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Rio de Janeiro | 2012 13 OS TESOUROS MICHELLE HARRISON Tradução Carl Irineu

Os 13 Tesouros - Trecho Inicial

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Com uma história repleta de fantasia e de mistério, Os 13 Tesouros, de Michelle Harrison, chega para tornar-se a nova febre entre os jovens. Vencedor do Waterstone's Children's Book Prize, uma das mais importantes premiações britânicas direcionadas a livros juvenis, e finalista de diversos outros prêmios, vendeu mais de 100 mil exemplares no Reino Unido.

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Rio de Janeiro | 2012

13 os

tesouros

michelle haRRison

Tradução

carl irineu

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Prólogo

Desde pequena, Tanya sabia que a mansão de sua avó abrigava muitos se-

gredos. assim como todo mundo, ouvira falar dos túneis de fuga aban-

donados que diziam existir sob a casa e, como é próprio das crianças,

passou incontáveis tardes chuvosas procurando suas entradas secretas,

mas sempre em vão. ao completar treze anos, já tinha perdido havia

muito a esperança de encontrar uma dessas passagens e até mesmo co-

meçado a duvidar de que existissem.

Por isso, quando a estante girou na parede à sua frente, revelando

uma estreita escada de pedra que descia até se perder na escuridão, a

surpresa não foi tão grande. nem trouxe a deliciosa sensação que havia

tanto tempo esperava, pois as circunstâncias que levaram à a sua desco-

berta foram bem diferentes das que ela imaginara.

se os moradores estivessem prestando a devida atenção, teriam per-

cebido facilmente que os túneis vinham dando acesso à casa, já havia

um bom tempo, para alguém que não tinha direito algum de estar ali.

Mas todos os indícios — da notícia no rádio sobre o sequestro até o

estranho ruído de algo rastejando pela antiga escada de serviço no si-

lêncio da noite — foram ignorados. Separadamente, não queriam dizer

muita coisa.

Só quando Tanya se viu frente a frente com a intrusa de olhos selva-

gens em uma caverna sombria muito abaixo da casa os sinais passaram

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se encaixar como as peças de um quebra-cabeça. não sabia o que espe-

rava encontrar, mas não era aquilo.

a moça não era muito mais velha do que ela: tinha uns quinze anos,

no máximo. seus olhos verdes obrigavam uma dureza e uma maturidade

incomuns em alguém tão jovem. a faca amarrada à sua coxa sugeria

possibilidades sobre as quais Tanya nem queria pensar, por isso ela se

forçou a manter os olhos fixos no bebê que a moça trazia nos braços.

sem pestanejar, a criança a encarou de volta. o que aconteceu depois

embrulhou seu estômago de medo. as feições do bebê, que não tirava

os olhos dela, se distorceram e metamorfosearam. as orelhas se alon-

garam e ganharam pontas. a pele adquiriu uma tonalidade esverdeada.

os olhos escureceram por completo, como se injetados com tinta preta,

brilhando sinistramente. Tudo em um rápido instante, antes que a visão

horrenda desaparecer — mas Tanya sabia o que tinha visto.

assim como a intrusa de cabelos vermelhos.

— Você viu — sua voz era um sussurro gutural.

Tanya baixou os olhos para a criatura nos braços da moça e

reprimiu um grito.

— Não acredito — murmurou a moça. — Você viu. Você também

pode vê-las.

Um momento de clareza e compreensão mútua se estabeleceu entre

elas, e a intrusa sussurrou baixinho:

— Você tem o dom da visão.

Tanya recuou horrorizada.

— O que você está fazendo com esse bebê?

— Boa pergunta — respondeu a moça. — Sente-se. Vou contar

minha história. Tenho certeza de que vai achá-la muito interessante.

PaRTe Um

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T anya esTaVa cienTe De qUe elas esTaVam

no quarto antes mesmo de acordar.

Um tremor incômodo se instalara em suas pálpebras, sinal

inconfundível de que havia encrenca a caminho. Foi esse tremor inces-

sante que a despertou. seus olhos se abriram, sonolentos. Fazia tempo

que havia retomado o hábito de dormir com a cabeça debaixo das co-

bertas, que vinha desde a infância. estava desconfortável, mas relutava

em mudar de posição. qualquer movimento chamaria a atenção delas

para o fato de que estava acordada.

