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Novo Órganon [ Instauratio Magna ] Francis Bacon

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Novo Órganon[ Instauratio Magna ]

Francis Bacon

O livro é a porta que se abre para a realização do homem.

Jair Lot Vieira

Novo Órganon[ Instauratio Magna ]

Francis Bacon

Novo Órganon[Instauratio Magna]

Francis BaconTradução e Notas: Daniel M. Miranda

1ª Edição 2014

© desta tradução: Edipro Edições Profissionais Ltda. – CNPJ nº 47.640.982/0001-40

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmi-tida de qualquer forma ou por quaisquer meios, eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informações, sem permissão por escrito do Editor.

Editores: Jair Lot Vieira e Maíra Lot Vieira MicalesCoordenação editorial: Fernanda Godoy TarcinalliRevisão: Tatiana Yumi TanakaDiagramação e Arte: Heloise Gomes Basso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bacon, Francis, 1561-1626.Novo órganon [Instauratio Magna] / Francis Bacon ; tradução e notas de Daniel M. Miranda. –

São Paulo : EDIPRO, 2014.

Título original: The new organon.BibliografiaISBN 978-85-7283-784-2

1. Bacon, Francis, 1561-1626 2. Ciência – Metodologia 3. Filosofia inglesa I. Miranda, Daniel. II. Título.

13-11335 CDD-192

Índices para catálogo sistemático:1. Filosofia inglesa : 192

DEDICATÓRIA

Ao nosso sereníssimoe poderosíssimo

Príncipe e Lorde,James,

pela graça de Deus,Rei da Grã-Bretanha, França e Irlanda,

Defensor da Fé etc.*

Sereníssimo e poderosíssimo Rei,

Vossa Majestade talvez me acuse de furto por apropriar-me do tempo de vossos negócios para poder concluir esta obra. Eu não tenho nenhuma respos-ta. Não se pode restaurar o tempo, a não ser que, talvez, o tempo em que me ausentei de seus assuntos possam contribuir para a memória de vosso nome e para a honra de vossa época, caso a presente obra venha a ter qualquer valor. Ela certamente é algo muito recente, um gênero totalmente novo, muito embo-ra tenha sido extraído de um modelo antiquíssimo, ou seja, do próprio mundo, da natureza das coisas e da mente. Seguramente, eu mesmo (confesso com franqueza) familiarizei-me a considerar esta obra mais como fi lha do tempo que da inteligência. O único assombro é que o início da noção e tal descon-fi ança poderosa em relação às antigas opiniões preponderantes poderiam ter ocorrido na mente de qualquer pessoa. Todo o restante segue sem restrições. Mas, sem dúvida, o acaso (como o chamamos) e certo elemento acidental de-sempenham seus papéis tanto no que os homens pensam quanto naquilo que fazem ou dizem. Quando digo acaso, quero dizer que, se houver algo de bom

* James I – rei da Inglaterra entre 1603 e 1625.

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nessas coisas que eu trago, será imputado à imensa misericórdia e bondade de Deus e à ventura de vossa época: da mesma forma que venho vos servindo em vida com a mais sincera devoção, espero, depois de minha morte, poder talvez assegurar que vossa era seja um fulgor para a posteridade pela luz dessa nova tocha, brilhando nos dias escuros da filosofia. E a Regeneração e a Renovação das ciências devem-se, com justiça, à era do mais sábio e mais erudito de todos os reis. Eu gostaria de acrescentar uma petição, não indigna de vossa Majesta-de e estreitamente relacionada ao nosso presente assunto. Em muitos aspectos, vós sois igual a Salomão:** na gravidade do julgamento, na paz de vosso reino, na grandeza de vosso coração e, finalmente, na notável variedade de livros já escritos por vós. Emularíeis o mesmo rei de outra maneira, caso tomásseis me-didas para garantir que uma história natural e experimental fosse construída e terminada: a verdadeira e rigorosa história (sem questões filológicas), que é o caminho para a fundação da filosofia e a qual, em seu devido lugar, será descri-ta. Assim, por fim, depois de tantas eras do mundo, a filosofia e as ciências não precisam mais pairar no ar e podem apoiar-se sobre as bases sólidas de todo tipo de experimentos devidamente considerados. Eu forneço o instrumento;*** mas o material deve ser procurado nas próprias coisas. Que o Grande e Bom Deus preserve vossa Majestade por muito tempo.

