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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS POLICIAIS VOL. 2, N. 1, JAN-JUN/2011 ISSN 2178-0013 RB CP Publicação da Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública Academia Nacional de Polícia / Polícia Federal

Ol. 2, N. 1, JaN-JUN/2011 R B C P - Instituto Superior de ... v2n1 (jan-jun 2011).pdf12 Revista Brasileira de Ciências Policiais A Atividade de Inteligência de Segurança Pública

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Revista BRasileiRa DeCiÊNCias POliCiais

vOl. 2, N. 1, JaN-JUN/2011

issN 2178-0013

R BC P

Publicação da Coordenação de altos estudos de segurança Pública academia Nacional de Polícia / Polícia Federal

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 2, n. 1, p. 1 - 133, jan./jun. 2011.ISSN 2178-0013

Copyright © 2010 - aNP

Editor ResponsávelCélio Jacinto dos Santos

Comissão EditorialCélio Jacinto dos Santos (Presidente); Adriano Mendes Barbosa; Eliomar da Silva Pereira; Emerson

Silva Barbosa; Gilson Matilde Diana; Guilherme Henrique Braga de Miranda

Conselho EditorialAlexandre Bernardino (UnB - Brasil); Aili Malm (California State University - EUA); Carlos Roberto

Bacila (UFPR e DPF - Brasil); Denilson Feitoza (MPMG - Brasil); Elenice de Souza (Rutgers University - EUA); Guilherme Cunha Werner (DPF - Brasil); Jairo Enrique Suárez Alvarez

(CEPEP - Colômbia); José Pedro Zaccariotto (PCSP - Brasil); Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC - Brasil); Manuel Monteiro Guedes Valente (ISCPSI e UAL - Portugal); Michael Towsley (Griffith

University - Autrália); Patrício Tudela Poblete (ASEPIC e Universidade do Chile - Chile); Paulo Rangel (TJRJ e UERJ - Brasil), Spencer Chainey (UCL - Inglaterra).

Ministério da JustiçaMinistro: José Eduardo Cardozo

Departamento de Polícia FederalDiretor-Geral: Leandro Daiello Coimbra

Diretoria de Gestão de PessoalDiretor: Joaquim Cláudio Figueiredo Mesquita

Academia Nacional de PolíciaDiretor: Disney Rosseti

Coordenação de Altos Estudos de Segurança PúblicaCoordenador: Célio Jacinto dos Santos

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Revista Brasileira de Ciências Policiais, v. 2, n. 1, jan/jun 2011.

issN 2178-0013

R BC P

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Revista Brasileira de Ciências PoliciaisPublicação semestral de doutrina em assuntos policiais, visando a difundir a produção acadêmica dos cursos de pós-graduação da Academia Nacional de Polícia (ANP), a cargo da Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública (CAESP), bem como do programa de pesquisa e outras produções congêneres de origem nacional e estrangeira.

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia.

Todos os direitos reservadosNos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte.

Correspondência EditorialRevista Brasileira de Ciência Policial

Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2 - Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DFCEP - 71559-900 - Brasília-DFE-mail: [email protected]

Publicação SemestralTiragem: online

Projeto Gráfico e Capa: Eliomar da Silva Pereira, Gilson Matilde Diana e Gleydiston RochaEditoração: Gilson Maltilde Diana e Guilherme Henrique Braga de Miranda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

Revista Brasileira de Ciências Policiais / Academia Nacional de Polícia. – v. 2, n. 1 (jul./dez. 2010 - ) – Brasília: Academia Nacional de Polícia, 2011. 133p. ISSN 2178-0013 Semestral1. Ciência policial – Periódico. 2. Investigação criminal. 3. Investigação policial. Polícia Federal. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.

351.741

R 454

Artigos para análise e publicação: Normas ABNT (NBR 6022:2002)

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Copyright © 2010 - aNP

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SumárioArtigosA Atividade de Inteligência de Segurança Pública .....................................................................11The Public Segurity Inteligence ActivityActividad de Inteligencia de la Seguridad Pública

Adriano Mendes Barbosa

Criminologia e Investigação Criminal: abordagem criminológica, tipologias e fenomenologia criminal na investigação .............................................................................................................31

Criminology and Criminal Investigation: criminological approach, tipology and criminal phenomenology in the investigation

Criminología y Investigación Criminal: abordage criminológica, tipologías y fenomenología en la investigación

Eliomar da Silva Pereira

Maquiavel e a "Guerra Justa" contra o Terror ............................................................................51Maquiavel and the "Fair War" against the TerrorMaquiavel y la "Guerra Justa" contra el Terror

Disney Rosseti

O Ideal da Democracia Racial, as Cotas para Negros nas Universidades Públicas e seus Reflexos nos inquéritos da Polícia Federal .................................................................................................73

The Ideal of Racial Democracy, the Quotes for Blacks in the Public Universities and its reflexes in the Federal Police ProceduresPolícia de la Ciencia: Contribuciones de reflexión epistemológica

El Ideal de Democracia Racial, las Cotas para Negros en las Universidads Públicas y sus Reflejos en los inquéritos de la Policia Federal

Juliana Carleial Mendes Cavaleiro

A Epistemologia como Fundamento da Qualidade e Excelência da Actuação Policial: a encruzi-lhada da pós-modernidade .........................................................................................................95

Epistemology as Foundament of Quality and Excelence of the Police Actuation: the crossroad of the post-Modernity

La Epistemología como Fundamento de la Cualidad y Excelencia de la Actuación Policial: la encruzillada de la pós-modernidad

Manuel Monteiro Guedes Valente

Investigação Criminal e Inteligência: Qual a Relação? ........................................................... 103Criminal Investigation and Inteligence: What is the Relation?Investigaciõn Criminal y Inteligencia: Cual la Relación?

Célio Jacinto dos Santos

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7Revista Brasileira de Ciências Policiais

Editorial

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A Academia Nacional de Polícia apresenta à comunidade cien-tífica policial o primeiro número do segundo volume da Revista Brasi-leira de Ciências Policiais. Nosso enfoque continua explícito, nos seis artigos publicados neste número, onde instigantes abordagens sob as-pectos relevantes as ciências policiais são trazidos à baila.

Os artigos foram organizados de forma a conduzir a sua leitura a partir da atividade de investigação criminal, perpassando por refle-xões sobre atividade policial como ciência e por fim finalizando com a questão da transdisciplinaridade e ciência policial.

No primeiro artigo, A Atividade de Inteligência de Segurança Pública, Adriano Mendes Barbosa, analisa aspectos sociais e estruturais do crime e sugere a aplicação de ferramentas de inteligência policial para aumentar o sucesso na solução dos problemas relativos à prevenção e repressão da criminalidade. Ao longo do texto, o autor discorre com propriedade sobre o papel da inteligência (e da contrainteligência) na atividade policial, apresentando argumento próprio consistentemente embasado por citações de consagrados especialistas no assunto. Mais adiante, trata ainda da análise de informações e do ciclo de produção do conhecimento, finalizando com a importante reafirmação dos limites de atuação da inteligência policial com o necessário respeito à legalida-de e a garantia dos direitos fundamentais.

O segundo artigo é de Eliomar da Silva Pereira, apresentado sob o título Criminologia e Investigação Criminal: abordagem criminológi-ca, tipologias e fenomenologia criminal na investigação. O autor compara o conhecimento criminológico e o conhecimento criminalístico, reco-nhecendo suas similaridades e diferenças. Discorre sobre a concepção científica da criminologia e sobre os métodos e técnicas da investigação, bem como sobre as tipologias e fenomenologia criminal. Em conclusão,

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considera a existência de reciprocidade benéfica e de um efeito simbió-tico entre criminologia e criminalística, defendendo uma revisão teóri-ca do arcabouço ligado a esses ramos do conhecimento, com a adoção de um posicionamento pragmático que favoreça essencialmente a inves-tigação criminal.

No terceiro artigo, Maquiavel e a "Guerra Justa" contra o Terror, Disney Rosseti faz uma análise aprofundada de um dos principais flage-los que atingem a humanidade, numa escala internacional, a questão do terrorismo. O texto revê aspectos históricos, éticos e morais da repres-são às ações terroristas, dando destaque aos pontos de vista de Chomsky e Hobsbawn. Rosseti finaliza o artigo, apontando as principais con-siderações e estratégias contidas no clássico O Príncipe, do pensador italiano Nicolau Maquiavel aplicáveis ao moderno combate ao terror.

Juliana Carleial Mendes Cavaleiro escreveu o quarto artigo, O Ideal da Democracia Racial, as Cotas para Negros nas Universidades Públicas e seus Reflexos nos Inquéritos da Polícia Federal, onde aponta a existência de uma re-lação estreita entre o resultado das investigações para apuração de divulgação de material de conteúdo preconceituoso ou racista e a ideologia da democra-cia racial brasileira. A autora observa a alteração dos indicadores estudados em consequência da adoção de políticas públicas de cunho afirmativo, como o regime de cotas nas universidades públicas.

No quinto artigo, denominado A Epistemologia como Funda-mento da Qualidade e Excelência da Actuação Policial: a encruzilhada da pós-modernidade, Manuel Monteiro Guedes Valente discursa sobre os encontros e desencontros na busca da segurança máxima e no aumento da eficácia e eficiência da produtividade da polícia. Aponta indicadores de qualidade e excelência a serem aplicados nesse mundo em evolução. Enfim, Valente oferece um vislumbre dos caminhos a serem traçados para a modernização da polícia, considerando a imposição de uma formação científica, ética e culturalmente tolerante, que refletirá na melhoria da sociedade e qualidade de vida e bem estar do ser humano.

Finalmente, o sexto artigo, Investigação Criminal e Inteligência: Qual a Relação? de Célio Jacinto dos Santos, retoma o tema da aplicação da inteligência policial, porém sob uma outra perspectiva. O autor esta-belece a relação entre a investigação criminal e a inteligência, resgatando

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seus elementos históricos e conceituais. Na sequencia, o artigo apresenta uma análise dos pontos de convergência e divergência entre investigação e inteligência e parte para a conclusão do trabalho, onde se destaca a visão integradora dos conceitos examinados, considerando um amplo contexto teórico, cultural e histórico.

Guilherme Henrique Braga de Miranda

Membro da Comissão Editorial

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11ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 2, n. 1, p. 11-30, jan/jun 2011.

A Atividade de Inteligência de Segurança Pública1

Adriano Mendes BarbosaCoordenação de Ensino

Academia Nacional de Polícia - Brasil

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RESUMO

O crime é um fenômeno social que acompanha a humanidade desde sempre. Todavia, a mani-festação das ações criminosas acontecem de maneiras diversas a depender de fatores históricos, culturais, geográficos, econômicos, sociais e políticos. Neste contexto, há atividades criminosas que se apresentam de forma menos complexa como o crime predatório, desorganizado, inserido no contexto da violência urbana, com agentes atuando de forma improvisada e desestruturada, como no caso dos furtos, roubos e estupros praticados alhures. E também neste mesmo contex-to há atividades delituosas que se manifestam de forma organizada, com atores delinquentes que se organizam e estruturam aparatos criminosos de modo profissional, buscando lucro e sujeição do poder constituído aos seus desideratos criminosos, no caso do tráfico de drogas, tráfico de armas, roubo a banco e sequestros. Com feito, o Estado necessita de uma estrutura de prevenção e repressão criminal que seja hábil a enfrentar todas essas formas de manifestação criminosa. Para cada problema há de haver uma resposta adequada e apropriada para a sua solvência. Neste sentido, no cenário da criminalidade organizada ascende a Atividade de Inteligência, conduzida pela instituição policial, como uma ferramenta que proporcione melhores condições para que haja mais eficiência e eficácia na prevenção e repressão da macrocriminalidade. A Inteligência de Segurança Pública constitui-se exatamente neste instrumento estatal que empresta suporte e otimiza o enfrentamento do crime, notadamente o de estatura organizada.

Palavras-chave: Crime. Crime Organizado. Prevenção Criminal. Repressão Criminal. Polícia. Inteligência. Inteligência Policial.

1 Aqui utilizo tal expressão, coadunado com os estudos de Michael Herman (2010), onde ele versa sobre “internal security”,demonstrando existir institucionalizado desde 1883 na Inglaterra, nos quadros da Polícia Metropolitana de Londres, um setor especial de inteligência voltado neutralizar ações de terrorismo, espionagem e sabotagem em território inglês. Por certo, tal expressão pode ser entendida no Brasil, como em regra é o que há, como sendo Inteligência de Segurança Pública, voltada a questões relativas à prevenção criminal (Polícia de Ordem Pública), quanto na repressão criminal (Polícia de Investigações ou Judiciária).

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Introdução

Há, por certo, várias expressões de ações criminosas no tecido social humano. Existem, por conseguinte, formas desorganizadas e organizadas do crime se manifestar na sociedade (BARBOSA, 2008), fato que exigirá o em-prego de contramedidas estatais de repressão criminal de menor ou maior monta, a depender do grau de complexidade da demanda criminal.

As expressões desorganizadas, aquelas próprias de ações de crimi-nalidade predatória, predatory crimes, como denomina Paul Lunde (2004), afetam imediatamente a vida no urbis trazendo à baila a violência urbana no varejo, compreendendo, entre outras ações perniciosas, o furto, o roubo, o es-tupro, a extorsão com restrição da liberdade (seqüestro relâmpago). Para en-frentamento deste tipo de criminalidade, também dita micro-criminalidade, ou criminalidade desorganizada o Estado despende esforços, por assim dizer, ordinários, como ações de policiamento de ordem pública, que no Brasil é le-vado a termo pelas Polícias Militares (PM) e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), lavraturas de ocorrências criminais (Boletins de Ocorrência - BO), lavratura de Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO) e instauração de Inquéritos Policiais (IP), levados a termo pelas Polícias Judiciárias (de In-vestigação) estaduais, Polícias Civis (PC), e Polícia Federal (PF).

Por certo, nestes esforços de prevenção e repressão criminais tam-bém há espaço para o desenvolvimento ações que vão além do policiamento ordinário e da apuração cotidiana de fatos criminosos. Neste diapasão, há esforços de análise criminal (tática e estratégica), iniciativas pontuais de pro-dução de conhecimento, no contexto deste enfrentamento da criminalidade desorganizada.

De outra margem, para arrostar a ação da criminalidade organizada, aquela que está estruturada como empresa e busca o auferimento de lucro e está disposta de maneira estruturada com divisão de tarefas, compartimenta-ção de suas atividades, infiltração em órgãos públicos, cooptação de agentes públicos, em regra de altos escalões da república, suporte jurídico e contábil, é preciso um esforço de repressão criminal que vá além das iniciativas coti-dianas. Esta criminalidade engloba a macro-criminalidade, a levada a termo pelos chamados white collars, e as organizações criminosas que perpetram cri-mes como a lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas, tráfico de armas, tráfico de pessoas, a corrupção ativa, o tráfico de influência, as fraudes a licitações.

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Neste diapasão, para enfrentar ações criminosas de tal matiz o Es-tado necessita que suas instituições de persecução criminal estejam tão bem organizadas e providas de recursos, sejam humanos, sejam materiais, quanto as organizações que levam a termo ações criminosas estruturadas e planeja-das. Assim, o esforço investigativo estatal que há de enfrentar a criminalidade organizada há de lançar mão de técnicas investigativas que vão além das em-pregadas em face de ações criminosas outras.

Ensina o dileto colega Professor e Delegado de Polícia Federal Rodrigo Carneiro Gomes (2008, p. 3) sobre o poderio encerrado pelas organizações criminosas:

A existência do crime organizado é uma demonstração de um poder paralelo não legitimado pelo povo, que ocupa lacunas deixadas pelas deficiências do Estado democrático de Direito e demonstra a falên-cia do modelo estatal de repressão à macro-criminalidade.

Conclui Gomes asseverando:

A importância da repressão à macro-criminalidade organizada decorre da real ameaça que representa ao Estado Democrático de Direito. Usurpa suas funções e se aproveita das situações de caos urbano e político para a instalação do seu poder paralelo. Um poder paralelo amparado em surpreendente poder econômico, na deterio-ração do Estado de Direito (nasce e se alimenta dele e das brechas e proteções legais), que dissemina corrupção, intimida, viola leis e pessoas, sem freios, concretizando seu império por atos que variam do constrangimento e a intimidação até atos de extremada violência com assassinatos e tortura.

Nesta seara da repressão criminal, portanto, há espaço fértil para o emprego da Atividade de Inteligência de Segurança Pública que tem sua face da Investigação Criminal (BARBOSA, 2010) materializada através da cha-mada Inteligência Policial.

O que não se pode olvidar é que a Atividade de Inteligência de Se-gurança Pública não é a quintessência da atividade de prevenção e repressão criminal. Ela, em veras, constitui uma forma diferenciada de abordagem tá-tica e estratégica da prevenção e repressão criminais utilizadas quando há ne-cessidade de se produzir, além das evidências (provas), conhecimento tático e estratégico para enfrentamento da criminalidade organizada, com uma pers-pectiva macro e de longo prazo do problema do crime e da criminalidade.

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O professor Michael Herman (2010, p. 1) em relação a Atividade de Inteligência ensina que “governments collect, process and use information. Part of statecraft is what a writer called ‘the central importance of knowing, both in general and in particular.” Há ainda neste viés o ensinamento do Professor Marco Cepik (2003, p. 27) que sustenta:

Inteligência é toda informação coletada, organizada ou analisada para atender as demandas de um tomador de decisões qualquer. Para a ciência da informação, inteligência é uma camada específica de agregação e tratamento analítico em uma pirâmide informacio-nal, formada, na base, por dados brutos e, no vértice, por conheci-mentos reflexivos.

Assim, tendo como referência os estudos de Herman (op. cit.) e de Cepik (op. cit.), pode-se sustentar que a Atividade de Inteligência de Inter-na (Segurança Pública) é o conjunto de atividades de análise e de operações de natureza compartimentada que têm por escopo dar suporte a atos de prevenção e repressão criminais para fins de neutralização de ações crimi-nosas organizadas.

De outra margem, a Atividade de Inteligência de Segurança também há de ser entendida como um instrumento de suporte do processo decisó-rio do gestor da Segurança Pública na tomada de decisões de repercussão de alcance macro. Neste sentido, a Atividade de Inteligência Policial pode ser compreendida sob dois prismas, a saber: um de natureza tática, adstrita di-retamente à prevenção imediata de práticas delituosas e repressão criminal, e outro de essência estratégica, vinculada a ações de perspectiva igualmente estratégica com análise de cenários e prospecção.

Assim, a Atividade de Inteligência Policial, na seara da Investiga-ção Criminal, é um meio que se utiliza para se aperfeiçoar a angariação das evidências na fase pré-processual da persecução penal. Desse modo, tal atividade não é um fim em si mesmo, vindo à tona no auxílio da atividade fim da Investigação Criminal.

Neste ponto é relevante que se visite o significado da Investigação Criminal. Sustento (BARBOSA, 2010) que:

Em suma, pode-se definir investigação criminal como sendo o con-junto de ações (diligências), levadas a termo pelos entes estatais que exercem o mister da persecução criminal pré-processual, que diante

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da notícia (demanda) da prática de uma infração penal levam a ter-mo a reunião de dados da realidade fática vinculada ao suposto fato delituoso, com o conseqüente exame técnico e análise de tais dados com o escopo de trazer a lume as elucidações (evidência) da autoria, materialidade (existência) e circunstâncias (de tempo, lugar, modo, motivação, meio) adstritas à situação criminosa apresentada.

1 - Inteligência e Contra-Inteligência: As duas Faces de uma Mesma Moeda

Pode-se dividir a Atividade de Inteligência de Segurança Públi-ca em dois grandes ramos: 1) Inteligência (INTEL), propriamente dita, voltado à prevenção e repressão da criminalidade organizada em geral, e 2) Contra-inteligência (COINT), especializada na proteção das instituições de segurança pública, colocando a salvo o conhecimento engendrado em prol da repressão à criminalidade organizada e neutralizando, por exemplo, o fenômeno da infiltração criminosa no seio do organismo policial, bem como a cooptação de servidores policiais por parte das quadrilhas atingidas pela repressão criminal, realizando, com efeito, um trabalho em socorro à Corre-gedoria de Polícia.

Assim, as operações e análises levadas a efeito em face dos alvos de interesse da segurança pública acontecem no âmbito da Inteligência, em sen-tido estrito. Neste passo, na Inteligência a preocupação é com “o outro”, como ensina Herman (2010, p. 34) “intelligence is about them, not us; it is not self-knowledge.” Este dito “outro”, na seara da Inteligência de Segurança Pública, são os cidadãos autores de fatos delituosos de expressão organizada, ou as próprias organizações criminosas.

Na Inteligência, por conseguinte, busca-se desnudar os esquemas cri-minosos determinando, por exemplo, quem são as pessoas envolvidas, quais são os seus vínculos, como elas se relacionam, como se comunicam, como elas se organizam, quais são os meios utilizados nas práticas delituosas, quais são os objetivos criminosos perseguidos, quais são os alvos preferenciais, como é levado a termo o financiamento da organização criminosa, quais são os modus operandi (táticas) eleitos pelos membros da organização criminosa e outros da-dos imprescindíveis para se conhecer em profundidade o alvo de interesse.

Noutra margem, a Contra-inteligência é focada na proteção de todo o conhecimento engendrado pela Inteligência no esforço de conhe-

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cer o “outro”. Com efeito, a COINT age, impedindo, que o “outro” co-nheça, influencie ou interfira no processo de produção de conhecimento do órgão de segurança. Há, assim, um esforço de segurança informacional (information security) promovido por este ramo da Inteligência, que de-senvolve também ações de contramedidas de segurança e segurança de operações (CEPIK, 2003).

Segundo o escólio de Herman (op.cit., p. 166), in verbis:

Information security has three components: ‘protective security’ in-tended to defeat or blunt intelligence collection; the detection and neutralization of intelligence threats; and deception. The first puts up passive, defensive screens; the second is active defence by elimi-nating the opponent’s offensive intelligence threat; the third defeats hostile intelligence by deceiving or confusing it.

Dessa forma, a COINT coloca a salvo tanto o conhecimento pro-duzido, propriamente dito, quanto a instituição e seus quadros de agentes, analistas e gestores. A COINT cumpre, assim, papel de alta relevância identi-ficando manobras de adversários (“os outros”) que incidem de forma deleté-ria sobre os esforços institucionais de inteligência, bem como neutralizando as eventuais ações das organizações criminosas sob escrutínio que possam fragilizar os esforços estatais de prevenção e repressão criminais.

Neste mesmo sentido, o Professor Marco Cepik (2003, p. 57) ensina que:

Do ponto de vista operacional, enquanto a principal missão da área de inteligência é tentar conhecer o ”outro”, a principal missão da área de infosec2 é garantir que os “outros” só conhecerão o que quisermos que eles conheçam sobre nós mesmos. (...) as duas atividades existem simultaneamente e interagem de forma mais ou menos sinérgica para cada ator envolvido num conflito informacional.

2. Análise e Operações de Inteligência

Tanto a Inteligência quanto à Contra-inteligência estão, a seu turno, subdivididas em dois ramos de concentração. Assim, há a atividade de Aná-lise de Dados e a de Operações de Inteligência, sendo esta última objeto do presente estudo.

2 Neste ponto Cepik faz menção a área de segurança de informações que pelas mãos dos doutrinadores americanos ascende com a designação INFOSEC ou informations security

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A Análise, portanto, desenvolve exames e estudos tanto de dimensões táticas, quanto estratégicas sobre a criminalidade organizada (SOUZA, 2006). A Análise Tática volta-se para as organizações criminosas de maneira individual, vale dizer, esta atividade procura entender todos as nuances e formas de expressão da atividade de determinada empresa criminosa para fins de sua desarticulação. Com efeito, a análise tática é pragmática e concorre para a produção de conheci-mento que poderão dar ensejo à parturição da futura prova criminal.

De outra margem, a Análise Estratégica atua numa perspectiva ma-cro, não se limitando a uma investigação específica. O seu gol é antecipar o movimento do crime organizado e assessorar as autoridades gestoras da segurança pública em prol de decisões que assegurem um combate mais eficiente e eficaz das organizações criminosas.

As atividades de Operações de Inteligência, por seu turno, desen-volvem as diligências de natureza sigilosa em prol das investigações crimi-nais. Seu objetivo é desnudar e trazer luz ao dito “dado negado”, aquele dado que é mantido sob sigilo e guarda de grupos criminosos organizados, e que é vital para se estabelecer a autoria, materialidade e circunstâncias que tocam as atividades do empreendimento criminoso. Nos capítulos vindouros as Operações de Inteligência serão escrutinadas mais amiúde.

Outrossim, há de se frisar que todas as diligências investigati-vas levadas a efeito na seara das Operações de Inteligência policial hão de ser conduzidas sob a égide dos ditames dos Estado Democrá-tico de Direito. Aqui não se trata de ações de inteligência de Estado que por vezes atua nas sombras (FIGUEREDO, 2005) e ao arrepio da lei para obtenção de dados que vão subsidiar tão somente o processo decisório de um líder político.

A atividade de Inteligência aplicada em suporte à ações de prevenção e repressão criminal busca, em última instância, a formação de evidências que vão dar suporte ao nascimento da prova em sede processual, e estas, por con-seguinte, não podem ser concebidas ainda em seu nascedouro sob o manto da ilegalidade ou da ilegitimidade. Neste diapasão, todo e qualquer diligência que invista sobre direitos protegidos por sigilo há de ser conduzida mediante autorização da ordem judicial devida. Mais adiante este tema será desenvolvi-do de maneira mais profícua em capítulo próprio.

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Assim não sendo, todo profícuo e árduo trabalho de investigação é perdido. Mais ainda, o procedimento investigatório, v.g., Inquérito Policial, em que se produziu todo o conjunto de evidências será fragilizado e passará a ser suscetível de trancamento por “remédio heróico”. Em curtas palavras, não vale a pena agir ao arrepio da lei na seara da Inteligência Policial.

Com a atividade de Inteligência empregada na seara da investigação é possível, ainda, construir uma memória sobre as organizações criminosas que se investiga. Neste passo, poder-se-á catalogar lideranças, indivíduos relacio-nados às ações delituosas, ações emblemáticas que tenham estatura de lições aprendidas, modus operandi, logística criminosa, formas de financiamento, etc. Ou seja, as ações de Inteligência proporcionam além da utilização de um instrumental investigativo de alta eficácia do ponto de vista da produção de evidências, o engendramento de um banco de dados que dá suporte a futuras investigações que enfrentem o mesmo tipo de empresa criminosa.

Neste sentido, ascenderá a estruturação de uma coletânea organizada de dados que possibilita ao investigador acesso a um cabedal de informes, informações, apreciações e estimativas de tal ordem que poderão otimizar o processo investigativo. Em verdade, um banco de dados bem estruturado, ascende como uma ferramenta que dá socorro à investigação com diminuição de exposição dos investigadores envolvidos, notadamente os operacionais, e com seleção, por exemplo, de alvos mais recompensadores a serem abordados do ponto de vista da produção de evidências.

Conclui-se, portanto, que é preciso técnica apurada e recursos mate-riais e humanos de excelência para se levar a efeito atividade investigativa que enfrenta a criminalidade organizada.

3. O Ciclo de Produção do Conhecimento

Estabelecidas as bases doutrinárias sobre Atividade de Inteligência de Segurança Pública, as suas dimensões de produção de conhecimento e de pro-teção de conhecimento, bem como as suas vertentes de Análise e Operações, é preciso compreender de que forma se materializa, se concretiza, o produto de todo o esforço de inteligência, que é o Conhecimento. Conhecimento este que é o fim precípuo da Atividade de Inteligência, que desnuda “o outro”, que traz à tona os elementos necessários e suficientes para a tomada de decisão do gestor de segurança pública, seja no plano tático, seja no plano estratégico.

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Para melhor compreender a produção de conhecimento é utilizado pela doutrina de Inteligência um modelo, que Herman (2010, p. 39) deno-mina “Intelligence process in outline”, e no Brasil é chamado, vide Priscila An-tunes (2001), de Ciclo de Produção do Conhecimento.

Este ciclo tem o condão de explicitar como deve se desenvolver o processo de Inteligência (metodologia da produção do conhecimento) desde a abordagem primeira da situação problema até o alcance do produto final do esforço de Inteligência, que é o engendramento de um conhecimento que subsidie o processo decisório do gestor da segurança pública, seja em termo táticos, seja em termos estratégicos.

Figura 1:Ciclo da Produção de Conhecimento

4. Tratamento Vestibular da Demanda de Inteligência

Com o partejamento de uma situação de alta indagação na se-ara da segurança pública, como o incremento vertiginoso de ações cri-minosas organizadas (por exemplo, o aumento da incidência de roubos a joalherias, de forma orquestrada em shopping centers, na cidade de São Paulo), ascende uma demanda de segurança pública de alta relevância. Esta demanda, então, constituirá objeto de diferentes ações de seguran-ça pública, como, entre outras, o incremento de policiamento ostensivo em lugares com as mesmas características dos que forma palco das ações criminosas sob luzes, instauração de inquéritos policiais em prol da in-vestigação formal dos delitos perpetrados, com a oitiva de testemunhas, entrevistas de pessoas saibam dizer sobre os fatos, perícias de local de crime, apreensão de mídias que contém cenas das ações criminosas, como

Este ciclo tem o condão de explicitar como deve se desenvolver o processo de

Inteligência (metodologia da produção do conhecimento) desde a abordagem primeira

da situação problema até o alcance do produto final do esforço de Inteligência, que é o

engendramento de um conhecimento que subsidie o processo decisório do gestor da

segurança pública, seja em termo táticos, seja em termos estratégicos.

Figura didático-ilustrativa 01

Ciclo da Produção de Conhecimento

5 – Tratamento Vestibular da Demanda de Inteligência

Com o partejamento de uma situação de alta indagação na seara da segurança

pública, como o incremento vertiginoso de ações criminosas organizadas (por exemplo,

o aumento da incidência de roubos a joalherias, de forma orquestrada em shopping

centers, na cidade de São Paulo), ascende uma demanda de segurança pública de alta

relevância. Esta demanda, então, constituirá objeto de diferentes ações de segurança

pública, como, entre outras, o incremento de policiamento ostensivo em lugares com as

mesmas características dos que forma palco das ações criminosas sob luzes, instauração

de inquéritos policiais em prol da investigação formal dos delitos perpetrados, com a

oitiva de testemunhas, entrevistas de pessoas saibam dizer sobre os fatos, perícias de

REUNIÃO DE DADOS

ANÁLISE

DIFUSÃO

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as capturadas por circuito fechado de Televisão (CFTV) e esforço de in-teligência, além das diligências investigativas ordinárias, para se produzir conhecimento sobre os eventos criminosos sob escrutínio.

Assim, no contexto da atividade de inteligência, todos os detalhes fáticos que tocam as ações criminosas objeto de exame serão apreciados num viés que vai além da angariação de elementos probatórios. Os órgãos de Inteligência agirão neste cenário criminoso com o escopo de desnudar todo elemento factual, além dos que possam constituir prova criminal, re-lativos aos alvos sob investigação. Isto, tanto num viés preventivo, tanto quanto repressivo e prospectivo.

Abordagem inicial do problema demandará, por conseguinte, do agente de Inteligência encarregado do caso, e de sua equipe de analis-tas, uma abordagem vestibular metodológica da situação-problema que orientará todos os demais passos a serem percorridos no processo de pro-dução de conhecimento. Assim, o encarregado do caso há de se lançar so-bre o fato sob análise escrutinando os dados da realidade que a traduzem. Neste diapasão, ele executa a busca de dados orientada pelas indagações que quando respondidas trazem ampla elucidação à situação problema. O analista de Inteligência diante do objeto de análise prima facie há de indagar sobre:

1) O que aconteceu?

2) Quem foi o autor do fato?

3) Quando tal fato se deu?

4) Onde ele aconteceu?

5) Por que ele veio à tona?

6) Como foi o ato criminoso praticado?

7) Com quais instrumentos o seu autor levou a termo a sua perpetração?

Ou seja, ele procura com tais questionamentos se aproximar não só da autoria e materialidade delituais, mas também de todas as circunstâncias de lugar, tempo, modo e ânimo que são adstritos aos crimes sob investigação. Diante de tais questionamentos, o analista se deparará com as premissas, as hipóteses e os vazios relacionados com o fato criminoso. O escopo do ana-

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lista em face destes três elementos será a ratificação ou retificação das premis-sas e hipóteses e o preenchimento dos vazios. Assim sendo, se alcançarão os limites fáticos que circundam a atividade delituosa sob análise.