Sob as cobertas sufocantes, ela ansiava por se livrar dos lençóis e

deixar que a suave brisa de verão que entrava pela janela a refrescasse.

Tentou se convencer de que tudo não parava de um sonho; talvez elas

não estivessem lá de fato. mesmo assim, não se mexeu. Porque no fundo

sabia que estavam lá, tanto quanto sabia que era a única que conseguia

vê-las.

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suas pálpebras tremeram de novo. Podia sentir a presença delas

através das cobertas; a atmosfera do quarto vibrava com uma estranha

energia. Podia até sentir o cheiro úmido de terra e folhas, cogumelos e

frutos maduros. era o cheiro delas.

Uma voz baixa irrompeu na escuridão.

— Ela está dormindo. Devo acordá-la?

Tanya enrijeceu sob o refúgio dos lençóis. Ainda trazia na pele as

manchas roxas da última vez. Tinham beliscado tanto que ficara co-

berta de hematomas. levou um cutucão nas costelas e gemeu de dor.

— Ela não está dormindo — a segunda voz era fria, comedida. — Está

fingindo. não importa. Gosto tanto desses... joguinhos.

os últimos vestígios de sonolência desapareceram. não havia como

ignorar a ameaça latente naquelas palavras. Tanya se preparou para

afastar os lençóis, mas, de repente, eles se tornaram estranhamente pe-

sados, esmagando-a... e começaram a pesar cada vez mais.

— O que está acontecendo... o que vocês estão fazendo?

Ela tentou desesperadamente se livrar dos lençóis, que se enrolavam

nela e formavam uma espécie de casulo. Por um momento aterrorizante,

perdeu a respiração, mas conseguiu livrar a cabeça e inspirar o ar fresco

da noite. aliviada, demorou vários segundos antes de perceber que o

lustre de vidro em forma de estrela estava bem em frente ao seu rosto.

Então que Tanya descobriu por que os lençóis estavam tão pesados.

ela estava flutuando a um metro e meio acima da cama, sustentando

todo o peso das cobertas.

— Deixem-me descer!

lenta e involuntariamente, ela começou a virar de lado. os len-

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çóis caíram no chão, deixando Tanya, de pijamas, encarando a

cama. sem o abrigo das cobertas, sentiu-se terrivelmente vulnerável.

afastou os cabelos do rosto e examinou o quarto. o único ser vivo

que discerniu na escuridão foi o gato; um gato persa cinzento, absur-

damente peludo, enroscado como uma bola no peitoril da janela.

ele se levantou e a encarou com desdém, antes de lhe dar as costas e

voltar a se enroscar.

— Onde vocês estão? — perguntou ela com voz trêmula. — Apareçam!

Uma gargalhada desagradável emanou de algum lugar perto da

cama. o torso de Tanya foi arremessado para frente, e, antes que se

desse conta do que estava acontecendo, tinha dado uma cambalhota no

ar, seguida por outra... e mais outra.

— Parem com isso!

ouviu o desespero em sua voz e sentiu raiva por demonstrar fra-

queza.

As cambalhotas pararam, enfim e ela aterrissou — de cabeça para

baixo, no teto. as cortinas ondulavam sinistras ao sabor do vento. Des-

viou os olhos, tentando se recompor. era como se as leis da gravidade

houvessem se invertido apenas para ela. o sangue não estava fluindo

para sua cabeça, o pijama não estava cobrindo seu rosto e os cabelos

continuavam escorrendo por suas costas.

Derrotada, sentou-se no teto. era esse o motivo de chegarem no meio

da noite. Isso, pelo menos, ela compreendera fazia tempo. À noite, es-

tava completamente à mercê delas, enquanto de dia, se fosse flagrada

em alguma situação bizarra, era bem mais fácil convencer os outros de

que tudo não passava de algum tipo de jogo ou truque. mais um dos

muitos “jogos” e “truques” ao longo dos anos.

não conseguia lembrar com exatidão quando as tinha visto pela

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primeira vez. sempre estiveram lá. ela cresceu falando sozinha, sob o

olhar a princípio complacente e depois preocupado dos pais.

com o passar dos anos, aprendeu a mentir de modo convincente.

essa conversa de fadas não pega muito bem com os adultos depois que

se deixa de ser criança. não recebia mais os olhares cúmplices e os

sorrisos afetuosos da infância. Tanya não levava a mal. as pessoas não

acreditam no que não podem ver.

nos últimos tempos os incidentes se tornando cada vez mais cruéis.

