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marquês de pelleport Os boêmios Romance Tradução Rosa Freire d’Aguiar Introdução Robert Darnton

Os Bohemios

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  • marqus de pelleport

    Os bomiosRomance

    Traduo

    Rosa Freire dAguiar

    Introduo

    Robert Darnton

  • Copyright da introduo 2010 by Robert DarntonTodos os direitos reservados, incluindo direitos de reproduo do todo ou de parte.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalLes Bohmiens

    CapaVictor Burton

    Imagem de capaBusto de menina baro Pierre-Narcisse Gurin (1774-1833)/ rmn-Grand Palais (Museu do Louvre)/ Thierry Le Mage/ Other Images

    Imagem de quarta capaLe djeuner en tte tte Nicolas Lawreince, o jovem (1737-1807)/ Museu do Louvre

    Traduo da introduo e das notasGeorge Schlesinger

    PreparaoLgia Azevedo

    RevisoAna Maria BarbosaJane Pessoa

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Pelleport, Marqus de, 1755?-1810?.Os bomios / Marqus de Pelleport ; traduo Rosa Freire

    dAguiar ; introduo Robert Darnton 1a ed. So Paulo : Companhia das Letras, 2015.

    Ttulo original: Les Bohmiens.isbn 978-85-359-2593-7

    1. Romance francs i. Darnton, Robert ii. Ttulo.

    15-02805 cdd-843

    ndice para catlogo sistemtico:1. Romances : Literatura francesa 843

    [2015]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

  • Sumrio

    Introduo Robert Darnton, 7Personagens principais, 59

    volume i1. O legislador Bissot renuncia chicana pela filosofia, 672. Os dois irmos se perdem nas plancies da Champanha, 733. Jantar melhor que o almoo, 814. Quem eram as pessoas que ceavam assim ao relento nas plan-cies da Champanha, 875. Despertar. O bando sai a caminho: aventuras que nada tm de extraordinrio, 916. O canto do galo, 1077. Depois disso, diga que no h assombraes, 1288. O desfecho, 1409. Aventuras noturnas, dignas da luz do sol e da pluma de um acadmico, 142

  • volume ii10. Terrveis efeitos das causas, 16511. Rudes dissertaes, 17112. Paralelo entre monges mendicantes e proprietrios, 18313. Diversos projetos muito importantes para o bem pblico, 19214. A hospitalidade, 20015. A manh dos cartuxos, 20516. Panegrico do clero, 20817. Um rato que s tem um buraco logo pego, 21418. Como Lungiet foi interrompido por um milagre, 21719. Que no ser longo, 22120. Histria de um peregrino, 22321. Continuao da histria de um peregrino, 244

    Notas, 269

  • volume i

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    1. O legislador Bissot renuncia chicana pela filosofia

    O sol ia abandonar a cama de Anfritite, a aurora fugia a passos largos: as moas de vida fcil fechavam as plpebras, e as burguesas da cidade de Reims se esgoelavam para fazer suas criadas se levantarem, tendo em vista que o uso das sinetas des-conhecido na Champanha; as mulheres de escol e todas as que aspiram nobreza ainda tinham seis horas de sono; e as devo-tas acordadas pelo som lgubre dos sinos apressavam-se para a primeira missa: foi quando o medo dos oficiais de justia e o primeiro raio do astro do dia despertaram sobressaltado o advo-gado Bissot,1 que dormia num sto ao lado de seu irmo Tifars,2 companheiro fiel de sua fortuna e mulo de seus trabalhos filo-sficos. Depois de alguns inteis ensaios para tirar dos braos de Morfeu o feliz Tifars, o advogado, arrancando-lhe o cobertor e levantando-o sobre seu catre, exps aos olhares do sol o corpo seco da desafortunada criatura. Diante desse aspecto medonho, o louro Apolo imaginou-se enganado, e seus cavalos, em vez de seguirem o trpico de vero, arrastaram-no para a porta de um desses pores onde os antigos egpcios guardavam as mmias