Do servo mais fiel e dedicadode Vossa sereníssima Majestade

FRANCIS VERULAM,CHANCELER

** Rei dos antigos hebreus (c. 937-932 a.C.)

*** “Instrumento”: tradução de Organum (do grego “Organon”). Novum Organum significa “O Novo Instrumento”.

SUMÁRIO

Apresentação: Francis Bacon e o Novum Organum

A Grande Renovação

Proêmio

Prefácio

Plano da Obra

Novo Órganon

Prefácio

Livro I

Livro II

Preparação para uma História Natural e Experimental

Catálogo de Histórias Particulares por Títulos

Índice remissivo

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3941

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APRESENTAÇÃO

FRANCIS BACON E O NOVUM ORGANUM

FRANCIS BACON E A INSTAURATIO MAGNA

Francis Bacon é um dos pensadores sobre o qual mais se escreveu na história da filosofia da ciência e da metodologia. Dificilmente um texto de teoria da ciência ou, inclusive, de filosofia geral, ou de qualquer área que discorra sobre o sécu-lo XVII e sua marca na cultura e na sociedade, não traz algum comentário sobre a obra ou sobre o impacto do pensamento desse autor. Como dado curioso rela-cionado à influência de Bacon, podemos mencionar que, na área de Inteligência Artificial, foram desenvolvidas uma série de programas computacionais de des-coberta denominados “BACON” em homenagem ao sir Francis.

Os “temas baconianos” são muitos e dos mais diversos: vão de assuntos clássicos de história e direito, até mitologia e religião; de tópicos de filosofia e política, até curiosas acusações de machismo – como as formuladas por Susan Hardig e Evelyn Keller relativas às metáforas baconianas tais como “forçar a Natureza”; de problemáticas contemporâneas levantadas por sua “Teoria dos ídolos” nas áreas de psicologia, educação e sociologia, até surpreendentes de-bates sobre a identidade de Bacon, tais como os apresentados, entre outros, por Edwin Durning-Lawrence e Edwin Reed a partir de alguns paralelismos entre as obras de Bacon e de Shakespeare. Inclusive Bento XVI, na Encícli-ca “Spe Salvi”, amplia o leque dos estudos baconianos afirmando que Bacon faz “uma correlação entre experiência e método”, “entre ciência e práxis”, que leva à substituição da “fé em Jesus Cristo” pela “fé no progresso”. Como bem observou Lalande em seu Les théories de l’induction et de l’expérimentation, “[ Bacon] é o pensador cujas doutrinas têm sido mais diversamente interpreta-das” (1929, p. 51).

As questões que mais têm atraído os pesquisadores da obra de Bacon têm a ver com a história da filosofia e, principalmente, com a filosofia, a história e a

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lógica da ciência: como se deu a passagem da magia para a ciência no pensamento de Bacon? Qual foi seu papel na Revolução científica? Qual foi sua influên- cia na conformação da comunidade de pesquisadores? Qual sua importância para a articulação da ideia de progresso? Quão profunda foi sua ruptura com a lógica aristotélica? Qual foi seu impacto sobre o programa empirista, principal-mente sobre o pensamento de Locke e de Hume? Mas os questionamentos se propagam para outras áreas da filosofia e da cultura: é possível afirmar, como fazem alguns críticos contemporâneos, que Bacon “extingue a analogia”, “me-caniza a mente” e “elimina as paixões”? Ou, como faz outro grupo de críticos, que ele é o responsável pela onipresença “da técnica opressora”? Há evidência suficiente para sustentar que, com sua filosofia de “caráter a-histórico”, Bacon “dissolve os mitos” e “apaga o passado”? Possui algum apoio textual a opinião de que a filosofia de Bacon em particular, e a dos filósofos modernos em geral, leva a um “esquecimento da tradição”? Bacon, de fato, “promove o relativis-mo moral” e “fomenta a irreligiosidade”? Suas ideias são o germe do suposto niilismo e desencantamento do mundo contemporâneo? Bacon realmente tinha o objetivo de “torturar” a Natureza? Sua crítica aos “ídolos” da mente foi especi-ficamente formulada para eliminar os preconceitos e as ideologias, as crenças falsas, ou também para eliminar as hipóteses e as teorias? A defesa de Bacon de uma ciência autônoma implica a existência de um pesquisador sem ética e uma pesquisa baseada na dominação e na destruição da Natureza? A lista até aqui pode parecer extensa, entretanto as questões levantadas nos estudos sobre Bacon poderiam continuar várias páginas mais...

