regredir a um estado de dependência, esperando
que a psicopedagoga suprisse as funções necessitadas por ela, podendo retomar o
seu desenvolvimento psíquico.
Assim, Bruna poderia regredir e se colocar novamente na fase da
dependência absoluta, para alcançar o Eu-sou como fala Winnicott (1990), tentando
conseguir a ilusão da onipotência infantil. Caso a psicopedagoga se colocasse na
posição de uma terapeuta suficientemente boa, conforme Winnicott (1975), essa
experiência lhe permitiria viver a onipotência e o seu narcisismo que não pode viver
logo após o seu nascimento. Essa posição poderia lhe fornecer a ilusão de que
existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar,
conforme aponta Winnicott, (1975).
Dessa maneira, a psicopedagoga no decorrer da Oficina de Leitura,
inicialmente se colocou na posição incondicional de ajudar Bruna e estar sempre
disponível. Todas as vezes que ela se sentia perdida e necessitando de ajuda na
realização de suas atividades, tinha o holding tão necessário para o seu
desenvolvimento.
Com o sentimento de segurança e confiança, sustentado pela psicopedagoga,
vivido na Oficina de Leitura, Bruna podia lidar com a separação do objeto,
experimentando assim o seu viver criativo, iniciando dessa maneira a transição da
dependência absoluta para a dependência relativa.
Assim, lentamente a psicopedagoga foi permitindo que algumas falhas
acontecessem, para que Bruna pudesse perceber a realidade em que ela estava
inserida. Os colegas do grupo, sem que percebessem, também faziam parte desse
trabalho: quando também tinham as suas dificuldades nas atividades, quando
tentavam fazer o trabalho e não obtinham o resultado desejado, ou mesmo quando
não tinham vontade nenhuma para fazer o que a maioria do grupo escolhia fazer.
Nesses momentos, a psicopedagoga tinha a paciência, o acolhimento, para permitir
que cada criança fizesse a sua vontade, desde que não prejudicasse o grupo.
Assim, a Oficina de Leitura existia para desenvolver a capacidade de
experimentar uma relação com a realidade externa, permitindo que Bruna e as
outras crianças pudessem ter integração e maturidade emocional. Com base nas
suas próprias experiências e vivências, elas podiam ter acesso à realidade a partir
de suas próprias experiências, sentindo que a vida vale a pena. Afinal a intenção da
Oficina de Leitura era promover o viver criativo das crianças.
Sendo assim, vamos relatar um momento inicial da Oficina de Leitura para
mostrarmos como Bruna se colocava na sessão.
Depois da leitura da história “Como nasceu a alegria”, as crianças narraram
os sentimentos que surgiram a partir dessa história. Bruna ficou muito reflexiva.
As crianças tinham muitos momentos de alegria para contar, mas, Bruna não
tinha nada para falar. O olhar cabisbaixo e a tristeza tomaram conta da menina. Tal
situação lembra-nos a maneira como Bruna chegou à primeira sessão. Um olhar
triste mostrando não ter alegrias na vida, muito quieta, assustada, escondida atrás
de sua mãe, que falava e vivia no lugar da filha.
Depois de várias sessões, e de algumas histórias lidas, e Bruna sempre muito
calada, finalmente a história “Nós” toca Bruna de alguma maneira. Ela falou que
gostou muito dessa história porque a personagem Mel quando saiu de sua cidade
conseguiu fazer vários amigos. Então ela disse: “Eu também gostaria de ter minhas
amigas”, mas, ela vivia muito sozinha. Com este relato parecia que Bruna começou
a perceber o quanto o seu mundo era pequeno, apenas ela e a mãe.
Essa história possibilitou a Bruna poder pensar em outros mundos além
daquele que ela vivia com sua mãe. Poder perceber o quanto foi importante para a
personagem Mel conseguir um amigo fora de sua cidade, ou seja, fora do seu
mundo, um amigo que a entendia e tinha os mesmos problemas que ela.
Talvez a Oficina de Leitura tenha sido a oportunidade para Bruna conseguir
esses novos amigos, iguais a ela, que estavam em atendimento psicopedagógico
por não saberem ler e escrever.
No seu tempo Bruna encontrou um espaço de segurança e confiança, no qual
ela podia ser ela mesma, sem invasões, vivenciar situações fragmentárias e
harmoniosas, possibilitando-lhe, como fala Winnicott (1975) uma membrana divisória
entre o Eu e o não-EU, até que o estágio do Eu-sou pudesse ser alcançado,
momento em que se estabeleceu o estágio de dependência relativa.
A partir daí aconteceu uma evolução contínua na forma de ser e de atuar de
Bruna. Chegava para as sessões sorrindo, era sempre a primeira a cumprimentar a
psicopedagoga, com um abraço e beijo, não precisando mais se esconder atrás da
mãe. Ela agora já tinha a iniciativa para perguntar qual história seria lida, qual seria a
atividade realizada etc. Agora tinha um mundo próprio e interesse nas coisas que
aconteciam neste mundo.
Os seus desenhos passaram a ter mais elementos e mais cor, mostrando
mais vida e alegria.
Neste sentido, gostaríamos de mostrar a atividade de Bruna nomeada
“Aprendente”, realizada no inicio e no final da Oficina de Leitura. Essa atividade tinha
como consigna “Desenhe alguém aprendendo alguma coisa”, e tinha como objetivo
compreender como se estabelece o vínculo entre ensinante, aprendente e a sua
relação com o conhecimento.
Assim, a partir do primeiro desenho, Figura 13, que apresentamos a seguir,
Bruna no seu relato sobre ele, apenas descreve o que desenhou: “a lousa, um
bonequinho, o sol, a nuvem, giz colorido, e uma menina que se chama Bruna”. Não
quis contar nenhuma história. Importante observar o esquema corporal projetado na
folha e como ela se desenhou triste, e virada de costas para a lousa, o seu objeto de
conhecimento. Não desenhou ninguém como ensinante. Por quê?
Tal característica, talvez, sugira o fato de que Bruna no início do nosso
atendimento, não pudesse existir como uma pessoa independente, uma vez que
conforme relatamos ela ainda não tinha um Eu-Sou separado de sua mãe.
FIGURA 13 – Primeiro desenho de Bruna: “Aprendente”
No final da realização da Oficina de Leitura, as crianças fizeram novamente o
desenho do “Aprendente”. A seguir apresentamos o desenho de Bruna na Figura
14. Parece um desenho com muito mais vida, expressando mais alegria de viver. Ela
contou que se desenhou comentando: “Eu ensinando minha prima a ler”. Agora ela
já podia desenhar uma ensinante (ela) e uma aprendente (a sua prima) e um objeto
de conhecimento: a leitura.
Agora ela pode dizer “EU porque ela existe separadamente de sua mãe, se
apropriou do seu verdadeiro “EU”, garantindo a expressividade criativa de seu Self.
Ela também já se coloca na posição de uma ensinante que ensina sua prima
(aprendente) a ler, exatamente o que era tão difícil para ela fazer quando chegou à
nossa primeira sessão. Agora Bruna podia fazer com sua prima aquilo que
vivenciou e aprendeu a fazer na nossa Oficina de Leitura.
Ainda, vale a pena observarmos como ela melhorou o desenho do esquema
corporal. E o sorriso que fez no rosto das duas crianças e no sol. O mais gratificante
em tudo isso, não é apenas o brilho e alegria no olhar do sol, mas o brilho no olhar
de Bruna, expressando um viver criativo.
FIGURA 14 – Segundo desenho de Bruna: “Aprendente”
Bruna já não tinha mais necessidade de sair da sala nas sessões,
permanecendo sempre com o grupo, fazendo seus trabalhos com muita alegria, com
segurança e confiança.
Quanto à leitura, nas primeiras sessões ela tinha muita dificuldade em aceitar
a posição de leitora, e se colocar à disposição para ler. Parecia que tinha muito
medo de existir.
Com relação à escrita Bruna obteve um crescimento. Na sua primeira
avaliação, conforme figura 15, ela estava na fase silábica-alfabética em que para
cada som, o indivíduo associa uma letra, buscando, assim, um valor sonoro para
cada letra utilizada na sua escrita. A criança ora escreve um letra para representar a
sílaba, ora escreve a sílaba completa.
FIGURA 15 – Primeira Sondagem da escrita de Bruna
Com o passar de várias sessões, ela perdeu o medo e a vergonha de se
colocar como uma leitora. Esta posição de Bruna ajudou-a em seu desenvolvimento
na Oficina de Leitura, mas especialmente na sua vida, uma vez que tinha como
questão principal a sua dificuldade para se expressar.
Assim, na última avaliação realizada, sua escrita estava na fase Alfabética,
conforme figura 16, e que segundo Ferreiro (1999) significa que ela está
alfabetizada, situando-se no Nível 5, em que cada fonema corresponde a um
grafema e as letras formam sílabas e palavras. A criança já compreende o sistema
de escrita faltando apenas apropriar-se das convenções ortográficas, principalmente
nas sílabas complexas. Por outro lado, a sua leitura melhorou muito, ela não tinha
mais medo de ler, mas muito prazer e alegria em poder ler para o grupo.
FIGURA 16 – Segunda Sondagem da escrita de Bruna
2.2.4 Luis:
Luis tinha nove anos de idade e estava na terceira série do ensino
fundamental quando iniciou o atendimento psicopedagógico, encaminhado pela
escola porque falava errado e tinha dificuldade na leitura e na escrita. Luis
reconhecia não saber ler nem escrever.
Na entrevista de anamnese realizada com a mãe e o padrasto de Luis,
soubemos que eles estavam separados, e que moravam em lugares distintos. Luis
morava com sua mãe e seu irmão (apenas por parte da mãe). Apesar de seu
padrasto não viver na mesma casa, ele parecia muito presente na vida de Luis. Foi
ele quem trouxe Luis, a maioria das vezes, para as sessões de atendimento
psicopedagógico.
Ainda na entrevista, sua mãe contou que tinha 18 anos e namorava quando
ficou grávida de Luis. O namorado não quis assumir a sua responsabilidade de pai,
abandonando-a. Ela contou que sofreu muito porque sua família não aceitou essa
gravidez. Então, o atual padrasto de Luis, na época com 39 anos construiu uma
casa no fundo do quintal de seus pais e passou a morar com ela ajudando-a na
criação dessa criança. Após quatro anos, eles tiveram mais um filho. Conta a mãe
que Luis só ficou sabendo dessa história quando tinha 7 anos de idade. Mas
ressaltamos que no decorrer de todas as sessões realizadas ele nunca trouxe esse
fato para a nossa Oficina de Leitura.
