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U n i v e r s i d a d e L u s ó f o n a d e H u m a n i d a d e s e T e c n o l o g i a s
T E S E D E L I C E N C I A T U R A E M S O C I O L O G I A
C a d e i r a d e S e m i n á r i o - E s t á g i o , 4 º a n o
ONDE É QUE EU VOU TOCAR ESTA NOITE ?
A construção social da Jam Session
Carlos Cardeira e Gustavo Pereira
Lisboa Dezembro de 2006
Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................1 Capítulo 1 Para uma Sociologia da Jam Session 1. Improvisação para-sociológica (ou um problema improvisado) ....................................4 2. Jam session: origens do conceito ...................................................................................6 Capítulo 2 A Construção Social da Jam Session 1. A construção social do valor artístico.............................................................................15 2. As hipóteses de trabalho .................................................................................................25 Capítulo 3 Estratégia de Pesquisa 1. Estudar (o) jazz em Portugal ..........................................................................................29 2. População-alvo ...............................................................................................................30 3. Técnicas de recolha e análise de informação..................................................................32 Capítulo 4 Análise e Discussão dos Resultados 1. Os lugares da jam session ...............................................................................................35 2. Clubes diferentes, performances diferentes....................................................................38 3. Práticas e representações da jam session ........................................................................50 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................61 Bibliografia ..............................................................................................................64 Anexos Guiões das entrevistas ..............................................................................................67 Transcrição das entrevistas......................................................................................70 Análise de conteúdo..................................................................................................97
Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
INTRODUÇÃO
O tema que ocupa o presente estudo teve origem num conjunto de observações decorrentes
do universo quotidiano de um dos seus autores, indelevelmente ligado ao estudo da música
numa escola de jazz e à participação assídua em eventos relacionados com este género
musical e conhecimentos e redes de sociabilidade assim formados.
O contacto frequente com músicos e estudantes de jazz teve como resultado uma tomada de
consciência, no observador, do carácter plural das representações veiculadas sobre uma
performance característica desta forma de expressão musical: a jam session.
As opiniões expressas a este respeito salientavam, por um lado, a importância da
performance enquanto espaço de aprendizagem, de cooperação artística, de expressão criativa
e de apresentação dos músicos e, por outro lado, a presença de uma forte presença
competitiva na performance, o carácter «avaliativo» da situação face aos músicos envolvidos
ou a um público relativamente próximo do universo musical, assim como deixavam antever,
ainda que de uma forma bastante ambígua, a existência de uma espécie de hierarquia das jam
sessions relativa a uma idealizada forma «pura» do evento – argumento muitas vezes
invocado para justificar uma certa fidelização de alguns músicos e alguns públicos às
performances de determinados clubes, adesão essa a que geralmente não é estranha a
desqualificação de outros espaços, de outros músicos e de «outras músicas».
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
No entanto – e como pudemos constatar – mesmo as tomadas de posição mais vincadas se
revelam bastante relativizáveis na prática. “Nunca hei-de ir tocar ao Hot Clube (...) eles
estão lá para se rir de ti”, comentava um aluno de música referindo-se à jam session
organizada regularmente no Hot Clube de Portugal, o mais antigo e consagrado clube de jazz
do país, na qual ele participaria (não sem algum nervosismo) duas semanas depois; ou “o
público é um mostro sem cabeça”, respondia um músico à questão dos diferentes públicos da
performance, não deixando, no entanto, de considerar “lógica” a diferença, em termos do
constrangimento provocado, entre actuar num clube de jazz “regular” ou na “Meca” do jazz
português (o Hot Clube).
Foi todo este conjunto de situações, desde o antagonismo presente nos discursos produzidos a
respeito da prática da jam session, tanto em termos dos seus objectivos como da sua
legitimidade, até aos sentimentos de «temor» ou «reverência» que determinados clubes
suscitam em músicos mais ou menos reconhecidos, que nos levou a pensar este tipo de
performance artística como uma prática social particularmente vulnerável a manipulações
simbólicas por parte de diferentes grupos sociais, dotados de recursos e estratégias diferentes,
que lutam pela dominação no espaço social da música jazz em Portugal.
O resultado é uma investigação que parte da produção teórica produzida no seio daquilo a
que se veio a designar por Sociologia da Arte para interrogar os processos de produção e
reprodução daquilo uma jam session é, ou seja, do valor e da definição que, em determinado
momento no tempo, caracterizam a performance, de acordo com os actores, as instituições e
os contextos que contribuem para a sua realização.
Sob esta perspectiva, as práticas e representações da jam session são analisadas tendo como
pano de fundo o lugar que os agentes sociais envolvidos ocupam no campo jazzístico
nacional e a performance surge, em última análise, como um elemento estratégico, cuja
definição, sempre ambígua e polémica, parece constituir um lugar de confronto entre
diferentes grupos sociais – associados a diferentes concepções do evento – que visam fazer
tanto a defesa, quanto a crítica dos princípios de estruturação que actualmente condicionam o
funcionamento e a criação de reconhecimento do universo do jazz nacional.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
O trabalho que aqui se apresenta, então, encontra-se estruturado em quatro capítulos, de
acordo com as diferentes etapas contempladas no processo investigativo realizado. No
primeiro capítulo procede-se a uma discussão introdutória sobre a jam session e procura-se
delimitar o objecto de estudo em análise de acordo com a perspectiva singular que caracteriza
a sociologia; no segundo define-se a abordagem teórica mais apropriada à conceptualização
do problema colocado, avançando-se um conjunto de hipóteses explicativas pertinentes; no
terceiro procede-se à elaboração da estratégia de investigação mais adequada para a sua
compreensão e, finalmente, no quarto capítulo apresentam-se os dados referentes à análise
efectuada e confrontam-se esses dados com as hipóteses previamente avançadas, para depois,
em jeito conclusivo, se efectuar uma síntese do percurso percorrido, salientando-se as
principais ideias resultantes do trabalho de investigação e apontando os eventuais pontos
fortes e pontos fracos do seu desenvolvimento.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Capítulo 1
PARA UMA SOCIOLOGIA DA JAM SESSION
1. Improvisação para-sociológica (ou um problema improvisado)
O jazz não surgiu por acaso na cabeça destes investigadores. O jazz já lá estava antes de tudo
isto começar e lá há-de ficar quando tudo isto acabar. Ou talvez não. Mas isso não interessa
para este solo a dois. O que importa é a performance. A jam session e sua transmutação em
objecto de estudo sociológico.
Mas, tal como íamos dizendo, o jazz já lá estava. Passavam já cerca dois anos desde o
momento em que nos tornámos espectadores convictos de jam sessions e concertos de jazz e
o dia em que acordámos fazer uma tese sobre a jam session (estranha coincidência: foi no
trânsito matinal, a caminho da universidade, exactamente no mesmo dia em que tínhamos de
apresentar o projecto da tese).
Ao princípio não sabíamos bem como pegar no assunto, então começámos a ler, a observar e
a fazer perguntas (disse-nos um professor, uma vez, que um sociólogo ou anda aos papéis, ou
anda às pessoas). Só sabíamos aquilo que toda a gente sabe. Que o jazz existe no Hot Clube
de Portugal, uma pequena cave na Praça da Alegria, ao pé dos Restauradores. Era um bom
lugar para começar. Mas cedo fomos descobrindo que existem mais sítios, outros clubes,
talvez menos conhecidos, que não são subterrâneos e têm públicos e vocações diferentes, mas
que assumem o jazz (ou assumem-se de jazz) e organizam jam sessions.
À medida que a nossa curiosidade se alimentava e crescia, fomos percebendo que não é fácil
saber o que é uma jam session, ou, pelo menos, o que é uma verdadeira jam session.
Segundo consta, algumas performances (isto é, as performances de determinados clubes) são
demasiado «académicas», outras não são de jazz ou são forjadas (no duplo sentido do termo)
com músicos contratados, ou são demasiado constrangedoras porque apresentam um cariz
competitivo ou avaliativo muito elevados; por fim, alguns dizem mesmo que a jam session já
não existe.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Ficámos siderados. Afinal, a confusão era maior do que no princípio. Aquela definição que
buscávamos tão ansiosamente não existia. Existiam várias definições e o jazz parecia-nos um
mundo com vários «clubes», cheio de rivalidades... a questão de fundo persistia: o que é uma
jam session? A resposta era ambígua mas era a única possível: “não sei, mas parece que nem
todas as jam sessions são jam sessions para todos.”
Na generalidade, a prática confirma a falta de consenso discursivo acerca da questão. Nem
todos os músicos participam em qualquer jam session. De um modo geral, podemos dizer que
os músicos que participam regularmente nas jam sessions de um clube particular não
participam nas performances organizadas por outros clubes. Basta frequentar com alguma
assiduidade este tipo de eventos para o constatar. Se tivermos alguma memória fotográfica,
as caras começam a tornar-se reconhecíveis e passamos a associa-las aos espaços. Pode-se ir
ao clube X ou Y em noite de jam session sabendo que, muito provavelmente, vamos lá
encontrar o guitarrista A ou o baterista B.
Mas também nem todos os músicos são iguais. Há uns que tocam melhor do que os outros.
Mas, que diabo, é jazz... só percebe quem sabe! E também é verdade que toda a gente sabe
que não é sensato «sacar» do instrumento num jam session onde toda a gente sabe que o
nível está demasiado alto para o músico aspirante. O bom senso e o respeito por quem está a
tocar assim o exige. Afinal, “parece que nem todas as jam sessions são para todos.”
Toda esta informação deixou-nos ainda mais curiosos e confusos. Porquê que uns tocam num
sítio e outros noutro? Porquê tanta polémica a respeito da verdadeira jam session? Como se
sabe onde e quando se deve ou não deve tocar? E, talvez mais importante, mas o que é que
isto tem a ver com sociologia?
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
2. Jam session: origens do conceito∗
Jam session é um termo utilizado no universo da música para designar um tipo específico de
performance musical que envolve simultaneamente improvisação e interacção social
(Bernstein, 1954: 120).
Actualmente – e como uma simples pesquisa na internet revela – o termo parece ter
extravasado o universo musical, tendo passado a designar práticas que valorizam sempre uma
concepção criativa, informal, interaccional e cooperativa na realização dos seus objectivos
específicos – desde a improvisação nas mais variadas áreas artísticas até ao brainstorming
académico ou empresarial.
Porém, como esta pretende ser uma análise centrada na prática da jam session enquanto
performance característica da forma de expressão que geralmente designamos por música
jazz, será sobretudo em função da sua apropriação por esta cultura musical específica que
trataremos a questão da sua definição, deixando de lado as apropriações extra-musicais de
que o termo possa ser objecto.
Por outro lado, constituiria certamente um acto de desonestidade intelectual da nossa parte
deixar de reconhecer que o fenómeno da improvisação colectiva (Bernstein, 1954: 120), que
atrás fizemos corresponder à noção de jam session, não é um fenómeno exclusivo da tradição
musical jazzística, mas tem sido uma prática bastante comum de várias culturas musicais ao
longo dos tempos (Martin, Peter J. em Cooke e Horn, 2002: 139) – algumas das quais estão
de tal modo integradas no conjunto das actividades quotidianas da comunidade em que se
inserem que a palavra música não é sequer contemplada no seu vocabulário (Rowley, 1997:
80-86).
Apesar disso, é de facto no âmbito da música jazz que a improvisação musical assume uma
importância mais marcante. Para estes músicos, a prática da improvisação é considerada não
∗ O reduzido número de estudos de sociologia a que conseguimos aceder sobre o universo musical, em geral, e sobre o jazz, em particular, implicou, na discussão que se segue, a invocação de fontes que se inscrevem nos mais diversos âmbitos do saber. Assim, para além de algumas investigações sociológicas que mais directa ou indirectamente se ocuparam da análise da cultura jazzística e suas práticas características, recorremos também a estudos produzidos nas áreas da filosofia e estética musical, da musicologia, da história, assim como a relatos de informadores privilegiados sobre o assunto, como professores de música e músicos que participam regularmente em jam sessions.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
só como uma forma de expressão artística legítima, mas também – ou sobretudo – como um
elemento central em função do qual se estrutura toda a aprendizagem da música. É isto, no
fundo, que afirma o sociólogo americano Peter J. Martin quando refere, liminarmente, que
um dos maiores contributos dos músicos de jazz para a Música tem sido, além da reabilitação
da prática da improvisação na tradição musical ocidental, a criação de um art world1 singular
no qual a acção improvisativa consiste no principal objectivo de um músico (Martin, Peter J.
em Cooke e Horn, 2002: 134).
A este respeito, na discussão que desenvolve sobre as origens e a especificidade do jazz,
Christian Béthune salienta também a proeminência que a improvisação adquire nesta forma
de expressão. No entanto, para este autor, o aparecimento de performances improvisacionais
como a jam session está mais relacionado com factores de índole cultural característicos da
tradição musical jazzística do que com o simples prazer de improvisar (Béthune, 1998: 101).
Em termos históricos, o jazz constituiu-se no seio de uma cultura agnóstica na qual o
elemento competitivo era marcadamente valorizado e onde cada músico procurava
constantemente superar os seus modelos de referência. Segundo Béthune, seria esta
importância atribuída à dimensão competitiva pelos primeiros músicos de jazz o motivo
originário de práticas performativas singulares, como os chamados cutting contests ou
bucking contests (Béthune, 1998: 101) – performances musicais, mais ou menos
programadas, onde os músicos se confrontavam com o objectivo de demonstrar as suas
capacidades técnicas e criativas, recolhendo daí benefícios económicos, profissionais ou
sociais (Levin, 1998: 97). Seria este tipo de concursos que mais tarde resultariam na “forma
quase institucional da jam session” (Béthune, 1998: 101).
Amarrávamos um trapo ao cabo de uma vassoura e punhamo-lo à janela para anunciarmos um desses
concursos. Reuníamos muita gente – por vezes cem pessoas num pequeno apartamento! Pagavam 25
ou 50 centavos e podiam beber cerveja e comer miúdos de javali, tripas de porco e frango frito. Isso
ajudava-nos a pagar a renda durante os dias da Depressão (James P. Johnson, pianista, citado em
Levin, 1998: 97).
1 No sentido beckeriano do termo, isto é, como o conjunto dos indivíduos cujas actividades são necessárias para a produção dos objectos característicos que determinado mundo, e talvez outros, definem como arte. Para uma compreensão mais profunda do conceito e suas aplicações ver: Becker, Howard (1982) Art Worlds. University of California Press, Berkeley.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Mas nem todas as jam sessions possuem esta acentuada vertente competitiva ou este carácter
semi-privado, nem apresentam esta clareza e univocidade em termos dos seus objectivos ou
privilegiam do mesmo modo a presença da acção improvisativa na performance.
Paul Berliner – no profundo estudo que desenvolve sobre o processo de aprendizagem dos
músicos de jazz (Berliner, 1994) – refere que a jam session constitui uma das instituições
mais importantes da comunidade jazzística, que possui essencialmente funções lúdicas,
pedagógicas e de sociabilidade (Berliner, 1994: 41-44).
De acordo com este autor, o aparecimento deste tipo de performances musicais inscreve-se
num conjunto mais vasto de práticas, desde o simples encontro de estudo num espaço
privado até ao sitting in2, que constitui a vertente informal do ensino jazzístico, um aspecto
fundamental da formação destes músicos (Berliner, 1994: 42).
O termo jam session começaria justamente por significar um tipo particular de encontro
informal entre músicos, geralmente levado a cabo no espaço doméstico de algum dos
participantes, em estúdios profissionais ou em festas, em que qualquer músico que
aparecesse podia sempre participar (Berliner, 1994: 42).
Posteriormente, a crescente popularidade deste tipo de encontros viria, de um modo
progressivo, a fomentar a sua produção, já em moldes mais formais, por clubes de jazz ou
por organizações especificamente dedicadas ao jazz, como a Bebop Society de Indianapolis
ou a New Music Society at the World Stage em Detroit. Nesta altura, aliás, como Berliner
prontamente refere, começa a tornar-se bastante comum em determinados clubes de jazz a
presença de uma pequeno combo3 contratado (geralmente um instrumento de sopro
acompanhado por uma secção rítmica constituída por bateria, contrabaixo e piano) aos quais
se juntavam posteriormente, em jam session, os músicos que o quisessem fazer (Berliner,
1994: 42).
2 Berliner utiliza este termo para designar uma situação frequente em concertos de jazz em que se encontram músicos entre o público. Em tal contexto, diz-nos o autor, não é de todo incomum que o grupo contratado convide um desses músicos para tocar também em alguns temas (Berliner, 1994: 42). 3 Combo, do inglês combination, é a designação corrente dada a conjuntos de jazz de pequenas dimensões (3 ou 4 elementos), por oposição às mais numerosas big bands.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Seria a partir deste momento, em que as jam sessions começam a ser organizadas para
audiências e se começa a formar um circuito alargado de locais dedicados à organização
deste tipo de eventos, que a performance – na medida em que consiste num encontro
relativamente informal aberto à participação de qualquer músico presente no momento da
sua ocorrência – começa a ser um importante espaço para a apresentação dos novos músicos
à comunidade jazzística (Berliner, 1994: 43).
