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Título em inglês: OLIVEIRA, A. de. "The unwanteds". An experience of children and youth’s temporary residencial care in the Mental Health Policy. Dissertation (Master of Social Psychology), Pontifical Catholic University of Sao Paulo (PUC-SP), Sao Paulo, 2015.Ao estudar uma Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil, a presente pesquisa quis pensar criticamente a atualidade das práticas de cuidado e proteção direcionadas às crianças e adolescentes ditos em situação de vulnerabilidade social. Mais especificamente, são os modos de cuidar e modos de proteger, ou, em última análise, modos de governar certas crianças e adolescentes o foco deste trabalho. Para a constituição do campo de análise, fomos guiados pelos trabalhos genealógicos de Michel Foucault e Robert Castel. Num segundo momento, retomamos aspectos da história das práticas direcionadas à determinada população infanto-juvenil no bojo das políticas sociais, seguindo agora com Foucault e Jacques Donzelot. Em seguida, foram traçados alguns aspectos da história dos modos de governo executados pelas políticas assistenciais direcionadas à infância e adolescência no Brasil, para então apresentar alguns modos de governo operados a partir das composições das políticas sociais (Saúde e Assistência Social) com a Justiça. Por fim, fizemos uma breve passagem pela história das políticas de drogas no intuito de considerar o contexto em que se propõe uma unidade de acolhimento no campo da Saúde Mental, para daí acompanhar sua emergência na cidade de São Paulo, e realizar alguns apontamentos sobre o acolhimento institucional como estratégia de cuidado. Perguntou-se que rachaduras essas novas modalidades de atenção são capazes de produzir naqueles modos de governo, ainda herdeiros das práticas punitivas e estigmatizantes tão presentes na história da assistência à infância e adolescência no Brasil. Podemos inferir que a UAI diz da urgência de se inventar outros modos de cuidar, da urgência de acolher e não aprisionar.
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Adriano de Oliveira
Os recusados
Uma experincia de moradia transitria infanto-juvenil no campo da Sade Mental
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SO PAULO
2015
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Adriano de Oliveira
Os recusados
Uma experincia de moradia transitria infanto-juvenil no campo da Sade Mental
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia Social, sob a orientao da Profa. Dra. Maria Cristina Gonalves Vicentin.
SO PAULO
2015
Banca examinadora
________________________________________________
________________________________________________
________________________________________________
AGRADECIMENTOS A Cristina Vicentin, pela generosidade e ateno cuidadosa com que orientou esse trabalho, e pela fora que tem de nos instigar a pensar diferentemente. Aos pesquisadores do Ncleo de Pesquisas em Lgicas Institucionais e Coletivas que me acompanharam nesse percurso, acolhendo angstias e inquietaes e sugerindo caminhos. Em especial, s amigas Julia Joia e Alyne Alvarez. Aprendi muito em suas companhias. s professoras Bader Sawaia e Andrea Scisleski, pelas sugestes e apontamentos durante o exame de qualificao, fundamentais para a continuidade do trabalho. CAPES, pelo apoio realizao desta pesquisa. s professoras Isa Maria Ferreira da Rosa Guar e Maria do Rosrio Corra de Salles Gomes, pelas preciosas interlocues sobre o tema das polticas para a infncia e adolescncia. Aos trabalhadores do CAPS I e da UAI onde esta pesquisa se realizou, por todo o suporte e abertura que me deram para a realizao da pesquisa. Aos amigos de So Paulo, que foram pacientes e compreensveis nesse perodo de escrita: Paulina, Victor, Marcel, Igor, Claudia, Cris, Cy. Aos amigos da poca da faculdade, que mesmo estando longe, esto presentes de diferentes formas na minha vida: Ndia, Mirian, Marice, Camila Nagai, Dayana, Bruno, Daniel (Du), Lauren, e tantos outros. Pela alegria dos encontros. Um agradecimento especial a Leonardo Klein, que esteve ao meu lado nos momentos finais da escrita, cuidando da janta, preparando o ch e papeando sobre assuntos que sequer sabia do que se tratava. Pela escuta e pela palavra, obrigado. minha famlia. A todos que, de alguma forma, apoiaram ou participaram da realizao deste trabalho.
RESUMO
OLIVEIRA, A. de. Os recusados. Uma experincia de moradia transitria infanto-juvenil
no campo da sade mental. Dissertao (Mestrado em Psicologia Social), Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), So Paulo, 2015.
Ao estudar uma Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil, a presente pesquisa quis pensar
criticamente a atualidade das prticas de cuidado e proteo direcionadas s crianas e
adolescentes ditos em situao de vulnerabilidade social. Mais especificamente, so os
modos de cuidar e modos de proteger, ou, em ltima anlise, modos de governar certas
crianas e adolescentes o foco deste trabalho. Para a constituio do campo de anlise,
fomos guiados pelos trabalhos genealgicos de Michel Foucault e Robert Castel. Num
segundo momento, retomamos aspectos da histria das prticas direcionadas
determinada populao infanto-juvenil no bojo das polticas sociais, seguindo agora com
Foucault e Jacques Donzelot. Em seguida, foram traados alguns aspectos da histria dos
modos de governo executados pelas polticas assistenciais direcionadas infncia e
adolescncia no Brasil, para ento apresentar alguns modos de governo operados a partir
das composies das polticas sociais (Sade e Assistncia Social) com a Justia. Por fim,
fizemos uma breve passagem pela histria das polticas de drogas no intuito de considerar
o contexto em que se prope uma unidade de acolhimento no campo da Sade Mental,
para da acompanhar sua emergncia na cidade de So Paulo, e realizar alguns
apontamentos sobre o acolhimento institucional como estratgia de cuidado. Perguntou-se
que rachaduras essas novas modalidades de ateno so capazes de produzir naqueles
modos de governo, ainda herdeiros das prticas punitivas e estigmatizantes to presentes
na histria da assistncia infncia e adolescncia no Brasil. Podemos inferir que a UAI diz
da urgncia de se inventar outros modos de cuidar, da urgncia de acolher e no
aprisionar.
PALAVRAS-CHAVE: SADE MENTAL, MORADIA TRANSITRIA, INFNCIA E ADOLESCNCIA,
CUIDADO E PROTEO, DROGAS
ABSTRACT
OLIVEIRA, A. de. "The unwanteds". An experience of children and youths temporary
residencial care in the Mental Health Policy. Dissertation (Master of Social Psychology),
Pontifical Catholic University of Sao Paulo (PUC-SP), Sao Paulo, 2015.
When studying a Children and Youths Residencial Care, this research wanted to think
critically about the nowadays practices of care and protection of children and adolescents
in situation of vulnerability, personal or social risk. More specifically, are the ways to take
care of and ways to protect, or, ultimately, ways of governing certain children and
adolescents the focus of this work. For constituting the analysis field, we are guided by the
genealogical work of Michel Foucault and Robert Castel. After, we take some aspects of
history of practices directed at certain children and adolescents in the cern of social
policies, in dialogue with Michel Foucault and Jacques Donzelot. Secondly, will be drawn
some aspects of the history of types of government run by welfare policies directed to
children and adolescents in Brazil, to finally present some ways of government operated
from the compositions of social policies (Health and Welfare) with Justice. Finally, we make
a brief passage through the history of drug policy in order to consider the context in which
it proposes a residencial care service in the field of Mental Health, and from there follow
its emergence in the city So Paulo, to finally make some notes on the institutional care as
a care strategy. This wonders what cracks these new modalities of care are able to produce
those modes of government, even heirs of punitive and stigmatizing practices as gifts in the
history of assistance to children and adolescents in Brazil. We conclude that the Childern
and Youths Residencial Care says the urgent need to invent other ways of caring, the
urgency to care and not imprison.
KEYWORDS: MENTAL HEALTH, TEMPORARY RESIDENCIAL CARE, CHILDHOOD AND
ADOLESCENCE, CARE AND PROTECTION, DRUGS
"Vem por aqui" dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braos, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos, (H, nos olhos meus, ironias e cansaos)
E cruzo os braos, E nunca vou por ali...
(...) Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes ptria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filsofos, e sbios... Eu tenho a minha Loucura !
(...) Ah, que ningum me d piedosas intenes,
Ningum me pea definies! Ningum me diga: "vem por aqui"!
A minha vida um vendaval que se soltou, uma onda que se alevantou,
um tomo a mais que se animou... No sei por onde vou, No sei para onde vou
Sei que no vou por a! Cntico Negro
Jos Rgio
Ainda vo me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que fao parte dessa gente que pensa que a rua a parte principal da cidade. Paulo Leminski
SUMRIO
INTRODUO
Apresentao 11
A pesquisa e seus intercessores 14
CAPTULO 1 POLTICAS SOCIAIS E A GESTO DAS MULTIPLICIDADES
Biopoder: uma gesto calculada da vida 24
Governamentalidade, poder pastoral e produo de subjetividade 27
Paradoxos do liberalismo: liberdades e segurana 33
CAPTULO 2 INSTITUIES DA INFNCIA
Do governo de crianas e adolescentes 38
A assistncia infncia no Brasil 41
Polticas sociais, vulnerabilidades e virtualidades 53
Sade, Assistncia social e Justia: relaes de poder e regimes de saber 59
CAPTULO 3 A UNIDADE DE ACOLHIMENTO INFANTO-JUVENIL
Contexto histrico: breves apontamentos 71
A moradia transitria como modalidade de ateno em Sade Mental 74
So Paulo, um lugar de afrontamento 77
Surfando no Centro: a UAI e a rede 80
Intersetorialidade x circuitos transinstitucionais: do que (se) trata a UAI? 81
Especializao x ateno s singularidades 87
O hibridismo da casa 91
Os recusados 94
O menino selvagem: o cuidado na errncia 96
Responsabilidade sanitria: proteo e autonomia x medicalizao 100
(Des)cuidado e (des)proteo na crise: o no-lugar da rede 103
CONSIDERAES FINAIS 110
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 119
Lista de siglas
AI Anlise Institucional
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CAPS AD - Centro de Ateno Psicossocial lcool e outras Drogas CAPS I - Centro de Ateno Psicossocial Infantil
CAT Casa de Acolhimento Transitrio
CIEJA Centro Integrado de Educao de Jovens e Adultos
CMDCA Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente
Conad Conselho Nacional Anti-Drogas
Confen Conselho Federal de Entorpecentes
CRATOD Centro de Referncia de lcool, Tabaco e outras Drogas CREAS Centro de Referncia Especializado da Assistncia Social
CRECA Centro de Referncia da Criana e do Adolescente
CT - Conselho Tutelar
DATASUS Banco de Dados do Sistema nico de Sade ECA Estatuto da Criana e do Adolescente
Febem Fundao do Bem Estar do Menor
FMUSP Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo
Funabem Fundao Nacional do Bem Estar do Menor
GCM Guarda Civil Metropolitana
HIV Sindrome da Imunodeficincia Adquirida
LOAS Leio Orgnica da Assistncia Social
MNMMR Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua
MP Ministrio Pblico
OSS Organizao Social de Sade
PAS Plano de Atendimento Sade
Pead - Plano Emergencial de Ampliao de Acesso ao Tratamento e Preveno em lcool e outras Drogas
PNBM Poltica Nacional de Bem Estar do Menor
PNCFC Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito da Criana e do Adolescente
Convivncia Familiar e Comunitria
PTS Projeto Teraputico Singular RAPS Rede de Ateno Psicossocial
Saica Servio de Acolhimento Institucional de Crianas e Adolescentes
SAID Servio de Atendimento Integral ao Dependente
SAM Servio de Assistncia ao Menor
Senad Secretaria Nacional de Polticas sobre Drogas
SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
Sisnad Sistema Nacional Antidrogas
SMAS Secretaria Municipal de Assistncia Social
Suas Sistema nico de Assistncia Social SUS Sistema nico de Sade TPAS Transtorno de Personalidade Antissocial
UA Unidade de Acolhimento
UAA Unidade de Acolhimento Adulto
UAI Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil UBS Unidade Bsica de Sade
Unicef Fundo das Naes Unidas para a Infncia
VIJ Vara da Infncia e Juventude
11
INTRODUO
Apresentao
A questo da infncia e adolescncia, ou melhor dizendo, das infncias e
adolescncias - no plural - como objeto e objetivo de polticas sociais a problemtica em
torno da qual esse trabalho se debruou. Ao assumir como campo problemtico as
polticas direcionadas infncia e adolescncia, a presente pesquisa quer pensar
criticamente a atualidade das prticas de cuidado e proteo direcionadas s crianas e
adolescentes ditos em situao de vulnerabilidade e risco pessoal e social1.
