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    A ORIGINALIDADE E AS PRINCIPAIS CARACTERSTICASDA CONSTITUIO PORTUGUESA

    Jorge MIRANDA*

    RESUMEN: La Constitucin Portuguesa de1976 surgi den tro de un con tex to re volu -cionario complejo y turbulento, pero a tra -vs de trein ta aos se ha con verti do en el

    piso estabilizador de la democracia delpas. Mediante su arraigo en la concienciacvica y jurdica de los ciudadanos, su cesi -vas revisiones y a tra vs de la ju rispruden -cia constitucional se ha desenvuelto y

    afirmado como una verdadera constitucinnormativa. Se sealan tambin sus caracte-rsticas principales y nicas, como el extre-mo cuidado que se puso en los de rechosfundamentales y la dicotoma de derechos,libertades y garantas, derechos econmi-cos, sociales y culturales, adems de la de-mocracia participativa, la consagracin delderecho electoral, el derecho de los parti-dos, el sistema de gobierno semipresiden -cial, la descentralizacin regional y local yel modelo de control constitucional concre -to y difuso que ejer ce el Tribunal Constitu -cional.

    Palabras clave: Derechos fundamentales,democracia descentralizada, constitu-cin_normativa.

    ABSTRACT: The 1976 Portuguese Constitu-tion was created in the middle of a re volu-tio nary and complex si tuation, but during30 years it has be come the base of coun-tries democracy. Established in the civicand juridical conscience of citizens, besi-des successive revisions and constitutionalprecedents it could be affirmed we are infront of a normative constitution. This pa -

    per focuses among others characteristics ofthe consti tution, on the extre me care forfundamental rights and the dichotomy bet-ween rights, liberties, and gua rantees andeconomical, socials and cultural rights, inaddition to a participation in democracy,the recognition of electoral law, politicalparties law, the semi pre sidential go vern-ment system, the local and regional de cen-tralization and differents systems ofconstitutional control.

    Descriptors: Fundamental rights, non-centralized democracy, normative consti-tution.

    Nm. 16, enero-junio 2007

    * Professor das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da UniversidadeCatlica Portuguesa.

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    I. A REVOLUO DE 1974 E A CONSTITUIO

    O processo que havia de conduzir Constituio de 19761 partiu da ideiade direito invocada pela revoluo de 25 de Abril de 1974.

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    1 Sobre a Constituio de 1976, vase, em geral, Vergottini, Giuseppe de, Le originidella Seconda Republica Portoghese, Miln, 1977;Estudo sobre a Constituio, Lisboa,1977, 1978 e 1979, 3 vols.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da RepblicaPortuguesa anotada, 3a. ed., Coimbra, 1978, 1985 e 1993, e Fundamentos daConstituio, Coimbra, 1991; Miranda, Jorge, A Constitltio de 1976 Formao,estrutura, princpios fundamentais, Lisboa, 1978, eManual de direito constitucional, 7a.ed., Coimbra, 2003, I, pp. 323 e ss.; Thomashausen, Andre, Verfassung undVerfassungswirklichkeit in neuen Portugal, Berln, 1981; Baptista Machado, Joo,Participao e descentralizao. Democratizao e neutralidade na Constituio de1976, Coimbra, 1982; Nos dez anos da Constituio, Lisboa, 1987; Pires, FranciscoLucas, Teoria da Constituio de 1976 - A transio dualista, Coimbra, 1988;La justiceconstitutionnelle au Por tugal, Pars, 1989; tudes de droit constitutionnel franco-por-tugais, Pars, 1990;Perspectivas ConstitucionaisNos 20anos da Constituio de 1976,3 vols., Coimbra, 1996, 1997 e 1998; 20Anos da Constituio de 1976, Coimbra, 2000;Nos 25 Anos da Constituio da Repblica Portuguesa de 1976, Lisboa, 2001; Blanco de

    Morais, Carlos, Justia Constitucional, Coimbra, 2002, I; Gomes Canotilho, Direitoconstitucional e teoria da Constituio, 7a. ed., Coimbra, 2004, pp. 195 e ss.; ReisNovais, Jorge, Os princpios constitucionais estruturantes da Repblica Portuguesa,Coimbra, 2004; Miranda, Jorge e Medeiros, Rui, Constituio Portuguesa Anotada,Coimbra, 2005, I; Amaral, Maria Lcia, A forma da repblica, Coimbra, 2004; BacelarGouveia, Jorge, Manual de direito constitucional, Coimbra, 2005, I.

    E tambm Galvo Teles, Miguel, A Constituio de 1976: uma constituiotransitria, Expresso, de 15 de abril de 1976; Duverger, Maurice, apresentao a umatraduo francesa da Constituio, Pars, 1977; Caetano, Marcello, A Constituio

    portuguesa de 1976, R.C.G.E., Porto Alegre, 7 (17), pp. 45 e ss., e Constituies

    portuguesas, Lisboa, 1978, pp. 123 e ss.; Moreira, Adriano, O Novssimo Prncipe,Lisboa, 1977, maxime, pp. 92 e ss., 113 e ss. e 153 e ss.; Hrster, Hein rich Ewald, OImposto Complementar e o Estado de direito, Revista de Direito e Economia, 1977, pp.37 e ss.; Thomashausen, An dre, Constituio e realidade constitucional, Revista daOrdem dos Advogados, 1977, pp. 471 e ss.; Raposo, Mrio, Nota breve sobre aConstituio portuguesa, Revista da Ordem dos Advogados,pp. 775 e ss.; Lucena,Manuel de, OEstado da RevoluoA Constituio de 1976, Lisboa, 1978; Soares Mar -tinez, Comentrios Constituio Portuguesa de 1976, Lisboa, 1978; Salgado de Matos,Lus, Le Prsident de la Rpublique Portugaise dans le cadre du rgime politique,

    policopiado, Pars, 1979; Veiga Domingos, Emdio da, Portugal Poltico Anlise dasInstituies, Lisboa, 1980; Martins, Alberto, O Estado de direito e a ordem polticaportuguesa, Fronteira, no. 9, ja neiro-maro de 1980, pp. 10 e ss.; Jalles, Maria Isabel,Implicaes jurdico-constitucionais da adeso de Portugal s Comumidades Europeias

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    Com efeito, das proclamaes difundidas no prprio dia 25 de Abril

    de 1974 e do programa do movimento revolucionrio, o Movimento dasForas Armadas logo constou o anncio pblico da convocao, no pra-zo de doze meses, de uma Assembleia Na cio nal Consti tuinte, a ele ger

    por sufrgio universal, directo e secreto, e se estabeleceu que uma vezeleitos pela Na o a Assembleia Legis lati va e o novo presi den te da Re -

    p bli ca a aco das For as Armadas se ria restringi da sua miss o es pe-cfica de defesa da soberania nacional.

    De harmonia com a ortodoxia constitucional democrtica, o Movi-mento das Foras Armadas propunha-se devolver o poder ao povo num

    prazo relativamente curto; e nisto se distinguia de quase todas as revolu-es militares do nosso tempo. Deveria ser o povo, atravs da eleio dosdeputados Assembleia Constituinte, a determinar o sistema poltico eeconmico-social em que desejaria viver porque a vontade do povo o fundamento da autoridade dos poderes pblicos e deve exprimir-seatravs de eleies honestas a realizar periodicamente por sufrgio uni-ver sal e igual, com voto se creto... (ar tigo 21, no. 3, da De cla raoUniversal dos Direitos do Homem, tambm invocada logo na noite a

    seguir revoluo).Mas o processo que se desenrolaria at Constituio e que durariadois anos viria a ser marcado por uma turbulncia sem precedentes na

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    Alguns aspectos, Lisboa, 1980, pp. 67 e ss. e 243 e ss.; A Constituio de 1976 luzduma reflexo crist, Lisboa, 1980; Mota de Campos, Joo, A ordem constitucionalportuguesa e o direito comunitrio, Braga, 1981, maxime pp. 67 e ss.; Ma chete, Rui,Os princpios estruturais da Constituio e a prxima revi so constitucional, Revistade direito e Estudos Sociais, 1987, pp. 337 e ss.; Bastos, Celso, Constituio

    portuguesa, Revista de Informao Legislativa, no. 97, janeiro de 1988, pp. 63 e ss.;o no. 60-61, de abril-setembro de 1988, da Revista de Estudios Politicos (trad.

    portuguesa O sistema poltico e constitucional portugus, Lisboa, 1989); Cardoso daCosta, A Lei Fundamental de Bonn e o direito Constitucional Portugus (separata doBoletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, 1990); Gaspar, Carlos, Oprocesso constitucional e a estabilidade do regime, Anlise Social, 1990, pp. 9 e ss.;Garcia, Maria da Glria,Da justia administrativa em Portugal, Lisboa, 1994, pp. 593 ess. e 606 e ss.; Maltez, Joo Adelino, Princpios de Cincia Poltica, Lisboa, 1998, pp.622 e ss.; Rebelo de Sousa, Marcelo y Melo Alexandrino, Jos de, Constituio daRepblica Portuguesa Comentada, Lisboa, 2000; D Souza, Agnelo, The Indian and Por-tuguese Constitutions A Comparative Study, Goa, 2000; Leite Pinto, Ricardo,Maquiavel na Constituinte: Virt e Fortuna na Constituio da Repblica Portuguesa,Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, 2001, II, pp. 559 e ss.