Entre os livros mais conhecidos de Bacon estão a Nova Atlântida, A sabe-doria dos antigos, O progresso do conhecimento e, é claro, o Novum Organum. Além dessas obras, Bacon escreveu uma considerável quantidade de opúsculos, ensaios e textos breves. Um livro que ajuda a selecionar e pôr ordem nos escritos baconianos – pelo menos, naqueles de interesse do ponto de vista epistemoló-gico e metodológico – é a Instauratio Magna.

A Instauratio Magna – Grande Instauração ou Grande Renovação – foi publicada por Bacon em 1620. Em sentido estrito, a Instauratio é um livro muito breve, constituído por um “Proêmio”, uma “Epístola dedicatória”, um “Prefá-cio” e um “Plano do Trabalho” (todas estas partes estão traduzidas no livro que o leitor tem em suas mãos). O Novum Organum – texto que hoje conhecemos como um livro independente – foi publicado junto ao breve Esboço de uma história natural e experimental, conformando a Segunda Parte da Instauratio. No “Plano do Trabalho” da Instauratio, Bacon remete a outros textos – alguns publicados, outros nunca escritos – que, segundo entende, conformam e devem ser considerados como parte da Instauratio.

Uma rápida apresentação dos usos que Bacon faz do termo em latim “ins-tauratio” pode ajudar a compreender melhor o sentido que tinha para ele a

Apresentação: Francis Bacon e o Novum Organum | 11

Instauratio Magna. Em seus textos em inglês (ou em suas próprias traduções para o inglês) Bacon substitui esse termo, segundo o contexto, por “restabelecer” (restore), “reconstruir” (reconstruct), “estabelecer” (establish), “renovação” (re-novation), “fundamento” ( foundation), “instauração” (instauration). Inclusive, traduz a expressão “instauratione scientiarum” por “instauration of the scien-ces”. Essa família de termos possibilita a interpretação-padrão do objetivo que Bacon atribuía àquela que considerava sua obra principal: estabelecer funda-mentos totalmente novos para as ciências e as artes, prover a humanidade de um método que lhe possibilite renovar o conhecimento e restaurar seu domínio sobre a Natureza.

O NOVUM ORGANUM DE BACON E O MÉTODO CIENTÍFICO

O Novum Organum é o livro pelo qual Bacon é identificado. E é, de fato, o texto que apresenta de maneira mais orgânica a concepção baconiana sobre a teoria e o método da ciência, além de ser o mais pesquisado pelos especialistas em estudos baconianos.

O Novum Organum, como indicamos, foi publicado em 1620 como parte da Instauratio Magna. Está conformado por um Prefácio – que pode ser lido como uma biografia intelectual – e dois Livros. Estes Livros foram redigidos por Bacon na forma de aforismos – “isto é, na forma de breves sentenças se-paradas, não vinculadas por nenhum recurso expositivo”.1 Bacon considerava o aforismo o modo ideal de exposição, e o opunha ao modo “sistemático” dos sistemas filosóficos que ele questionava. Entre as vantagens dos aforismos, ele destacou que estes, diferentemente do modo “sistemático” de exposição, são adequados “para guiar a ação” e, “por apresentar um conhecimento inacabado, convidam a continuar pesquisando” (1605, p. 405).

Bacon intitulou Organum seu livro em clara alusão ao Organon de Aristóte-les, e Novum para destacar que o apresenta em oposição aos velhos tratados ló- gicos daquele. Diante da leitura do texto, torna-se evidente que todos os seus tópicos giram em torno das regras e orientações para a “descoberta e a justi-ficação das artes e das ciências”, de um método para a construção de conhe-cimento. Por esse motivo podemos concluir que seu título, Novum Organum, Novo Órganon – ou seja, “novo instrumento do conhecimento” –, é mais do que adequado.

O núcleo, o eixo central do Novum Organum é o “instrumento” para des-cobrir e justificar conhecimento – isto é, o que hoje chamamos de “método

1 Cf. (I: 86). Daqui em diante, as referências da forma (N: n) entre parênteses remetem, respectiva-mente, ao Livro (N) e Aforismo (n) do Novum Organum.