Mais especificamente, so os modos de cuidar e modos de proteger, ou, em ltima
anlise, modos de governar certas crianas e adolescentes o foco deste trabalho. Nossa
inteno , portanto, contribuir para uma reflexo crtica sobre as interfaces sade
mental e assistncia social, seus modos de dizer/fazer cuidado e dizer/fazer proteo, em
suas composies e tensionamentos.
Abordar essa temtica relevante diante das pesquisas recentes que constataram
as seguintes situaes: a) hospitais psiquitricos continuam servindo de destino a crianas
e adolescentes com questes de sade mental, em especial aqueles com diagnstico de
transtorno de conduta ou decorrente do uso abusivo de lcool ou outras drogas (BENTES,
1999, JOIA, 2006; SCISLESKI, 2006, 2010; CUNDA, 2011; BLIKSTEIN, 2012); e b) a existncia
de servios de acolhimento no campo da assistncia social ditos especializados que
servem como espaos de recluso das anormalidades (RIZZINI, 2008a; ASSIS, 2011;
ALMEIDA, 2012).
Outra razo que despertou o desejo de realizar esta pesquisa foi a minha
experincia de trabalho no campo das polticas para infncia e adolescncia. Ainda na
graduao estive envolvido em projetos de pesquisa e estgios que assumiam tais
polticas como campo de atuao: seja no mbito da ateno em sade, educao ou
socioassistencial, o foco foi predominantemente as crianas e adolescentes, e suas
1 Nesta introduo usamos a noo de vulnerabilidade e risco pessoal e social apenas no seu sentido
descritivo, isto como termo que aparece nas polticas sociais atuais para designar o campo de interveno de determinados servios de assistncia pblica. Neste trabalho, a noo ser abordada em termos de produo de vulnerabilidade, ou vulnerabilizao, desde uma perspectiva crtica, de modo a colocar em anlise as polticas que assumem essa noo como norteadora de suas aes.
12
famlias. No obstante, depois de formado encontrei no campo da Assistncia Social
abertura para as primeiras experincias profissionais como psiclogo, atuando em
servios de proteo bsica e proteo especial (de mdia e alta complexidade)2.
Nessa experincia, pude notar que a persistncia de prticas fortemente tutelares,
estigmatizantes e desqualificadoras da infncia e adolescncia no era incomum nos
diversos dispositivos onde se propunha uma prtica em torno da infncia. No lugar de
especialistas, de adultos, muito falamos sobre a infncia: quando no explicando sua
prpria falta, buscando nesta etapa da vida as explicaes para o que aparece como falta
na vida adulta. A despeito do ordenamento jurdico brasileiro ter reconhecido as crianas
e adolescentes como sujeito de direitos, desde a promulgao do Estatuto da Criana e
do Adolescente, permanece nesse campo prticas de sujeio. Em certa medida, as
formas como as crianas respondem a essas prticas, submetendo-se a elas ou as
recusando, muitas vezes tomado como um parmetro para definir o que uma
experincia normal de infncia. Ou seja, no raro que a recusa dessa posio tutelada e
submissa seja identificada como um desvio, uma anormalidade.
Essas questes, a meu ver, conectam-se problemtica em torno da qual a
pesquisa se debruou, que a dos modos de dizer/fazer cuidado e proteo no campo da
infncia e adolescncia. Assume-se aqui que o lugar da infncia e adolescncia na
sociedade, atravessado por determinadas relaes histricas e sociais, repercute nas
formas de cuidado e proteo praticadas no interior das polticas sociais (mas tambm
nas relaes familiares e socioculturais mais amplas). Da mesma forma, importante
sublinhar que cuidado e proteo so conceitos polissmicos, e seus sentidos, sempre
cambiveis, forjados dentro de um dado contexto cultural e social.
Definido o campo problemtico sobre o qual a pesquisa se debruou, escolhemos
como campo emprico da pesquisa um servio de moradia transitria para crianas e
adolescentes usurios de substncias psicoativas na cidade de So Paulo, denominada
Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil (UAI). Regulamentado pela Portaria 121 de 2012
do Ministrio da Sade, uma Unidade de Acolhimento um ponto de ateno na Rede de
2 De acordo com os parmetros da atual Poltica Nacional de Assistncia Social, de 2004, os servios
socioassistenciais so classificados, de acordo com suas estratgias e objetivos, como a) Proteo Social Bsica; b) Proteo Social Especial de Mdia Complexidade; c) Proteo Social Especial de Alta Complexidade (BRASIL, 2004).
13
Ateno Psicossocial (RAPS), de carter residencial, transitrio e voluntrio, destinado
tanto ao pblico adulto Unidade de Acolhimento Adulto (UAA) , mas tambm de
crianas e adolescentes Unidade de Acolhimento Infanto-juvenil (UAI), com
necessidades decorrentes do uso de Crack, lcool e Outras Drogas, e que
necessariamente conta com um Centro de Ateno Psicossocial de referncia para o
cuidado dos acolhidos (BRASIL, 2012).
Assim, a UAI se caracteriza por ser um dispositivo que pretende a um s tempo
operar como promotor de cuidados em sade mental e mecanismo de proteo social.
Expressa, portanto, o cruzamento de aes e tecnologias prprias ao campo das polticas
de Sade Mental e de Assistncia Social, uma vez que lana mo do acolhimento
institucional (medida de proteo socioassistencial) como estratgia teraputica e
protetiva para crianas e adolescentes que se encontrem em situaes que acentuam sua
vulnerabilidade.
Ela composta por um corpo profissional formado por 02 tcnicos de nvel
superior que compartilham a funo de coordenadores, um formado em Educao Fsica
e outra formada em Psicologia, e 08 acompanhantes comunitrios, que trabalham em
esquema de revezamento de planto, 01 durante o dia e 02 noite. A UAI conta com um
Centro de Ateno Psicossocial Infantil (CAPS I) de referncia. Este CAPS I d cobertura a
uma regio com mais de 400.000 habitantes, e conta com uma gerente, e 15 tcnicos de
diferentes formaes, alm dos profissionais de nvel mdio ou tcnico que compem a
equipe.
O objetivo da pesquisa foi: a) dar visibilidade a prticas em sade mental e
proteo social que se apresentam como alternativas ou mesmo substitutivas
internao psiquitrica e a modelos de ateno que representem isolamento ou recluso,
e b) contribuir para uma reflexo crtica a respeito das prticas direcionadas a crianas e
adolescentes ao questionar os modos de cuidado e proteo que comparecem neste
campo.
14
A pesquisa e seus intercessores: algumas consideraes sobre o mtodo
Ao se inserir no campo de estudos e pesquisas que se ocupam do tema das
polticas para crianas e adolescentes, este trabalho reflete nosso interesse em compor o
debate sobre os modos de cuidado e de proteo que vem se operando na atualidade das
polticas sociais direcionadas s crianas e adolescentes, reconhecendo que prticas
forjam subjetividades, acionam processos de subjetivao, e que modos de existncia
emergem de jogos de fora.
Para nos guiar nesta empreitada, evocamos a noo de intercessores proposta por
Deleuze (2004) para chamarmos de pensamentos-intercessores aqueles que, na sua
potncia de produzir derivas ou desvios (RODRIGUES, 2010), animam o exerccio do
pensar, intercedem num dado regime de verdades possibilitando novas articulaes ou
mesmo inventando outros regimes (VICENTIN, OLIVEIRA, 2012). Deleuze chama de
intercessores os encontros, alianas, conexes, que mobilizem o pensamento em sua
potncia criativa. Pensamentos-intercessores, nesta perspectiva, so aqueles que nos
convocam a pensar diferentemente (FOUCAULT, 2012b).
Dito isso, seguimos algumas pistas metodolgicas deixadas por Foucault que nos
ajudam a pensar, quando no re-pensar, e at mesmo dis-pensar, alguns modos de dizer
e de fazer presentes no campo das polticas de sade e assistncia social para crianas e
adolescentes. Ousaremos roubar-lhe (DELEUZE, PARNET, 1998) alguns conceitos-
ferramentas para colocar em anlise as relaes de poder e os modos de governar
condutas presentes nessas polticas.