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    histria portuguesa, derivada de condicionalismos de vria ordem (des-

    compresso poltica e social imediatamente aps a queda dum regime au-toritrio de 48 anos, descolonizao dos territrios africanos feita em 15meses aps ter sido retardada 15 anos, luta pelo poder logo desencadea-da) e traduzida, a partir de certa altura, num conflito de legitimidades ede projectos de revoluo.2

    Dessas circunstncias resultariam uma Constituio elaborada muitosobre o acontecimento, simultaneamente sofrendo o seu influxo e reagin-do e agindo sobre o ambiente poltico e social; o confronto ideolgicoem que a Assembleia Constituinte se moveu; e a ndole de compromisso

    de compromisso histrico do texto votado, indispensvel em facedo pluralismo partidrio surgido e projectado numa Assembleia Consti-tuinte, em que nenhum partido tinha maioria absoluta.

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    2 Sobre os principais momentos e elementos desse processo, vase a nossa obraFontes e trabalhos preparatrios da Constituio; ou, doutro prisma, Orlando Neves,

    Textos histricos da Revoluo, Lisboa, 1975 e 1976, 3 vols.H numerosas anlises e tentativas de interpretao, quer portuguesas, querestrangeiras. Cfr., de diversos quadrantes, a ttulo exemplificativo, Sweezy, Paul, Alutade classes em Portu gal, trad., Lisboa, 1975; Lucena, Manuel de, Portugal correcto eaumentado,Lisboa, 1975; Quadros, Antnio,Portugal en tre ontem e amanh Da ciso revoluo Dos absolutismos democracia, Lisboa, 1976; Loureno, Eduardo, Osmilitares e o poder, Lisboa, 1975, e Ofascismo nunca existiu, Lisboa, 1976; LopesSabino, Amadeu,Portugal demasiado pequeno,Coimbra, 1976; Saraiva, Jos Antnioe Silva, Vicente Jorge, O 25 de Abril visto da Histria,Lisboa, 1976; Mar tins Pereira,Joo, O socialismo, a transio e o caso portugus,Lisboa, 1976; Pires, Francisco Lucas,

    Abordo da Revoluo,Lisboa, 1976; Moreira, Adriano O Novssimo Prncipe, cit., nota1; Pasquino, Gianfranco, Le Portugal: de la dictature corporatiste la dmocratiesocialiste, Il Politico, 1977, pp. 696 e ss.; Medeiros Ferreira, Jos, Ensaio histricosobre a revoluo de 25 de abrilO perodo pr-constitucional, Lisboa, 1983;Portugalem transe (1974-1985), 8o. Vol. da Histria dePortugal dirigida por Jos Mattoso,Lisboa, 1994; Bruneau, Thomas C., Politics and NationhoodPost-revolutinary,Portu-gal, Nova Iorque, 1984; Morin, Ed gar, A natureza da URSS, Lisboa, 1983, pp. 102 y 103e 111; Sousa Santos, Boaventura de, O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988),Porto, 1992, pp. 17 e ss.; Georgel, Jacques, La Rpublique Portugaise: 1974-1995, Pars,1998; Maxwell, Ken neth, The Making of Portuguese Democracy, trad. portuguesa AConstruo de democracia em Por tugal, Lisboa, 1999; O pas em revoluo, Lisboa,2001; Gunther, Richard, A democracia portuguesa em perspectiva compa rada,AnliseSocial, no. 162, primavera de 2002, pp. 91 e ss.

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    II. CARCTER GERAL E SISTEMA DA CONSTITUIO

    2.1. Portugal havia conhecido at 1974-1976 dois grandes perodos nasua histria constitucional: de 1820 a 1926, o perodo liberal, com asConstituies de 1822, 1826 e 1838 (em monarquia), e de 1911 (aps a

    proclamao da repblica); e o perodo autoritrio, de 1926 a 1974, coma Constituio de 1933.

    2.2. A Constituio de 1976 a mais vasta e a mais complexa quetodas as Constituies anteriores por receber os efeitos do denso eheterogneo processo poltico do tempo da sua formao, por aglutinar

    contributos de partidos e foras sociais em luta, por beber em diversasinternacionais ideolgicas e por reflectir a experincia pol ti co-cons ti tu -cional do pas.

    Ela tem como grandes fundamentos a democracia representativa e a li-berdade poltica. Admitia, no entanto, no texto inicial, a subsistncia at primeira reviso constitucional de um rgo de soberania composto pormilitares, o Conselho da Revoluo. Por outro lado, consigna os resultadosde certas de cises eco n micas que (de direito ou de facto) se efectua ram

    nos dois anos de revoluo e aponta para um objectivo de transformaosocial a atingir, a que deu o nome de transi o para o so cialismo e, de-pois de 1989, democracia econmica, social e cultural.

    uma Constituio-garantia e, simultaneamente, uma Consti tuioprospectiva. Tendo em conta o regime autoritrio derrubado em 1974 e oque foram ou poderiam ter sido os desvios de 1975,3 uma Constituiomuito preocupada com os direitos fundamentais dos cidados e dostrabalhadores e com a diviso do poder. Mas, surgida em ambiente derepulsa do passado prximo e em que tudo parecia possvel, procura

    vivificar e enriquecer o contedo da democracia, multiplicando asmanifestaes de igualdade efectiva, participao, interveno, sociali-zao, numa viso ampla e no sem alguns ingredientes de utopia.

    2.3. A Constituio apresenta-se com um texto muito longo comprembulo e 312 artigos (estes, repartidos por Princpios fundamentais;parte I direitos e deveres fundamentais; parte II Organizao

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    3 Sobretudo, certa manipulao ideolgica, a fragmentao poltica das Foras Ar-madas e a tentativa de conquista do poder pelo Partido Comunista; e, noutro plano, aimposio aos partidos de uma Plataforma de Acordo Constitucional para prefigurar

    pontos bsicos da organizao do poder poltico.

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    econmica; parte III Organizao do poder poltico; parte IV

    Garantia e reviso da Constituio; e Disposies finais e transi t -rias).A sistematizao de um texto constitucional (como a de qualquer texto

    legal) no se reduz a mera questo tcnica. , sobretudo, questo deordem poltica e axiolgica. E, em face da sistematizao adoptada em1976, torna-se incontestvel a opo pelo pensamento constitucionalista,lib eral e democrtico, em contraste com as concepes marxistas: osdireitos fundamentais vm antes da organizao econmica.

    O elemento subjectivo afirma-se na parte I: a pessoa perante a socie -

    dade e o Estado, o primado dos direitos da pessoa na ordem constitucio-nal. O elemento ob jectivo consta das partes II, III e IV. O Estado comocomunidade aparece nas partes I e II, o Estado como poder nas partes IIIe IV. As normas das trs primeiras par tes so nor mas substan ti vas, sejamde fundo, de competncia ou de forma. As da parte IV so normas adjec-tivas ou de garantia.

    Todas as quatro partes tm mais desenvolvido tratamento do queaquele que noutras Constituies se confere s respectivas matrias: 69

    artigos para os direitos fundamentais, 31 (28, presentemente) para a or-ganizao econmica, 166 (hoje, 169) para a organizao do poder pol-tico, 14 (hoje, 13) para a garantia e a reviso da Constituio. Alm dis-so, recebem valor constitucional a Declarao Universal dos direitos doHomem (por via do artigo 16, no. 2) e algumas leis constitucionais poste-riores a 25 de abril de 1974 por fora dos artigos 306, 308 e 309.