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    de seus avs; e como estava um tanto mal-humorado por ter se levantado to de manhzinha, Apolo sentiu um maligno prazer em lanar seus raios nos punhos difanos que Tifars, sentado so-bre o traseiro na mesma posio que costumava ter no ventre de sua me, enfiava nas vastas e cavas rbitas onde se escondiam seus olhinhos. No era preciso mais nada para acord-lo alm dos esforos conjuntos de um deus e de um mortal, de tal forma ele sentia pelo sono um amor puro e terno; e s depois de ter re-cebido suas ltimas carcias foi que, puxando de sob um lenol sujo e rasgado uma perna preta e seca, e apresentando-a na boca de uma meia larga demais, ele prestou em seu ilustre irmo uma cuidadosa ateno e ouviu, no sem desprazer, o discurso filos-fico que voc vai ler.3

    Oh! como os habitantes do Ganges mostraram sabedo-ria, obrigando os filhos a abraar a profisso dos pais! Quisesse Deus que aprouvesse aos companheiros de Clvis adotar insti-tuies semelhantes, hoje no haveria entre ns tantas classes roedoras e inteis!4 No se veria o lavrador diligente queimar ao sol seu couro escamoso para poupar a pele suave e fresca do prela-do vagabundo e voluptuoso; o marujo no percorreria os mares para vestir com musselinas da ndia a cortes lbrica e brejeira; o soldado no se mostraria macilento, morto de fome, mal e mal vestido, dormindo numa mesma cama com um camarada como nica companhia, enquanto o financista larpio e entediado dorme por trs de cortinas de adamascado sobre o seio da jovem Lison, com quem no sabe o que fazer; e eu, em vez de adqui-rir o ridculo capelo dos advogados pipilantes ao preo dos cem mais belos escudos que vi em minha vida,5 teria comprado per-dizes de pernas escarlates, as teria lardeado, envolto em tirinhas de toucinho, coberto de massa, enquanto voc teria aquecido o forno e peneirado a farinha para uma nova fornada. Em pouco tempo, estendendo nosso comrcio a mais de dez lguas em tor-

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    no da cidade de Chartres, teriam nos includo entre os grandes negociantes; teramos nosso lugar entre os ilustres aristocratas do Terceiro Estado,* e eu no seria acordado to cedinho pelo temor importuno de meus credores, que se dispem a se agar-rar a nossos hcticos cadveres depois de nos terem despojado do ltimo de nossos escudinhos. E vs, legisladores ineptos, que no pudestes ler a teoria das leis civis de meu confrade Lungiet e minha teoria das leis criminais?6 Vs provavelmente no tereis dado ao credor um poder ilimitado sobre seu devedor, teres fei-to melhor enquadrar vossas decises segundo os princpios do direito natural e da lei de Talio, e tereis mostrado mais discer-nimento; mas todos tivestes cabea de vento e corao de ferro, e se por uma fuga rpida no salvarmos o saber e a filosofia contra um novo ultraje, uma sombria e fria priso breve nos h de servir de refgio. Era este, ento, Apolo!, o gabinete que tinhas me destinado no museu? melhor fugirmos para o meio das flo-restas e, vivendo de bolotas, razes e frutos silvestres, esquecermos as sociedades que s foram estabelecidas pelos ricos para o maior prejuzo do pobre, a fim de passarmos o resto de nossos dias en-tre os lobos, a uivar contra o infortnio da posteridade de No.7

    Diante dessas tristes palavras, tudo o que o lamentvel Tifa-rs tinha de cabelos ou parecendo cabelos se arrepiou como os pelos de seda de um velho javali que no arreda p, e depois de enfiar metade da perna dentro da meia, ele ergueu para Bissot suas duas mos suplicantes e disse com voz entrecortada por fre-quentes soluos.

    vs, que a natureza formou para vos tornar um dos mais belos ornamentos da sociedade, ento assim que, per-dendo coragem, ireis por uma covardia sem igual privar vossos

    * O Terceiro Estado era formado por todos os franceses que no pertenciam nem ao clero nem nobreza. (N. T.)