Uma coisa era ter que cortar algumas mechas de cabelo depois de

usar uma escova enfeitiçada ou descobrir que as respostas do dever de

casa haviam sido misteriosamente adulteradas durante a noite. mas a

situa ção estava ficando séria. havia meses Tanya cismava que algumo

ruim acabaria acontecendo, algo que não saberia explicar. seu maior

medo era que seu comportamento cada vez mais peculiar a fizesse parar

no divã de um psiquiatra.

sair flutuando no ar não era um bom sinal. se sua mãe acordasse e

a encontrasse perambulando pelo teto não chamaria um médico, cha-

maria um padre.

estava em apuros. e dos grandes.

sentiu uma lufada de ar fresco no rosto e um roçar de asas na bo-

checha quando um grande pássaro negro passou ao seu lado, metamor-

foseando-se num piscar de olhos, tão rapidamente quanto uma sombra

desvanece à luz do sol. cabelos negros e sedosos e as extremidades

rosadas de duas orelhas pontiagudas substituíram o bico curvo e cruel

quando uma mulher não muito maior que a ave tomou seu lugar. Usava

um vestido de plumas negras que ressaltava a brancura de sua pele.

— Raven — sussurrou Tanya. Viu uma pena de corvo se destacar do

vestido da fada e flutuar até o chão. — O que você está fazendo aqui?

Raven não respondeu. Pousou no pé da cama, ao lado de dois pe-

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quenos seres, um deles gorducho e de nariz vermelho, o outro mo-

reno, magro e irritadiço. ambos observavam Tanya atentamente.

o menor deles foi o primeiro a falar.

— Você escreveu de novo sobre a gente.

Tanya corou.

— Não, Gredin... Não escrevi.

os olhos amarelados de Gredin faiscaram, em forte contraste com

sua pele morena.

— Mas foi isso que você disse da última vez. E da vez anterior.

lá fora, como se carregado pelo vento, um objeto escuro e retan-

gular flutuava em direção à janela aberta. entrou no quarto, planando

graciosamente através das cortinas, e parou diante do rosto consternado

de Tanya. era um diário, relativamente novo e em bom estado, mas co-

berto de terra. ela o enterrara sob a macieira do jardim naquela tarde.

como tinha sido tola.

— É seu, presumo? — perguntou Gredin.

— Nunca vi isso antes.

o sujeitinho rechonchudo ao lado de Gredin bufou de raiva.

— Ah, conta outra... — disse ele. — Você não quer passar o resto da

noite aí em cima, quer?

ele ergueu o braço e alisou suavemente a pena de pavão em seu

gorro. Depois enrolou a ponta do bigode espetado no dedo indicador.

Repelta de magia, a pena cintilou ao seu toque. o gorducho arrancou o

penacho e, com muita habilidade, deu um peteleco nele.

o diário se abriu, deixando cair um monte de terra que se desfez

sobre uma das chinelas de Tanya. ouviu-se um espirro abafado dentro

da chinela, de onde saiu a quarta e última fada, feia como um porco.

a criatura bateu suas asas marrons e esfarrapadas com algum esforço

e desabou na cama. Após recuperar o equilíbrio, começou a se coçar

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vigorosamente, emporcalhando os lençóis com mudas de pele e pulgas.

Depois deu um bocejo cavernoso, esfregando o focinho com suas pati-

nhas marrons.

Certa vez, ainda criança e antes do divórcio dos pais, Tanya ficou

emburrada quando ralharam com ela e fechou a cara. Passados al-

guns minutos, sua mãe perdeu a paciência: “Você está parecendo um

Mizhog.”

— O que é um Mizhog? — perguntou Tanya, sem conseguir conter

a curiosidade.

— É uma criatura horrível que tem cara de porco e está sempre in-

feliz — respondeu sua mãe. — E fazendo caretas desse jeito você está

igualzinha a um deles.