Foucault realiza seu projeto sustentando um modo de compreenso da noo de
poder que lhe peculiar, qual seja, o poder no como uma substncia ou propriedade,
uma coisa, ou algo que pode ser localizado mais como uma estratgia, como embate de
foras, como conjunto de mecanismos e procedimentos; ao mesmo tempo em que se
ope ideia de poder como represso ou interdio, apoiando-se na sua dimenso
produtiva (FOUCAULT, 1989). Para Foucault poder ao sobre ao, e no recepo
passiva. No deriva de seus trabalhos, portanto, uma teoria geral do poder, mas sim uma
analtica das relaes de poder (IDEM, 1995).
15
Aqui, retomaremos algumas proposies de Foucault, em particular as
decorrentes das pesquisas por ele empreendidas a partir da dcada de 1970, em que o
tema geral das pesquisas concentrou-se na genealogia das relaes de poder, do
problema do governo enquanto conduo das condutas e das polticas de constituio da
verdade, que ele desenvolve ancorado nas noes de biopoder e governamentalidade
(FOUCAULT, 2005, 2008a, 2008b, 2012a).
Apostamos que tais noes operam como grade analtica que nos permite encarar
o desenvolvimento e funcionamento das polticas sociais como dispositivos de produo
de verdades e de governo das condutas de si e dos outros, conforme as modificaes nas
formas de exerccio do poder e nas racionalidades que as fundamentavam em
determinados perodos histricos.
A perspectiva genealgica adotada por Foucault (1979), inspirado pelo
pensamento de Nietzsche, nos servir como bssola na medida em que prope a
identificao das linhas de fora e dos jogos de poder em curso a partir dos quais certa
realidade conformada.
A genealogia comporta uma anlise da provenincia tratando-a no como ponto
de fundao ou de continuidade, mas em sua dimenso heterogentica e de disperso ,
e uma histria das emergncias daquilo que se produz em um determinado estado de
foras. Portanto, no h busca das origens ou da verdade oculta por trs dos
acontecimentos, mas um exerccio de diagnosticar o presente, identificar as linhas que o
configuram, as relaes de poder e saber3 em jogo, reconhecendo a historicidade dos
regimes de verdade, com o propsito de marcar a singularidade dos acontecimentos
(IDEM, p. 15).
Entre as provenincias e as emergncias, a genealogia implica, do lado da anlise
das provenincias, encarar o corpo como superfcie de inscrio dos acontecimentos,
3 Lembrando que, para Foucault, poder e saber so imanentes, ou seja, so irredutveis um ao outro. Em
suas palavras, [...] poder e saber esto diretamente implicados; que no h relao de poder sem a constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no constitua ao mesmo tempo relaes de poder. Essas relaes de poder-saber no devem ser analisadas a partir de um sujeito de conhecimento que seria ou no livre em relao ao sistema de poder; mas preciso considerar ao contrrio que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento so outros tantos efeitos dessas implicaes fundamentais do poder-saber e de suas transformaes histricas. Resumindo, no a atividade do conhecimento que produziria um saber, til ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e o constituem, que determinam as formas e os campos possveis do conhecimento (FOUCAULT, 1975, p. 161)
16
mostrar o corpo inteiramente marcado de histria e a histria arruinando o corpo; e do
lado da histria das emergncias, faz-la no na busca da origem ou da verdade oculta
dos acontecimentos, mas a partir das suas condies de possibilidade, em que a sua
forma no presente nada mais que o episdio atual de um estado de foras (FOUCAULT,
1979a).
Para tanto, Foucault prope o conceito de dispositivo, compreendido como uma
rede que se estabelece entre elementos heterogneos, o dito e o no dito4, que responde
a uma urgncia histrica, com uma funo estratgica, e que se apoia em outros
dispositivos (FOUCAULT, 1979a). Dreyfus e Rabinow (1995) destacam da ideia de
dispositivo as prticas elas mesmas, atuando como um aparelho, uma ferramenta,
constituindo sujeitos e os organizando (p. 135, grifos meus), por meio de enunciados
cientficos e no cientficos, instituies, organizaes arquitetnicas, regulamentos, leis,
medidas administrativas, proposies de diferentes naturezas.
Por conseguinte, a noo de genealogia apoiada no conceito de dispositivo que
atravessa os propsitos desse trabalho implica na anlise da emergncia e do
funcionamento da UAI feita com base no apenas em seus efeitos, mas considerando o
prprio servio, seu aparecimento e localizao na rede institucional mais ampla de
ateno a crianas e adolescentes como efeito de um jogo de foras.
Ao tomarmos as condies de possibilidade de um novo servio na rede de
ateno infncia e adolescncia como problema de pesquisa, adotamos o termo
emergncia, que em suas acepes, diz tanto do aparecimento, do surgimento de algo,
como de uma necessidade imediata, uma urgncia. A emergncia, diz Foucault, designa
um lugar de afrontamento. Fazemos aluso perspectiva genealgica de Foucault
(1979a, 2005), para quem o mtodo genealgico requer marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade montona; espreitlos l onde menos se os
esperava e naquilo que tido como no possuindo histria.
Tambm fuamos algumas ferramentas metodolgicas que nos legou Ren Lourau
e a Anlise Institucional Francesa (AI), para pensar a UAI em suas dimenses
4 Ensina Foucault (2001) que os discursos esto submetidos uma ordem, a um conjunto de regras, que
qualifica alguns enunciados e desautoriza outros, distribui e regula certos discursos, e impede a circulao de tantos outros, segundo uma vontade de verdade prpria de dado momento histrico. O dito e o no dito como elementos que compem o dispositivo referem-se aos regimes de verdade que se atualizam no seu funcionamento.
17
institucionais, sua posio na rede de ateno infncia e adolescncia da cidade de So
Paulo, e as problematizaes que coloca em evidncia especialmente aquelas derivadas
dos encontros (e desencontros?) entre as polticas de Sade e Assistncia Social.
A AI, como um campo de coerncia, atenta-se aos tensionamentos entre as
formas institudas e as foras instituintes por meio do questionamento das prticas
forjadas na histria e que se atualizam permanentemente, materializando-se no presente
na forma de normativas e equipamentos assistenciais, mas principalmente nos fazeres
cotidianos desses servios.
Entre Foucault e Lourau, reconhecemos um comum que se destaca na
heterogeneidade de seus pensamentos, e que arriscamos afirmar como uma mirada
tico-poltica, qual seja, a recusa dos universais. A pretenso aqui foi arguir prticas,
historiciz-las, criar rachaduras que abrem para novos possveis. Portanto, no se trata de
abordar A Criana, O Adolescente, tampouco A Poltica de Sade ou de Assistncia Social
como categorias gerais, mas de compreender como certas crianas e adolescentes
passam a ser objeto de interveno de determinadas polticas; mais ainda, de analisar
como certas polticas operam o governo das condutas.
Assumimos esta postura quando, nesse trabalho de pesquisa, interessamo-nos
pelos movimentos no plano micropoltico do campo de interveno das polticas sociais
que se ocupam de cuidar, proteger e governar certas crianas e adolescentes. Portanto,
no tomamos o campo da infncia e adolescncia como objeto de interveno poltica
como um algo j dado, mas sim ele prprio formado, identificado e delimitado em funo
de determinadas prticas.
Da nos propormos a pensar as prticas de cuidado e proteo em suas dimenses
institucionais, atravessadas pelas instituies da infncia e adolescncia. Instituio,
enfim, como criao prpria de um momento histrico-poltico, que forja certas formas
de existncia em articulao a uma rede de saberes-poderes que as sustentam.
Em geral, instituio considerada sob o aspecto do institudo, confundida com
algum tipo de estabelecimento, quando no reduzida a uma dimenso normativa ou em
referncia a um sistema de regras, ainda que sejam compostas por essas dimenses, e
mesmo assumir essas configuraes em determinados contextos. Conforme ensina
Baremblitt, (1992, p. 27):
18
As instituies so lgicas, so rvores de composies lgicas que, segundo a
forma e o grau de formalizao que adotem, podem ser leis, podem ser normas
e, quando no esto enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas,
regularidades de comportamentos.
Para a AI, instituio designa a forma como efeito de um encontro de foras.
Assim, possvel afirmar que as instituies remetem s relaes e campos de foras
institudos, tomados muitas vezes como naturais e imutveis, mas que coexistem e
tensionam com outros campos de foras instituintes, de subverso e de mudana
(COIMBRA; NASCIMENTO, 2004; AGUIAR; ROCHA, 2007).
Nas palavras de Lourau, se certo que toda instituio atravessada por todos
os nveis de uma formao social, a instituio deve ser definida necessariamente pela
transversalidade (LOURAU, 2004a, p. 76). O que quer dizer que no h estabilidade e
homogeneidade plena e final, ou qualquer essncia ou natureza imutvel a ser
descoberta em relao instituio, mas sim deslocamentos, pequenas mutaes
marginais e at clandestinos s estruturas oficiais e consagradas (BAREMBLITT, 1992, p.
38), por isso as instituies devem ser analisadas em sua historicidade e em movimento,
produo constante dos modos de legitimao das prticas sociais. (BENEVIDES DE
BARROS, 2007, p 230-231).
Assumindo essa perspectiva, cabe-nos a ressalva de que nos furtaremos de
trabalhar os documentos oficiais que orientam o funcionamento da UAI contrastando-os
com o cotidiano do servio para verificar se h qualquer obedincia s normas. Pelo
contrrio, encararemos texto e contexto, documento oficial (na forma de Portaria, neste
caso) e o carter local das prticas que se atualizam no servio, em suas dimenses
micropolticas, formadas por linhas que, ao se cruzar, tensionam e forjam um campo que
extrapola e atravessa a atualidade5 da instituio.
Assim, parte da pesquisa realizou-se por meio da leitura dos documentos legais
que orientam a criao das unidades de acolhimento como ponto de ateno da rede de
5 A novidade de um dispositivo em relao aos precedentes chamamos sua atualidade, nossa atualidade.
(...) O atual no o que ns somos, mas o que nos tornamos (...) o outro, nosso devir-outro. Em todo dispositivo, necessrio diferenciar o que ns somos (o que j no somos mais) e o que estamos em vias de nos tornar: a parte da histria e a parte do atuar. (DELEUZE, 1989, apud, RODRIGUES, 2005)
19
ateno psicossocial, bem como daqueles que informam as polticas de acolhimento
institucional infanto-juvenil no mbito da Assistncia Social. Buscamos contextualizar o
surgimento da UAI na cidade de So Paulo, de modo a reconhecer suas especificidades e
identificar as linhas de fora e dimenses scio-polticos que a configuram.