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    contemporneos e sua posteridade de tudo o que tinham o di-reito de esperar de vossos raros talentos? Eu poderia facilmente vos provar que a permanncia nas florestas, mida e insalubre, ataca o homem at nas fontes da gerao; que suas guas glaciais entopem as glndulas e causam obstrues; que os frutos silves-tres so amargos e difceis de digerir. Em seguida eu falaria do dente apavorante dos lobos famintos, dos duendes que tornam um divertimento arrastar para os charcos e precipcios os viajan-tes extraviados. Mas de que adiantariam semelhantes discursos, para vs que sois sbrios como um filsofo grego e no credes nos espritos assim como o finado Moiss,8 de materialista me-mria? Vossa alma inacessvel dor; mas vosso corao poderia estar fechado piedade? Ah! dignai-vos a escutar essa virtude, ou melhor, essa disposio natural do homem e dos animais e que talvez valha por si s cem vezes todos os tratados de moral. Vede, s tenho pele e ossos: sereis mais inexorveis que o lobo de La Fontaine?9 Ainda se eu estivesse saindo de uma esbr-nia ou da cozinha do senhor nosso bispo seria compreensvel, mas o ordinrio de um escrevente de procurador que recebido como advogado em Reims jamais engordou ningum. Se pelo menos eu pudesse, como a moa selvagem ou como o menino de Hanover, agarrar as lebres na corrida* Mas que digo, as flo-restas no esto povoadas de couteiros, que escoltam a caa at no campo do pobre para que ali ela engorde vontade? E ns no seramos de imediato arrastados at a mesa de mrmore dos

    * Em 1776, um tratado publicado em Londres sobre a explorao da madeira nos Pirineus menciona uma moa selvagem de quinze ou dezesseis anos que foi encontrada muito tempo antes em estado selvagem, em Issaux, nos Piri-neus. Peter de Hannover, tambm conhecido como o selvagem de Hamelin, foi descoberto em 1724, correndo nu por uma floresta. No falava, parecia ter cerca de treze anos e virou uma celebridade na poca. (N. T.)

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    tribunais e de l enviados s gals, onde o sucessor de Messer,*

    Jourdain-Launey,10 de bastilhana memria, teria o prazer de nos desancar at perdermos o flego? Ousaramos ns, ao menos, apanhar a bolota ao p da faia? E a lei no nos probe de pegar as bolotas? No duvidais, se persistis em semelhante projeto, a plida fome percursora da morte vida breve me ter reduzido ao fundo do poo. Pelos deuses! Quem me confessar? Quem me ministrar o sagrado vitico, e com os santos leos quem me ungir? Como ento serei privado da gua benta, dos requiescat in pace das almas boas? E que direi, por favor, chegando ao pur-gatrio? Nua, descabelada, esqueltica, mal ungida, faminta, pen-sai que minha alma ali seria vista com bons olhos? Ou expulsa, aterrorizada, perseguida, ela no iria rolando de pernas para o ar, e no ia cair como uma bomba dentro do caldeiro de Lci-fer? Bani, bani essas tristes fantasias; e j que a questo de honra nos impede de retornar ao cartrio do dr. La Gripardire, nosso procurador; j que vossa nova dignidade vos agrega mais res-peitvel das ordens, a essa ordem sem a qual os juzes no teriam mais razo que todo mundo e no decidiriam os processos seno pela lei e pelo bom senso, a essa ordem que hoje brilha frente do Terceiro Estado como os bodes dos rebanhos, fujamos para climas longnquos, juntai-vos a algum procurador de provncia, a quem mostrareis os truques daqueles de Paris, e eu, sob as apa-rncias de um sargento, hei de me servir na marmita pblica, enquanto vivereis do lombo de vossa procuradora. E se a sorte brbara me recusasse o emprego que ambiciono, no fazemos os

    * Jourdain pai comeou como comitre de gals e, depois, casando-se com uma filha bastarda do secretrio de Estado de Argenson, chegou ao alto posto de governador da Bastilha. [Salvo quando h indicao em contrrio, as notas de rodap, indicadas por asterisco, so do Marqus de Pelleport e constam da edio original de 1790, que serviu a esta traduo.]