As premissas constituem dados da realidade fática que são ob-servados pelo analista e que em princípio são verdadeiros, dentro de uma dada inferência. Vale dizer, elas são constatações emanadas do raciocínio lógico do analista.

As hipóteses constituem uma suposição admissível que serve como explicação da existência de determinado fato. As hipóteses em sede de In-teligência Policial são também são denominadas de linhas de investigação que são determinadas pelo analista quando este se depara com uma situação criminosa. São, em verdade, conjecturas engendradas pelo analista diante do fato criminoso que lhe é apresentado.

Neste diapasão, diante de um delito podem surgir diversas hipóteses que explicam a sua existência, inclusive para eximir de culpa um determinado suspeito. Quando do estabelecimento das linhas de investigação deve o ana-lista elencar as mais plausíveis que expliquem a existência do fato criminoso. A hipótese há de ser plausível, pois, assim, não sendo há investimento a fundo perdido de recursos preciosos para o Estado, como desperdício de horas de trabalho de mão-de-obra especializada que poderia ser empregada em situa-ções criminosas que realmente necessitam ações investigatórias.

De outro lado, os vazios são os questionamentos fulcrais engendrados em face de um fato criminoso sob escrutínio e que carecem de respostas. Eles representam a ausência de solução ao problema posto. Assim, se em uma dada análise não se consegue superar algum vazio -- que é materializado através da ausência de resposta a alguma das questões: quis - quem? quid - que coisa? ubi - onde? quando - quando? quomodo - de que maneira? cur - por quê? quibus auxilis - com que auxílio? -- sobre ela incidirá a mácula de ineficácia.

Tais indagações compõem o chamado Heptâmetro de Quintiliano. Cipião Martins, citado por Pery Cotta (2002, p. 66), afirma que:

No século I, o reitor romano Quintiliano, possivelmente nascido em terras de Espanha (Calahorra), traçou em sua Instituição Oratória os precisos contornos da Retórica, mais conhecidos como circunstan-ciais: pessoa, fato, lugar, meios, motivos e modo.

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E conclui Martins:

Quintiliano enunciou um heptâmetro para disciplinar o discurso: quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? (quem, que coisa, onde, por que meio, como, quando?).

Há de se frisar que tais questionamentos não são exaustivos, consti-tuindo um referencial ao qual podem ser agregados outras indagações. Eles constituem indagações mínimas, mas não exaurem o rol de indagações que devem ser feitas em face de uma situação problema posta sob análise.

Com a incidência e permanência de vazios o esforço de Inteligência Policial levado a termo não alcançará a solvência do fato criminoso, seja em relação à sua autoria, seja em relação à sua materialidade, ou a alguma circuns-tância imprescindível ao seu deslinde.

5. Reunião de Dados

O procedimento de reunião de dados vem à tona exatamente para angariação de elementos da realidade que têm o condão de ratificar ou reti-ficar premissas e hipóteses, preencher vazios. A reunião de dados é levada a efeito através do emprego de técnicas operacionais que permitem ao agente de inteligência a busca e coleta de dados, bem como a seleção e avaliação destes elementos factuais que vão formar o cabedal de elementos a serem analisados para produção de conhecimento.

O ferramental legislativo que ascende da Lei nº 9034/1995, que “dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repres-são de ações praticadas por organizações criminosas”, por exemplo, traz rol de técnicas operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, como a interceptação ambiental de sinais ele-tromagnéticos e infiltração por agentes de polícia em organizações crimi-nosas, que podem instrumentalizar a busca de dados.

A coleta de dados é a obtenção de elemento fáticos disponíveis, isto é, de livre acesso a quem procura obtê-los. Ou seja, através da coleta se promove a ar-recadação de dados que estão ao alcance imediato do agente de Inteligência, sem necessidade de engendramento de esforços operacionais para superar direitos e garantias individuais, nem emprego de técnicas operacionais. Em relação a esses dados há de se observar incondicionalmente o que prescreve a Constituição Fe-deral (1988) no que concerne à proteção aos direitos fundamentais do homem, notadamente da liberdade ambulatória, inviolabilidade do domicílio, do sigilo

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das comunicações, etc. Neste diapasão, quando o agente de inteligência se de-parar com dados que estão sob o pálio constitucional como os suso referidos ele necessitará da devida ordem judicial para os alcançar e buscar.

A busca, por sua vez, é a obtenção de dados não disponíveis de ma-neira imediata por parte do agente de Inteligência. Os dados que são objeto de busca são aqueles que estão sob o pálio de manobras protetivas dos alvos, tendo em vista que as mesmas os colocam diretamente vinculados aos delitos por eles perpetrados, ou aqueles outros que demandam ações operacionais, ou são dados que para serem alcançadas necessitam de afastamento de prote-ção constitucional. Exemplo de ações operacionais de busca seriam a quebra do sigilo das comunicações dos alvos, emprego de fontes humanas (infor-mantes) para obtenção de dados relativos aos cidadãos líderes do esquema criminoso, infiltração de agente na organização criminosa alvo da operação.

Nos processos de coleta e busca é de bom alvitre que o agente de In-teligência Policial observe alguns critérios para otimização da operação neste momento em que os primeiros dados são alcançados. Desse modo, o agen-te de Inteligência em relação aos dados a ser angariados deve não desprezar nenhum dado mesmo que em princípio pareça insignificante; não descartar dados à vista dos mesmos poder favorecer o alvo; partir do mais simples para o mais complexo; partir do de menor custo para o mais dispendioso; partir do de pouco ou nenhum risco para o mais arriscado; esgotar a capacidade do próprio órgão antes de acionar outros.

A seleção consiste na triagem, exclusão, que obviamente tem aqui o significado de descarte intelectual e não de retirada física do dado, e escolha dos dados que são de fato relevantes ou de menor monta para o deslinde do caso, a partir do critério de relevância para a futura produção de conhecimen-to. Com a seleção promove-se a separação do joio do trigo. Tal momento é de todo relevante tendo em vista que por ocasião da coleta e busca muitos dados laterais, vale dizer, dados que não contribuem para a direta solvência do fato criminoso, são angariados.

A avaliação é o processo a que são submetidos os dados para afe-rição da sua força no sentido de se estabelecer se determinado dado tem condições de sustentar a produção de conhecimento que se almeja.

Como se percebe é na fase de reunião de dados que se desenvolvem as ações operacionais de Inteligência. O gerenciamento das Operações e Ações de Inteligência será abordado em detalhes em capítulo vindouro. O objetivo da exposição nesta abordagem inicial é contextualizar e localizar a atividade

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operacional de Inteligência no contexto do Ciclo de Produção de conheci-mento. O estudo da gestão dos esforços operacionais virá a posteriori.

6. Análise dos Dados

O momento da análise promove a associação, cruzamento e valora-ção dos dados para fins de estabelecimento do conhecimento que é o produto final de todo o esforço de Inteligência. Michael Herman (op. cit., p. 100) ensi-na o seguinte sobre o esforço de Análise de Inteligência, literis:

All-source work is a continuation of single-source processing, as defined in the official British description of the DIS as being to ‘analyse information from a wide variety of sources, both overt and covert’, NATO doctrine divides it into a sequence as follows:

Collation, or the routine office work of recording incoming information

Evaluation, of the reliability of the source and credibility of the information

Analysis: identifying significant facts, comparing them with existing facts, and drawing conclusions

Integrations, of all the analysed information into a pattern or picture interpretation, or ‘deciding what it means in terms of what is likely to happen in the future’.

Em prol da análise, serão empregadas tanto a Lógica (COPI, 1981), já utilizada pelo agente de Inteligência, notadamente o encarregado de caso, desde o estabelecimento das premissas e hipóteses, quanto ferramental tecnológico como softwares de análise criminal, como o i2 Analyst´s Notebook3. Em verdade a análise se dá a todo momento, não havendo um momento estanque onde se somente acon-tece a análise dos dados.

3 Sobre o programa de análise criminal Analyst´s Notebook da empresa i2 há: Investigations typically involve large amounts of raw, multi-formatted data gathered from a wide variety of sources. Somewhere in this data lies the key to the investigation but it can remain obscured by the volume and apparent randomness of individual facts. i2 Analyst's Notebook 7 is i2's award winning visualization and analytical product which enables analysts and investigators to visualize large amounts of disparate information and turn it into meaningful intelligence. This is achieved by providing a framework for information which helps the analyst to quickly create a chart of objects and relationships. Analyst's Notebook also provides users with the tools they require to navigate, search and analyze the wealth of information contained in a chart. This allows intelligence data to be collated and filtered so that the important relationships within the investigation can be easily understood. Analyst's Notebook is considered an essential tool for intelligence and investigative analysts around the world. Proven in defense, law enforcement and commercial organizations, it has become a de facto standard for the exchange of intelligence information between agencies. Disponível em http://www.issafrica.co.za (acessado em 21/10/2008).

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Mais ainda, as fases do Ciclo da Produção do Conhecimento não estão divididas em compartimentos incomunicáveis e herméticos. O pro-cesso de análise é dinâmico e não comporta o confinamento de suas fases a momentos fixos e específicos. É claro que metodologicamente, e do ponto de vista didático, há o estabelecimento de fases, momentos, do esforço de inte-ligência, tanto operacionais, quanto analíticos. Outrossim, isso não significa que estas aconteçam de maneira isolada e distanciada uma das outras e que não haja o desenvolvimento de ações típicas de uma fase no bojo da outra.

Na análise há, por conseguinte, a promoção do estudo pormenoriza-do do conjunto de dados angariados. Isso, numa perspectiva individual e glo-bal concomitantemente do conjunto de dados arrecadados. Assim, cada dado é analisado individualmente e confrontado com os demais numa perspectiva micro e macro da análise, conferindo uma apreensão da realidade fática atre-lada ao objeto sob exame que é traduzida através dos dados colecionados.

O produto da análise de Inteligência Policial é o próprio conheci-mento que pode ter estatura tática ou estratégica. O conhecimento tático se materializa através de informes e informações. Por sua vez, o conhecimento estratégico vem à tona através de apreciações e estimativas.

Informe é o conhecimento destinado a comunicar a ocorrência de um fato criminoso, objetivando o processamento inicial dos trabalhos de inteligência policial, não possuindo um nível de certeza que seja hábil, por exemplo, a ensejar a ascensão de elementos probatórios em face da ação criminosa sob análise. Neste nível de conhecimento a influência das percepções e impressões do analista im-pregna, por assim dizer, fortemente o conhecimento. Geralmente os informes prescindem de aprofundamento na análise. Todavia, eles já podem ascender indi-cando a presença de indícios relevantes sobre o objeto de análise.

Informação é o conhecimento resultante de raciocínios elaborados pelo profissional de inteligência e que contém o resultado do processamen-to dos dados dos quais se pode obter, por exemplo, elementos probatórios ou se tem conhecimento de onde poderão ser obtidas sobre a materialidade, autoria e circunstâncias de crimes sob análise. A informação é um plus em re-lação ao informe, denotando um nível de certeza maior em relação aos dados analisados, se aproximando daquilo que é verossímil em relação ao objeto de análise. Com a informação o tomador de decisões tem diante de si um conhe-cimento robusto hábil a orientá-lo em prol da melhor decisão.

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Apreciação é o conhecimento destinado a demonstrar a situação cri-minal em determinado momento, de abrangência regional ou nacional. Tem como finalidade, no contexto da Inteligência de Segurança Pública, subsidiar a elaboração de estratégias e políticas para o enfrentamento de determinados fenômenos criminais. A apreciação se assemelha a uma fotografia panorâmi-ca da situação problema objeto da análise, conferindo ao gestor à possibilida-de de melhor entender a problemática a ser enfrentada.

Estimativa é o conhecimento destinado o demonstrar e projetar de forma estimada a evolução ou as tendências de um tipo crime ou da crimina-lidade como um todo. Tem como finalidade subsidiar a adoção de estratégias e políticas preventivas na seara da segurança pública. A estimativa é pros-pectiva e antecipa no tempo cenários que demonstram como, por exemplo, fatores que influenciam na criminalidade organizada podem vir à tona, ense-jando, assim, oportunidades, em adiantado, de prevenção criminal.

Assim, percebe-se que os informes e informações são engendrados num contexto específico, com foco precípuo na repressão criminal, para subsidiar investigações criminais e o processo decisório do coordenador dos trabalhos investigativo, exercida pela Autoridade Policial, o Delegado de Po-lícia. Por óbvio, o conhecimento tático também é hábil a subsidiar ações poli-ciais ostensivas, vindo ao suporte de decisões táticas de oficiais superiores das Polícias Militares, em particular de Coronéis, responsáveis pela condução de ações de policiamento de manutenção da ordem pública.

De outro lado, as apreciações e estimativas são produzidas num contexto estratégico, sem estar adstrito a um caso em específico, sendo materializados para subsidiar o processo decisório do gestor em segurança pública. Isso, em suporte à implementação de políticas e estratégias macro de prevenção e repressão à criminalidade, em especial à organizada.

Com a concretização da análise de dados o analista vai se depa-rar com duas situações, a saber: a) os dados angariados são suficientes para se engendrar o conhecimento necessário ao suporte do processo decisório do tomador de decisões; b) o conjunto de dados analisados ainda aponta para a existência de vazios de tal monta que interferem na produção do conhecimento necessário e suficiente para atender a demanda trazida aos órgãos de Inteligência.

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Em sendo suficientes os dados, o Ciclo da Produção de Conhe-cimento segue seu curso rumo à produção propriamente dita do conhe-cimento tático ou estratégico demandado. Contudo, se ainda resta in-dagações, relevantes às análises, do Heptâmetro de Quintiliano a serem sanadas ascende uma nova demanda de inteligência, esta ensejada pelo encarregado de caso e sua equipe de analistas, que vai ensejar o apa-recimento de novas premissas e hipóteses e de nova reunião de dados mediante busca, coleta, seleção e avaliação.

Superada a fase da análise com a produção do conhecimento de-vido, este é materializado (formalizado) em pertinente documento de Inteligência. Tal documento é o Relatório de Inteligência (RI) que traz em seu bojo os seguintes elementos formais: a classificação sigilosa do conhecimento, identificação do documento (numeração e data), Órgão de Inteligência de origem, referência da demanda que deu origem ao es-forço de Inteligência, difusão anterior do conhecimento, difusão atual do conhecimento, relação de anexos.

No mérito o RI traz o conhecimento propriamente dito de esta-tura tática ou estratégica. Pode-se recomendar que o texto do Relatório de Inteligência observe os seguintes princípios, sem prejuízo de outros que emprestem clareza e certeza ao texto: 1) concisão, sendo breve e usando apenas a quantidade de palavras necessárias para transmitir a idéia; evitando circunlóquio, ou seja, discurso pouco direto, onde o es-critor foge do ponto principal pelo abuso de expressões, estendendo demasiadamente uma ideia que pode ser expressa em poucas palavras, clichês, redundâncias; 2) correção, obedecendo ao emprego das nor-mas gramaticais; 3) precisão, escolhendo as palavras mais adequadas à transmissão das idéias; evitando ambigüidades; 4) imparcialidade, apresentando os fatos com isenção, evitando o emprego de adjetivos e expressões que indiquem juízo de valor; 5) objetividade, apresentando os fatos de modo pragmático, raciocinando com base neles; 6) simplici-dade, transmitindo as idéias na ordem direta e sem ostentação; evitan-do linguagem rebuscada e estrangeirismos; 7) amplitude, apresentando o trabalho de modo completo e compreensivo, sem lacunas; 8) clareza, transmitindo de modo nítido e eficiente a mensagem.

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7. Difusão

Uma vez que o conhecimento encontra-se produzido alcança-se a fase de difusão do conhecimento. A difusão consiste na remessa do co-nhecimento formalizado para os usuários que dele farão uso para suporte de seu processo decisório. A difusão pode há de ser levada a termo me-diante o encaminhamento do conhecimento através de canais seguros de comunicação. Este encaminhamento pode ser por intermédio de docu-mento de Inteligência, notadamente o Relatório de Inteligência ou men-talmente, em casos excepcionais quando há a necessidade de transmissão oral do conhecimento.

Conclusão

Diante do exposto, observa-se o alto grau de pertinência do emprego da Atividade de Inteligência na seara da Segurança Pública. Isso, tanto na dimensão da prevenção do crime, quanto da repressão criminal.

Não obstante esta constatação alvissareira, este ferramental, pelas suas peculiaridades, apresentadas acima, há de ser instrumentalizado de for-ma técnica e sempre com pálio na legalidade e com respeito incondicional aos direitos e garantias constitucionais do indivíduo. A Atividade de Inteli-gência no campo da Segurança Pública atua necessariamente sob os ditames do Estado Democrático de Direito de forma inarredável. Não há como se conceber uma atuação policial de repressão criminal, por exemplo, ao arrepio do que determina a Lex Excelsa.

Neste diapasão, as Operações de Inteligência, face da atuação da Atividade de Inteligência de Segurança Pública, mais (in)visível e invasiva só pode ser levada a termo se há legitimidade e licitude no bojo desta ação. Assim não sendo, os dados angariados em sede de Opera-ções, que darão, por exemplo, pálio à parturição do futuro elemento probatório, estarão maculados, viciados e, por via de consequência, im-prestáveis à repressão criminal.

Com efeito, a Atividade de Inteligência de Segurança Pública há sempre de ser expressão de uma atuação estatal de prevenção e repressão cri-minais de estatura legal e constitucional.

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Adriano Mendes Barbosa

Delegado de Polícia Federal, Mestre em Political Science pela Naval Postgraduate School (NPS), Califórnia, EUA,

revalidado pela Universidade de Brasília (UnB) como Mestre em Relações Internacionais, Professor da Escola Superior de Polícia da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal.

É também Orientador de Monografias, Conferencista e Palestrante sobre as temáticas do Terrorismo, Inteligência

Policial e Investigação Criminal; Membro da Comissão Edi-torial da Revista Brasileira de Ciências Policiais.

E-MAIL: [email protected]

ABSTRACT

The crime is a social phenomenon which is deeply connected with humankind history. However, it comes about by different ways. As a matter of fact, there some factors that highly influence the way that the crime appears in society, like history, culture, geogra-phy, economics, social values and the politics. Hence, there are crime activities which are less complex than others. For instance, one can find predatory crimes that are disorga-nized and are committed in urban spaces by criminals who act by an improvised way with no support, such as pickpocket, burglaries and rapes. On the other hand, there are some kinds of crime activities that are driven by an organized way. This type of crimi-nality is perpetrated by criminal organizations that look for outcomes and put the state under its influence. Drug trafficking, weapon trafficking, bank robbery and kidnap-pings and samples of this kind of criminal endeavor. As a consequence, the state needs to be prepared to prevent and to combat all these types of criminality. In this context, to struggle the organized crime the state needs a police apparatus that must be as efficient as possible. Hence, the Police Intelligence comes about as the right tool to be applied in this mission. It can provide support to police operations and investigations in order to defeat organized crime.

Keywords: Crime. Organized Crime. Criminal Prevention. Criminal Repression. Police. Intelligence. Police Intelligence.

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Revista Brasileira de Ciências Policiais 31ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 2, n. 1, p. 31-50, jan/jun 2011.

CRIMINOLOGIA E INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: Abordagem criminológica, tipologias e fenomenologia criminal na investigação

Eliomar da Silva Pereira Coordenação de Altos Estudos em Segurança Pública

Academia Nacional de Polícia - Brasil

Dud

RESUMO

As relações entre Criminologia e Investigação Criminal são de complementariedade e reciproci-dade – a Criminologia se enriquece com acesso aos dados das investigações criminal e a Crimina-lística se aperfeiçoa com o conhecimento de teorias e demais conhecimentos criminológicos. Em-bora algumas correntes criminológicas se tenham afastado do interesse criminalístico, no curso histórico de sua afirmação científica, a exemplo das criminologias críticas, ainda é possível localizar na criminologia objetos de estudos e métodos, como a fenomenologia criminal e as tipologias, que interessam muito especificamente à investigação criminal. Esta, no desenvolver sua prática diária, não apenas recorre a técnicas de pesquisa que são comuns a ambos os domínios do saber (a exemplo da investigação-ação), como produz dados essenciais (estatística criminal) ao conheci-mento da fenomenologia criminal, além de descrever o fenômeno da criminalidade de uma forma detalhada que poucos pesquisadores criminólogos poderiam fazer, se se leva em consideração o conteúdo de inquéritos investigativos. Em reciprocidade, a investigação criminal, por sua vez, ten-de muito frequentemente a trabalhar a partir de tipologias criminais, que são uma tradição crimi-nológica útil à ordenação e sistematização do saber prático da investigação criminal.

Palavras-chave: Investigação Criminológica. Tipologias Criminais. Fenomenologia Criminal. Investigação Criminalística.

“La criminologia contemporanea è un esempio importante della possibile (e auspicabile) convivenza di paradigmi, teorie, program-mi di ricerca. Infatti, in questo ambito disciplinare, nonostante vari tentativi de ‘rivoluzionare il paradigma criminologicio’, è maggio-ritario un approccio ‘multifattoriale e interdisciplinare’, secondo il quale i diversi indirizzi interpretativi no sono ‘incompatibili, ma complementari e correlati” (Francesco Sidoti, Criminologia e Inves-tigazione, p. 139).

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Introdução

A origem da criminologia, no programa positivista de conhecimen-to do crime, está intimamente associada a uma função cognitiva prática, orientada mais ao criminoso como indivíduo diferente, sobre o qual se pre-tendem conhecer as anormalidades para combatê-lo através de um sistema jurídico orientado cientificamente (BARATTA, 1982, p. 29ss)1. Nesse sen-tido, entende-se porque, na origem, a investigação criminalística esteve tão imiscuída no saber criminológico (ZBINDEN, 1950)2 , a tal ponto de ainda hoje, equivocadamente, se afirmar que aquela é parte dessa (GARRIDO, STAGELAND e REDONDO, 2006, p. 107)3. Embora não nos pareça mais ser o caso, entendemos que não se pode seriamente pretender uma investiga-ção criminalística sem um conhecimento criminológico prévio, entre outros tantos conhecimentos de que não se pode mais prescindir4. Pensemos, por exemplo, no que representou a concepção antropológica lombrosiana para a investigação criminal, no passado, e o que, ainda hoje, ela representa como aquisição da cultura policial imiscuída nas suas práticas corriqueiras, embora em confronto com um novo paradigma jurídico; pensemos, noutro sentido, o que pode representar uma nova concepção mais condizente com os direitos humanos, na cultura da atividade de investigação. Essa é apenas uma das pos-síveis relações que a investigação criminal ainda guarda com o saber crimino-

1 Em sua origem, pois, a criminologia tem como específica função cognoscitiva e prática individualizar as causas desta diversidade, os fatores que determinam o comportamento criminoso, para combatê-los com uma série de práticas que tendem, sobretudo, a modificar o delinquente. A concepção positivista da ciência como estudo das causas batizou a criminologia. (BARATTA, 1982, p. 29).

2 Assim, Hans Gross incluía na Criminologia, como teoria do crime (ou Fenomenologia geral do crime), subdividida em Antropologia criminal, Sociologia e Fenomenologia especial, a Criminalística (como investigação dos dados objetivos) ao lado da “Psicologia criminal subjetiva”. Sobre essa confusão, no ponto de partida, entre ‘criminologia’ e ‘criminalística’, cf. Zbinden, 1957, p. 13.

3 Segundo os autores, a criminalística seria uma “técnica” dentro da criminologia, não por limitações aos métodos que utiliza, mas por suas finalidades, por não estabelecer hipóteses e teorias sobre a delinquência, deixando a sistematização de suas observações à Criminologia. Há sentido no que entendem os autores, mas há também uma limitação compreensiva da investigação criminal. De fato, qualquer teoria da criminalidade que se faça a partir dos dados de investigações criminais deve se considerar criminológica, mas a criminologia, mesmo em sua diversidade científica, não tem atendido a certas necessidades criminológicas da criminalística, a ponto de sugerirmos aqui algumas vertentes próprias de investigação. A limitação, por sua vez, encontra-se na redução de submeter da criminalística a uma técnica da criminologia, e não entender cada investigação criminal como uma pesquisa em particular, com hipóteses e método de justificação por provas. Esse é um vício que toda ciência (a sociologia em relação à criminologia, para ficarmos com um único exemplo) comente em relação a todo desmembramento de saber a partir de um corpo teórico.

4 Por exemplo, um paradigma teórico-jurídico, que inclua os direitos fundamentais, sobretudo, como é o caso da teoria do garantismo penal, bem como conhecimentos de administração estratégica.

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lógico. Mas não é sob a perspectiva, na qual uma teoria ampla nos dá apenas uma “cosmovisão da criminalidade”, que pretendemos abordar tais relações, embora entendamos que seja ainda essencial e prévia5.

O que nos interessa mais especificamente é saber como o conhe-cimento criminológico de certos crimes em particular, situados em um es-paço e tempo muito limitados, pode conferir à investigação criminal um primeiro conhecimento do qual possa derivar seu conhecimento metodo-lógico6. A hipótese que gostaríamos de lançar é que esse conhecimento, em-bora se dirija mais especificamente aos interesses institucionais de órgãos de investigações, não deixa de ser um saber de natureza criminológica (sob uma perspectiva diversa), ainda que tenha por finalidade servir de ponte para a construção de conhecimentos mais especificamente de natureza da investigação criminalística. Essa necessidade, contudo, de construção de te-orias limitadas da criminalidade, a certos e determinados crimes com que os órgãos de investigação criminal lidam cotidianamente, tende mais a ser satisfeita pelos próprios órgãos de investigação, e não tanto por instituições de pesquisa criminológica, embora dessas se possam e devam extrair certas técnicas da pesquisa, ainda que dirigida no âmbito das instituições policiais ou de investigação criminal.

Essa necessidade tanto mais se aprofunda ao percebermos que a criminologia, no seu percurso histórico, se tem distanciado de um para-digma etiológico (sobretudo da perspectiva patológica), em direção a um paradigma crítico, que em quase nada se assemelha à criminologia de ori-gem, a tal ponto de mais se aproximar de uma sociologia do direito penal (cf. Baratta, 1982, 21ss), o que em quase nada aproveita praticamente a in-vestigações criminais7. No entanto, para além dessa perspectiva teórica que a criminologia vem adquirindo, é possível observar que, mesmo contem-poraneamente, a criminologia se tem diversificado no espaço, e não raro,

5 Sob essa perspectiva, entendemos que a formação criminológica do investigador deve ser prejudicial à formação investigativa. Esse, aliás, é um entendimento que está subjacente no primeiro “Corso di laurea in Scienze delle’Investigazionte”, em cujo currículo se contém a disciplina Criminologia, ministrada pelo Profesor Franceso Sidoti, fundador e dirigente do curso (cf. www.scienzeinvestigazione.it), além de autor de obra que traça paralelos entre “Criminologia e Investigação” (Giuffrè Editore, 2006).

6 Ou mais precisamente, para fazer a distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, para orientar certas técnicas de investigação, a partir de um método de provas justificado pelo respeito a regras jurídicas preestabelecidas.

7 Com isso não estamos a menosprezar a perspectiva da criminologia crítica. Diversamente, entendemos que essa perspectiva tem sido relevante a demonstrar os vícios de legitimação do sistema jurídico-penal e tende a contribuir para a racionalização e construção de um sistema de direito penal mínimo.

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em um mesmo espaço se podem encontrar diversidades teóricas. E apesar de atualmente se observar na criminologia científica uma preeminência da abordagem sociológica, esta ainda concorre com algumas abordagens biológicas e psicológicas. No entanto, mesmo no âmbito das abordagens sociológicas, é possível verificar-se varáveis tantas de compreensão, embora exista uma tendência crítica, que quase poderíamos dizer que existem várias criminologias, com pouco ou nada em comum.

O que mais se mostra claro é que a criminologia não tende a voltar aos seus problemas de origem, ficando a investigação criminal, por assim dizer, “a descoberto de um conhecimento criminológico” que possa sub-sidiar suas práticas em um sentido racional, ainda que comprometida com as funções institucionais de um sistema jurídico-penal. Em outros termos, pretendemos que se entenda que, conquanto uma investigação criminalís-tica esteja orientada a “alimentar” o sistema jurídico-punitivo, não é só exi-gível que o faça segundo uma política criminal orientada por valores consti-tucionais de um modelo de Estado de direito (o que é necessário, mas não suficiente), mas que também o faça consciente de sua “função minimizado-ra da violência no âmbito social”, para o que uma compreensão criminológica é igualmente necessária.

Essa perspectiva de compreensão criminológica na investigação cri-minal, verdadeiramente, já existe em certos manuais de formação prática de órgãos de investigação criminal, notadamente os policiais. Uma prova disso, que tomamos de exemplo e pretendemos evidenciar ao final, são os cadernos didáticos de formação policial da Polícia Federal do Brasil, nos quais existem implícita compreensões criminológicas, ainda que rudimentares, na base an-terior à discussão sobre as formas de investigar. Assim, segundo nos parece, a compreensão criminológica do crime, que estamos a afirmar ser necessária à investigação criminal, apenas precisa ser mais bem ordenada a partir de teo-rias fundamentais, em conformidade com o atual estágio do saber crimino-lógico e, sobretudo, consciente de que estão a fazer interpretações criminoló-gicas, para as quais o conhecimento mais adequado do método e das técnicas da criminologia seria de especial relevância.

Em síntese, com tais propósitos, entendemos que se deve ter uma compreensão adequada do caminho que percorreu a criminologia em sua afirmação científica (Seção 1), na definição de seu objeto, o problema meto-dológico e suas técnicas (Seção 2) – que são em geral o problema das ciências

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humanas e sociais –, a natureza de seu conhecimento a partir de tipologias e teo-rias (Seção 3), suas funções e usos possíveis na investigação criminal, com evidên-cia na abordagem sociológica, por entendermos que o modelo de investigação criminal como ciência tende a aproximar-se dos modelos sociológicos de ciência. Com base nesse conhecimento, pretendemos concluir que teorias criminológicas acerca de crimes de interesse para investigação criminal são o necessário “conhe-cimento-ponte” para a construção de teorias de investigação dos crimes, que deve ser o objeto específico de uma possível ciência da investigação criminal8.

1. A afirmação científica da criminologia9

A criminologia científica nasce com a chamada Scuola Positiva italiana, sob a inspiração positivista da ciência (MOLINA, 1994, p. 106; MAÍLLO, 2004, ano, p. 68). Mas não é possível ignorar a concepção criminológica existente na chamada Escola Clássica10 , por vezes considerada uma etapa pré-científica da criminologia, por se encontrar nela igualmente um método próprio de consideração do crime. Isso, contudo, só tem sentido se não temos em mente uma concepção naturalista e restritiva de ciência, o que correspondia à noção de ciência na origem da Crimino-logia e atuou de forma decisiva para o nascimento como ciência.

A criminologia clássica, em síntese, com base na “concepção do homem como um ser livre e racional”, sustentava que o crime poderia ser explicado em termos utilitaristas, segundo um cálculo racional entre vanta-gens e prejuízos. Com base nesse compromisso metafísico – do livre-arbí-trio e da racionalidade utilitarista –, não empiricamente demonstrado em qualquer pesquisa, a escola clássica tinha por método o raciocínio lógico-dedutivo desse processo de eleição racional pela prática do crime, destacan-do a importância das penas para a prevenção do delito11.

8 Esse, no entanto, é o objeto de um estudo mais amplo, para o qual temos trabalhado, e dentro do qual a relação entre criminologia e investigação consiste em uma etapa prévia e necessária.

9 Segundo síntese de Alfonso Serrano Maíllo (2004, p. 60): “A Criminologia contemporânea corresponde, com efeito, a uma longa evolução, a qual inclui importantes disputas teóricas e metodológicas, às vezes conhecidas como luta de escolas (...); esforços por alcançar sua autonomia e independência em face de disciplinas-mãe (...); uma contínua reflexão sobre suas bases e possibilidades epistemológicas e metodológicas (...); descobertas empíricas (...); acontecimentos socioculturais igualmente influentes (...); enfoques que pugnam por se impor (...) etc.”