Para compor o trabalho de anlise das interfaces entre Sade Mental e Assistncia
Social em suas prticas de cuidado e proteo a crianas e adolescentes, escolhemos
entrevistar no somente profissionais diretamente ligados aos servios onde a pesquisa
se realizou por entender que as questes e as problemticas colocadas neste tipo de
trabalho esto para alm de suas prticas, ou seja, diz de um campo mais amplo e
heterogneo que o das polticas sociais para infncia e a adolescncia.
Apostamos, ento, em conversar com duas pesquisadoras do campo da infncia e
juventude, pela sua insero e atuao na produo de polticas pblicas.
Num segundo momento foram realizadas visitas tanto UAI, mas tambm ao
Centro de Ateno Psicossocial Infantil (CAPS I) de referncia do servio, uma vez que
ambos funcionam de maneira diretamente articulada.
Desde que comeamos a visitar a UAI, percebemos uma rotatividade significativa
entre os acolhidos: entre uma visita e outra, o grupo se alterava, o que denotava o
carter pontual e provisrio do acolhimento. Alm disso, os horrios dos adolescentes
eram tomados por atividades que compunham seu Projeto Teraputico Singular (PTS),
que envolviam a participao nos espaos oferecidos no CAPS I, frequncia escolar, rotina
de cuidados em sade, visita famlia (principalmente nos finais de semana).
Dada essa particularidade do servio, lanamos mo de conversas no cotidiano
como estratgia metodolgica (SPINK, 2007), assumindo o lugar de um pesquisador-
conversador. No houve a oportunidade de uma estadia mais prolongada no servio, pelo
encurtamento do tempo de execuo da pesquisa6.
Ainda assim, tive a oportunidade de conversar com alguns profissionais e
trabalhadores da UAI, bem como com alguns adolescentes acolhidos. Entrevistas e
conversas no cotidiano foram realizadas tambm com profissionais que atuam no CAPS I,
alm de consultas aos pronturios dos adolescentes (tanto os que j foram acolhidos e os
6 Com a demora nos trmites relativos ao Comit de tica em Pesquisa a realizao de algumas etapas da
pesquisa ficou invivel. E, mesmo aps a aprovao do CEP, enfrentamos dificuldades em iniciar o trabalho de pesquisa nos equipamentos, uma vez que dependeu de uma segunda rodada de exigncias burocrticas.
20
que ainda esto em acolhimento), favorecendo a produo de dados que permitem
analisar os fluxos que atravessam o servio.
Tambm foi possvel acompanhar uma reunio tcnica no CAPS I na qual a equipe
colocou em anlise a UAI em relao rede de ateno infanto-juvenil do centro de So
Paulo, a partir de casos tomados como emblemticos do funcionamento do servio.
Os momentos em que estive nos servios foram registrados em um dirio de
campo. Relatos, cenas e casos extrados do dirio de campo foram selecionados por
reconhecermos neles a possibilidade de reconstituio analtica de determinadas
situaes, a desconstruo de determinadas naturalizaes e a convocao da potncia
de produo de realidades alternativas.
No deixando de lembrar que, enquanto pesquisadores, estamos enredados em
posies nos territrios que ocupamos para realizar nossa pesquisa - em relao com os
outros que tambm fazem parte deste cotidiano (BENEVIDES DE BARROS, 2007). Em AI
prope-se o conceito de implicao para trabalhar a anlise do lugar do pesquisador.
Implicao um conceito inspirado pelas noes de transferncia e contratransferncia
da Psicanlise, mas que as superam na medida em que se considera, para alm de uma
relao dual, uma dinmica coletivo-institucional. Recusa, portanto, a uma postura de
exterioridade e neutralidade no ato de pesquisar (PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2009).
A implicao no um ato voluntrio, pois implicado se est, no h como se
furtar das relaes. Cabe, assim, ao pesquisador realizar a anlise das implicaes. Para
Coimbra e Nascimento (2001), a anlise de implicaes se d no plano da imanncia, no
plano da micropoltica, e opera a anlise dos modos de existncia sem apelar a valores
transcendentais. Em suas palavras, a anlise de implicaes tornar visvel e audvel as
foras que nos atravessam, nos afetam e nos constituem cotidianamente.
As etapas foram consideradas para a identificao ou construo de analisadores
durante o processo da pesquisa. Analisador , nas palavras de Benevides de Barros:
... aquilo que produz anlise. Apesar de bastante sinttica, esta
definio, tomada ao p da letra nos parece precisa: falas, atos, fatos
que se insurgem no campo de interveno, produzindo
desmanchamento daquilo que at ento aparecia como natural.
(BENEVIDES DE BARROS, 2007, p.333).
21
O conceito foi forjado no campo da Psicoterapia Institucional por Felix Guattari,
para quem a anlise (...) no mais interpretao transferencial dos sintomas em funo
de um contedo latente preexistente, mas inveno de novos focos catalticos suscetveis
de fazer bifurcar a existncia (GUATTARI, 2012, p. 30). Para Lourau, na noo de
analisador:
(...) encontramos a ideia essencial da decomposio de uma totalidade
nos elementos que a compem. O analisador qumico aquele que
decompe um corpo em seus elementos, produzindo, em certa medida,
uma anlise. Neste caso, encontramo-nos nas cincias fsicas. No caso
da pesquisa socioanaltica, no se trata de interpretar neste primeiro
nvel, mas de decompor um corpo. No se trata de construir um discurso
explicativo, mas de trazer luz os elementos que compem o conjunto
(LOURAU, 2004a, p. 70).
H, nesta acepo, um deslocamento do ato de analisar da figura do
analista/pesquisador para o acontecimento (AGUIAR; ROCHA, 2007). No entanto, tal
deslocamento no significa a neutralidade do pesquisador no fazer da pesquisa. Pelo
contrrio, como afirma Lourau (2004a) "o importante para o investigador no ,
essencialmente, o objeto que 'ele mesmo se d' (segundo a frmula do idealismo
matemtico), mas sim tudo que lhe dado por sua posio nas relaes sociais, na rede
institucional", convocando anlise o jogo de interesses e de poder presentes no
processo de pesquisa.
Dito isso, vale sublinhar que no territrio do centro de So Paulo, est presente
uma diversidade de Organizaes Sociais de Sade (OSS), que executam boa parte dos
servios l instalados. Segundo dados da Prefeitura de So Paulo, atualmente o municpio
mantm convnio ou parceria com 11 OSS, que juntas assumem 279 dos 985 servios de
sade, sendo responsveis pela contratao de 40.981 trabalhadores de Sade (mais da
metade daqueles que atualmente atuam na rede, que contabilizam 81.760). De 2012 para
c, segundo levantamento recente do municpio, cerca de R$ 1,5 bilho foram repassados
a essas organizaes por ano (PREFEITURA DE SO PAULO, 2014).
Em particular, com relao aos servios de sade mental, existem atualmente 80
22
CAPS na cidade, 28 sob administrao direta e 52 sob a gerncia de OSS (IDEM). Um dos
entraves decorrentes desse cenrio, ao nosso ver, a falta de alinhamento na execuo
dos servios, pois cada OSS estabelece um modo de organizar e executar a ateno de
acordo com suas polticas internas, que nem sempre dialogam com os preceitos tico-
polticos que fundamentam as normativas.
A presena de entidades do terceiro setor no setor da Sade Pblica uma
tendncia no municpio que remonta a meados dos anos de 1990, quando o Plano de
Atendimento Sade (PAS), proposto pela gesto municipal de Paulo Maluf, estabeleceu
que a gesto dos equipamentos de sade ficaria a cargo de cooperativas de profissionais
criadas para esta finalidade, de modo que no fato recente que o modelo de poltica
sanitria de So Paulo vem sendo confrontado por uma srie de questionamentos
(CONTREIRAS, 2011). Nos ltimos anos, as crticas recaem sobre o atual modelo de gesto
baseado na parceria pblico-privada e na falta de transparncia sobre os processos de
contratao ou convnio das OSS.
Do lado do Poder Pblico, a gesto municipal afirma sua responsabilidade de
assumir o gerenciamento da poltica de sade, ainda que elas fossem executadas pelas
OSS. Os movimentos sociais, por sua vez, fazem uma crtica a esse modelo de gesto,
reconhecendo aqui a tendncia privatizao do servio pblico, e denunciando uma
lgica neoliberal que atravessa esse modo de organizao dos servios, transformando as
demandas de sade em algo rentvel, no interior do mercado dos servios especializados.
Alm do mais, trata-se de uma privatizao to desregulada como a observada na cidade
de So Paulo [que] compromete o carter pblico (...) do prprio Estado. A destinao de
recursos bilionrios de forma opaca e no fiscalizada suscita terreno propcio para a ao
de interesses particulares, como avaliou Contreiras (IDEM, p. 97).
Considerar esse pano de fundo nos pareceu pertinente para dar incio a uma
leitura da cidade de So Paulo como um lugar de afrontamento, dado que se trata de um
cenrio de disputas econmicas entre diferentes organizaes, com interesses bastante
particulares. Contexto em que o corpo das crianas e adolescentes em situao de rua,
usurios de drogas, introduzido no mercado, capitalizado no mais como fora de
trabalho, mas como corpo doente, vulnervel, em torno do qual toda uma tecnologia
23
mdica e sanitria vai se estabelecer: ainda que poltica social, nunca deslocada do
liberalismo da poltica econmica (FOUCAULT, 2010).
Tal dimenso que no pode deixar de ser considerada ao se propor a pensar sobre
a implantao da UAI em So Paulo, mas tambm por se tratar de uma linha de fora que
certamente contorna as condies de possibilidade da realizao da prpria pesquisa.
Para nos guiar, elegemos algumas linhas de fora que nos oferecem pistas para
compor uma anlise das provenincias e uma histria da emergncia deste servio na
cidade de So Paulo. A primeira linha refere-se definio do campo de anlise, baseado
nos trabalhos genealgicos de Michel Foucault e Robert Castel.
A segunda composta por algumas anlises sobre a histria das prticas
direcionadas determinada populao infanto-juvenil no bojo das polticas sociais, em
dilogo com Michel Foucault e Jacques Donzelot. Como desdobramento dessa linha,
traamos alguns aspectos da histria da produo de infncias desiguais (NASCIMENTO,
2002), relativos aos modos de governo executados pelas polticas assistenciais
direcionadas infncia e adolescncia no Brasil, para enfim apresentar alguns efeitos das
composies das polticas sociais (Sade e Assistncia Social) com a Justia.