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    melhores pasteizinhos de toda a cristandade? Ah!, melhor dos irmos!, deixai-vos tocar por minhas lgrimas, tendes pena de meu corpo e de minha alma, imitai os deuses, sede sensvel s preces, essas filhas de Jpiter que lhe levam em tantos tons diferentes os desejos dos mortais, como diz muito bem Homero, o deca-no dos poetas e o pai dos filsofos. Mas me dou conta de que dais a essas boas moas uma favorvel audincia. Apresso-me, e dentro de poucas horas teremos dado adeus eterno s colinas da Champanha.

    Ao dizer essas palavras, Tifars d um pulo, veste uma depois da outra as seis camisas que compunham todo o seu guarda-rou-pa e, fazendo um sinal gracioso ao irmo mais velho, arrasta-o para a Porta Cers,11 que acabava de se abrir. Era assim que Dom Quixote, atrapalhado sobre o caminho a pegar, dirigia-se ao fiel Rocinante.12 Que a imaginao de tantos graves autores corra so-bre os passos de uma pluma sem crebro, e que tantos hbeis mi-nistros sejam guiados por um funcionrio ignaro e grosseiro! Sob a conduta de seu bom irmo, o advogado Bissot logo chegou estrada que vai direto para Rhetel-Mazarin, e que cortada pelas plancies desertas da Champanha piolhenta: os campanrios g-ticos da catedral vo desaparecer diante de seus olhos, enquanto, virando-se pela ltima vez para aquela cidade brbara, ele grita como Isabel da Hungria: sic fata volunt.13

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    2. Os dois irmos se perdem nas plancies da Champanha

    Depois de ter satisfeito, com essas palavras latinas, a regra estabelecida em tempos imemoriais pelos grandes homens de todos os pases e de todas as eras, que jamais comearam uma empreitada sem ter previamente pronunciado uma sentena digna da importncia da empresa e prpria para figurar no incio de sua histria, nossos dois viajantes se enfiaram na solido de Pont-Faverg, seguindo caminhos que no so feitos nem para gente a cavalo nem para gente de carruagem nem mesmo para os mais modestos andarilhos.1

    Os forasteiros e os cidados que veem o reino pela porti-nhola de seu cabriol no conseguiriam se maravilhar o bastante com a beleza de nossas estradas largas e longas: essas belas ave-nidas de nossos sujos albergues persuadem o resto da Europa de que no h uma das dezessete grandes partes de que essa regio do globo composta que oferea comunicaes to fceis. Mas esse aparato faustuoso no se impe ao filsofo que percorre a p os grandes espaos fechados por essas vias de desolao: elas so, no h que duvidar, muito cmodas para o transporte de

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    canhes e soldados. As mercadorias, uma vez que conseguiram pegar um dos fios desse vasto labirinto, chegam bastante como-damente porta do rico,* mas o suor e as lgrimas que custaram aos infelizes lavradores do a essa boa gente tamanha averso por tudo o que se chama caminho que essas pessoas j no con-seguiriam se decidir a cuidar das veredas lamacentas que levam a suas tristes choupanas.2 Depois de ter arruinado suas carroas, seus animais, sua sade, para embelezar o passeio do rico, o la-vrador obrigado a destru-los de novo antes de chegar ao cami-nho que ele construiu: e sobre essa estrada to fcil v uma parte das quantias que pagou escorrer da capital para as fronteiras, sem que possa esperar conduzir at sua choupana o menor vaso ca-pilar desses canais ruidosos e rpidos. Estas eram as reflexes que inspiravam a nossos filsofos as ms estradas secundrias da miservel Champanha.

    O sol j tinha efetuado um pouco mais de metade de sua corrida quando chegaram a Pont-Faverg; uma trouxa de urze suspensa na parede, pois a madeira era to rara nesses cantes como a pintura e ainda no fez na Champanha progressos bas-tante considerveis, os levou a perceber que era mais que hora de almoar. O casebre no qual estava pendurada essa isca no era cimentado nem assoalhado, umas velhas paredes cobertas de fumaa mais serviam de eira ao pouco de trigo-sarraceno que ali-mentava seus sbrios habitantes do que de teto para a cozinha, em torno da qual cinco ou seis catres ordinrios bem mais pare-ciam ter sido construdos para matar quem ali se deitava do que

    * Tudo isso era verdade h alguns anos; mas graas s salutares instituies chamadas, no sei muito bem por qu, assembleias provinciais, apenas so praticveis partes das grandes estradas que se ligam s metrpoles das provn-cias. A duas ou trs lguas de cada uma dessas cidades privilegiadas, as estradas no so mais que atoleiros.