10 Essa orientação, por exemplo, tem ressurgido em vertentes criminológicas neoclássicas, diante investigações empíricas que objetivam investigar se as penas, de fato, cumprem um efeito preventivo, especialmente a pena de morte (cf. MAÍLLO, 2004, 168ss).

11 Dessa concepção, que se inicia com C. Beccaria (Dei deliti e delle penne, 1764), passa por G. Romagnosi (Genesi del diritto penal, 1791) e chega ao Programma del corso di diritto criminale (1859) de F.

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A criminologia positivista, em confronto com essa compreensão do delito, propõe uma investigação empírica do crime como fenômeno da realidade. Essa orientação, contudo, já se encontrava em algumas pesquisas prévias à Escola positiva italiana. É o que já se observava no âmbito da Fi-sionomia12, Frenologia13 e Estatística14, mas sobretudo em estudos de Antro-pologia15 cuja aparição está estreitamente ligada às origens da Criminologia (MOLINA, 1994, p. 99).

O primeiro passo da criminologia positivista tem, assim, uma di-retriz antropológica e empírica, encontrando-se na obra de C. Lombro-so (1835-1909), L’Uuomo Delinquente, a sua maior expressão. Em síntese, opondo ao método lógico-dedutivo o método científico empírico e partindo de uma perspectiva determinista das ações do criminoso, como espécie dife-rente dentro do gênero homem, a criminologia positivista se dirige não tanto ao crime, mas ao criminoso, e a pena tende a ter um caráter curativo e reedu-cativo, tendencialmente indeterminada em seu tempo.

Sob uma perspectiva criminalística, a criminologia positivista as-pira a uma compreensão total do criminoso, visando a subsidiar a defesa social, como técnica de proteção da sociedade contra o crime, por meios não apenas jurídicos. Contudo, embora o positivismo possa ter apresen-tado uma perspectiva diferente de investigação do crime, ideologicamente ambas as escolas partilham do paradigma político da defesa social, que tem na sua base uma concepção abstrata e a-histórica da sociedade, entendida como uma totalidade de valores e interesses, desconsiderando conflitos re-ais (BARATTA, 1982, p. 41ss)16.

Carrara, embora sob a perspectiva criminológica pouco tenha contribuído, surgiu a grande tradição da ciência do direito penal. Segundo Baratta (1982), nesse período, “assistimos a um processo que vai da filosofia do direito penal a uma fundamentação filosófica da ciência do direito penal; ou seja, de uma concepção filosófica para uma concepção jurídica, mas filosoficamente fundada, dos conceitos de delito, de responsabilidade, de pena”.

12 A exemplo de Della Porta (1535-1616), com estudos da aparência externa do indivíduo, ressaltando relações entre o psíquico e o somático (MOLINA, 1994, p. 96).

13 A exemplo de Gall (1758-1828), com estudos sobre comportamento criminoso a partir de observação da má-formação do cérebro e do crânio, bem como Cubi i Soler (1801-1875), que teria três década antes de Lombroso insinuado suas principais teses (MOLINA, 1994, p. 97).

14 A exemplo de Quetelet (1796-1874), com estudos que tendem a considerar a criminalidade, a partir de estatísticas, como fenômeno coletivo e social, regido por leis naturais, que requerem uma análise quantitativa, o que é considerado por A. Garcia-Pablos Molina (1994, p. 101) o genuíno precursor do positivismo sociológico.

15 A partir de estudo de crânios de assassinos, sob a tese de que o criminoso é uma espécie doente dentro da espécie humana, o que será constantemente afirmado pela Criminologia positivista.

16 Cf. Baratta (1994, p. 42) eu propõe explicar a ideologia da defesa social a partir dos seguintes

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A partir da concepção antropológica plantada por Lombroso, a cri-minologia positivista se diversifica com outras vertentes, sociológica e psico-lógica, nas obras de E. Ferri (1856-1929)17 e R. Garofalo (1852-1934)18, mas é equivocado entender que na criminologia positivista cada autor defendia a exclusividade do fator antropológico, sociológico e psicológico. O próprio Lombroso teria reconhecido que “não existe delito que não encontre sua raiz em múltiplas causas” (MAÍLLO, 2004, p. 73), embora enfatizasse a antropo-lógica em conformidade com suas teses deterministas.

Na origem, portanto, verdadeiramente, a criminologia parece mais se identificar com uma explicação multifatorial19, dando assim lugar a uma diversidade de abordagens que se vão proliferar em pesquisas de natureza biologicistas, psicologicistas e sociológicos20, como estrutura da moderna cri-minologia científica, na qual se encontram ramos de Biologia criminal e Psi-cologia criminal, mais centradas no criminoso, e a Sociologia criminal, que tende a deslocar o objeto de investigação do crime para a reação ao crime.

Mas à medida que a criminologia tem avançado no seu percur-so científico, a abordagem sociológica tem alcançado uma preeminência sobre as demais21, especialmente com escolas orientadas à construção de teorias unitárias de explicação do crime, a partir da compreensão do am-biente em que o crime se desenvolve22. Tais estudos são decisivos para en-tender o crime como uma determinação externa, contribuindo para mudar a perspectiva patológica de compreensão do criminoso. No entanto, mais

princípios: a) da legitimidade; b) do bem e do mal; c) da culpabilidade; d) do fim da prevenção; e) da igualdade; e f ) do interesse social e do delito natural.

17 Enfatizando os fatores sociais, a obra de E. Ferri se situa no que hoje podemos chamar de sociologia criminal, mas ainda fiel ao determinismo.

18 A. Garcia-Pablos Molina (1994, p. 114) considera a obra de Garofalo como uma espécie de positivismo moderado, e J. Figueiredo Dias e M. Costa Andrade (1991, p. 5) observam que a ele se deve precisamente o nome Criminologia,que foi o título de sua principal obra

19 Ou plurifatorial, o que, segundo atenta A. Serrano Maíllo (2004, p. 77), tem conferido à Criminologia um caráter interdisciplinar que tende a lhe negar autonomia. A. Garcia-Pablos Molina (1994, p. 24), por sua vez, tende a considerar que o princípio interdisciplinar está associado ao processo histórico de consolidação da Criminologia como ciência autônoma, o que somente se alcançará quando se emancipar das disciplinas em torno das quais nasceu.

20 Nesse sentido, cf. Molina, 1994, Capítulo Terceiro, estruturado segundo essa divisão.

21 A. Serrano Maíllo (2004, p. 78) chega a atribuir a ideia de que existe um “paradigma sociológico” nessa preeminência.

22 Esse é o caso dos estudos realizados pela Escola de Chicago, sobre a desorganização social (Shaw e McKay), bem como estudos de Sutherland, sobre a associação diferencial, e sobre a frustração (A. Cohen).

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recentemente, com a proliferação de teorias, têm surgido propostas de teo-rias integradas, em que se propõe “tomar de cada teoria aquelas partes que resultem mais promissoras e tratar de formar uma nova teoria com todas elas” (MAÍLLO, 2004, p. 307)23.

Em boa parte, contudo, a criminologia, mesmo nessa diversidade, manteve-se muito vinculada a um paradigma etiológico (determinista ou não), ainda que mudando o foco do criminoso para o crime, e somente a partir de teorias da criminalidade e da reação social baseadas no labelling approach (etiquetamento)24 e na concepção conflitual da sociedade25, há uma mudança radical no sentido de um “criticismo”. Fala-se, então, em uma crimi-nologia crítica, não propriamente homogênea, que desloca o enfoque teórico do autor às condicionantes objetivas, estruturais e funcionais do crime, com o que o interesse do estudo se desloca das causas do crime aos mecanismos so-ciais e institucionais, como elementos de elaboração da realidade social (BA-RATTA, 1994, p. 172ss). Há mesmo uma desvinculação da ideia de causa, com distanciamento do modelo de ciências naturais, e o crime deixa de ser, em absoluto, considerado como uma entidade ontológica preexistente. Em uma síntese, A. Baratta (1994) conclui que “a criminologia crítica se transfor-ma desse modo mais e mais em uma crítica do direito penal”26.

2. Método e técnicas da investigação criminológica.

23 Essas teorias são de uma ordem diversa de qualquer outra que pretenda uma explicação unifatorial. A rigor, segundo entendemos, o único e efetivo uso do termo “teoria”, sob uma perspectiva científica mais rígida, deveria ficar limitado a essas perspectivas teóricas. Cf. Hempel, 1966, p. 92ss, a respeito do uso apropriado dos termos teorias, leis, conceitos e princípios. Assim, deixar-se-ia de considerar toda e qualquer pesquisa empírica que chega a conclusões parciais como uma teoria em si. Se se quer compreender a criminologia à maneira das ciências empíricas em geral, devemos ter em mente um processo de construção, a partir do estabelecimento de certas ‘leis’ que, no caso das ciências sociais, deveria ser entendidas como ‘tendências’, segundo propõe K. Popper (1957, p. 99).

24 A. Baratta (1994) refere ao labelling como uma revolução científica no âmbito da sociologia criminal. Em síntese, “esta direção de investigação parte de considerar que é impossível compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal que a define e que reage contra ela, começando pelas normas abstratas até chegar à ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que a aplicam)”. Esse paradigma tende a confrontar-se com o princípio da prevenção da defesa social.

25 A partir da sociologia do conflito aplicada à criminologia, por sua vez, há um confronto ao princípio do interesse social da defesa social, segundo o qual os interesses protegidos nas leis penais correspondem a valores gerais da sociedade (ideia consensual).

26 É nesse ponto que, sob uma perspectiva criminalística, observa-se que a criminologia atual, como antípoda de sua origem, tende a pouco se interessar por questões que relevam à prática das investigações criminais, a ponto de ser necessário os órgãos responsáveis por estas procederem a pesquisas orientadas por suas necessidades.

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A diversidade das abordagens criminológicas produziram diver-sos objetos de investigação. Atualmente, a criminologia tem como objeto o crime, o criminoso, a vítima e o sistema de reação social, estando as-sim dividida matéria em alguns manuais (MOLINA, 1994; GARRIDO, STANGELAND e REDONDO, 2006). Serrano Maíllo (2004, p. 21), contudo, reafirma que sua principal atividade de investigação consiste “no estudo das causas do delito, ou seja, em explicá-lo – a perspectiva etio-lógica”, mas acrescenta que a criminologia está interessada também “nas possíveis formas de responder ao fenômeno delitivo no sentido de preveni-lo e controlá-lo”. E nesse ponto se deve incluir, segundo entendemos, o conhecimento criminológico que possa subsidiar investigações criminais, precisamente a partir de pesquisas criminológicas que incluam a medida ou extensão do delito, ou seja “quantos delitos são cometidos em certos período de tempo, em dada unidade espacial, podendo ser um país, uma região ou um bairro”27 e, mais especificamente orientadas a necessidade da investigação criminal, o modo como se costuma cometê-los.

No entanto, o conceito de crime tem constituído o principal problema do objeto da criminologia, a ponto de se considerar que a autonomia dessa ciência está em boa medida a depender de um conceito próprio de delito (e independente do conceito legal), para o qual não tem havido sucesso, apesar de várias propostas28. Assim, segundo refere A. Serrano Maíllo (2004, p. 42ss), embora criticável sob certos aspec-tos, o conceito legal ainda tem sido utilizado em boa parte das pesquisas criminológicas, notadamente na Espanha. É, contudo, paradoxal que a criminologia se afirme como ciência, na qual se inclui a criminalística segundo alguns autores, embora o conceito legal de crime dessa é que seja ainda o seu ponto de referência. O problema das definições propos-tas é que o criminólogo, ao propor critérios próprios em substituição

27 Nesse ponto, segundo A. Serrano Maíllo (2004, p. 23), “naturalmente, a medida pode se referir também a tipos concretos de delitos” e a criminologia “também se ocupa de estudar as tendências do delito ao longo do tempo, por exemplo, se aumenta ou diminui; da comparação entre diferentes países, comunidades ou outras entidades; ou de estudar se o delito se concentra em certos lugares, momentos ou grupos de pessoas”. Ora, sob esses aspectos particularmente, não há como desconsiderar a relevância do conhecimento criminológico, embora na prática poucas pesquisas estejam seriamente orientadas a certos crimes que interessam, por exemplo, a polícias mais especializadas, como a Polícia Federal do Brasil, em crimes ambientais, fazendários, previdenciários, financeiros, econômicos etc.

28 Assim, o conceito de delito natural de Garofalo (infração de certos sentimentos morais fundamentais para uma comunidade), Gottfredson e Hirschi (ato de força física ou fraude na busca de benefício próprio), ou o redimensionamento do objeto para a violência ou agressão, ou para o comportamento desviado.

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aos critérios da lei, acaba por incorrer em outro problema – atribuir valores segundo sua concepção29.

O outro problema da criminologia como ciência passa pela questão metodológica, mas nesse caso trata-se em boa parte do problema metodo-lógica das ciências sociais em geral, para o qual se pode remeter a questão30 . Trata-se, em geral, de entender-se a criminologia ou não como ciência empí-rica em sentido estritamente físico, e exclusivamente voltada a uma perspec-tiva quantitativa, ou em um sentido mais apropriado ao objeto de estudo, segundo uma perspectiva qualitativa. Em síntese, como tem ocorrido nas ciências sociais em geral, há uma tendência a coordenar as perspectivas e pro-duzir outras espécies de generalizações teóricas não exatamente causalistas no sentido da ciência física31 .

Na busca desses objetivos, a investigação criminológica tem recor-rido a técnicas apropriadas, com as quais têm obtido o conhecimento que compõe o corpo de suas teorias32 . Entre as diversas técnicas, encontram-se todas em geral usadas pelas ciências sociais e humanas (observação, em suas diversas formas documental, direta e participante, entrevistas e questioná-rios etc.), mas aqui vamos centrar a atenção em duas especialmente relevantes ao entendimento das relações entre criminologia e investigação criminal – a investigação-ação e a estatística.

A investigação-ação, em um sentido geral, significa uma conexão, o mais estreita possível, entre investigação teórica e ação prática (MAN-NHEIM, 1965, p. 277), que pretende não de imediato a promoção científica,

29 Como se estivesse a dizer que a lei penal deveria considerar crime somente os que tivessem os elementos sugeridos por sua definição. No entanto, há entendimentos interessantes. É o caso de A. Garcia-Pablos Molina (1994, p. 31) que sugere não se tomar uma decisão apriorística que limite ou impeça a investigação criminológica. A. Serrano Maíllo (2004, p. 51), por sua vez, parte de um conceito que, embora admita não se tratar de uma construção definitiva, parece ter encontrado a fórmula adequada – um conceito legal, como necessário, mas não suficiente.

30 Cf. Bottomore, 1971, p. 53ss, em que se tem uma boa visão geral das discussões especialmente em Sociologia. Uma boa síntese, relativamente à criminologia, também pode se encontrada em Maíllo, 2004.

31 Em verdade, nem a ciência física contemporânea tem sustentado a ideia de causa em sentido absoluto (cf. Abbagnano, 1971, p. 130). Karl Popper (1976), aliás, já havia observado que o problema metodológico das ciências sociais passa por uma compreensão equivocada das ciências naturais, que nem essas mesmas têm de si.

32 E geral, os livros de criminologia não abordam esse aspecto do conhecimento criminológico. Em exceção, cf. Figueiredo Dias (1992); Garrido, Stangeland e Redondo (2006) e Mannheim (1965). Especialmente, pela ênfase no tema, cf. Barbero, 2009 (Introducción a la investigación criminológica)

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mas a atuação direta na sociedade33. Tende-se a ver na investigação-ação algo aproximado a uma investigação experimental, com a diferença que naquela o curso natural dos eventos não tende a ser controlado de forma rígida34. Trata-se de modelo de investigação que tem origem em respostas de departamentos governamentais, em períodos de guerra, sobretudo, tendendo a ser chamada de investigação operacional (MANNHEIM, 1965, p. 278). Embora, no âm-bito da pesquisa criminológica, a investigação-ação esteja orientada em geral por uma perspectiva preventiva35, devemos perceber que, nas práticas de in-vestigações criminais, essa técnica está na base de todo o conjunto de pesqui-sas que se conduzem na pesquisa do crime36. Parece-nos, assim, mais ínsito à investigação criminal que à criminologia o recurso a esta técnica, na medida em que, conquanto esteja a pesquisar e tentar conhecer o crime, exerce uma função ativa no âmbito das relações sociais.

Segundo H. R. Barbeiro (2009, p. 101), o método de investigação-ação tem por objetivo posterior coordenar o trabalho do criminólogo aca-dêmico com o trabalho da polícia, sob uma perspectiva de prevenção situa-cional, modelo para o qual concorrem várias teorias criminológicas, com o objetivo de prevenir os delitos. Tem, entre suas características, não importar tanto as causas em si do crime, mas como e em que condições os eventos cri-minosos ocorrem, o que fornece dados para desenhar mapas de “incidências delitivas”. Ora, essas incidências, que podem ser mais que meramente geográ-ficas, servem tanto a prevenção como à investigação, e sob essa perspectiva, podemos começar a perceber a relações entre criminologia e criminalística.

Essa relação se encontra mais estreita no recurso da Criminologia às estatísticas criminais oficiais. A. Serrano Maíllo (2004, p. 23), a respeito dessa técnica, observa que “desde Sellin se considera que os dados sobre delitos conhecidos pela polícia são preferíveis para a medida do fenômeno”,

33 Nas pesquisas sociológicas, pode implicar interesses na mudança das condições sociais, sem preocupações com hipóteses, mas com ações que decorrem em relações com as pessoas, em busca de solucionar um problema pragmático (MANNHEIM, 1965, p. 278)..

34 Há quem aceite a possibilidade de a investigação-ação assumir uma natureza controlada e experimental, contudo.

35 Segundo Mannheim (1965, 279), “é sobretudo no domínio da prevenção que se deparam as oportunidades de utilização destes métodos em criminologia. Quanto ao tratamento, a sua direção está sobretudo nas mãos dos tribunais, onde as técnicas de investigação-acção não terão nenhuma ou só uma limitada possibilidade de aplicação”. Essa limitada possibilidade, contudo, segundo entendemos, pode ser dimensionada não ao tratamento, mas à investigação criminal.

36 Inclusive com possibilidade de observação participante (agente infiltrado) e controlada (ações monitoradas, interceptações telefônicas).

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porque não estariam viciados pelo sistema e processo de administração da Justiça37. Em síntese, à medida que a estatística criminal tenda a melhor se organizar e, sobretudo, se detalhar a respeito de certos aspectos da inves-tigação criminal, como entendemos ser necessário, a investigação crimino-lógica tende a ter dados informativos mais apropriados a certas pesquisas ainda não vislumbradas38.

3. Tipologias e fenomenologia criminal.

Uma teoria deveria ser introduzida no domínio de uma ciência so-mente quando estudos prévios de uma classe de fenômenos tenham revelado um sistema de uniformidades que possam ser expressas em formas de leis em-píricas (HEMPEL, 1996, p. 92). Em Criminologia, contudo, a multiplicida-de de teorias parece não atender a essa ideia. Não raro, uma pesquisa empírica com seus resultados, pela impossibilidade ínsita às ciências sociais para espe-cificar “leis naturais”, tende muito constantemente a ser transmudada em te-oria antecipadamente, pela simples generalização de suas conclusões a partir de uma parcela muito pequena do fenômeno criminal. Essa dificuldade, para distinguir entre teorias e mero corpo de conhecimentos39 , pode ser entendi-da porque essencialmente as teorias assumem um duplo papel na investigação cientifica – ora integra e resume o conjunto de conhecimento acumulado no domínio de um saber; ora funciona como orientação, como hipótese para investigações futuras (GARRIDO, STAGELAND e REDONDO, 2006, p. 154). No entanto, não se deve nunca perder de vistas essa distinção, e é o que alguns criminólogos tem se esforçado por fazer.

A. Serrano Maíllo (2004, p. 119), por exemplo, empenha-se em distinguir as diversas teorias, além dos diversos conhecimentos que se pro-duzem em Criminologia, como enfoques teóricos, que somente se podem

37 Embora não se possa nunca ignorar uma cifra negra, não entre crimes conhecidos e clarificados, sim entre os conhecidos e os registrados ou levados a procedimento de investigação.

38 Verdadeiramente, não apenas a investigação criminológica, mas a própria investigação criminal, como domínio de saber prático, tende a se beneficiar de dados estatísticos mais detalhados a respeito de elementos que concernem às condições em que certos tipos de crime se realizam e suas consequências lesivas ao bem jurídico, permitindo-lhe assim avançar em incursões mais científicas na elaboração de ‘teorias’ a respeito de certos crimes como ponte para chegar a ‘teorias’ de investigação desses mesmos crimes.

39 Que pode simplesmente limitar-se a conceitos, descrições, classificações e, na melhor das hipóteses, conclusões probabilísticas a respeito de certos eventos que deveriam ser expressas na forma de “tendências para....”.

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considerar teorias em um sentido “muito débil”, e certas descrições, sem pre-tensões explicativas, que tendem mais a especificar características dos autores dos crimes e o modus operandi, como se podem observar em certas tipologias e no estudo mais limitado da fenomenologia criminal, que são, não obstante as limitações teóricas, os pontos de maior interesse para uma relação entre criminologia e investigação criminal.

Com isso não estamos a sustentar que as teorias sejam desnecessárias (ou impossíveis) em Criminologia40; apenas entendemos que o são em um ní-vel e campo diverso, que não é o de interesse, pelo menos imediato, da inves-tigação criminal. E bem considerada a questão, parece-nos que é exatamente a partir de certos conhecimentos mais basilares, que se podem estabelecer a partir da fenomenologia e tipologias, que se pode chegar a teorias de médio alcance e avançarmos para as de grande alcance. E em síntese, sob uma pers-pectiva empírica da criminologia como ciência, somente uma teoria pode ser efetivamente explicativa do crime, embora o possa fazer com base em dados empíricos reunidos pela fenomenologia e tipologias criminais. A relação pa-rece ser inevitável e necessariamente complementar.

Mesmo entre as diversas classes de teorias41, os criminólogos têm percebido que “uma teoria geral não tem de ser tão ampla”, ou seja, não preci-sa explicar tudo (MAÍLLO, 2004, p. 132). Tem-se, aliás, admitido que a Cri-minologia ainda talvez não esteja preparada para isso (nem se sabe se um dia estará), e por isso se tem admitido teorias de alcance médio, mais modestas e conectadas com a realidade, com o imediatamente observável e possivelmen-te mais útil. Essas teorias talvez sejam as que melhor possam aproveitar às investigações criminais, e para elas estas possam igualmente contribuir com certas perspectivas de pesquisas.

Mas a mais estreita relação entre conhecimento criminológico e co-nhecimento criminalístico certamente se encontra no campo das tipologias, que não se podem confundir com teorias de alcance médio. As tipologias partem basicamente da ideia intuitiva de que a diversidade do fenômeno cri-

40 Como se tem observado, algumas pesquisas criminológicas não se têm importado muito seriamente por uma construção teórica (cf. a respeito, Maíllo, 2004, p. 125).

41 Cf. Maíllo, 2004, 127ss, em que o autor nos oferece uma boa visão geral das teorias criminológicas, ao distinguir entre teorias micro e macro; teorias de alcance médio e grandes teorias, teorias e enfoques plurifatorias, teorias unitárias e integradas.

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minal não pode ser abarcada por uma teoria explicativa, e mesmo que o possa certamente a divisão dos crimes em tipos (como assim o faz as leis penais em geral) são relevantes sob certas perspectivas que interessam às funções práticas do saber teórico. Isso é decisivamente importante para a investigação criminal, o que se pode observar na divisão que existe nos órgãos de polícia investigativa, a partir da particularidade de certos crimes, em geral reunidos a partir do bem jurídico lesado, embora nem sempre corresponda a capítulos estanques do corpo de leis42.

As tipologias podem se ordenar por diversos critérios, segundo ne-cessidades preventivas ou de tratamento do delinquente, mas para a investi-gação criminal o critério mais importante deve passar pela classificação dos diversos modos de praticar o crime (modus operandi), entre outros elemen-tos relevantes à orientação de investigações futuras que deveriam constar em banco de dados apropriados e em condições de fornecer estatísticas operati-vas. Essa prática de pesquisa que se pode desenvolver melhor entre os órgãos de investigação não deixa de ser uma abordagem criminológica no âmbito da atividade típica de investigação, e seus resultados, à medida que sejam or-ganizados em formas estatísticas, tendem a ser dimensionados por pesquisas criminológicas típicas posteriores43.

No entanto, em etapa prévia às tipologias classificatórias, tendo em vista uma preocupação mais prática e diretamente relacionada à atividade das investigações criminais, uma pesquisa criminológica deve focar sua atenção na chamada fenomenologia criminal, que mais se pode considerar uma tipo-logia em sentido descritivo. Em síntese, a fenomenologia criminal se ocupa do estudo e descrição das formas de manifestação do delito em geral e certos delitos em particular, ou seja, questões relativas “à sua perpetração, seus corre-latos espaciais e temporais, suas variações e regularidades, seus requisitos, suas

42 É importante que os órgãos de investigação se organizem e ordenem suas atividades segundo tipologias de crimes, não de criminosos, como o fez a criminologia positivista italiana. Essa é uma diretriz que estaria mais de acordo com um sistema penal garantista e tende a minimizar, embora não exclua, o problema do etiquetamento de pessoas, apesar de manter inevitavelmente a etiqueta sobre as condutas.

43 Embora nem sempre seja desejável. O problema que pode surgir, nesse caso, é que, por se tratar de um conhecimento estratégico, que interessa mais à organização de formas de investigar, talvez não seja de acesso fácil a criminólogos. Em síntese, à medida que os órgãos conhecem e ordenam melhor suas práticas de investigação e há divulgação pública, isso potencializa a multiplicação do modus operandi do crime. Isso, contudo, é uma questão que concerne à realidade social dinâmica e deve ser ponderado com o interesse científico. Em todo caso, é certo, permanece sua natureza de conhecimento criminológico.

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consequências, sua conexão com outros delitos e comportamentos, caracte-rísticas de seus autores etc.” (MAÍLLO, 2004, p. 109). Em outras palavras, a fenomenologia criminal, como espécie de tipologia criminológica descritiva, é da essência da investigação criminal44 e deve corresponder a uma etapa da organização científica do saber necessário aos órgãos de polícia criminal.

Não sem razão, portanto, considerações acerca da fenomenologia criminal costumam compor manuais de investigação criminalística, como é o caso do Capítulo III, da Parte I da obra Criminalística: Investigação Crimi-nal, de Karl Zbinden (1957). Hans Gross chegou a considerar que a crimina-lística é constituída pela fenomenologia criminal e pela ciência prática da in-vestigação, designando por fenomenologia criminal uma “teoria” (melhor se diria, com maior parcimônia uma descrição) sobre a técnica de execução dos crimes, com exclusão propositada de qualquer explicação causal, deixada ao que chamava etiologia criminal. No corpo teórico da fenomenologia, Hans Gross distinguia entre a descrição de fenômenos gerais do crime – que se po-dem entender atualmente como os conceitos e teorias criminológicas a respeito da criminalidade e do criminoso, de que pode partir a investigação criminal – e a descrição dos fenômenos especiais – que corresponde ao objeto fundamental da investigação criminal, ou seja, especificar o crime como foi cometido, seu autor e consequências observadas (cf. Zbinden, 1957, p. 49).

Tendo em mente da noção de fenomenologia criminal, segundo Karl Zbinden (1957, p. 50) se adquire conhecimento sobre a execução dos crimes “por uma longa prática de investigação” e “pela leitura” do que o au-tor chama de “memórias” obtidas dos próprios autores dos crimes (em seus depoimentos) e dos funcionários de polícia e investigação (o que constitui o espólio de saber empírico dos órgãos de investigação não devidamente trata-do cientificamente), entre outras fontes. Em tais observações, encontram-se implícitas o caminho (o método) fundamental para que as práticas de inves-tigação criminal em particular, analisadas e sistematizadas em seu conjunto, possam constituir o corpo de conhecimento de um saber científico, a partir de uma compreensão criminológica do fenômeno como ponto de partida para teorias dirigidas especificamente às formas de investigar, segundo as for-mas de cometimento do crime. Em síntese, assim como nos outros campos de

44 É o próprio objeto da pesquisa que se realiza na investigação criminal, embora sob uma orientação criminalística (destinada a responder a um sistema penal), mas que pode ser perspectivado sob uma orientação criminológica.

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investigação e atividade científica, tende-se a uma especialização imposta pela divisão do trabalho, a investigação criminal tende a se desenvolver nesse sen-tido (ZBINDEN, 1957, p. 51), mas convém saber conferir-lhe a organização de um saber científico.

Conclusão

Em conclusão, podemos entender que não apenas a investigação criminal se beneficia do conhecimento criminológico, como a criminologia tende a se beneficiar do conhecimento criminalístico. Tendo em conta a ideia de que uma teoria criminológica pode ser considerada tanto como ponto de chegada e integração de vários conhecimentos prévios, quanto como ponto de partida e hipótese anterior de trabalho, podem-se entender essas relações entre criminologia e criminalística, tanto a partir da criminalística (fenome-nologia criminal → tipologias classificatórias → hipóteses teóricas → teorias gerais) como a partir da criminologia (teorias gerais → hipóteses teóricas → tipologias classificatórias → fenomenologia criminal).

De fato, assim entendido, pode-se concordar que entre Criminalís-tica e Criminologia existe “uma simbiose frutífera para ambas as partes” e, como referem alguns criminólogos, entender que “a Criminologia se enri-quece com o acesso aos dados estabelecidos pela polícia e a polícia tem neces-sidade das teorias criminológicas para melhorar seu funcionamento” (GAR-RIDO, STAGELAND e REDONDO, 2006, p. 109). As possibilidades de relação, contudo, são várias e ilimitadas, e as que aqui pomos em relevo estão apenas em conformidade com certos objetivos mais restritos a um programa muito particular, no sentido de que possíveis teorias de investigação criminal devem passar por teorias prévias acerca dos crimes que se pretende investigar, partindo da fenomenologia criminal, como atividade descritiva minuciosa dos crimes, e tipologias classificatórias desses crimes, a partir de conceitos e critérios de ordenação do conhecimento, inclusive com estatísticas detalha-das segundo elementos que interessam a esse objetivo45 .

Trata-se, contudo, de uma atividade que já se desenvolve por órgãos de policial criminal que possuem além de suas atividades prática de investiga-

45 Esse objetivo faz parte de um programa de pesquisa mais amplo, para o qual esse trabalho constitui um capítulo parcial do que ainda se pretende desenvolver na totalidade.

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ção uma comunidade acadêmica que desenvolve pesquisas teóricas46, embora sob certos aspectos de forma ainda rudimentar, por não estarem orientados cientificamente na produção de conhecimento. Esse é o caso da produção de cadernos didáticos para cursos de formação policial da Academia Nacional de Polícia, no Brasil, que tomamos como exemplo. Tais cadernos são divididos segundo as diversas disciplinas, de acordo com uma tipologia classificatória dos crimes, em ambientais, fazendários, previdenciários, econômicos, finan-ceiros etc., em conformidade com as atribuições práticas da Polícia Federal – o que corresponde em boa medida a uma organização administrativa dos órgãos de direção (coordenações, divisões de polícia fazendária, previden-ciária etc.). Em tais manuais de orientação prática da atividade que vai ser desenvolvida pelo novo investigador, há uma estrutura fundamental, embora não regular, em que se inicia pela (a) descrição dos crimes – em geral, segundo o conhecimento prático do redator do material didático –, passando pela sua (b) compreensão jurídica – segundo os tipos penais – e chegando ao que im-porta mais diretamente à atividade policial, que é (c) a forma de investigar tais crimes, as técnicas em geral apropriadas e disponíveis para proceder – no qua-dro das limitações do sistema jurídico, em respeito aos direitos fundamentais. Essas etapas correspondem a uma exposição racional sobre a compreensão do objeto da investigação (fenomenologia), sua dimensão jurídica (teoria do crime) e sua apreensão investigativa (“teoria da investigação”), mas ainda não têm sido exploradas devidamente e podem alcançar melhores resultados.

Apenas recentemente, tomou-se a decisão de que, para a redação de cada caderno didático, deveriam se compor alguns grupos de pesquisa com-postos por profissionais habilitados em cada área de investigação, que em conjunto decidiram sobre os conteúdos disciplinares. É o primeiro passo de uma sistematização em sentido científico do domínio do saber investigativo criminal, mas não se levou ainda em consideração a necessária compreensão criminológica dessa construção, como primeira etapa da construção.