Ora, mas apesar da reivindicação de um forte sentido cooperativo e sociável da prática
musical, configurado na ideia de um espaço performativo onde qualquer um se pode
expressar livremente, o que parece ser certo é que, na prática, e de um modo bastante
informal, a verdade é que nem todos os músicos podem de facto participar em qualquer jam
session.
Há performances que, estando virtualmente abertas a todos, permanecem fechadas aos
músicos menos reconhecidos. É neste sentido que Paul Berliner refere que os músicos
distinguem as jam sessions em termos das capacidades dos seus participantes, abstendo-se de
participar em performances que, do seu ponto de vista, apresentam um nível muito alto para
as suas capacidades momentâneas (Berliner, 1994: 42).
In Chicago, musicians knew that the session “at a certain club down the corner was for the very heavy
cats and would not dare to participate until they knew that they were ready”, Rufus Reid recalls. As a
matter of respect, “you didn’t even think about playing unless you knew that you could cut the
mustard. You didn’t even take your horn out of your case unless you knew the repertoire.” At the same
time, naive learners did periodically perform with artists who were a league apart from them. David
Baker used to go to sessions including Dexter Gordon and Wardell Gray “when they came to
Indianapolis.” He hads with amusement, “I didn’t have the sense not to play with them” (Berliner,
1994: 43).
Já em relação aos aspectos competitivos da performance, Paul Berliner refere que, de facto,
muitas jam sessions se transformavam em cutting sessions quando dois ou mais músicos
decidiam fazer um «despique» musical, prática bastante comum sobretudo entre
instrumentistas do mesmo «naipe»: saxofonistas versus saxofonistas, trompetistas versus
trompetistas, etc. (Berliner, 1994: 44).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
A este respeito, Lawrence Nelson, na tese que desenvolve em The Social Construction of the
Jam Session4, chama a atenção para a pertinência analítica da distinção, em termos ideal-
típicos, entre as chamadas cutting sessions e as jam sessions. Para o autor, apesar de ambos
os tipos de performances apresentarem muitas características em comum, a jam session pode
ser definida essencialmente pela actividade cooperativa dos seus participantes, enquanto que
a cutting session se distingue, em primeiro lugar, por ser um espaço de competição entre os
músicos (Nelson, 1995).
A análise de Nelson descreve ainda três mecanismos que o autor considera importantes na
manutenção da estrutura de uma jam session: a liderança, que se relaciona com as diferenças
de estatuto existentes entre os participantes de uma determinada performance; o
comportamento-sanção5, que remete para as acções, desenvolvidas pelos participantes de
uma jam session, que visam expressar a sua desaprovação pela quebra de alguma das regras
informais da performance por parte de um ou mais dos músicos presentes; e, por fim, a
resposta do público, que constitui uma peça fundamental para a valorização dos músicos e
que, como tal, contribui em conjunto com os outros participantes para a produção da
realidade social do evento (Nelson, 1995).
Finalmente, alguns autores demonstram ainda algumas reticências em aceitar sem reserva a
questão da centralidade da presença da improvisação nas práticas musicais jazzísticas,
considerando mais fidedigno dessa realidade salientar a existência de um continuum de
práticas improvisacionais situadas entre a simples interpretação «inspirada» de um tema
escrito e a eliminação por completo das estruturas musicais que habitualmente estão
subjacentes às práticas de improvisação mais generalizadas.
De facto, de um modo geral, o que se faz numa jam session é improvisar sobre blues6 ou
standards7. Este tipo de estruturas musicais, juntamente com alguns temas de músicos de
jazz consagrados (temas de autor) ou extraídos do espólio da Música Popular Brasileira
(MPB), constitui o repertório comum da tradição musical jazzística que Christian Béthune 4 Trabalho não publicado a que tivemos acesso por cortesia do próprio autor, com quem estabelecemos contacto via correio electrónico durante o desenvolvimento da presente investigação. 5 Sanctioning behaviour no original. 6 Temas estruturados geralmente em três frases de quatro compassos cada, perfazendo na sua totalidade doze compassos (Rowley, 1997: 72). 7 Canções populares da Broadway, geralmente de 32 compassos, adaptadas para um uso jazzístico (Rowley, 1997: 72).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
identifica como um dos motivos originários do jazz (Béthune, 1998). São os temas clássicos
do jazz. Composições cuja importância é socialmente reconhecida pela comunidade de
músicos de jazz e, ao mesmo tempo, a base da formação dos aprendizes deste género
musical. Conhecer um destes temas significa conhecer uma melodia, a sua estrutura
harmónica de base, o tempo a que costuma ser tocada e os arranjos característicos que
geralmente lhe são aplicados.
É através da invocação deste repertório comum e do apelo à capacidade de improvisação dos
músicos que se realizam grande parte das jam sessions: escolhe-se um tema que todos, ou
quase todos, os intervenientes conheçam, e os músicos improvisam sequencialmente (e por
vezes simultaneamente) sobre a sua estrutura harmónica. Em muitos concertos todas as
composições seguem o mesmo esquema: um tema introdutório, seguido de vários espaços
abertos, contíguos e sequentes, para cada músico improvisar, e o regresso ao tema inicial
para finalizar (Hargreaves, 2000: 7).
Mas o recurso a um repertório comum de temas sobre os quais se improvisa não esgota o
universo das possibilidades estéticas do fenómeno. Podemos dizer que há jam sessions onde
a possibilidade de tudo ser criado de novo é contemplada. Nestas situações, onde não existe
nenhuma estrutura harmónica predefinida, o elemento de espontaneidade e a componente
improvisativa estão mais presentes e o nível de incerteza da situação aumenta bastante8. É a
este tipo de performances que se refere David Hargreaves, na análise que efectua sobre
Criatividade Musical e Improvisação em Jazz (Hargreaves, 2000), quando, a título
ilustrativo, caracteriza o free jazz como um género musical que “apresenta um elevado grau
de improvisação e desestruturação” (Hargreaves, 2000: 8).
No outro extremo, o já referenciado Peter J. Martin argumenta que apesar de ser através da
relevância concedida à prática da improvisação que o jazz mais se distancia dos
procedimentos característicos da tradição musical ocidental, existem de facto performances
de jazz onde a acção improvisativa se encontra reduzida a um mínimo, como nos casos onde
essa acção apenas se processa ao nível do adornamento da melodia principal de um tema
(Martin, 2001: 133).
8 Torna-se mais difícil antecipar e controlar o resultado estético da performance, assim como a resposta do público.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
A jam session surge assim, no termo deste percurso, como um conceito amplo, que engloba
uma multiplicidade de práticas musicais com características muito diversas, quer em termos
musicológicos – do estilo, técnica e privilégio da improvisação nas performances – quer em
termos sociais – do carácter público ou privado da situação e da maior ou menor formalidade
das interacções, ou dos estatutos sociais dos agentes envolvidos e dos objectivos subjacentes
à experiência musical.
E mesmo determinados indicadores que, devido ao seu carácter mais pragmático,
poderíamos considerar mas fiáveis para caracterizar um evento do género – como a presença
ou ausência de arranjos escritos na performance – se revelam bastante relativos face à real
complexidade do fenómeno9. Além disso, e como o demonstraram as conversas informais
com músicos que no fundo estiveram na origem deste projecto de investigação, todos estes
factores de caracterização se tornam ainda mais ambíguos quando confrontados com a
interpretação subjectiva dos seus protagonistas.
Ora, voltando então à questão daquilo que é ou não é uma jam session, e da relatividade das
definições e reivindicações veiculadas a esse respeito, teremos talvez que moderar as nossas
expectativas e aceitar, tal como refere o sociólogo francês Pierre Bourdieu, que uma das
questões mais fundamentais que devemos ter em linha de conta quando nos debruçamos
sobre o(s) universo(s) artístico(s) é que se há uma verdade nestes campos da vida social – tal
como noutros, aliás – é que a própria verdade é um objecto de lutas entre os diversos agentes
que intervêm nesse espaço de acção e que, por meio de estratégias, recursos e interesses
diversos, competem entre eles para ocupar uma determinada posição na relação de forças que
caracteriza um dado momento desse espaço – para agora ser mais fiel à terminologia do
autor – da prática social (Bourdieu, 2001: 293).
O que importa aqui salientar, portanto, é que a verdade, então, nestes termos, é que aquilo
que a arte e as práticas artísticas são e o valor que detêm em determinado momento no
9 Bastien e Hostager (citados em Nelson, 1995) consideram a ausência de arranjos escritos uma das especificidades de eventos como a jam session. Lawrence Nelson, no entanto – tal como nós próprios, aliás – regista a utilização, cada vez mais legitimada e frequente entre os músicos, dos chamados Real Books nas jam sessions. Livros de pautas que contêm os temas clássicos do jazz. O autor avança ainda com uma hipótese, quanto a nós bastante perspicaz, que relaciona o grau de competitividade da performance com o uso de pautas. De acordo com Nelson, as jam sessions seriam mais permissivas em relação à sua utilização, enquanto que nas cutting sessions a sua interdição seria o mais comum (Nelson, 1995).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
espaço e no tempo, não podem nunca ser compreendidos fora dos contextos sociais onde a
sua produção e consumo ocorrem e que em todo o caso contribuem para a produção da sua
definição social.
Howard S. Becker, por exemplo, na sua obra já clássica da sociologia da arte – Art Worlds
(Becker, 1982) – considera que a definição daquilo que constitui ou não arte é relativamente
arbitrária e mais dependente da formação de consensos sociais a respeito dessa condição, do
que algo inerente às qualidades estéticas dos objectos propriamente ditos (Becker, 1982 em
Zolberg, 1990: 80).
De acordo este autor, a arte é uma construção social cuja natureza pode ser melhor
compreendida se a sua produção – não só na sua materialidade mas, sobretudo, naquilo que
nela há de simbólico – for entendida enquanto um processo que envolve a participação de
uma variedade de actores, alguns dos quais detentores do poder social necessário para
conceder esse tipo de valor aos objectos (Becker, 1982 em Zolberg, 1990: 80).
Howard Becker, então, para além de aceitar sem reservas a questão da relatividade das
definições artísticas, considera também a existência de vários universos artísticos diferentes,
cujos actores se encontram envolvidos no processo de produção de arte, procedendo à sua
definição à medida que consideram a inclusão ou exclusão de objectos nessa categoria
(Becker, 1982 em Zolberg, 1990: 80).
Neste sentido, aquilo que constitui ou não uma obra de arte ou uma categoria ou evento
artístico é uma questão de natureza sobretudo sociológica (Tota, 2000: 36) que nunca estará
definitivamente resolvida, mas que deve ser analisada pontualmente, caso a caso,
substituindo-se “a questão ontológica pela questão histórica da génese do universo em cujo
seio se produz e se reproduz incessantemente, numa verdadeira criação contínua, o valor da
obra de arte, quer dizer, o campo artístico” – isto é, o lugar social onde se produzem os
agentes, os técnicos, as categorias e os conceitos característicos desse universo e que, no
fundo, “são produto de um longo e lento trabalho histórico” (Bourdieu, 2001: 288).
Neste trabalho, a análise da acção dos produtores – das suas práticas e representações
(daquilo que fazem e daquilo que pensam e dizem sobre aquilo que fazem) – adquire uma
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
importância fundamental, já que ela é um dado essencial na produção e reprodução, em todos
os momentos, do valor da arte e do artista (Bourdieu, 2001: 280-299).
Com efeito, para além da importância das actividades de recepção das obras na constituição
dos artefactos mentais que constituem aquilo que Alexandre Melo identifica como a
dimensão simbólica, socialmente construída, da existência das obras de arte (Melo, 1994),
são também os produtores e os contextos organizativo-instituicionais onde as obras são
produzidas que fornecem, criando e recriando a obra de arte nesse processo, as instruções
para o uso da obra que devem ser seguidas na sua apreciação (Tota, 2000: 44).
Ora, é nesta perspectiva que nos colocamos para reflectir sobre a performance musical que
temos vindo a descrever, partindo da análise das práticas e representações dos agentes
envolvidos – músicos, mas também agentes institucionais ligados à produção deste tipo de
eventos – para perceber o que é uma jam session em Portugal? Como se produz e reproduz,
no panorama jazzístico nacional, a sua definição social? Qual o papel dos músicos na
construção dessa definição ou definições e como é que estas influenciam – se é que
influenciam – os seus percursos profissionais? Quais os grupos sociais e instituições
envolvidos? Quais as práticas mais comuns da performance e como é que estas são avaliadas
pelos agentes que participam? Finalmente, porque é que uns músicos tocam numa jam
session e outros noutra?
Estas são, portanto, algumas das questões a que tentaremos dar resposta no curso desta
investigação, esperando que ela consiga trazer alguma luz a respeito dos processos de
formação daquilo que é – enquanto prática socialmente construída e reconstruída – uma jam
session, projecto que desenvolveremos aqui, sobretudo, com base nas teorizações produzidas
a este respeito pelos já referenciados sociólogos Pierre Bourdieu e Howard Becker, dois
autores que muito marcaram a investigação sociológica sobre o universo artístico e suas
práticas.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Capítulo 2
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA JAM SESSION
1. A construção social do valor artístico
Tal como vimos no capítulo precedente, é no seio da problemática da construção do valor e
das definições artísticas que aqui colocamos a questão do fenómeno da jam session, tomando
como objecto de análise desta investigação os processos através dos quais o conteúdo
daquela performance é socialmente produzido e reproduzido no contexto dos grupos sociais e
das instituições que em Portugal estão envolvidos na sua dinamização.
Importa agora, portanto, definido assim o objecto de estudo em análise, trabalhar no sentido
do aprofundamento de alguns conceitos, dimensões e hipóteses que orientem a reflexão que
aqui se pretende desenvolver.
De facto, apesar de relativamente recente, a discussão sobre a relatividade das convenções
artísticas e o carácter socialmente construído da arte tem estado no foco de análise de alguns
dos mais destacados pensadores actuais da sociologia.
Neste âmbito, parece-nos particularmente fecunda para a nossa discussão a análise que Pierre
Bourdieu desenvolveu sobre a temática da arte, nomeadamente a partir dos conceitos de
campo, habitus e capital simbólico, assim como a reflexão que Howard Becker sistematizou
sobre o mesmo tema na obra Art Worlds (Becker, 1982), pelo que será fundamentalmente a
partir destes dois autores que desenvolveremos a discussão que se segue.
Ora, para Pierre Bourdieu, não se deve estranhar o facto de as categorias utilizadas para
classificar as obras de arte se caracterizarem sempre por uma grande indeterminação,
flexibilidade e incerteza relativamente aos seus conteúdos, já que a sua utilização e o seu
sentido são dependentes dos pontos de vista individuais, social e historicamente situados, dos
agentes que as mobilizam (Bourdieu, 2001: 291).
Quando os agentes envolvidos num qualquer campo da vida social falam sobre uma obra,
artista ou género ou estilo artísticos, enaltecendo a sua virtude ou condenando a sua
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
mediocridade, eles estão no fundo e colocar a questão do estabelecimento dos limites do
mundo da arte e daquilo que deve ser incluído ou excluído desse território, ou seja, daquilo
que, em determinado momento no tempo e no espaço, deve ou não ser considerado arte
(Bourdieu, 2001: 281-298).
Como refere a socióloga Anna Lisa Tota a respeito da Arte como Tecnologia da Memória,
“comemorar implica desde logo competir por uma certa definição social de um
acontecimento”, processo que é complexo e que envolve “fortes tensões conflituais” cujo
confronto e recomposição resultará num conjunto de “definições do acontecimento em
questão mais ou menos ambivalentes” (Tota, 2000: 112).
Do mesmo modo, Vera Zolberg considera que o universo artístico se caracteriza por ser um
universo bastante competitivo onde artistas e seus apoiantes lutam pelo reconhecimento e
debatem interminavelmente sobre a qualidade estética dos seus trabalhos ou sobre o tipo de
obras que devem ser incluídas na categoria de arte (Zolberg, 1990: 21).
Aquilo que está em jogo, portanto, e em última análise, é sempre a definição dos limites da
arte e de quem tem o poder necessário para impor essa definição, questões que não são de
todo pacíficas e que colocam em confronto o conjunto dos agentes sociais, individuais e
institucionais, que, com interesses e recursos diversos, estão envolvidos no âmbito na
produção desse bem socialmente produzido que é a arte.
Ora, esta questão é fundamental, já que é pelo trabalho de distinção entre aquilo que é ou não
é arte ou quem é ou não é artista que o universo artístico efectua distinções entre obras e
produtores, interferindo, deste modo, na distribuição dos recursos necessários à reprodução
do trabalho dos artistas (Becker, 1982: 131).