    Mas foi porque uns temiam pelas liberdades, outros pelos direitos dostrabalhadores, outros pelas nacionalizaes e pela reforma agrria, outros

    pelo Parlamento e pela separao dos poderes, outros ainda pela descen -tralizao regional e local, que a Constituio acabou por ficar como fi-cou.4

    III. O CONTEDO E AS FONTES DA CONSTITUIO

    3.1. O carcter compromissrio da Constituio est patente em cadauma das suas quatro partes.

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    4 Houve quem tivesse falado em Constituio multitudinria: Pires, Lucas, Abordo da Revoluo, Lisboa, 1976, p. 71.

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    Assim, o tratamento dos direitos fundamentais assenta na afirmao

    simultnea dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos econmicos,sociais e culturais, numa dicotomia com proe minncia dos primeiros(como prprio do Estado social de direito).

    A organizao econmica desenvolve-se: 1) atravs da coexis tncia(concorrencial ou conflitual, como se queira) de trs sectores de proprie-dade dos meios de produo pblico, cooperativo e privado, sendo ain-da o primeiro subdividido em pblico estadual, colectivo ou autogestio-nrio e comunitrio; 2) atravs da coordenao entre mercado (definidoem termos de equi li bra da concorrncia entre as empresas) e pla no (im-

    perativo s para o sector pblico estadual); 3) atra vs da tenso en tre oreconhecimento da iniciativa privada e o desenvolvimento da proprieda-de social.

    A organizao poltica, por seu turno, consiste em quatro grandesrelaes: 1) entre unidade do Estado, por uma banda, e autonomia pol-tico-administrativa dos Aores e da Madeira e poder local, por outra

    banda; 2) entre democracia representativa e democracia participativa;3) entre presidente da Repblica e Assembleia da Repblica, um e ou -

    tro baseados no sufrgio universal e directo; 4) en tre eles e o Governo eum rgo ainda radicado na legitimidade revolucionria recebida naConstituio, o Conselho da Revoluo.

    Finalmente, a fiscalizao da constitucionalidade abrange todos os ti-pos pos sveis de aces e de omisses, abstrac ta e concreta, preven tivae sucessiva, concentrada e difusa e cabe aos tribunais, ao Conselho daRevoluo e a um rgo especfico de comunicao entre aqueles e este,a Comisso Constitucional.

    A lei fundamental de 1976 no s isto, mas primacialmente isto. Eas su cessivas revises que teve at agora no afectaram este quadro: noo afectou a de 1982, pois a extino do Conselho da Revoluo ento ha-vida era imposta pelo princpio democrtico como princpio constitucio-nal fundamental; tambm no as de 1989 e 1997, visto que a inflexo so-frida pela parte II no eliminou os elementos mistos que vm desde aorigem; e tambm no ainda as de 1992, 2004 e 2005, relativas inte-grao europeia, e a de 2001 respeitante ao Tribunal Penal Internacional.

    3.2. Para alm da influncia de diver sas corren tes ideol gicas, a com-

    parao permite descobrir afinidades com Constituies diversas de pa-ses estrangeiros. As regras gerais sobre direitos, liberdades e garantias

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    em parte reproduzem as que constam da Constituio de Bona. So as

    Constituies italiana e alem, ambas do ps-guerra e do ps-fascismo,que mais se aproximam da nossa na enumerao dos direitos, liberdades egarantias. Contudo, nos direitos econmicos, sociais e culturais torna-se

    palpvel alguma parecena com Constituies de influncia marxista. Anacionalizao de empresas nos sectores bsicos da economia, sem serindita em Constituies prprias do Estado social de direito, est revesti-da de uma acentuao anticapitalista a desconhecida. A instituciona-1izao dos partidos tem paralelo nas Constituies italiana, alem efrancesa, entre outras. A concepo do presidente da Repblica e das re-

    laes entre governo e parlamento vem dos pases de parlamentarismoracionalizado e de semipresidencialismo. A subsistncia do Conselho daRevoluo aparenta-se ao papel das Foras Armadas na Turquia nos pri-meiros anos de vigncia da Constituio de 1961. A Comisso Constitu-cional tem algo de similar aos tribunais constitucionais e ao ConselhoConstitucional francs. O provedor de justia equivale ao ombudsmannrdico. As autonomias regionais esto na esteira da Constituio italia-na. As organizaes populares de base correspondemgrosso modo s or-

    gani zaes so ciais de Leste e s ins titui es so ciais de base da Re vo lu -o peruana de 1968. A fiscalizao da inconstitucionalidade por omissoter certa afinidade com o artigo 377 da Constituio jugoslava.

    No pouco abundantes, muito naturalmente, se bem que menos fortesno plano das opes de fundo, so os traos das Constituies portugue-sas anteriores que perduram. A Constituio de 1976 restaura a legalida-de democrtica, reafirma a democracia poltica (liberal, pluralista), re-abre o Parlamento, mas no repe a ordem liberal individualista; o seu

    intervencionismo social e econmico, mesmo se de rumo oposto, s podecotejar-se com o da Constituio de 1933; e no faltam os institutos queou vindos de longe ou vindos de 1933 so recebidos ou consagrados.5

    3.3. Mas a Constituio de 1976 ostenta algumas marcas de originali-dade (ou de relativa originalidade):

    No s no dualismo de liberdades e garantias e de direitos econ-micos, sociais e culturais mas tambm no enla ce entre eles, opera-do, designadamente, pelo artigo 17.

    JORGE MIRANDA260

    5 Cfr. Lucena, Manuel de, O Estado da Revoluo, cit., nota 1, pp. 88 e ss.; GomesCanotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituio, cit., nota 1, p. 14.

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    o comunitria viriam mostrar que s poderia subsistir se entendida

    como economia mista ou pluralista, algo diferente, mas no oposta aomodelo de Estado social europeu.

    IV. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    As notas bsicas do tratamento dos direitos fundamentais na Consti-tuio so as seguintes:

    a) A prioridade dentro do sistema constitucional e o desenvolvimento

    da regulamentao, com princpios gerais comuns s grandes cate-gorias de direitos previstos.

    b) A extenso do elenco, sem se exclurem outros direitos provenien-tes de conveno internacional ou de lei.

    c) A perspectiva universalista, exibida no princpio da equiparao deportugueses e estrangeiros, nas garantias da extradio e da expuls-o, na previso do estatuto do refugiado poltico e, aps 1982, norespeito dos direitos do homem como princpio geral das relaes

    internacionais.d) A preocupao tanto de enumerar os direitos quanto de definir oseu conte do e fixar as suas garan tias e as suas con dies de efecti-vao.

    e) A contraposio entre direitos, liberdades e garantias e direitos eco-nmicos, sociais e culturais, com colocao em ttulos separados.

    f) A previso entre os direitos, liberdades e garantias no s dos direi-tos cls sicos mas tambm de di rei tos novos, como as ga ran tias re la-tivas informtica, o direito de antena e a objeco de conscincia.

    g) A co locao da pro prie da de, no j a par das liber dades, mas simdentre os direitos econmicos, sociais e culturais.

    h) A insero da iniciativa econmica privada, at 1982, na parte II,relativa organizao econmica e, a partir de 1982, no ttulo dedireitos econmicos, sociais e culturais; e o apoio dado iniciativacooperativa.

    i) O aparecimento como direitos fundamentais de direitos dos trabal-hadores e das suas organizaes.7

    JORGE MIRANDA262

    7 Sobre os direitos fundamentais na Constituio de 1976, vase, a ttulointrodutrio, Castro Mendes, Joo de,Direitos, liberdades e garantias Alguns aspectos

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    V. O SISTEMA DE GOVERNO

    5.1. O sistema de governo de 1976 foi moldado com a preocupaomaior de evitar os vcios inversos do parlamentarismo de assembleia daConstituio de 1911 e da concentrao de poder da Constituio de1933, e tendo como pano de fundo a situao institucional ps-revolucio-nria.

    O ponto mais delicado dizia respeito ao lugar do presidente da Rep-bli ca, s suas compet ncias e ao seu modo de elei o. Ele no devia serum presidente meramente representativo, nem um Chefe de Estado equi-

    valente ao do regime autoritrio, nem to pouco (o que contrariaria a tra-dio constitucional portuguesa) um presidente chefe do Poder Executi-vo. Mas tanto poderia ser um presidente arbitral, embora com capacidadede interveno efectiva, no mbito de um parlamentarismo racionalizado,como um presidente mais forte, regulador do sistema poltico, de tipo se-mipresidencial.