Na linha do que temos sustentado, os cadernos didáticos referidos podem alcançar uma expressão científica na medida em que sejam redigi-dos com expressa referência às fontes empíricas de pesquisa – nesse caso, no Brasil, a miríade de inquéritos policiais que, considerados como pesqui-

46 Como é o caso do Instituto Superior de Ciências Policias e Segurança Interna, da Polícia de Segurança Pública de Portugal, e mais especificamente para o fim que temos aqui, a Academia Nacional da Polícia Federal do Brasil.

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sas empíricas particulares e prévias, deveriam ser referidos como prova que justificam as afirmações sobre as formas de cometimento de certos crimes em particular. Assim, a descrição fenomenológica dos crimes se poderia fazer, p. ex., segundo expressões simples como Inq. X1, X2,..., Xr, demons-trada com uma efetiva citação da referência empírica. Isso nos permitiria um controle científico das fontes e um confronto interpretativo dos dados. Em complemento, esses dados poderiam ainda ser contrastados com dados estatísticos, sobre quais crimes tem sido mais praticados, em que região do país etc. O importante, contudo, segundo entendemos é que as referências às formas de cometimento do crime sejam feitas em termos de “tendências para acontecerem daquela forma”47 .

Nesse ponto, é preciso ter em mente que, para além de estarmos a tratar de fatos sociais como objeto de pesquisa, o que por si traz os pro-blemas gerais que se observam nas ciências sociais (p. ex., a respeito da autonomia do sujeito para sempre realizá-los de outra forma), especial-mente diante do conhecimento de que está sendo observado, e aqui mais precisamente investigado. Nesse caso, isso por si se cria um novo elemento no conjunto de condições observadas, em torno das quais se espera que o crime aconteça de uma forma para poder investigar-se em conformidade com ela. Adverte-se, assim, para não se cair na sedução de que é possível antecipar conclusões criminalísticas (sobre o crime e o criminoso, como o crime foi cometido, quem é seu autor etc.) a partir de hipóteses crimi-nológicas (que não passam de tendências, orientações compreensivas que nos podem ajudar a formular hipóteses e especificar técnicas de investi-gação, mas não antecipar a investigação criminal em si).

Após a descrição das formas de cometimento do crime (fenomenolo-gia a partir de dados empíricos dos inquéritos), pode-se chegar às tipologias classificatórias (enquadramento típico legal, pela compreensão jurídica do crime) e passar ao final à propositura de modelos de investigação criminal (“teorias da investigação”). Mas isso já é objeto de um estudo diverso, que não

47 Cf. Popper, 1957, p. 99ss, acerca da diferença entre leis e tendências. Em síntese: “É importante frisar que as leis e as tendências são coisas radicalmente diferentes. Não existem grandes dúvidas de que o hábito de confundir tendências com leis, juntamente com a observação intuitiva de tendências (como o progresso técnico), inspirou as doutrinas fundamentais do evolucionismo e do historicismo – as doutrinas das leis inexoráveis da evolução biológica e das leis irreversíveis do movimento da sociedade”.

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se cabe nesse e para o qual pretendemos dedicar um outro trabalho.

Em síntese, o que se propõe é uma vertente de enfoque criminológi-co, no âmbito da investigação criminal, orientada especialmente a subsidiar a atividade prática desta, não a constituir um paradigma autônomo ou teorias criminológicas. Nesse ponto, é preciso que se tenha em mente o conjunto do saber criminológico na forma de cosmovisão do universo da criminalidade, como orientação de um novo espírito investigativo, em que, mesmo tendo que se cumprir funções institucionais, não se tenha como um combate do mal, de uma ética absoluta e irrepreensível. Isso, segundo entendemos, pode não apenas permitir um novo desenho na cultura policial ou dos órgãos de inves-tigação, como pode contribuir à minimização da violência (e não reprodução de violências) e servir como uma base geral, da qual aqueles órgãos possam desenvolver suas fenomenologias criminais (descrição de seu objeto de inves-tigação) e tipologias classificatórias (juridicamente fundadas) mais restritas e dirigidas à criminalidade com que estão corriqueiramente envolvidos e de-vem esclarecer.

Eliomar da Silva Pereira

Mestrando em Ciências Policiais (Criminologia e Investigação Criminal), no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI, Lisboa,

Portugal); Especialista em Ciências Criminais; Professor e Pesquisador na Academia Nacional de Polícia; Delegado de Polícia Federal (Brasília-DF).

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Revista Brasileira de Ciências Policiais

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MAQUIAVEL E A “GUERRA JUSTA” CONTRA O TERROR

Disney Rosseti Academia Nacional de Polícia - Brasil

Dud

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a questão da denominada “Guerra ao Terroris-mo” sob a ótica da doutrina das “Guerras Justas”, analisando este conceito através da história e sua formulação contemporânea, especialmente sua aplicação no combate ao terrorismo. A seguir serão descritas as críticas feitas a este conceito e sua aplicação na doutrina da “Guerra ao Terror”, demonstrando que tal teorização for efetivamente aplicada ela acabaria por legitimar muitos dos atos terroristas, além de conferir uma feição de terrorismo a atos legitimados por tais doutrinas. Finalmente se analisará o tema na ótica de Maquiavel, demonstrando que a justificativa para a “Guerra ao Terror”, nos moldes em que ela vem sendo travada, se alinha a uma justificativa ma-quiavélica.

Palavras Chave: Guerras Justas. Guerra ao Terror. Maquiavel. Justificativa.

INTRODUÇÃO

Tema que vem ganhando cada vez mais importância na atualidade, especialmente após o nefasto evento de 11 de setembro de 2001, que ceifou mais de três mil vidas inocente, ocasião em que Osama Bin Laden e os ter-roristas da Al Qaeda infringiram um duro golpe na nação norte-americana, o conceito de “Guerras Justas” passa essencialmente por uma análise ética e moral da própria guerra e das ações que as permeiam. Tal fato traz uma ques-tão inquietante, do que poderia ser considerado justo.

Muito embora o conceito de “Guerras Justas” seja antigo1 , o que demonstra a preocupação humana em explicar ou justificar moralmente a guerra, uma intervenção militar de um Estado em outro, que custará inevi-

1 Sua origem remonta até mesmo ao período greco-romano, passando por justificativas laicas e religiosas, especialmente católicas, como se verá.

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tavelmente vidas humanas civis, além dos custos materiais, fato é que sempre existiu e existirá uma tentativa de se abarcar moralmente e eticamente tais ações, justificando-as.

Com o atentado de 11/09 ao World Trade Center inicia-se a deno-minada “Guerra ao Terror”, mudando radicalmente elementos e conceitos fundamentais da guerra como então a conhecíamos, de um Estado contra outro, com territórios definidos, exércitos conhecidos e que possuíam “fa-ces”, “rostos”, iniciadas normalmente por agressões armadas contra um país, que se defendia, ou por intento imperialista, enfim, por fatores clássicos e mais que conhecidos da política internacional.

Temos agora um inimigo difuso, desconhecido, sem “face”, que pode ha-bitar qualquer território, mesmo o nosso, movido por ideais e concepções que es-tão longe de serem compreendidas pela cultura ocidental. Não há exércitos nem sítios específicos para se invadir2, a estratégia militar muda completamente.

Neste cenário somente não se altera a complexa equação do que se convencionou chamar de “Guerra Justa”, agora tendo que ser desenvolvido num quadro extremamente complexo, numa guerra cuja definição de “ba-talha” desafia o mais experimentado analista estratégico e militar. E o pior, não se sabe bem aonde e nem quando começou e não apresenta o menor sinal de qual será seu horizonte temporal.

O recente episódio da operação que culminou com a morte do ter-rorista Osama Bin Laden3, no Paquistão, talvez seja um dos grandes atos, ao lado até mesmo do atentado que o colocou em evidência dez anos antes, de uma guerra que carece de premissas éticas e morais para fundamentá-la.

Para o grande público a principal preocupação foi onde estava o cor-po do terrorista, por quê ele não foi exibido, qual a prova cabal de sua elimi-nação. Seguiu-se uma grande euforia e comemoração nos Estados Unidos da América, até surgirem os naturais questionamentos sobre a soberania do Pa-quistão, questões de direito internacional, protocolos da ONU que deveriam ou não ser seguidos, se ele deveria ter sido morto ou capturado com vida, enfim, vários questionamentos da própria legitimidade de tal ação, embora

2 A malfadada invasão do Iraque um ano após o 11/09 comprova isto. Uma vez que não alterou a situação na região do oriente médio tal como pretendia o governo norte-americano.

3 Bin Laden foi morto na noite do dia 01 de maio de 2011 por forças especiais norte-americanas no após ter sido localizado no Paquistão.

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todos concordemos que o terror deve ser combatido e que Bin Laden e seu grupo extremista estão longe da obediência de qualquer regra desta natureza, sendo em última análise criminosos cruéis.

O mais triste neste recente e marcante fato da história contemporânea é que a morte de Osama Bin Laden tende a aumentar ódios já extremamente arraiga-dos, recrudescer ainda mais ideologias deturpadas, e certamente levar a outros atos que custarão o sangue de civis inocentes e violações de toda sorte de direitos.

Como se pretende demonstrar, a conceituação de “Guerras Justas” que conferem, ao menos em tese, legitimidade a ações desta natureza, esta muito longe de justificá-las, e pior, olvida-se do denominado popularmente “outro lado da moeda”, que pode se utilizar dos mesmos argumentos.

Pelos argumentos de “Guerras Justas” têm sido violados direitos e garantias caríssimas ao mundo ocidental4.

Sem defender as idéias ou adotá-las, finalmente se concluirá que o gênio incontestável e mais que controverso de Maquiavel oferece as adequa-das explicações para tais atos, pelo simples fato de ser o filósofo do realismo, pragmático e ultra-utilitarista, justamente por prescindir de qualquer tipo de fundamentação moral ou ética, algo que ultrapassa fronteiras e culturas e que esta fortemente impregnado na cultura norte-americana.

2. O CONCEITO DE GUERRAS JUSTAS E O TERRORISMO.

Apesar de tal conceito estar amplamente em voga após o atentado terrorista de 11/09, existem resquícios e mesmo conceitos muito bem defi-nidos há séculos na história da humanidade. Longe de pretender estabelecer um histórico acerca deste conceito, vale analisar alguns pontos de referências sobre o mesmo, a exemplo do grande orador e historiador romano Cícero, que já na Roma antiga desenvolveu este conceito.

Segundo o historiador Breno Sebastiani, da Universidade de São Paulo, Roma experimentou um processo de expansão territorial e eco-

4 Basta ver o Patriot Act, do Congresso Norte-Americano, através do qual foram e estão sendo praticadas violações gravíssimas de direitos fundamentais nos EUA, contra cidadãos americanos, inclusive, como monitoramento telefônico, prisões para averiguações, buscas e apreensões sem ordem judicial, bastando a justificativa de suspeitas de ligações com o terrorismo.

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nômica sem precedentes a partir do séc. III a.C., processo caracterizado claramente pelo conceito moderno de imperialismo5, o que se consumou com a segunda guerra púnica (SEBASTIANI, 2003, p. 3). Passou então Roma a lógica de que a guerra era o combustível para o poder, numa rela-ção de mútua nutrição entre guerra e poder; o prestígio político derivava da guerra, colocando seu general bem sucedido em posição política favo-rável, assim como para se fazer guerra se necessitava de prestígio político para aprovar recursos e autorizá-las (SEBASTIANI, 2003, p. 3).

Desde Roma, entretanto, havia a necessidade de se justificar uma guerra, seja para com as divindades, seja para com os próprios cidadãos. Não se saia para a guerra sem uma justificativa ou sem forjá-la, devendo a guerra ser justa, ou a bellum justum piumque, que exigia inicialmente uma violação a um tratado ou uma agressão a Roma ou um aliado. Com César este con-ceito foi transmutado para questões internas, justificando sua reestruturação do Estado e recondução ao bom caminho das legiões de Pompeu (ibidem, p. 08), manipulando tais conceitos ardilmente a seu favor. E tais ardis foram repetidos inúmeras vezes na história...6

Na idade média a igreja católica, preocupada em encontrar uma jus-tificativa para as guerras, tratou do tema. Santo Agostinho escreveu (2000, p. 161) que a guerra somente seria justa observando-se o seguinte:

1. A intenção deverá ser sempre a de restabelecer a paz;

2. O objetivo deverá ser sempre o de restabelecer a justiça;

3. A guerra deve ser acompanhada de uma disposição interior de amor cristão entre as partes;

4. A guerra só deve ser empreendida sob a autoridade de um sobera-no legítimo;

5. A conduta da guerra deve ser justa.

5 Segundo a Wikipédia, imperialismo é a política de expansão e domínio territorial, cultural e econômico de uma nação sobre outras.

6 Vide o embuste de George Bush para invadir o Iraque em 2002, que consistiu em afirmar a existência de fábricas produzindo armas químicas, o que o próprio governo americano afirmou, posteriormente, ser um “erro” da CIA.

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Também São Tomaz de Aquino (1998, p. 40) tratou do tema, es-tabelecendo que uma guerra somente é justa se decretada pelo príncipe que tenha autoridade para tanto, por uma causa justa e perseguindo a paz.

Porém, é no séc. XX que tal conceituação toma maior importância, isto pela ocorrência de duas guerras mundiais e o aparecimento de armas de destruição em massa. Paralelamente surgem as entidades supranacionais que tentam “regrar” e estabelecer a justiça das guerras. Assim, a Organização das Nações Unidas em sua Carta da ONU prevê procedimentos para se evitar a guerra e mesmo tomar medidas bélicas preventivas através de seu Conse-lho de Segurança, sendo calcada tal carta na preservação da paz, admitindo a guerra preventiva e mantendo largamente o conceito de legítima defesa de um país indevidamente agredido.

Percebe-se que desde o início da teoria das “Guerras Justas” existem certos elementos recorrentes, como o direito de revidar uma agressão injusta ou defender-se desta agressão, a ruptura de pactos ou tratados, enfim, algo que atualmente pode fazer com que a própria ONU autorize ou legitime uma guerra (ONU, 2011).

O grande teórico atual que trata do tema, entretanto, é o filósofo político e intelectual, professor emérito do Instituto de Estudos Avançados em Princeton, Nova Jérsei, Michael Walzer. Este consagrado pensador con-temporâneo é autor de clássicos como Esferas da Justiça, de 1983, e Guerras Justas e Injustas, de 1977, e mais recentemente Terrorismo Y Guerras Justas, sem tradução ainda no Brasil. Essas duas últimas são consideradas as obras de referência na atualidade sobre este tema.

Em Guerras Justas e Injustas, que contém o cerne das idéias de Walzer, sendo imperativo lógico para se conhecer sua teoria e a aplica-ção ao terrorismo, Walzer apresenta na verdade um projeto teórico sobre a justiça e a moral na guerra, especialmente sobre os limites morais da guerra. Ou como diz Vanessa Andrade, em resenha sobre Terrorismo Y Guerras Justas (ANDRADE, 2010, p. 2), a teoria das guerras justas pres-supõe que as guerras podem ser analisadas a luz da moral, podendo ser-lhe impostos limites éticos.

Walzer divide sua teoria em três pontos fundamentais (WALZER, 2003, p. 24):

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1 – ius ad bellum: analisa a decisão de se entrar em guerra, ou seja, se há uma necessidade ou justificativa moral para a guerra;

2 – ius in bellum: que exprime a justiça do combatente, ou seja, as ações praticadas durante a guerra

3 - ius post bellum: que trata da justiça dos atos pós-guerra.

Para Walzer a guerra é julgada quanto a sua declaração, se justa ou não, e quanto ao modo em que é travada (WALZER, 2003, p. 34), fazendo-se a distinção do ius in bellum e do ius ad bellum, ou seja, a justiça da guerra e a justiça do guerrear. Alguns aspectos devem ser necessariamente observa-dos, conforme o direito humanitário prega, que são o uso da força mínina, proporcionalidade no revide a agressão e a proteção aos não combatentes. Esta faceta do ius ad bellum é cada vez mais importante, haja vista as ações perante o Tribunal Penal Internacional, como no caso dos crimes de guerras praticados contra civis e etnias nos Balcãs.

Nessa ordem de idéias, para Walzer o terrorismo nunca pode ser justificado, pois estão presentes a aleatoriedade e inocência dos alvos dessas ações (ANDRADE, 2010, p. 3), e diante desses massacres e agressões ter-roristas a “Guerra ao Terror” se justifica, passa a ser justa.

Esta teoria da “Guerra Justa” desenvolvida por Walzer ainda compre-ende as intervenções humanitárias, que seriam exemplificadas como a atu-al ação da OTAN na Líbia7, que visa impedir o massacre de civis inocentes (WALZER, 2003, p. 171).

Ainda para Walzer os mesmo requisitos da “Gerra Justa” quanto ao ius ad bellum devem ser observados na “Guerra ao Terror” (WALZER, 2003, p. 5). E quanto ao terrorismo, define Walzer que a sua caracterização se dá pela aterrorização de uma população inteira, seja por movimentos radicais ou por governos estabelecidos, objetivando combalir o moral de uma nação ou classe e espalhar o medo métodos de assassinato aleatório de inocentes (WALZER, 2003, p. 171).

Conforme afirmado e demonstrado, os governantes e impérios sempre precisaram de uma justificativa moral, ética para a guerra. Isto

7 Conforme entrevista a Veja concedida em 1º de abril de 2011, constante em www.vejaonline.com.br.

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porque a guerra implicará, sempre e sempre, terríveis perdas materiais e humanas, cujos efeitos no tempo e na história são incomensuráveis. Tal necessidade é a mesma com relação ao terrorismo, pois a partir do evento de 11 de setembro foi declarada uma guerra, cujos efeitos e con-seqüências são impossíveis de se prever, salvo que a cada ato certamente teremos uma reação, levando a um banho de sangue de inocentes civis de lado a lado.

Fato é que com a decretação da “Guerra ao Terror”, feita pelo en-tão presidente dos Estados Unidos da América do Norte, George W. Bush, nove dias depois dos atentados terroristas de 11 de setembro, em discurso ao Congresso Norte-Americano, o mundo, segundo muitos, mudou, mas não a necessidade de se justificar uma guerra, neste caso contra o terroris-mo. E com a justificativa moral de auto-defesa, de defesa dos valores da liberdade e da democracia, defesa do mundo ocidental e seus valores contra os radicais muçulmanos, defesa do modelo liberal e assim por diante, os Es-tados Unidos da América e seus aliados mais próximos vem empreendendo inúmeras ações de combate ao terrorismo, incluindo a invasão a dois países, o Iraque e o Afeganistão (cujos regimes combatido tiveram sua implan-tação financiada pelos EUA), todas consideradas justas, e continuam, por outro lado sendo alvos de atentados terroristas.

Este discurso da “Guerra ao Terror” e sua justificativa moral tem o massivo apoio popular, haja vista as comemorações públicas pela morte de Bin Laden, sendo que a opinião pública, especialmente a norte-americana, apóia as intervenções militares no Oriente Médio, as quais custam bilhões de dólares e incontáveis vidas humanas.

Resta analisar esta justificativa moral e a política dela decorrente.

3. A VISÃO DE CHOMSKY E HOBSBAWM

Os renomados autores Noam Chomsky e Eric Hobsbawn tem um ponto de vista mais crítico acerca da denominada “Guerra ao Terror”.

O historiador Eric Hobsbawn, autor de clássicos como A Era dos Ex-tremos, desenvolve o tema em sua obra Globalização, Terrorismo e Democracia (COMPANHIA DAS LETRAS, 2010). Para ele a globalização da “Guerra ao Terror” a partir de setembro de 2001 decretou a retomada de agressões

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armadas estrangeiras por uma potência (EUA), sendo desprezados todos as regras e convenções internacionais até então aceitas como reguladoras de conflitos armados (HOBSBAWN, 2010, p. 134).

Analisando as repercussões de ataques terroristas ao regime de países está-veis da Ásia, bem como de países do ocidente, como Inglaterra e Espanha, conclui Hobsbawn que tais ações não são capazes de interromper a capacidade operacional de grandes cidades, salvo por algumas horas. Continuando em sua análise, o ataque de 11 de setembro não afetou o poder internacional e nem a estrutura interna dos Estados Unidos, embora tenha sido horripilante (HOBSBAWN, 2010, p. 134).

Para Hobsbawn, se ocorreram efeitos negativos posteriores em razão do ataque de 11 de setembro foi por culpa do próprio governo americano, e não devido a ação de terroristas. Ele ainda dá como exemplo de capacidade de resistência de um país estável a Índia, que é a maior democracia do mundo, em seu trato com a questão da Caxemira, embora isso já tenha custado a vida de dois chefes de governo nos últimos vinte anos (HOBSBAWN, 2010, p. 134)

Afirma Hobsbawn que esses grupos terroristas atuais são fracos, e que na verdade eles são sintomas, e não agente históricos significativos, si-tuação que não se altera ante a atual circunstância de possibilidade de um pequeno grupo ou mesmo um indivíduo poder causar um imenso dano em razão das armas de destruição em massa (HOBSBAWN, 2010, p. 134).

Para este autor são necessárias importantes medidas policiais de natureza transnacional para combater o terrorismo de pequenos grupos (HOBSBAWN, 2010, p. 134).

Concluindo seu raciocínio acerca do terrorismo, Hobsbawn asseve-ra ser compreensível que esses movimentos causem grande nervosismo entre pessoas comuns, especialmente nas metrópoles do ocidente, mas sobretudo quando os governos e a imprensa se encarregam de gerar um clima de terror visando alcançar seus próprios propósitos. Para ele a política atual dos EUA visa reviver os medos apocalípticos da época da Guerra Fria, porém hoje não mais é possível se imaginar a invenção de “inimigos” para legitimar a expan-são e o emprego de poder global (HOBSBAWN, 2010, p. 134).

Finaliza este autor com a afirmação de que “os perigos da “guerra con-tra o terror” não provêm dos homens bombas”(HOBSBAWN, 2010, p. 134).

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Numa linha ainda mais direta de crítica a chamada “Guerra ao Ter-ror” e da própria política imperialista norte-americana, o líder do Departa-mento de Linguística e Filosofia do MIT – Massachussets Institute of Tech-nology – Noam Chomsky, foi protagonista de um documentário entitulado “Poder e Terror: Noam Chomsky em Nossa Época”, de 2002, dirigido por John Junkerman. Uma das frases mais famosas deste documentário é a seguinte: “Todos se preocupam em deter o terrorismo. Bem, há uma maneira realmente simples: parem de participar dele”.

As idéias básicas do pensamento de Noam Chomsky que inspi-raram este documentário estão contidas no livro Poder e Terror (Editora Record, 2002). Trata-se esta obra de coletânea de palestras e entrevistas concedidas por Chomsky nas quais ele situa o ataque terrorista de 11 de setembro no contexto da política de intervenção e imperialismo norte-americano nas décadas pós-guerra, especialmente na América Central e Oriente Médio, sempre partindo da premissa de que a violência contra populações civis é terrorismo, seja ele praticado por grupos terroristas ou pela nação mais poderosa do mundo.

Ao comentar o papel dos Estados Unidos da América no mundo, Chomsky faz um apanhado histórico de várias ações norte-americanas ao longo dos últimos trinta anos. Inicia sua análise a partir da política de Ronald Reagan, que decretou o que seria a primeira “Guerra ao Terrorismo”, tendo o seu Secretário de Estado George Schultz afirmado que era preciso tratar com o terrorismo através da força e da violência, e não através de meios utópicos legalistas, que eram um sinal de fraqueza (CHOMSKY, 2002, p. 61). O ter-rorismo, então, e nesta visão, estava na América Central e Oriente Médio.

Segundo Chomsky essa ação contra o “terrorismo” na América Central, sob a retórica dos direitos humanos e visando colocar grupos no poder que atendessem interesses econômicos norte-americanos, dei-xaram milhares de mortos (mais de 200.000), refugiados, órfãos, além da prática de tortura e outras barbáries. Na Nicaraguá, único país onde o ataque dos Estados Unidos foi feito com tropas norte-americanas, e não com o financiamento de tropas do próprio país, esse ataque levou a uma reação junto ao Tribunal de Justiça Internacional, que condenou os Esta-dos Unidos por terrorismo internacional, em razão do uso ilegal da força e violação de tratados e uma condenação pelo Conselho de Segurança

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da ONU, vetada, obviamente, pelos Estado Unidos (CHOMSKY, 2002, p. 64). Assim, o país que lidera a “Guerra ao Terror” é o único do mundo condenado por terrorismo internacional.

Quanto ao Oriente Médio, segundo Chomsky, a pior atrocidade terrorista foi o ataque israelense ao Líbano ocorrido em 1982, que deixou mais de 20.000 mortos. Israel agiu com o apoio incondicional dos EUA, seja em armas, seja vetando resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Para este autor este episódio se enquadra na definição clássica de terrorismo do próprio governo americano, que consiste na ameaça ou uso de violência para atingir fins políticos, religiosos, ou de outra natureza, através da intimidação, da indução ao medo, e assim por diante, voltado contra populações civis (CHOMSKY, 2002, p. 66).

Ao questionar quais foram os três piores atentados terroristas no Oriente Médio no ano considerado auge das ações terroristas, 1985, aponta Chomsky três fatos (CHOMSKY, 2002, p. 69):

1 - episódio do carro-bomba em Beirute, que matou 80 pessoas e feriu mais de 200, quase todas mulheres e meninas. O alvo era um xeque mul-çumano que escapou, sendo apontada a CIA e o Serviço Secreto Britânico como organizadores do atentado, o que eles não contestam;

2 - ataque aéreo israelense a Túnis, que matou cerca de 80 pessoas, a maioria civis, com a complacência norte-americana, sendo este ato condena-do pelo Conselho de Segurança da ONU;

3 - Operação “Punho de Ferro”, movida por Israel no sul do Líbano, não havendo sequer o exato número de vítimas e prisioneiros deste ataque.

Chomsky coloca que atos desta natureza não são descritos como terro-rismo, mas como “antiterrorismo”, ou como uma “Guerra Justa” (CHOMSKY, 2002, p. 78). Para ele quando alguém pratica o terrorismo contra os EUA e seus aliados estamos diante de terrorismo, mas quando os EUA ou seus aliados praticam tais atos contra outros trata-se de “antiterrorismo” ou “Guerra Justa”. E o mesmo princípio sempre se aplicou em diferentes épocas marcadas pelo im-perialismo, onde “antiterrorismo”, “Guerra Justa”, levar a civilização para os bár-baros, e outras coisas parecidas foram o mote para ações militares tipicamente terroristas serem praticadas em outros países, que não os EUA e seus aliados.

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Ainda segundo Chomsky, tal lógica foi aplicada pelos piores as-sassinos da história, a exemplo dos nazistas, que usaram a mesma técnica (CHOMSKY, 2002, p. 79). A propaganda nazista justificou a ocupação de países da Europa pela defesa da população da Alemanha contra a “ameaça terrorista” dos partisans dirigidos a partir desses países. E admite o autor tal lógica, pois ocorreram atos terroristas praticados por membros da resistência dirigidos por Londres. No mesmo sentido o apoio japonês ao governo da nacionalista da Manchúria contra os bandidos chineses.

Outros exemplos de atos tipicamente terroristas, dentro da conceitu-ação adotada, apoiados e incentivados pelos norte-americanos são citados por Chomsky, como o apoio ao massacre da minoria curda na Turquia, nos anos 1990, pelo interesse estratégico da aliança com este país (CHOMSKY, p. 81), atrocidades praticadas pelo exército colombiano em nome da “guerra as dro-gas” (CHOMSKY, 2002, p. 86), além dos casos do embargo a Cuba, que per-siste mesmo após a derrocada do comunismo em 1989 e da condescendência com criminosos de guerra do Haiti (CHOMSKY, 2002, p. 93-95).

Ressalte-se ainda o que Chomsky aponta como a “privatização do ter-rorismo”, que consiste na entrega a paramilitares a pratica do terrorismo, como ocorre na Colômbia, como ocorreu na Bósnia e no Timor Leste (CHOMSKY, p. 88), motivo pelo qual existem, por exemplo, na Colômbia, um grande núme-ro de militares norte-americanos trabalhando em empresas privadas.

Prosseguindo nesta análise, em artigo publicado na Revista História Ago-ra, Fábio Bacila Sahd apresenta interessante conclusão sobre a retórica da “Guer-ra ao Terror”, com base nas idéias do cientista político Benjamin Barber (SAHD, 2010). Barber revisita Alexis de Tocqueville, que define a imagem que os norte-americanos tem de si mesmos de magnificência de suas ações em todos os instantes, independentemente de suas conseqüências. Os mitos então da autonomia, inocên-cia, virtude e democracia são renovados e explorados para autorizar e legitimar a guerra, levando democracia e bem-estar a todos os povos da terra.

Para Barber, na citação de Fábio Bacila, tais motivos idealistas sempre justificaram guerras travadas pelos Estados Unidos que não podiam ser justificadas pela auto-defesa, exemplificando com Cuba, Haiti, Filipinas e outros tantos episódios de invasões ou intervenções norte-americanas (SAHD, 2010, p. 3).

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Admitindo-se essas concepções essencialmente críticas, que desve-lam o interesse econômico e estratégico imperialista como reais fundamen-tos para mover guerras, intervenções militares, invasões, apoiar massacres, tolerar assassínio de civis, apoiar ditaduras que cedam aos interesses das potências, e assim por diante, surgem dois questionamentos lógicos. O pri-meiro é se existe alguma justificativa de cunho moral para a “Guerra ao Terror”. E o segundo é se aceitarmos, nesse quadro, a existência de uma justificativa moral, se os sentimentos que moveram Bin Laden e seus se-guidores, ao proclamarem o ódio ao modo de vida ocidental (dos EUA), ódio aos anos de intervenção imperialista ocidental e seu apoio a governos corruptos e repressores, também não se justifica.

Essa idéia, se levada as últimas conseqüências, é perturbadora, pois estaríamos admitindo uma pseudo-moral ou pseudo-ética que autorizaria, em última análise, as ações de ambos os lados.

Evidentemente que tal raciocínio não pode ser levado a tais conseqü-ências, e seu maior problema consiste justamente em tentar se encontrar um amparo moral e ético para justificar tais ações.

Mesmo nos Estados Unidos existe uma divisão de idéias muito cla-ras. Fábio Bacila, analisando Benjamin Barbe, apresenta essas duas correntes como a das Águias e das Corujas. A corrente das Águias, cujo nome se inspira em um dos símbolos americanos, entende que o recurso da cooperação entre nações e respeito as leis internacionais só vale se não interferir nas decisões unilaterais norte-americanas, calcadas na guerra preventiva e imposição de uma pax americana. Já as corujas, cujo nome se inspira em tradicional sím-bolo da sabedoria, parte do pressuposto do respeito as leis internacionais, a uma cooperação internacional e a guerra somente quando autorizada pelos mecanismos da autoridade legal comum (SAHD, 2010, p. 9).

Esta claro que a estratégia das águias é amplamente dominante, e mesmo no atual governo de Barack Obama não parece que sofrerá alterações substanciais, haja vista a operação que culminou com a morte de Bin Laden.

4. A JUSTIFICATIVA DE MAQUIAVEL

Poucos termos são tão conhecidos e com o mesmo significado em culturas totalmente diversas como os termos “maquiavélico” e “maquiavelis-

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mo”. Seja nos meios acadêmicos e eruditos ou mesmo entre populares, tais termos já estão incorporados a cultura ocidental como sinônimos de astúcia, ardil, perfídia, de um procedimento traiçoeiro.

A origem de tais termos remonta há mais de quatro séculos, quando nasce em 03 de maio de 1469, na cidade de Florença, Nicolau Maquiavel, que viria ser tornar um dos escritores mais conhecidos de seu tempo em razão de sua clássica obra: “O Príncipe”. Por esta obra Maquia-vel recebeu a fama que tem até hoje em dia, sendo que na Inglaterra o seu nome tornou mais popular o diminutivo “Nick” para nomear o próprio diabo (ARQNET, 2011).

Coincide a vida de Maquiavel com o período histórico em que Florença teve seu esplendor cultural e também um rápido declínio, sendo este período permeado por rivalidades entre as cidades-estado italianas e também com a Igreja. Sua carreira no governo e como diplo-mata foi curta e com a queda da república florentina em 1512 foi preso, torturado e banido.