Por fim, uma terceira linha deriva de uma breve passagem pela histria das
polticas de drogas no intuito de considerar o contexto histrico em que se prope um
servio de moradia transitria como estratgia no campo da Sade Mental. Para a partir
da acompanhar sua emergncia na cidade de So Paulo, para enfim realizar alguns
apontamentos sobre o acolhimento institucional como estratgia de cuidado.
24
CAPTULO 1 POLTICAS SOCIAIS E GESTO DAS MULTIPLICIDADES
Biopoder: uma gesto calculada da vida
Em torno da demanda de proteo presente nas sociedades democrticas
contemporneas, verifica-se um desejo cada vez maior de um Estado Securitrio,
desembocando muitas vezes numa naturalizao das intervenes autoritrias e
repressivas sobre parcelas significativas da populao, mesmo que isso contrarie o
quadro normativo vigente. Como bem observou Castel (2005) vivemos em tempos de
insegurana, no qual cada vez mais h espao para o impondervel. Parece que, na
mesma medida em que desejamos cada vez mais uma vida longa, que investimos nosso
presente com projetos para o futuro, menos o futuro cabe em nossas vidas.
Para Foucault (2010, 2012) no toa a lgica da proteo produz o clamor e o
consentimento da populao s intervenes das instncias formais de governo, mesmo
quando expressam aes violentas como forma de garantir a segurana da sociedade.
Vejamos como o desenvolvimento de uma economia especfica de poder, apoiada numa
srie de tecnologias de gesto no corpo social, torna esses paradoxos possveis.
Foucault nos fala de um poder sobre a vida, que ento se insere nos objetivos da
poltica de uma maneira distinta, por meio da regulao da populao. A essas
tecnologias de administrao da populao, que se estabeleceu no sculo XVIII, Foucault
chamou de biopoder (FOUCAULT, 2005, 2008a, 2012a). Escreve Foucault:
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do sculo XVII,
em duas formas principais; que no so antitticas e constituem, ao contrrio,
dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermedirio de
relaes. Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no
corpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na
extorso de suas foras, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade,
na sua integrao em sistemas de controle eficazes e econmicos - tudo isso
assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
antomo-politica do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais
tarde, por volta da metade do sculo XVIII, centrou-se no corpo-espcie, no
corpo transpassado pela mecnica do ser vivo e como suporte dos processos
25
biolgicos: a proliferao, os nascimentos e a mortalidade, o nvel de sade, a
durao da vida, a longevidade, com todas as condies que podem faz-los
variar; tais processos so assumidos mediante toda uma srie de intervenes e
controles reguladores: uma bio-poltica da populao. As disciplinas do corpo e
as regulaes da populao constituem os dois polos em torno dos quais se
desenvolveu a organizao do poder sobre a vida. A instalao durante a poca
clssica, desta grande tecnologia de duas faces - anatmica e biolgica,
individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e
encarando os processos da vida - caracteriza um poder cuja funo mais
elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo. A velha
potncia da morte em que se simbolizava o poder soberano agora,
cuidadosamente, recoberta pela administrao dos corpos e pela gesto
calculista da vida. Desenvolvimento rpido, do decorrer da poca clssica, das
disciplinas diversas - escolas, colgios, casernas, atelis; aparecimento,
tambm, no terreno das prticas polticas e observaes econmicas, dos
problemas de natalidade, longevidade, sade pblica, habitao e migrao;
exploso, portanto, de tcnicas diversas e numerosas para obterem a sujeio
dos corpos e o controle das populaes. Abre-se, assim, a era de um 'biopoder'
(FOUCAULT, 151-152, 2012a)
Na passagem dos Estados Absolutistas para os Estados Administrativos, e
posteriormente, para os Estados Liberais, o bom governo deve garantir sade, riqueza
suficiente, seguranas, proteo contra acidentes etc. Afinal, uma nova ordem econmica
comea a se estabelecer criando uma necessidade de se ter corpos politicamente dceis e
economicamente produtivos (FOUCAULT, 1975).
Assim, o que marca o advento da modernidade, segundo as anlises de Foucault,
so as modificaes nas formas de relao de poder e suas racionalidades nos diferentes
tempos histricos. Foucault no deixa de reconhecer, contudo, que a populao j havia
sido objeto de intervenes polticas em outros perodos histricos, mas sublinha que h
uma abordagem caracterstica do problema no sculo XVIII, na Europa (AVELINO, 2011).
Na Idade Mdia, o exerccio de poder estava fundamentado sobre a sabedoria e a
verdade do texto religioso. Na passagem para os Estados Modernos, o poder do Soberano
torna-se central, e o exerccio de poder para alm de ser orientado pela sabedoria
religiosa, tambm incorpora a sabedoria do Prncipe, que por sua vez vai paulatinamente
26
dando lugar a uma nova racionalidade governamental, cada vez mais baseada nos
problemas do mercado, da populao, e da economia (IDEM).
Nas sociedades ocidentais sob o regime da soberania, o poder funciona
principalmente como um mecanismo de subtrao das riquezas e da vida, portanto, um
poder negativo e restritivo, em que o soberano pode matar para fazer valer seu poder.
Trata-se, enfim, de um poder de fazer morrer e deixar viver. A partir das transformaes
na racionalidade governamental, que representa uma mudana geral no regime de poder,
as figuras da vida e da morte ganham novos contornos, e o poder passa a funcionar
predominantemente na base da incitao, do reforo, do controle, da vigilncia, visando,
em suma, a otimizao das foras que ele submete (PELBART, 2011, p. 56).
As transformaes do cenrio econmico e a emergncia da populao como um
problema de governo foram condies de possibilidade para o estabelecimento de uma
nova modalidade de exerccio do poder. Do lado do indivduo, mecanismos disciplinares
que incidem sobre o corpo, com vistas a produzir utilidade econmica e docilidade
poltica - opera uma ortopedia corporal que individualiza; do lado da populao, uma
srie de intervenes e controles reguladores sobre a vida em sua dimenso biolgica -
doravante chamados de dispositivos de segurana.
Em ambos, observa-se uma gesto calculada da vida que se d por uma conjuno
de tecnologias que permite a um s tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os
acontecimentos aleatrios de uma multiplicidade biolgica (FOUCAULT, 2005, p. 302).
[...] no sculo XVIII, o que interessante, em primeiro lugar, uma
generalizao destes problemas: todos os aspectos da populao comeam a
ser levados em conta (epidemias, condies de habitat, de higiene etc.) e a se
integrar no interior de um problema central. Em segundo lugar, tm-se,
correlatos a este problema, novos tipos de saber: aparecimento da demografia,
observaes sobre a repartio das epidemias, inquritos sobre as amas de leite
e as condies de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de
aparelhos de poder que permitiam no somente a observao, mas a
interveno direta e manipulao de tudo isto. Eu diria que neste momento
comea algo que se pode chamar de poder sobre a vida, enquanto antes s
havia vagas incitaes descontnuas para modificar uma situao que no se
conhecia bem. (FOUCAULT, 1979a, p. 275)
27
Apesar de Foucault reconhecer uma mutao dos dispositivos de poder a partir do
desenvolvimento das tecnologias biopolticas, ele afirma que no se trata da substituio
dos mecanismos jurdicos e disciplinares pelos de segurana, mas sim de uma
reorganizao do sistema de correlaes entre esses mecanismos. Dito de outro modo a
interdio da lei e a regulamentao das disciplinas passam a operar conforme as
regularidades biopolticas no interior de uma sociedade de normalizao7 (FOUCAULT,
2008a).
E tais objetivos eram perseguidos atravs da formao de uma rede institucional
complexa, formada tanto por aparelhos do Estado, quanto pelos empreendimentos
privados e entidades filantrpicas; pela medicina (seja de iniciativa privada ou pblica),
pela educao, e tambm pelas famlias.
Governamentalidade, poder pastoral e produo de subjetividade
Com Foucault, vemos um tipo de poder, individualizante e totalizante, que se
alastrou por todo o corpo social ao encontrar apoio em uma diversidade de prticas e
instituies. A gesto das multiplicidades exige um saber, pois o bom governo depende
do conhecimento daquilo que se governa, ou dito de outro modo, da produo de uma
verdade sobre aquilo que se governa.
7 Se a norma e o normal surgem como exigncias de filiao a um corpo social que se quer homogneo no
interior das sociedades disciplinares, industriais (FOUCAULT, 1975), nas sociedades de segurana, o problema maior como realizar a gesto das anormalidades. O que fundamental e primeiro nos dispositivos disciplinares no o normal e o anormal, mas a norma - e neste caso Foucault prefere falar em normao. A disciplina tem por objetivo enquadrar na norma, no modelo, e o normal aquele capaz de se conformar norma. A disciplina funciona segundo uma lgica centrpeta e prescritiva, de distribuio segundo um sistema de legalidade que regulamenta sobre o que permitido, isolando, classificando, adestrando. No caso dos mecanismos de segurana, prprios da gesto biopoltica das populaes, em primeiro vem o normal ou a identificao das normalidades, de onde deriva a norma. O normal aqui no identificado em relao a uma norma preestabelecida, mas sim atravs de alguns procedimentos: a)levantamento e clculo dos riscos e probabilidades, com o consequente desenvolvimento da noo de perigo como risco diferenciado, b) anlise de caso tomando um acontecimento localizado como referncia para analisar um fenmeno que atinge uma dada parcela da populao, c) identificao da crise quando se d a multiplicao de certos casos e escalada do perigo, e d) a produo de diferentes curvas de normalidade. Os dispositivos biopolticos inserem os fenmenos em sries de acontecimentos provveis, funcionando num movimento de centrifugao: sem cessar so integrados elementos novos para que se possa observar e conhecer suas regularidades, e a partir da produzir um conhecimento sobre seu funcionamento e desenvolver novas tecnologias de gesto. (FOUCAULT, 2008a).
28
Paralelo a essas mutaes no exerccio do poder, Foucault (2008a, 2008b, 2012a)
identifica o aparecimento de uma nova racionalidade governamental a partir do sculo
XVI, em que a questo do governo passa a ser central: tornava-se imperativo definir uma
forma de governo especfico, prpria ao Estado8, que dever servir para o trato com a
coisa pblica.
por meio de um Estado de Polcia9, instncia administrativa que se volta para
promover sade e bem-estar populao, para assegurar a circulao de mercadorias e
pessoas, e garantir obedincia, que o Estado intervm e maximiza seu alcance sobre a
populao (FOUCAULT, 2008a, 2012c).