Tanya sempre se lembrava dessa conversa quando via a fada mar-

rom infestada de pulgas. sua expressão tristonha se encaixava tão per-

feitamente na descrição do ser inventado por sua mãe que, para Tanya,

a fada seria para sempre um mizhog. e, como a criatura, ao contrário

das outras fadas, nunca tinha dito como se chamava, o nome que

ela escolheu acabou pegando. exceto pelas pulgas e pelo fedor,

que lembrava o de um cachorro molhado, o mizhog até que não inco-

modava tanto. Nunca falava — pelo menos não em qualquer língua que

Tanya entendesse —, estava sempre com fome e tinha o hábito de coçar

a barriga. Fora isso, parecia contente em observar os arredores com seus

expressivos olhos castanhos — o único de seus traços que se poderia

considerar belo. estava fitando Tanya agora, com os olhos arregalados

e fazendo uns barulhinhos estranhos com a garganta.

o diário flutuava em frente ao rosto de Tanya, que logo voltou sua

atenção para ele.

— Leia — disse Gredin.

— Não consigo. Está muito escuro.

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os olhos de Gredin estavam frios como o gelo. as páginas do diá rio

começaram a virar freneticamente, para a frente e para trás, como se

procurassem uma anotação específica. Por fim, pararam em um trecho

recente, escrito às pressas. De imediato, Tanya reconheceu a data —

tinha sido escrito a menos de quinze dias. sua letra era quase ilegível.

seus olhos estavam tão cheios de lágrimas na ocasião que mal havia

conseguido enxergar a própria mão. Sentiu os cabelos da nuca se eri-

çarem quando sua voz emanou das páginas, não tão alta que acordasse

os outros, mas certamente alta o bastante para ela ouvir. soava remota,

como se a viagem através do tempo a tivesse enfraquecido.

“Elas vieram de novo hoje à noite. Por que eu? Eu as odeio. oDeio...”

O torturante trecho parecia não ter fim. A Tanya, só restava escutar,

horrorizada, enquanto sua voz emanava do diário, narrando página após

página — zangada, frustrada, desesperada.

as fadas não tiravam os olhos dela. Raven estava quieta; Feathercap

e Gredin, impassíveis; e, indiferente, o mizhog coçava a barriga infes-

tada de pulgas.

— Basta — disse Gredin, depois do que pareceu uma eternidade.

a voz de Tanya se calou de imediato, deixando apenas o farfalhar

das páginas virando para lá e para cá, como se folheadas por mãos invi-

síveis. Viu cada palavra que tinha escrito se desvanecendo até desapa-

recer como tinta num mata-borrão.

o diário caiu na cama, desintegrando-se com o impacto.

— Você não vai ganhar nada com isso — disse Raven, apontando

para o que restou do diário. — Só vai trazer sofrimento.

— Não se alguém tivesse lido o que eu escrevi — retrucou Tanya

com amargura. — E acreditasse em mim.

— A regra é simples. Você não fala da gente para ninguém. Se in-

sistir, o castigo vai continuar — ameaçou Feathercap.

os restos do diário se agitaram na cama, erguendo-se das cobertas

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como areia fina antes de saírem voando noite adentro pela janela.

— Foi embora. Como se nunca tivesse existido — disse Gredin. —

Para um lugar onde o alecrim floresce às margens de um riacho que

corre morro acima. a terra dos duendes.

— Não acredito em riachos que correm morro acima — interrompeu

Tanya, ainda aborrecida por ter seus pensamentos mais íntimos expostos

para todos ouvirem.

— Criaturas rudes, os duendes — prosseguiu Gredin. — Imprevi-

síveis. Perigosos até, dizem alguns. Deformam e distorcem tudo o que

tocam. Até o alecrim, conhecido por ajudar a memória, é contaminado

por eles. seus atributos se invertem.

ele fez uma pausa dramática. Tanya percebeu sua intenção e sabia-

mente resolveu não interromper de novo.

— Ora, existem pessoas, conhecidas entre as fadas como curan-

deiros, que sabem tudo sobre as propriedades de ervas e plantas como

o alecrim. sim, porque até o alecrim contaminado pelos duendes tem

serventia. na dose certa, tem o poder de apagar para sempre do cérebro

humano uma lembrança qualquer, como a de uma antiga paixão. muito

útil em alguns casos. e as fadas, por mais que detestem ter de lidar

com aqueles duendezinhos abomináveis, também usam essa erva má-

gica para seus próprios fins. É particularmente útil quando os humanos

entram sem querer no reino das fadas e veem coisas que não são da sua

conta. em geral, uma dose pequena dá um jeito na situação, e o humano

nem fica sabendo o que aconteceu, como se tivesse acabado de acordar

de um sonho agradável, ainda que não lembre o que sonhou. mas, já

aconteceu de se administrarem doses erradas. Memórias inteiras foram

apagadas assim, num instante — Gredin estalou os dedos, e Tanya es-

tremeceu.