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científico”.2 Bacon deu a seu Organum outras denominações, tais como “Filum Labyrinthi”, “Formula”, “Clavis”, “Ars inveniendi”, “Lumen”, “Indicia de inter-pretatione naturae” e “Inductio legitima”. Estes nomes são muito expressivos. Conceber o método como o fio do labirinto que é a Natureza evoca a “selva das selvas” cognitiva, da qual ele entendia que era preciso escapar. Denominar o método como “fórmula” ou “chave” impõe uma imagem mecânica que se opõe à qualificação de “arte” que o próprio Bacon lhe dá – fomentando, desse modo, a existência de leituras contrapostas. Nomeá-lo “luz” faz referência às “trevas da tradição”, das quais sua época procurava sair. Chamá-lo “tocha” ou “lâmpa-da” é um recurso retórico de Bacon para conferir ao método uma improvável característica de elemento salvador e para ele próprio apresentar-se como um novo Prometeu. Bacon também indica, no subtítulo do Novum Organum, que outro nome para o organum seria “indicações para a interpretação da Nature-za” – querendo significar, com o termo “interpretação”, explicações baseadas na realidade.3 Com isso, Bacon nos dá orientações sobre qual é o objetivo de seu método e qual é o horizonte epistêmico de seu projeto. Finalmente, com a expressão “legítima indução”, Bacon pretende realçar que seu procedimento é ampliativo – em oposição ao conservativo silogismo aristotélico –, e que é su-perior à errônea e “pueril” “indução vulgar” utilizada até o momento. O aspecto a destacar aqui é que a multiplicidade de nomes e a variedade das imagens que esses nomes sugerem possibilitam, inevitavelmente, interpretações muito diver-gentes do método baconiano.

2 Existe um marcado consenso sobre o fato de que o século XVII foi “o século do método” (cf., p. ex., BELAVAL, 1973, p. 4). Mas é importante observar que Bacon, em seus textos em latim, e nas versões em latim de seus textos em inglês, emprega pouco o termo “methodus” (no Novum Orga-num, somente cinco vezes). E, nessas poucas ocasiões, sempre o utiliza para indicar uma forma de transmissão do conhecimento ligada à tradição, interessada na conservação do (para ele, “escasso” e “parco”) conhecimento já alcançado mais do que na descoberta e avaliação de conhecimento novo (cf., p. ex., DEAR, 1998, p. 156). Para essa finalidade, ele reservou os termos “via” e “ratio”. De fato, a estrutura que prioriza nas passagens em que expõe as características gerativas e inferenciais do organum é: “Verum via nostra et ratio (nosso caminho e método)...” (cf., p. ex., I: 117). Entretanto, ainda que Bacon em seus textos não empregue o termo “methodus” para designar as regras ou “auxilia-res” de descoberta e avaliação, indubitavelmente o conceito sobre o qual ele está dissertando remete claramente àquilo que ao longo da história se concebeu como “método científico”. Por esse motivo, há um consenso entre os analistas em traduzir os termos baconianos “via”, “ratio” e “organum” pela palavra “método”.

3 O fato de Bacon caracterizar o conceito de “interpretação” em oposição ao de “antecipação” – ou seja, ao de uma opinião enviesada pela especulação ou pelas preferências pessoais – dá fundamento a esta leitura. Em seu Novum Organum Bacon emprega a expressão “antecipação da mente” (anti-cipatio mentis) (1620, p. 42) e a expressão “antecipação da natureza” (anticipatio naturae) (I: 26), mas tudo indica que com o mesmo significado: a ideia subjacente é que a mente faz seu juízo sobre a Natureza ao se antecipar aos ditados dessa. Essa mudança de termos por parte de Bacon não é infrequente em seus textos, resultando em outro fator que potencializa a proliferação de opiniões desencontradas por parte de inúmeros comentaristas.

Apresentação: Francis Bacon e o Novum Organum | 13

O LEITOR DE BACON E AS INTERPRETAÇÕES DE SUA OBRA

O leitor que se aproximar pela primeira vez de um texto de Bacon notará rapi-damente que se trata de um autor diante do qual não se pode ficar indiferente, seja pelo seu estilo – metafórico, sutil, mordaz –, seja pelas suas ideias – à sua época novas e originais –, seja pelas consequências de suas ideias revolucioná-rias ou – para alguns autores – simplesmente subversivas.