Voltaremos a esta questão mais tarde, por agora o que interessa aqui salientar é que o fazer
arte, o dizer-se artista, minimizando ou desvalorizando o trabalho dos outros nesse processo,
é, portanto, uma das maneiras mais recorrentes que os agentes envolvidos na produção de
bens com pretensão artística mobilizam para tentar impor e tornar propriamente universal a
sua maneira particular de ver e fazer a arte – a maneira pela qual supostamente todos os olhos
deveriam ver a arte.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
É por isso que Pierre Bourdieu coloca a questão da construção das definições e do valor
artístico enquanto dado relacional, que não pode ser correctamente compreendido sem se
atentar no conjunto das relações que se estabelecem entre todos os agentes que em
determinado momento no tempo competem para a produção – e, neste sentido, também para
a definição – daquilo que a arte deve ser (Bourdieu, 2001: 27-28).
Mesmo quando os agentes em presença não se referem uns aos outros, o que é certo é que o
seu interesse em singrar no mundo da arte e a pretensão à universalidade das suas disposições
artísticas particulares não podem deixar de se situar, nem que seja de uma forma indirecta –
por oposição, negação ou exclusão – relativamente aos interesses de todos os outros agentes
envolvidos na produção artística (Bourdieu, 1997: 43).
Esta é, de facto, uma das questões que Bourdieu invoca quando enfatiza a necessidade de se
perspectivar o mundo da arte como um campo social, ou seja, como um conjunto de relações
que se estabelece entre todos os agentes sociais, individuais e institucionais, cuja acção
contribui, ainda que em graus diferentes, para a produção daquilo que numa sociedade
ocidental contemporânea vem a ser definido como arte (Bourdieu, 1997: 42).
Então, se é certo que é de relações entre agentes e de interesses e visões sobre a arte e sobre o
artista de que falamos quando falamos dos processos de construção social das definições
artísticas, também não é menos verdade que, apesar da aspiração à universalidade a que atrás
nos referimos ser um aspecto comum ao campo artístico, tal como o definimos, nem todos os
agentes presentes no campo se encontram nas mesmas condições de fazer valer o seu ponto
de vista nesse mundo.
Ora, isto acontece, desde logo, porque são diferentes as possibilidades que à partida os
agentes sociais têm tanto de entrar nesse universo particular que é o universo artístico – o
mundo onde se produzem os bens artísticos – como de nele se estabelecerem de uma forma
mais ou menos sólida e/ou profissional.
O surgimento de uma vocação artística, entendida aqui como o sentimento ou o impulso com
que muitos artistas justificam o seu cometimento à actividade artística, é profundamente
condicionado pelas origens sociais de quem a sente, o que implica não só que a dedicação à
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
arte, ao fazer arte, constitui uma variável socialmente condicionada, mas também que o
modo como aqueles que realmente a querem fazer se encontram inseridos no respectivo
universo de produção depende muito dos contextos sócio-culturais e artísticos presentes no
seu desenvolvimento em meio familiar (Pais, 1995: 103-149).
Como revelam vários estudos internacionais levados a cabo sobre as práticas artísticas nos
países ocidentais, grande parte dos indivíduos que se dedicam à arte são oriundos de famílias
com um estatuto sócio-cultural elevado, assim como, numa percentagem bastante alargada,
de famílias em que já era desenvolvida alguma tradição de prática artística (Pais, 1995: 108).
Em particular – e centramo-nos aqui especificamente na análise coordenada por José
Machado Pais no Inquérito aos artistas jovens portugueses (Pais, 1995) – é precisamente em
famílias onde já existia uma vocação de âmbito profissional para as artes que existe uma
influência no sentido de uma maior facilidade de estruturação da carreira artística por parte
dos filhos, nomeadamente no sentido também da sua profissionalização (Pais, 1995: 112).
Por outro lado, não podemos também, ainda na perspectiva daquele Inquérito, deixar de lado
a importância que as redes de sociabilidade igualmente detêm, tanto por via das amizades ou
de professores ou tutores específicos, no processo de envolvimento e desenvolvimento dos
indivíduos na actividade artística, já que estas constituem muitas vezes – tanto para aqueles
que tiveram um contexto familiar favorável como para aqueles que não o tiveram (ainda que
de formas ligeiramente diferentes) – um ponto de contacto imprescindível entre o indivíduo e
as práticas artísticas, funcionando tanto ao nível da revelação ou certificação da sua vocação,
como do incentivo e da estimulação do seu desenvolvimento (Pais, 1995: 118).
Neste âmbito, acção motivadora de um professor, em específico, “tende a assumir uma
legitimidade e uma responsabilidade de peso na estruturação de uma carreira artística”, já
que aqueles que mais a invocam como razão e justificação da sua entrada no mundo das artes
são também aqueles que em maior proporção exercem a sua actividade artística de uma
forma profissional, enquanto que os restantes – os que a exercem de uma forma
maioritariamente amadorística ou ainda académica – são também os que entraram na arte
sobretudo por via do seu círculo de amigos (Pais, 1995: 119-120).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Ora, estando então nós conscientes da importância das várias dimensões que compõem uma
vocação artística para a análise da capacidade de acção dos agentes envolvidos num
determinado universo de produção artística, importa também salientar que o carácter
estruturado das diferentes hipóteses, como vimos, de partida, que caracteriza o lugar dos
agentes sociais nesse espaço não se dá a conhecer ao observador de uma forma imediata,
directa, mas apenas de uma forma metamorfoseada – transfigurada – de acordo com as regras
de funcionamento especificas do campo de produção de que falamos (Bourdieu, 1997: 42).
Com efeito, outra das principais vantagens, em termos analíticos, de visualizarmos o universo
artístico em termos de campo, consiste exactamente no reconhecimento da sua relativa
autonomia relativamente a outros universos da vida social e, em particular, no
reconhecimento que o seu princípio estruturante, a espécie de capital particular que nele é
valorizada e permite distinguir entre os agentes sociais nele envolvidos, é qualitativamente
diferente de outros tipos de capital que organizam outros campos da vida social.
Como refere Bourdieu, os campos são lugares estruturados, onde os agentes sociais se
distribuem de uma forma hierarquizada de acordo com o posicionamento em que se situam
face ao princípio ou propriedade que são importantes e valorizados nesses espaços – o seu
capital simbólico (Bourdieu, 1997: 32). Da mesma forma, o campo artístico constitui-se em
torno da acumulação de uma determinada propriedade simbólica que constitui o princípio
segundo o qual os agentes em disputa no campo se situam relacionalmente, de acordo com a
posição que cada um ocupa, em determinado momento no tempo, na distribuição da estrutura
desse capital.
Ora, conforme salienta Howard Becker, no universo artístico é a reputação um dos elementos
centrais que permite o estabelecimento de distinções entre diferentes obras, artistas, escolas,
géneros e meios de produção (Becker, 1982: 352).
Para o autor americano, qualquer que seja o art world considerado, ele atribui sempre um
valor especial a determinadas obras e determinados artistas, distinguindo-os do conjunto de
trabalhos produzidos pela generalidade dos indivíduos que o constituem, e é através dessa
valorização especial que se organizam as suas actividades específicas e se regula a atribuição
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
das recompensas materiais e simbólicas consideradas valiosas nesse mundo (Becker, 1982:
352).
Qualquer actividade artística implica sempre a utilização de um conjunto de recursos sem os
quais essa actividade não pode ocorrer como ocorre. Consoante o tipo de obra/evento
projectado é sempre necessário reunir os materiais, as tecnologias e os canais de distribuição
e consumo que a sua realização exige. A reputação constitui um dos elementos centrais que,
ao tornar acessíveis ao artista esses meios de produção fundamentais, contribui para a
manutenção da sua actividade em moldes não concretizáveis na sua falta (Becker, 1980).
Neste sentido, na perspectiva de Howard Becker, a operação de reconhecimento do talento do
artista, que forja a reputação, consiste numa das operações mais cruciais de qualquer art
world, na medida em que pode representar a possibilidade de acesso a um conjunto de
benefícios – económicos, sociais, profissionais, etc. – que de outro modo não estariam
acessíveis (Becker, 1982: 357).
Ora, relativamente a esta questão, é importante salientar, tal como refere Raymonde Moulin,
que actualmente o processo de reconhecimento dos artistas se opera sobretudo pela prática
(Moulin, Raymonde em Pais, 1995: 120), num processo que sobrepôs à ordem do título uma
ordem subjectiva de certificação, que exige o reconhecimento social do talento por parte de
uma comunidade de agentes especializados para o efeito (Pais, 1995: 120).
Hoje em dia, e pelo menos desde a decadência do papel consagrativo da Academia no seio
das artes que se verificou desde fins do século XIX, o reconhecimento profissional dos
artistas não depende da sua certificação pela posse de um diploma ou título académico ou
escolar, mas está relacionado sobretudo com um conjunto de indicadores empíricos,
considerados muito mais importantes que a certificação escolar, e que são elucidativos acerca
da condição de determinado artista: a participação em exposições, a obtenção de apoios
institucionais e pessoais e a venda e mostra ao público dos trabalhos produzidos (Pais, 1995:
120-121).
É, portanto, através deste conjunto de indicadores que devemos olhar para aquilo medir
aquilo que seria o valor, ou nível de reconhecimento e profissionalização, de um determinado
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
artista, já que como refere Howard Becker, é através do acesso aos canais de distribuição
mais reputados de um art world que os agentes desse mundo operam distinções entre os seus
participantes (Becker, 1982).
Ora, mas a frequência escolar ou, mais propriamente, a formação artística, tal como refere
Machado Pais, ainda que não seja exigida de facto como um critério de profissionalidade ou
mesmo como um requisito indispensável à prática artística, acaba todavia por se revelar
fundamental, em termos objectivos, ao desempenho desse tipo de práticas, constituindo-se
como um factor de diferenciação importante entre o profissional e o amador de artes (Pais,
1995: 131).
Como diz o autor, “o facto de se deter uma formação artística específica exerce,
efectivamente, um efeito bastante positivo quando se deseja desenvolver uma carreira
artística a nível profissional, sendo uma condição quase necessária” (Pais, 1995: 131).
Será, portanto, a partir do posicionamento dos agentes nestas duas dimensões – o seu nível
de formação artística e os indicadores referentes à sua actividade junto dos mecanismos de
consagração do universo artístico a que pertencem – que poderemos dar conta, no fundo,
da quantidade de capital simbólico acumulado que está em jogo quando falamos das
posições distintas que esses agentes ocupam no campo de produção da arte, e, ao mesmo
tempo, das diferentes possibilidades que grupos de agentes situados diferenciadamente no
espaço social têm de interferir na concepção de arte que em dado momento é dominante
nesse espaço.
Por outro lado, esta situação permite-nos também dar conta da relação de homologia
existente entre o espaço das posições dos agentes sociais e o espaço das suas tomadas de
posição, ou seja, que as estratégias que diferentes agentes ou grupos de agentes tomam no
sentido da conservação ou da transformação de uma determinada concepção de arte está
indelevelmente ligada ao nível acumulado de capital simbólico – reconhecimento – que esses
agentes individuais ou colectivos possuem naquele estado do campo (Bourdieu, 1997: 42).
Por outras palavras: aquilo que os agentes sociais envolvidos na produção artística fazem, a
concepção de arte que defendem e as estratégias que mobilizam para impor essa concepção
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
no mundo da arte dependem – sempre – do grau de capital acumulado que estes possuem em
determinado momento no tempo.
O campo artístico é assim um campo de forças invisíveis, onde os agentes se encontram em
permanente relação uns com os outros, e é simultaneamente um campo de lutas, onde
dominantes e dominados lutam pela imposição da sua visão ou concepção de arte, de acordo
com os recursos simbólicos que possuem (Bourdieu, 1997: 32).
Neste sentido, as lutas artísticas, lutas entre concepções e definições daquilo que a arte é ou
deve ser, são no fundo lutas entre agentes sociais situados diferentemente no campo da arte e
lutas pela conservação, aquisição e aumento do capital artístico que é colectivamente
reconhecido e valorizado nesse espaço social.
Voltando então à questão das possibilidades de interferência por parte dos agentes no estado
do campo, é forçoso reconhecer-se que os agentes menos cotados ao nível da posse de capital
simbólico são também aqueles que menos hipóteses têm de ver as suas pretensões vingadas
ao nível da alteração das relações de força que caracterizam um dado momento do campo.
Já tínhamos visto que Howard Becker relaciona o nível de reputação de um artista com o
acesso a um conjunto de bens que seriam indispensáveis para a reprodução do trabalho
artístico. Segundo este autor, o próprio acesso aos canais de distribuição específicos de um
art world, situação que, como vimos, é fundamental para a geração de mais-valias
reputacionais ao nível dos artistas – é o sistema distributivo que, ao permitir a apreciação do
trabalho do seu trabalho, contribui para o incremento da sua reputação e relevância histórica
– constitui um processo que depende, em larga medida, da reputação já reconhecida com que
esses indivíduos podem contar em determinado momento no tempo, já que o próprio sistema
de distribuição é um sistema hierarquizado em termos de reputação (Becker, 1982: 95-97).
Ora, como Pierre Bourdieu refere, isto acontece, por um lado, porque desapossados do capital
simbólico necessário para o fazer, estes agentes não têm nem a legitimidade nem o grau de
reconhecimento necessários para interferir de forma significativa nas leis e regras que
regulam o funcionamento do campo e, por outro lado, porque a sua crença abnegada no valor
das coisas que estão em jogo naquele espaço social os leva a aceitar a sua ordem,
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
propriamente social e imposta, como algo de natural, intransponível e, por vezes, mesmo
como algo de aceitável em função do lugar que ocupam na ordem social assim definida
(Bourdieu, 1997: 44-45).
A reputação, então, o ser-se um grande artista, ou melhor, o ser-se reconhecido como um
grande artista – qualidade valorizada e apreciada por todos e que legítima a visão do mundo
de quem reconhecidamente a detêm – constitui o elemento decisivo que, em última análise,
delimita aquilo que cada um pode fazer dentro de um universo artístico particular.
A questão do reconhecimento é, em todo o caso, um elemento fundamental neste processo. O
carácter e a força propriamente simbólicos com que se reveste o capital eficaz em
determinado campo da vida social dependem sempre do reconhecimento dessa eficácia por
parte de todos os agentes que estão envolvidos nesse espaço social específico.
O capital simbólico é uma qualquer propriedade, força física, riqueza, valor guerreiro, que, percebida
por agentes sociais dotados das categorias de percepção e de apreciação permitindo percebê-la,
conhecê-la e reconhecê-la, se torna simbolicamente eficaz, como uma verdadeira força mágica: uma
propriedade que, por responder a «expectativas colectivas», socialmente constituídas, a crenças, exerce
uma espécie de acção à distância, sem contacto físico (Bourdieu, 1997: 130).
Esta questão é fundamental, já que permite perceber como é que a adesão a uma determinada
ordem social ocorre por iniciativa própria dos agentes sociais, sem que seja necessário o
recurso à violência ou a qualquer tipo de meios repressivos para que tal aconteça.
A relação entre as tomadas de posição de um agente ou grupo de agentes no espaço social e
a posição que estes ocupam nesse espaço não se faz sem a intermediação de um habitus
específico, um sistema de disposições, criado sobre condições de socialização específicas do
campo, e que gera a crença na legitimidade e na justeza das suas injunções, dando a cada um,
consoante a posição que ocupa no espaço social, o sentido do seu espaço – daquilo que pode
ou não pode fazer. O habitus é a interiorização da realidade objectiva no agente e gera
práticas objectivamente ajustadas a essa realidade (Bourdieu, 1997: 9).
Ora, no âmbito da análise dos processos de construção das definições artísticas, somos então
forçados a reflectir sobre as práticas de socialização no mundo da arte e de como estas se
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
relacionam com a maior ou menor capacidade que os agentes sociais têm de interferir na
definição daquilo que em determinado momento no tempo uma sociedade considera arte.
Para Bourdieu, esta situação é complexa: sendo o produto da interiorização da realidade
objectiva e, neste sentido, das diferenças que separam os agentes sociais em determinado
campo da vida social, o habitus reproduz essas diferenças nos princípios de visão e de
apreciação por que é constituído e tende a gerar práticas e representações ajustadas a essa
realidade. O resultado são práticas distintas por parte de agentes ou grupos de agentes sociais
situados em diferentes regiões do espaço social – a que correspondem diferentes classes
(teóricas) de habitus – mas também a percepção, por parte dos agentes sociais, do carácter
inefável e natural dessas diferenças.
As categorias de percepção do mundo social são, no essencial produto da incorporação das estruturas
objectivas do espaço social. Em consequência, levam os agentes a tomarem o mundo social tal como
ele é, a aceitarem-no como natural, mais do que a rebelarem-se contra ele (…): o sentido da posição
como sentido daquilo que se pode ou não se pode «permitir-se a si mesmo» implica uma aceitação
tácita da posição, um sentido dos limites (…) ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias, a
marcar e a sustentar, a respeitar e a fazer respeitar – e isto, sem dúvida, de modo tanto mais firme
quanto mais rigorosas são as condições de existência e quanto mais rigorosa é a imposição do princípio
de realidade (…) (Bourdieu, 1989: 141).