    Optou-se pela segunda alternativa, desde logo, pela necessidade decompensar ou equilibrar o Conselho da Revoluo, que iria subsistir du-

    rante alguns anos. E ainda por mais duas razes: pela dificuldade de ins-taurao de um governo parlamentar aps 50 anos sem Parlamento de-mocrtico e pela prefigurao de um modelo misto pela lei constitucional

    provisria de 1974 (com presidente da Repblica, governo e um Consel-ho de Esta do, que fazia as ve zes de as sembleia).

    Acrescia o modo de elei o, que no po dia deixar de ser a elei o porsufrgio directo e universal. A sua reivindicao fazia parte desde1958-1959 do patrimnio das reivindicaes democrticas em Portugal.S ela daria ao presidente da Repblica suficiente legitimidade para pre-sidir ao Conselho da Revoluo e, se fosse caso disso, para se lhe impor.Ela serviria de contraponto de unidade em face da eventual disperso

    parlamentar resultante do princpio da representao proporcional de-corrente este, por seu turno, de uma exigncia de garantia do pluralismo

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    gerais,Estudos sobre a Constituio,Lisboa, I, 1977, pp. 93 e ss.; Gomes Canotilho eVital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa anotada, cit., nota 1, pp. 121 e ss.;Miranda, Jorge, Manual de direito Constitucional, 3a. ed., Coimbra, 2000, IV; Reis

    Novais, Jorge, As restries aos direitos fundamentais no expressamente autorizadaspela Constituio, Coimbra, 2003; Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais naConstituio portuguesa de 1976, 3a. ed., Coimbra, 2004.

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    e de integrao numa sociedade to dividida como se apresentava a por-

    tuguesa.Sobre tudo isto formara-se um consenso difuso na Assembleia Consti-tuinte, nos principais partidos e na opinio pblica nos ltimos meses de1975 e nos primeiros de 1976. E estas orientaes viriam a ser consagra-das no texto constitucional.

    5.2. Os aspectos fundamentais a considerar eram estes:

    a) Existncia de quatro rgos polticos de soberania presidente daRepblica, Conselho da Revoluo, Assembleia da Repblica e Go-

    verno.b) Atribuio ao presidente da Repblica, tambm presidente do Con-

    selho da Revoluo, sobretudo de poderes relativos constituio eao funcionamento de outros rgos do Estado e das regies autno-mas, do poder de promulgao e veto e do poder de declarao doestado de stio ou do estado de emergncia.

    c) Condicionamento dos principais actos do presidente da Repblicapelo Conselho da Revoluo.

    d) Sujeio a referenda ministerial apenas de certos actos do presiden-te da Repblica.e) Atribuio Assembleia da Repblica, parlamento unicameral, so-

    bretudo do primado da funo legislativa e de funes de fiscaliza-o do Governo e da Administrao pblica.

    f) Considerao do Governo como o rgo de conduo da polticageral do pas, sendo o Conselho de Ministros presidido pelo presi-dente da Repblica apenas a solicitao do Primeiro-Ministro.

    g) Eleio directa do presidente da Repblica, com candidatos propos-tos por grupos de cidados e em data nunca coincidente com a daeleio dos Deputados.

    h) Exigncia de maioria ab so lu ta para a eleio do pre siden te da Re -pblica.

    i) Eleio dos Deputados Assembleia da Repblica segundo o siste-ma proporcional e o mtodo de Hondt e com candidaturas reserva-das aos partidos.

    j) Durao diferenciada do mandato presidencial cinco anos e da

    legislatura quatro anos e inelegibilidade do presidente para tercei-ro mandato consecutivo e durante o quinqunio subsequente a se-gundo mandato consecutivo.

    JORGE MIRANDA264

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    l) Incompatibilidade das funes de deputado e de membro do go-

    verno.m) Sujeio da Assembleia da Repblica a dissoluo pelo presidenteda Repblica, verificados certos requisitos, designadamente parecerfavorvel do Conselho da Revoluo.

    n) For mao do governo por acto do presidente da Repblica tendoem conta os resultados eleitorais, seguido da apreciao do seu

    programa pela Assembleia da Repblica.o) Responsabilidade poltica do Governo perante ambos os rgos,

    no sendo, porm, necessria a confiana positivamente afirmada

    (pelo menos, da Assembleia) para que ele sub sistis se, e bas tan do ano desconfiana explcita, excepto quando fosse o prprio Gover-no a pedir um voto de confiana.

    p) Proibio de dissoluo da Assembleia da Repblica por efeito derejeio do programa do Governo, salvo no caso de trs rejeiesconsecutivas (artigo 198, no. 2) e, em contrapartida, dissoluoobrigatria quando a Assembleia houvesse recusado a confiana ouvotado a censura ao governo, determinando por qualquer destes

    motivos a terceira substituio do governo.

    5.3. Vale a pena fazer uma comparao com a V rep bli ca fran cesa.Entre as semelhanas contavam-se a concepo do presidente como

    rgo dinamizador das instituies e a do governo como rgo de con-duo da poltica geral do pas, o poder de dissoluo do Parlamento, atipicidade dos actos sujeitos a referenda e a eleio presidencial directa.

    As diferenas apresentavam-se, porm, mais significativas:

    a) Em Portugal, o governo respondia tanto perante o presidente comoperante o parlamento e o primeiro-ministro podia ser demitido pelopresidente; no em Frana, juridicamente (mas politicamente sim,salvo em perodo de coabitao).

    b) Em Frana, o presidente preside ao Conselho de Ministros e no-meia os funcionrios civis e militares; em Portugal s podia e pode

    presidir ao Conselho de Ministros a pedido do primeiro-ministro (oque assegura uma mais completa separao entre os dois rgos).

    c) Em Frana, o presidente tem poder de deciso de referendo e podetomar medidas extraordinrias em estado de necessidade; no emPortugal.

    A ORIGINALIDADE E AS CARACTERSTICAS DA CONSTITUIO 265

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    d) Em Portugal, existia um rgo de condicionamento do presidente

    da Rep bli ca; no em Frana.e) Em Fran a, o man dato presiden cial era (em 1976) de sete anos eadmite-se a reeleio indefinida; em Portugal era e de cinco anose com limites reeleio.

    A diversidade no impedia a qualificao do sistema portugus comosemipresidencial, tendo em conta o conhecido carcter heterogneo des-tes sistemas.8

    JORGE MIRANDA266

    8 Para maiores desenvolvimentos, vase A Constituio de 1976, cit., nota 1, pp.420 e ss. No mesmo sentido, Pires, Lucas, Presidencialismo, semi-presidencialismo oure gime de partidos, Democracia e Liberdade, no. 1, 1976, pp. 57 e ss.; Vergottini,Giuseppe de, Le origini della Seconda Republica Portoghese, cit., nota 1, p. 236;Duverger, Maurice, chec au Roi,Pars, 1978, pp. 17 e 26; Rebelo de Sousa, Marcelo,O sistema de governo portugus, Estudos sobre a Constituio, III, pp. 579 e ss.;

    Marques Guedes, Armando, A Segurana, a Defesa Nacional, as Foras Ar madas e osCidados numa Perspectiva Constitucional,Lisboa, 1981 (separata de Nao e Defesa),pp. 48 y 49; Canas, Vitalino, A forma de governo semipresidencial e suascaractersticas. Alguns aspectos, Revista Jurdica,no. 1, octubre-diciembre de 1982, pp.89 e ss., e Sistema semipresidencial, Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica,1o. suplemento, 1998, pp. 490 e ss.; Gonalves Pereira, Andr, O semipresidencialismoem Portugal, Lisboa, 1984, pp. 37 e ss.; Sartori, Giovanni, Elogio delsemipresidenzialismo, Revista Italiana de Scienza Politica, 1995,p. 12.