Quando Maquiavel tentava retornar a vida pública ele escreve suas principais obras, dentre as quais, “O Príncipe”, com a qual tenta, essencialmente, conseguir uma nomeação no novo governo dos Médicis.

A leitura, mesmo que despretensiosa, de “O Príncipe”, demonstra de forma inevitável sua principal característica: o completo desvinculamento da política para com a ética ou moral. Ele nos apresenta um verdadeiro manual para um governante (o príncipe) com base exclusivamente na realidade dos fatos e nos exemplos históricos, que comprovam, segundo ele mesmo, a ver-dade de suas assertivas.

Percebe-se com uma nitidez cristalina que Maquiavel procura orien-tar as ações do príncipe de uma maneira utilitária, pragmática, o que torna, em sua visão, incompatível com qualquer analise da política pelo campo da moral e da ética. Vale o resultado das ações sendo desnecessária qualquer jus-tificação filosófica.

Divide-se a obra “O Príncipe” em 26 capítulos, sendo que os 11 pri-meiros dedicam-se a apresentar os diversos tipos de principados. A partir daí Maquiavel analisa os obstáculos e maneira de vencê-los nos capítulos 12, 13 e 14. Nos capítulos 15 a 18 ele faz uma análise das virtudes necessárias ao

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príncipe para nos capítulos 19 a 25 demonstrar como o príncipe deve aplicar seus conselhos. Finalmente em seu capítulo 26 ele lança mensagem patriótica e um apelo ao príncipe Lourenço de Médici.

Interessa particularmente a este trabalho algumas passagens de Ma-quiavel que dizem respeito a guerra e alguns temas correlatos, as quais são abaixo apresentadas e analisadas no contexto da chamada “Guerra ao Terror” e suas justificativas8 :

1 – “Os principais fundamentos que os estados tem, tanto os novos como os antigos, são as boas leis e as boas armas. E, como não podem haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam boas armas convém que haja boas leis, deixarei de falar das leis e me reportarei apenas as armas (Cap. XII)”.

Nesta passagem Maquiavel deixa claro que para se manter um princi-pado este deve ter boas leis e boas armas. Porém, as boas armas são mais essen-ciais que as boas leis. Assim, mais vale um bom exército do que boas leis.

Atualmente as forças armadas norte-americanas contam, em caráter oficial, com cerca 1.500.000 militares na ativa, contando com um efetivo de reserva de cerca de 1.000.000 de homens, perdendo somente para o quantita-tivo das forças armadas da República Popular da China9 . Seu orçamento em 2010 ultrapassou 600 bilhões de dólares.

Este enorme efetivo militar é o utilizado nas inúmeras guerras e in-tervenções envolvendo, de uma maneira ou de outra, os EUA. E quanto as boas leis, estas existem aos montes, especialmente regulando as relações inter-nacionais, mas não fazem frente a tal poderio militar, conforme os exemplos apresentados por Noam Chomsky acima.

2 – “Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo que, nem ou-tro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e sua organização e disciplina, pois que é essa a única guerra que compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude que não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicade-zas do que nas armas, perdem o seu estado (Cap. XV)”.

8 Todas retiradas da versão digital da obra “O Príncipe” constante no site www.mundocultural.com.br.

9 Fonte: http://siadapp.dmdc.osd.mil/personnel/MILITARY/history/hst1009.pdf&usg=ALkJrhj-1qoMT25nmtckiTha1kfnkvzOjA.

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Aqui Maquiavel demonstra cabalmente qual a importância que ele confere a guerra numa peculiar maneira de ver o mundo. Segundo seu pensa-mento trata-se até mesmo de uma virtude, a qual, se não for dominada pelo príncipe pode levá-lo a perder seu próprio estado.

Se pegarmos o exemplo dos Estados Unidos da América, país que declarou e encabeça a “Guerra ao Terror”, somente nos últimos cem anos, veremos que este mandamento foi mais que obedecido, foi levado as últimas consequências. Os EUA se envolveram na duas grandes guerras mundiais, tendo papel crucial nas duas. Estiveram presentes em conflitos em pratica-mente todos os recantos do nosso planeta, a exemplo da guerra do Vietnã, da invasão do Haiti e Panamá, o confronto pelo Canal de Suez, nos Balcãs, e mais recentemente no Iraque e Afeganistão.

Provavelmente se Maquiavel estivesse ainda vivo teria que re-ver seu conceito de guerra, adequando-o a conceitos como a “Guer-ra Fria”, “Guerra as Drogas” e finalmente a “Guerra ao Terror”, todas criadas pelos norte-americanos, as quais, por mais abstratas que pare-çam custaram milhares de vidas humanas10 e quantias astronômicas11 durante suas campanhas.

3 – "Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom, e usar ou não da bondade, segun-do a necessidade. Após descrever qualidades e vícios continua(...) seria sumariamente louvável, encontrarem-se num príncipe, de todos os atributos acima referidos, apenas aqueles considerados bons; mas, desde que não os podem possuir ou inteiramente observá-los em razão das contingências humanas não os permi-tirem, é necessário seja o príncipe tão prudente que saiba fugir a infâmia daqueles vícios que o fariam perder o poder, cuidando evitar até mesmo aqueles que não chegariam a por em risco o seu posto; mas, não podendo evitar, é possível tolerá-los, se bem que com quebra do respeito devido.Ainda; não evite o príncipe de incorrer na má faina daqueles vícios que, sem eles, difícil se lhe torne salvar o estado (Cap. XV)”:

10 Na Guerra do Iraque foram mortos 4.415 soldados americanos, 9.537 soldados iraquianos e cerca de 110.000 civis. Fonte: http://blogs.estadao.com.br/marcos-guterman/o-iraque-pos-eua-um-balanco-devastador/

11 Somente na intervenção no Iraque estima-se um gasto de 2,5 trilhões de dólares. Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2006/01/10/ult729u53456.jhtm

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Este parece ser o cerne do pensamento de Maquiavel, onde ele de-monstra que o ideal seria realmente a um príncipe ter os atributos e virtudes que o colocariam como virtuoso e bom num exame moral e ético, porém ele admite inteiramente a corrupção moral e ética do príncipe, chegando mesmo a incitá-la em caso de ser necessário salvar o estado.

A história das guerras é pródiga em farças, engodos, mentiras e ardis, crueldade e falta de compaixão, enfim, de atos moral e eticamente corrom-pidos, sob as mais diversas bandeiras de uma ação permeada pela “justiça”. Um dos grandes e recentes exemplos foi a invasão do Iraque, no esteio da declaração de “Guerra ao Terror”, levada a cabo em 2003 pelos EUA e seus aliados. Naquele ano o governo de George W. Bush, ao argumento de que Sa-dam Hussein estava produzindo armas de destruição em massa com o fito de entregá-las a terroristas para serem usadas contra os EUA, determinou a inva-são do Iraque, mesmo com a negativa de autorização para tanto pelo Conse-lho de Segurança da ONU12 . Mais tarde o próprio governo norte-americano reconheceria o “erro” da CIA, a Agência de Inteligência dos EUA, em ter afirmado sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. Tudo ao custo de milhares de vidas humanas.

Chega a ser desnecessário mencionar que Sadam Hussein fora ou-trora amplamente apoiado pelos EUA, inclusive no famoso massacre con-tra a minoria curda ocorrido em 1988 na aldeia de Halabja, no final da Guerra Irã x Iraque.

4 – “Existem dois modos de combater, um com as leis o outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo, dos animais; mas, como o primeiro modo normalmente não é suficiente, convém recorrer ao segundo (Cap. XVIII)”:

Maquiavel confere mais uma vez extrema ênfase na questão da guer-ra, como sendo uma verdadeira e legítima resolução alternativa as leis, caso essas não atendam os propósitos do príncipe.

Conforme visto, se as leis, a ONU, seu Conselho de Segurança ou qualquer tratado ou acordo internacional não estiverem de acordo com os interesses de uma superpotência ela partirá para a resolução da questão ao estilo que segundo Maquiavel é próprio dos animais.

12 Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/atualidade/2003/04/15/001.htm

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5 – “A um príncipe, portanto, não é necessário possuir todas as quali-dades acima mencionadas, mas é bem necessário parecer possuí-las. (...) por exemplo: parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, (...). Deve-se compreender que um príncipe, particularmente um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez que, frequentemente, é obrigado, para manter o estado,a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião (Cap.XVIII)”.

Nesta passagem, extraída de capítulo que trata sobre a manutenção ou não da fé a palavra dada, Maquiavel coloca um ponto crucial de sua visão de mundo, que é a aparência de agir de acordo com virtudes e valores morais e éticos, e ao mesmo tempo ele afirma a necessidade de transigir e agir contra esses valores para a manutenção do estado.

Quando os EUA lançaram a “Guerra ao Terror”, seus governantes e políticos utilizaram um discurso com amplo apelo emocional a popu-lação norte-americana, calcada, conforme visto, nos seus valores liberais, em suas virtudes, na contenção da ameaça ao american way of life, nos valores do individualismo e da liberdade, da democracia e do Estado de Direito, único modelo plausível para qualquer nação do mundo, sob pena de se considerada uma ameaça para a paz e a esperança mundial.

Sob a bandeira deste discurso, que une democratas e republica-nos, brancos e afro-descendentes, radicais e liberais, os EUA já invadiram o Iraque e Afeganistão, mantém política que aumenta a pressão no Orien-te Médio, prejudicando o processo de paz na Palestina, exercem pressão sobre governos, a exemplo da pressão sobre o governo brasileiro no reco-nhecimento do terrorismo na tríplice fronteira, e assim por diante.

É de se questionar se os mais de 100 mil civis mortos no Iraque e os mais de 6.000 civis mortos no Afeganistão, além de se considerar que um em cada quatro refugiados no mundo é afegão13, se tais ações não são contra a humanidade.

6 – “Nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso

13 Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/07/raio-x-da-guerra-afeganistao.html

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das mesmas. Procure, pois, um príncipe vencer e manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, por-que o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resul-tados, e no mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem existir quando os muitos tem onde se apoiar (Cap. XVIII)”.

Aqui esta presente o famoso brocardo “os fins justificam os meios”, sendo que a grande massa sempre irá apoiar esses meios, independentemente de quais forem, se o resultado for positivo para o Estado. E aqueles que tem um senso crítico e moral simplesmente não se farão notar, uma vez que a massa esta apoiada e apóia o príncipe.

Vale citar como exemplo o mais recente ato da “Guerra ao Terror”, que foi a operação que culminou com a morte de Osama Bin Laden. A dinâ-mica desta operação se deu com a entrada de tropas de forças de elite dos fu-zileiros navais norte-americanos em território paquistanês, culminando com uma ação tática na casa onde o terrorista estava escondido. Todo o material que estava no local foi recolhido e levado para análise de inteligência que possam subsidiar novas e futuras ações das forças norte-americanas.

Após tal operação o presidente dos EUA proferiu pronunciamen-to a nação, comunicando os fatos, afirmando que a justiça foi feita. Ime-diatamente se iniciou ampla comemoração nas ruas de grandes cidades e locais famosos nos EUA, como o Times Square. As reações no mundo fo-ram em geral de apoio, especialmente dos aliados dos norte-americanos.

Com a disseminação da notícia deste evento, apesar do amplo apoio popular de líderes mundiais e da própria ONU, vários questio-namentos começaram a ser feitos, desde a invasão de espaço aéreo e território de um país soberano, a eliminação do terrorista ao invés de sua prisão e julgamento, além da própria eficácia deste ato na questão do terrorismo como um todo. Vale questionar: o terrorismo vai acabar ou pelo menos foi severamente atingido com este ato? A questão do Oriente Médio melhora com esta ação? O ódio nutrido por radicais islâmicos contra os EUA diminui?

Na verdade a proclamada “justiça” que, segundo o governo norte-americano foi feita, deve complicar ainda mais a intrincada questão do terro-rismo, mas este fim almejado e neste caso alcançado pela política da “Guerra ao Terror” se justifica por si só, independentemente dos meios que foram

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utilizados nesta ação, uma vez que estes meios jamais resistiriam a qualquer análise frente a regras de direito internacional.

Inúmeras outras passagens poderiam ser retiradas desta magnífica obra de Maquiavel. Porém, para o propósito deste trabalho bastam essas pas-sagens acima transcritas e brevemente comentadas.

5. CONCLUSÕES

Ao se analisar o que é considerado terrorismo e o conceito de “Guer-ras Justas” se conclui inevitavelmente que, e sempre na ótica desta conceitu-ação empregada, os Estados Unidos da América praticam atos que poderiam ser considerados terroristas, e sua “Guerra ao Terror” não encontra justifi-cativas plausíveis, sob pena de ao menos serem considerados os argumentos utilizados pelos próprios terroristas para justificar suas ações.

Por trás de inúmeras ações e intervenções militares estão interesses diversos, desde estratégia geográfica, até realizar uma “Guerra Preventiva”, de cunho utilitarista, baseada na suposição das intenções malévola de outro país, ideologia, ou cultura (WALZER, 2003, p. 129-130). E mesmo que em de-terminados países ou culturas seja o berço histórico de determinados grupos radicais terroristas, isto não autoriza identificar a todos que pertencem a este país ou cultura com os radicais terroristas.

A história sempre fornece exemplos que acabam se repetindo, funda-mentalmente no resultado de determinados atos. Veja o exemplo da “Guerra as Drogas”, que desde sua versão original nos anos 1970 até o presente não logrou acabar com o problema do consumo de drogas nos EUA, da força dos narcotraficantes na América do Sul, e muito embora os resultados na dimi-nuição da área de produção de cocaína e da força dos cartéis na Colômbia tenham sido consideráveis, acabou permitindo a criação de um narco-estado ainda mais próximo e ameaçador aos EUA, no México, onde a situação esta completamente fora de controle. E os resultados mundiais praticamente só pioram ano após ano.

Por outro lado, os atos que se seguem a decretação de uma “Guerra ao Terror” nos moldes propostos implicam um preço elevadís-simo e inestimável em vidas humanas de civis inocentes, a vinculação generalizada entre os árabes, o Islã e o terror, e a justificativa para uma

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imensa gama de violações de direitos e garantias fundamentais, inclusi-ve para concidadãos.

Tal estado de medo é gravíssimo e pode significar em curto prazo de tempo um revés no processo de evolução dos modernos Estados Democráti-cos de Direito, e justamente num momento histórico ímpar, onde a juventu-de, estudantes, trabalhadores e mulheres de países árabes fazem movimentos fortíssimos no sentido da democracia e liberdade legítimas14, sempre contra autocracias que tem algo em comum, que é o fato de terem sido constituídas ou apoiadas pelos EUA e seus aliados.

Levado tal discurso as últimas conseqüências a questão do terrorismo pode levar a disparates em países de tradição de paz e neutralidade como o Brasil. Basta ver que após os ataques do Primeiro Comando da Capital ocor-ridos em maio de 2006, no Estado de São Paulo, que levaram oficialmente a morte de 128 pessoas15, vários intelectuais, autoridades e juristas proclama-ram que se tratava de terrorismo. Se levado a sério tal classificação desses atos, então “Marcola”, alcunha de Marcos Antônio Camacho, assaltante de banco líder do PCC, seria o nosso Bin Laden? O nosso Congresso Nacional autori-zaria algo similar ao Ato Patriota dos EUA, e a partir de então estariam nos-sas forças policiais autorizadas a uma série de medidas violadoras de direitos e garantias individuais sem autorização judicial e controle externo, bastando ligar um determinado ato ao PCC?

Voltando a operação que culminou com a morte de Bin Laden, não é mais possível que no atual estágio da humanidade e dos governos e Estados e suas relações internacionais sejam admitidas ações unilaterais dessa natureza. Isto porque se encontrarmos justificativas plausíveis para tal ato estaríamos autorizando o seguinte: se um determinado “alvo” da “Guerra ao Terror” viesse a estar escondido no Brasil, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro, os SEALS da marinha norte-americana pode-riam invadir nosso espaço aéreo, nosso território e eliminar esse alvo. Ou seja, todo o árduo histórico construído lenta e gradativamente ao longo do último século em relações internacionais e direitos internacionais sim-plesmente de nada vale.

14 Haja vista as revoltas e manifestações populares no Egito, Líbia, Yemên, Síria e Cisjordânia.

15 Vide interessante artigo a respeito em http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2006/saopaulosobataque/.

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O terrorismo é algo abominável e tem que ser combatido, mas com medidas policiais e dentro da lei, e só em situações excepcionalíssimas com medidas militares, mas ainda aí, dentro das leis internacionais. Este sem dúvi-da é um caminho mais difícil, mas é o único para um mundo que se pretende cada vez mais civilizado.

Por outro lado, não parece ser a melhor estratégia se resolver algo tão complexo, que envolve questões religiosas, históricas, culturais e ideológicas de maneira tão simples e pueril, através de tiros, mísseis e guerras. Bin Laden certa-mente estava no Paquistão por encontrar apoio para tanto naquele país. Convém se perguntar por que ele tinha tal apoio, o que move o ódio dos radicais islâmicos contra os EUA e sua cultura, o que seria um ótimo ponto de partida para começar a realmente se enfrentar a questão do terrorismo. Pois se Bin Laden não tivesse espaço para encontrar esse apoio ele não teria onde se esconder, ao menos não por mais de dez anos, e quando fosse encontrado em qualquer país, mesmo no Paquistão, teria sido preso por forças daquele país, ou ao menos a operação teria sido em conjunto, e caso resultasse morte, seria uma decorrência de uma operação lícita frente a mecanismos de direito e relações internacionais.

Enquanto se mantiver a retórica da “Guerra ao Terror” nos moldes atuais fica realmente difícil encontrar justificativas morais convincentes por um motivo simples: os fatos que ensejam esta retórica são viciados, e onde há vício não existe a possibilidade de coexistir a moral e a ética.

Assim, não há como achar outra justificativa para a “Guerra ao Terror” senão com Maquiavel. E o problema de se justificar com Maquiavel é que os atos por eles justificados são, como reza a tradição MAQUIAVÉLICOS.

Disney Rosseti Disney rosseti

Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB; Delegado de Polícia Federal; Diretor da Academia Nacional de Polícia

E-mail: [email protected]

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Brasília, v. 2, n. 1, p. 73-94, jan/jun 2011.

O IDEAL DA DEMOCRACIA RACIAL, AS COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E SEUS REFLEXOS NOS INQUÉRITOS DA POLÍCIA FEDERAL

Juliana Carleial Mendes Cavaleiro Departamento de Polícia Federal - Brasil

Dud

RESUMO

No presente artigo pretende-se relacionar o resultado das investigações iniciadas para apuração de divulgação de material de conteúdo preconceituoso ou racista – o arquivamento e desclassifi-cação na Justiça da maioria das investigações desta natureza iniciadas pela Polícia Federal – com a ideologia da democracia racial no Brasil; bem como estabelecer uma relação entre o aumento do número de investigações instauradas ao longo dos últimos anos pela Polícia Federal para apurar a divulgação de material racista e a adoção de políticas públicas de cunho afirmativo pelo Governo Federal, como as cotas nas universidades públicas.

Palavras-chave: Democracia racial. Crime. Racismo; Polícia Federal. Cotas.

INTRODUÇÃO

Quando Gilberto Freyre1, no início do século XX, repensou a maldição brasileira, a maldição de o Brasil ser um país fadado ao fra-casso por ser mestiço – formado por uma gente feia e inferior genetica-mente, que por isso não “daria certo” – e retomou a mesma mestiçagem positivamente, considerando-a a chave para o sucesso (não fracasso) da colonização portuguesa no Brasil (FREYRE, 2004, p. 71), relendo a opinião dos estrangeiros sobre o Brasil para mostrar que os mestiços feios eram na verdade mestiços doentes (idem, 2004, p. 110) , para os quais a doença e não a mestiçagem era o agente incapacitante, enfim quando ele resgatou o papel do negro como elemento central da colo-nização do Brasil2, pode-se dizer que ele inaugurou o que mais de uma

1 Outros autores o acompanharam nesta tendência de repensar a mestiçagem positivamente, tais como Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Oliveira Viana.

2 Como exemplo da escrita de Freyre que tende a exaltar a beleza e o vigor da raça negra que aqui veio se misturar com o português e com o índio para colonizar o Brasil, cito o seguinte trecho de

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geração de escritores (a geração dos escritores da década de 1950 e os que se seguiram) chamou de a ideologia da democracia racial no Brasil.

Dando uma resposta ao eurocentrismo da época, Freyre, seguido por outros, estabeleceu o conceito que ainda hoje compartilhamos, mesmo inconscientemente, de que vivemos num país mestiço. A partir desta idéia, construiu-se que, sendo todos mestiços, não existe racismo no Brasil.

De repente, com a ajuda de um ideal inspirado em Freyre, viramos um país moderno, país em que durante todo o tempo em que nos Estados Unidos brancos e negros tinham leis diferentes, enquanto o apartheid era a política da África do Sul e enquanto o mundo assistia atônito às barbáries praticadas pelo regime nazista, aqui, dizíamos não fazer diferença entre as pessoas pela cor de suas peles. Valorizando desta maneira a mistura descrita por Freyre, criamos nossa identidade nacional, uma auto-imagem positiva chamada “democracia racial”.

Poder-se-ia resumir as críticas à ideologia da democracia racial em qua-tro linhas, tomando-se emprestadas estas da socióloga Levi Sovik: “em um país mestiço, os brancos são irrelevantes, pois a questão é de misturar-se, deixar-se mis-turar, reconhecer-se como produto da mistura, o que, paradoxalmente, sempre é possível sem deixar de ser branco. Pois ser branco no Brasil é ter a pele relati-vamente clara, funcionando como uma espécie de senha visual e silenciosa para entrar em lugares de acesso restrito” (SOVIK, 2009, p. 13).

A partir desta afirmação, seria possível entrar no universo da discus-são sobre o racismo no Brasil, suas diferentes formas de manifestação e técni-cas para abordá-lo. Sem a pretensão de fazê-lo, ela se presta aqui à exposição do mote da discussão contemporânea quanto ao combate ao racismo no Bra-sil, materializado na instituição das cotas nas universidades públicas (pois são uma forma de “acesso”, eliminando ou estabelecendo outra “senha”), e cujos entusiastas são frontalmente contrários à manutenção de ideais românticos quanto à miscigenação nas decisões políticas brasileiras.

Casa Grande & Senzala: “O escravo negro no Brasil parece-nos ter sido, com todas as deficiências do seu regime alimentar, o elemento melhor nutrido em nossa sociedade patriarcal, e dele parece que numerosos descendentes conservaram bons hábitos alimentares, explicando-se em grande parte pelo fator dieta – repetimos – serem em geral de ascendência africana muitas das melhores expressões de vigor ou de beleza física em nosso país: as mulatas, as baianas, as crioulas, as quadraronas, as oitavanas, os cabras de engenho, os fuzileiros navais, os capoeiras, os capangas, os atletas, os estivadores no Recife e em Salvador, muitos dos jagunços dos sertões baianos e dos cangaceiros do Nordeste” (FREYRE, Gilberto. 2004. p. 107).

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Dentro deste quadro, onde a visão romântica inspirada em Freyre e a abordagem governamental através de políticas afirmativas se chocam, pergunta-se se seria possível que o ideal da democracia racial esteja refletido nos números sobre a apuração do crime de prática e divulgação de material preconceituoso e racista no âmbito da Polícia Federal do Brasil – PF.

Questiona-se se esta imagem positiva que fazemos de nós mesmos poderia influenciar os órgãos policiais na apuração de práticas racistas quan-do criminalizadas, no sentido de não enxergá-las como tal. E, por outro lado, questiona-se se o número crescente de inquéritos instaurados na PF para apu-ração de tal crime seja reflexo da visibilidade que a política de cotas deu ao racismo no Brasil.

Este artigo não pretende e nem poderia responder exaustivamente às questões acima, mesmo porque se propusesse respostas definitivas, certa-mente estas demonstrariam que tanto o ideal romântico quanto as discussões sobre as cotas são apenas dois dos vários fatores que interferem na apuração de um crime de cunho racial, podendo-se citar outros como o nível social e cultural dos policiais, o investimento na formação destes, suas idades, o esta-do da Federação em que se der o crime etc.

Assim, pretende-se aqui debater a relação entre o resultado das in-vestigações iniciadas para apuração de divulgação de material de conteúdo preconceituoso ou racista – o arquivamento e desclassificação na Justiça da maioria das investigações desta natureza iniciadas pela Polícia Federal, como se verá mais adiante – e a ideologia da democracia racial no Brasil.

Ventila-se também a relação entre o aumento do número de investi-gações instauradas ao longo dos últimos anos pela Polícia Federal para apu-rar a citada divulgação de material racista e a adoção de políticas públicas de cunho afirmativo pelo Governo Federal, como as cotas nas universidades públicas.

Quanto ao material utilizado para a elaboração deste artigo, o nú-mero de inquéritos policiais – IPLs – instaurados pela Polícia Federal para apuração do crime de divulgação de material de conteúdo racista (art. 20, da Lei n. 7.716/89) foi obtido em pesquisa no Sistema Nacional de Procedi-mentos – SINPRO (base de dados criada em 1998 e alimentada pela Polícia Federal que, por acordo de cooperação, também é completada pela Justiça

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Federal, para acompanhamento das investigações e sua recepção pela Justi-ça); a referida pesquisa foi feita no mês de agosto de 2010.

Convém anotar que todas as investigações instauradas pela PF de-vem ser registradas no SINPRO, mas como a inserção dos procedimentos neste sistema – tanto pela Polícia Federal quanto pelo Judiciário – é feita manual e individualmente, e não sendo este o único sistema de controle de procedimentos, admite-se que o número registrado pode ser inferior ao nú-mero real de procedimentos.

O outro sistema informatizado para registro de procedimentos na Polícia Federal, mais moderno e que permitirá brevemente pesquisas mais detalhadas, chamado Sistema de Informações Cartorárias – SIS-CART, já está sendo utilizado na maioria das unidades descentralizadas, mas seu banco de dados ainda não permite exame do número de inves-tigações em todo o Brasil, razão pela qual ele não foi consultado para a elaboração deste trabalho.

O tipo penal consultado como representativo genérico do com-bate ao racismo no âmbito criminal pela Polícia Federal foi o descrito no art. 20 da Lei nº 7. 716/89 (a qual substituiu a Lei Afonso Arinos e cujo projeto de Lei, de autoria do Deputado Alberto Caó, surgiu após a Constituição Federal de 1988 ter tornado imprescritíveis e inafiançáveis os crimes de racismo):

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, em-blemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97) Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por inter-médio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa”.

Este crime representa no âmbito de atuação da PF a utilização da rede mundial de computadores – internet – para expor material de conteúdo

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preconceituoso e racista (como, por exemplo, a incitação à violência e a expo-sição de imagens de pessoas negras ou índias, em sua maioria, torturadas ou subjugadas, com apreciação sempre positiva por parte do divulgador).

Os inquéritos associados a este artigo na Polícia Federal demonstram que o meio de divulgação atualmente mais utilizado na prática deste crime é a internet, o que permitiu também utilizar as informações sobre “denúncias” (notícias de crime) registradas por usuários da rede mundial de computado-res na página da SAFERNET3 quanto ao mesmo fato. A partir destas duas fontes de informações pretende-se observar tanto o aumento do número de inquéritos policiais quanto de notícias de crimes únicas (não repetidas) feitas por usuários da internet, tudo vinculado à divulgação do racismo (e do nazis-mo, que está no mesmo artigo na lei, mas em diferentes campos de pesquisa na página da SAFERNET).

A pesquisa nestes termos vai refletir particularmente a atuação da Polícia Federal frente ao racismo; a atuação da PF nestes casos tem por fun-damento precípuo a lei nº 10.446/2002 que a legitimou para a investigação das infrações relativas à violação a direitos humanos, que a República Fede-rativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados in-ternacionais de que seja parte, sem prejuízo da atuação dos outros órgãos de segurança pública (de fato todo órgão policial poderá e deverá atuar diante do fato criminoso, a lei não admite omissão), como também deverão ser in-vestigados por este órgão os crimes de repercussão interestadual ou interna-cional e que exijam repressão uniforme, caso no qual se insere grande parte dos crimes praticados por meio da rede mundial de computadores.

A divulgação de material de conteúdo racista foi tópico, dentre outros tratados e convenções internacionais, da Convenção Internacional sobre a Eli-minação de Todas as Formas de Discriminação Racial que, ratificada pelo Brasil

3 A SaferNet Brasil é uma associação civil de direito privado, com atuação nacional, sem fins lucrativos ou econômicos, sem vinculação político partidária, religiosa ou racial. Fundada em 20 de dezembro de 2005 por um grupo de cientistas da computação, professores, pesquisadores e bacharéis em Direito, a organização surgiu para materializar ações concebidas ao longo de 2004 e 2005, quando os fundadores desenvolveram pesquisas e projetos sociais voltados para o combate à pornografia infantil na Internet brasileira. Naquela época, era urgente a necessidade de oferecer uma resposta eficiente, consistente e permanente no Brasil para os graves problemas relacionados ao uso indevido da Internet para a prática de crimes e violações contra os Direitos Humanos. Aliciamento, produção e difusão em larga escala de imagens de abuso sexual de crianças e adolescentes, racismo, neonazismo, intolerância religiosa, homofobia, apologia e incitação a crimes contra a vida e maus tratos contra animais já eram crimes cibernéticos atentatórios aos Direitos Humanos presentes na rede” (Disponível em: http://www.safernet.org.br/site/institucional, Acesso em: 23/08/2010.).

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em 27/03/1968, obrigou-o como signatário a “declarar como delitos puníveis por lei qualquer difusão de idéias que estejam fundamentadas na superioridade ou ódio raciais, quaisquer incitamentos à discriminação racial, bem como atos de violência ou provocação destes atos, dirigidos contra qualquer raça ou grupo de pessoas de outra cor ou de outra origem étnica, como também a assistência prestada a atividades racistas, incluindo seu financiamento”4 .

O MITO, A REALIDADE E O QUADRO NACIONAL APÓS A POLÍTICA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES

Primeiramente, cumpre destacar que Gilberto Freyre nunca disse que não existe racismo no Brasil, ele apenas romantizou a miscigenação, ele falou desta característica brasileira em sua obra com tanto carinho, que sua ênfase no positivo da mistura gerou a imagem interna e externa do país misturado. Esta mensagem foi utilizada como bandeira, até mesmo em discursos oficiais, para louvar a inexistência de preconceito racial no Brasil que justificasse a adoção de políticas públicas afirmativas para negros, como as empreendidas durante muito tempo nos Estados Unidos da América, e para enfatizar que o que existe entre nós é distinção entre classes sociais.

Fernando H. Cardoso, por exemplo, enquanto sociólogo e comen-tarista (no prefácio da mais recente edição) da obra supracitada de Freyre rendeu homenagem à importância do estudo; o qual subsiste apesar de ser constantemente responsabilizado pelo mito da democracia racial e suas con-seqüências práticas negativas para a discussão do racismo na sociedade bra-sileira. Disse ele: “Gilberto Freyre nos faz fazer as pazes com o que somos. Valorizou o negro. Chamou atenção para a região. Reinterpretou a raça pela cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais força de que todos, que a mestiçagem, o hibridismo, e mesmo (mistificação à parte) a plasticidade cul-tural da convivência entre contrários, não são apenas uma característica, mas uma vantagem do Brasil” (FREYRE, op. cit., p. 28) .

Como bem chamou a atenção Roberto DaMatta na obra Carnavais, Malandros e Heróis, Freyre notou os antagonismos de nossa sociedade mis-turada; uma sociedade que se sabe misturada mas que distingue quem é quem do mesmo jeito.

4 Artigo 4º, alínea a, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discriraci.htm, Acesso em: 23/08/2010.

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Diz DaMatta, escrevendo sobre o uso da pergunta “você sabe com quem está falando?” (um ritual brasileiro, escondido mas conhecido, para estabelecimento de posições diferentes na sociedade) que Freyre já havia detectado os mecanismos de distinção entre brancos e negros na sociedade brasileira colonial, quando destacou que os símbolos tradicionais de posi-ção social como o uso de fraques, bengalas e bigodes só poderiam ser usados por pessoas realmente brancas pertencentes à classe senhorial (DAMATTA, 1983, p. 198). Daí completar Roberto DaMatta explicando que “quando tais símbolos saíram da moda, a expressão “sabe com quem está falando? ”passou a ser mais utilizada, para que os superiores pudessem marcar suas diferenças e continuassem a viver no mundo hierarquizado” (idem, ibidem).