É neste contexto, segundo este autor, que as práticas sociais constituem um instrumento
poderoso na luta pela dominação em qualquer campo da vida social. Quando são percebidas
pelos mesmos esquemas de visão e de divisão de que são o produto, as diferenças nas
práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas, tornam-se diferenças simbólicas, signos
de distinção social que reproduzem no plano simbólico as diferenças objectivas que separam
os agentes no espaço social (Bourdieu, 1997: 9) e que contribuem, na medida em que são
percepcionadas pelos agentes sociais como algo de óbvio, natural, para reforçar a aparente
legitimidade dessas diferenças e, em última análise, para assegurar a sua reprodução
(Bourdieu, 1989: 145). As diferenças aparentes e aparentemente insignificantes escondem as
diferenças profundas que objectivamente separam os grupos sociais.
É por isso que Pierre Bourdieu considera que “a estrutura da distribuição do capital
simbólico tende a apresentar uma estabilidade muito grande” e que “as revoluções
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
simbólicas supõem uma revolução mais ou menos radical dos instrumentos de conhecimento
e das categorias de percepção” (Bourdieu, 1997: 131-132).
Por outro lado, e já numa perspectiva um pouco diferente, falando especificamente da relação
que o sistema distributivo de um art world tem com a definição do valor da arte e dos artistas
que participam nesse mundo, Howard Becker refere, como já atrás tínhamos referido, aliás,
que a distribuição das obras constitui um dos elementos mais importantes para a geração de
ganhos, em termos reputacionais – de reconhecimento – por parte dos artistas (Becker, 1982:
95).
Em particular, no caso das artes performativas, onde são criados espaços para a realização de
espectáculos, a apresentação de eventos a públicos mais ou menos vastos constitui sempre
um meio de angariação, não só de mais-valias materiais, mas também de criação de
audiências mais apreciativas que recompensem os artistas «distribuídos» com um nível de
reputação acrescido (Becker, 1982: 119).
A reputação, portanto, ou o capital simbólico que esta em jogo no mundo da arte, constitui
então o motivo central, tanto como princípio como fim, das questões que se colocam quando
nos debruçamos sobre o fenómeno da construção social das definições artísticas.
Resta-nos assim, com as referências conceptuais aqui sistematizadas, prosseguir com aquilo
que, tal como Idalina Conde refere, constitui actualmente uma das mais pertinentes análises
da relação entre a arte e a sociedade, isto é, a compreensão daquilo que em cada contexto
específico e em determinado momento no tempo é definido como arte (Conde, 1992: 9).
2. As hipóteses de trabalho
Não estamos, portanto, e como temos vindo a sugerir, na expectativa ou na esperança de
encontrar uma definição essencial ou unívoca do conceito ou do valor da performance que
aqui nos preocupa – a jam session – mas consideramos, antes, na esteira de Vera Zolberg
quando esta discute o estudo sobre o estado actual da arte, que será mais provável irmos ao
encontro de uma pluralidade de concepções partilhadas sobre aquilo que a arte é (Zolberg,
1990: 21) ou, no caso que aqui nos preocupa, sobre aquilo que aquela performance é, de
acordo com os vários contextos sociais onde é produzida.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
As práticas dos agentes sociais, ou melhor, as práticas sociais da jam session, deverão ser
portanto, e de acordo com aquilo que atrás referimos sobre o funcionamento do campo
artístico, também contextualizadas em função do lugar estrutural que os agentes sociais
envolvidos – músicos, mas também clubes e públicos – ocupam, no presente momento, num
qualquer lugar do espaço social jazzístico nacional, espaço esse que, como vimos, deve ser
mais construído, de acordo com o capital simbólico específico que nele se joga, do que
reconhecido – ou reconhecível – nas representações, também elas estruturadas por
intermediação do habitus dos agentes sociais em presença.
Neste sentido, parece-nos que as lutas, as discussões, a maledicência e a busca pela verdade
que a princípio nos desarmaram na nossa primeira impressão do fenómeno – as tomadas de
posição dos agentes sociais – poderão eventualmente ter reflexo, ou ser reflexo, da disputa,
no espaço social, entre diferentes agentes que, adoptando práticas diferenciadas e
diferenciadoras em função do capital acumulado que possuem, encontram assim uma maneira
de tentar impor a sua visão musical no espaço em questão.
Será portanto verosimilhante que encontremos grupos de agentes que participam em
performances distintas, ligadas a contextos institucionais e organizacionais de diferentes
clubes e que recusem e mesmo critiquem as formas, os conteúdos, os intervenientes e,
mesmo, os próprios espaços que se relacionam com outras performances que não a sua.
Será o grau de reputação – o capital simbólico – acumulado que constituirá o princípio
distintivo destas diferentes práticas e representações, práticas essas que, como a performance
se insere no âmbito daquilo a que Howard Becker se refere como o sistema distributivo de
um art world, poderão ter efeitos importantes ao tanto ao nível do aumento do
reconhecimento dos músicos que participam nos eventos – aumento que estará sempre
limitado, caso a caso, pela eficácia consagrativa dos próprios clubes e públicos envolvidos –
como ao nível da reprodução social das posições que, como Bourdieu refere, os agentes
ocupam no espaço social.
É, portanto, natural que músicos que participam nas performances de clubes mais
reconhecidos – e para os quais é preciso ser-se mais reconhecido para entrar – sejam também
os músicos mais reputados, e que os músicos menos reputados sejam «forçados» a participar
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
nas performances menos cotadas, pelo menos no âmbito do universo jazzístico nacional, e
que vejam assim mais limitadas as hipóteses de ascensão social que a sua exibição no sistema
distributivo do art world jazzístico envolve.
Finalmente, importará ainda ter em linha de conta a importância dos processos de
socialização ou formação na arte a que são submetidos todos os agentes que desejam
participar no campo de produção dos bens artísticos de uma sociedade, já que estes detêm
uma importância fundamental no estabelecimento e manutenção de uma dada ordem social e
que, no caso concreto da jam session, podem ser elucidativos acerca dos processos de
aprendizagem das regras, sempre informais e implícitas, deste tipo de performances, como a
questão de se saber quando e onde se pode ou não pode tocar, quando é que o nível musical
está demasiado alto para o músico relativamente inexperiente, etc.
Será, então, a partir do conjunto de hipóteses assim exposto que procuraremos agora
delimitar uma estratégia de investigação pertinente para a exploração do problema que temos
vindo a expor, em todas as suas vertentes.
O quadro da página seguinte apresenta um esquema que sintetiza, nos conceitos e dimensões
e indicadores pertinentes, o esquema teórico apresentado e que serve de orientação à
definição dessa estratégia.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
QUADRO 1 – Relação entre conceitos, dimensões e indicadores. CONCEITOS DIMENSÕES INDICADORES
Idade
Sexo
Profissão
Formação académica
Características pessoais e profissionais
Idade com que se dedica à música
Profissão dos pais
Ligações familiares ao meio musical ou artístico Contexto socio-cultural de partida e ascendência
artística Factores familiares facilitadores/obstrutivos da inserção na prática musical
Vocação artística
Redes de sociabilidade Papel dos amigos, professores, etc. na inclusão do entrevistado no universo musical
Autodidatismo
Estudos realizados formais e informais Formação musical
Facilidade de acesso a formação
Actividade musical (concertos, edição de discos, docência, etc.)
Ligações profissionais, institucionais e/ou informais ao universo musical e seus agentes Vida/actividade musical
Facilidades/dificuldades na inserção na prática musical
Ideologia musical Adopção de uma estética musical
Perspectivas profissionais
Profissionalização
Perspectivas prof. e musicais futuras Perspectivas musicais
Performances em que participa
Frequência da participação Tipo de participação
Performances que conhece (espaços)
Motivações Motivações para a participação na jam session
Escolha dos temas
Presença de um trio de apoio à performance
Práticas da jam session
Características organizacionais da
performance Mecanismos de «entrada» na jam session
Níveis de competitividade e cooperação presentes
Aspectos comerciais e/ou lúdicos da performance Ao nível dos músicos
Qualidade/estatuto dos músicos envolvidos
Nível de conhecimentos musicais dos públicos Ao nível dos públicos
Qualidade/eficácia consagrativa dos públicos
Facilidades/dificuldades no acesso às diferentes performances Ao nível dos clubes
Qualidade/género da música produzida nas performances
Conteúdos da performance
Representações da jam session
Ao nível da performanceRelevância da jam session para a actividade musical
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Capítulo 3
ESTRATÉGIA DE PESQUISA
1. Estudar (o) jazz em Portugal
Tentámos enquadrar esta investigação no âmbito da problemática que considera a arte e as
definições artísticas enquanto o produto da actividade dos agentes – individuais e
institucionais – que, com probabilidades de intervenção e interesses diferentes, contribuem
através das suas tomadas de posição para a criação e recriação dos conteúdos para que
remetem essas noções.
O nosso interesse, neste contexto, tem a ver com a análise e caracterização das práticas e
representações dos agentes envolvidos no fenómeno da jam session e da forma como estas se
relacionam com a posição que estes ocupam num determinado campo da vida social, e que,
neste caso, não é mais do que o campo da música jazz nacional.
Ora, no que diz respeito às intenções de tal empresa, duas situações ligadas à realidade
empírica do fenómeno condicionaram, desde logo, a estratégia de investigação a seguir.
Em primeiro lugar, a questão do parco conhecimento existente, pelo menos de uma forma
sistematizada, do universo jazzístico português.
Apesar de algumas publicações e artigos a que conseguimos ter acesso a respeito destas
matérias, a verdade é que existe ainda muito pouca coisa – poucos estudos, pouca análise,
pouca reflexão – sobre o mundo do jazz nacional e, em particular, sobre a prática da jam
session no nosso país, situação que implicou que muitas dos indicadores aqui utilizados
fossem criados de raiz, praticamente sem o recurso a discussões prévias sobre estes assuntos.
Em segundo lugar, e ainda que não existam de facto dados quantitativos fiáveis sobre a
matéria que aqui tratamos, falar de jazz em Portugal e, em particular, dos músicos que no
nosso país participam em jam sessions, é falar, obrigatoriamente, de muito pouca gente. De
facto, é de um número relativamente reduzido de indivíduos e instituições que falamos
quando nos debruçamos sobre o fenómeno da jam session.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Ora, estas duas situações – a inexistência prévia de instrumentos conceptuais adequados ao
problema em questão e a reduzida população envolvida – implicaram, ao nível da estratégia a
seguir, que optássemos por ter em linha de conta um conjunto de técnicas normalmente
associadas à micro-abordagem, ou análise intensiva – das quais se destaca aqui a entrevista –
como forma de garantir a maior riqueza, profundidade e indirectividade possíveis da
informação recolhida, ao mesmo tempo que colocávamos do nosso lado a questão da
dimensão da população a estudar.
Além disso, recorremos também à analise histórica do universo jazzístico, como forma de
contextualizar as práticas e representações dos agentes naquilo que Bourdieu considera ser a
necessidade de lhes restituir, sem nunca cair no relativismo histórico, a sua própria
“necessidade, subtraindo-os à indeterminação resultante de uma falsa eternização, para os
pôr em relação com as condições sociais da sua génese, verdadeira definição geradora”
(Bourdieu, 2001: 295).
2. População-alvo
Tal como acabámos de referir, falar de jazz em Portugal significa falar de muito pouca gente,
descrição que se revela ainda mais pertinente quando falámos do número de efectivos
envolvidos, no nosso país, na prática da jam session em locais públicos.
Com efeito, é relativamente fácil verificar a partir de algumas incursões nocturnas aos «sítios
da especialidade» que, em Portugal, são relativamente poucos os espaços de carácter público
– os clubes ou bares de jazz – que organizam jam sessions, e que são também muito poucos
os músicos que com alguma regularidade participam neste tipo de eventos.
Esta é, de facto, das poucas coisas que podemos dizer por enquanto sobre a população-alvo
deste estudo: que é uma população composta por um número muito reduzido de indivíduos,
que frequenta um número também muito reduzido de espaços que organizam jam sessions e
que, à falta de dados mais concretos sobre esta questão, não nos é possível identificar com
precisão o número de indivíduos envolvidos, em Portugal, na performance que aqui tomámos
como objecto de investigação.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
A este respeito, e qualquer que seja o caso – o número real de indivíduos que tocam
regularmente nas jam session do nosso país –, é importante deixar claro que não nos
deixamos intimidar nas nossas intenções por tal limitação, já que o próprio carácter do estudo
a fazer, tal como o temos vindo a descrever, não exige nem pretende uma apreensão
extensiva estatística ou inferível das características da população em causa, mas sobretudo
uma análise mais profunda e particularizada das motivações, aspirações, práticas e
representações que estão envolvidas na prática da jam session.
Então, feitas as devidas ressalvas relativamente a essa questão, se determinámos como campo
da nossa análise os músicos e agentes institucionais envolvidos na produção desse evento
musical que é a jam session, uma das primeiras considerações que devemos fazer e ter em
linha de conta ao nível da «amostra» populacional a abranger está relacionada com os
espaços onde a performance ocorre, já que estes parecem poder contribuir fortemente, de
acordo com as directrizes organizacionais que mobilizam para os eventos e o peso
institucional no que detêm no universo musical, para delimitar o modo como os agentes
vivem a experiência performativa das performances em que participam.
Ora, como referem as sociólogas Helena Santos e Paula Abreu, temos dois tipos de clubes de
jazz em Portugal: os clubes mais comerciais, de história recente e sem grande destaque ao
nível da promoção dos músicos – Speakeasey, Blues Café, B Flat, Heritage Café – e os
clubes (na realidade, um clube) que seriam mais virados para a música, em função da sua
história e do importante papel desempenhado ao nível da valorização dos músicos de jazz
portugueses – o Hot Clube de Portugal (Santos e Abreu, 2002: 242).
Isto significa, no quadro da nossa reflexão sobre as diferentes formas e conteúdos que a
performance assume em Portugal, que, por razões de economia de esforço e aparente falta de
pertinência de tal empresa, serão tomados como objecto apenas dois clubes de jazz
particulares, conforme a distinção ideal-típica atrás enunciada por aquelas autoras. Neste
sentido, a nossa análise delimitar-se-á, portanto, aos agentes institucionais e músicos que
estão envolvidos na organização e dinamização das jam sessions do Hot Clube de Portugal e
do Speakeasy, dois espaços nocturnos situados em Lisboa e que apresentam actualmente jam
sessions de uma forma regular.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Por outro lado, e de acordo com as considerações atrás efectuadas relativamente à extensão
da população em questão, foi tomada a decisão de não se estabelecer um número limite de
interlocutores a envolver no curso da investigação, tendo-se tomado a opção metodológica de
se ir trabalhando os dois clubes até que a informação começasse a ficar saturada, critério,
aliás, frequentemente utilizado no âmbito da investigação em ciências sociais (Quivy e Van
Campenhoudt, 1995: 162-163). A excepção foi no âmbito dos agentes institucionais dos
clubes, onde se decidiu contactar apenas um interlocutor por espaço – alguém que pela
posição ocupada no clube constituísse um observador privilegiado da performance –
achando-se que tal seria o suficiente para dar conta da visão mais institucional do fenómeno.
Finalmente, acabaram por ser envolvidos na investigação 2 agentes institucionais dos clubes
sob análise e 3 músicos que participam ou participavam recentemente de uma forma regular
nas jam sessions dos referidos clubes.
3. Técnicas de recolha e análise de informação
Como já atrás fizemos referência, dadas as condições em que partíamos para este estudo
tanto ao nível da sua população-alvo como do conhecimento existente acerca do fenómeno da
jam session, foi tomada a opção estratégica de adopção de uma metodologia intensiva, de
carácter essencialmente qualitativo, como forma de aprofundar – em todas as dimensões
possíveis e para nós relevantes – a reflexão sobre a prática da(s) jam session(s) em Portugal.
Assim, para além da exígua bibliografia a que conseguimos ter acesso para caracterizar o
universo jazzístico nacional enquanto campo de produção cultural, a entrevista semi-
directiva surgiu como o instrumento de recolha de informação privilegiado do processo de
trabalho de investigação, tendo sido construída e aplicada sob duas perspectivas diferentes,
de acordo com os objectivos, a população a que se destinava e o tipo de informação a
recolher.
Foram então aplicadas duas entrevistas com conteúdos diferentes – uma mais vocacionada
para a informação a recolher junto dos clubes, em termos da organização e da história da jam
session, e outra mais centrada nos músicos, na sua actividade musical e nas práticas e
representações da performance – tendo os entrevistadores tido a preocupação de constranger
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
o menos possível, dentro dos limites dos interesses da investigação, o discurso dos
interlocutores que aceitaram participar na sua realização.
As entrevistas foram aplicadas no período temporal de um mês, tendo sido realizadas em
locais vários, desde os próprios clubes até aos espaços domésticos dos próprios agentes
entrevistados.