    Diferentemente, propendendo para a qualificaco de parlamentarismo racionalizado,Gomes Canotilho e Vi tal Moreira, op. cit., nota 1, 1a. ed., pp. 254 e ss.; Queiroz,

    Cristina, Osistema poltico-constitucional portugus, Lisboa, 1992, pp. 63 e ss. Efalando em sistema misto semipresidencial e directorial militar, Isaltino Morais, JosMrio Ferreira de Almeida e Ricardo Leite Pinto, O sistema de governosemipresidencial, Lisboa, 1984, pp. 84 e ss. Cfr. ainda Salgado de Matos, Le Prsident de la Rpublique Portugaise dans le cadredu rgime politique, cit., nota 1, pp. 10 e ss.; Santana Lopes, Pedro e Duro Barroso,Sistema de governo e sistema partidrio, Lisboa, 1980, pp. 21 e ss.; Rous seau,Dominique, La primaut prsidentielle dans le nou veau rgime portugais, Revue dudroit public, 1980, pp. 1325 e ss.; Vitorino, Antnio, O sistema de governo naConstituio portuguesa de 1976 e na Constituio espanhola de 1978, Revista jurdica,no. 3, janeiro-fevereiro de 1984, pp. 33 e ss.; Pires, Lucas, Teoria da Constituio de1976 - A transio dualista, Coimbra, 1988;La justice constitutionnelle au Portugal, cit.,nota 1, pp. 226 e ss.; o no. 138, de 1996, da Anlise Social.

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    VI. AS REGIES AUTNOMAS E O PODER LOCAL

    6.1. Um dos aspectos mais inovadores e interessantes da Constituiode 1976 encontra-se na considerao da democracia como democraciadescentralizada, particularmente no mbito da descentralizao territo-rial.9

    Com efei to, ela proclama, entre os prin c pios funda mentais, o da au -tonomia das autarquias locais e o da descentralizao democrtica da ad-ministrao pblica e erige os Aores e a Madeira em regies autno -mas dotadas de estatutos poltico-administrativos prprios; inclui a

    autonomia das autarquias locais e a autonomia poltico-administrativados Aores e da Madeira entre os limites materiais da reviso constitu -cional;salienta como um dos fins da autonomia destas regies a partici-

    pao democrtica dos cidados; e declara que a organizao democr-ti ca do Esta do compreende a existncia de autarquias locais).

    O Estado Portugus continua unitrio, sem embargo de ser tambmdescentralizado ou seja, capaz de distribuir funes e poderes de au-toridade por comunidades, outras entidades e centros de interesses exis-

    tentes no seu seio. Descentralizado na trplice dimenso do regime pol-tico-administrativo dos Aores e da Madeira, do poder local ou sistemade municpios com outras autarquias de grau superior e inferior e aindade todas aquelas medidas que possam caber na descentralizao demo-crtica da administrao pblica.

    6.2. No se adoptou uma regionalizao poltica integral do pas. Umregime poltico-administrativo s se entendeu justificado para os Ao-res e para a Madeira, em face dos condicionalismos geogrficos, econ-micos e sociais e das histricas aspiraes autonomistas das popula-es insulares. No Continente previu-se apenas a criao de regies ad-minis tra ti vas previu-se a criao, mas no se cria ram desde logo, aocontrrio do que sucedeu com as regies autnomas.

    Mas todos os elementos caractersticos do Estado regional esto pre-sentes na Constituio. As regies autnomas, como entidades polticasque so, gozam de extensos poderes e direitos, uns definidores do mbitoessencial da autonomia e traduzidos na prtica de actos prprios para a

    A ORIGINALIDADE E AS CARACTERSTICAS DA CONSTITUIO 267

    9 Vase A Constituio de 1976, cit., nota 1, pp. 435 e ss.; Baptista Machado, J.,Participao e descentralizao. Democratizao e neutralidade na Constituio de1976, cit., nota 1.

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    prossecuo de interesse regional, outros correspondentes participa-

    o em actos do Estado; tm garantias constitucionais adequadas para osdefender; alm disso, e sobretudo, dispem de rgos de governo prprio uma assembleia regional eleita por sufrgio universal e um governo pe-rante ela responsvel, em moldes de sistema parlamentar.

    E esta a primeira vez na histria portuguesa que o Estado, o podercentral confere faculdades substancialmente polticas a rgos locais comtitulares representativos das respectivas populaes.10

    VII. A FISCALIZAO DA CONSTITUCIONALIDADE

    7.1. Poucas Constituies manifestam to vincadamente como a de 2de abril de 1976 a preocupao de garantia e procuram to minuciosa ecompletamente dar-lhe resposta. Devido, porm, subsistncia doConselho da Revoluo at primeira reviso constitucional, no pdeo legislador constituinte estabelecer unicamente a regra da fiscalizao

    jurisdicional, conforme postulariam os puros princpios constitucionais.Assim como, em virtude da participao do Conselho na funo de ga-

    rantia e da tradio de fiscalizao difusa, no pde encarar decidida -mente a hiptese da criao de um tribunal constitucional.

    A Constituio manteve o controlo difuso vindo da Constituio de1911 e criaria o primeiro rgo especfico de controlo, a Comisso Cons-titucional, embora ao Conselho da Revoluo coubesse, entre outrascompetncias, a de declarao de inconstitucionalidade de normas jurdi -cas com fora obrigatria geral. Em 1982, na primeira reviso constitu-cional, a Comisso daria lugar a um Tribunal Constitucional e este fica-

    ria com todos os poderes at ento assumidos pelo Conselho daRevoluo, entretanto extinto.7.2. O sistema portugus caracteriza-se por trs notas principais: 1) a

    pluralidade de modalidades de controlo de inconstitucionalidade poraco e por omisso, concreto e abstracto, preventivo e sucessivo; 2) e aconjugao do controlo concreto e do controlo concentrado; 3) e a ex-tenso, em certos termos, do regime de fiscalizao de constitucionalida -de fiscalizao de legalidade (por violao de leis de valor reforado) e

    JORGE MIRANDA268

    10 Sobre as autonomias regionais, vase Miranda, Jorge, Manual de direitoconstitucional, III, 3a. ed., Coimbra, 2004, e autores citados.

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    fiscalizao da conformidade de normas legislativas com normas de

    convenes internacionais.Aos tribunais em geral compete apreciar a conformidade com a Cons-ti tui o das nor mas apli cveis aos casos que tenham de decidir; mas, ve-rificados certos pressupostos, possvel ou necessrio recorrer para oTribunal Constitucional. Quer dizer: ao contrrio do que sucede na quasetotalidade dos pases europeus, os tribunais portugueses, todos eles, nos conhecem como decidem das questes de inconstitucionalidade; mas,se lhes cabe assim a primeira palavra na fiscalizao concreta, a ltimacabe ao Tribunal Constitucional, por via de recurso (e no por via de in-

    cidente).Quanto fiscalizao abstracta preventiva e sucessiva de incons-

    titucionalidade por aco e por omisso ela compete, exclusivamen-te, ao Tribunal Constitucional, sob iniciativa do presidente da Rep-

    blica, de outros rgos do Estado e das regies autnomas e de certonmero de Deputados.11

    Na fiscalizao concreta, o Tribunal Constitucional julga s para ocaso concreto, embora, se julgar inconstitucional trs vezes a mesma nor-

    ma, possa ser desencadeado um processo de fiscalizao abstracta. Nesta,se a deciso for positiva, a declarao de inconstitucionalidade tem foraobrigatria geral e em princpio ex tunc, ressalvando-se, porm, sempreos casos julgados.

    VIII. AS SUCESSIVAS REVISES CONSTITUCIONAIS

    8.1. A Assembleia da Rep bli ca, o rg o competen te para alterar a

    Constituio, por maioria de dois teros dos deputados em efectividadede funes, observados certos requisitos temporais e procedimentais e norespeito dos limites materiais correspondentes aos princpios estruturan-tes fundamentais. No possvel a Constituio exclui-o expressamen-te referendo de reviso.

    De 1976 at hoje sucederam-se sete revises constitucionais, das quaistrs bastante vastas (as de 1982, 1989 e 1997) e quatro, relativamentecurtas, mas de grande significado, ligadas a tratados internacionais (as de

    1992, 2001, 2004 e 2005).

    A ORIGINALIDADE E AS CARACTERSTICAS DA CONSTITUIO 269

    11 Cfr. Manual de direito constitucional, VI, 2a. ed., Coimbra, 2005, e autorescitados.

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    8.2. Globalmente, assinalaram a primeira reviso:

    a) A reduo das marcas ou expresses ideolgico-conjunturais vin-das de 1975 e, em particu lar, a supress o das refer ncias ao so cia-lismo em todos os artigos, salvo no 2 (a ponto de se poder questio-nar se o socialismo tinha ou conservava, doravante, qualquersentido autnomo).

    b) O aperfeioamento dos direitos fundamentais e a clarificao daConstituio econmica em linha de economia pluralista.12

    c) A extino do Conselho da Revoluo e o termo das funes polti-

    cas das Foras Armadas.d) Em conex o com essa ex tin o, o re pensar das re laes en tre o pre-sidente da Repblica, a Assembleia da Repblica e o Governo, comreflexos no sistema poltico, e a criao de um Tribunal Constitu-cional.13

    e) A criao de um rgo consultivo do presidente da Repblica, oConselho de Estado, e do Conselho Superior de Defesa Nacional, euma completa reformulao do Conselho Superior da Magistratura.