Luis permanecia a maior parte do dia na casa da avó materna, e desde a
morte de seu avô materno ele dormia com sua avó. A mãe parecia não fazer
questão de trazer seu filho para morar efetivamente com ela, deixando transparecer
em seu relato que era confortável deixá-lo com a avó.
A escolaridade da mãe foi até a 6ª série, sendo que nunca gostou de estudar
e que não gosta de ler. O padrasto estudou até a 8ª série porque precisou parar
seus estudos para trabalhar na roça. Ele também não tem o hábito da leitura.
Segundo a mãe, Luis tem muita dificuldade em tudo, principalmente porque
fala muito errado, e não se interessa em aprender. Segundo o padrasto, Luis é
dengoso.
Nos primeiros atendimentos, Luis era uma criança muito quieta, mas quando
falava tínhamos muita dificuldade para entendê-lo. Falava em tom de voz baixo,
muito enrolado, e muitas vezes ele agia como um bebê.
No decorrer das sessões se envolvia nas confusões e brigas com Gustavo e
Valter. Algumas vezes, um dos meninos do grupo falava alguma coisa que o outro
não gostava, e isso era motivo para se agredirem com palavras e muitas vezes
fisicamente.
Percebemos que Luis tinha muito ciúmes do seu irmão. Antes do início das
sessões, o padrasto fazia questão de ressaltar as qualidades de seu filho legítimo,
dizendo que ele tem cinco anos e já sabe ler e escrever, o que Luis ainda não sabia
fazer direito.
A mãe quando trazia Luis para a sessão fazia questão de reclamar de seu
filho, dizendo que ele não respeitava ninguém e que ela estava tendo muita
dificuldade para colocar regras e limites para Luis, e que isso não acontecia com o
seu segundo filho. Ela também reclamava do padrasto, dizendo que ele só sabia
elogiar o seu filho legítimo, enquanto, em relação a Luis, só apontava os erros.
Tais relatos nos levam a perceber que a própria narrativa da família colocava
Luis em um lugar inferior, como se ele não tivesse um lugar neste núcleo familiar. O
lugar de filho bom e perfeito era do segundo filho, o legítimo, este sim, tinha, na fala
dos pais, um lugar privilegiado e valorizado.
O relacionamento de Luis era de submissão, seu mundo externo existia como
algo a se ajustar ou adaptar-se. Winnicott (1975) nos dizia que os sentimentos de
submissão trazem um sentimento de inutilidade somado à idéia de que nada importa
e de que não vale a pena viver a vida, não existindo assim, um viver criativo.
Talvez esta tenha sido a modalidade de aprendizagem desenvolvida por Luis.
Sabemos que a modalidade de aprendizagem da criança constrói-se desde o
nascimento, na sua relação com o seu grupo familiar. Para Porcacchia (apud NETO
e ANDRADE, 2008, p.110-111), é importante que no atendimento psicopedagógico
seja observado não apenas:
[...] o indivíduo isoladamente, mas todo o contexto no qual ele está inserido, com as dificuldades inerentes às relações humanas, e principalmente levando-se em conta a modalidade de aprendizagem construída por essa criança, que está transversalizada de forma única e individual, por uma rede particular de vínculos e significações em relação ao aprender, conforme o seu grupo familiar.
No entanto, a Oficina de Leitura, propiciou um espaço saudável de
aprendizagem possibilitando às crianças a oportunidade de serem ativas e
independentes. A leitura de literatura e a realização de atividades que surgiam a
partir dela permitiram a vivência de experiências culturais que contribuíram para o
viver criativo, e para o sentido de humanização de Luis e outras crianças do grupo.
Comprovamos o que nos disse Antonio Candido (1988), a leitura de literatura
tem a sua fundamental importância nas formas de educação grupal, possuindo um
papel respeitável como formador da personalidade do ser humano, humanizando e
fazendo viver.
Com o passar de algumas sessões, Luis começou a mudar, portando-se de
maneira mais ativa e não respeitando as regras combinadas pelo grupo. Ele fazia o
que queria, por exemplo, dava cambalhotas na sala, plantava bananeiras, virava
estrela. Saia da sala sem falar nada, sem dar satisfação, invadia os trabalhos dos
colegas, enfim, não tinha limites para a realização de suas vontades.
Mas no decorrer da Oficina de Leitura Luis foi se transformando. Assim,
vamos tentar mostrar como isso foi acontecendo.
Iniciamos com o momento em que lemos a história “A menina e o pássaro
encantado” de Rubem Alves. Essa história contava a relação de amizade entre uma
menina e um pássaro que era encantado e que vivia livre indo e vindo na casa da
menina. A cada visita ele lhe contava histórias dos lugares que conhecia.
Segundo Rubem Alves, esta história fala da separação de duas pessoas que
se amam e têm de dizer adeus, ficando um imenso vazio, a presença da ausência
chamada saudade. Para o autor, não deveria haver despedidas ou mesmo partidas,
porque é a saudade que torna encantadas as pessoas, e é ela que faz crescer o
desejo levando as pessoas a prepararem-se para um abraço.
Após a leitura dessa história Luis contou que amava sua avó e que sentia
muita saudade de seu avô que já havia falecido. Falou que essa história tinha muito
a ver com a vida dele, que ele se sentia um menino encantado porque seus avós
faziam todas as suas vontades, e por isso ele gostava muito de ficar com eles.
Nas próximas histórias lidas como, por exemplo, a história “Os morangos”, “O
medo da sementinha”, ele trouxe o fato de que sentia muito medo.
No entanto quando lemos “Como nasceu a alegria”, ele pode falar e mostrar
seus machucados e suas dores.
Quando lemos a história “Quando a mamãe virou um monstro”, ele ficou
calado, recusou-se a fazer a atividade que o grupo havia escolhido fazer, e resolveu
copiar a figura de uma aranha na capa de outro livro que encontrou na sala.
Na história “A gotinha de orvalho”, Luis gostou muito da história e contou que
gostou mais da parte que “a gotinha não conhecia nada, e depois ela descobriu que
quando o sol nascer ela viraria nuvem”. Nesse momento ele contou que “gostou
muito, mas muito mesmo quando a relva conversou com a gotinha para que ela não
sentisse medo dessa transformação”.
Mas, quando lemos a história “Ficar com raiva não é ruim”, Luis afirmou que
ficar com raiva é ruim sim, porque ele acaba brigando e perdendo seus amigos.
A cada sessão Luis estava conseguindo encontrar um espaço de segurança e
de confiança para poder narrar as suas dores, encontrando um significado interno
para ele.
Dessa maneira a Oficina de Leitura, parece realmente ter possibilitado a Luis
a criação de um livro interno, como ressaltamos com Cabrejo Parra (2004, 2007). A
leitura dessas histórias possibilitou-lhe uma percepção criativa, ou seja, a
experiência da ilusão, permitindo que ele pudesse construir sua subjetividade na
percepção da realidade. Os seus fantasmas psíquicos puderam ser elaborados, de
acordo com Cabrejo Parra (2004), uma vez que as histórias, de maneira indireta,
foram lhe propiciando a montagem de diversas cenas podendo assim simbolizar
todas elas de diferentes maneiras. Esse é um trabalho simbólico, que lhe possibilitou
outros espaços psíquicos, retomando assim a temporalidade de uma língua escrita e
oral.
Também podemos notar a grande importância para Luis em ouvir a leitura da
literatura, e a sua entrada de maneira prazerosa na língua falada da nossa cultura. O
texto literário por sua potência de construção e de abertura de sentido ofereceu ao
leitor e ao ouvinte possibilidades para romper o aprisionamento de sentido único.
Com certeza a prosódia da língua, o ritmo, a harmonia da nossa língua, a
sonoridade e musicalidade das palavras auxiliaram Luis a melhorar a sua forma de
falar. Logo, a entonação da leitura realizada em voz alta, como um espelho, ajudou
Luis a aprender a sua língua mãe, que lhe pertencerá por toda vida, como um
patrimônio imortal.
Quanto a sua primeira avaliação da leitura e da escrita, Luis situava-se no
Nível 1, na fase Pré-silábica, conforme Figura 17, em que algumas letras aparecem
na mesma ordem e lugar, outras letras de forma diferente. Varia a quantidade de
letras para cada palavra. Quanto à leitura, não conseguia ler, e quando fazia uma
tentativa ele lia por adivinhação.
FIGURA 17 – Primeira Sondagem da escrita de Luis
Na segunda avaliação podemos perceber um grande crescimento na sua
leitura e escrita, conforme Figura 18. Na escrita ele evoluiu para o Nível 4, a fase
silábica-alfabética. Ora escrevia uma letra para representar a sílaba, ora escrevia a
sílaba completa. A dificuldade era maior nas sílabas complexas.
FIGURA 18 – Segunda Sondagem da escrita de Luis
2.2.8 Valter:
Valter tinha nove anos de idade, estava na terceira série do ensino
fundamental quando foi encaminhado à Clínica Psicopedagógica pela coordenadora
de sua escola e pela psicóloga que o atendeu, porque apresentava dificuldade na
aprendizagem da leitura e da escrita bem como por comportamento inadequado
durante as aulas. Segundo sua mãe, Valter não queria aprender ler e escrever e
tinha dificuldade para se expressar, conversar.
Ele é filho único, adotivo e vivia apenas com a mãe, uma vez que o pai já
havia falecido. A mãe parecia depressiva, e era responsável pelos cuidados de seus
próprios pais de idade avançada e com diversos problemas de saúde e que residiam
em outro bairro. Na anamnese, ela contou que cuidava e tratava de seu filho
sozinho, dando-lhe tudo que precisava. Contou que ele ainda dormia em sua cama,
que ela muitas vezes, ajudava Valter a tomar banho. Contou ainda que algumas
vezes colocava a comida na boca do seu filho por duas razões: quando comia na
frente da televisão porque ele se esquecia de comer, ou para não derramar a
comida no sofá.
Com relação à escolaridade dos pais, estudaram até a 4ª série do ensino
Fundamental. A mãe disse que não tinha o hábito de leitura de livros e que às vezes
lia apenas a Bíblia.