De destacar ainda, ao nível da recolha de informação, é o facto de um dos autores deste
trabalho de investigação ser ele próprio um agente em trânsito no universo do jazz português,
participando nesse mundo não só enquanto fruidor ou consumidor de música ou eventos do
género, mas também como músico ou aspirante a músico – enquanto aluno de uma escola de
jazz.
Ora, no que diz respeito ao estudo, então, ainda que a questão da observação participante não
se coloque, dado que não houve de facto qualquer participação musical do investigador em
nenhuma jam session, é óbvio que muita da informação recolhida que, mesmo não estando
sistematizada, foi direccionando o curso do processo de investigação, foi obtida pela via da
informalidade – pelo menos sociológica – da sua vivência nas redes de sociabilidade e
estruturas de socialização do campo jazzístico nacional.
Do mesmo modo, a presença dos investigadores no terreno – nos clubes de jazz, em jam
sessions e concertos – foi regular e atenta, ainda que não sido realizada de uma forma muito
estruturada e não tenham sido utilizados outros instrumentos de sistematização de informação
para além do recurso ao simples «bloco de notas», e veio a revelar-se um instrumento muito
importante ao nível da geração de informação privilegiada – porque recolhida sem o recurso
a suportes intermédios – para a análise de várias dimensões do fenómeno.
Em particular, as diferenças na qualidade da música produzida nas diferentes performances, a
rotatividade dos músicos e a diversidade de instrumentistas, a presença de cantores em alguns
dos eventos, o tipo de atenção e resposta dos públicos relativamente ao que se passa no palco,
a relação de volume entre a música e o «ruído» de fundo existente nos clubes, a liberdade
concedida aos músicos na exploração dos solos, ou a maior ou menor intervenção da
organização do clube nos assuntos da jam session, foram alguns dos indicadores importantes
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
que não poderiam ter sido recolhidos – com a mesma riqueza e directividade – de outra
maneira que não aquela que foi possível através da postura de forte envolvimento na
performance que desde o princípio foi tomada como estratégia de acção por estes
investigadores.
Resumindo, foram, portanto, neste processo, combinados dois processos distintos de
observação, a observação indirecta, através da análise bibliográfica e da realização de
entrevistas, e a observação directa, através da presença regular dos investigadores no terreno,
como forma de recolher os vários tipos de informação necessária ao desenvolvimento da
investigação.
Por fim, e antes de passarmos à análise e discussão dos dados assim recolhidos, resta apenas
dizer que o tratamento da informação das entrevistas foi feito por análise de conteúdo,
técnica de análise de dados que permite efectuar inferências, a partir dos discursos
produzidos, sobre as condições de produção desses próprios discursos (Silva e Pinto, 1986:
104).
Nesse processo, o corpus da análise foi constituído pela totalidade da informação recolhida
pelas entrevistas e as unidades de registo foram tomadas no seu carácter formal, sendo as
frases ou parágrafos significativos atribuídos às categorias pertinentes de acordo com a
temática ou cariz de informação que tratavam, tendo posteriormente sido feita uma análise
qualitativa dos dados assim organizados.
A discussão que se segue, portanto, foi feita com base na recolha bibliográfica realizada e na
análise de conteúdo das cinco entrevistas produzidas no decurso da presente investigação, de
acordo com os referentes teóricos, dimensões e indicadores que atrás apresentámos, aos quais
se juntaram ainda outros indicadores, posteriormente ao processo de recolha de informação
propriamente dito, cuja contemplação se revelou pertinente no decorrer da análise
efectuada10.
10 O quadro apresentado anteriormente apresentava já uma versão final do conjunto dos indicadores utilizados.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Capítulo 4
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
1. Os lugares da jam session
A aparição formal do jazz e da prática da jam session em Portugal é um fenómeno
relativamente recente, datando apenas pouco mais do que cinquenta anos, momento da
materialização em finais dos anos quarenta do histórico Hot Clube de Portugal (HCP),
primeiro clube de jazz no país (Santos e Abreu, 2002:242).
Tal situação não implica obviamente a inexistência de música jazz e mesmo de jam sessions
em Portugal em períodos anteriores ao mencionado. De facto, além de algum jazz que era
divulgado pelas rádios da altura, existem relatos que referem a ocorrência de jam sessions em
alguns cafés da cidade de Lisboa e, em determinados momentos históricos precisos, nas
instalações do Instituto Superior Técnico. Eventos que eram geralmente organizados por
grupos auto-mobilizados de aficcionados daquele género musical, tendo em vista, além da
fruição musical propriamente dita, um projecto de dinamização e divulgação da «cena»
jazzística nacional.
Mas é só com a formação do HCP por Luís Villas Boas, um dos primeiros amantes de jazz
reconhecidos do país, que o jazz passa a ter «morada fixa» em Portugal, isto é, que começam
a ser criadas as infra-estruturas necessárias a um desenvolvimento mais sistemático e
coerente do jazz e das suas práticas características no nosso país (nomeadamente a jam
session).
Desde então, falar de jam sessions foi durante muito tempo o mesmo que falar de Hot Clube
de Portugal, já que o clube foi durante um largo período da história portuguesa do jazz o
único espaço onde esta prática musical podia ser levada a cabo com alguma regularidade, à
excepção de algumas manifestações pontuais que se foram realizando em Cascais ou em
alguns bares de Lisboa ou do Porto (Santos e Abreu, 2002: 242).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Dessas excepções, dois projectos merecem a nossa especial atenção devido à consistência
que parecem ter adquirido e ao desafio que representaram, ou ambicionaram representar, para
o monopólio que o HCP detinha sobre o então mais reduzido panorama jazzístico nacional.
O primeiro desses projectos foi o Clube Universitário de Jazz (CUJ), criado em 1958 em
Lisboa por um grupo de aficcionados de jazz descontentes com o fechamento a que o HCP se
consignava na altura.
De facto, o HCP permanecia um clube muito centrado na música, de acesso limitado a um
reduzido número de sócios, no qual não era fácil entrar. O CUJ ambicionava ultrapassar essas
limitações com um programa que visava uma maior divulgação do jazz ao público em geral,
assim como um papel mais interventivo na sociedade portuguesa, disposições que, no
entanto, ao se revelarem demasiado democratizantes para o contexto político da altura,
acabariam por levar ao seu encerramento forçado pela PIDE em 1961.
Destinado a uma existência bastante curta, o Clube Universitário de Jazz acabaria por ter um
impacto reduzido, em termos práticos, no panorama jazzístico nacional.
Já o Luisiana Jazz Clube (LJC) de Cascais viria a ter um papel mais preponderante no que ao
jazz diz respeito em Portugal. Criado em 1965 com um carácter assumidamente comercial,
este clube de jazz chegaria mesmo a constituir uma alternativa viável ao HCP, dando a
conhecer e reconhecer muitos dos jovens músicos que na altura ensaiavam os primeiros
passos no jazz moderno ou contemporâneo tocado por portugueses.
Tendo começado, tal como o HCP alguns anos antes, por ser um local de audição musical e
convívio, o LJC parece ter conseguido desenvolver uma tradição de jam sessions e concertos
consistente e relativamente regular, que envolviam geralmente alguns músicos internacionais
que visitavam Portugal e músicos portugueses ligados ao HCP que, apesar de tudo,
“tipificavam o mundo luso do jazz” (Miranda, 1998).
No entanto, tal como o Clube Universitário de Jazz que o precedeu, o Luisiana Jazz Clube
viria a ser encerrado forçosamente em meados de 1978, aparentemente devido a alguns
problemas relacionados com a «quietude» da vizinhança local (Miranda, 1998).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Já nos anos oitenta, o Hot Clube de Portugal voltaria novamente a permanecer durante um
largo período de tempo como o único local no país onde se realizavam jam sessions e
concertos de jazz abertos ao público, de acordo com uma nova estratégia de gestão que
visava dar prioridade aos músicos e à produção musical, assim como difundir aquele género
musical por um público mais vasto.
Novos espaços dedicados à música jazz e blues e à realização de jam sessions só voltariam a
surgir, fora do HCP, já nos anos noventa, em consonância com o desenvolvimento urbano
das duas maiores cidades do país. É nessa altura que aparecem em Lisboa o Speakeasy, o
Blues Café, o Catacumbas Jazz Bar e, já depois da viragem do século, o Net Jazz Café; e em
Matozinhos o B Flat e o Heritage Café, clubes que, no entanto, à semelhança do já extinto
Luisiana, apresentam um perfil mais comercial que o HCP que, “para além de espaço
privilegiado de audição e performance, desempenhou e desempenha ainda a função de uma
espécie de incubadora de músicos, dos poucos músicos de jazz que podem ser identificados
em Portugal” (Santos e Abreu, 2002: 242)11.
Actualmente, então, a prática da jam session encontra-se difundida por vários clubes de jazz
centrados nas duas principais cidades do país. Em Lisboa, por exemplo, o calendário deste
tipo de eventos tem início, logo no princípio da semana, no Speakeasy (segunda-feira),
passando depois pelo Hot Clube de Portugal (terça e quarta-feira) e pelo Catacumbas Jazz
Bar (quinta-feira), encerrando finalmente o ciclo no Net Jazz Café (domingo)12.
Através deste horário é curioso constatar a preocupação que cada clube parece demonstrar
em não sobrepor a realização da sua jam session com as performances similares organizadas
por outros clubes, provavelmente como forma de garantir a presença de músicos que, de
outro modo, poderiam ir tocar a outro lado qualquer. Algo que, aliás, à primeira vista, parece
vantajoso para os músicos, sempre desejosos de mostrar o seu trabalho a audiências, que têm
assim a possibilidade de o fazer durante quase toda a semana.
11 Por razões que desconhecemos, o Catacumbas Jazz Bar e o Net Jazz Café não são mencionados no estudo referenciado. No entanto, do nosso ponto de vista, o seu perfil adequa-se perfeitamente às considerações efectuadas pelas autoras no que diz respeito aos restante clubes de jazz, pelo que decidimos – à nossa total responsabilidade – incluí-los na presente discussão. 12 As terças-feiras e os sábados são geralmente ocupadas por concertos organizados pelos clubes.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
No entanto, tal situação não se parece de todo verificar e apesar de haver, de facto, alguns
músicos que se movimentam de performance em performance sem qualquer «preconceito»
aparente, temos vindo a constatar que na sua grande maioria – nomeadamente no que se
refere aos músicos que participam nos eventos tradicionalmente mais frequentados e aqui
analisados do Speakeasey e do Hot Clube de Portugal – os músicos parecem limitar-se a
tocar apenas nas jam sessions de um ou outro clube particular, optando por não participar nas
performances que são organizadas pelos outros.
A esta situação não deve ser de todo alheia o lugar dominante que, como temos vindo a
constatar o Hot Clube de Portugal ocupa naquilo que poderíamos designar, na esteira de
Bourdieu, como o campo jazzístico nacional, ou seja, o espaço social relativamente
autónomo onde se encontram todos os agentes envolvidos na produção desse bem cultural
que é a música jazz.
De facto, em função da sua história e da sua ligação íntima com a primeira e mais
reconhecida escola de jazz do país – a Escola de Jazz Luís Villas Boas – o HCP mantém hoje
em dia um estatuto incomparável do que ao jazz diz respeito em Portugal, estatuto esse que,
como veremos já de seguida, tem um papel determinante ao nível das práticas e
representações dos agentes envolvidos na prática da jam session e, deste modo, na produção
das definições sociais mais ou menos antagónicas que coexistem a respeito daquela
performance.
2. Clubes diferentes, performances diferentes
Com efeito, se há uma coisa que podemos constatar através da frequência regular em noites
de jam session e que se revê claramente na análise que efectuámos – e isto remete-nos para
aquilo que foi dito no Capítulo 1 deste trabalho – é que, para além do carácter estruturado da
participação que se evidência quando falamos de jam sessions, as performances que os clubes
apresentam são efectivamente performances diferentes, situação que se verifica tanto ao nível
da sua organização e modos de funcionamento, como ao nível, menos directamente
observável é certo, da composição social dos seus participantes, da capacidade consagrativa
do contexto social que constituem e, em última análise, dos efeitos que acarretam no âmbito
dos processos de valorização e reconhecimento dos músicos que nelas participam.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Como refere um dos entrevistados «institucionais» que envolvemos no curso desta
investigação: “(...) existem filosofias diferentes na jam session de alguns clubes. Existe
aquele que faz jam sessions porque não quer pagar cachês e quer ter alguma coisa à noite.
Existe aquele que quer fazer uma jam session semanal e com a garantia que as coisas mais
ou menos funcionam. E pronto, as pessoas vão aparecendo onde eventualmente se sentem
melhor. Há músicos que se sentem melhor em ir à jam session do Hot Clube, outros sentem-
se melhor em vir à jam session do Speakeasy. É mesmo isso, sentir-se bem aqui ou acolá. Por
uma razão ou por outra” (Entrevistado 4 - Speakeasy).
Deixando por agora de lado as considerações sobre as eventuais vantagens económicas da
apresentação de jam sessions, questões que não são tão simples quanto a afirmação deste
interlocutor poderia deixar parecer, o que interessa por agora é reconhecer que há realmente
diferentes filosofias da jam session e que, de facto, as pessoas realmente vão aparecendo onde
se sentem melhor.
Desde logo, a presença de um trio base contratado que assegure, em todos os momentos, a
realização da performance, constitui uma diferença marcante que têm influências ao nível do
seu funcionamento, além de que, como veremos mais à frente, constitui também um elemento
significativo na perspectiva que os músicos têm deste tipo de eventos.
Ao contrário do Hot Clube de Portugal, o Speakeasy apresenta actualmente um trio de base,
constituído por um pianista, um contrabaixista e um baterista, que asseguram que haja
sempre música em noites de jam session, ainda que não apareça nenhum músico
especialmente para esse efeito – situação que, no entanto, e como pudemos constatar pela
nossa própria presença regular nos eventos organizados por este clube, não é de todo comum
acontecer.
Já o Hot Clube de Portugal, como dissemos, que já teve também um trio de músicos em
funcionamento nas suas jam sessions, mas que por razões de exigências remunerativas
acabou por ser dispensado, não apresenta actualmente nenhuma maneira específica de
assegurar a produção de música ao vivo nas noites em que estão marcados tais eventos,
considerando mesmo que isso seria desnecessário face à procura que a sua performance
actualmente suscita entre os músicos.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Sim... isto também teve aquela fase que nós quisemos fomentar a jam session para ter uma coisa certa.
Houve aí uma altura em que nós decidimos: “então vamos passar a ter uma jam session com um dia
fixo e com uma banda certa”. Os músicos ao início ofereceram-se para fazer isso por prazer. Havia um
trio base que assegurava a jam session e depois quem viesse rodava e tocavam. Mas isto é como tudo.
Depois chegou a uma certa altura em que a gente achava que era injusto para eles, para o trio base,
estarem cá todas as terças-feiras e não receberem nada. Então começámos por pagar o jantar e mais o
dinheiro da gasolina, pronto. Mas eles chegaram a uma altura em que achavam que isso era pouco e
queriam mais, e queriam mais, e queriam mais... e chegou a uma altura em que dissemos chega,
acabou. (...) é normal, as pessoas chegam a um ponto, cansam-se. É novidade e depois passa a rotina e
então deixou de se fazer isso. E hoje, actualmente, vêm cá músicos. É raro o dia em que a gente tem
jam session e não haja música (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).
Ora, como referimos, a presença de um trio contratado nas performances, além de constituir-
se como um mecanismo que a garante a continuidade do trabalho do clube ao nível da
apresentação de música ao vivo em noites de jam session, tem implicações profundas na
forma como os eventos decorrem, nomeadamente ao nível do papel mais ou menos
estruturante que as instituições – os clubes – podem deter na sua realização.
Assim, se no Hot Clube de Portugal a maneira com a jam session ocorre parece estar, à
partida, maioritariamente sob a responsabilidade dos seus intervenientes directos – os
músicos que nela participam – já no Speakeasy existe um maior grau de intervenção da
gestão do clube, através dos músicos do trio contratado, em várias dimensões da performance
– desde a escolha do género musical dos temas que se tocam, até ao encadeamento em que
estes são tocados e às possibilidades de acesso ao evento por parte dos músicos que querem
tocar.
Nós não interferimos na jam session, isso normalmente é gerido pelos músicos que estão em palco. Se
chega um músico pede para tocar – “posso tocar?” – os que estão lá é que normalmente gerem a jam
session (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal)
É outro conceito de jam session, também não deixa de ser interessante, mas parece-me que, em termos
de poder exactamente disciplinar mais, é preciso ter uma direcção... a jam session ter uma direcção, e,
no fundo, é esse o meu papel aqui. Sim, posso até nem estar a tocar, mas se perceber que as coisas não
estão a funcionar bem, que é preciso mexer em qualquer coisa, tenho que intervir. Um papel de
coordenação. Mesmo sem estar a tocar esse papel é fundamental. Equilibrar as coisas (Entrevistado 4 –
Speakeasy).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Esta situação de um maior nível de controlo da performance é, aliás, assumida e valorizada
pelos seus responsáveis ao nível do clube, como forma de assegurar que o espectáculo que se
apresenta atinge os melhores resultados possíveis ao nível da resposta do público e da
garantia da qualidade de um bom ambiente da casa.