Dessa forma, pode-se dizer que o alvo das críticas é a ideologia que tomou emprestado o romantismo de Freyre, qual seja a de que existe uma democracia racial no Brasil e que a discriminação se manifesta no âmbito das classes sociais apenas e não no da cor da pele; a crítica não recai propriamente sobre a obra do referido autor, sempre revisitada quando se pretende conhe-cer as peculiaridades da formação da sociedade brasileira.

Na explicação de Luís R. Cardoso de Oliveira, “desde os anos de 1950, a Sociologia tem criticado a ideologia da democracia racial no Brasil, chamando a atenção para a incidência de discriminação no país, sem deixar de assinalar especificidades locais, particularmente acentuadas quando con-trastadas com os EUA” (OLIVEIRA, 2004, p. 81). Há mais de cinqüenta anos, portanto, segundo o autor, a Sociologia se debruça sobre o que foi descrito por Turra e Venturi como “o racismo cordial do Brasil”, aquele que se caracteriza por uma polidez superficial recobrindo atitudes discriminató-rias, que se expressam em sua maioria nas relações interpessoais, como se vê em piadas e brincadeiras de cunho racial (TURRA e VENTURI, 20094), comparando-a a discriminação racial nos Estados Unidos, com sua nitidez, sua separação aberta.

Ainda conforme Cardoso de Oliveira, o desdobramento mais im-portante deste período de reflexão sobre o Racismo na área da Sociologia foi a “consolidação da idéia de se que há, de fato, uma mistura entre raça e classe social na questão da discriminação, mas uma condição não explica a outra. Em outras palavras, a ascensão social não elimina a discriminação racial, ain-da que possa reduzi-la ou suavizá-la, assim como os pobres não deixam de estar mais sujeitos a atos de discriminação cívica do que os cidadãos de classe

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média, especialmente por parte da polícia (KANT DE LIMA, 1995), mes-mo quando são classificados como brancos, se tomarmos como referência a cor da pele”(OLIVEIRA, 2004, p. 81).

Há ainda quem entenda que o respeito pela diferença é sempre an-terior à questão da discriminação social, como o também sociólogo José Rei-naldo de Lima Lopes quando diz que “a distribuição de riquezas, igualdade material, só é moralmente devida se houver inicialmente uma consideração pela pessoa. O respeito é devido ao outro que se reconhece como sujeito de direitos ou sujeito moral” (LOPES, 2000).

De fato, mesmo os pesquisadores da área da Sociologia que se po-sicionam contra a política afirmativa das cotas1, não deixam de reconhe-cer que existe racismo no Brasil e que ele deve ser combatido, a discor-dância, neste meio, vai existir apenas quanto à forma pela qual as políticas públicas devem abordá-lo.

O que dificulta qualquer abordagem ao racismo no Brasil é que ele é dissimulado, é o chamado racismo à brasileira, sendo até de difícil identifi-cação para aqueles que sofrem o preconceito. Assim, mesmo o racismo sendo uma prática ilegal, sancionada moral e legalmente, o fato (criminoso ou mo-ral) se perde na falta de reflexão sobre o ocorrido, tanto por parte do agente passivo quanto do ativo.

Em seu estudo sobre as novas formas de expressão do preconceito e do racismo, Marcus Eugênio de Oliveira Lima e Jorge Vala, falando sobre o racismo irrefletido dos brasileiros, que embora se exponha às vezes em ne-gativas diretas de acesso a direitos (como no caso de se negar às empregadas domésticas o acesso aos elevadores sociais em prédios de apartamento) pode também se refletir em piadas e brincadeiras, disseram que “não obstante essa aparente falta de intenção e sutileza da expressão, o racismo à brasileira nada tem de cordial, pois implica num cenário sinistro de discriminação e exclusão das pessoas negras”(LIMA e VALA, 2004).

O racismo brasileiro ser chamado de “cordial” remete imediatamente ao tipo de “cordialidade” através da qual Sérgio Buarque de Holanda definiu o brasileiro padrão, o “homem cordial” (HOLANDA, 1995, p. 155). Essa cor-dialidade nada tem a ver com educação, trata-se do “cordial” ligado à emoção.

1 Ver Maggie, Yvonne, 2008.

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A relutância do brasileiro em aceitar uma organização social supra-individual, do mesmo modo como se processa com a religião, é característica do apego aos valores da personalidade, o doméstico so-brepondo-se ao público. Todas as relações sociais no Brasil tendem ao pessoal (e não à “igualdade perante a lei”), daí Holanda chamar-nos de “cordiais”. Ou seja, o racismo no Brasil ocorre no âmbito desta socieda-de que não consegue separar o pessoal do impessoal, o “fulano de tal” do indivíduo, assim como não consegue separar a brincadeira e a piada da ofensa à dignidade do outro.

Com limites tão confusos entre o pessoal e o impessoal (indi-vidual), não se admira a dificuldade de identificar na prática o racismo criminoso. Ainda mais quando a lei ao mesmo tempo em que pune com pena de reclusão a prática do racismo e sua divulgação pelos meios de comunicação, oferece outra saída, outra classificação penal para a possível situação de racismo (art. 20, da Lei nº 7.716/89), sua capitulação como “injúria racial”2 (art. 140, §3º, do Código Penal Brasileiro). A injúria ra-cial vai atingir “alguém”, delimitado, deixando de ser racismo cuja mani-festação atinge toda a sociedade.

Com a promulgação da Lei nº 12.033/09, que alterou o crime de injúria racial, condicionando sua persecução criminal, e, portanto, a instauração do inquérito policial, à representação do ofendido, re-conhecer que o fato ocorrido foi uma ofensa pessoal e não o crime de racismo é uma saída mais fácil para quem lida com a situação prática (seja o policial, o membro do Ministério Público ou o Juiz). Esta saída evitaria o conflito maior (provar que houve uma prática racista), re-solvendo o incidente como situação pontual entre duas pessoas (uma

2 “Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.(...)

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)

Art. 145 - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal.

Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3o do art. 140 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.033. de 2009)” (Código Penal Brasileiro).

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que quis ofender a outra e utilizou de palavras racistas, mas sem o dolo de atingir toda a coletividade), e isso se o ofendido quiser representar à polícia pela instauração da investigação (barreira da necessidade de demonstrar interesse na apuração).

Essa situação de possível preferência por entender o fato (crimino-so) como um crime “menor”, situação entre indivíduos, e não algo que atin-ge toda a coletividade (como seria o racismo), se coaduna com outro traço da personalidade do brasileiro, observado por Roberto DaMatta no texto anteriormente citado, qual seja a aversão ao conflito. No Brasil, o conflito, segundo o autor, não é visto como um sintoma de uma crise que deve ser analisada e enfrentada, mas como uma revolta que deve ser reprimida. Daí que se castiga o agente da revolta e mantém-se o sistema.

Dessa forma o racismo seria algo que ocorre entre nós por acaso, sen-do dependente apenas de um “sistema” implantado pelos grupos que detêm o poder (DAMATTA, op. cit., p. 185) – a “culpa” é do sistema, mas esse não é repensado através da situação vexatória, esta se resolve com a repressão pontual do indivíduo que expôs o “sistema”. Como se não quiséssemos ver os problemas e preferíssemos achar um culpado mais próximo, imediato, para não ter que enfrentar o maior dos trabalhos – mudar a situação que permite a injustiça observada.

Se os operadores da lei tiverem dificuldade em entender um fato ob-servado como racismo ou, mesmo quando o fizerem, entenderem se tratar de uma situação racista que ocorreu pontualmente entre indivíduos, a lei contra o racismo (Lei nº 7.716/89) se torna instrumento inoperante para a fazer frente ao racismo na sociedade brasileira.

Vale lembrar, entretanto, que a Lei nº 7.716/89 é muito criti-cada por suas penas elevadas, para vários juristas desproporcionais aos crimes nela previstos. Assim, evitar capitular o fato observado criminal-mente nos artigos desta lei pode significar não apenas a perpetuação da ideologia da democracia racial ou a preferência do brasileiro por evitar o conflito maior, pode significar, ainda, a discordância com a pena co-minada – para se punir alguém por racismo deverá o aplicador da lei fazê-lo através de penas privativas de liberdade e a situação dos presí-dios brasileiros, cheios e insalubres, se torna indiscutivelmente ponto a ser considerado por ele.

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Por outro lado, mesmo com este confuso quadro para visualização do racismo no Brasil, especialmente para fazê-lo através da lei penal, a im-plantação da política governamental afirmativa das cotas para negros e pesso-as de baixa renda nas universidades públicas tem incitado a discussão sobre o tema em todos os seguimentos da sociedade.

Cardoso de Oliveira falando a respeito das cotas nas universidades, explica que o “o objetivo precípuo da medida seria provocar uma mudança nas atitudes dos atores, para que se tornem mais críticos à discriminação e ao filtro da consideração” (OLIVEIRA, op. cit., p. 88). A idéia é que com a “dramatização periodicamente” do dilema da discriminação racial e sua ina-ceitabilidade numa sociedade democrática, as pessoas, não o cidadão, mas o sujeito (consigo mesmo) seria forçado a pensar sobre seus próprios sentimen-tos e seu racismo, “contribuindo para a rearticulação entre esfera e espaço públicos no Brasil, pelo menos no que concerne à crítica a nossas práticas cotidianas de discriminação cívica contra negros e cidadãos desprivilegiados de uma maneira geral” (OLIVEIRA, op. cit., p. 88).

No pensamento do supracitado autor, portanto, as cotas serviriam como um lembrete constante à sociedade brasileira para analisar seu compor-tamento e pensar no seu racismo, a fim de provocar uma mudança, a aceita-ção real da diferença e não apenas na aparência.

Outros autores, como Yvonne Maggie, por exemplo, entendem que as cotas, como outras políticas afirmativas baseadas na cor da pele, po-dem afastar o que há de positivo na ideologia da democracia racial, que é exatamente o fato de as pessoas numa sociedade não precisarem se definir pela cor de suas peles.

Embora não seja o ponto principal deste artigo, vale à pena expor as cotas sob o ponto de vista da supracitada socióloga, porquanto minoritário atualmente, no sentido de que até mesmo nos “Estados Unidos da América, a nação dilacerada pelo ódio racial e pela segregação, as políticas com base na ‘raça’ estão sendo abolidas porque têm o efeito de perpetuar a ‘raça na vida pública’, segundo a maioria da Suprema Corte. Porém aqui no Brasil, alheios ao debate internacional, há quem queira ainda transformar o país em uma nação dividida, por força da lei, em brancos e negros, criando as ‘raças’” (MAGGIE, op. cit., p. 909).

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A opinião majoritária da Suprema Corte Americana a que se refere a autora é a de que “políticas que obrigam os indivíduos a se iden-tificarem racialmente têm o efeito de perpetuar o critério ‘raça’ na vida pública americana” (MAGGIE, op. cit., p. 909). Maggie entende que ainda é muito cedo para o Brasil se render a políticas afirmativas, ainda vale à pena insistir em políticas redistributivas (que mudem na origem o preconceito e racismo brasileiros, como a grande diferença entre as classes sociais).

Fato é que a política afirmativa das cotas para negros, e pessoas de baixar renda, nas universidades públicas é uma realidade no Bra-sil, após ter sido inicialmente discutida durante o Governo Fernando Henrique, por ocasião das pesquisas para a apresentação do Brasil na III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo (África do Sul, 2001) (MAGGIE, op. cit., p. 905), e implantada pelo Governo Lula.

A política de cotas pode gerar na população brasileira reações explosivas, segundo Lima e Vala, por causa da característica da latência do nosso racismo. Eles propõem que “o preconceito é como se fosse um vírus latente ou adormecido, que corrói os tecidos sociais com violência discreta quando a norma da igualdade está saliente, mas que, quando encontra uma norma social qualquer que justifique a sua expressão mais virulenta, explode em fanatismo nacionalista ou xenófobo” (LIMA e VALA, op. cit., p. 408).

A quebra do estado de latência do preconceito tanto pode gerar atitudes de exagero para o bem quanto para o mal, exemplo de exagero para o bem que os próprios autores citam em seu estudo é o caso de uma apresentadora de programa infantil que, quando lhe colocam no braço várias crianças para afagar, diante da criança negra toma mais tempo e a acaricia com mais intensidade, para mostrar, nesta oportunidade, que não é racista (mas a reação, justamente pelo exagero, por diferir daquela oferecida às outras crianças, expõe o sistema racista). Já a explosão para o mal pode ser exemplificada nas manifestações abertas contra a polí-tica de cotas nas universidades públicas, como as realizadas por movi-mentos neonazistas em frente a universidades no estado de São Paulo e no Rio de Janeiro que foram notícia em jornais da época (LIMA e VALA, op. cit., p. 408).

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Juliana Carleial Mendes Cavaleiro

Brasília, v. 2, n. 1, p. 73-94, jan/jun 2011.

A latência é o alvo da política das cotas; ela tem seu objetivo máximo na instigação da sociedade brasileira à reflexão do seu racismo, na opinião já exposta de Cardoso de Oliveira. Como a saída da latência pode se dar por dois caminhos, segundo Lima e Vala, o aumento do número de investigações criminais para apuração de prática de racismo através de meios de comunica-ção, como a internet, no âmbito da Polícia Federal (nos últimos anos) pode ser parte da reação tanto para o bem, as pessoas estarem denunciando mais o crime que já existia, quanto para o mal, a separação da população pela cor da pele para efeito de prestar vestibular pode estar incitando o preconceito latente da população declarada branca.

OS NÚMEROS

Gráfico 1 - Inquéritos Instaurados pela PF e inseridos no SINPRO entre 1998-2010 (art. 20, Lei n. 7716/89)

Fonte: SINPRO/DPF

Os números, apesar de refletirem apenas parcialmente a realida-de do racismo sob o enfoque criminal, indicam que (no universo dos in-quéritos policiais instaurados pela Polícia Federal, inseridos no Sistema Nacional de Procedimentos e que têm movimentação final registrada pela Justiça Federal) mais da metade dos procedimentos de investigação instaurados para averiguar a divulgação de material racista por meio da internet (discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) nos últimos anos termina por ser arquivada (57%) e outra parte significante (17%) é remetida para a Justiça Esta-dual (neste caso significando que o fato apurado foi reclassificado para

Os números, apesar de refletirem apenas parcialmente a realidade do racismo

sob o enfoque criminal, indicam que (no universo dos inquéritos policiais

instaurados pela Polícia Federal, inseridos no Sistema Nacional de

Procedimentos e que têm movimentação final registrada pela Justiça Federal)

mais da metade dos procedimentos de investigação instaurados para averiguar

a divulgação de material racista por meio da internet (discriminação ou

preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) nos últimos

anos termina por ser arquivada (57%) e outra parte significante (17%) é

remetida para a Justiça Estadual (neste caso significando que o fato apurado

foi reclassificado para crime cuja apuração se dá pela polícia civil dos estados

e cuja competência para processar será da Justiça Estadual – a

desclassificação é feita normalmente para o tipo penal injúria utilizando

elemento de raça, cor, etnia etc.).

Às providências mais comuns supracitadas, representativas dos maiores

números no gráfico, sucedem a medida de apensamento a outra investigação

(7%) e a de extinção da punibilidade (3%). A primeira significando que foi

identificada outra investigação (anterior) para apurar o mesmo fato ou fato

conexo (que justifique uma apuração conjunta). A segunda, por sua vez, indica

na maioria das vezes, que transcorreu tempo demais entre a ocorrência do

fato, sua apuração e o momento de avaliação da situação pela Justiça,

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O Ideal da Democracia Racial, as Cotas para Negros nas Universidades...

Brasília, v. 2, n. 1, p. 73-94, jan/jun 2011.Revista Brasileira de Ciências Policiais

crime cuja apuração se dá pela polícia civil dos estados e cuja compe-tência para processar será da Justiça Estadual – a desclassificação é feita normalmente para o tipo penal injúria utilizando elemento de raça, cor, etnia etc.).

Às providências mais comuns supracitadas, representativas dos maiores números no gráfico, sucedem a medida de apensamento a outra investigação (7%) e a de extinção da punibilidade (3%). A primeira sig-nificando que foi identificada outra investigação (anterior) para apurar o mesmo fato ou fato conexo (que justifique uma apuração conjunta). A segunda, por sua vez, indica na maioria das vezes, que transcorreu tempo demais entre a ocorrência do fato, sua apuração e o momento de avaliação da situação pela Justiça, extinguindo-se a pretensão punitiva do Estado.

Destaca-se ainda a partir do gráfico que apenas dois por cento das investigações gera o oferecimento de denúncia pelo membro do Ministé-rio Público Federal aceita pela Justiça, sendo que as denúncias que não são aceitas significam cerca de um por cento do total, e menos de um por cento recebe sentença condenatória no primeiro grau de Jurisdição.

Para ter uma visão do crime de prática de racismo através prin-cipalmente da divulgação pela internet que ultrapasse o âmbito de ins-tauração de investigação pela Polícia Federal, vale a pena conferir os gráficos que indicam as notícias de crime registradas por usuários da rede mundial de computadores na página de “denúncias” da organiza-ção SAFERNET.

Gráfico 2 - Perfis, Comunidades de Usuários ou Sítios com conteúdo Racista, 2006

Fonte: SAFERNET

extinguindo-se a pretensão punitiva do Estado.

Destaca-se ainda a partir do gráfico que apenas dois por cento das

investigações gera o oferecimento de denúncia pelo membro do Ministério

Público Federal aceita pela Justiça, sendo que as denúncias que não são

aceitas significam cerca de um por cento do total, e menos de um por cento

recebe sentença condenatória no primeiro grau de Jurisdição.

Para ter uma visão do crime de prática de racismo através principalmente da

divulgação pela internet que ultrapasse o âmbito de instauração de

investigação pela Polícia Federal, vale a pena conferir os gráficos que indicam

as notícias de crime registradas por usuários da rede mundial de computadores

na página de “denúncias” da organização SAFERNET.

Gráfico 2 – Perfis, Comunidades de Usuários ou sítios com conteúdo RACISTA, 2006

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Gráfico 3 - Perfis, Comunidades de Usuários ou Sítios com conteúdo Racista, 2006

Fonte: SAFERNET

Gráfico 4 – Páginas na internet com conteúdo impróprio (por categoria) denunciadas em 2009.

Fonte: SAFERNET

Gráfico 4 – Páginas na internet com conteúdo impróprio (por categoria)

denunciadas em 2009

Fonte: SAFERNET

Gráfico 3 - Perfis, Comunidades de Usuários ou sítios com conteúdo NEONAZISTA,

Gráfico 4 – Páginas na internet com conteúdo impróprio (por categoria)

denunciadas em 2009

Fonte: SAFERNET

Gráfico 3 - Perfis, Comunidades de Usuários ou sítios com conteúdo NEONAZISTA,

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Brasília, v. 2, n. 1, p. 73-94, jan/jun 2011.Revista Brasileira de Ciências Policiais

Gráfico 5 – Páginas na internet com conteúdo impróprio (por categoria) denunciadas 2º semestre de 2009 e 1º semestre de 2010

Fonte: SAFERNET

O que se observa dos gráficos da SAFERNET é que o número de sítios da internet denunciados a esta organização por apresentarem conteúdo racista ou neonazista, não repetidos, aumentou vertiginosamente a partir de 2006 até 2008. No ano de 2009 os números continuaram altos, mas inferio-res ao período anterior. Já em 2010 (primeiro semestre) os números apre-sentaram uma baixa se comparados tanto ao primeiro quanto ao segundo semestre de 2009.

Da mesma forma como os usuários da internet denunciaram cres-centemente páginas na rede com conteúdo racista ou neonazista nos últimos anos, o número de inquéritos instaurados pela Polícia Federal para apurar a prática do racismo através de meios de comunicação, representada no Gráfi-co 6 (abaixo), entre 1998 e 2010 (até o mês de agosto), também aumentou; apresentando, como nas estatísticas da SAFERNET, uma ligeira queda no primeiro semestre de 2010.

Gráfico 5 – Páginas na internet com conteúdo impróprio (por categoria)

denunciadas 2º semestre de 2009 e 1º semestre de 2010

Fonte: SAFERNET

O que se observa dos gráficos da SAFERNET é que o número de sítios da

internet denunciados a esta organização por apresentarem conteúdo racista ou

neonazista, não repetidos, aumentou vertiginosamente a partir de 2006 até

2008. No ano de 2009 os números continuaram altos, mas inferiores ao

período anterior. Já em 2010 (primeiro semestre) os números apresentaram

uma baixa se comparados tanto ao primeiro quanto ao segundo semestre de

2009.

Da mesma forma como os usuários da internet denunciaram crescentemente

páginas na rede com conteúdo racista ou neonazista nos últimos anos, o

número de inquéritos instaurados pela Polícia Federal para apurar a prática do

racismo através de meios de comunicação, representada no Gráfico 6 (abaixo),

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Brasília, v. 2, n. 1, p. 73-94, jan/jun 2011.

Gráfico 6 – Curva de instauração de inquéritos policiais pela Polícia Federal para apuração do crime de prática de racismo com divulgação por meio de comunicação (art. 20, Lei nº 7.716/89)

Fonte: SINPRO/DPF

Segundo a pesquisadora Yvonne Maggie (da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro), a partir do ano de 2003, durante o Governo Lula, portanto, com a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e outras medidas como a introdução do que-sito “cor” no Censo Escolar, “a engenharia social em que o Estado obriga os cidadãos a se definirem racialmente foi definitivamente introduzida na sociedade brasileira” (MAGGIE, op. cit., p. 906) .

Visualizando a situação descrita cronologicamente, começando com as discussões antes de 2001 para a preparação da apresentação brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, passando pela instituição das primeiras cotas na Universidade Federal do Rio de Janei-ro em 2001, depois por 2003 com as medidas governamentais supracitadas, e chegando até os vestibulares de hoje por todo o Brasil, pode-se dizer que o período após a implantação das cotas nacionalmente vai coincidir tanto com o aumento das denúncias recebidas pela organização SAFERNET a respeito de divulgação de racismo na internet como também com o crescimento do número de inquéritos instaurados (PF) para apurar tal fato.

CONCLUSÃO

Somente observando os números seria leviano concluir que a expres-siva quantidade de arquivamentos e desclassificações signifique diretamente a perpetuação do mito da democracia racial ou a opção pelo caminho me-nos conflituoso da injúria racial, por parte da Polícia Federal e autoridades

entre 1998 e 2010 (até o mês de agosto), também aumentou; apresentando,

como nas estatísticas da SAFERNET, uma ligeira queda no primeiro semestre

de 2010.

Gráfico 6 – Curva de instauração de inquéritos policiais pela Polícia Federal para

apuração do crime de prática de racismo com divulgação por meio de

comunicação (art. 20, Lei nº 7.716/89)

Fonte: SINPRO/DPF

Segundo a pesquisadora Yvonne Maggie (da Universidade Federal do Rio de

Janeiro), a partir do ano de 2003, durante o Governo Lula, portanto, com a

criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(Seppir) e outras medidas como a introdução do quesito “cor” no Censo

Escolar, “a engenharia social em que o Estado obriga os cidadãos a se

definirem racialmente foi definitivamente introduzida na sociedade brasileira” 28.

Visualizando a situação descrita cronologicamente, começando com as

discussões antes de 2001 para a preparação da apresentação brasileira na III

Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, passando

pela instituição das primeiras cotas na Universidade Federal do Rio de Janeiro

em 2001, depois por 2003 com as medidas governamentais supracitadas, e

chegando até os vestibulares de hoje por todo o Brasil, pode-se dizer que o

período após a implantação das cotas nacionalmente vai coincidir tanto com o

aumento das denúncias recebidas pela organização SAFERNET a respeito de

28 MAGGIE, Yvonne. Op.Cit. p.906.

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judiciais no Brasil. Na negativa de ver o crime de racismo nos fatos que se apresentam à análise policial ou judicial, pode-se estar diante de uma situação criminosa em que não foram recolhidas provas suficientes da autoria e mate-rialidade ou em que não houve crime, assim como, no caso da desclassifica-ção, pode-se estar, de fato, diante do crime de menor periculosidade.

Entretanto, também não se ignora que o resultado dos inquéritos instaurados reflete a pouca utilização prática da lei nº 7.716/89, tanto pela Polícia Federal quanto pelos órgãos de persecução criminal judicial; e a pou-ca utilização desta lei, da Lei contra o Preconceito Racial, como já foi dito, não é resultado de um só fator apenas, mas da influência de vários fatores simultaneamente.

Por outro lado, os números da atuação da Polícia Federal perante a prática do racismo no Brasil (divulgação, especialmente, pela internet) fazem parte do quadro geral, da representação do racismo perante a sociedade bra-sileira. Eles estão inseridos neste contexto da perpetuação inconsciente da ideologia da democracia racial e se projetam no interior dessa sociedade per-sonalista (onde o apego ao que é pessoal, em detrimento do que é individual, gera situações de desrespeito à dignidade).

O fato mesmo de a Lei nº 7.716/89 existir e ser pouco utilizada (para a persecução judicial) reflete, por si só, essa sociedade onde as leis existem, às vezes, para não funcionar, a fim de que se perpetue o próprio personalismo (nas brechas) – a idéia do “para os amigos tudo, para os inimigos a lei” (DA-MATTA, op. cit., p. 218).

Com base no pensamento de Roberto DaMatta pode-se dizer que , no Brasil, no caso das leis gerais e da repressão, seguimos um código universa-lizante (leis gerais), igualitárias (sistema burocrático), mas nos casos concre-tos, fazemos uso da moralidade pessoal, das relações, da solidariedade como eixo de ação (DAMATTA, op. cit., p. 218).

Durante a dramatização da situação racista, o policial, como um ci-dadão comum (com as suas referências pessoais) no exercício da função pú-blica (que o obriga a buscar a imparcialidade), vai interpretar a situação que se apresenta (vai, também, observar quem é a vítima e quem é o agressor, o que, numa sociedade personalista, pode fazer diferença entre entender se houve ou não prática racista). Nesse momento pode-se observar uma aplica-ção da teoria dos jogos à primeira tipificação penal, à “decisão” do policial.

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A Teoria dos Jogos, como explicada por Lopes (2000), propõe mo-delos de ações coletivas nas quais se presume que cada agente procura ma-ximizar os benefícios individuais da sua ação, sabendo que todos os outros fazem o mesmo. As leis, regras da sociedade, são o limite para a ação dos “jogadores”. Quando a impunidade vigora, torna-se racional, para cada um, individualmente, tentar escapar dos encargos da ação, ou seja, “jogar” fora das regras para obter melhor resultado individual.

Transportando a Teoria dos Jogos para a prática da atuação do poli-cial diante de uma situação que possa subsumir-se aos tipos penais da Lei nº 7.716/89, pode-se propor que o policial não inicie nem conclua o inquérito apontando uma situação racista porque talvez esta seja a posição mais “vanta-josa” diante dos outros “jogadores” na sociedade.

Além de sua formação pessoal (cheia de referências do ideal da de-mocracia racial), este policial antevê a atuação dos demais “jogadores” na persecução criminal – é possível que o promotor não enxergue a situação como crime de racismo e, pela jurisprudência atual, o Juiz talvez não veja no caso discriminação, mas apenas injúria. Desta forma, neste jogo, a posição mais vantajosa (menos conflituosa) será não levar uma pessoa a responder um inquérito por crime de racismo, desclassificando a situação para injúria, ou concluir pela inexistência de crime, como mostram os números.

Por outro lado, enquanto o resultado dos inquéritos instaurados ex-põe esta tendência a evitar a persecução criminal com base nos crimes da Lei nº 7.716/89, os números da SAFERNET, indicando o aumento de denún-cias de crime de racismo praticado através da internet, bem como a curva ascendente de inquéritos instaurados pela Polícia Federal, no mesmo período (especialmente entre 2001 a 2009) mostram que mais do que nunca se de-nunciou e instaurou investigações para apuração de divulgação de material racista no Brasil.

Mesmo que os números ascendentes tenham, como já foi dito, re-lação com outros fatores (neste caso, por exemplo, com a popularização da internet no Brasil) eles coincidem com o período de aplicação da política de cotas nas universidades públicas no país (primeiro no Rio de Janeiro e depois nos demais estados) e indicam que a sociedade e, por conseqüência, a polícia (neste caso a Federal) estão discutindo e se questionando mais sobre o tema após a implantação deste mecanismo afirmativo.

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Brasília, v. 2, n. 1, p. 73-94, jan/jun 2011.Revista Brasileira de Ciências Policiais

Para se passar da constatação de uma relação apenas, para a iden-tificação propriamente dos fatores, e dentre eles o do ideal da democra-cia racial, que levaram ao arquivamento e desclassificação na Justiça da maioria dos inquéritos instaurados pela Polícia Federal para apuração de racismo, faz-se necessária uma pesquisa mais aprofundada, com a análise de cada uma das investigações ou de um número representativo destas, para a identificação de pontos e de lugares comuns relacionados ao ideal romântico baseado em Freyre.

Da mesma forma, os números crescentes de inquéritos instaurados para apuração de racismo e a aplicação da política de cotas nas universida-des, que neste ensaio somente puderam ser relacionados através da coin-cidência temporal, poderiam, com o estudo individual de casos, ser rela-cionados como causa e conseqüência dentro de um mesmo procedimento, com maior precisão de datas.

Juliana Carleial Mendes Cavaleiro

Delegada de Polícia Federal . Professora da Academia Nacional de Polícia. Es-pecialista em Segurança Pública pela École Nationale Supérieure de la Police

– ENSP (França) e Universidade Lyon III (França)

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Revista Brasileira de Ciências Policiais 93Revista Brasileira de Ciências Policiais

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94 Revista Brasileira de Ciências Policiais

O Ideal da Democracia Racial, as Cotas para Negros nas Universidades...

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LVl

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Revista Brasileira de Ciências Policiais 95ISSN 2178-0013

Revista Brasileira de Ciências Policiais

Brasília, v. 2, n. 1, p. 95-101, jan/jun 2011.

A EPISTEMOLOGIA COMO FUNDAMENTO DA QUALIDADE E EXCELÊNCIA DA ACTUAÇÃO POLICIAL: A ENCRUZILHADA DA PÓS-MODERNIDADE

Manuel Monteiro Guedes Valente Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e

Universidade Autónoma de Lisboa - Portugal

Dud

1. A sociedade pós-moderna encontra-se em um momento de en-contros e desencontros na incessante busca da segurança máxima e da efi-ciente e eficaz produtividade da Polícia como se tudo dela derivasse e nela se aninhasse. A ideia de segurança máxima gerou a propulsão de espaços dotados de elevada tecnologia de segurança física e promoveu, na Europa, espaços dos mais seguros em toda a história da humanidade. Mas, essa se-gurança máxima impôs a inversão do teorema: mais polícia não significa mais segurança, mais tecnologia não significa mais segurança, mais normas jurídicas restritivas de direitos e liberdades fundamentais não significam menos crime e menos criminosos . Acrescem outros elementos para que se alcance a desejada liberdade e segurança.

Esta lógica incessante na construção de espaços mais seguros gerou a necessária e a correspondente angústia da insegurança alimentada pelos de-signados «novos riscos» ou perigos que quebraram a ideia de tranquilidade e segurança – social [educativa, emprego e familiar], económico-financeira, política, interna e externa - da sociedade sólida ou tradicional . Os novos sen-timentos cozinharam e servem todo o dia e todos os dias a ideia de medo e de pânico que ao fenómeno natural acrescentou, como sofrimento, a fragilidade humana e a presumível inadequação das normas jurídicas.

Cabe referir quanto a este ponto que é típico da modernidade apon-tar à regulação normativa as falhas da protecção da comunidade ou à falta de regulação normativa para resolver os problemas, quando existe uma Lei Fundamental sustentada em princípios e valores fundamentais da comunida-

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de que se aplicam no dia-a-dia. Esta situação ou este pensamento tem gerado uma enorme esquizofrenia legislativa quer a nível europeu quer a nível nacio-nal, gerando não segurança jurídica, mas uma enorme insegurança jurídica e um não direito. Como podemos ansiar por uma Polícia dotada de qualidade e excelência em um quadro social e esquizofrénico legislativo como o vivido no final do séc. XX e início do séc. XXI?