Valter era uma criança muito calada, e quando falava seu tom de voz era
muito baixo. Ele era uma criança apática e sem nenhuma iniciativa para realizar as
atividades apresentadas. Quando eram colocadas as atividades, Valter reclamava e
resmungava, num tom de voz como se fosse um bebê. Deixava claro que não sabia
ler e que não queria ler. Observamos que na verdade ele não desejava ler.
Ele era filho adotivo, mas nunca trouxe esse fato para as sessões. Na
entrevista, a mãe contou que Valter sabia ter sido adotado logo que nasceu, e sabia
que ela desejava muito ter um filho, uma vez que nunca conseguiu engravidar.
Valter parecia um bebê grande, sempre encostado na mesa, com uma fala
muito infantilizada, voz muito baixa, sempre com preguiça para fazer qualquer
atividade. Parecia que Valter tinha preguiça de existir. Muitas vezes procurava
arrumar confusão com os meninos do grupo, empurrando, cutucando, deitando-se
em cima dos trabalhos dos colegas, rindo da forma como os colegas liam, enfim
parecia que ele precisava chamar atenção de alguma maneira.
Certo dia, depois de terminada a sessão, sua mãe falou para a
psicopedagoga que precisava ir ao banco. Valter começou a choramingar e reclamar
como um bebê, se negando a ir ao banco com sua mãe. Ele, de maneira onipotente,
exigia que tudo fosse feito conforme a sua vontade.
Nos seus desenhos, Valter se colocava como o melhor guitarrista do mundo,
o melhor “skatista” da turma. Buscava sempre saídas megalomaníacas. Também
nos seus desenhos, ele fazia uma coisa muito caricatural a respeito dele mesmo.
Podemos pensar na existência de um Falso-Self, uma vez que Valter nas
sessões não conseguia a sua total potência de um viver criativo.
Esse fato pode fazer sentido quando pensamos no fato de que a mãe
biológica desse menino não quis ficar com ele, por ser fruto de um “pecado”, ou seja;
de uma traição com outro homem que não o seu marido. Assim, logo depois do
nascimento, ainda na maternidade ele foi levado por uma tia para ser entregue no
dia seguinte à mãe adotiva.
Como encontrar um sentido para viver? Podíamos perceber que sua dor era
profunda e parecia irreparável.
Assim, a partir das histórias lidas Valter foi tentando encontrar um sentido
para sua vida.
Quando lemos a história “Os morangos” Valter disse: “senti vida ou morte”. As
crianças fizeram uma atividade em que deveriam procurar nas revistas figuras de
coisas que gostavam e do que não gostavam. Depois deveriam colar essas figuras
em uma cartolina, que foi dividida ao meio, um lado para o que gostavam e outro
para o que não gostavam. Entre as figuras, ele recortou a figura de um bombeiro,
colando no lado das coisas que gostava. Explicou que gostaria de ser bombeiro. Tal
situação levou-nos a pensar porque ele escolheu justamente um bombeiro? Teria
alguma relação com seu caminho de vida? Talvez ele quisesse ser “o salvador”.
Aquele que ajuda as pessoas no sofrimento do outro? Será que ele busca ajuda
para si mesmo? Ou para sua mãe? A biológica ou a adotiva, afinal as duas e
colocam em uma situação difícil em relação a Valter. A biológica não podia viver
com ele, e a adotiva não conseguia viver sem ele.
Na história “O medo da sementinha”, novamente Valter falou em mensagem
de vida e de morte.
Quando lemos “Como nasceu a alegria”, ele disse que gostou muito dessa
história porque ela falava da alegria de viver.
Mas foi a leitura da história “Ninguém gosta de mim” que realmente tocou o
menino Valter.
Essa história contava a vida do cachorro Coquinho que era novo na cidade e
que desejava fazer amigos. A cada tentativa de fazer amizade com os animais
vizinhos onde ele foi morar, ele se desencorajava e dizendo sempre: “ninguém gosta
de mim”. Até que ele se põe a chorar. Apareceu uma raposa e Coquinho contou-lhe
que ninguém queria brincar com ele, porque ninguém gostava dele. Com ajuda da
raposa Coquinho procura novamente o contato com cada animal e descobre que
todos tinham suas razões, seus medos, para não se aproximar dele. No final eles se
tornam grandes amigos.
Quando a psicopedagoga pergunta para as crianças o que acharam da
história, Valter responde: que muitas vezes sentia-se como Coquinho e que ninguém
gostava dele, principalmente quando tinha que ficar na casa de sua avó.
Valter contou que: “Gosto de brincar na rua com os amigos, tenho a
autorização da minha mãe, mas quando o meu padrinho me vê na rua manda eu
voltar para casa. Minha mãe fala que o padrinho está certo, e não me escuta. Fico
muito triste e acho que ninguém gosta de mim porque não me deixam fazer o que eu
quero”23
Ainda, após a leitura e a possibilidade de falar sobre esta história, tivemos
como atividade, escolhida pelas crianças, jogar o jogo “ABC animado: de letra em
letra é fácil aprender o alfabeto”, da Grow.
Nesse jogo existia sempre uma letra equivalente à inicial dos nomes das três
figuras que apareciam na cartela, na qual não bastava que a criança encaixasse a
letra, era preciso que ela lesse as palavras da cartela e identificasse a inicial da
palavra.
Valter encontrou a cartela da inicial cantada, e na hora da leitura das palavras
ali escritas, pela primeira vez, falou: “Eu tenho preguiça de ler”.
A psicopedagoga apenas repetiu: “Ah, você está me falando que tem preguiça
de ler!”.
Parece que a história trouxe para Valter a possibilidade de sair de uma
posição de submetido e poder a partir daí se implicar, assumindo uma posição ativa,
quando faz uso do termo “EU”.
Parece que a Oficina de Leitura, através da leitura de literatura infantil,
colocou em crise algumas representações que Valter fazia dele mesmo, permitindo
se colocar de maneira diferente diante das questões da realidade da vida.
O tempo todo ele se colocava como uma criança impedida de fazer alguma
coisa, ele era o impedido pelo tio, pela mãe. Ele estava aprisionado a um campo
onde o outro que fazia tudo, num campo de não implicado em nada, ou seja, em
uma posição de sempre sofrera ação do outro.
23
Transcrevemos a forma de falar de Valter.
O texto literário por sua potência de construção e de abertura de sentido
ofereceu a Valter a possibilidade de romper o aprisionamento de sentido único,
permitindo que ele se percebesse e se colocasse em outro lugar.
Este fragmento do atendimento de Valter permite-nos falar do método da
psicanálise – a interpretação como ruptura de campo.
Segundo Herrmann (apud Barone 2007b, p.47):
[...] campo é o inconsciente em sua ação concreta. Não necessariamente o complexo de Édipo ou qualquer outra das formações psicanalíticas conhecidas, mas o inconsciente de uma relação humana. A decifração de qualquer relação – individual..., intra-pessoal, interpessoal...- mostra os determinantes da consciência nela empenhada, ou seja, seu inconsciente relativo, o inconsciente da relação. O ato que o faz surgir é a ruptura de campo.
Para Herrmann, todas as teorias, escolas psicanalíticas e psicoterapias
diversas, cujos resultados se assemelham, operam com o método psicanalítico – a
interpretação – entendida como ruptura de campo.
O paciente fala a partir de um campo e o analista o escuta em outro, trata-se,
como vemos, de uma escuta descentrada, de maneira a permitir, ou favorecer, que o
campo seja rompido. Para Herrmann (2001) o motor do processo terapêutico é a
ruptura de campo. Através dela são reveladas as regras que aprisionavam o sujeito
em um determinado campo dando oportunidade de criação de novos sentidos.
Pensamos que de alguma maneira isso ocorreu como Valter.
Valter se mostrava sempre numa total passividade, e a partir da história lida,
numa atividade de jogo, ele se implicou, assumindo, com a observação a sua
preguiça em ler.
Nas sessões seguintes, Valter passou a se interessar mais pelas atividades
realizadas na Oficina de Leitura. Parecia ter mais vontade em fazer o que o grupo se
propunha, tornando-se mais amigo, companheiro, respeitando o lugar dos colegas
do grupo.
Ele chegava às sessões mais alegre, com mais vontade de participar das
sessões, se colocando na posição de leitor. Tinha muita dificuldade para ler, mas
não desistia. Ele tinha um brilho no olhar, uma vontade de viver criativamente, como
diria Winnicott (1975).
O nível de leitura e de escrita de Valter, na primeira avaliação era o Nível 1,
fase pré-silábica, conforme Figura 19, em que algumas letras aparecem na mesma
ordem e lugar, outras letras de forma diferente, variando a quantidade de letras para
cada palavra.
FIGURA 19 – Primeira Sondagem da escrita de Valter
No final da Oficina de Leitura fizemos uma nova avaliação da leitura e da
escrita, conforme Figura 20. Valter estava no nível 2, na fase silábica, iniciando uma
correspondência sonora, ou seja, a criança escreve uma letra para cada sílaba e
começa a utilizar letras que correspondem ao som da sílaba.
Figura 20 – Segunda Sondagem da escrita de Valter
2.3 A ANÁLISE DO GRUPO
Com relação à análise do trabalho realizado com o grupo, na Oficina de
Leitura, tomamos em consideração as palavras de Winnicott (2005a, p.213) quando
diz que “a psicologia de grupo tem sua base na psicologia do indivíduo, e
especialmente na integração pessoal deste”, com “a continuidade do
desenvolvimento emocional”. Segundo esse autor a criança parte da dependência
em direção à independência, e dessa maneira, o indivíduo sadio poderá ser “capaz
de identificar-se com grupos cada vez mais amplos sem uma perda da noção de self
e de sua espontaneidade”. Nesses casos, a base de formação grupal madura é a
multiplicação de unidades individuais que Winnicott (2005a) chama de Superposição
de unidades.
Mas essa não era a situação do nosso grupo. No caso da nossa Oficina de
Leitura tínhamos outro tipo de grupo como o que Winnicott (2005a, p.219) nomeou
“um conjunto de pessoas relativamente não-integradas24”, em diferentes graus.