Para mim é importante que a jam session tenha uma disciplina, atendendo ao facto de que há um
público e nós de certa forma temos de o respeitar. É evidente que às vezes é difícil distinguir o que é
divertimento do músico no palco e ao mesmo tempo um equilíbrio que permita que as pessoas que
estão cá fora não fiquem maçadas com o que se está a passar. Basicamente é isso. E às vezes há
músicos que não têm essa noção – estão a divertir-se e tal – mas para mim não existe música sem... na
filosofia da jam session, tal como nós a concebemos, eu tento que não se repitam temas com o mesmo
andamento e com a mesma filosofia. Por exemplo, acabar de tocar uma bossanova e começar outra
bossanova. A preocupação é um bocado essa. Tentar diferenciar e fazer coisas diferentes. Ou acabar
um tema médio tempo e começar outro com o mesmo tempo. Tento que isso não aconteça e isso é que
é importante. Mesmo que o público não entenda nada ou perceba que alguma coisa se está a passar. Às
vezes mesmo o acabar um numa determinada tonalidade, sei lá, em Ré Maior e começar outro tema
em Ré Maior... mesmo que as pessoas não saibam porquê... é isto que cria monotonia (Entrevistado 4
– Speakeasy).
Ora, esta situação tem implicações ao nível tanto do acesso dos músicos à performance,
como da escolha e qualidade dos temas que são tocados durante a sua realização. No
Speakeasy o acesso à jam session parece ser de facto mais condicionado que no Hot Clube,
sendo os músicos autorizados a participar no evento de acordo com a análise subjectiva que é
feita da situação pelo trio de serviço – os responsáveis da jam session – tanto do músico em
questão como do ambiente do clube àquele momento.
[Quando um músico chega] pede para tocar. Nós aqui não funcionamos com sistema de inscrições
porque não há assim tanto... nada que justifique isso. Mostra-se disponível para tocar e nós assim que
for oportuno vamos chamá-lo. Às vezes digo-lhe, hipoteticamente: “olha vem já tocar”, etc. Outras
vezes não, tem de esperar um bom tempo por várias razões, ou porque não é o momento oportuno, ou
porque eu pressinta que vá tocar uma coisa que não está muito dentro daquilo que se está a passar no
momento. De resto está aberto, desde que tenha uma filosofia jazz (Entrevistado 4 – Speakeasy).
Já no Hot Clube a responsabilidade de introdução nos músicos proponentes na performance
fica sob o arbítrio dos próprios músicos que já estão a tocar, ainda que em algumas situações,
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
talvez para os músicos menos experientes, sejam os responsáveis do bar a direccionar os
indivíduos para o evento.
Exacto... pronto, nas noites de maior afluência o músico, desde que saiba tocar minimamente bem,
chega e pede... eles normalmente dirigem-se ao bar – “Ah, como é que eu faço?” – ó pá, e eu digo –
“vais ali, falas com os músicos que estão a tocar e pedes se podes tocar” ...e pronto! É assim
(Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).
São portanto duas perspectivas diferentes as que norteiam, neste caso, a entrada dos músicos
na performance, perspectivas que, no fundo, acabam por ter implicações ao nível daquilo que
posteriormente se seguirá ao nível do espectáculo e da música produzida em cada um dos
clubes aqui em análise, já que os interesses específicos dos agentes a quem finalmente cabe a
decisão sobre o acesso ou não de um músico à performance são também distintos consoante
estes se orientem mais para os interesses do clube em si, enquanto espaço de entretenimento
que possui uma vertente comercial, ou para os interesses específicos dos músicos que, como
veremos mais à frente, estão mais ligados à exploração musical e à experiência performativa
e formativa que a jam session pode proporcionar.
Qualquer que seja o caso, saliente-se no entanto que isto não significa, nomeadamente no
caso do Hot Clube, que os músicos detêm toda a margem de manobra para decidir sobre tudo
o que se passa na performance, e mesmo sobre o acesso ou permanência de um músico
específico nesta. Aos clubes cabe sempre e em todo o caso a última palavra a dizer sobre a
jam session que é organizada nos seus espaços, ainda que este papel possa ser mais ou menos
directivo ou mais ou menos explícito. Voltando a analisar mais precisamente as duas últimas
citações atrás apresentadas, atentemos que, para além das diferenças mais visíveis que
podemos identificar entre o discurso dos dois interlocutores institucionais entrevistados – a
da maior ou menor premência da intervenção do clube no processo de acesso aos músicos à
performance – é nos dito também, ainda que tal à primeira observação possa parecer um
dado adquirido ou supérfluo, que um músico é sempre bem-vindo na performance “desde
que tenha uma filosofia jazz” (Entrevistado 4 – Speakeasy) ou “desde que saiba tocar
minimamente bem” (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).
Ora, esta questão é fundamental, já que entramos aqui, por um lado, no campo do
reconhecimento do valor dos músicos, seja do seu valor enquanto músicos de jazz –
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
enquanto agentes possuidores das competências necessárias à produção dos bens
característicos daquela tradição musical – no caso do Speakeasy, ou, no caso do Hot Clube
de Portugal, do seu valor enquanto músicos em si mesmo, por oposição àqueles que não o
seriam e que, como tal, veriam goradas as possibilidades de acesso àquela performance; e,
por outro lado, na questão da exclusão de alguns agentes musicais e de alguns géneros
musicais cuja presença na performance não seria bem-vinda, de acordo com a avaliação que
seria feita pelos clubes a seu respeito.
[Sobre a presença de outros géneros musicais] Sim, pode acontecer, é uma situação pontual. Se ele
quisesse tocar toda a noite, todas as noites isso, com certeza não era o lugar ideal, mas de resto as
coisas estão abertas a isso (Entrevistado 4 – Speakeasy).
E depois, de volta e meia, também aparecem aí uns músicos que não têm nada a ver com música jazz e
também querem tocar e depois, no fundo, acabam por estragar o que se está a passar e... (Entrevistado
5 – Hot Clube de Portugal).
Quer isto dizer que, se no caso do Speakeasy, como já vimos, esta opção é claramente
assumida e formalizada através do trio em função de uma concepção de performance que o
clube pretende apresentar – talvez em função de uma maior atenção à dimensão comercial do
espaço – já no caso do Hot Clube de Portugal, não deixando de estar presente, ela assume
contornos de uma grande informalidade num processo complexo que envolve tanto os
músicos presentes que participam na performance e suas atitudes perante algum participante
indesejável que apareça, como, em último recurso, a intervenção efectiva dos próprios
agentes institucionais do clube na reposição daquilo que seria a realidade ou, melhor, a
conformidade daquela jam session.
Sim, já houve músicos... inclusive até houve uma altura em que vinha ai um músico que era do...
pensava ele... que era baterista, mas era mais do heavy metal ou coisa do género e então ia para ali
tocar bateria, às tantas quase que me ia correr com os músicos todos que estavam a tocar e ficava ele
sozinho a tocar, porque era uma forma dos outros lhe dizerem – “pá, contigo ninguém quer tocar”
(...). Ele não percebia isso e tinha eu que ir, lá do bar, dizer – “ó pá, desculpa lá, tens que parar
porque...”. Pá, não podia chegar ao pé do músico e dizer-lhe – “pá, não tocas nada!” – então dizia –
“se calhar não estás bem dentro da música que aqui se está a fazer” – ou... pronto... (Entrevistado 5 –
Hot Clube de Portugal).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Isto implica que a qualidade musical daquilo que se toca numa jam session é sempre
relativamente restrita, qualquer que seja a performance a que nos refiramos e sejam essas
restrições impostas maioritariamente pelo clube, através dos agentes que nessa organização
estão encarregues da manutenção da performance, como no caso do Speakeasy, ou de uma
forma mista, através do confronto de interesses entre os músicos e o clube, como no caso do
Hot Clube de Portugal.
Por outro lado, esta situação coloca também na ordem do dia a questão das diferenças de
estatuto entre os músicos presentes na jam session e do seu conhecimento e aceitação das
suas regras implícitas, e da forma como estas se relacionam tanto com a acessibilidade dos
músicos à performance, como com aquilo que estes podem fazer, em termos musicais,
quando de facto a sua entrada no evento é bem sucedida.
Relativamente à primeira questão, já anteriormente tínhamos visto que é pela quantidade de
reputação já granjeada que um artista tem acesso a determinados canais de distribuição do
art world específico em que se move, e que, no universo jazzístico, e na jam session em
particular, é em função da percepção subjectiva que os indivíduos têm do nível musical que
caracteriza a performance e os músicos envolvidos numa dada jam session que decidem, ou
não, participar nesse evento.
Ora, esta questão é fundamental para perceber alguns aspectos deste tipo de performances.
Quando um músico, por falta de conhecimento relativamente a estes eventos ou mesmo por
alguma ingenuidade, se aventura de facto a participar em performances, digamos, mais
reputadas ou, pelo menos, onde os agentes envolvidos apresentam um nível ou um estatuto
musical mais elevado do que o seu, o seu comportamento geralmente é alvo de sanções,
seja por parte do clube que gere com mais proximidade o evento, seja por parte dos
próprios músicos que nele participam.
O músico de heavy metal anteriormente referido não sabia que não devia tocar (ou se sabia
não quis saber), e não compreendendo de imediato, ou ignorando a punição que lhe estava a
ser imposta pelos restantes músicos presentes, que suscitava o seu abandono voluntário da
sessão, sem prejuízos mais relevantes, acabou por ser excluído do evento explicitamente,
deixando tomar forma objectiva aquilo que poderia ter permanecido por dizer: tanto a sua
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
aparente falta de jeito para a música como a sua total falta de conhecimento ou aceitação
daquilo que constitui uma espécie de ordem social da jam session e da participação neste tipo
de eventos.
È por isso que a análise dos processos de socialização dos músicos, decorrentes da sua
participação nas instâncias de formação formais e informais da prática musical jazzística, são
fundamentais para se perceber a forma como estes participam na jam session. Voltaremos a
esta questão mais tarde. Por agora, o que aqui interessa salientar é que se a reputação, o
reconhecimento das capacidades musicais de um músico por parte dos clubes ou de outros
músicos, pode funcionar no sentido da delimitação das possibilidades que estes têm de
participar nas performances, também é verdade que a questão do estatuto também se coloca
de maneira inversa.
Assim como há músicos que não participam em performances onde reconhecem que o nível
está demasiado alto para as suas capacidades, ainda que estas possam estar em franca
progressão e desenvolvimento (isso para agora não interessa), também há casos em que os
músicos se recusam em participar em jam sessions em que consideram que o nível está
demasiado baixo.
Apesar de aparentemente muito ter mudado recentemente a este nível e de já haver mais
mistura entre músicos de diferentes estatutos na jam session (pelo menos entre aqueles que
conseguirem passar a tal barreira invisível que, como vimos, tanto os clubes como os
músicos impõem na realização deste tipo de eventos) o que parece ser certo é que existem
ainda muitos músicos que, simplesmente, não tocam em performances nas quais estão a
participar músicos que detêm um estatuto reconhecidamente (e a questão aqui é a de
reconhecer estas diferenças) inferior ao seu.
Assim, se para um dos interlocutores que entrevistados “há músicos que têm a tendência de
chegar e apoderar-se da situação” (Entrevistado 4 – Speakeasy), ou seja, da performance
que se está a realizar – ainda que o entrevistado refira que tal não acontece nas jam sessions
que se realizam sob sua responsabilidade – para outro ainda há “certos músicos que vêm (...)
e se estiverem meia dúzia de miúdos da escola a tocar, músicos que vêem aí às vezes,
músicos daqueles que nós chamamos de top português, que não se misturam, não querem
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
tocar com os miúdos novos e não sei o quê” ou “temos aí alguns músicos portugueses, têm
algum talento e lançam um disco, mas é como a gente diz, projecto há muitos, criatividade é
que é muito pouca. Mas o pessoal também lhe fazia bem descer mais abaixo e ver –
“também já aqui estive” – não lhes fazia mal nenhum tocar com esse pessoal” (Entrevistado
5 – Hot Clube de Portugal).
Ainda no que diz respeito a esta questão, um dos interlocutores que contactámos não deixa
de salientar que a questão, não só da idade, mas sobretudo do estatuto, dos músicos que
frequentam a jam session tem de facto vindo a sofrer alterações ao longo do tempo e que se,
num primeiro momento, as jam sessions envolviam já “músicos com uma certa craveira”,
hoje em dia elas funcionam “tanto com o Dr. Veloso13, que tem 70 anos, como com o aluno
mais novo da escola que, provavelmente, tem 17 ou 18 anos” (Entrevistado 5 – Hot Clube de
Portugal).
Mas se isto funciona assim, também não é menos verdade que mesmo dentro da jam session
a questão dos estatutos dos músicos assume extrema relevância no que diz respeito àquilo
que estes podem ou não podem fazer, em termos musicais, no curso da performance.
Assim, se no Speakeasy a presença dos agentes institucionais do clube na performance
constitui um mecanismo fundamental que impede que um músico qualquer chegue e se
apodere da performance que está a ocorrer, monopolizando-a em função dos seus interesses
específicos e renegando os interesses da «casa», já no Hot Clube – e esta situação decorre de
uma observação in loco da nossa parte – há espaço para um músico, pelo menos um músico
consagrado, mandar literalmente calar a audiência, em tons muito pouco cordiais, quando a
agitação desta está a interferir na execução do seu solo.
Esta questão é importantíssima, já que ela de alguma forma retoma a discussão que atrás
tivemos sobre os diferentes clubes de jazz existentes em Portugal e da relação que estes
mantêm com a produção da música e dos músicos que se reivindicam de jazz no nosso país.
13 Um médico, amante de jazz, pianista, que é uma presença regular nas jam sessions do Hot e que, como nós próprios tivemos oportunidade de observar numa ocasião em que não havia músicos em palco numa noite de jam session, não se faz rogado em convidar músicos mais novos e menos experientes para o acompanhar neste tipo de eventos.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
O «burburinho» existente nos clubes em noite de jam session, o barulho, as conversas, o riso,
ou, pelo menos, o facto de este se encontrar mais ou menos presente na altura da realização
deste tipo de eventos - isto apesar das diferenças físicas e de qualidade sonora dos espaços –
constitui um indicador precioso (e aqui, tanto ao nível da desatenção do público, como da
tolerância dos agentes institucionais dos clubes relativamente à presença deste contraponto
sonoro) da maior ou menor atenção ou importância que estes concedem à criação musical ou
à dimensão eventualmente comercial da sua vocação.
A este respeito não há equívocos. O Hot Clube de Portugal permanece, de facto, e como já
aqui tínhamos adiantado, como um espaço muito mais virado para a produção musical e para
os músicos, não dando – pelo menos à partida – tanta atenção quanto o Speakeasy à questão
da satisfação das expectativas do público, ainda que este clube coloque também a questão da
valorização da audiência sob a perspectiva da divulgação da música e dos músicos de jazz.
Aqui o público varia muito mais que no Hot Clube. Mas também muita gente que vai ao Hot Clube
são puramente curiosos. Quer dizer, não são necessariamente pessoas muito entendidas e se queremos
que o jazz venha a ter sucesso temos de ter o cuidado... há um trabalho muito importante no sentido de
ensinar as pessoas a ouvir. Se a pessoa comprar um primeiro disco de jazz e for uma coisa na área do
free jazz, com certeza vai ficar a odiar o jazz para toda a vida. Tem que haver um percurso naquilo que
se ouve primeiro, tornar a coisa um bocado mais... (Entrevistado 4 – Speakeasy).
Esta situação chega a ser paradoxal, já que é no clube em que existe uma maior preocupação
com o público aquele em que se verifica uma maior desatenção desse mesmo público
relativamente àquilo que se está a passar no palco, o que coloca aqui em jogo a questão da
composição social dos públicos e da sua maior ou menor proximidade ao universo musical
em questão, assim como das suas motivações em frequentar os espaços onde este tipo de
performances ocorrem.
Ainda que não tenhamos recolhidos dados objectivos sobre esta questão, a nossa presença
regular neste tipo de eventos e as observações daí decorrentes permitem-nos sugerir que
falamos de dois públicos diferentes, tão diferentes, aliás, quanto o tipo de música produzida
nas diferentes sessões aqui abordadas. No caso do Hot Clube de Portugal – e em
correspondência com o que atrás dissemos sobre a posição dominante que este clube ocupa
no campo jazzístico nacional – estaríamos na presença de um público muito mais atento ao
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
desenvolvimento da performance, que segue mais ou menos prudentemente os passos dos
músicos em palco e que se abstém de falar alto ou de efectuar qualquer acção que possa
interferir no sentido da obstrução da fruição do momento musical que ali se vive (ou, pelo
menos, de como essa fruição é ali entendida). Pelo contrário, no caso do Speakeasy, o
público está frequentemente desatento relativamente ao que se passa no palco, perdido em
conversas particulares ou a finalizar uma refeição, intervindo na performance apenas quando
existe uma grande prestação musical por parte dos músicos presentes ou quando o
responsável do espaço – também ele um músico, cantor – interrompe o desenvolvimento da
performance para anunciar ou aplaudir algum dos seus intervenientes.