    8.3. A segunda reviso constitucional centrou-se na organizao eco-nmica, se bem que tenha abrangido outras matrias.

    Os seus pontos fundamentais foram:

    a) Supresso quase completa das menes ideolgico-proclamatriasque ainda restavam aps 1982.

    b) Aprofundamento de alguns direitos fundamentais, mormente os dosadministrados.

    c) Supresso da regra da irreversibilidade das nacionalizaes poste-riores a 25 de abril de 1974, e, em geral, aligeiramento da parte daorganizao econmica.

    d) Reformulao parcial do sistema de actos legislativos, com criaode uma categoria de leis reforadas pelo procedimento, as leis org-nicas.

    JORGE MIRANDA270

    12 Cfr. Sousa Franco, Antnio, A reviso da Constituio econmica, Revista daOrdem dos Advogados, 1982, pp. 601 e ss.

    13 Cfr. Vergottini, Giuseppe de, Principio de legalit e revisione della Costituzioneportoghese nel 1982, Linfluenza del valori costituzionali sui sistemi giuridicicontemporanei, Miln, 1985.

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    e) Introduo do referendo poltico a nvel nacional, embora em mol-

    des muito prudentes.f) Modificao de trs das alneas do artigo 290 (agira 288) sobre li-mites materiais da reviso constitucional.14

    8.4. A assinatura em 7 de fevereiro de 1992, em Maastricht, de um tra-tado institutivo de uma Unio Europeia conduziria a uma terceira re-viso da Constituio de 1976, tendo em conta a desconformidade de al-gumas das suas clusulas com normas constitucionais. Viria a ser umareviso paralela efectuada noutros pases comunitrios (com relevo

    para a Frana e para a Alemanha) e, diferentemente das anteriores, safectando muito poucos artigos (conquanto no pouco importantes). Semela no seria possvel ratificar o tratado.15

    No artigo 7o. da Constituio (sobre relaes internacionais), adi-tou-se um no. 6, dizendo: Portugal pode, em condies de reciprocida-de, com respeito pelo princpio da subsidiariedade e tendo em vista a rea-lizao do princpio da coeso econmica e social, convencionar oexerccio em comum dos poderes necessrios construo da unio eu-

    ropela.Consagrou-se a possibilidade de atribuio, em condies de recipro-cidade, de capacidade eleitoral a cidados de pases membros da UnioEuropeia residentes em Portugal na eleio de Deputados por Portugal aoParlamento Europeu.

    Alterou-se o preceito sobre o Banco de Portugal para permitir aadopo da eventual moeda nica europeia.

    Passou a prever-se a competncia do Parlamento para acompanhar e

    apreciar a participao de Portugal no processo de unio europeia, qual corresponde a obrigao do Governo de lhe prestar, em tempo til,as informaes necessrias para esse efeito.

    A ORIGINALIDADE E AS CARACTERSTICAS DA CONSTITUIO 271

    14 Sobre os resultados da reviso, cfr. Magalhes, Jos, Dicionrio da RevisoConstitucional,Lisboa, 1989; o no. 12, Outono de 1989, de Risco;Miranda, Jorge, AConstituio e as suas revises, Brotria,diciembre de 1989, pp. 490 e ss.; o no. 13-14,de 1990, da Revista Jurdica, pp. 249 e ss.; Leito Marques, Maria Manuel, AConstituio econmica depois da segunda reviso constitucional, Revista de DireitoPblico, 1991, pp. 9 e ss.

    15 Cfr. o nosso artigo O tratado de Maastricht e a Constituio portuguesa, Brotria,1993, pp. 363 e ss., e o no. 12, de 1992, daRevue Franaise de Droit Constitutionnel.

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    Por outro lado, passou a distinguir-se entre reviso constitucional or-

    dinria e reviso constitucional extraordinria aquela efectuada ao fimde cinco ou mais anos aps a ltima reviso ordinria e esta podendo rea-lizar-se a todo o tempo por assuno de poderes de reviso por quatroquintos dos Deputados em efectividade de funes.16

    8.5. Uma quarta e novamente longa reviso constitucional reali-zar-se-ia em 1996 e 1997, ex pli cada em nome da ne ces sidade de revi tali-zao do sistema poltico.

    Em sntese, traduzir-se-ia em:

    a) Desenvolvimento da matria dos direitos fundamentais e das co-rrespondentes incumbncias do Estado.

    b) Relativa acentuao do papel da iniciativa privada dentro da orga-nizao econmica.

    c) Desconstitucionalizao de vrios aspectos do sistema poltico (ci-dados eleitores do presidente da Repblica, composio e sistemaeleitoral da Assembleia da Repblica, rgos executivos locais, re-gies administrativas).

    d) Reforo de mecanismos de participao dos cidados (participaono planeamento urbanstico, referendos nacionais, regionais e lo-cais, iniciativa popular, possibilidade de crculos uninominais, can-didaturas independentes s eleies locais).

    e) Desenvolvimento dos poderes das regies autnomas (no plano le-gislativo, tributrio, administrativo e europeu), bem como das au-tarquias locais.

    f) Aumento dos poderes formais da Assembleia da Repblica e au-

    mento do nmero de matrias que exigem maioria qualificada deaprovao.g) Reforo do Tribunal Constitucional (com novas competncias rela-

    tivas aos partidos e s assembleias polticas e maiores garantias deindependncia dos juzes).17

    JORGE MIRANDA272

    16 Cfr. Vagli, Giovanni, Sulla terza revisione costituzionale della 2a. RepubblicaPortoghese, Pisa, 1994.

    17 Cfr. o no. 19-20, de abril-dezembro de 1997, de Legislao,Arajo, Antnio de eNogueira de Brito, Miguel,Argumentar e negociar em debates constitucionais: a revisoconstitucional de 1997,Perspectivas Constitucionais,1998, III, pp. 117 e ss.; o nmerode 1998 doBoletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra,p. 405 e ss.;

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    8.6. A semelhana do que acontecera em 1992, tambm em 2001 foi

    desencadeado um processo de reviso constitucional por causa de umtratado: o tratado constitutivo do Tribunal Penal Internacional assinadoem Roma em 1998.

    A Constituio foi revista para permitir a ratificao desse tratado,visto que, algumas das suas clusulas eram ou poderiam ser considera-das, discrepantes de diversas normas constitucionais. E, por isso, seadoptou uma frmula genrica (no novo artigo 7o., no. 7) semelhante adoptada j noutros pases. Portugal pode, tendo em vista a realizaode uma justia internacional que promova o respeito pelos direitos da

    pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdio do Tribunal Penal Inter-nacional, nas condies de complementaridade e demais termos estabele -cidos no Estatuto de Roma.

    Mas a reviso de 2001 tocou tambm (agora diferentemente do quesucedera em 1992) em matrias respeitantes Unio Europeia, lngua

    portuguesa, e s garantias de inviolabilidade do domiclio e ao direito greve de agen tes de foras de segu ran a.

    8.7. Na perspectiva da chamada Constituio europeia e ainda antes

    no s da assinatura do respectivo tratado mas tambm da confernciaintergovernamental em que ele seria aprovado (!), o Parlamento efectua -ria uma sexta reviso constitucional.

    O ponto-chave foi o aditamento de um no. 4 ao artigo 8o. do seguinteteor: As disposies dos tratados que regem a Unio Europeia e as nor-mas emanadas das suas instituies, no exerccio das respectivas com-

    petncias, so aplicveis na ordem interna, nos termos definidos pelo di-reito da Unio, com respeito pelos princpios fundamentais do Estado de

    direito democrtico.Alm disso, houve alteraes a respeito da entidade reguladora da co-municao social, um grande alargamento dos poderes legislativos regio-nais, e a formalizao da regra da limitao do nmero de mandatos ad-mitido aos titulares de cargos polticos executivos.