Eram crianças que, conforme a anamnese, tinham uma relação de muita
dependência na sua dinâmica familiar, e nos nossos encontros mostravam-se como
“seres humanos imaturos” (WINNICOTT, 2005a, p.220). E, nesses casos, conforme
esclarece o autor, havia a necessidade se estabelecer uma “cobertura”, no sentido
de uma mãe que dá cobertura quando a criança necessita integrar o seu self. Para
Winnicott (2005a) o trabalho de integração do self não provém dos indivíduos que
fazem parte do grupo, mas da “cobertura” realizada pela terapeuta, e que na nossa
oficina foi feito pela psicopedagoga.
Assim, para Winnicott (2005a, p.219), “um conjunto de pessoas relativamente
não-integradas pode receber uma cobertura e constituir um grupo. Neste caso, como
já dissemos o trabalho de grupo não provém dos indivíduos, mas da cobertura” que
é realizada pela terapeuta.
O que Winnicott (2005a) defende nesses casos é a importância da posição de
sustentação humana que cabe ao terapeuta.
Nesses termos, Karina Barone (2008) em sua Tese de Doutorado discutiu a
posição do analista e a sua importância na posição de sustentação humana a partir
de Winnicott. No atendimento psicoterapêutico com crianças hospitalizadas
portadoras de enfermidades graves, ela estudou a posição do analista como
promovedor de um espaço terapêutico capaz de fornecer sustentação humana à
condição originária do individuo, favorecendo assim, o seu processo maturacional.
Segundo Karina Barone (2008, p.11) Winnicott propõe que “o dispositivo
terapêutico da psicanálise apóia-se na construção de um espaço de intimidade entre 24
Para Winnicott (2005a, p.216): “Antes da integração, o indivíduo é um conjunto não-organizado de fenômenos sensório-motores contidos no ambiente externo. Depois da integração o indivíduo É, ou seja, a criança humana atingiu o status de unidade, podendo já dizer EU SOU. O individuo possui agora uma membrana limitante, de forma que o que é não-eu é repudiado, é externo. Esse eu possui agora um dentro, onde podem reunir-se as memórias de experiências e edificar-se a estrutura infinitamente complexa que pertence ao ser humano”.
analista e paciente a partir de uma posição específica do analista: a posição de
sustentação”. Assim, para Karina Barone (2008, p.12) “independentemente da
técnica utilizada, o mais importante é o analista garantir uma posição de
sustentação”. Nessa sustentação, a posição do analista é evitar a invasão enquanto
viabiliza uma sustentação humana que possa gerar mudanças subjetivas no
paciente, levando-o ao desenvolvimento, ressalta a autora.
Karina Barone (2008, p.149) explica que existindo um domínio da técnica pelo
analista ele “torna-se capaz de cooperar com o paciente ao longo do processo.
Contudo o ritmo e todas as características essenciais do processo pertencem ao
paciente e não ao analista (e, por conseguinte, não, à sua técnica)”. Logo, a posição
do analista deverá surgir das necessidades específicas do paciente, e assim, o
espaço terapêutico será construído pela posição de sustentação do analista.
Nesse sentido Winnicott (1984, p.9) afirma que o analista deve ter a
capacidade de:
[...] identificar-se com o paciente sem perder a identidade pessoal; o terapeuta deve ser capaz de conter os conflitos dos pacientes, ou seja, contê-los e esperar pela sua resolução no paciente, em vez de procurar ansiosamente pela cura; deve haver uma tendência a retaliar sob provocação.
Quando realmente existe uma sustentação do terapeuta no grupo, se
estabelece uma “cobertura” e neste estado Winnicott (2005a) diz os indivíduos que
estão inseridos no grupo passam pelos três estágios seguintes:
(a) Apreciam o fato de estarem sendo cobertos, e adquirem confiança. (b) Começam a explorar a situação, tornando-se dependentes e regredindo à não-integração. (c) Começam, cada um por si mesmo, a adquirir alguma integração e, nesses momentos, valem-se da cobertura proporcionada pelo grupo, a qual lhes é necessária devido a suas expectativas de perseguição. Os mecanismos de cobertura são submetidos nesse ponto a grande tensão. Alguns indivíduos conseguem obter sua integração pessoal, e prestam-se assim a serem inseridos em outro tipo de grupo, no qual os indivíduos mesmos proporcionam o funcionamento grupal. Já outros não podem ser curados pela terapia de cobertura apenas, e continuam precisando do cuidado de uma agência, sem porém identificarem-se com essa agência.
(WINNICOTT, 2005a, p.219)
Podemos afirmar que a colocação feita pelo autor pôde ser sutilmente
observada no decorrer da nossa Oficina de Leitura. Ao iniciar o atendimento
psicopedagógico as crianças chegaram muito assustadas, e com muito receio em
deixar seus pais ou parentes na sala de espera, parecendo ter medo do
desconhecido.
Com o passar do tempo começaram a adquirir confiança e segurança na
relação estabelecia com a psicopedagoga e com o espaço psicopedagógico. Com a
realização de mais algumas sessões as crianças já se sentiam mais à vontade nas
oficinas, se permitindo mostrar as suas dificuldades, pedindo ajuda constante,
surgindo assim a dependência na relação com a psicopedagoga e com as colegas
do grupo, podendo aflorar a não-integração do seu self.
Aqui podemos lembrar como exemplo quando Jade numa atividade que
chamamos Hora do Jogo Psicopedagógico25 não conseguia organizar-se para
escolher materiais para construir alguma coisa que fizesse sentido para ela. Passou
toda a sessão completamente perdida, desorientada, reclamando para a terapeuta
que não sabia o que fazer, nem como fazer e que não conseguia nem pensar quanto
mais fazer alguma coisa. Terminou seu trabalho, olhando e copiando o que sua
colega Bruna havia feito, mostrando assim, a sua desorganização, a sua fragilidade,
a sua dependência, enfim a não integração do self, necessitando copiar o trabalho
da colega para conseguir fazer a sua própria atividade. Parece-nos que Jade não
podia pensar e nem mesmo simbolizar dentro de si o que gostaria de fazer.
Nos últimos encontros as crianças já mostravam uma integração;
especialmente Jade quando se coloca na posição de leitora de suas histórias nas
oficinas e indo além, quando relatava que agora já podia ler em casa para sua mãe,
não precisava mais que ninguém fizesse as leituras no seu lugar.
Vamos prosseguir com nossa análise observando três formas de organização
e atuação do grupo: a interação entre as crianças dentro do grupo, a interação das
crianças com a psicopedagoga, e por último a disponibilidade do grupo para a
realização das tarefas propostas.
Com relação à interação das crianças dentro do grupo, nos primeiros
encontros cada um fazia a sua atividade individualmente, e mesmo se fosse
solicitado algum tipo de auxilio, não se colocavam na situação de um ajudar o outro.
Observamos que eles estavam muito voltados para eles mesmos, no mundo
25
Hora do Jogo Psicopedagógico segundo Andrade (1998, p.87) Dentro de uma caixa fechada são colocados diversos materiais (folhas de todos os tipos, lápis coloridos, giz de cera, guache, borracha, apontador, barbante, tesoura, cola, durex, partes de jogos de encaixar, partes de quebra-cabeça, enfim materiais que possibilitem à psicopedagoga a “observar o paciente, suas reações, o processo pelo qual ele se apropria, ou não do material e constrói , ou não, um novo objeto, isto é, como se dá o processo de equilibração, como ele interage, assimila e acomoda”. Assim, “o paciente, na hora do jogo psicopedagógico mostrará objetivamente sua maneira de agir para conhecer para aprender, para resolver uma situação problema”.
egocêntrico - cada um por si e para si mesmo, havendo um total desinteresse e até
mesmo um desprezo por aquilo que o outro fazia.
Podemos perceber que entre os meninos do grupo, muitas vezes, aconteciam
situações de confronto em que um chutava o outro, sem razões para tal
acontecimento, levando a discussões e até mesmo a brigas físicas, onde a
psicopedagoga precisava atuar de forma a separar as confusões e brigas.
Entretanto, as meninas eram mais tranqüilas, mostrando-se mais amigas na
interação com o grupo.
Assim, observamos que nas primeiras sessões realizadas, não havia
integração do grupo nem respeito de um para o outro. Não havia diálogo entre as
crianças, com interesse em trocar suas vivências, suas alegrias e tristezas, ou até
mesmo compartilhar o que aprendiam.
Progressivamente percebemos a aproximação entre as crianças do grupo.
Após a leitura da história, nas primeiras sessões, ninguém falava nada livremente. A
psicopedagoga tinha que perguntar o que acharam da história lida, e alguns
respondia “legal”. Passado alguns encontros, apenas o Gustavo falava sobre as
representações que lhe surgiam daquela leitura. E, posteriormente todos se sentiam
a vontade para falar, quando então passaram a falar compulsivamente e ao mesmo
tempo, disputando um espaço para ver quem falava primeiro, e quem podia falar
mais tempo.
Devagar esse comportamento das crianças foi mudando, elas passaram a
respeitar a vez do outro, falavam pausadamente e principalmente abriram um
espaço para ouvir o que o outro falava, muitas vezes, usavam palavras de consolo
quando surgia alguma situação muito forte de dor ou sofrimento no colega do grupo.
Observamos na interação do grupo uma posição de solidariedade e de ajuda mútua.
Logo que chegavam à Clínica para o atendimento, as crianças mostravam
interesse em saber quais eram os livros trazidos pela terapeuta, ajudando-a a
carregar as sacolas com os materiais que usavam no decorrer da oficina, e a
organizar a sala para o inicio dos trabalhos.
Nesse sentido, gostaríamos de esclarecer que existia um ritual em todos os
nossos encontros, uma organização do espaço físico, que se delimitava com a
colocação de tapetes, onde todos podiam sentar e ouvir as histórias lidas,
estabelecendo um espaço de segurança e confiança recíproca entre as crianças e a
psicopedagoga, propiciando assim, um momento mágico. Primeiramente esse
espaço era organizado apenas pela psicopedagoga, mas depois de alguns
encontros, ela já contava com o auxilio das crianças do grupo.
Assim, podemos afirmar que a Oficina de Leitura possibilitou uma maior união
e integração do grupo, onde prevalecia o espírito de solidariedade e respeito ao
espaço do outro.
Podemos lembrar também que a interação com a psicopedagoga, no início
era de desconfiança, ou seja, uma relação receosa, assustada, sem esperança.