Acresce perguntarmo-nos como podemos exigir essa qualidade e excelência na era (fratricida do futuro) do facilitismo educacional ou da negação da excelência escolar. A Polícia é composta por filhos da socieda-de criados ao sabor de um sistema educacional cada vez menos exigente e menos qualificante: hic opus labor est. Não basta deter o diploma para se saber saber, saber pensar, saber fazer e saber interrogar-se, é preciso que esse acto formal esteja recheado de substrato material e dos elementos necessários à construção de uma sociedade e, sequentemente, de uma Po-lícia de qualidade e excelência.

2. O sofrimento da fragilidade humana e da inadequação das nor-mas jurídicas à realidade agravam-se com a amálgama de imprevisibilidade e da incerteza como factores emergentes do fenómeno da globalização ou da globalização desgovernada ou da globalização tecnológica sem estar en-raizada em valores e em princípios humanos. Este sofrimento agrava-se com o processo de «autocoisificação» do ser humano , consequente da ideia de produtividade e de lucro ilimitado, em detrimento do padrão do ser humano como centro da problematização e de afirmação da decisão.

Acresce a estes fenómenos da sociedade líquida dois factores fractá-veis e convergentes que ganharam forma no final do século XX e apresentam-se ao século XXI como elementos de discussão dogmática: de um lado, «um nível de segurança fundado na perfeição de normas e controlos tecnológicos burocráticos» e, por outro, «a difusão e o desafio de perigos historicamen-te novos escapam a todas as redes de Direito, da tecnologia e da política» (BECK, 2009, p. 88).

Os perigos da «era nuclear e química» detêm uma enorme explo-sividade social, económica, política e, consequentemente, criminal. Estes tempos deixam cair a ideia de segurança do território e transporta-nos e prende-nos à ideia de segurança dos fluxos societários. A mudança ocorre: a liberdade localizada despacializa-se ou converte-se em liberdade electrónica e

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polariza-se pelo espaço global e cibernauta. A segurança desterritorializa-se e ganha uma nova dimensão face à nova velocidade e dimensão de liberdade. A acção do Estado – em especial, da Polícia – não pode ficar com os modelos e paradigmas da sociedade sólida ou tradicional, mas essa acção, nesta socieda-de líquida, não pode desenvolver-se sem respeito pelo ser humano.

A mudança de paradigma não pode alguma vez deixar de ter presen-te que toda e qualquer acção estatal recaem sobre uma pessoa e nunca sobre uma «coisa»: caminho aberto à despersonalização da pessoa e ao regresso ao positivismo totalitarista . Desta forma, este novo paradigma da humanidade obriga a defendermos uma polícia que actue segundo os padrões de elevada qualidade e excelência.

3. A qualidade e excelência da polícia – em uma visão tridimensional (ordem e tranquilidade pública, administrativa e judiciária) –, face à muta-bilidade dos fenómenos e aos novos perigos, que eliminam os parâmetros «convencionais de cálculo da segurança» e geram danos cujos limites es-paciais e temporais se perdem e «convertem-se em globais e duradouros» (BECK, 2009, p. 57), na nossa opinião, não se podem esgotar na teoria da previsibilidade do fenómeno e da actuação policial, assim como na previsibi-lidade do teorema resolúvel do fenómeno gerador de insegurança e de dela-ção dos demais direitos do cidadão: v. g., liberdade.

A qualidade e excelência da polícia deve não só aferir-se tendo em conta o espaço e o tempo em que actua, como também deve ser uma aferição tendo como base a sabedoria da actuação: uma sabedoria centrada na ética e na cultura do povo. Sabedoria reflexo da construção do ser ao longo da vida: família, escola, habitat físico e sociocultural.

A criação e a produção contínua de conhecimento científico sobre a actuação policial são dois marcos decisivos para a consciencialização de que só teremos melhor polícia – com níveis de qualidade e excelência próprios de uma instituição do século XXI e adequados à fomentação de qualidade de vida e bem-estar – se a formação dessa polícia não se fundar tão só na aqui-sição de conhecimentos, de competências e capacidades, mas se essa trilogia cumulativa cerebral e motora for acompanhada, melhor, se for embebida pela ideia de sabedoria emergente de uma cultura e de um pensar comunicativo intersubjectivo do ser humano como ser frágil e ser que necessita ou que cria as necessidades de vivência harmoniosa comunitária.

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A certeza e a resposta rápida e adequada ao facto cedem à incerteza e à imprevisibilidade. O dano e o risco conhecido cede ao perigo desconhecido catapultado pelas novas necessidades humanas, cujo pensar do ordenamento jurídico positivo como matemática de actuação denota uma quebra e uma incapacidade de hermenêutica que nos deixa presos às convenções jurídicas designadas por alguns de ultrapassadas.

As perguntas que lançamos à plateia são:

- as normas jurídicas garantísticas e humanistas denotam inabilidade ou inutilidade de interpretação e aplicação aos novos fenómenos?

ou pelo contrário

- os nossos conhecimentos enraizados em uma lógica de persuasão ou de retórica centrada na ideia construtiva não racionalista demonstram que devemos mudar de paradigma e mudar para um pensar conceptual do ser humano e do fenómeno agressor da segurança fundado em um racionalismo ou conhecimento enraizado em uma função epistémica que não abandona os princípios e os valores éticos de uma ciência do homem para o homem?

Pensar epistémico centrado no labor do conhecimento estruturado em passos cognoscíveis e controláveis, na comprovação da fiabilidade e da falibilidade desse conhecimento, na análise da sua relevância e a formulação de inferências logicamente válidas que possam conduzir a conclusões justifi-cadas racionalmente. Um conhecimento como resultado de um «procedi-mento cognoscitivo estruturado e comprovável de maneira intersubjectiva» (TARUFFO, 2009, p. 32-33).

Parece-nos que a resposta à primeira questão é negativa. Não é essa a razão apontada por muitos como a grande responsável pela inutilidade ou não qualidade da acção humana – in casu, da polícia. Parece-nos que o pro-blema ou o cerne da questão está na segunda questão: na inexistência ou na não assumpção da acção humana a um pensar epistémico.

4. Este pensar epistémico sobre a actuação da polícia impõe-se cada vez mais e muito em especial em um momento em que a exclusão social ace-lerada pela exclusão do trabalho – que dá ao cidadão o rótulo de «recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e condenado a perma-necer “economicamente inativo”» (BAUMAN, 2009, p. 23).

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Esta assumpção será tanto maior quanto mais nos consciencializa-mos de que o mundo global governa e gera desgorvenança global com a ci-mentação da teoria do outro: esse outro é, muitas vezes, o elemento policial.

O «outro» não pode ser a razão de uma actuação apetrechada com todos os meios materiais e humanos disponíveis como se «ele» carregasse todo o mal, mas que essa actuação deve ter em conta que incide sobre um ser humano que em um dado momento praticou uma conduta negativa censu-rável pela sociedade e tipificada como ilícita por lei legítima, válida, vigente e efectiva (FERRAJOLI, 2005, p. 357-362).

Uma actuação policial centrada em uma epistemologia científica germinará qualidade e excelência da actuação policial face à encruzilhada da pós-modernidade ou da sociedade pós-industrial. Só uma sabedoria, rebocada com um pensar cultural do nosso povo, com um pensar dogmá-tico do ser humano como titular de direitos e de deveres e com um pensar do sistema de Estado que desejamos e temos, pode dar-nos um padrão científico de qualidade e excelência da actuação da polícia.

Esta sabedoria, que se eleva por entre a ética própria de uma doutri-na, de uma filosofia, de uma ideologia e de uma identidade científica, implica que entronquemos o nosso conhecimento fora da tecnologia não científica e fora da ciência sem princípios e valores humanos.

Esta sabedoria implica que olhemos para as linhas de orientação da polícia, mesmo as que se destinam a aperfeiçoar a qualidade e a ex-celência da actuação policial, como detentoras de um elevado nível de falibilidade, por considerarmos que não existem sempre e absolutas «ra-zões positivas que justifiquem a crença de que uma teoria é verdadeira» (POPPER, 2003, p. 310).

Como Montesquieu escrevera, em O Espírito das Leis, as «matérias da polícia são coisas de cada instante, (…). As acções da polícia são rápidas e elas se exercem sobre coisas que voltam todos os dias» (MONTESQUIEU, 2005, p. 523-524). Este ensinamento implica uma polícia que não centra a sua actuação dentro de um pensar persuasivo ou retórico. Este ensinamento implica uma polícia com uma actuação centrada em um conhecimento epis-témico falibilista que permita uma permanente actualização e a respectiva qualidade e excelência da actuação policial.

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A melhoria da qualidade e excelência da actuação da polícia não será alcançada se optarmos pela teoria verificacionista e demonstrativista cuja testabilidade é afastada e cuja prova ou teoria se apresenta como verdadeira ou altamente provável (POPPER, 2003, p. 310). Esta teoria não se insere no pensar epistémico que se pede à polícia, mas no pensar da persuasão ou da retórica.

5. A pós-modernidade impõe à polícia um pensar e um actuar epistémico dotado de legitimidade jus normativa e sociológica, dentro dos pilares e primados supraconstitucionais e constitucionais de um efectivo Estado de direito social material. Impõe-se um pensar e um actuar segundo as linhas epistemológicas do conhecimento e da fali-bilidade científica. Só este caminho nos leva a melhorar a qualidade e excelência da polícia.

Esta acepção impõe uma formação científica e uma aprendizagem embebida na sabedoria ética e cultural e na sabedoria da tolerância recíproca, segundo padrões de exigibilidade direccionada para a melhoria da actuação policial e, consequentemente, para a melhoria da sociedade e qualidade de vida e bem-estar do ser humano.

Referências

BAUMAN, Zygmunt, A Globalização: As Consequências Humanas, Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

___________, Confiança e Medo na Cidade, Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

___________, Tempos Líquidos, Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

BECK, Ulrich, La Sociedad del Riesgo Global, 3.ª Edição, Madrid: Siglo XXI de España Editores, S. A., 2009.

FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razon. Teoría del garantismo Penal, 7.ª Edição, Madrid: Editorial Trotta, 2005.

HABERMAS, Jürgen, Técnica e Ciência como “Ideologia”, Edições 70, Coimbra, 2006.

MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, 3.ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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POPPER, Karl, Conjecturas e Refutações, Coimbra: Almedina, 2003.

TARUFFO, Michele, Consideraciones sobre prueba y motivación, in: Consideraciones sobre la prueba Judicial, Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2009.

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Investigação Criminal e Inteligência: Qual a Relação?

Célio Jacinto dos SantosCoordenação de Altos Estudos em Segurança Pública

Academia Nacional de Polícia - Brasil.

Dud

Resumo

O presente trabalho analisa o âmbito cognitivo de investigação criminal e inteligência, por in-termédio da análise da evolução histórica e revisão conceitual das disciplinas, o que possibilita estudar as relações existentes entre elas no plano pragmático, lembrando a inegável importância das disciplinas no âmbito das Ciências Policiais e de seu produto final que é segurança pública, as quais assumem maior interesse no monitoramento e repressão à criminalidade organizada, trans-nacional, transfronteiriça e complexa, cujas atividades são expandidas ante a liberação de frontei-ras nacionais e a ampliação das comunicações. Ao tempo que busca identificar a matriz teórica de investigação criminal e inteligência, também problematiza as reflexões trazendo inovações traduzidas pelas investigações especiais e sua confusão categorial com inteligência, chegando à conclusão que a investigação criminal possui fecundidade suficiente e âmbito cognitivo próprio, que a coloca autonomamente em relação à inteligência, entretanto rechaça o pensamento único e isolado na reflexão sobre a temática.

Palavras-Chave: Inteligência. Investigação Criminal. Matriz Teórica. Investigações Cri-minais especiais.

Introdução

O presente trabalho busca refletir sobre as relações entre investiga-ção criminal e informação, ante a riqueza conceitual e a emergência dos temas na sociedade contemporânea, marcada pela liquidez do tempo e pelos riscos inerentes a complexidade das relações sociais, culturais, econômicas e políti-cas que levam o investigador, o gestor, e as lideranças da sociedade organizada a buscarem explicações mais adequadas para este cenário instável.

A inteligência tem sido objeto de estudo já há muito tempo por vá-rios ramos dos saberes, com destaque para a Ciência Militar, Ciência Policial, Ciência Política, Relações Internacionais, e agora mais recente a Ciência da Administração e a robusta Ciência da Informação, com a expansão de seus

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conceitos e categorias para a área privada e comercial, que nelas encontram subsídios para enfrentamento da competitividade entre as organizações.

Para nossa investigação buscaremos revisar a evolução histórica de inteligência e de investigação criminal, para em seguida analisar algumas de-finições sobre as duas disciplinas, centrando nossos esforços na produção dos investigadores que abordaram o tema no âmbito da segurança externa, para na sequência aprofundarmos nossos estudos da inteligência na área da segu-rança pública, designadamente na investigação criminal, para a partir daí de-senvolvermos a correlação entre a investigação criminal e inteligência, apon-tando pontos comuns e eventuais pontos divergentes, pois embora ambos visem fornecer conhecimentos estratégicos para formar o processo decisório de um gestor, o objeto e os pressupostos da inteligência divergem em cada área, aflorando especificidades que podem, até mesmo, refletir na delimita-ção conceitual da matéria e na matriz teórica.

No plano pragmático é possível afirmar que a inteligência e a inves-tigação criminal possuem uma zona de convergência muito grande, podendo haver entendimento que esta está compreendida por aquela, havendo então uma confluência de interesses epistemológicos, mas no plano semântico, ou conceitual, poderá haver entendimento que as matrizes teóricas de ambas são distintas, devido a fatores históricos e culturais, dentre eles podemos citar as finalidades a que se prestam, uma para subsidiar o investigador criminal e outra o gestor político/administrativo da organização estatal. Dessa maneira torna-se necessário buscar respondas às seguintes perguntas:

Existe um campo epistemológico sobre inteligência, no plano 1. pragmático e semântico, autônomo e completo em sua massa de conhecimento?

Há alguma relação entre investigação criminal e inteligência?2.

A investigação criminal possui âmbito cognitivo próprio que 3. engloba a inteligência?

Encontradas as respostas para estas perguntas, o investigador crimi-nal e o gestor público terão elementos para lidar com o tema inteligência e investigação criminal sem incorrer em equívocos, e para atentar para me-todologias e técnicas próprias das respectivas áreas do conhecimento e da pragmática humana.

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Para efeitos de nosso trabalho consideramos matriz teórica ou objeto teórico como o “conjunto conceptual construído com o fim de se dar conta de uma multiplicidade de objectos reais que, por hipótese, essa ciência tem em vista analisar”, conforme ensina Almeida e Pinto (1990, p. 13), levando em conta que a matriz teórica evolui sempre “em virtude do surgimento de problemas, contradições ou anomalias que solicitam a criação de novos con-ceitos e relações entre conceitos, aptos a indicar e a resolver esses problemas.” (ALMEIDA e PINTO, 1990, p. 15).

2. Inteligência e Investigação Criminal: Elementos His-tóricos

2.1. Evolução Histórica da Inteligência

Ao se buscar a referência histórica remota da inteligência depara-se com uma confusão entre a atividade de espionagem e de inteligência, mas que evoluiu no Estado moderno e pós-moderno com a agregação de novos conceitos e funções até chegar ao atual estágio da sociedade complexa e in-formacional, quando então apresenta desenvolvimento bem estruturado que abrange atividades estatais e não estatais. Ante o objeto restrito deste traba-lho apresentaremos duas referências históricas : uma antiga e outras já da era moderna, quando a atividade foi estruturada.

A inteligência, assim como a investigação, possui identidade históri-ca em tempos remotos, desde o século IV A.C., na Índia, o Primeiro-Ministro do Imperador Chandragupta Maurya escreveu a obra Arthasastra, conside-rada por Casillas como pioneira na Ciência Política e Economia, chegando a merecer comentários de Max Weber, em “O Político e o Científico”, dando conta que os ensinamentos de Maquiavel chegam a ser inocentes perante os contido em Arthasastra, devido aos procedimentos tenebrosos que aquela conferia na área política, administrativa, econômica e social, principalmente no tocante ao sistema de justiça do governo hindu daquela época (2009, p. 62). Segundo tal autor, eram empregados espiões em toda estrutura social para garantir a supremacia do governante. Eles eram distribuídos e organiza-dos em todas as estruturas do Estado e da sociedade civil, e tinham como in-cumbência buscar informações de interesse do aparato estatal, inclusive, para identificar criminosos e para permitir seu castigo, com emprego maciço da tortura e da violência, tudo baseado na Dandanati, a lei do castigo ou ciência

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de governo (2009, p. 62).

Anitua, na obra “História do Pensamento Criminológico” (2008, p. 201ss) ao discorrer sobre o surgimento da instituição policial durante a Revolução Industrial na Europa, situa também o aparecimento de estrutu-ras governamentais que passaram a utilizar técnicas racionais de identifi-cação e acúmulo de informações sobre a criminalidade, mas também sobre trabalhadores e integrantes de movimentos políticos gerados pela eferves-cência econômica, social e política que a Inglaterra, a França e outros paí-ses enfrentavam, tanto no período que antecedeu quanto o que sucedeu a Revolução Francesa.

O desenvolvimento do modelo disciplinar de controle social ori-ginou ou propiciou o refinamento de estruturas burocráticas tal como a fábrica, o hospital, a escola, o quartel, a penitenciária, o manicômio e ou-tras organizações totais para exame e disciplinamento de corpos, entre-tanto a massificação deste modelo ocorreu com a criação da polícia como uma organização burocrática incumbida do controle e da prevenção de crimes, conforme as pesquisas oriundas dos pensamentos criminológi-cos e sociológicos, que se baseiam principalmente nos estudos de Michel Foucault (2002).

Logo após a Revolução Francesa, em 1798, surgiu na França a Gendarmerie com forte atuação repressiva, disciplinar e burocrática, além do emprego do sistema de delação e espionagem dos vagabundos e desordeiros, ou seja, aqueles que eram diferentes, o “outro”, mas particu-larmente “o novo proletário urbano e suas possibilidades de greves e sa-botagens”, como escreve Anitua (2008, p. 213). Sob inspiração de Joseph Fouché, ministro de Bonaparte, a polícia francesa empregava sistema de coleta e processamento de dados, catalogando as pessoas sujeitas às suas ações de controle, com metodologia que remete à atual função exercida por órgãos de inteligência.

O lendário Eugène-Francois Vidocq (1775-1857), chefe da Sûre-té, marcou a história policial francesa ao chefiar o corpo de delatores, e por empregar métodos de descoberta de delitos através da dedução, da mentira, do disfarce e da espionagem, chegando a inspirar as novelas po-liciais muito bem exploradas por Arthur Conan Doyle, Edgar Allan Poe e outros (ANITUA, 2008, p. 212).

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Embora haja indicativos do emprego da inteligência em tempos remotos, como descrito acima, Marco Cepik (2003, p. 13-14) defende que a organização profissional e permanente da atividade ocorreu no Estado moderno na Europa, vindo a se expandir após a Segunda Guerra e com a Guerra Fria, e conquistando sua institucionalização somente no século XX. Referido autor confirma que o emprego de espiões “re-monta a antiguidade, em áreas tão dispersas como China, o Oriente Próximo e o Império Romano”.

A repressão aos dissidentes políticos é um fenômeno marcante na história da inteligência de Estado, e o surgimento da terceira seção do Departamento de Segurança do governo imperial russo, segundo Cepik, abriu espaço para posteriormente se criar a Okhranda, a unida-de especializada na busca de informações e perseguição aos adversários políticos, inclusive com independência dos ministérios do Interior e do Exterior, esse modelo também foi adotado por outros países visando o controle de subversivos e inimigos do Estado, tal como a Sûreté Général do período napoleônico.

2.2 Antecedentes Históricos da Organização Policial

Há diversas acepções para o vocábulo polícia, mas interessa para este trabalho, o ligado aos corpos ou instituições policiais, e outro relacionado à regulação do comportamento humano e assuntos públicos através de siste-mas normativos (ALVAREZ, 2009, p. 21).

O magistrado brasileiro Enéas Galvão, em 1896, ao analisar a or-ganização judicial brasileira através de estudo comparado, assinalou que a organização judiciária possui origem remota nas funções políticas e judi-ciárias acumuladas pelo soberano, tendo havido na Grécia e Roma antiga os conselhos e assembleias que cuidavam de questões políticas tal como iniciar uma guerra ou celebrar a paz, como também discutiam questões judiciais, passando assim a organização social a contar com a estrutura militar para lidar com questões de quebra da ordem social externa e con-vulsões internas, e também com outra estrutura judiciária para cuidar dos inimigos internos representados pelos violadores da lei criminal, chegan-do referido autor a constatar uma confusão entre as funções estatais de gestão política e judiciária (1896, p. 96).

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É nesta atividade militar conjugada com a questão criminal que tam-bém se nota uma confusão entre elas, confirmada atualmente pela presença de doutrina militar em algumas estruturas policiais que adotam modelo onde atuam como segurança interna e/ou como órgão de segurança externa, com controle e administração nas mãos de um poder centralizado.

Em passado histórico mais remoto de diversas civilizações, já havia traços bem definidos sobre mecanismos de solução de conflitos e de imposi-ção de castigos, e para isso havia formas e meios estruturados para conheci-mento e definição do evento criminal.

Já nos albores da civilização os mesopotâmios criaram os primeiros códigos escritos, e no século XVIII A.C. o rei Hamurabi consolidou as leis existentes no Código de Hamurabi, onde prescrevia punição para determina-dos crimes por intermédio de procedimento ainda arcaico.

O Código de Manu apareceu por volta do II A.C, apresentou influ-ência religiosa na organização social vigente naquela época entre os hindus, mas trazia em seus Livros VIII e IX a regulação do sistema punitivo e da organização judiciária.

Almeida Junior em seu Processo Criminal Brazileiro desenvolveu levantamento histórico sobre o processo criminal nos sistemas antigos (1920, vol. I, sic), constituindo rica fonte para estudo dos procedimentos da polícia, os quais são apontados como a exteriorização do poder político em dado mo-mento histórico, entretanto fixaremos nossas investigações nos modelos de procedimentos e estruturas que manejavam a prevenção e o conhecimento dos fatos criminais sem aprofundar nos institutos tipicamente processuais. Da mesma maneira são os estudos realizados por Julio Maier na obra Derecho Procesal Penal - fundamentos.

Segundo Almeida Junior, no Egito antigo havia juízes provinciais que contavam com apoio de funcionários policiais na repressão dos crimes e no auxilio a instrução (1920, p. 12-13).

As atribuições dos pretores foram absorvidas pelos praefectus urbis que constituíam superintendente geral da administração e da polícia de Roma, ficando o praefectus vigilum com a chefia da polícia preventiva e repressiva dos incêndios, escravos foragidos, furtos, roubos, vagabundos, ladrões habi-tuais, recomendando-se-lhes a polícia noturna (ALMEIDA JUNIOR, 1920,

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p. 39), e ainda, vinculados aos praefectus urbis e vigilum existiam os agentes policiais denominados irenarcha, os curiosi e os stationari responsáveis pela investigação dos crimes e realização de diligências instrutórias, as quais cons-tituíam os casos criminais julgados pelo praefectus ou juiz competente.

Almeida Junior conclui que com o fim das questiones perpetua e da acusação popular, surgiram procedimentos ex-ofícios executados por funcionários do império, da mesma forma foi necessário o desenvolvi-mento de uma polícia oficial centralizada, que aos poucos foi acumulan-do funções judiciárias (1920, p. 48).

Na época do feudalismo o senhor feudal concentrava todos os poderes em suas mãos, inclusive o poder de polícia e o julgamento das infrações criminais. Neste período surgiram as primeiras universidades quando houve resgate do Código Justiniano, com fundamentos centra-lizadores e totalitários.

Com o desenho institucional fornecido pelos romanos houve ex-pansão desta estrutura jurídico-político para os demais territórios europeus e para suas colônias. No século XVII a polícia operava junto com a Justiça, na França. Na Alemanha preponderou a acepção de polícia como bom estado da coisa comum, conforme escreveu José Cretella Júnior (1999, p. 27), cul-minando no século XX na acepção administrativista sintetizada por Guido Zanobini, em 1950, como “atividade da Administração pública, dirigida a concretizar, na esfera administrativa e independentemente da sanção penal, as limitações que são impostas pela lei à liberdade dos particulares no inte-resse superior da conservação da ordem, da segurança geral, da paz social e de qualquer outro bem tutelado pelas disposições penais” (CRETELLA JU-NIOR, 1999, p. 33).

Max Weber influenciou a Ciência Política com suas ideias sobre o uso legítimo da violência em determinado território, entretanto preferimos trabalhar com o conceito de uso legítimo da força, já que a polícia também pode ser considerada fundamental para a qualidade da democracia, con-forme defende Diego Palacios Cerezales, que vê a atuação policial como resposta a um "mandato legítimo emanado de la comunidad, a menudo pro-blemática por el caráter complejo y fragmentado de las comunidades huma-nas" (2009, p.138-140).

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Nesta pequena revisão podemos notar o caráter jurídico-político da atuação policial no período que antecede a formação dos Estados Nacionais e com a Revolução Industrial. Ela estava sob o mandato de um soberano, rei, príncipe ou imperador, mas contemplava sua delegação para seus servidores, contudo, ao longo do tempo com o desenvolvimento da organização social, política e da forma de produção, as estruturas policiais vão se aperfeiçoando e constituindo corpos especializados, caminhando de uma estrutura inicial-mente privada para outra pública inserida na estrutura estatal.

No período anterior a tripartição dos poderes e ao constitucionalis-mo idealizado por Montesquieu, não era bem definida a dinâmica de enfren-tamento às infrações penais, às vezes o soberano através de seus prepostos se incumbiam dos serviços policiais, judiciais e administrativos, em outros momentos as estruturas administrativas privadas ou públicas acumulavam as funções judiciais e policiais, contudo, nos séculos XVIII e XIX as atividades se especializaram na medida em que os conhecimentos científicos se expan-diam e se especializavam.

2.3 Os Saberes Policiais Especializados na História dos Pen-samentos Criminológicos

Logo após a Revolução Francesa, em 1798, surgiu na França a Gen-darmerie com forte atuação repressiva, disciplinar e burocrática, além do emprego do sistema de delação e espionagem dos vagabundos e desordeiros, ou seja, aqueles que eram diferentes, mas particularmente “o novo proletário urbano e suas possibilidades de greves e sabotagens”, como escreve Anitua (2008, p. 213). Para este autor na Argentina estavam incluídos os índios, os vagos, os “malentretenidos” (2009, p. 51) e em toda América Latina os mes-tiços que ameaçavam a raça superior.

O corpo de segurança inglês foi inspirado no pensamento de Patrick Colquhoun, em suas obras Tratado sobre a polícia de Londres, em 1796, e Tratado sobre o Comércio e a Polícia do Tâmisa, chegando este escocês a redigir a lei que organizou a polícia de Londres, contando inclusive com a ajuda de Bentham, segundo apurou Anitua (2008, p. 215), até que em 1829 o ministro do Interior Robert Peel reuniu os corpos de polícias existentes e criou a Scotland Yard, proporcionando a consolidação deste sistema policial tipicamente inglês com caráter civil e de apoio ao cidadão. Este modelo tam-

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bém veio a influenciar a criação de corpos policiais em todos continentes, da mesma forma do modelo francês que adotou uma linha mais militarizada.

O modelo policial burocrático também foi adotado na Irlanda em 1823, e em 1844, na Espanha criou-se a Guarda Civil Espanhola que perdura até hoje.

Na Europa, concomitante à origem jurídico-político da polícia tam-bém foram surgindo organizações sociais associadas ao sistema criminal, as quais forneciam conhecimentos e tecnologias para otimização sistêmica, com destaque para a penologia, a estatística, a datiloscopia, a criminalística, a psicologia criminal, a medicina legal, política criminal etc.

Desperta interesse para nossas reflexões a criminalística como saber policial, tida por seu fundador Hans Gross como o conjunto de teorias que se referem ao esclarecimento dos casos criminais, em seu Manual de Juiz de Instrução, de 1893, no mesmo sentido segue Antón Barberá e Turégano ao defender a criminalística como sinônimo de investigação criminal, em senti-do amplo, chegando a colocá-la como “parte da criminologia que se ocupa de los métodos y modos prácticos de dilucidar las circunstancias de la perpetra-ción de los delitos e individualizar a los culpados” (1998, p. 23). Hans Gross procurou sistematizar a investigação criminal defendendo que ela compre-ende os métodos práticos de investigação e a fenomenologia criminal, sendo que esta é a teoria da técnica de execução dos crimes ou dos fenômenos de realização dos atos criminosos. Dentre vários avanços na área de investigação criminal, ele fundou o Instituto Universitário de Criminalística, na Universi-dade Gratz (ZBINDEN, 1957, p. 49).

O francês Edmon Locard desenvolveu técnicas de investigação cientí-fica e chegou a criar o primeiro laboratório de polícia, em 1910, em Lyon. Com isso iniciou-se pesquisas na área da datiloscopia, toxicologia, balística etc.

A política criminal também é fruto da efervescência social e política da sociedade que teve sua origem na Revolução Industrial e nos movimentos revolucionários seguintes. Ela surgiu inicialmente nos escritos de Feuerbach, em 1803, quando era tomada como sinônimo de teoria e prática do sistema penal, chegando-se a uma concepção de “conjunto de procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal” (DEMAS MARTY, 2004, p. 3).

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3.Conceitos de Inteligência e Investigação Criminal

Em revisão ao pensamento de alguns autores depreende-se com diversas abordagens que buscam definir e delimitar a matriz teórica de inteligência, as quais variam de acordo com o momento histórico e as es-pecificidades de algumas atividades que conferem visões divergentes aos respectivos ramos do saber.

Conhecer a definição e o objeto de inteligência permitirá tam-bém a delimitação da relação convergente ou divergente entre ela e in-vestigação criminal, ou seja, é necessário conhecer as linhas teóricas para nos posicionarmos no problema colocado neste trabalho, ante a riqueza semântica e a polissemia do vocábulo inteligência e investigação criminal. Para nossos estudos inteligência corresponde a informações, ou intelli-gence na língua inglesa.

3.1 Conceitos de Inteligência

Começamos o tema trazendo a célebre definição de Kent, que des-dobrou informações em três aspectos: a) como produto: é a representação do resultado do processo de produção de conhecimento, atendendo a demanda do tomador de decisão, tornando o resultado obtido por meio do processo de inteligência, um produto de inteligência; b) como organização: apresenta as estruturas funcionais, que tem como missão crítica a obtenção de infor-mações e a produção de conhecimento de inteligência, podendo ser caracte-rizados como os operadores da inteligência; c) como atividade ou processo: refere-se aos caminhos pelos quais certos tipos de informação são requeridos, coletados, obtidos, analisados e difundidos. É a indicação dos procedimen-tos para a obtenção de determinados dados, em especial aqueles protegidos (MORESI, 2010, p. 5; SILVA JUNIOR, 2011, p. 26).

Na vertente anglo-saxônica encontramos em Antunes (2002, p. 17-21) definições claras e sintéticas representativas do pensamento daquela escola:

Sims [1995] afirma que seria toda informação coletada, organiza-da e analisada para atender aos tomadores de decisões em suas ati-vidades. Shulsky [1991] restringe a área de atuação da Inteligência e a vincula necessariamente à competitividade entre nações, ao se-gredo e ao formato das organizações. Em suas palavras, a atividade

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é definida como “coleção e análise de informações relevantes para a formulação e implementação da política de segurança nacional”. Já Herman [1991] define Inteligência como tudo aquilo que os órgãos governamentais oficiais de Inteligência produzem, restringindo-se a esfera estatal. (ANTUNES, 2002, p. 17-21)

O general português Pedro Cardoso, em seu clássico “As Infor-mações em Portugal” (2004, p. 150), não chegou a definir informações, mas destaca a importância da mesma para a ação política de uma nação, e esclarece que “(.....) A actividade de informações envolve um proces-so complexo de pesquisa, avaliação, análise, integração e interpretação de informações. As informações para serem úteis devem ser adequadas, oportunas e bastante precisas.”