Ao mesmo tempo, o leitor que se aproximar dos textos dos intérpretes de Bacon constatará imediatamente um aspecto já indicado nas seções predecen-tes: a maioria das ideias de Bacon é objeto de variadas interpretações rivais. Cada época, e cada escola dentro de cada época, constrói, poderíamos dizer, seu próprio Bacon. É claro que a obra de todo autor se abre, inevitavelmente, a múl-tiplas leituras. Mas, se considerarmos as inúmeras observações a esse respeito formuladas nos estudos baconianos das três últimas décadas, podemos julgar que esse fato estatístico indica que tal problema é maior para os especialistas em Bacon do que para os estudiosos de outros pensadores.

Cada uma das muitas originais ideias de Bacon é objeto de várias interpre-tações. Vamos ilustrar isso com um exemplo, destacando que se trata apenas de mais um entre os muitos possíveis. No Prefácio de seu Novum Organum Bacon afirma que “A mente [...] deve ser guiada passo a passo, como se todo o processo fosse feito como por uma máquina (ac res veluti per machinas conficiatur; the business done as if by machinery)” (1620, p. 40; grifo nosso). Entretanto, no Livro II do Novum Organum, onde os auxiliares do método devem ser aplica-dos a casos concretos para buscar afirmações e causas distanciadas do sensí-vel, as aspirações epistêmicas do Prefácio parecem se tornar demasiado ideais. Ao enfrentar a complexa realidade da “selva” da experiência, Bacon concede “liberdade” ou “permissão ao intelecto” (permissio intelectus) para construir hipóteses (cf., p. ex., II: 20). Assim temos, em um mesmo texto, duas afirmações aparentemente contraditórias: “o processo de construção de conhecimento é di-rigido por regras mecânicas” versus “o processo de construção de conhecimento é realizado sem regras – só com o voo livre da mente humana”...

Estamos, evidentemente, diante de um conflito interpretativo. É verdade que o Prefácio de uma obra costuma ser entendido por seus autores como um lugar retórico em que se pode prometer mais do que depois será possível oferecer; é verdade também que o Prefácio do Novum Organum é o lugar das considerações metodológicas e das prescrições ideais, e o Livro II o lugar da prá-tica e das decisões reais, mas a oposição entre as duas afirmações parece tão radical que merece ser qualificada de “contraditória”. E esse tipo de contradi-ção se repete com as interpretações vinculadas aos conceitos de infalibilidade, verdade, certeza, ceticismo etc. presentes no Novum Organum.

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Para resolver ou compreender tais contradições, é possível postular que Bacon mudou de ideia à medida que redigia seu livro, e também que escreveu e publicou primeiro o Prefácio e o Livro I do Novum Organum – explicitando nessas páginas suas regras mecânicas –, além de ter redigido e publicado o Livro II do mesmo – onde concede liberdade provisória ao gênio criativo – só depois de tentar aplicar o método e se defrontar com alguns problemas práticos. Acaso não seria o Novum Organum um livro incompleto, que se encerra de modo abrupto e sem desenvolver a maioria das regras que promete oferecer? Mas esse atalho nos está vedado: Rawley, seu secretário pessoal, relatou que Bacon revisou muito detidamente o rascunho de sua grande obra. “Eu vi pelo menos doze versões da Instauratio [obra que inclui o Novum Organum], revisada ano após ano, e sempre modificada em sua totalidade”, disse Rawley (1657, p. 11). Em síntese: sua incompletude é premeditada. Um atalho ainda mais óbvio – e que como tal não nos daria compreensão alguma – seria, simplesmente, admitir como tais as contradições existentes nos textos baconianos, tornando-os obra de um autor contraditório e irracional. Mas essa suposição é desmentida por uma inúmera quantidade de passagens bem consistentes...

Há, entretanto, outro caminho possível, transitado por muitos especialis-tas em Bacon nas últimas décadas: “não deter o caminho da pesquisa”, isto é, aprofundar a análise dos textos de Bacon e o exame do contexto epistêmico da época em que ele viveu. Não esqueçamos que Bacon, na redação dos “Aforis-mos sobre a interpretação da Natureza” que constituem o Novum Organum, escolheu o estilo aforístico precisamente porque, “por apresentar um conheci-mento inacabado, [os aforismos] convidam a continuar pesquisando” (1605, p. 405) [Grifos nossos]. De fato, com o exemplo que nos ocupa, nem sequer é preciso continuar pesquisando demasiado. Nas páginas seguintes da citação do Prefácio que apresenta a metáfora do método como uma máquina, outras passagens ajudam a esclarecer a questão: uma “máquina”, para Bacon, é um “auxiliar” (1620, p. 41; I: 2); isto é, a frase da citação pretende indicar que a mente é ajudada por orientações metodológicas que são externas a ela, mas não se manifesta sobre a natureza (mecânica) dessas orientações. Pode-se dizer algo análogo da citação que faz referência à “permissão ao intelecto”. Aqui, uma nova e detida leitura encontra em algumas passagens próximas a ela indícios de que Bacon, na realidade, não pretende dar licença a um arbitrário “fazer hipóteses”, mas fornecer orientações sobre como usar a inteligência para encontrar uma solução adequada ao problema pesquisado. Bacon dizia, talvez pensando em situações como essas, que “se a primeira leitura [de seus textos] levantar uma objeção, a segunda trará uma resposta” (1605, p. 490-1). Faz-se, novamente, um convite a prosseguir com a investigação. A pesquisa permanente e sem fim, a “arte da invenção que se desenvolve e progride com as próprias descobertas”, é a força motora do projeto baconiano (cf. I: 30).