Algumas vezes, quando terminávamos de ler a história, em especial as meninas,
pediam para ir ao banheiro, ou beber água, parecendo estar com medo de se
colocarem, parecia que não queriam falar sobre o que pensavam sobre a história
lida. No entanto, os meninos permaneciam na sala e faziam questão de falar o que
pensavam sobre a história lida, buscando narrar as suas vivências, e sentimentos
que surgiram naquele momento.
A psicopedagoga, inspirada em Winnicott, tinha consciência da necessidade
de deixar aflorar um sentimento de confiança nas crianças, em um ambiente
acolhedor e propício a um espaço de segurança, ou seja, uma área intermediária em
que o brincar pudesse ter o seu lugar, e a partir daí, o que surgisse nessa área fazia
parte da própria imaginação criativa das crianças do grupo.
Como afirma Figueiredo (2007 p.77), “a confiança em um ambiente
responsivo e empático, desdobra-se, assim, na confiança26 em um ambiente não-
intrusivo não-persecutório e capaz de oferecer ao bebê o espaço e o tempo
necessários à eclosão da sua criatividade”. Assim, a Oficina de Leitura parecia
propiciar um Espaço Potencial conforme denomina Winnicott (1975), espaço que
pode ser sagrado para o individuo, e que depende da experiência entre o bebê e a
mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade, que pudesse
conduzir à confiança, porque é nesse lugar que ele pode experimentar o seu viver
criativo.
Ainda, segundo Figueiredo (2007, p.78) “para que a criança possa
efetivamente lidar com objetos ‘objetivos’, aproveitar deles, alimentar-se deles, usá-
los para suas ações efetivas no mundo e sobre eles, é necessário que o objeto seja
minimamente confiável”.
26
Para Figueiredo (2007, p.78) “a palavra confiança [trust] neste contexto revela uma compreensão do que eu quero dizer com construção de confiança [confidence] baseada na experiência, na época da dependência máxima, antes da fruição e uso da separação e independência”.
Dessa maneira, a Oficina de Leitura sobreposta a um Espaço Potencial
possibilitava o surgimento de fenômenos transicionais, que poderiam, talvez,
representar os primeiros estádios do uso da ilusão, conforme já ressaltamos com
Winnicott (1975).
Pensamos na utilização do livro como um suposto objeto transicional, que
poderia remeter a lembrança das crianças às primeiras possessões “não-eu do
bebê”, ou seja, no nosso caso, a psicopedagoga é quem lia a história e a criança se
colocava num outro lugar, o de ouvinte da história lida, formando assim, uma
membrana divisória entre o Eu e o não-Eu, ou até que, o estágio do Eu-sou pudesse
ser alcançado, como propõe Winnicott (1975). Para esse autor o uso do objeto
transicional favorece o trânsito para a simbolização e a aceitação da realidade.
No caso da nossa Oficina de Leitura podemos afirmar que o livro somado à
história lida propiciou um novo “brilho no olhar” das crianças. Através dos livros e
suas histórias, as crianças puderam apropriar-se de suas experiências pessoais,
algumas dolorosas, passando a narrá-las.
Podemos pensar que a partir da repetição de vários encontros, a leitura
passou a fazer parte das crianças como algo prazeroso em suas vidas. Nestas
situações outras experiências culturais podem ser sobrepostos, e entre elas
podemos pensar no nosso caso a aprendizagem da leitura e da escrita, obtendo-se
a suposta “cura”, tão necessária para estas crianças.
A partir daí, a cada Oficina de Leitura realizada podíamos observar
lentamente uma transformação na atitude, no comportamento, nos modos de ser de
cada criança, formando assim um harmonioso grupo de trabalho.
Dessa forma, as crianças desenvolveram a confiança e a tranqüilidade,
aceitando estar no grupo com a psicopedagoga. Com as experiências vividas a cada
sessão, elas se permitiram regredir quando sentiam necessidade. Víamos esta
situação quando a partir das atividades propostas as crianças se recusavam a
realizar uma tarefa deixando claro que não conseguiam fazer, e não faziam, se não
tivesse a ajuda da psicopedagoga. Acreditamos que esse fato mostrava o momento
do retorno a não-integração, em que ela precisava temporariamente se ligar
novamente à terapeuta para poder realizar a sua atividade, mostrando a
necessidade do holding vivo do ser humano, para que houvesse nova oportunidade
para reintegração do self. Como ressalta Winnicott (2005, p.215) “o bebê é seguro
pela mãe e só entende o amor que é expresso em termos físicos”. Com o apoio e
ajuda da terapeuta realizados de forma suficientemente bem, as crianças puderam
descobrir o seu próprio self, podendo existir e sentir-se real.
Com relação à interação das crianças com as tarefas propostas, no início
havia um desinteresse por aquilo que era proposto para o grupo. As crianças não
tinham vontade para realizar as atividades. Às vezes faziam a atividade se
queixando, como se estivessem cumprindo uma obrigação, não havendo nenhum
desejo e prazer na leitura; e outras, se negando a fazer.
Importante lembrar algumas situações relatadas na entrevista pelos pais das
crianças do grupo. A maioria dos pais não gostava de estudar e nunca mantivera o
hábito da leitura em seus lares. Inclusive ressaltavam haver poucos livros em casa,
apenas aqueles que são requisitados pela escola. A partir desse dado importante,
“os pais não gostarem de ler”, surgiu-nos uma indagação curiosa: será que a atitude
dos pais (os primeiros ensinantes na vida de uma criança) podem ter influenciado de
alguma maneira seus filhos a não gostarem de ler e a partir daí terem problemas na
aprendizagem da leitura e da escrita?
Sabemos não poder pensar de maneira simplista a respeito de tema tão
complexo, mas não podemos deixar de considerar em nosso trabalho o valor das
figuras significativas nas identificações do sujeito. Dito de outra maneira, de
considerar o papel do ambiente familiar no desenvolvimento da criança. Também
seguem a mesma direção os estudos que trouxemos de Morais (1996) quando
enfatizou que o estímulo intelectual e literário da família tem uma correlação positiva
no sucesso da aprendizagem da leitura da criança e de Teberosky (2003) em que
nas famílias onde ocorreram as práticas de leitura, os adultos contribuíram para o
desenvolvimento do conhecimento sobre a escrita e sobre a linguagem escrita.
Desde as primeiras sessões observamos que as crianças não demonstravam
interesse pelos livros e pela leitura das histórias. Quando oferecíamos o livro para a
leitura, todas se negavam a ler, e tinham medo e até mesmo aversão em pegar o
livro. Parece-nos que para elas, a presença física do livro e a leitura tinham um
significado de “obrigação”, um “ter que fazer”, não havendo prazer, satisfação, ou
até mesmo emoção agradável para realização de tal ato. Podíamos notar uma
expressão facial de desagrado, de descontentamento, em que predominava a
indiferença, o desinteresse e até mesmo atitude de desprezo, por exemplo; quando
Luis falava: “ler como a professora faz nas aulas, que coisa chata”. Muitas vezes
uma postura de pavor quando Jade disse: “Eu, não quero nem pensar em ler”.
Lembramos Gillig (1999) quando fala na existência de um desinteresse da
criança naquilo que se relaciona ao escolar, e no caso de Luis e de Jade, e das
outras crianças desse grupo podemos supor que a leitura, para elas, se colocava
nesse lugar. Parecia que existia uma barreira entre o seu mundo (afetivo e social) e
o espaço escolar (um símbolo da cultura). E, no decorrer da nossa Intervenção,
nossa reflexão perpassava ao redor do fato de como os ensinantes, pais,
professores, poderiam ter falhado no sentido de investir o desejo de aprender a ler e
a escrever dessas crianças. E, indo um pouco além, pensávamos: será que o desejo
de aprender dessas crianças poderia ser despertado a partir da leitura realizada por
um adulto – a psicopedagoga - ou mesmo pelo texto literário?
Assim, na Oficina de Leitura oferecemos a leitura de histórias com uma
função lúdica e criativa estabelecendo-se como uma atividade prazerosa e não uma
obrigação. Tínhamos conhecimento de que estávamos propiciando um importante
momento de aprendizagem.
A leitura de histórias se colocava numa situação para “despertar o gosto, o
prazer em ler”, com um papel de propiciar uma abstração do mundo, emprestando-
lhe assim, um sentido, que permitisse um espaço para o uso da imaginação,
possibilitando-lhe um ato de criação permanente, como nos falou Penac (1993)
citado anteriormente.
Assim, a cada encontro, líamos uma história diferente, mas com inspiração
em alguns autores, como por exemplo, em Petit (2006a) quando falava da
importância para a criança em ver a leitura de um adulto com paixão; em Barone (in
ANDRADE E FRANCO, 2006, p.90) quando afirmava “ler é uma necessidade
imperiosa do homem: faz parte do processo de humanização”, e em Candido (1988)
quando estabeleceu a importância da literatura nas formas de educação familiar,
grupal e escolar, principalmente na formação da personalidade da criança, uma vez
que possibilita uma discriminação da realidade, levando-a a humanização.
Passado alguns encontros percebemos uma mudança no comportamento
dessas crianças. Elas passaram a prestar atenção no que estava sendo lido,
interessando-se no seu conteúdo, nas figuras, desenhos, e até mesmo despertando
interesse no aprendizado dos significados das palavras lidas. Como diz Penac
(1993, p.46) com a leitura de histórias para a criança, o que ela aprende “primeiro
não é o ato, mas o gesto do ato, e que, se por um lado, ela [a leitura] pode ajudar na
aprendizagem, essa ostentação é acima de tudo, destinada a tranqüilizá-la...”.
Na Oficinas de Leitura as crianças realmente observavam os gestos da
psicopedagoga, o tom da voz, as suas expressões faciais, gestos de alegria, de
tristeza, de amor, de raiva, de compaixão trazida nas histórias lidas. No tom da sua
voz, a partir das cenas lidas, a psicopedagoga podia trazer para as crianças os
sentimentos que se sobressaltavam do contexto daquela história. Mas ao mesmo
tempo a voz acolhia e ancorava qualquer sentimento de medo ou angústia que
surgisse, fortalecendo o sentimento de si mesmo, favorecendo a expansão narcísica
e possibilitando novos espaços para a identificação, como também percebeu Barone
(1993) no atendimento de uma criança com problemas de aprendizagem da leitura e
da escrita, já relatado neste trabalho.