De recordar aqui que o Hot Clube de Portugal é um clube exclusivamente de jazz, talvez o
mais antigo da Europa, e que, pelo contrário, o Speakeasy é um clube que apresenta uma
programação muito variada ao longo da semana, que não se cinge à música jazz, além de se
encontrar também situado junto das docas de Alcântara, um espaço com uma dimensão
acentuadamente comercial, virada para o entretenimento nocturno, ao invés do Hot Clube
que fica na Praça da Alegria, relativamente deslocado dos circuitos comerciais.
Além disso, como vimos anteriormente, a própria fundação do Hot Clube de Portugal teve
como bases a associação de um conjunto de pessoas interessadas na promoção do jazz e que
durante muito tempo este espaço foi o ponto de encontro entre os mais aguerridos
aficionados daquele género musical, aos quais se juntariam depois curiosos e visitantes
incautos, é certo, mas também, e talvez, sobretudo, muitos professores e alunos da escola de
jazz entretanto criada pelo clube, circunstâncias que fazem deste espaço um local
privilegiado no que diz respeito a presença de uma audiência, em termos gerais, bastante
preparada para conhecer e reconhecer, agregando valor, os eventos musicais e os músicos
que ali são apresentados.
Quando eu cheguei aqui ao Hot foi nos anos 80, penso que em 86. Sim, foi em 86. Quer dizer, as
pessoas que frequentavam o Hot Clube eram pessoas de uma certa idade, quer dizer, vivia
essencialmente dos habitues, as pessoas que vinham quase todos os dias, que nós conhecíamos já, que
vinham com uma certa regularidade. Até que, a partir dos anos 90 – pronto, a escola já existia desde os
anos 80, mas as pessoas que frequentavam a escola não vinham muito ao clube – a partir de meados de
90 assistiu-se a uma regeneração, por assim dizer, das pessoas que frequentavam o clube. Porquê?
Porque a escola começou a ter mais movimento, começou a ter muito mais pessoas, muito mais
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
professores. Então começou a vir muita malta nova, pessoal novo, que frequentava a escola. E
tínhamos a vantagem de que a escola funcionava aqui no prédio no primeiro andar. Então começou-se
a fomentar uma jam session às terças e às quartas. Quem dava início a essas jam sessions normalmente
eram os professores e os amigos, e os amigos trazem os amigos, e pronto, de certa forma assistiu-se a
uma grande regeneração gradual das pessoas que vêem hoje em dia ao Hot Clube, desde os anos 80,
onde só havia o concerto à quinta, sexta e sábado, depois terça e quarta. Isto era essencialmente um
clube onde a gente punha uns discos. Que se ouvia o jazz (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).
Por outro lado, ao nível da música produzida nas jam sessions, pudemos constatar que é no
Hot Clube que podemos observar uma maior abertura à experimentação musical por parte
dos indivíduos, podendo estes optar por «solar» mais ou menos indefinidamente pelo tempo
e, também de acordo com o estatuto que possuem, envolver-se em experimentações sonoras
improvisacionais que extravasam o universo jazzístico convencional, sendo para isso muitas
vezes incentivados em tempo real pelas reacções emotivas do público presente.
Já no Speakeasy, apesar do espectro musical abrangido parecer ser mais lato que clube
anterior, nomeadamente em termos dos géneros musicais invocados – jazz, blues, bossanova,
música latino-americana, além de outros estilos que possam surgir, ainda que pontualmente –
a dimensão da experimentação não parece estar tão presente, tendo a música produzida um
«aspecto» final muito mais «polido», mas simultaneamente menos arrojado, do que no Hot
Clube de Portugal.
Saliente-se que isto não se passa sempre assim, e que muitas vezes estas questões,
nomeadamente a da música produzida na performance, são também fortemente
condicionadas pelos estatutos dos músicos que em dado momento específico participam
naquelas performances, pelo que o que aqui fica, em termos concretos, é, no fundo, no
sentido bourdiano do termo, o espaço dos possíveis que cada clube coloca ao dispor dos
agentes sociais que participam neste tipo de eventos.
De qualquer modo, qualquer que seja o caso ou as diferenças encontradas entre os dois
clubes analisados, ambos os interlocutores com quem conversámos salientaram também que
a jam session é exactamente o lugar do imprevisto e do imprevisível, do rude e do inacabado,
sendo portanto sempre difícil prever o que se vai passar num evento deste género.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Às vezes aquilo não sai tão bem como a gente esperava que saísse. Mas as jam sessions são para isso
mesmo. É experimental, é para o músico expor ali as ideias e tentar transmitir às pessoas aquilo que
aprende na escola (Entrevistado 5 – Hot Clube de Portugal).
3. Práticas e representações da jam session
A dimensão da imprevisibilidade e incerteza que, como temos vindo a ver, se encontra
frequentemente associada à pratica da jam session, encontra também reflexo nas opiniões
dos músicos que aqui entrevistámos e que participam regularmente neste tipo de
performances, sendo geralmente valorizada no âmbito de uma vertente pedagógica e/ou
convivial daquela experiência musical – situação em que os músicos poderiam conviver com
outros músicos tirando dai benefícios ao nível tanto da sua formação – da aprendizagem
pelos pares – como ao nível da sua profissionalização – através da exibição das suas
capacidade e da criação de redes de sociabilidade que poderão ser geradoras de futuros
compromissos profissionais.
Como nos refere um dos entrevistados, a jam session é um bom sítio para conhecer pessoas e
para se estar integrado no meio do jazz, condição que é essencial para a profissionalização
destes músicos. Travam-se conhecimentos, avaliam-se as características dos músicos
presentes e podem começar a surgir convites para este ou para aquele projecto musical
(Entrevistado 1).
Eu considero aquilo quase como uma pessoa que tira um curso universitário e depois vai ter um
estágio. A jam session é tipo um estágio, está ali, aquilo é mesmo o momento real, percebes?! Por
exemplo, estás a ter aulas, mas não tens pessoas a olhar para ti, se acontece alguma coisa não te
«queimas» tanto, há um papel onde te podes agarrar. Ali não, ali é mesmo o palco, é mesmo a verdade.
É a verdade porque tens ali pessoas a assistir, se alguma coisa corre mal tu tens que dar a volta,
enquanto nas aulas isso não acontece. Considero que a jam session, para uma pessoa que queira ser
músico e tocar jazz, é super-importante (Entrevistado 2).
De facto, a jam session, enquanto performance musical realizada regularmente em clubes de
jazz, faz parte integrante daquilo que Howard Becker considera ser o sistema distributivo de
um art world, ou seja, o conjunto dos mecanismos que nesse mundo permite a apresentação
do trabalho dos artistas perante públicos passíveis de apreciar e recompensar esse trabalho.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
De acordo com Becker, como já vimos (capítulo 2) é a actividade dos agentes que operam no
sistema distributivo de determinado art world que permite a retribuição do trabalho dos
artistas e a criação de audiências que apreciem os eventos propostos e recompensem os seus
autores com uma reputação acrescida (Becker, 1982: 119).
Na nossa perspectiva, relativamente à performance que aqui nos preocupa, ainda que
geralmente não se cobrem bilhetes para este tipo de eventos e que, por consequência, a maior
parte das vezes eles não envolvam uma compensação monetária directa do trabalho dos
músicos ou dos organizadores que participam na sua produção – algo que Becker considera
ser uma das características essenciais do sistema distributivo – parece-nos que não podemos
desprezar a sua relação com um outro tipo de compensações, não económicas, mas de nível
reputacional e social, que de facto podem constituir um recurso valioso ao dispor de músicos
e empresários14, por vezes traduzível em termos materiais ao longo do tempo.
Em particular, num regime de freelance, como o que caracteriza a actividade artística de
grande parte dos músicos de jazz, a reputação constitui o elemento fundamental a partir do
qual se estabelecem laços profissionais. É a partir da habilidade reconhecida dos indivíduos
que compõem o sistema que se processa o recrutamento de profissionais e se constituem os
grupos de trabalho em torno dos projectos que esse art world vai realizando. A reputação é
sem dúvida essencial em todo o processo, embora não seja o único factor a ter em conta.
Para assegurar a manutenção da sua actividade de uma forma relativamente estável, é ainda
essencial que os indivíduos que trabalham deste modo sejam conhecidos e mantenham uma
rede de contactos suficientemente alargada que proporcione a solicitação dos seus serviços
com relativa frequência (Becker, 1982: 86).
A jam session, neste sentido, embora não contemple directamente o lucro económico, é sem
dúvida um espaço de reconhecimento social, onde os músicos criam reputações com base na
avaliação que é feita do seu trabalho pelos outros músicos e pelas audiências que assistem a
esses eventos, e é também um espaço onde os músicos se dão a conhecer como profissionais
disponíveis, estabelecendo assim contactos imprescindíveis para a criação de futuras redes de
cooperação e trabalho com outros membros do art world jazzístico. 14 Logicamente que, ao nível dos empresários que gerem os clubes onde a performance se realiza, a organização de jam sessions constitui desde logo um bom investimento, na medida em que fornece ao clube pelo menos algumas noites de entretenimento com um custo bastante reduzido.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Obviamente que não pretendemos com isto negar, ou sequer minorar, a importância
consagrativa que os concertos com músicos contratados – organizados exactamente pelos
mesmos clubes que organizam jam sessions – certamente possuem. Porém, consideramos
que o carácter mais aberto e virtualmente competitivo da jam session relativamente a outro
tipo de performances musicais mais formais, tornam o evento particularmente propício à
exibição técnica e busca de notoriedade, nomeadamente na perspectiva do músico ainda
pouco conhecido no meio. Além disso, a dimensão de sociabilidade que uma jam session
invoca e que, como vimos, pode possibilitar o estabelecimento de redes de trabalho entre
diversos actores sociais que interagem no universo jazzístico, é algo que num concerto
organizado se encontra relativamente minimizado.
Ora, mas como referimos no início do presente capítulo, a participação nas jam sessions não
se faz de forma aleatória, mas sim de uma forma estruturada, em que os músicos se
distribuem pelas performances que lhes são propostas pelos vários clubes que estão
envolvidos na produção deste tipo de eventos sem nunca fazerem a travessia, pelo menos
aparentemente, para as performances de outros espaços, com outros músicos.
Dos músicos que entrevistámos no curso desta investigação, apenas um – o entrevistado 3 –
refere ter tocado já com alguma regularidade nas jam sessions de um clube – o Speakeasy –
diferente do que o que tocava habitualmente por altura da realização da entrevista – o Hot
Clube de Portugal. Os restantes, apesar de conhecerem outros clubes onde também se
realizam jam sessions, nomeadamente o Hot Clube, e de terem já pelo menos experimentado
o acesso a essas performances, referem que, por motivos vários, preferem de facto tocar no
Speakeasy.
Ora, como já vimos, os clubes condicionam sempre, por vias mais ou menos explícitas ou
mais ou menos formais, tanto o acesso que os músicos podem ter às performances, como
aquilo que eles podem ou não podem fazer quando se encontram já na situação de jam
session.
Assim, se a jam session pode de facto ter uma influência muito positiva no percurso ou na
actividade musical dos agentes, também é um facto que ela também tem, nas palavras de um
dos músicos entrevistados, a sua “parte má”, ou seja, os mecanismos de manutenção de uma
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
determinada ordem social criada momentaneamente em determinada performance e que se
impõem, de forma mais ou menos premente ou mais ou menos violenta, aos músicos que
nela participam ou querem participar. A questão dos estatutos dos músicos envolvidos
adquire aqui toda a relevância. E é um facto que, muitas vezes, só à custa de muita
perseverância é que alguns músicos conseguem manter uma participação relativamente
regular neste tipo de eventos.
Por outro lado, também tem a parte má, que é ver o mau feitio de certos músicos que lá estão. Mesmo
na jam session – há uns que têm mau feitio. Se tu, por exemplo, tocas menos do que eles e eles gozam-
te. Às vezes até te tratam mal porque não estás a um nível tão alto como eles. Não sabem ver que
aquela pessoa está a tentar progredir. Às vezes tem esse lado mau. Houve várias vezes que eu vinha
para casa e pensei: pá… nunca mais vou pôr os pés naquela jam session, ou isto ou aquilo. Por coisas
que me disseram… normalmente por coisas que me disseram ou coisas que não gostasse. Mas pronto,
depois no outro dia passava a onda, passado algum tempo já estava esquecido e pronto (Entrevistado
2).
E esta questão – aliás, como já aqui vimos através do episódio do baterista de heavy metal –
pode mesmo chegar a assumir proporções institucionais, quando os próprios agentes do
clube intervêm no sentido da manutenção de uma determinada realidade da performance.
Um dos músicos entrevistados relatou-nos a seguinte situação, passada no Speakeasy,
imediatamente a seguir a ter negado a existência de quaisquer tipo de constrangimentos na
performance.
Pá, nunca tive problemas. Nunca me proibiram de estar no palco. Lembro-me que houve uma vez – e
isso não foi há muito tempo – que eu subi para o palco e havia lá um saxofonista e, pronto, só gostava
de tocar sozinho, não gostava de tocar acompanhado. E depois de ele ter tocado uma música, eu subi
para tocar também uma música. E quando eu subi para o palco ele saiu do palco. E lá os da jam quase
que me agarraram e me mandaram para fora do palco para o outro entrar. O outro era um bocado
esquisito e só podia tocar sozinho. Isso foi uma coisa que aconteceu que eu não gostei muito
(Entrevistado 2).
Neste contexto das coisas, ainda que algumas das explicações apresentadas para justificar a
adopção de determinadas performances pelos músicos surjam no sentido da sua falta de
tempo, falta de disponibilidade, ou falta de condições (falta de um trio fixo na jam session)
para frequentar as performances de outros clubes (entrevistado 2), um dos músicos não deixa
de referir, relativamente ao Hot Clube de Portugal, que existe um certo clubismo à volta da
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
performance e do clube em si, fechadísmo para o qual contribuem, na sua perspectiva, tanto
os músicos que costumam participar nos eventos desse clube como o público que frequenta o
espaço. O Speakeasy, refere o músico, tem uma jam session com um ambiente mais
relaxado. Se um músico não fizer «estrilho» é bem recebido por todos, coisa que na sua
opinião não acontece no Hot Clube (Entrevistado 2).
E mesmo o músico que nos referia que não participava nas jam session do Hot Clube de
Portugal por razões meramente idiossincráticas, não deixa também de salientar que o facto
de a audiência mais apreciativa e mais compreensiva deste clube se caracterizar
supostamente por um maior nível de conhecimento musical acarreta, inevitavelmente, um
maior sentido de responsabilidade por parte dos músicos que intervêm neste tipo de eventos,
o que de facto pode constituir um factor intimidatório da sua participação.
Pá… o Hot, daquilo que eu vejo, as pessoas que estão lá a maior parte são músicos e compreendem um
músico mesmo que toque pouco, toque bem ou não toque muito bem. Pelo menos compreendem e
normalmente batem sempre palmas no final dos solos. As pessoas que lá estão apoiam mais as pessoas
que estão a tocar mas, pronto, também lá a responsabilidade é maior porque a pessoa toca e está a ser
ouvida por pessoas que compreendem aquilo que a pessoa está a fazer. Por exemplo, se fores para um
lado onde as pessoas não percebem, pronto, a pessoa dá as notas e aquilo para elas cai-lhes ao lado, a
pessoa não tem tanta responsabilidade. No Hot é um bocado mais responsabilidade a pessoa tocar. No
entanto, das poucas vezes que lá fui, dá-me a sensação que as pessoas que lá estão apoiam os músicos
(Entrevistado 2).
Por outro lado, aqueles que participam nos eventos organizados pelo Hot Clube de Portugal
apresentam uma visão claramente diferente das coisas, e chamam a atenção para a vertente
comercial da jam session de outros «bares», aspecto que da sua perspectiva desvirtuaria a
pureza deste tipo de performances e a dimensão lúdica e convivial que originalmente estaria
na sua origem.
Mas também temos que salvaguardar uma coisa, tirando o Hot – eu estou a supor, não estou a afirmar
– também há um marketing da própria casa que está no mercado da restauração e vê na jam session
uma maneira de ter música ao vivo sem ter de pagar cachê aos músicos. Temos que ver também por
esse lado. Um exemplo flagrante é o Speakeasy. Essa eu conheço, é negócio, tanto que os músicos
recebem 5 contos cada um, pelo menos era assim há uns 4 anos. Há um trio, uma secção rítmica base e
isso já não é bem uma jam session (…) porque o trio está ali a receber dinheiro. (Entrevistado 3).
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
O Hot Clube é um clube totalmente diferente de todos os bares. O Hot Clube é um clube. O
Speakeasy, o Catacumbas são bares. É diferente. À aí uma ideologia de marketing diferente. Se o Hot
Clube estivesse a pensar por exemplo na questão só de dinheiro, de certeza que já tinha fechado e não
estava aberto há cerca de cinquenta e tal anos. O Speakeasy já tem 10 anos e já é a 4ª ou a 5ª gerência.