    8.8. Por ltimo, ainda por causa da integrao europeia, em 2005 efec-tuar-se-ia uma stima reviso constitucional.

    A ORIGINALIDADE E AS CARACTERSTICAS DA CONSTITUIO 273

    Magalhes, Jos, Dicio nrio da Reviso Constitucional,Lisboa, 1999; Arajo, Antniode, A reviso constitucional de 1997, Lisboa, 1999; Sousa Pinheiro, Alexandre e Fer-nandes, Mrio Joo, Comentrio IV Reviso Constitucional, Lisboa, 1999.

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    Em geral, o referendo em Portugal por raz es hist ri cas, de re ceio

    de manipulaes plebiscitrios no versa directamente sobre as leis eos tratados; num primeiro momento, o povo decide se deve ou no seraprovada esta ou aquela lei ou este ou aquele tratado; e depois, o rgocompetente, vinculado pelo resultado, aprova ou no aprova. Mas nocaso dos referendos relativos Unio Europeia passou agora a estabele-cer-se (em disposio transitria do texto constitucional) que a decisoreferendria tem efeitos directos, sem necessidade dessa mediao.

    IX. AS REVISES CONSTITUCIONAIS E O SISTEMA DE GOVERNO

    9.1. A primeira reviso constitucional levou a uma reponderao dosistema de governo em face da extino do Conselho da Revoluo.

    O presidente da Repblica at ento no estava autorizado a dissolvero Parlamento sem a concordncia do Conselho da Revoluo, agora adissoluo passou a ser livre, salvo parecer no vinculativo do Conselhode Esta do e certas restries cir cuns tan ciais: no se quis ou no se pdefazer do Conselho de Estado um sucessor do Conselho da Revoluo. O

    contraponto disto seria uma clusula limitativa da faculdade de demissodo governo, de modo a atalhar a concentrao de poder: ele, doravante,s pode ser demitido quando tal se torne necessrio para assegurar o re-gular funcionamento das instituies democrticas.

    Estas alteraes e outras no contendem com a natureza semipresiden-cial do sistema, j que a dupla responsabilidade poltica no seu requi-sito necessrio. O que importa o presidente da Repblica continuar sen-do um rgo poltico activo, apto a tomar decises autnomas frente ao

    Parlamento e ao governo.18

    JORGE MIRANDA274

    18 Os Autores, na sua maioria, continuam aceitando esta designao: Cabo Bonella,Carmela de,Sviluppi della forma di governo in Portu gal, dal 1974 al 1982, QuaderniCostituzional, agosto de 1983,p. 336; Isaltino Morais, Jos Mrio Ferreira de Almeida eRicardo Leite Pinto, O sistema de governo semipresidencial,pp. 84 e ss.; Leite Pinto,Ricardo, Democracia poltica consensual, Revista da Ordem dos Advogados, 1984, p.293; Pires, Fran cisco Lucas Osistema de governo: sua dinmica, in Portugal O sis-tema poltico e constitucional, pp. 295 e ss.; Rebelo de Sousa, Marcelo, O sistema degoverno portugus, 4a. ed., Lisboa, 1992, pp. 103 e ss.; Rinella, Angelo, op. cit., pp. 231e ss.; Machado Horta, Ral, A Constitui o da Repblica Portuguesa e o regimesemipresidencial, Perspectivas Constitucionais, I, 1996, pp. 515 e ss.; Iacumetti,Myrian,II rapporto tra presidente, Governo e Assemblee Parlamentari in alcune signifi-

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    O sistema portugus tornou-se em 1982 ainda mais diferente do

    francs, na medi da em que se re for ou a se pa ra o en tre o pre siden te e ogoverno, ou entre presidir e exercer o Poder Executivo sem embar-go de se ter explicitado o dever geral de informao do governo [artigo204, no. 1, alnea c)]. Em contrapartida, ficaram mais claros os contornosdos poderes institucionais do presidente liberto do condicionamentovindo do Conselho da Revoluo em especial os poderes de garantia ede controlo poltico.

    9.2. A Constituio no exige a aprovao parlamentar do programado Gover no, apenas a sua apreciao; e s oco rre r vota o se at ao ter-

    mo do debate for proposta uma moo de rejeio (pela oposio) ouuma moo de confiana (pelo Governo). Dispensa-se, pois, a necessida-de de formao de Governos maioritrios difcil ou impossvel, em cer-tas circunstncias, devido ao sistema de representao proporcional.

    Uma soluo como esta faz avultar o papel do presidente da Repbli-ca, como fiel agora da funcionalidade do sistema no momento constituti-vo do Governo quando no haja maioria de partido ou de coligao

    pr-elei toral. Toda via, ao con tr rio do que po de ria re cear-se, da no re-

    sultou pelo menos, at hoje a nomeao de Governos do presidentesemelhantes aos de determinada fase da Alemanha de Weimar (afastadoque estava, partida, o modelo gaullista, em virtude da separao preten-dida e sempre verificado, entre a eleio presidencial e a parlamentar).

    9.3. As revises constitucionais de 1989 e de 1997 aumentaram, decerto modo, os poderes do presidente da Repblica, por causa das leisorgnicas (em relao s quais o veto poltico s pode ser ultrapassado

    por maioria de dois teros) e por causa dos referendos nacionais e regio-

    nais (dependentes de convocao pelo presidente).

    A ORIGINALIDADE E AS CARACTERSTICAS DA CONSTITUIO 275

    cative esperienze semiprudenziale: Finlandia e Portogallo, Semipresidenzialismi, orga-nizao de Lcio Pegoraro e Angelo Rinella, Pdua, 1997, pp. 313 e ss.; Canepa, Aris -tide, op. cit., nota , pp. 256 e ss.

    No sentido de sistema misto parlamentar e presidencial, Gomes Canotilho e VitalMoreira,Fundamentos da Constituio, cit., nota 1, pp. 205 e ss., e Os poderes do presi-dente da Repblica, Coimbra, 1991, pp. 9 e ss.; Lus S, O lugar da Assembleia daRepblica no sistema poltico, Lisboa, 1994, pp. 116-117. Como sistema parlamentarracionalizado, Gonalves Pereira, Andr, O semipresidencialismo em Portugal,cit., nota 8,

    pp. 53 e ss.; Otero, Paulo, O poder de substituio em direito Administrativo, Lisboa, 1995,p. 792. De certa maneira como sistema semiparlamentar, Queiroz, Cristina, Osistemapoltico-constitucional portugus, cit, nota 8, pp. 33 e ss. e 62 e ss., maxime 30 y 31.

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    9.4. Cabe ainda registar os seguintes dados de facto:

    a) Apesar de os partidos no terem o poder jurdico de apresentaode candidaturas, eles sempre tm interferido, e em grau crescente,na eleio presidencial.

    b) Nenhum partido s por si conseguiu fazer eleger um presidente, oque, para alm do apoio de outro ou outros partidos, tem realado a

    participao individual de cidados e permitido ao presidente, umavez eleito, agir livre de compromissos partidrios.

    c) Tem havido extrema variabilidade e sucessveis mutaes nos

    apoios partidrios.d) As maiorias presidenciais nunca coincidiram com a situao parla -mentar ou por se rem mais lar gas que as ba ses par lamentares dosGovernos (entre 1976 e 1979 e entre 1991 e 2002), ou, por se veri-ficar oposio ou conflito entre o presidente e as bases parlamenta -res do Governo (entre 1979 e 1985) ou, simplesmente, por se verifi-car distino das maiorias (entre 1986 e 1991 e aps 2002).

    e) Em suma, tem-se conseguido realizar a inteno dos constituintesde no simultaneidade no s cronolgica mas tambm poltica en-tre a eleio presidencial e a parlamentar.

    X. O PAPEL DA JURISPRUDNCIA CONSTITUCIONAL

    10.1. Ao longo deste 30 anos de vigncia da Constituio de 1976, opapel da Comisso Constitucional, primeiro, e do Tribunal Constitucio-nal, depois, no consistiu apenas na defesa das normas constitucionaiscontra violaes por aco ou por omisso. Consistiu, alm disso, naconstruo operada sobre elas (no raro, sem apoio doutrinal externo) ena definio das modalidades da sua irradiao para a ordem legislativa.

    Em qualquer pas, a jurisprudncia constitucional sejam quais foremas concepes e os mtodos de interpretao no pode deixar de ser

    pela natureza das coisas, uma jurisprudncia muito activa. Em Portugal,teve ainda de o ser mais, em consequncia, por um lado, da novidade demuitos dos institutos e, por outro lado, do carcter compromissrio daConstituio de 1976 e da delicadeza das situaes ps-revolucionrias.