Também podemos constatar que as histórias de literatura trouxeram para as
crianças um movimento psíquico inerente à espécie humana, ou seja, um
psicodrama da humanidade, conforme falou Cabrejo Parra (2004), e que na Oficina
de Leitura possibilitou-se que essas cenas fossem colocadas para criar os
movimentos psíquicos inerentes a cada criança.
Por outro lado, como o texto literário se expressa por metáforas, conforme
Moisés (1982), a partir dele, as crianças puderam simbolizar o mundo, e tentar
pensar um pouco sobre a realidade na qual viviam.
Assim, podemos lembrar como exemplo, o que aconteceu após a leitura da
história “Como nasceu a alegria” de Rubem Alves que possibilitou às crianças
falarem de seus sentimentos e suas dores. Vamos relatar como isso aconteceu.
Pensando como essa história ficou para as crianças podemos relatar que Luis
trouxe imediatamente todas as marcas dos seus machucados na pele, nos braços,
nas pernas, dizendo que são do jogo de futebol. Contou como aconteceram alguns
desses machucados, descrevendo os seus momentos de dor, lembrando-se em
detalhes como tudo aconteceu. Contou também que sente muita alegria ao jogar
futebol.
Valter também lembrou momentos em que andou de skate e que sofreu
algumas contusões. Também contou que sua maior alegria era andar de mobilete na
rua.
Jane trouxe o fato do escorregão de seu pai, que caiu no final de semana
anterior à sessão, e que por isso ficou até de madrugada no hospital. Também
contou que sua maior alegria era andar de bicicleta.
Bruna faz questão de falar que sua mãe havia feito uma cirurgia também
nesse final de semana, e que sua mãe estava cortada como a pétala da florinha.
Não sabe falar de nenhum momento de alegria na sua vida.
A história lida favoreceu o surgimento de angústias, de sofrimentos vividos e
ao mesmo tempo possibilidade de narração e re-significação dessas dores. Também
parece ter provocado certa consideração pela dor do outro, uma vez que as crianças
ouviam e acolhiam o relato dos colegas.
Aqui estamos novamente, muito próximo de Winnicott (1975), mais
especificamente com o Espaço Potencial/Transicional.
A Oficina de leitura parecia oferecer à criança um espaço de segurança e de
confiança, onde era possível vivenciar suas dores, seus traumas e encontrar um
destino diferente para eles.
Assim, parece-nos legítima a aproximação feita e a consideração da Oficina
de Leitura como um espaço capaz de promover a elaboração criativa das vivências.
As histórias ouvidas na Oficina de Leitura ofereceram às crianças: oportunidade de
experimentar prazer; figuras de identificação; elementos para elaboração de
situações traumáticas de vida através do contato com a palavra organizada. Permitiu
também romper com formas repetitivas de atuação trazendo novas aberturas de
sentidos.
Para Winnicott (1975), por meio da percepção criativa o indivíduo sente que a
vida é digna de ser vivida. Mas, no relacionamento de submissão com a realidade
externa o mundo é reconhecido apenas como algo a que se ajustar ou adaptar-se. A
submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que
nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Viver criativamente constitui um
estado saudável, mas a submissão é uma base doentia para a vida.
Algo semelhante foi observado em outras histórias como foi o caso de “Os
morangos” que segundo Rubem Alves, “há morangos ao alcance da mão. Mesmo
pendurados sobre o abismo. Tudo é uma questão de ver e de colher”. Essa história
traz uma metáfora sobre as escolhas que podemos fazer no nosso dia a dia, se
escolhemos viver ou morrer dependendo do caminho que seguimos.
Para Luis a história lida fala de “um homem com muito medo que cai no
buraco, o morango cresce e ele pega. Diz que também sentiu muito medo e traz
situações de medo da sua própria vida. Gustavo diz que “comer os morangos
significa vida ou morte”. E, que quando terminou a história ele sentiu “uma
expressão de vida”. No dia a dia Gustavo conta que sempre escolhe a vida.
Mas no momento o que nos interessa é mostrar que a partir da história lida as
crianças tiveram a oportunidade de viver dialeticamente os seus problemas, e ao
mesmo tempo refletir, pensar e simbolizar sobre situações que fazem parte do ser
humano.
Vale lembrarmos Candido (1988) quando estabelece que os textos literários
tiram as palavras do nada, dispondo-as como um todo articulado, levando-as a
comunicar-se primeiramente com o nosso espírito, em seguida a organizar o mundo.
Podemos testemunhar esse fato na nossa Oficina de Leitura, percebendo que o
texto literário realmente resume experiências em simples espetáculos mentais que
auxiliam na superação do caos interno, por meio de um arranjo especial das
palavras que trazem uma proposta de sentido, a passagem do estado de mera
emoção para o da forma construída, levando as crianças à humanização.
Podemos perceber que as cenas que surgiam a partir da leitura de histórias
levaram as crianças a outro tempo, a outro espaço psíquico. Como afirmou Cabrejo
Parra (2004), esse fato retoma a temporalidade da língua oral e escrita, quando o
passado e o futuro têm uma relação com o aqui e agora. Podemos perceber que
existe um entrelaçamento do pensamento do autor com a atividade psíquica de
quem lê ou ouve a história.
Assim, podemos pensar que a leitura e a escuta de uma história não é um ato
de comunicação imediata, mas um objeto de partilhamento entre pessoas que têm
um vinculo afetivo, como no exemplo que conta Penac (1993, p.85) sobre um
professor que fez parte da sua infância, “professor cuja paixão pelos livros sabia
encontrar todas as paciências e nos dar mesmo a ilusão do amor”.
Em síntese, a leitura de histórias para essas crianças passou a ter dois
significados diferentes e essenciais na reconstrução de suas aprendizagens:
primeiro a leitura de histórias participou, como facilitadora e mediadora, da
ressignificação de suas próprias histórias de vida, conforme apontou Meneses
(2005). O texto literário criou situações humanas em que puderam refletir as próprias
condições de vida das crianças. Como segundo significado, a história participou da
construção de seus conhecimentos cognitivos, uma vez que elas passaram a se
interessar pelo significado de algumas palavras que não tinham conhecimento.
Assim, podemos citar, entre muitos outros, dois momentos da Oficina de
Leitura que demonstram esse dois significados importantes da leitura de história
para a aprendizagem das crianças. Uma delas aconteceu quando lemos: “Não existe
dor gostosa” de Ricardo Azevedo, as crianças trouxeram suas próprias dores. Jade
falou que já teve dor de ouvido e de cabeça e relatou o seu sofrimento. Bruna afirma
que “a dor mais dolorida é a dor que não pára”, e também lembra que “um dia seu
primo foi atropelado e que levou pontos”. Valter contou que a “dor de dar ponto” é
insuportável, e conta que uma vez machucou seu dedo do pé, e demorou muito para
sarar, porque não deixou o médico dar pontos, com medo dessa dor terrível.
Gustavo conta que “um dia caiu de uma construção e que ficou todo raspado”.
Outro momento em que as crianças entraram em contato com sua própria
história de vida foi quando realizamos a leitura da história: “A colcha de retalhos”. Da
mesma maneira todas as crianças trouxeram as lembranças boas e ruins dos
momentos que viveram com seus avós.
A leitura de literatura foi utilizada como um instrumento de mediação, em que
as crianças tiveram a oportunidade de resgatar e explorar sua capacidade criativa e
descobrir possibilidades de elaboração de conflitos e novas condições de
apropriação da capacidade de leitura. Conforme vimos com Petit (2006a), a leitura
da literatura possibilitou às crianças, falar a certa distância, de seus sentimentos,
suas dores e dar sentido a todas elas permitindo a elaboração de suas perdas,
tornando possível a construção de uma narrativa, uma história pessoal. As histórias
contadas também serviam como metáforas para dizer as dores e traumas sofridos e
na presença confiante da psicopedagoga.
Algumas vezes, neste encontro após essas reflexões e lembranças, também
usamos a literatura para a construção dos conhecimentos cognitivos, uma vez que
as crianças foram incentivadas a escreverem seus sentimentos, na primeira história:
a pior dor; e na segunda história: uma lembrança na vivência com seus avos. Esse
trabalho foi feito com a ajuda das letras móveis (mais à frente contaremos melhor
como isso acontecia).
Assim, as crianças estavam mais calmas, solidárias umas com as outras, e
principalmente notamos um maior vínculo afetivo com a psicopedagoga. As crianças
passaram a auxiliar na colocação dos tapetes, e tinham um interesse em saber
quais os livros trazidos pela terapeuta e quais eram as histórias que eles continham.
Nos momentos da leitura da história, havia uma disputa por um lugar ao lado da
psicopedagoga, da mesma maneira que uma criança deseja a presença e a
companhia da sua mãe.
Observamos também que as crianças dispensavam mais tempo na
manipulação dos livros, olhando as figuras, e muitas vezes, como era o caso de Luis
e Gustavo, até mesmo fazendo a leitura solitária e individual, antes do início dos
trabalhos em grupo.
Muitas vezes a psicopedagoga perguntava o que gostariam de fazer naquela
sessão, jogar, brincar na brinquedoteca, ou ler uma história. A primeira escolha era
ler uma história e depois poderíamos fazer qualquer outra coisa.
Despertado o desejo de ler, a cada encontro as crianças logo que chegavam
se ofereciam para a leitura da história que seria escolhida naquela sessão, muitas
vezes acontecendo pequenas disputas orais para saber quem leria primeiro.
Percebemos que as crianças apaixonaram-se pelos momentos agradáveis de
partilhamento que aconteciam nas nossas oficinas. Quando esses fatos começaram
a acontecer já tínhamos sete meses de Oficina de Leitura realizada.
Aos poucos, após a leitura de história, começou a aparecer o desejo de
escrever. Assim, em vez de realizar atividades como desenhos, pinturas,
modelagens de massinha ou argila, como fazíamos nas sessões anteriores,
começamos a trabalhar com as letras móveis pensando na construção de palavras
que estivessem ligadas com o que surgia a partir da história lida.