Foucault (2008a) forja o termo governamentalidade para se referir ao conjunto de
instituies, procedimentos e de prticas que permitem exercer uma forma bem
especfica de poder sobre a populao, acompanhados do desenvolvimento de uma
variedade de aparelhos especficos de governo, de um lado, de uma srie de saberes, de
outro. possvel falar, a partir de ento, de uma governamentalizao do Estado ou de
estatizao das governamentalidades, como expresso de uma estatizao de
determinadas prticas de governo.
8 importante mencionar que a noo de governo, conforme trabalhada por Foucault (2008a, 2008b), no
se confunde com uma prtica meramente administrativa e burocrtica que tem por objeto a unidade poltica do Estado ou um territrio, como geralmente o termo designado. O tema do governo revisitado em suas acepes anteriores clssica concepo que o reduz finalidade do Estado administrativo. Nos seus estudos sobre as artes de governar, o autor atenta para os diferentes modos que a noo de governo empregada desde o sculo XVI, poca em que o governo aparece como problema terico e prtico em diferentes instncias. Foucault (IDEM) identifica o tema da conduo das condutas numa srie de publicaes no religiosas, em textos tericos que se ocupavam em examinar a arte poltica de governar, alm de realizarem uma reviso inclusive da prpria funo do soberano. Se Maquiavel escreve O Prncipe (1513), que trata essencialmente da questo do principado como uma relao de exterioridade com os sditos colocando como problema a manuteno do seu poder, outros textos aparecem refletindo a questo do governo sob perspectivas diferentes. Por exemplo, o de Guillaume, que pensa as artes de governo na sua multiplicidade, ou seja, governar no como uma atribuio exclusiva do Estado, mas como prtica que se d em diferentes esferas (famlia, igreja, escola, etc.). Foucault tambm cita outro terico, Franois La Mothe Le Vayer, que sugere trs tipos de governo: o governo de si (moral), o governo da famlia (economia) e o governo do Estado (poltica), defendendo que haveria uma relao de continuidade entre eles. Trata-se, portanto, de uma noo de governo que diz de uma diversidade de formas de governar, entre as quais se podem identificar o governo do Estado, o governo da famlia, ou mesmo o governo de si, conforme analisa Foucault. 9 O termo polcia, no sculo XVI, referia-se uma estratgia de governo que atende necessidade do
soberano garantir paz e evitar guerras civis, paralelamente aos dispositivos diplomticos, que cuidavam das fronteiras.
29
[...] um Estado que j no essencialmente definido por sua territorialidade,
pela superfcie ocupada, mas por uma massa: a massa da populao, com seu
volume, sua densidade, com, claro, o territrio no qual ela se estende, mas
que de certo modo no mais que um componente seu. E esse Estado de
governo, que tem essencialmente por objeto a populao e que se refere e
utiliza a instrumentao do saber econmico corresponderia a uma sociedade
controlada pelos dispositivos de segurana. (FOUCAULT 2008a, p. 146)
Se at o sculo XVI a arte de governar estava ligada ao modelo absolutista,
monrquico e territorial, no sculo XVII vai se estabelecer aquilo que Foucault chamar
de Razo de Estado10, em que se governa segundo as regras que lhes so prprias. O
problema do governo passa a ser tratado para alm da manuteno da soberania, mesmo
que ainda submetido ao poder soberano11. A prtica governamental reconhecida como
a arte de exercer o poder segundo uma finalidade, um fim adequado; um poder que se
encarrega da disposio das coisas, de conduzi-las, da relao dos homens com outros
homens e as coisas (FOUCAULT, 2008a, 2008b).
O abandono das concepes teolgicas, jurdico-morais na explicao de
determinados fenmenos12, naturais ou sociais, deu lugar ao estudo dos fatores que
concorriam para a sua ocorrncia e busca da sua natureza, a fim de que fosse possvel
desenvolver mecanismos de gesto dos acontecimentos. Conhecer a regularidade dos
fenmenos, a sua naturalidade, comea a ser o princpio de um bom governo: o
10
Qual ser a ratio status do soberano? Foucault (2008a, 2012c) cita alguns autores da poca, como o jesuta italiano Giovanni Botero (1540-1617), que propunha uma definio de Estado como a dominao precisa sobre os povos, e a Razo de Estado como o conhecimento dos meios prprios para se fundar, conservar e fortalecer essa dominao; e tambm Giovanni Antonio Palazzo, que em 1604, props uma conceituao de Razo como meio de conhecimento que permite a vontade regular-se segundo a prpria cincia das coisas, e de Estado como a juno de quatro elementos: domnio, jurisdio, condio devida e qualidade de uma coisa. Governar, segundo uma Razo de Estado, um ato contnuo de criao e conservao do Estado. 11
O exerccio de poder sobre os sditos passou a se sustentar segundo nova racionalidade, combinando vigilncia das condutas individuais e controle das atividades econmicas e das riquezas, por meio do Estado de Polcia. Enquanto tcnica de governo do Estado, designava o conjunto de agentes pblicos que atuava no interior de uma comunidade para aumentar seu poder e exercer sua potncia em toda sua amplido (VON JUSTI, 1756, apud FOUCAULT, 2012c, p. 375) por meio da promoo do bem-estar e da felicidade da populao. 12
Foucault exemplifica com o problema da escassez de alimentos, que at a primeira metade do sculo XVIII era tratada como m sorte ou castigo divino. No interior de um sistema baseado em mecanismos jurdico-disciplinares, a tentativa de enfrentar o problema era buscando prevenir a escassez atravs da regulao do comrcio por meio de prticas de vigilncia, e limitando a estocagem de alimentos, aplicando-se um sistema de legalidade excepcional.
30
problema da segurana torna-se preocupao poltica no momento em que os Estados
tiveram de lidar com certos tipos de fenmenos que aconteciam aleatoriamente.
A partir do final do sculo XVII e primrdios do sculo XVIII acontece uma
transformao da racionalidade governamental, que se desloca da Razo de Estado onde
havia um modo de governar interventivo, para o que Foucault (2008b) chamar de Razo
Governamental Liberal, baseado na autolimitao interna do governo. As prticas de
governo deixam de ser postas em questo a partir de referncias externas por exemplo,
pelo direito que coloca em xeque os abusos do soberano , mas de acordo com os efeitos
do prprio ato de governar, ou seja, h uma regulao interna da prpria racionalidade
governamental. O estatuto de verdade sobre a realidade dado pela economia poltica13
que assumiu o lugar de inteligibilidade do governo.
Com base neste princpio possvel identificar a emergncia das racionalidades
governamentais como imanente ao desenvolvimento da Estatstica ou Aritmtica Poltica.
Esta cincia poltica busca revelar a regularidade prpria dos acontecimentos e das
populaes, que devero ser calculadas, reguladas e eventualmente modificadas
(FOUCAULT, 2012c).
Segundo as anlises de Foucault (2008a, 2008b), h um desbloqueio histrico
desta nova arte de governar entre os sculos XVII e XVIII em funo do aumento da
produo agrcola e abundncia monetria. O problema do governo passa a ser refletido
para alm da manuteno do poder soberano, agora alicerado numa economia poltica
que se desenvolvia, favorecendo a emergncia de um Estado administrativo, marcado
pelas regulamentaes e disciplinas. Com o pice do mercantilismo e a expanso
demogrfica, coloca-se um novo problema para o Estado: a gesto da populao.
A Razo Governamental Liberal, no entanto, no deve ser tomada em oposio
Razo de Estado que a antecede, mas como uma inflexo no interior da prpria
racionalidade governamental, uma vez que noo prpria da Razo de Estado mantm-
se associadas a ideia de utilidade e de segurana. 13
Uma certa noo de uma economia poltica se estabelece: a economia, que era pensada como um tipo de governo especfico o governo da famlia ou o governo da casa torna-se o modelo por excelncia de governo poltico. Economia poltica ser o estudo da natureza das coisas, da regularidade dos fenmenos, enquanto a Estatstica aparece como um instrumento privilegiado para o desenvolvimento das governamentalidades possvel afirmar, portanto, que h uma relao estreita entre o problema da populao como finalidade de governo e o desenvolvimento de uma racionalidade cientfica (FOUCAULT, 1989, 2008a, 2012c).
31
Um dispositivo de segurana s poder funcionar bem, em todo caso aquele de
que lhes falei hoje, justamente se lhe for dado certa coisa que a liberdade, no
sentido moderno [que essa palavra]* adquire no sculo XVIII: no mais as
franquias e os privilgios vinculados a uma pessoa, mas a possibilidade de
movimento, de deslocamento, processo de circulao tanto das pessoas como
das coisas. E essa liberdade de circulao, no sentido lato do termo, essa
faculdade de circulao que devemos entender, penso eu, pela palavra
liberdade, e compreende-la como sendo uma das faces, um dos aspectos, urma
das dimenses da implantao dos dispositivos de segurana.
A ideia de um governo dos homens que pensaria antes de mais nada e
fundamentalmente na natureza das coisas, e no mais na natureza m dos
homens, a ideia de uma administrao das coisas que pensaria antes de mais
nada na liberdade dos homens, no que eles querem fazer, no que tm interesse
de fazer, no que eles contam fazer, tudo isso so elementos correlativos. Uma
fsica do poder ou um poder que se pensa como ao fsica no elemento da
natureza e um poder que se pensa como regulao que s pode se efetuar
atravs de e apoiando-se na liberdade de cada um, creio que isso a uma coisa
absolutamente fundamental. No uma ideologia, no propriamente, no
fundamentalmente, no antes de mais nada uma ideologia. primeiramente
e antes de tudo uma tecnologia de poder, em todo caso nesse sentido que
podemos l-lo. (FOUCAULT, 2008a, p. 64)
Se a liberdade das coisas e das pessoas condio para o bom governo do Estado,
o liberalismo pode ser tomado, ento, como prtica de produo, gesto e organizao
das liberdades. Os dispositivos de segurana regulam o fluxo das coisas e das pessoas, e o
liberalismo aparece como prtica governamental fundamentada numa economia poltica
que visa fazer funcionar essa liberdade, para que os indivduos produzam e consumam
suficientemente.
Em resumo, o Estado se consolida entre os sculos XVII e XVIII como unidade
poltico-administrativa, e a economia poltica se estabelece como princpio de
compreenso do real, daquilo que , mas tambm daquilo que dever ser critrio
normativo e regulador da realidade.