    Afastando-se quer de leituras maximalistas quer de leituras minimalistasque, umas e outras, teriam feito soobrar o sistema a jurisprudncia

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    constitucional conseguiu traar uma linha mdia, de concordncia prti-

    ca, com solues equilibradas e exequveis.E no poucos dos pa receres e acrdos (e no pou cas das de clara esde voto que os acompanham) distinguem-se independentemente de seconcordar ou no com as respectivas posies por uma profundidadede anlise e por um rigor argumentativo no comum noutros tribunais su-

    periores portugueses.Graas jurisprudncia constitucional e ao progresso da conscincia c-

    vica, a Constituio de 1976 tornou-se uma verdadeira Constituio nor-mativa, que se impe lei e a todos os demais actos do poder pblico.

    10.2. Entre os contributos mais positivos da jurisprudncia constitu-cional avultam:

    A densificao do princpio da dignidade da pessoa humana (emmatrias como a do mnimo econmico de existncia e de puniodo lenocnio).

    A densificao do Estado de direito, atravs dos princpios da pro-porcionalidade e da segurana jurdica.

    A explicitao de garantias dos arguidos em processo penal. O entendimento dado ao ensino religioso nas escolas pblicas. A afirmao de um princpio de no retrocesso social (a propsito

    do servio nacional de sade e do rendimento mnimo garantido). O tratamento dos direitos dos estrangeiros. O desenvolvimento do direito urbanstico O desenvolvimento do direito eleitoral.

    Em contrapartida, h alguma timidez nos acrdos sobre o princpio

    da igualdade. E so susceptveis de controvrsia os que tm versado so-bre a interrupo voluntria da gravidez, os referendos, a reserva daAdministrao e os limites do poder dos Parlamentos ou a autonomia le-gislativa regional.

    Requeria um estudo parte aprofundar e concretizar estes pontos.19

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    19 Alm de anotaes em revistas especializadas portuguesas e no Annuaire Interna-tional de Justice Constitutionnel, citem-se, por exemplo,Estudos sobre a jurisprudnciado Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, Martim de Al buquerque, Da igualdade introduo jurisprudncia constitucional, Coimbra, 1993 ou Cardoso da Costa, Oenquadramento constitucional do direito dos impostos em Portugal: a jurisprudncia doTribunal Constitucional,Perspectivas Constitucionais, II, Coimbra, 1997, pp. 397 e ss.

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    XI. O DESENVOLVIMENTO CONSTITUCIONAL

    11.1. A Constituio continua sendo, aps sete revises, aps a entra-da de Portugal para as Comunidades e para a Unio Europeia e aps tan-tas transformaes registadas no pas e no mundo, a mesma Constituioque em 1976 foi decretada pela Assembleia Constituinte porque umaConstituio consiste, essencialmente, nunca demais frisar, num con -

    junto de princpios e menos num conjunto de preceitos.Foram modificados dezenas e dezenas de artigos e houve inflexes,

    formais ou reais, de sentido, mas permaneceram os princpios cardeais

    identificadores da Constituio os princpios sintetizados na ideia deEstado de direito democrtico (prembulo e, tambm a seguir a 1982, ar-tigos 2o. e 9o.).20

    11.2. Em primeiro lugar, as sensveis modificaes relativas aos rg-os polticos de soberania da primeira reviso no destruram a identida-de do sistema de governo; e as restantes alteraes sofridas pela parte III

    desde o referendo s regies autnomas e ao poder local destina-ram-se (melhor ou pior) sua viabi li zao.

    Em segundo lugar, as alteraes da parte III, conquanto bem mais pro-fundas, to pouco excederam o projecto compromissrio e pluralista daConstituio econmica, tal como sempre o interpretmos. Subsistem osdireitos dos trabalhadores e das suas organizaes. O estatuto da iniciati-va privada no apagou o favorecimento da iniciativa cooperativa e a ga-rantia institucional de autogesto (artigos 61, 85, 94, no. 2, e 97). Conti-nuam a ser admitidas a apropriao pblica e a planificao (artigos 80,alneas de e, 81, alneag, 83 e 91 e ss.]. As repri va tizaes devem obser-var regras formais e materiais (artigo 296). Subsistem, conquanto atenuadas,as normas de vedao de sectores bsicos iniciativa privada (artigo 86, no.3) e de eliminao dos latifndios (artigo 94, no. 1).21

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    20 Neste sentido, Moreira, Vital, Reviso e Revises: a Constituio ainda amesma?, Os 20 anos da Constituio de 1976, Coimbra, 2000, maximepp. 208 y 209;acrdo no. 597/99 do Tri bunal Constitucional, de 2 de novembro, in Dirio daRepblica, 2a. srie, no. 44, de 22 de fevereiro de 2000, p. 3604.

    21 Cfr. Moreira, Vital, A segunda reviso constitucional, Revista de DireitoPblico, ao IV, no. 7, 1990, pp. 21 e ss.; Sousa Franco, Antnio de e DOliveira Mar-tins, Guilherme, A Constituio econmica portuguesa, Coimbra, 1993,pp. 144 e ss.;Afonso Vaz, Manuel, Direito econmico, 3a. ed., Coimbra, 1994, pp. 117 e ss.; Santos,Antnio Carlos et al., Direito econmico, Coimbra, 1995,pp. 39 e ss.; Otero, Paulo,

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    Em terceiro lugar, quanto reviso constitucional de 1992, o que seja

    a Unio Europeia no se antolha claro e, de todo o modo, por ora, umsistemasui generis de relaes e instituies, que no atinge o ncleo dasoberania estatal. Nem o artigo 7o., no. 6, prev transferncia ou renn-cia de raiz de poderes nela compreendidos, ape nas de legao do seuexerccio, a convencionar com respeito pelos princpios da reciprocidadee da subsidiariedade. E, quanto reviso de 2004, o artigo 8o., no. 4 rei-tera como limite insupe rvel de aplicao do direito da Unio Europeiana ordem interna portuguesa o respeito dos princpios fundamentais doEstado de direito democrtico quer dizer, da Constituio materialpor-

    tuguesa.Por ltimo, as modificaes introduzidas no artigo 290 (hoje artigo

    288), corroborando a tese que h muito sustentvamos da revisibilidadede clusulas expressas de limites materiais de reviso,22 no representamtambm seno benfeitorias e actualizaes. O princpio da coexistnciade sec tores e j era em 1976 mais signi ficati vo do cer ne da Cons ti-tuio do que a apropriao colectiva; a modificao respeitante ao pla -neamento pouco mais que verbal; a participao das organizaes po -

    pulares de base no exerccio do poder local, alis praticamente semefecti vida de, ter sido to s um limite mate rial de segundo grau, e es sasorganizaes ou associaes de moradores no desaparecem do textoconstitucional.

    11.3. Uma Constituio que perdura por um tempo relativamente lon-go vai-se realizando atravs da congregao de interpretao evolutiva,reviso constitucional e costumesecundum, praetere contra legem. Con-tudo, pode tambm acontecer que, noutros casos, o desenvolvimento da

    Constituio se efectue em perodos mais ou menos breve, principalmen-te atravs da sobreposio dos mecanismos de garantia da constituciona-lidade e de reviso, sob o influxo da realidade constitucional.

    O desenvolvimento constitucional no comporta a emergncia de umaConstituio diversa, apenas traz a reorientao do sentido da Constitui-o vigente. De certo modo, os resultados a que se chega ou vai chegando

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    Privatizaes, reprivatizaes e transparncia de participaes sociais no interior dosector pblico, Coimbra 1999, p. 33; Sousa Franco, Antnio de, Decises econmicas.Da irreversibilidade reversvel das nacionalizaes reversibilidade irreversvel das

    privatizaes, Os 20 anos da Constituio de 1976, pp. 167 e ss.22 VaseManual de direito constitucional, II, 5a. ed., Coimbra, 2003, pp. 221 e ss.

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    acham-se contidos na verso originria do ordenamento ou nos princ-

    pios funda mentais em que as senta; e ou se tra ta de um extrair das suasconsequncias lgicas ou da prevalncia de certa interpretao possvelsobre outra interpretao igualmente possvel.

    Foi um fenmeno de desenvolvimen to constitucional, e no de ruptu-ra, aquele que atravessou a Constituio de 1976 ao longo destes anos,

    por efeito da jurisprudncia, das revises constitucionais (pelo menos,das trs primeiras) e da interaco dialctica da aplicao das normas edo crescimento de cultura cvica no pas.

    JORGE MIRANDA280