A primeira proposta era escrever com as letras móveis, e somente depois que
elas poderiam copiar a palavra escrita em um caderno. Cada criança possuía o seu
caderno, que ficava com a psicopedagoga, não podendo ser levado para casa. No
final de cada sessão, o caderno tinha a função de registrar os sentimentos das
crianças. Eles poderiam ser registrados através de uma cor, um desenho, e até
mesmo com as palavras. Cada criança podia escolher como queria representar esse
sentimento.
No início alguns representavam com um desenho, fazendo bem colorido.
Depois passaram a representar por meio de um desenho e algumas letras que
muitas vezes não tinham nenhum sentido. E, posteriormente já se sentiam
suficientemente seguras para colocar o que sentiam e pensavam da história lida em
letras que se transformaram em palavras.
Na última sessão, abrimos um espaço para que cada um contasse como
foram os encontros na Oficina de Leitura, e a proposta de trabalho foi pensar em
todas as histórias lidas e escolher a que mais gostou. Em seguida foi pedido que a
representasse através de desenhos ou pela palavra escrita.
Duas crianças, Jade e Luis, preferiram falar das nossas oficinas a partir da
palavra escrita. Assim, eles escreveram que gostaram de duas histórias do autor
Rubem Alves: “Os morangos” e “A menina e o pássaro encantado”.
Valter gostou mais da história “Os morangos”, representando a sua escolha
através do desenho.
Gustavo escolheu a história “Os morangos” como também Bruna, sendo que
ela também escolheu outra história: “A operação de Lili”, de Rubem Alves. Ambos
representaram sua escolha através do desenho e da escrita.
Aqueles que escolheram escrever tiveram um início com bastante dificuldade
é claro, mas emocionalmente estavam bastante tranqüilos, seguros e confiantes na
realização da tarefa que escolheram: tentar escrever o nome da história que mais
gostaram.
Outra vez foi importante a psicopedagoga estar disponível para dar o
acolhimento necessário que propiciasse a confiança e a segurança que a Oficina de
Leitura possibilitava.
Como já demonstramos, uma segunda sondagem da escrita após a
realização dos nossos trabalhos na Oficina de Leitura, revelou que todas as crianças
tiveram uma evolução na fase da escrita.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como objetivos estudar a Oficina de Leitura como um
Espaço Potencial capaz de promover o desenvolvimento do viver criativo das
crianças com dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita favorecendo esta
aprendizagem bem como a elaboração e construção de uma narrativa pessoal.
A Oficina de Leitura promoveu uma área neutra de experiência, possibilitando
a abertura de um espaço de criatividade, que existia como parte da realidade, nos
momentos em que as crianças podiam utilizar a história lida como um objeto real e a
partir dela serem criativos. Assim, surgiu o Espaço Potencial a partir da leitura das
histórias e que foi sendo preenchido com os produtos da própria imaginação criativa
das crianças.
Dessa maneira a Oficina de Leitura constituiu-se como um Espaço Potencial
capaz de fornecer as crianças condições de segurança e confiança, com base no
holding winnicottiano, ou seja, uma sustentação terapêutica suficientemente boa
realizada pela psicopedagoga. Ela procurou, na medida do possível, adaptar-se às
necessidades de cada paciente e às necessidades do grupo, respeitando-se o
potencial criativo de cada criança, possibilitando-lhes um sentimento de “Ser” e estar
vivo.
A partir da análise da experiência com a Oficina de Leitura supomos que, de
fato, foi legítima a aproximação que fizemos dela ao Espaço Potencial de Winnicott.
Pudemos observar, ao longo de nosso trabalho com a Oficina de Leitura, mudanças
significativas no modo de ser das crianças do grupo. Elas não só se aproximaram de
maneira mais genuína da atividade de leitura e escrita como se mostraram mais
vivas e criativas demonstrando com mais autonomia que a vida vale a pena ser
vivida.
Observamos que a Oficina de Leitura desenvolveu significados importantes
para as crianças, como:
• A organização do Self possibilitando-se o viver criativo, conforme
Winnicott;
• A transmissão de valores de uma cultura, no sentido de humanização,
como tratou Candido (1988);
• A mediação no distanciamento do real em relação ao simbólico,
possibilitando-lhes falar de suas próprias vidas, ou seja, uma função
terapêutica;
• Por fim a leitura de história permitiu a construção de seus
conhecimentos cognitivos, propiciando assim, a aprendizagem da
leitura e da escrita.
Assim, a Oficina de Leitura, como outros autores abordados neste trabalho já
reconheceram, colocou em relevo o efeito terapêutico próprio à literatura. Através
das histórias ouvidas as crianças falaram, a certa distância, de seus sentimentos,
suas dores, seus conflitos, conseguindo muitas vezes elaborá-los.
Dessa maneira acreditamos que a Oficina de Leitura se constituiu como um
espaço de elaboração criativa das vivências das crianças. O livro e a leitura de
histórias, como objetos e fenômenos transicionais, ajudaram às crianças, através da
criação de uma área de ilusão, ir em direção à simbolização.
Para Winnicott (1975), o impulso criativo existe no indivíduo quando ele
consegue, na realização de aspectos criativos do seu self colocar-se de forma
saudável na realidade e o estabelecimento de uma ancoragem saudável do
indivíduo na realidade se expressa através do viver criativo.
É nossa expectativa que as marcas vividas e deixadas pela Oficina de Leitura
nunca sejam apagadas, mas que permaneçam na memória das crianças como
indícios de pertencimento e semente para novas experiências, sustentando a
ancoragem na realidade cultural. Na Oficina de Leitura começamos do “brincar” - o
momento da capacidade do processo criativo que inclui a autoria e a apropriação de
conhecimentos – que se transforma depois na atividade criativa cultural da qual
também faz parte aprender a ler e a escrever.
A Oficina de Leitura também propiciou o compartilhamento de vários
momentos de solidariedade entre seus participantes. Foram momentos de
experiências com trocas de alegrias e dores, em que muitas vezes não aconteciam
os fatos que a psicopedagoga desejava ou o que havia pensado para determinada
sessão. Mesmo que a psicopedagoga se colocasse na posição de sustentação do
grupo e das crianças, havia um respeito às necessidades e vontades de cada um,
prevalecendo assim a intersubjetividade, ou seja, o que aflorava da vontade e da
necessidade de todos seria o trabalho realizado naquela sessão. A posição da
psicopedagoga era procurar evitar qualquer invasão, enquanto pudesse viabilizar
uma sustentação humana que auxiliasse nas mudanças subjetivas das crianças.
Para a pesquisadora, o trabalho foi uma experiência enriquecedora. Muitas
vezes, durante as sessões, a psicopedagoga viu-se reorientando sua forma de
trabalhar de maneira a acolher situações inesperadas. Nesse sentido, a Oficina de
Leitura foi também momento de constituição da própria terapeuta que pode ao longo
do trabalho desenvolver postura – como propõe Herrmann (2001) – de “deixar surgir
para levar em consideração”.
Também observamos que o modo de aproveitamento dos participantes do
grupo variou de acordo com as peculiaridades de cada um. Embora pudéssemos
perceber maior criatividade e autonomia em cada uma das crianças, nem todas
conseguiram o mesmo desempenho na leitura e escrita. Valter, por exemplo, ainda
apresentou muita dificuldade retornando a seu padrão anterior em algumas sessões.
Sua evolução na leitura e escrita foi lenta e no final do trabalho ainda escrevia com
bastante dificuldade.
Cabe ainda ressaltar que durante a Oficina de Leitura foram surgindo muitas
outras questões que poderíamos trazer para este trabalho, mas que extrapolavam o
verdadeiro objetivo específico a que nos propusemos.
Uma delas deveu-se à necessidade de colocar um limite para a coleta dos
dados para a pesquisa. Como a pesquisadora continua ainda trabalhando com o
grupo na Oficina de Leitura, quer dizer; o trabalho clínico não está concluído, foi
difícil lidar com algumas situações. Muitas vezes, enquanto a pesquisadora estava
escrevendo a dissertação, surgiam outras questões na clínica que não cabiam no
recorte realizado.
Observamos ainda, a partir desta experiência, a utilidade de ampliação do uso
de Oficina de Leitura em outros contextos como em creches, hospitais com crianças,
adolescentes e adultos em situações de doenças graves, como o câncer, a AIDS,
pensando na possibilidade de se criar um Espaço Potencial que possibilite a
narrativa de suas dores e possíveis perdas.
Para concluir o trabalho gostaríamos de ressaltar o valor destas oficinas ao
possibilitarem a construção de uma narrativa própria a partir das histórias ouvidas.
E parafraseando Walter Benjamin (2002) diríamos que o afago da Oficina de
Leitura desenhou um leito: a corrente da narração. E, a correnteza da dor que existia
no interior de cada criança fluiu até a sua foz. A narrativa da própria história de vida
possibilitou o clima favorável apropriado e a condição mais favorável de uma cura,
cura esta que surgiu com o fato de as crianças, ao final do trabalho, conseguirem
encontrar e organizar o verdadeiro Self, a partir dele conseguirem aprender a ler e
escrever.
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Martins Fontes, 2005b.
APÊNDICE
APÊNDICE A – RESUMO DAS HISTÓRIAS LIDAS E SIGNIFICATIVAS PARA AS
CRIANÇAS NA OFICINA DE LEITURA,
A colcha de retalhos de Conceil Corrêa da Silva e Nye Ribeiro Silva.
Recortando retalhos para fazer uma colcha, os personagens, Felipe e sua
avó, vão reunindo e costurando lembranças. Entre recordações engraçadas, tristes,
alegres e embaraçosas Felipe descobre o sentido da saudade. Nesta história são
resgatados os valores das memórias que fazem parte da constituição da identidade
de cada um.
A gotinha de orvalho de Junji Miyaura Esta história conta a vida de uma gotinha de orvalho. Ela tinha medo do Sol,
pois ele a esquentaria e ela morreria. Assim que o Sol nasceu ela virou uma nuvem
que subiu até o céu. Lá foi empurrada pelo vento e passeou por lindos campos
verdes, até que se juntou a outras nuvens e formou uma grande nuvem de
tempestade. Caiu sobre um lago, e de lá virou vapor de novo. E de noite virou outra
gotinha de orvalho, e descobriu que a vida nunca acaba mesmo passando de uma
forma para outra ela continuaria existindo.