— É claro que isso quase nunca acontece e, quando acontece,

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é quase sempre sem querer, mas, às vezes... só de vez em quando, o

alecrim é usado para silenciar aqueles que, de outra forma, se recusam

a ficar calados. Um destino nada agradável, todos devem concordar.

Os pobres coitados não conseguem lembrar nem seus próprios nomes

depois disso. lastimável, mas necessário. afinal... ninguém pode falar

do que não lembra.

Tanya sentiu o gosto do medo na boca.

— Não vou mais escrever sobre vocês.

— Ótimo — disse Feathercap. — Seria tolice insistir nisso.

— Só me respondam uma coisa — disse ela, tomando coragem. —

não é possível que eu seja a única. Sei que não sou a única...

Gredin a silenciou com o olhar.

sua descida foi brusca e inesperada. ao sentir que estava caindo,

Tanya instintivamente se agarrou à única coisa a seu alcance: o lustre

em forma de estrela. ouviu-se um estrondo terrível quando o fio elétrico

se esticou sob o peso dela e o forro de gesso ao redor da luminária de-

sabou, desfazendo-se em pedacinhos no assoalho. logo depois, o lustre

se desprendeu do teto. a lâmpada se estilhaçou ao cair no chão; o lustre

saiu voando das mãos de Tanya e se espatifou contra o guarda-roupa.

Prostrada e sem fôlego, Tanya ouviu as tábuas do corredor rangerem

sob passos apressados. não precisou levantar os olhos para saber que

as fadas tinham ido embora, desaparecendo do modo habitual, como

folhas espalhadas pelo vento. De repente, sua mãe já estava no quarto,

sacudindo-a pelos ombros até fazê-la gritar. ouviu a exclamação de

desgosto da mãe ao inspecionar a bagunça.

— Mamãe... — lamentou-se. — Foi... foi um pesadelo... Des-

culpe...

À luz da lua, Tanya conseguiu ver a expressão resignada no rosto da

mãe, que soltou o braço da filha e afundou na, pressionando os olhos

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com os punhos cerrados.

— Mamãe? — sussurrou Tanya. Estendeu a mão e tocou o braço da

mãe.

— Estou cansada — disse baixinho sua mãe. — Exausta. Não sei

mais o que fazer. não consigo lidar com esta... esta sua busca desespe-

rada por atenção. não consigo lidar com você.

— Não diga isso. Eu vou melhorar, prometo que vou tentar.

sua mãe deu um sorriso amargo.

— É o que você sempre diz. E quero acreditar em você... quero

ajudar, mas não consigo. não se você não se abrir comigo... ou com um

médico...

— Não preciso de um médico. E a senhora não entenderia!

— Não. Tem razão, querida, não entendo. Só sei que minhas forças

estão no fim — fez uma pausa e passou os olhos pela desordem ao

redor. — Bom, você vai limpar tudo isso de manhã. Cada pedacinho. E

o prejuízo vai sair da sua mesada, não importa quanto tempo leve. não

aguento mais. estou cheia.

Tanya olhou para o chão. Um caco de vidro brilhou no pé descalço

de sua mãe. ela se ajoelhou e gentilmente o removeu, vendo surgir uma

gota escura de sangue. a mãe não disse nada. em vez disso, levantou-se

e caminhou arrastando os pés até a porta, os ombros caídos, sem dar

atenção aos cacos de vidro que pisava.

— Mamãe?

a porta do quarto se fechou, deixando Tanya na escuridão. ela

voltou para a cama, abalada demais até para chorar. a expressão no

rosto da mãe dissera tudo. quantas vezes tinha sido avisada, quantas

vezes ouvira falar sobre a tal gota-d’água? E agora, enquanto escutava

os soluços abafados que vinham do quarto defronte ao dela, soube que

aquela noite realmente tinha sido a gota-d’água para sua mãe.

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