À também que salvaguardar essa parte de marketing, de trabalho, e [distinguir] aquelas que são
realmente puras, que é o caso do Hot Clube (Entrevistado 3).
Chegamos assim, a partir da análise das descrições que os agentes envolvidos fazem das
performances em que participam ou não participam, a diferentes visões daquilo que é ou,
pelo menos, daquilo que não é, ou não deve ser, uma jam session.
Ora, mas como já referimos no princípio deste trabalho, se é verdade que nos encontramos
perante um cenário onde existem ou coexistem diferentes concepções ou definições daquilo
que uma jam session é, também é verdade que nem todos os músicos são iguais e que, tal
como refere Pierre Bourdieu, devemos ir mais fundo, ao lugar objectivo que os agentes
sociais ocupam no espaço social – o campo jazzístico – para perceber tanto as práticas em
que estão envolvidos como as representações que detêm sobre esse espaço e as estratégias e
tomadas de posição que adoptam no sentido tanto da transformação como da conservação
das relações de força que em determinado momento o caracterizam.
Então, se nem todos os músicos são iguais, a primeira distinção que podemos estabelecer
entre eles – e que decorre exactamente do confronto entre aquilo que tinha sido sistematizado
no capítulo 2 deste trabalho e as entrevistas entretanto realizadas durante o processo de
investigação – é que, ao nível da sua vocação artística, isto é, da facilidade e precocidade
que tiveram em enveredar pelo percurso musical – e que pode ser explicativo do maior ou
menor nível de profissionalização que este atingiu até agora – encontramos duas situações
radicalmente distintas, consoante falemos dos músicos que participam nas jam sessions do
Speakeasy ou daqueles que participam nas performances organizadas pelo Hot Clube de
Portugal.
Como anteriormente dissemos (capítulo 2), é entre as famílias culturalmente mais
«abastadas» e com maior proximidade ao universo artístico que surge a maior parte dos
artistas e, sobretudo, dos artistas que conseguem atingir um elevado nível de
profissionalização na actividade que desenvolvem, pelo que seria portanto de esperar que
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
fosse entre os músicos que participam nas jam sessions do Hot Clube – clube, como vimos,
mais reputado no que ao jazz diz respeito em Portugal – que surgisse uma maior incidência
de indivíduos oriundos de famílias artisticamente privilegiadas, que tivessem, em tempo útil,
suportado e incentivado os anseios e ambições artísticas/musicais dos seus descendentes.
Ora, tal parece ser, de facto, o caso, de acordo com a análise que aqui realizámos a partir dos
dados facultados pelo músico do Hot Clube que envolvemos durante o processo de recolha
de informação desta investigação.
Abstendo-nos de citar nomes, o que é certo é que o Entrevistado 3, músico que participa com
regularidade nas jam sessions organizadas pelo Hot Clube de Portugal, teve, desde cedo,
uma infância e uma formação muito vocacionadas para a prática musical, sendo os seus
progenitores detentores de um forte capital cultural e incentivadores, a tempo inteiro, da
«queda» para a música do filho - a mãe é professora do ensino secundário e o pai empresário
e músico profissional de formação clássica, ocupando actualmente um cargo directivo na
Orquestra Filarmónica do Porto (Entrevistado 3).
Conforme nos referiu o músico, foram de facto os seus pais que o incentivaram e ajudaram a
seguir uma formação musical desde muito cedo – 8 anos – formação essa que começaria
primeiro pelo ensino no Conservatório de Música, na área da percussão clássica, e que
passaria depois, já findado o curso, tanto pela aprendizagem autodidacta – através de
métodos musicais, vídeos – ou informal – participação em workshops e visualização e
participação de/em jam sessions – como pelo seu ingresso numa escola de música norte-
americana, a Drummers Colective e a convivência próxima com um músico profissional
norte-americano.
Ora, esta situação, esta experiência, contrasta muito fortemente com aquela que foi a
orientação artística dos músicos entrevistados que participam ou participavam nas jam
sessions do outro clube estudado, o Speakeasy.
De facto, falamos aqui de indivíduos que só mais tardiamente se dedicaram ao estudo da
música – o Entrevistado 1 começou a tocar, de forma autodidacta , aos 12 anos de idade e o
Entrevistado 2, numa Banda Filarmónica, aos 23, 24 anos – e que, talvez mais importante
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
que isso, tiveram primeiro que lidar com alguns constrangimentos familiares ou financeiros
antes de se poderem dedicar mais profundamente ao estudo e à prática musical.
Em particular, o Entrevistado 1, tendo tido de facto algum contacto com familiares que se
dedicavam à música – os seus irmãos – teve no entanto que acatar as imposições parentais e
finalizar primeiro um curso superior na área da Educação Infantil antes de poder ingressar
numa escola vocacionada para o ensino da música jazz (Entrevistado 1).
Do mesmo modo, o Entrevistado 2, que como vimos começa ainda mais tarde na música,
sem ter qualquer background cultural ou artístico de referência, inicia-se no seu percurso
musical por via do contacto com amigos somente depois de tirar um curso superior em
Gestão de Empresas, situação que surge também contra a vontade dos seus pais.
Ora, esta questão – a da maior facilidade ou dificuldade da inserção dos agentes na prática
musical – tem uma influência profunda no modo como estes se encontram actualmente
envolvidos no meio musical – na sua actividade musical – e, inevitavelmente, no nível de
reputação e reconhecimento de actualmente gozam no campo jazzístico nacional.
Assim, o entrevistado 3, detentor de um percurso formativo bastante sólido e variado que
inclui a passagem por uma escola de música norte-americana, algo que é especialmente
valorizado pelos músicos que pontuam neste meio, esteve sempre ligado profissionalmente à
música, desenvolvendo actividades, desde novo, em orquestras sinfónicas, em grupos de
músicos reconhecidos no nosso pais, como professor de música em várias instituições, e,
mais actualmente, em conjuntos de jazz que integram músicos também muito reconhecidos
no universo jazzístico nacional (Entrevistado 3).
Os restantes músicos entrevistados, pelo contrário, embora estejam de facto envolvidos de
forma diferente no meio musical nacional, têm ainda um longo caminho a percorrer no
sentido de maior profissionalização e reconhecimento enquanto músicos, ou músicos de jazz.
No caso do entrevistado 1 essa inserção é muito limitada e, embora o seu desejo seja atingir a
profissionalização enquanto músico, a sua actividade musical é ainda muito precária,
encontrando-se reduzida à sua participação nas jam sessions e, muito esporadicamente, a um
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
ou outro concerto que possa surgir. Vive, portanto, a partir da actividade que desenvolve
como educador de infância e estuda música nos tempos que consegue, diariamente,
consagrar para esse efeito.
Já no caso do entrevistado 2, a situação é um bocado diferente, tendo o músico passado
recentemente de participante «regular» na jam session para membro fixo de dois trios de
suporte a performances do género em dois clubes de jazz da cidade de Lisboa. Além disso,
toca ainda com dois grupos musicais, um de música brasileira e outro de música jazz, com os
quais dá alguns concertos, e é ainda professor particular de três estudantes de saxofone.
Em termos de perspectivas de futuro, este músico está relativamente inseguro, na medida em
que muito recentemente largou a sua antiga profissão numa ourivesaria para passar a
dedicar-se exclusivamente à actividade musical. O seu objectivo, além de continuar a estudar
e a progredir musicalmente, é arranjar mais alunos e dar mais concertos.
Esta situação intersticial, aliás, parece-nos poder até ser bastante explicativa de algumas
particularidades da informação cedida por este interlocutor, sempre muito reticente
relativamente às afirmações que proferia, como se o período de transição em que
actualmente se encontra em termos profissionais e, em particular, o processo ambicionado de
mobilidade social no universo musical e jazzístico nacional em que se encontra cometido, o
levasse a acautelar-se relativamente às posições que toma, como forma de não fechar
indefinidamente portas que, no fundo, se esforça actualmente por abrir.
Qualquer que seja o caso, o facto é que para além das diferenças que podemos encontrar
entre clubes e performances ao nível da prática da jam session, encontramos também
músicos situados diferentemente naquilo que seria o espaço social jazzístico português,
alojados em posições distintas consoante o capital simbólico – o nível de reconhecimento –
que possuem no actual estado do campo, e que, no fundo, parece constituir o verdadeiro
princípio a partir do qual poderemos compreender não só o fenómeno da participação
estruturada na performance, mas também o modo como os agentes se posicionam
relativamente àquilo que aquela performance é ou deve ser.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Conforme já referimos neste texto, o sistema de distribuição de um art world é um sistema
hierarquizado em termos reputacionais e a participação dos artistas nos canais de distribuição
mais reputados desse sistema – participação a partir da qual os membros desse universo
distinguem os verdadeiros profissionais dos meros amadores – depende sempre do nível de
reputação já granjeado por esses artistas (Becker, 1982: 95-97).
Neste sentido, o acesso às jam sessions que os diferentes clubes de jazz organizam não se faz
de uma forma aleatória ou indiscriminada, mas segue, em traços gerais, um padrão definido
pela correspondência entre a reputação dos músicos que procuram um sítio para tocar e a
reputação dos clubes que organizam as performances. A reputação é, em todo o caso, o que
diferencia as jam sessions e os músicos que nelas participam e a ordem social assim criada é
mantida por inúmeros mecanismos informais, entre os quais se destaca, talvez como o mais
eficaz de todos – porque por todos tacitamente aceite – a proibição implícita que impede os
músicos de participarem em performances que não estão ao seu nível.
Ora, já aqui vimos que a jam session constitui, por si mesma, um mecanismo importante para
a valorização dos músicos que nelas participam, além de poder proporcionar o
estabelecimento de contactos de grande importância para a actividade profissional destes
indivíduos. Se juntarmos a isto o facto, agora reconhecido, da participação diferenciada dos
músicos da performance em função do seu capital simbólico, então estaremos na presença de
um verdadeiro mecanismo de reprodução social, em que os músicos mais reputados, que
frequentam os clubes e as performances mais reputadas, onde pontuam as audiências mais
conhecedoras e apreciativas e, neste sentido, mais aptas a conceder valor, a reconhecer o
valor dos músicos presentes, são também aqueles que em melhor posição se encontram de
reproduzir um capital simbólico que, à partida, já era seu.
A questão das diferentes performances, ou das diferentes definições da performance que
coexistem no espaço jazzístico português, então, não podem ser entendidas fora das relações
de força que se estabelecem entre os agentes individuais – os músicos – e institucionais – os
clubes – que, com graus de reconhecimento diferentes nesse universo social específico,
competem para impor e valorizar os seus interesses particulares – reputacionais – como o
ponto de vista mais legítimo e, neste sentido, mais verdadeiro, mais valioso, nesse mundo.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
Ir tocar a uma jam session é sempre um marcador simbólico significativo do estatuto que um
músico detém, em determinado momento no tempo, no campo jazzístico nacional, e aquilo
que os agentes dizem sobre aquilo que fazem (as performances em que participam) e sobre
aquilo que deixam de fazer (as performances em que não participam ou não podem
participar) constitui sempre uma forma de reprodução (no caso dos músicos mais reputados)
ou de subversão (no caso dos músicos menos reputados) do estigma assim «instalado».
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Onde é que eu vou tocar esta noite? Pergunta mais complexa do que aparenta à primeira
vista, foi a questão que nos guiou durante o processo investigativo aqui exposto sob a forma
de Tese de Licenciatura, processo esse que se iniciou há já quase cinco anos atrás, ainda que
ao tempo cronológico – que poderia deixar antever uma investigação de grande envergadura
– não corresponda de facto ao tempo de trabalho efectivo consagrado pelos seus autores à
matéria em questão. Muita coisa aconteceu pelo caminho – emprego, desemprego, filhos,
realojamentos, maior dedicação, menor dedicação, hesitação, convicção, depressão e
salvação – e talvez, hoje em dia, as coisas da tese não pareçam tão problemáticas e
complexas como se afiguravam quando tudo isto começou.
O processo de trabalho foi moroso, intervalado por períodos de completo abandono
relativamente ao (muito) que, em determinadas alturas, havia ainda por fazer, e, em
contraponto, por grandes demonstrações de confiança, incentivo e, obviamente, ajuda, tanto
por parte da orientadora formal do trabalho – a Professora Elsa Pegado – como por parte do
outro professor da cadeira de Seminário-Estágio – o Professor Carlos Miguel. Aos dois
estamos muito agradecidos.
Mas voltando à questão que aqui colocámos em primeiro plano, (e agora sem títulos
pomposos) a do fenómeno da participação na jam session é, forçoso constatar, à luz do que
entretanto foi percorrido, que se no princípio a nossa ideia era estudar «qualquer coisa» a
respeito da jam session, o processo de investigação realizado nos levou a tomar a própria
performance enquanto objecto de estudo, ou seja, levou-nos a ter em linha de conta as
próprias maneiras pelas quais se produz e reproduz a definição social daquilo que aquela
performance é, num determinado momento no espaço e no tempo.
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
O resultado, sempre inacabado face à constante mutabilidade que caracteriza a realidade dos
fenómenos sociais, remeteu-nos para a importância dos contextos e dos grupos sociais que,
organizados em campo – segundo a terminologia de Pierre Bourdieu – contribuem, através
das suas práticas e representações, para a construção das várias concepções que, no momento
em que procedíamos ao processo de recolha de informação, coexistiam, ainda que mais ou
menos antagonicamente, no espaço social jazzístico português.
A prática da jam session constituiu-se assim, à luz do aparato teórico deste modo resumido,
como uma prática simbólica, um marcador social eficiente, que permite distinguir, em termos
do valor de que seriam detentores, os agentes sociais que em Portugal competem pela
produção desse género musical que habitualmente designamos por música jazz.
Por outro lado, do lado das representações, a jam session assume então formas distintas,
consoante a posição que os agentes ocupam no campo jazzístico nacional em função da
quantidade de capital simbólico possuído – e que, no fundo, se encontra ligada a condições
sociais e culturais de partida muito precisas –, e que não são mais que formas de combate, ou
seja, tomadas de posição que visam legitimar e agregar valor às práticas em que esses
agentes se encontram envolvidos, deslegitimizando e desvalorizando, no mesmo processo,
outras práticas e outros grupos sociais.
O campo jazzístico constitui assim um espaço estruturado onde músicos e clubes de jazz se
encontram situados em função do nível de reconhecimento que possuem e a jam session
constitui – sem dúvida – um mecanismo de reconhecimento e consagração nos músicos que
participam nesse tipo de performances, mas também, e talvez sobretudo, um mecanismo de
distinção e de reprodução social das diferenças já estabelecidas e socialmente condicionadas
que separam esses músicos no espaço social jazzístico nacional.
Ora, não há dúvida que aqui reside um dos méritos deste trabalho. O de contribuir para
clarificar alguns dos pressupostos – muitas vezes acriticamente aceites e reproduzidos – que
são veiculados a respeito da jam session e da música e dos músicos que pontuam esse tipo de
performances, colocando-os em relação com os contextos e os grupos sociais em que são
produzidos. Além disso, temos consciência que a presente investigação constitui um dos
poucos trabalhos cientificamente orientados realizados sobre o reduzido panorama jazzístico
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Carlos Cardeira e Gustavo Pereira Onde é que eu vou tocar esta noite?
nacional, universo cujo estudo, quando levado a cabo, tem ficado nas mãos de críticos,
músicos ou historiadores que, pelo menos até à data, não têm, de facto, produzido trabalhos
de grande profundidade analítica sobre o jazz e suas práticas em Portugal.
Por outro lado, é também evidente que o trabalho que aqui se apresenta, apesar de
relativamente bem estruturado, é limitado por uma série de fraquezas, nomeadamente ao
nível do processo de recolha empírica e do número de agentes musicais – músicos –
envolvidos nesse processo, o que de alguma forma limitou também a análise e discussão dos
resultados assim obtidos.
Além disso, e como alguma da informação compilada já deixava antever, muita coisa pode
ter mudado, desde então, no panorama jazzístico nacional. Hoje em dia há mais escolas de
jazz, mais músicos, mais professores de música e, em particular – e como um dos agentes
institucionais que envolvemos no processo investigativo já referia – parece que se têm vindo
a quebrar algumas das barreiras mais significativas da jam session, nomeadamente a que diz
respeito à participação de músicos mais novos e, sobretudo, menos reputados, nas
performances dos clubes, ou melhor, do clube mais consagrado e consagrativo do país – o
Hot Clube de Portugal.
Ficam portanto abertas as portas a novos desenvolvimentos ao nível da análise do fenómeno
da jam session, esperando nós, agora relativamente ao percurso já percorrido, e em jeito
conclusivo, que este seja demonstrativo das capacidades dos seus autores em mobilizar de
forma pertinente as teorias, metodologias e técnicas mais relevantes à resolução do problema
sociológico então colocado.
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