A menina e o pássaro encantado de Rubem Alves Assim, a história conta a relação de amizade entre uma menina e um pássaro
que era encantado, que viva livre, indo e vindo na casa da menina. A cada visita ele
lhe contava histórias dos lugares que conhecia. Até que um dia a menina resolveu
prendê-lo numa gaiola para que ele fosse sempre dela. Então o pássaro perdeu o
encanto, ficou feio e esqueceu todas as suas histórias, deixando de cantar. Quando
ela percebeu o que fez soltou o pássaro, e permaneceu na expectativa do retorno do
pássaro como sempre fazia.
Segundo Rubem Alves este livro é para adulto ler e criança ouvir. Fala da
separação: “quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus... Depois do
adeus fica aquele vazio imenso: saudade. Tudo se enche com a presença da
ausência. Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas... Alguns chegam a
pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. Para que sejam deles,para
sempre... Para que não haja mais partidas... Poucos sabem, entretanto, que é a
saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E
quando o desejo cresce, preparam-se os abraços”.
A operação de Lili de Rubem Alves História de uma elefantinha, Lili, que precisava fazer uma operação para tirar
Gregório, um sapo seu amigo, que foi parar em sua tromba após uma brincadeira.
Lili estava cheia de medos. Durante a sua operação para a retirada do sapo, a “Fada
da Floresta”, ajudou-a a superar seus medos, fazendo-a dormir para que tivesse
vários sonhos bonitos, e dessa maneira não sentiria dor. Desse modo a operação
aconteceu enquanto ela dormia, e, quando acordou, seu amigo Gregório já estava
salvo, além de muito contente. Lili ficou feliz por ter salvado o amigo e por não ter
sentido nenhuma dor.
Como nasceu a alegria de Rubem Alves
Nesta estória o autor conta que uma florinha ao nascer de dentro de um botão
cortou uma de suas pétalas num espinho. A florinha nem ligou e vivia muito feliz com
sua pétala partida, pois ela não doía. O sofrimento da flor tem início quando ela
percebe que as outras flores a olham com olhos espantados, uma vez que ela é
diferente de todo o grupo no qual vivia. Ela se vê esquisita começa a chorar, levando
todos ao seu redor a chorar também, posto que todos gostavam muito dela. Quando,
percebeu o quanto era querida por seus amigos, ela deu um sorriso muito gostoso,
acontecendo um milagre: O perfume bom da flor apareceu. O perfume é o sorriso da
flor, diz o autor. E assim, nasceu a alegria, e a florinha não sofreu mais em olhar a
sua pétala cortada.
Ficar com raiva não é ruim de Michaekende Mundy.
Esta história mostra como as crianças têm escolhas do mesmo modo que os
adultos amorosos têm escolhas sobre o que ensinar às crianças com relação à
raiva. Através da compreensão das sensações produzidas pela raiva e do que a
desencadeia, podemos aprender e ensinar maneiras saudáveis de controlá-la. A
obra oferece às crianças uma visão positiva e honesta da raiva e do que fazer com
ela.
Ninguém gosta de mim de Raoul Krischanitz Conta a história do cachorro Coquinho que é novo na cidade e que deseja
fazer amigos. Ele se desencoraja muito rápido a cada tentativa de fazer amizade
com o rato, com os três gatos, com os coelhos, com os carneiros, com o cachorrão,
dizendo sempre: “ninguém gosta de mim”. Até que se põe a chorar.
Uma raposa aparece e pergunta por que Coquinho estava chorando, e ele
responde “porque ninguém gosta de mim”. A raposa indaga porque ele acha isso, e
se dispõe a ir com Coquinho perguntar por que os outros animais não queriam
brincar com ele.
Coquinho descobre que cada animal tinha suas razões, seus medos, para
não se aproximar dele, e depois de conversar com cada um deles, todos passam a
serem seus amigos, brincando felizes até o sol se por.
Nós de Eva Furnari
A história fala de Mel, uma garota que morava na pequena cidade de
Pamonhas e vivia rodeada de borboletas, motivo pelo qual gerava brincadeiras por
parte dos habitantes 'normais' da cidade. Um dia, de tanto segurar o choro e a
mágoa, Mel acabou com o corpo cheio de nós, um mais apertado que o outro.
Diante disso, resolveu ir embora de Pamonhas. Mel não sabia que havia tantas
coisas interessantes fora de sua cidade, mas seus sete nós fizeram com que ela se
aventurasse pelo mundo, procurando soluções. Ela andou, cruzou montanhas e rios,
até que encontrou alguém, um menino Kiko, que ganhou sua confiança e ajudou-a a
desatar seus nós. Então, Mel conheceu uma cidade chamada Merengue, em que
cada um tinha seus próprios nós e ninguém ligava para isso.
O medo da sementinha de Rubem Alves
Com o símbolo da semente, Rubem Alves tenta criar imagens nas quais a
vida e a morte aparecem como amigas, que segundo o autor são pulsações de um
grande mistério.
A história fala de uma grande paineira, que estava repleta de sementes. De
repente chegou o momento de a semente nascer, ela teve muito medo. Sua mãe a
recebe com muita alegria, propondo a apresentá-la a todos os amigos. A sementinha
amou sua mãe, e sabia que alguém gostava dela.
Passado alguns dias, sua mãe contou-lhe sua grande viagem. O vento
sopraria e ela faria uma viagem, voando num floco de algodão. Novamente a
semente teve medo. Medo do desconhecido. Ela chorou. Sua mãe também chorou,
mas explicou que era preciso partir para continuar a viver porque sementinha que
não parte acaba morrendo. Era preciso que a semente deixasse o colo de sua mãe,
para se transformar em arvore e um dia também ser mãe.
Até que um dia o ventou soprou e levou a pequena sementinha ao seu
destino. A terra quente a abraçou, e com alguns dias ela se transformou em um
brotinho verde, que se transformou em uma árvore. Assim, dentro de uma
sementinha existe uma arvore adormecida.
Os morangos de Rubem Alves
Essa história fala de um homem que mesmo em perigo e com medo,
consegue enxergar, ao alcance de suas mãos, um lindo pé de morangos. E,
esquecendo por alguns instantes o momento difícil em que se encontra, consegue
sorrir e aproveitar a alegria de saboreá-los.
Para Rubem Alves: “há morangos ao alcance da mão. Mesmo pendurados
sobre o abismo. Tudo é uma questão de ver e de colher”. Essa história traz uma
metáfora sobre as escolhas que podemos fazer no nosso dia a dia, se escolhemos
viver ou morrer dependendo do caminho que seguimos.
Quando a mamãe virou um monstro de Joanna Harrison.
Esta história descreve uma cena típica do dia a dia de muitas famílias.
Quando recebe a notícia que os sobrinhos vêm lanchar, mamãe fica ocupadíssima
arrumando a casa, fazendo compras, preparando o lanche. Enquanto isso, André e
sua irmã não ajudam em nada; muito pelo contrário, só fazem bagunça e brigam o
tempo todo. De repente, uma coisa estranha acontece com a mamãe: ela ficou tão
zangada que ficou completamente maluca, virando um monstro que solta fumaça,
fogo e urros.
Muito triste a mamãe chora, e fala para as crianças que ela costumava ser
boazinha, mas que tantas confusões, brigas, gritos e reclamações dos filhos, a
transformaram em um monstro. Imediatamente as crianças resolvem ajudar a
mamãe, arrumando suas coisas e auxiliando naquilo que a mamãe necessitava. A
mamãe pede desculpas aos filhos, e estes fazem o mesmo
Quando os primos e a tia chegam, tudo está organizado, e a tia só tem
elogios para a organização da casa. Mas na hora do lanche, os primos foram
terríveis, fazendo muita bagunça na mesa, e nem perceberam que sua mãe também
já estava quase se transformando em monstro.
ANEXOS
ANEXO A - LIVROS UTILIZADOS NA OFICINA DE LEITURA ALVES, Rubem. Estórias para pequenos e grandes. São Paulo: Ed. Paulinas,
1984.
_______. A árvore e a aranha. 9. Ed. São Paulo: Paulus, 2007.
_______. A boneca de pano. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
_______. A menina e a pantera negra. 7. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
_______. Estórias de bichos. 14. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
_______. Lagartixas e Dinossauros. 7. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
_______. A menina e o pássaro encantado. 21. Ed. São Paulo: Edições Loyola,
2006.
_______. A operação de Lili. São Paulo: Paulus, 1999. (Coleção estórias para
pequenos e grandes).
_______. A volta do pássaro encantado. 12. Ed. São Paulo: Paulus, 2006.
_______. Como nasceu a alegria. São Paulo: Paulus, 1999. (Coleção estórias para
pequenos e grandes).
_______. O gato que gostava de cenoura. 2. Ed. São Paulo: Edições Loyola.
_______. O medo da sementinha. 16. Ed. São Paulo: Paulus., 2007. (Coleção
estórias para pequenos e grandes).
_______. Os morangos. 9. Ed. São Paulo: Paulus, 2001. (Coleção estórias para
pequenos e grandes).
_______. O patinho que não aprendeu a voar. 18. Ed.São Paulo: Paulus, 2007.
AZEVEDO, Ricardo. A quase morte do Zé Malandro. In Contos de enganar a
morte. São Paulo: Ática, 2005.
_______. Não existe dor gostosa. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2003.
CARVALHO, Maria Lúcia. No tempo do branco e preto. São Paulo: Paulus, 1998.
DRUCE, Arden. Bruxa, bruxa, venha a minha festa. São Paulo Brinque-Book,
1995.
FURNARI, Eva. Nós. 6. Ed. 5ª reim. São Paulo: Global Editora, 2008.
HARRISON, Joanna. Quando a mamãe virou um monstro. Tradução Gilda de
Aquinol. São Paulo: Brinque-Book, 1996.
KRISCHANITZ, Raoul. Ninguém gosta de mim. 7ª reim. São Paulo: Brinque-Book,
1999.
MIYAURA, Junji. A gotinha de orvalho. São Paulo: Seicho-no-ie do Brasil, 1998.
SILVA, Conceil Corrêa da e RIBEIRO, Nye. A colcha de retalhos. São Paulo:
Editora do Brasisl, 1995.
REIS, Yolanda. Saber perder. 4. ed. São Paulo:FTD, 1999.
ROCHA, Ruth. No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos... . São
Paulo: FTD, 2000.
ANEXO B – APROVAÇÃO NO COMITÊ DE ÉTICA