Foucault (2012c) identifica trs pilares que aliceram a constituio dos Estados
Modernos: as tcnicas diplomtico-militares como meios de proteger-se contra os
32
ataques externos, a polcia, que diz respeito s prticas que objetivam o fortalecimento
interno do Estado atravs da interveno direta deste sobre sua populao para
maximizar a fora dos homens, e o poder pastoral como modelo de governar condutas.
O poder pastoral, ou pastorado, uma arte de governar que encerra aspectos
individualizantes e totalizantes do poder. Segundo os escritos hebraico-cristos estudados
por Foucault (2012a), o pastorado caracterizava-se por ser um poder que no se exercia
sobre um territrio - como o caso do modelo grego de governo da polis -, mas em torno
de uma multiplicidade em movimento. A imagem trabalhada por Foucault a do pastor-
guia e seu rebanho que se desloca: o pastor zela pelo conjunto e por cada um, numa
viglia constante, para assegurar a salvao individual no outro mundo, nem que isso
represente o seu sacrifcio ou de qualquer membro do rebanho.
Uma das razes que torna possvel relacionar o modo de governo das condutas da
pastoral crist14 com o chamado Estado Providncia15 o problema da obedincia,
presente no exerccio de poder governamental, nas prticas de governo das populaes,
que se estabelecem em ltima instncia como governo dos indivduos por sua prpria
verdade (FOUCAULT, 2012c, p. 363).
Alm disso, possvel reconhecer na passagem do poder soberano aos Estados
governamentalizados, uma ligao entre modo de exercer o poder a certas formas de
individualizao e totalizao, bem como a processos de subjetivao por meio da
produo de uma verdade.
No entanto, ainda que seja possvel identificar os Estados como uma nova forma
do poder pastoral, Foucault salienta que h diferenas entre seus objetivos. Enquanto o
poder pastoral tinha por finalidade conduzir os indivduos para a salvao em outro
14
O modo de governar condutas tpico da pastoral crist pressupe: a) a formao de laos morais entre o pastor e o rebanho, o que significava que o pastor deveria dar conta de cada uma das aes dos membros de seu rebanho; b) o lao entre pastor e rebanho de obedincia submisso pessoal, concerne a uma relao de dependncia individual e completa, ou seja, a obedincia (...) no , como para os gregos, um meio provisrio para alcanar um fim, mas antes um fim em si mesmo; c) que haja uma forma de conhecimento particular do pastor sobre cada um dos membros do rebanho, que era garantido por meio da incorporao, no sem modificaes, de duas prticas caras cultura helnica: o exame de conscincia e a direo de conscincia, operadas por meio da confisso; d) que a ascese crist atinja o objetivo da mortificao, uma renncia do indivduo a si e a este mundo, uma espcie de morte cotidiana (FOUCAULT, 2012a, p. 360-362). 15
Para Foucault (2012a), uma das numerosas reaparies do delicado ajustamento entre poder poltico exercido sobre sujeitos civis e o poder pastoral que se exerce sobre indivduos vivos (p.359)
33
mundo, o problema dos Estados Modernos ser assegur-la imediatamente (FOUCAULT,
1995).
Se a gesto das multiplicidades conforme o princpio pastoral exige um saber, pois
o bom governo depende do conhecimento daquilo que se governa, por outro lado, a
formao do Estado Liberal, que tem como fundamento a lgica do contrato social, s se
efetiva a partir do momento em que se produziram subjetividades obedientes. Ou seja,
desde a governamentalizao dos Estados, a produo de racionalidades
suficientemente obedientes aos objetivos do poder um problema poltico
historicamente importante (AVELINO, 2011, p. 89).
Paradoxos do liberalismo: liberdades e seguranas
Tomando aquele mesmo contexto de transformaes das artes de governar do
Estado, foi em torno da figura do assalariado que Castel procedeu a sua genealogia. Diz
Castel (1978) que o sculo XVIII descobriu a relao entre riqueza e trabalho, o que
reposiciona os considerados indigentes na estrutura da sociedade, num tempo em que a
Revoluo Francesa romperia com o sistema de privilgios do clero e da nobreza,
instaurando a sociedade liberal contratual e fundando uma nova ordem jurdico-poltica
baseada na igual soberania dos indivduos, com impactos em todo continente europeu.
Se nas sociedades pr-industriais a condio de assalariado era considerada
indigna, com a industrializao h uma nova inscrio do trabalhador na estrutura social,
em torno da figura do assalariado que a vida social passou a se organizar (IDEM).
Todavia, havia aqueles que no se enquadravam na nova ordem econmica de produo.
A nova organizao de um mercado de trabalho, fundamentado na ideia de venda da
fora de trabalho pelo indivduo livre, no garante a absoro de todos aqueles que
viviam em condies de misria. Pelo contrrio, diz Castel cria ele prprio [o mercado de
trabalho] a indigncia, pela poltica de baixos salrios, a constituio de uma faixa de
desemprego, a frequncia das crises econmicas, etc. (1978, p. 121-122), afinal:
O princpio do livre acesso ao trabalho , de fato, o quadro legal da explorao
operria, e no o livre acesso de todos aos meios de subsistncia. Que a riqueza
esteja fundada no trabalho significa, na realidade, que o rico tem necessidade
34
do pobre e que dele deve poder dispor para assegurar seu prprio lucro.
(CASTEL, 1978, p. 121)
A proteo e a segurana dos indivduos16 deixam de ser garantidas por sua
pertena a uma comunidade (proteo de proximidade) - comum nas sociedades pr-
industriais -, e passam a depender principalmente da propriedade individual. Os que no
possuem propriedade devem alcan-la pela venda de sua fora de trabalho: o salrio
torna-se um tipo de propriedade privada (CASTEL, 2005, 1998).
Uma nova paisagem da assistncia comea a se estabelecer diante das condies
distintas de acesso ao trabalho que a ordem de produo econmica impe. Se por um
lado, era preciso promover fora de trabalho nas indstrias e a produtividade destes
trabalhadores, de outro era preciso garantir a paz e a ordem na sociedade. A misria
identificada como potencializadora de revoltas e motins, no injustia, j que uma
consequncia necessria do funcionamento da mquina social. Mas, representa, no
obstante, um mal e um perigo (CASTEL, 1978, p. 125).
A defesa da propriedade privada e a busca do lucro so os fundamentos da
ordem social e no poderiam ser colocados em questo. Portanto, nenhum
direito dos pobres que possa contradizer as leis do mercado, nada de "caridade
legal", em nome da qual os mais desmunidos possam reivindicar o que s
exigvel como contrapartida de uma troca. Mas, se a desigualdade das
condies uma justa consequncia do crescimento das sociedades, preciso
controlar seus efeitos, a fim de que ela no atinja um limiar de ruptura, a partir
do qual, os sacrificados se precipitariam em solues extremas, declarando a
guerra social. (IDEM, grifos meus).
16
Castel (1998), fala de sociabilidade primria e secundria para diferenciar os modos de solucionar problemas - individuais ou coletivos - em diferentes sociedades. Na sociabilidade primria, caracterizada pela existncia de redes de interdependncia e pertencimento, e organizadas segundo um conjunto de regras e tradies, possvel identificar uma forma de engajamento coletivo em torno das necessidades que se impem ao grupo - sem mediao institucional. A sociabilidade secundria, por sua vez, marcada pela forma de proteo que ofertada pelo Estado, e supe a participao em grupos especficos e uma especializao das atividades e das mediaes institucionais, modelo tpico das sociedades modernas ps-industriais. Castel assinala especialmente a exploso demogrfica e crescimento das cidades e seus efeitos de cronificao da pobreza e desterritorializao do trabalho como fatores de desproteo, decorrentes da nova ordem econmica que se instaurava. Ver tambm: CASTEL, 2005.
35
Enfim, os pobres e os improdutivos de toda ordem precisam ser gerenciados, e um
campo de gesto da misria reservado no conjunto da sociedade: o social.
Para Castel (1998), o social a expresso da divergncia entre o modelo
econmico liberal que comea a se estabelecer e a nova conjuntura jurdico-poltica
inaugurada no fim do sculo XVIII, baseada na igualdade de direitos. Assim, o social
passou a ser definido e considerado como campo e objeto de intervenes do Estado, no
intuito de responder ao hiato entre a nova organizao poltica e o sistema econmico
(MACERATA, 2010).
A gesto da pobreza, at ento apoiada principalmente nas prticas de caridade e
assistncia clerical, ou por meio do sequestro macio dos mendigos e improdutivos, e dos
desviantes de toda ordem, atravs dos grandes internamentos, torna-se cada vez mais
insuficiente e com alcance limitado, quando no muito oneroso para o Estado, diante do
aumento da misria da populao.
Dado que a nova configurao econmica incidiu na precarizao das redes
primrias de proteo, e que nem todos possuam condies de garantir suas seguranas
pela via do trabalho, os Estados europeus modernos institucionalizam a proteo atravs
de mecanismos que asseguram, minimamente, os recursos necessrios para que a
populao pobre, no represente um perigo ordem social.
Castel (1998) identifica o desenvolvimento daquilo que ele chamar de gesto
racional da indigncia no final do sculo XVIII, a partir da construo de uma rede
institucional social-assistencial, sustentada numa relao que no mais de
reciprocidade formal e sim de subordinao regulada. Uma relao de tutela. Tal a
matriz de toda poltica de assistncia (CASTEL, 1979).
O individuo sujeito autnomo enquanto for capaz de se dedicar a
intercmbios racionais. Ou ento sua incapacidade de entrar num sistema de
reciprocidade o isenta de responsabilidade e ele deve ser assistido. (...)
Familiarismo ou tutelarizao por um mandato pblico, no haver, para ela,
outra alternativa. (CASTEL, 1979)
A questo da proteo, enfim, torna-se um problema de governo. Esto postas as
condies para a institucionalizao do social (MACERATA, 2010) que se deu,
36
especialmente, pelo desenvolvimento da filantropia em suas diferentes modalidades -
assistencial e higienista - como desdobramento e refinamento das prticas caritativas
(DONZELOT, 1980).
Filantropia , portanto, a estratgia fundamental de gesto e sujeio das massas,
fundamentada num conjunto de prticas, teorias, saberes e tratados, tanto de
administrao pblica como de medicina. A assistncia pblica aos indigentes e
improdutivos torna-se uma questo de polcia e de administrao; passa a ser um dever
do governo; e at mais, uma necessidade do Estado (CASTEL, 1978, p.119).