Apresentação: Francis Bacon e o Novum Organum | 15

Existem, em resumo, várias leituras possíveis dos diversos assuntos sobre os quais o Novum Organum discorre. Mas nas páginas dessa obra também há indicações úteis para eliminar as interpretações implausíveis e indícios favorá-veis a fim de nos orientar na direção das interpretações mais plausíveis. Podemos então dizer, seguindo o estilo baconiano, que destacamos a existência dessas múltiplas interpretações com o propósito de motivar e alentar a leitura deste livro, e não outra coisa; que sabemos que a pesquisa pode sempre progredir, devendo, portanto, estarmos dispostos a ir mais além do que foram outros e, ao mesmo tempo, animados a que outros, por sua vez, possam ir mais além do que nós; que deixamos nas mãos, na mente e na vontade do leitor a tarefa de construir, com a maior veracidade e a maior fidelidade possíveis, a melhor das interpretações, para assim fazer surgir sentido das aparentes contradições de uma obra-chave da cultura moderna.4

SERGIO HUGO MENNA*

REFERÊNCIAS

BACON, Francis. Novum Organum. In: SPEDDING, J.; ELLIS, R.; HEATH, D. (Eds.). The Works of Francis Bacon. v. IV. London: [s.n.], [1857-1874]. p. 39-248.

_______. On the Dignity and Advancement of Learning. In: SPEDDING, J.; ELLIS, R.; HEATH, D. (Eds.). The Works of Francis Bacon. v. III. London: [s.n.], [1857-1874]. p. 253-492.

_______. The Great Instauration. In: SPEDDING, J.; ELLIS, R.; HEATH, D. (Eds.). The Works of Francis Bacon. v. IV. London: [s.n.], [1857-1874]. p. 7-33.

BELAVAL, Yvon. Introducción: la época clásica. In: _______ (Ed.). Historia de la filosofía: racionalismo, empirismo, ilustración. v. VI. México: Siglo XXI, 1984. p. 1-6.

DEAR, Peter. Method and the Study of Nature. In: GARBER, Daniel; AYERS, Michael (Eds.). The Cambridge History of Seventeenth-Century Philosophy. v. I. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. p. 147-77.

** Doutor em Filosofia pela Universidad Nacional de Córdoba, com tese recomendada para publica-ção. Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, com tese premiada pela Capes (Prêmio Capes 2012 de Tese em Filosofia). Estudos de pós-doutorado na Espanha e na Argentina. Professor adjunto IV da Universidade Federal de Sergipe. Professor do quadro permanente do mestrado em Filosofia da UFS. Membro-fundador do GE2C – Grupo de Estudos Sobre o Conhecimento e a Ciência). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa de Sergipe (FAPITEC/SE). Desenvolve trabalhos em Filosofia da Ciência, História e Metodologia da Ciência, e Filosofia Moderna e Contemporânea. E-mail: [email protected].

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LALANDE, André. Las teorías de la inducción y de la experimentación. Lo-sada: Bs.As., 1944.

RAWLEY, William. The Life of The Right Honourable Francis Bacon, Baron of Verulam, Viscount St. Alban. In: SPEDDING, J.; ELLIS, R.; HEATH, D. (Eds.). The Works of Francis Bacon. v. I. London: [s.n.], [1857-1874]. p. 1-18.

SPEDDING, J.; ELLIS, R.; HEATH, D. (Eds.). The Works of Francis Bacon. v. 7. London: [s.n.], [1857-1874]; Stuttgart: Gunther Holzboog, 1963.