Antônio de Jesus Bispo (2004, p. 78) ao analisar a diferença entre informação e informações considera que estas “consistem na aná-lise da informação no sentido de obtenção de conhecimento (........) tra-balho efectuado sobre os dados para lhes dar sentido no quadro dos propósitos a quem ele serve, seja o Estado, uma unidade militar ou uma empresa”, e sintetiza: “é a compreensão da informação relacionada, or-ganizada e contextualizada”.

Cepik, autor brasileiro que se dedica à pesquisa sobre o tema, define inteligência como “toda informação coletada, organizada ou analisada para atender as demandas de um tomador de decisões qual-quer”, numa acepção ampla que poderá atingir ramos do saber ou ativi-dades variadas, desde à clássica inteligência de Estado até inteligência na área da Administração e dos Sistemas Informacionais. Numa acepção restrita “é a coleta de informações sem o consentimento, a cooperação ou mesmo o conhecimento por parte dos alvos da ação (2003, p. 28)”. Apresenta nuances de segredo, e devido à inolvidável presença dos ca-racteres conflito e do elemento Estado numa das pontas deste conflito, neste sentido o autor complementa esclarecendo que:

inteligência lida com o estudo do ‘outro’ e procura elucidar situa-ções nas quais as informações mais relevantes são potencialmente manipuladas ou escondidas, em que há um esforço organizado por parte de um adversário para desinformar, tornar turvo o entendimento e negar o conhecimento. Os chamados serviços de inteligência de segurança (security intelligence) têm muitos alvos puramente domésticos, mas mesmo estes compartilham a condi-

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ção de “outro” aos olhos do arcabouço constitucional e da ordem po-lítica constituída (CEPIK, 2003, p. 103).

Mingardi (2007, p. 52-53) sintetiza a atividade de inteligência cri-minal como uma atividade especializada, com técnicas e métodos próprios, considerada uma “prima pobre” da inteligência de Estado e uma “prima-distante” da inteligência militar, que tem como foco obter conhecimentos para influir no processo decisório na prevenção e repressão criminal, havendo ainda no âmbito da inteligência criminal, ou da inteligência de segurança, desdobramentos nas áreas assinaladas: a prevenção mais ligada à segurança interna e na investigação criminal que visa conhecer os atos criminosos, prin-cipalmente da criminalidade organizada, e tem a finalidade de possibilitar a formação de provas para instruir um procedimento que será apreciado pelo Poder Judiciário.

Nas definições apresentadas podemos concluir com Buzanelli (2004), as seguintes notas, que seriam os fundamentos filosóficos da in-teligência, segundo referido autor: “1) ser instrumento fundamental para a tomada de decisões em quaisquer níveis; 2) ser de natureza comple-mentar; 3) ser meio e não fim; 4) ter acesso direto à chefia a qual cumpre assessorar; 5) adequar-se a uma política e servir-se de instrumento à estra-tégica dela decorrente.”

Brito (2010, p. 149), em sua tese de doutoramento na Universi-dade de Brasília, sintetiza a função da inteligência policial, defendendo que deva atuar na “prevenção, obstrução, identificação e neutralização das ações criminosas, com vistas à investigação policial e ao fornecimento de subsídios ao Poder Judiciário e ao Ministério Público nos processos judiciais.” Tal autor atribui, somente, caráter instrumental a atividade de inteligência policial numa perspectiva jurídico-processual de organização estatal. Este autor reconhece o caráter consultivo da inteligência policial para, “elaboração e adoção de medidas ou políticas de prevenção e com-bate à criminalidade.” (BRITO, 2010, p. 152).

Aflora de maneira muito objetiva que o desenvolvimento das defini-ções refere a processos históricos ligados a movimentos bélicos ou movimen-tos subversivos que dizem respeito à segurança do Estado e à política inter-nacional, carentes de formulações que reflitam conflitos sociais e interesses estatais ligados a segurança interna ou segurança pública. Em suma, pode-se afirmar que a construção teórica de inteligência no âmbito da segurança pú-

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blica ou da investigação criminal necessita uma redefinição, ao invés de uma acomodação, sob pena de trazer efeitos indesejáveis, dos quais destacamos a variante inimigo das inteligências clássicas ao passo que na investigação cri-minal, e por que não dizer na investigação policial, o objeto da atuação estatal é o cidadão, o que muda radicalmente a matriz teórica e o paradigma de ação, que compreendem elementos éticos tais como verdade, justiça, dignidade, verdade, lealdade, direitos humanos etc.

3.2 Conceitos de Investigação Criminal

Da mesma forma que inteligência a investigação criminal também possui amplitude semântica e variado sentido polissêmico, como veremos a seguir, mas no plano epistemológico ou da Teoria do Conhecimento há o sentido de ação que compreende movimentos intencionais ou fatos ou eventos do mundo observável, tal com procurar um livro na prateleira. Também há o sentido que compreende operações mentais, tais como juí-zos, raciocínio ou pensamento, é a versão intelectualista, que procura uma resposta para uma pergunta (DUTRA, 2005, p. 167).

Para o filósofo pragmatista John Dewey (1938, p. 58) investigar consiste na “transformação dirigida ou controlada de uma situação in-determinada em uma situação de tal modo determinada nas distinções e relações que a constituem, que converta os elementos da situação original em um todo unificado.”

Eliomar da Silva Pereira após analisar a investigação criminal com atributos de uma investigação científica, a define como:

atividade pragmática e zetética por essência, é uma pesquisa, ou conjunto de pesquisas, administradas estrategicamente, que, ten-do por base critérios de verdade e método limitados juridicamente por direitos e garantias fundamentais, está dirigida a obter pro-vas acerca da existência de um crime, bem como indícios de sua autoria, tendo por fim justificar um processo penal, ou a sua não instauração, se for o caso, tudo instrumentalizado sob uma forma jurídica estabelecida por lei.

Agora, com roupagem jurídica Valente a define como:

procura de indícios e vestígios que indiquem e expliquem e nos fa-çam compreender quem, como, quando, onde e porquê foi cometido

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determinado crime”, acrescenta que isso ocorre no encontro de prova conseguida e contraprovas aceites, mediante processo “padronizado e sistemático segundo as regras jurídicas que travem o poder de quem dele pode abusar.” É uma abordagem metodológica com realce nos limites ou regras contra-epistemológicas do método da investigação criminal, além do caráter humanista que permeia todo pensamento do autor, que considera a investigação criminal como instrumento para a “realização do direito nas prossecuções de defesa da socieda-de, do colectivo, que tem o direito de viver em segurança e em uma ordem social e internacional que lhe garanta a efectivação plena dos seus direitos e liberdades (.....) (VALENTE, 2010, p. 38).

Concepção similar adota Pitombo (s. d., p. 7) ao definir investiga-ção como a “pesquisa sistemática e sequente do objeto, utilizando os meios e apoios técnicos disponíveis”, complementa ao defender que “quem inves-tiga só rastreia, quem se instrui busca conhecer e tornar conhecido o fato e suas circunstâncias; bem assim a autoria, co-autoria, ou a participação.” (PI-TOMBO, s. d., p. 5).

Gomes Dias ensina de maneira simples que a “investigação criminal descobre, recolhe, conserva, examina e interpreta as provas reais. Localiza, contacta e apresenta as provas pessoais” (GOMES DIAS, 1992, p. 65). Nou-tra passagem Gomes Dias acresce que a “investigação criminal utiliza méto-dos adequados (táctica de investigação) e processos apropriados de actuação técnica (técnica de investigação) cada vez mais especializados” (GOMES DIAS, 1992, p. 64).

Na acepção material, José Braz esclarece que investigação criminal “constitui uma área do conhecimento especializado que tem por objecto de análise o crime e o criminoso e, por objetivo, a descoberta e reconstituição da verdade material de factos penalmente relevantes e a demonstração da sua autoria.” (BRAZ, 2010, p. 19).

Podemos notar nas definições acima que trazem elementos se-melhantes ao vistos em inteligência, com acentuado cunho operacio-nal e metodológico que visam transformar parte de uma realidade em conhecimento útil para uma finalidade social, como sói acontecer em muitas ciências sociais.

4. Relação entre Inteligência e Investigação Criminal

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Com a análise da sociogénese de investigação criminal e inteligên-cia, bem como vencidas algumas questões conceituais sobre as matérias, nos encontramos em condições de refletir sobre a relação entre elas, avançando para o delineamento panorâmico sobre a temática, apontando as imprecisões categoriais existentes entre alguns operadores investigativos policiais e alguns pensadores da matéria.

4.1 Análise dos pontos convergentes e divergentes entre in-teligência e investigação criminal

Como bem lembrado por Antunes, no século XX houve movimen-to gigantesco no sentido de racionalização e complexificação da organiza-ção estatal (2002, p. 39-40), como reflexo do mesmo fenômeno no âmbito da sociedade civil, entretanto este processo todo foi iniciado no século XIX com o surgimento de lógicas científicas que se irradiaram para todas as áreas do saber, até que no século XX novas abordagens e utilidades foram surgin-do com os antigos saberes, conduzindo a autonomização de disciplinas e de atividades humanas. Neste sentido seguiu a velha inteligência clássica para a inteligência policial, para as informações na área da Administração, nos siste-mas informatizados, na Ciência Policial etc.

As definições revisadas acima fornecem indicativos que a investiga-ção criminal está intimamente ligada a fatos penais do passado, com relevân-cia penal, que são submetidos a processo de descoberta, análise e conclusão, de ordem a ser apreciado pelo Poder Judiciário. Está acepção é muito marcan-te entre os pesquisadores em inteligência como entre alguns da investigação criminal.

Algumas noções estão presentes em ambas as disciplinas, com des-taque para: a) emprego de métodos e técnicas para busca, colega e processa-mento de informações; b) a formação de conhecimento para emprego por um decisor, na inteligência clássica os chefes de órgãos do Executivo, os Co-mandantes Militares, os dirigentes de órgãos policiais ou administrativos, e na investigação criminal o dirigente da mesma, no Brasil o Delegado de Polí-cia e eventualmente e excepcionalmente o integrante do parquet.

Por outro lado os diversos autores apontam algumas variáveis diver-gentes entre ambas. Principiamos pelas principiológicas e metodológicas. Na investigação criminal há diversas limitações na busca e coleta de dados

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do mundo fenomênico, de ordem política e ética, são as denominadas regras contra-epistemológicas ou limitações à busca da verdade, geralmente defini-das no Código de Processo Penal no âmbito do Direito Probatório e até mes-mo nas Constituição tal como diversas passagens do artigo 5º da Constitui-ção da República Federativa do Brasil, tal como os seguintes incisos: II, III, X, XI, XII, XXXV, XXXVII, XXXIX, XLI, XLIX, LIII, LIV, LVI, LVIII, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVII etc., as quais constituem ga-rantias que se baseiam na dignidade da pessoa humana, no devido processo legal, na legalidade, no respeito aos direito humanos etc. Em contrapartida na inteligência prevalece maior flexibilidade na fase de busca e coleta de dados, não há preocupação com preceitos éticos ou de princípios de leal-dade e transparência, apesar de encontrar alguns limites em suas ações tal como a proibição do emprego de tortura e de meios invasivos proibidos em normas jurídicas.

A investigação criminal está jungida também a formas e métodos rigorosos, não encontráveis na inteligência, que se circunscrevem apenas as formas e métodos do ciclo de inteligência, de caráter não normativo. Há que se assinalar que na investigação criminal prevalece o princípio de liberdade probatória, a qual para nosso estudo se traduz em liberdade investigatória, onde o investigador pode usar de todos expedientes para acessar a fonte de prova ou apoderar-se do conhecimento sobre elementos objetivos (físicos) ou subjetivos (psíquicos) de uma ação criminosa, desde que não haja norma proibitiva e não ofenda regras e princípios orientadores da matéria, caben-do ao processo penal codificado ou constitucionalizado, além das normas processuais dispersas, apenas a indicação de alguns dos meios e formas pro-batórias, e lembrando Zbinden (1957, p. 19) a investigação criminal ou cri-minalística “oferece-lhe um número infinito de possibilidades para averigua-ção dos factos e convicção do criminoso”, que conduz o investigador a uma operação heurística constante.

Há alguns autores, tal com Wright (2002, p. 67 e 71), Fernandes (2006, p. 18), Josemaria (2006, p. 57), Silva (2008, p. 345), a defender que a investigação criminal é reativa e a inteligência é proativas, estas antecipam ao crime e aquela depende da ocorrência do crime. Em sentido semelhante também encontramos autores que veem na investigação criminal apenas a finalidade de instrumentalizar um processo penal, ao passo que a inteligência é mais flexível no tocante à finalidade de seu produto. Vejamos o pensamento de Dantas e Gonçalves (s. d., p. 5):

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É bastante sutil a diferenciação entre a atividade de Inteligência e a de investigação policial. Ambas lidam, muitas vezes, com os mes-mos objetos (crime, criminosos e questões conexas), com seus agentes atuando lado-a-lado. Enquanto a investigação policial tem como propósito direto instrumentar a persecução penal, a Inteligência Policial é um suporte básico para a execução das atividades de segu-rança pública, em seu esforço investigativo inclusive. A metodologia (de abordagem geral e de procedimentos específicos) da Inteligência Policial está essencialmente identificada com a da Inteligência de Estado.(DANTAS E GONÇALVES, s. d., p. 5).

Outro ponto divergente é o apontado por Mingardi (2006, p. 47-48) no que toca ao tempo para obtenção de conhecimentos. Este autor defende que na investigação criminal a busca e coleta de dados requerem resultados mais rápidos, e na inteligência os resultados são mais longos e parcimoniosos.

Como podemos notar ao longo deste trabalho, há quem defenda mesma matriz cognitiva remota entre investigação criminal e a inteligência, mas ao longo do tempo alguns métodos e técnicas passaram a ser usadas pela polícia de maneira autônoma, como foi demonstrado nos estudos su-pra, contudo, torna-se necessário uma pesquisa mais profunda para cons-tatar a veracidade daquela hipótese, pois a investigação pode ter origem própria e específica. Senão vejamos.

Ginzburg na obra Mitos, Emblemas, Sinais apresenta magistral pesquisa intitulada Sinais: raízes de um paradigma indiciário (1989, p. 143-180), onde faz levantamento histórico do paradigma indiciário, que remon-ta ao período do homem primitivo que sobrevivia como caçador, quando aprendeu as ler os sinais deixados pela presa, quando também foi o primeiro a narrar uma história, e com o passar do tempo chegou-se aos estudos de Giovani Morelli, em 1874 a 1876, quando surgiram artigos sobre o méto-do para descobrir cópias de uma pintura, o qual se concentra na observação dos detalhes que o artista desconsidera e são desapercebidos pelo copista, tais como lóbulos das orelhas, unhas, formas dos dedos das mãos e dos pés etc. É o método Morelliano que foi seguido por Freud na psicanálise, ao observar os dados pouco notados, os refugos da nossa observação; e por Conan Doyle nas aventuras do personagem Sherlock Holmes, desenvolvendo-se riquíssima literatura sobre os métodos de investigação criminal; na medicina que traba-lha com os fundamentos trazidos por Hipócrates baseados no sintoma, pelos quais permitiam elaborar o contexto da doença.

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Ignacio Tedesco ao refletir sobre o método detetivesco apresenta a literatura policial como um artefato cultural, aludindo que o método segui-do nesta área adota o método abdutivo descrito por Charles Peirce, caracte-rizado por sua capacidade explicativa, devido à possibilidade de formulação de hipóteses ou inferências presuntivas baseadas em provas experimentais (TEDESCO, 2007, p. 359).

Entendemos haver equívocos naquelas posições restritivas da função finalística da investigação criminal como sendo a formação de provas para o processo penal (FERNANDES, 2006, p. 18; JOSE-MARIA, 2006, p. 57; SILVA, 2008, p. 345). O processo investigativo fornece conhecimentos para a estrutura investigativa, que não se cir-cunscreve ao magistrado como decisor, o qual juntamente com as partes submeterão as informações ao escrutínio processual penal. Com estes conhecimentos produzidos nas investigações criminais as autoridades gestoras/investigativas poderão desenvolver novas investigações, pode-rão inclusive dar causa a não instauração de processo; poderão desen-volver técnicas situacionais de prevenção; poderão empreender medi-das de polícia ou medidas cautelares ou coação para bloquear os efeitos do crime ou impedir sua consumação; constituirá memória para futuras investigações; servirá para a adoção de medidas estratégicas no campo da repressão e da gestão policial, então, adotamos posição ampliativa e autônoma do procedimento cognitivo da investigação criminal, em relação à inteligência e ao processo penal. Aqui, ainda, há que se ponde-rar que é difícil apontar um ato agressivo ao Estado, ou a seus interesses políticos, considerando a inteligência clássica, ou atos que ofendam a paz social, sejam gravosos ou não, os quais não constituam infração pe-nal perseguível pela investigação criminal, até mesmo porque cabe ao Direito Penal proteger bens jurídicos caros à sociedade tal como a vida, o patrimônio, a liberdade, a paz pública, a segurança do Estado etc. Admitir o contrário é propugnar novo sistema punitivo ou o abolicio-nismo, ao invés do Direito Penal.

Por estas razões podemos deparar com contraditio in terminis quando se situa a investigação criminal com fins específicos judiciais, ao tempo que admite “a recolha e análise da informação obtida, detectando as pessoas envolvidas, o modus operandi e qualquer facto relevante para a investigação do delito” (CABRAL, 2007, p. 154), como atributo da inteligência. Ora isso constitui o objeto da investigação criminal não

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havendo razão lógica para servir-se de outra matriz teórica para opera-cionalizar suas ações.

Outro equivoco, ou falácia no sentido lógico, é negar flexibili-dade a investigação criminal além da realidade sensível. Os investigado-res policiais não estão proibidos de usar métodos de acesso e descoberta de dados com emprego de técnicas ou fontes encobertas ou ocultas, ao revés, os investigadores dispõem de ampla liberdade investigativa de acordo com criatividade e o avanço técnico de determinado momento, bem como conta com a possibilidade de empreender diligências investi-gativas invasivas permitidas por lei, as quais são de difícil alcance pelos oficiais de inteligência.

Neste sentido, também se equivoca ao se propugnar que a inteligên-cia está mais aptas a lidar com questões complexas e que necessitam de maio-res recursos (DANTAS E GONÇALVES, s. d., p. 5). Aqui trazemos o exem-plo da Polícia Federal brasileira que demonstra o contrário, ou seja, crimes complexos que englobam condutas e agentes criminosos em vários países, ou diversos pontos do território nacional, ou ainda, que requerem envolvimento de estruturas material e humana em larga escala, com expertises profissio-nais variadas, são plenamente investigados, apurados e documentados, com a consequente apresentação dos fatos ao Poder Judiciário, e é neste momento que surgem dificuldades para a instrução processual e acertamento do caso por este poder. Isso decorre da construção equivocada da função de polícia judiciária e investigação criminal, vinculando-as somente a uma função estri-tamente jurídica e processual, sem considerarmos que a investigação criminal traduzida no inquérito ou qualquer outra nomenclatura, é mais ágil flexível e eficaz que uma investigação judicializada (FENTANES, 1979, p. 149). Em suma: é a organização da investigação criminal que possui flexibilidade para as grandes investigações.

4.2 Investigações Criminais Especiais e Inteligência

Além das investigações ordinárias ligadas à criminalidade de mas-sa, que podem ser classificadas nos crimes de pequena e média ofensividade, o que se nota de maneira muito objetiva é o equívoco de se reputar como atividade de inteligência àquelas investigações mais bem estruturadas, na descoberta e recolha de indícios e vestígios de crimes complexos e com alta

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ofensividade social, principalmente quando envolve a criminalidade or-ganizada e mais complexa. E agora temos a alegada emergência do ter-rorismo. Naturalmente nestes crimes são empregadas técnicas também mais bem estruturadas, geralmente ocultas e com maior nível de inva-sividade às esferas de intimidade dos investigados, tal como intercep-tações telefônicas, escuta ambiental, interceptação das comunicações, localização e acompanhamento de pessoas através de telefonia móvel ou sistema de satélite, uso de veículo aéreo não tripulado, testes de DNA, acesso a dados protegidos por normas de proteção, emprego de agente encoberto ou colaborador, uso de programas computacionais no pro-cessamento das informações colhidas, emprego de grandes estruturas material e humana, sigilo interno e externo, compartimentação das dili-gências investigativas etc. Em tais investigações criminais, que assumem caráter especial, se tornou corrente o emprego de sound-bites jornalís-ticos caracterizando-as como inteligência policial. Tornou-se modismo comum entre policiais, membros do parquet, jornalista e até mesmo pesquisadores policiais, predicar uma investigação bem estruturada como atividade de inteligência. Esta linguagem está ligada, também, ao sigilo e à compartimentação que remetem ao secretismo das operações de inteligência de Estado, no entanto eles são imprescindíveis nestas investigações.

Neste sentido, é enriquecedor o ensinamento de Costa Andrade quando defende que a luta contra o crime alterou-se para o chamado campo avançado, ou seja, há pró-atividade tanto da polícia preventi-va como da polícia investigativa, antecipando suas ações na prevenção do perigo ou antecipando-se ao crime na recolhe de provas, por inter-médio da busca de informações com técnicas investigativas próprias, tal como os meios ocultos (2009a, p. 129ss). Costa Andrade sinaliza para uma revisão dos conceitos sobre polícia preventiva e polícia re-pressiva, de origem francesa, e que encontra acolhimento em vários au-tores clássicos portugueses e brasileiros, tal como Cretella Junior em seu O Poder de Polícia, Marcelo Caetano na obra Manual de Direito Administrativo. Esta construção doutrinária, inspirada em decisões do Tribunal Constitucional Alemão, envolve a criminalidade organizada das últimas décadas, com ações estruturadas de vários agentes em dis-tintos lugares, com emprego de meios sofisticados ou violentos, com ações continuadas, capazes de resultar em danos sociais e individuais de grande monta, podendo ser citadas: criminalidade transnacional e

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transfronteiriça, complexa, tráfico internacional de drogas, terrorismo, tráfico de seres humanos, branqueamento de capitais empresarial, qua-drilhas de assaltantes a bancos e de cargas, alta corrupção em órgãos estatais, crimes empresariais etc. Seria àqueles crimes que apresentam complexidade criminalística e resistência à investigação, conforme ensina Costa Andrade, que se caracteriza:

pelo número de agentes; pelo hermetismo e opacidade da organização; pela sofisticação, imaterialidade, mobilidade e invisibilidade de ações e procedimentos, não raro ocultos atrás de cortinas de tecnologia de di-fícil penetração e ultrapassagem; pelo desenho consensual e victimless do modus operandi; pelo carácter críptico e iniciático da linguagem e dos códigos e comunicação. (COSTA ANDRADE, 2009a, p. 52)

Segundo Costa Andrade há defensores de uma classificação tri-partida das tipologias de polícia, com atividade de prevenção, repressão e a investigação de campo avançado como tertium genius que constitui-ria uma terceira tarefa da polícia. Continua Costa Andrade, que para outros, a investigação de campo avançado deve ser reconduzida por uma das duas categorias tradicionais, seria então “uma manifestação actuali-zada da actividade policial” (2009a, p. 131), e também há aqueles que consideram que devem ser ajustada “à categoria e ao estatuto jurídico da investigação própria do processo penal” (2009a, p. 131). Contudo, o autor se alinha à posição do Tribunal Constitucional alemão, numa pos-tura salomônica, e adota modelo quadripartido (sic) com providências para a perseguição futura de crimes (Vorsorge für die Verfolgung von Straftaten) e combate preventivo ao crime (vorbeugende Bekämpfung von Straftaten), ao lado da classificação tradicional, que se baseou em critério material e teleológico, já que se orienta materialmente para a repressão do crime.

Segundo Costa Andrade as providências para a perseguição fu-tura de crimes, visam “reunir provas, preparando a ulterior perseguição e punição de crimes não cometidos, mas cuja prática, num futuro incer-to, se revela possível, mesmo provável, por isso deve-se reger pelas leis processuais embora numa perspectiva temporal assuma forma preventiva (2009a, p. 131). Já o combate preventivo ao crime “trata-se apenas de pre-venir e afastar perigos (crimes) possíveis antes e se atingir limiar do peri-go concreto” e, portanto se coloca ao lado do seu modelo tradicional.

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Assinala o autor, que as denominadas investigações de campo avan-çado assumem destacado interesse no plano prático-jurídico quando pode se deparar com a questão das proibições de prova em processo penal tanto no campo preventivo como no repressivo, aqui exemplificamos o uso da videovigilância como prova de crime, sem se esquecer que esta técnica de prevenção situacional já é bastante usual em muitos centros urbanos pelo mundo afora. Poderia então as provas obtidas durante a prevenção criminal ser utilizadas em processo penal, sem indagar o seu processo de conhecimento e valoração? Poderia a prova adquirida na investiga-ção criminal avançada e no processo penal ser aproveitada em outros contextos? Estas questões são postas por Costa Andrade, para as quais terão que ser objeto de normatização, segundo o autor.

No artigo Métodos Ocultos de Investigação (Plädoyer para uma Teoria Geral) Costa Andrade alerta para o comprometimento do proces-so penal com as tarefas de prevenção, por intermédio de “um movimento de vasos comunicantes que ganha novos e perturbadores desenvolvimen-tos quando passa a estender-se aos serviços de informações nacionais, naturalmente vocacionados para outras formas de acção e investigação” (COSTA ANDRADE, 2009b, p. 530), entretanto reconhece que “a in-vestigação clandestina veio para ficar, configurando um dado da experi-ência jurídica actual e, não será arriscado acreditá-lo, do futuro, mas para isso além da reserva legal de tais procedimentos, esta deve:

respeitar um conjunto combinado de variáveis, umas de carác-ter material-substantivo, outras de índole forma-procedimen-tal: catálogo de crimes, grau de suspeita, subsidiariedade, au-torização/ordenação por autoridade competente e informação da pessoa atingida depois de terminada a medida (COSTA ANDRADE, 2009b, p. 545).

Há que se destacar o comprometimento ético que as denomina-das investigações especiais estão adstritas, ante a gravidade social de seu emprego para outros fins que não aqueles destinados legalmente, e os perigos daí advindos para as esferas de liberdades públicas dos cidadãos e ao Estado Democrático de Direito, principalmente naquelas falsas emergências ligadas ao terrorismo ou ao direito penal do inimigo, que poderão ter na fase preventiva policialesca, sem controle judicial, a pro-dução e o direcionamento de investigações contra setores da sociedade que por um ou outro motivo, se tornam “indesejáveis”.

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Conclusão

Com os estudos desenvolvidos é possível admitir que a investigação criminal possui matriz teórica própria, seus métodos e técnicas manejam o fenômeno criminal visando sempre conhecer os crimes para impedi-los ou para descobrir seus elementos objetivos e subjetivos, produzindo atos pro-visórios por intermédio da indagação, busca, recolha e constatação, consti-tuindo um verdadeiro banho lustral sobre os meios de provas, conforme a lições de Pitombo (1987, p. 21). Mesmo as condutas atuais e as futuras, serão “passados” em dado momento e devem despertar interesse do investigador criminal. O tempo futuro é observado e tratado visando a não deflagração de evento criminoso no presente, ou seja, o tempo da investigação não é somen-te o passado. Reserva-se a inteligência fornecer instrumentos para ampliar o conhecimento destes mesmos fenômenos criminais, designadamente no conhecimento e repressão à criminalidade organizada, transnacional, sofis-ticada, continuada etc., assim como para fornecer subsídios à gestão admi-nistrativa/policial, possibilitando a melhor distribuição de meios humanos e materiais nos trabalhos de investigação criminal.

Destaca-se para a organização persecutória criminal a utilidade da in-teligência para perceber os níveis de criminalidade organizada ou mais com-plexa, os cenários atuais, próximos e até mesmo mais distantes ao longo do tempo, de maneira que possam ser tomadas decisões estratégicas e desenvol-vidas políticas públicas visando seu enfrentamento, com a adoção de elemen-tos táticos e operacionais adequados para o problema, resultando certamente em menor dano social possível (permitido) com emprego menor de recursos estatais, em síntese: uma otimização do serviço policial. Cabe assinalar aqui, que esta atividade não se confunde com o objeto de estudo da Criminologia, esta é compreensiva, aquela é operativa e pode ser objeto de estudo desta, ao mesmo tempo o investigador criminal como investigador social que deve ser, também pode e deve se servir dos conhecimentos acumulados pela Crimi-nologia para conhecer e avaliar políticas públicas implementadas, já que está preocupada com as causas do crime e nas formas de responder aos fenômenos delitivos, conforme coloca Maíllo (2008, p. 21).

Podemos concluir que a inteligência integra a matriz teórica da in-vestigação criminal, para fins criminais e administrativos, como uma técnica disponível ao investigador para conhecimento da realidade, com finalidade heurística e de apoio à gestão, tal como o é a análise criminal, a psicologia cri-

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minal, a perícia, a cooperação policial e muitas outras técnicas investigativas. A investigação criminal já se desenvolveu o suficiente a ponto de uniformizar conceitos típicos do seu âmbito de ação, ou talvez, devamos considerar que já há muito tempo seus métodos e técnicas já foram definidos, não sendo razoável conferir-lhe uma concepção restritiva, exceto quando se desconheça todo manancial teórico, cultural e histórico, político etc. que se acumulou ao longo do tempo. Isso, malgrado as concepções judiciais ou de ordem públi-ca, ambas com equivocadas posições expansivas que extrapolam as normais fronteiras disciplinares da área.

Com esse bosquejo conceitual é possível defender que embora haja con-tribuições dos mais diversos ramos do conhecimento, e assim tem que ser e é com toda disciplina científica, há que se buscar no plano científico a aceitação de uma disciplina que reúna os temas de polícia, que possua uma identificação histórica e cultural própria, e que não pode ser ignorada pelos cientistas, já que lidam dia-riamente com questões diretamente relacionados com a vida social, suas relações, conflitos, controles e elementos agregadores. Este programa científico se insere no âmbito das Ciências Policiais e da disciplina da Investigação Criminal.

Por fim, há que se ter em conta a necessidade de parcerias e a amplia-ção de horizontes quando se estuda e se opera com inteligência e investigação criminal, com plena aplicação da teoria dos sistemas complexos de Morin (2000, p. 387), notadamente o princípio dialógico, que está orientado pela associação de noções complementares, concorrentes e antagônicas, entretan-to elas são indissociáveis e indispensáveis para o conhecimento e compreen-são da realidade, possibilitando a dualidade no seio da unidade.

Deve-se ultrapassar as entidades fechadas, os objetos isolados, as ideias claras e distintas, mas também não se deixar enclausurar na confusão, no vaporoso, na ambiguidade, na contradição (op. cit., p. 387).

Abstract

This paper analyzes the cognitive context of criminal investigation and intelligence, through the analysis of historical developments and conceptual review of the disciplines, which allows study-ing the links between them at the pragmatic level, noting the undeniable importance of the dis-ciplines within the Police Sciences and its final product that is public safety, which take greater interest in monitoring and repression of organized crime, border, and complex, whose activities

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are expanded before the release of national borders and the expansion of communications. At the time it seeks to identify the theoretical framework of criminal investigations and intelligence, also discusses the reflections bringing innovations translated by special investigations and their categorical confusion with intelligence, concluding that the criminal investigation has sufficient fertility and own cognitive framework, which places it in an independent way in relation to intel-ligence, however it rejects the single and isolated thought on the issue.

Keywords: intelligence, criminal investigation, theoretic matrix, special criminal investigations.

Célio Jacinto dos Santos

Delegado de Polícia Federal. Coordenador da Coordenação de Altos Estudos em Segurança Pública da Academia Nacional de Polícia. Doutorando em Direi-

to Penal pela Universidade de Buenos Aires. Orientador de alunos do Curso de Especialização em Ciências Policiais e Investigação Criminal e tutor de

diversas disciplinas dos cursos à distância da Academia nacional de Polícia

E-mail: [email protected]

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Sobre a Revista

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Vol. 1 n. 2, jul/dez de 2010.

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Edição de TextoGilson Matilde Diana

Guilherme Henrique Braga de Miranda

Projeto Gráfico, EditoraçãoGilson Matilde Diana

Guilherme Henrique Braga de Miranda

Impressão e EncadernaçãoEquipe SAVI/ SAE/ ANP

ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIACoordenação de Altos Estudos de Segurança Pública