Para Castel, este movimento expressa o paradoxo do liberalismo: as populaes
liberadas, cada vez mais pauperizadas, agora precisam ser enquadradas, vigiadas e
domesticadas. Ainda para o autor:
a liberdade da circulao dos bens e dos homens lhe necessria para a
obteno dos lucros mximos. Mas, destruindo as territorializaes naturais e
as relaes sociais orgnicas, ela exige, para a sua prpria sobrevivncia,
regulaes que contradizem seus princpios.
Donde, uma segunda linha de recomposio da problemtica da assistncia:
enquadrar, vigiar e domesticar as prprias populaes "liberadas" e, em
primeiro lugar, esse exrcito de pobres que o progresso aumenta atravs de seu
prprio desenvolvimento. Estratgia inversa do enclausuramento, j que se
trata de submeter as populaes no seu prprio meio, sem arranc-las do
movimento que elas produzem. (CASTEL, 1978, p.127-128, grifos meus).
possvel compreender o paradoxo liberal no como uma contradio, mas como
uma necessria combinao de elementos heterogneos a servio de uma economia
poltica. Foucault (2010a) mostra, por exemplo, que o estabelecimento do capitalismo
no produziu a privatizao da prtica mdica, pelo contrrio, estabeleceu as condies
para sua realizao como uma atividade social, uma prtica direcionada ao corpo social.
Afinal, o capitalismo:
[...] socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto fora de produo,
enquanto fora de trabalho. (...) O controle da sociedade sobre os indivduos no
se opera simplesmente pela conscincia, ou pela ideologia, mas comea no
37
corpo, com o corpo. Foi no biolgico, no somtico, no corporal que, antes de
tudo, investiu a sociedade capitalista. (FOUCAULT, 1979b, p. 80)
Castel, por sua vez, localiza as ligaes que o exerccio da medicina estabelecer
com o Estado, na identificao que se comea a fazer da criminalidade com a loucura,
pois na medida em que a estrutura contratual da sociedade se generaliza, ela impe a
rejeio daqueles que no podem entrar no seu jogo. Sociedade liberal e instituio
totalitria funcionam muito bem como um par dialtico. (CASTEL, 1978, p. 75, grifos
meus).
E nesse ponto, Castel esclarece que, quando as instituies totalitrias so
colocadas sob novas racionalidades cientficas, este deslocamento marca o nascimento da
medicina social, inspirando uma poltica geral da assistncia.
Enfim, naquele contexto, tanto Castel (1978) como Foucault (2010a) nos mostram,
estavam dadas as condies de possibilidade para a ampliao do poder psiquitrico para
alm das instituies totalitrias.
At ento, com Foucault (2008a, 2008b) acompanhamos os diferentes tempos e
funcionamentos da racionalidade governamental apontando para um tipo especfico de
governamentalidade liberal ligado diretamente produo da verdade, como o quadro
geral da biopoltica. Em paralelo dialogamos com Castel (1978, 1998), procurando
compreender a formao do campo social enquanto objeto de governo.
Com ambos, vimos que, diante da urgncia histrica poltica e econmica de
governo das populaes, um tipo de poder, individualizante e totalizante, se alastrou por
todo o corpo social por meio de uma diversidade de prticas e instituies. Agora, o que
nos interessa localizar a figura da criana no interior dessas prticas, para por em
evidncia aqui tambm as lgicas tutelares que Castel faz meno quando analisou os
processos de vulnerabilizao em curso na sociedade liberal.
38
CAPTULO 2 INSTITUIES DA INFNCIA
Do governo de crianas e adolescentes
Como visto, o advento do capitalismo industrial teve impactos na vida das
pessoas, e fez emergir novos problemas polticos a serem enfrentados pelo Estado, como
a exploso demogrfica e crescimento das cidades e seus efeitos de cronificao da
pobreza e desterritorializao do trabalho como fatores de vulnerabilizao (CASTEL,
1998). Este quadro por sua vez, tensionou o campo social ao produzir desigualdades,
colocando o Estado diante da problemtica de inocular os efeitos de revolta que a misria
acentuava.
Diante do perigo social, mecanismos e estratgias de tutelarizao de
determinados setores da sociedade, diversas das antigas formas de dominao (que,
contudo, no desaparecem totalmente) so criados como condio de existncia das
sociedades baseadas na lgica contratualista, justamente para dar conta daqueles que,
por uma srie de razes, no poderiam participar do sistema de reciprocidade formal.
Compem estes setores os pobres que no tinham acesso ao trabalho, os loucos e as
crianas.
Nas crianas, em particular, todo um investimento em profilaxia social passa a ser
depositado, na medida em que se reconhece nesta etapa da vida o momento crucial da
formao do carter e da preveno dos desvios de toda ordem.
Podemos afirmar, com Aris (1981), que infncia e criana so conceitos que no
se confundem, uma vez que as crianas ocuparam, historicamente, o espao social de
maneiras distintas. Podemos, ento, falar de produo e reproduo dos modos de ser
criana (VICENTIN, 2005). Somente no decorrer do sculo XVIII que um sentimento de
infncia toma corpo nas sociedades ocidentais europeias, perodo que tambm a sade
da populao se torna finalidade poltica.
O surgimento de um interesse especial pela infncia est atrelado ao lugar central
que a criana passa a ocupar nas relaes familiares e sociais. Primeiro, no que tange
conservao da sua sade e educao (entendida no apenas como transmisso de
conhecimento). E tambm como vigilncia e enquadramento moral, traduzido num modo
39
de organizao familiar relacionada construo de uma identidade de classe burguesa
(ARIS, 1981).
O reconhecimento da particularidade da infncia nas sociedades ocidentais
modernas foi acompanhado de um intenso investimento psicolgico e preocupaes
morais de conform-la s normas (VICENTIN, 2005, p. 26). Em torno da criana se
estabeleceu a medicalizao da famlia e do social e a prtica mdica se expandiu e se
fortaleceu.
Ao problema "das crianas" (quer dizer de seu nmero no nascimento e da
relao natalidade mortalidade) se acrescenta o da "infncia" (isto , da
sobrevivncia at a idade adulta, das condies fsicas e econmicas desta
sobrevivncia, dos investimentos necessrios e suficientes para que o perodo
de desenvolvimento se torne til, em suma, da organizao desta "fase" que
entendida como especfica e finalizada). No se trata, apenas, de produzir um
melhor nmero de crianas, mas de gerir convenientemente esta poca da vida.
(FOUCAULT, 1979, p. 199)
Naquele mesmo perodo, assinala Foucault, a criana aparece como objeto
privilegiado das aes do Estado: toda uma preocupao com a sade das crianas, com a
sua sobrevivncia, comea a se consolidar. Ser preciso investir nesta idade da vida de
modo a garantir seu bom desenvolvimento.
Alis, a construo de certa noo de desenvolvimento foi chave naquele perodo
para o fortalecimento dessas duas reas, atreladas a todo um conjunto de regimes
disciplinares que aparecero em torno delas. A noo de desenvolvimento diz de um
modo de compreender o processo prprio da vida biolgica e psicolgica do indivduo,
segundo o qual possvel comparar os indivduos, separ-los e situ-los em funo de
uma mdia, que se torna uma espcie de norma. Modalidade de poder disciplinar que foi
a condio de possibilidade para psiquiatrizao da infncia e a extenso do poder
psiquitrico para o campo social.
A criana que apresentasse desvios no seu desenvolvimento seria agora designada
como anormal: para alm da loucura, a imbecilidade e a idiotia passam a ser domnio
das cincias psi. (FONSECA, 2002). Nas palavras de Donzelot (1980, p. 121) o lugar da
psiquiatria infantil toma forma no vazio produzido pela procura de uma convergncia
40
entre os apetites profilticos dos psiquiatras e as exigncias disciplinares dos aparelhos
sociais.
Foucault (2006) descreveu uma empreitada institucional da disciplina em torno
das famlias no sculo XIX, que chamou de funo-psi, referindo-se organizao de um
dispositivo disciplinar que vai se ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania
familiar (FOUCAULT, 2006, p. 106), ou seja, onde a famlia fracassa na sua funo, uma
srie de outros dispositivos disciplinares so acionados, calcados nos discursos
psicolgicos, psiquitricos, psicossociolgicos, etc., emergentes naquele perodo.
Cada vez que um indivduo julgado incapaz de seguir a disciplina escolar ou a
disciplina da oficina, ou a do exrcito, no limite da disciplina da priso, a
funo-psi intervinha. E intervinha com um discurso no qual ela atribua
lacuna, ao enfraquecimento da famlia, o carter indisciplinvel do indivduo
(IDEM).
Donzelot (1980) chamou de Complexo Tutelar o dispositivo formado por prticas
de caridade, tecnologias filantrpicas e de assistncia mdico-higienista, sustentadas pela
autoridade judiciria ao mesmo tempo em que a fortalecia. Esse dispositivo representou
uma ampliao da tutela da infncia enquanto objeto de intervenes sociais.
A famlia, por sua vez, se concentrou, se limitou, se intensificou, ao ser inserida
nos cdigos, incorporada aos discursos morais, jurdicos e cientficos. Foi necessrio
delimitar a famlia: reduzida s relaes afetivo-sexuais baseadas no parentesco e filiao,
com funo bastante explcita: manuteno dos sistemas disciplinares. (FOUCAULT, 2006,
p. 103). Alvo privilegiado das prticas filantrpicas assistenciais e higienistas nos sculos
XVIII e XIX, ela foi colocada num jogo foras que, ao mesmo tempo entendida como um
ponto de apoio para o controle das massas na esfera pblica e como um agente
recuperador das normas estatais no mbito privado (DONZELOT, 1980).
A seguir, consideraremos alguns aspectos da histria da assistncia s crianas e
adolescentes no Brasil, na tentativa de compreender como certos mecanismos
disciplinares e biopolticos passaram a operar por aqui.
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A assistncia infncia no Brasil
At o sculo XVIII, a infncia no chegava a ser uma questo que o Estado
brasileiro tinha que se ocupar, sendo preocupao de mbito privado, familiar e religioso.
As primeiras polticas de Estado direcionadas a esta populao dirigiu-se s crianas
abandonadas. A Roda dos Expostos pode ser considerada a primeira forma de assistncia
oficial dirigida a crianas no Brasil, que remonta ao perodo coloni