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    para lhe proporcionar repouso; alguns pratos rsticos e lascados, um pcaro com tampa de carvalho, uma grande arca prpria para guardar po e um saleiro que, mal ou bem, era preciso en-cher de sal, graas s sbias leis de Filipe, o slico, pelas quais o campons pode dispensar o po, por bom que lhe parea, mas no o dinheiro para comprar sal,3 era toda a suntuosa moblia da taberna que o destino construra para receber o maior fil-sofo da Frana e seu assduo admirador. Os donos dessa brilhan-te taberna, a casa do burgo mais ricamente mobiliada, estavam ocupados no campo. Haviam deixado como nica guardi uma velha surda que um ataque de apoplexia deixara paraltica em todo o lado esquerdo, e cujos anos faziam cambalear a cabea calva como o pndulo de uma manivela de espeto. Essa mulher parecia ter sido posta ali de propsito para preparar abstinncia os filsofos que ficariam tentados a se retirar para as solides da regio. Tinha cerca de setenta anos, pelo menos, a julgar por sua cara; pois os curas daquela terra, como s conheciam a santa es-critura e as garatujas do Palcio, so inimigos jurados de qualquer outra escrita e no mantm com grande exatido seus livros de batismo e de morte. A boa me contava sua idade pelo nmero de vezes que havia comido carne, pois, exceto no dia da festa do lugar, os mais ricos da aldeia viviam como pitagricos, com a diferena das favas. Felizmente para nossos viajantes, era vs-pera do mercado no burgo de Machaut, e os ovos da semana j estavam preparados, de modo que eles juntaram uma dzia sopa de sal que o alimento fundamental desses trogloditas. Um grande copo de um vinhozinho vagabundo, um pedao de po preto e de queijo: digna produo de uma terra que fora, durante a disperso das lnguas, destinada unicamente s andorinhas e em que os animais e os homens que a ocuparam esto condena-dos, em virtude do pacto que Deus fez com No, a um eterno marasmo.4 Essa foi a suculenta refeio pela qual nossos viajan-

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    tes pagaram vinte e quatro soldos, de tal forma os alimentos ruins so caros quando so raros. No entanto, saram bem contentes de seu almoo, e Bissot, terminando uma cdea dura, no se cansa-va de admirar a sobriedade desses bons aldees.

    Venham ele exclamava , ricos sibaritas, habitantes efeminados de nossas capitais, venham ver a que preo o pobre paga o seu luxo e os seus prazeres: acorram e provem essa sopa ao sal, comparem-na com esses holocaustos que se pem sobre os altares, e que os senhores chamam de mesas Ah! tremam, vejo esses selvagens grosseiros, cansados enfim de s trabalha-rem para enriquec-los, se reunirem como faziam seus brbaros ancestrais e se precipitarem sobre essas propriedades que os se-nhores possuem, como dizem, por direito natural. Semelhantes s harpias da fbula, eles se jogam sobre suas mesas e sobre seus cofres, e para recha-los os senhores s fazem inteis esforos.5 Uma epidemia de fome, uma guerra que apaga do livro dos vivos seus satlites mercenrios: hora desse acontecimento. A pro-priedade do outro s sagrada para quem j possui alguma coisa! governos! admirveis mquinas para os ricos! Como puderam durar tanto tempo? J no me espanto que o sr. De Serres de la Tour enriquea fazendo os confeitos La Mecque, e que Mesmer magnetize a metade do globo.6 Vivemos num sculo em que todo homem que tem com que pagar um teatro ou cavaletes tem a garantia de brevemente embolsar o dinheiro da multido. Padres, monges, soldados, oficiais de justia, grandes e pequenos senhores, faam todos causa comum: mas prestem ateno, o pulso se eleva, a febre aumenta, as grossas veias se entopem, a crise talvez no esteja muito longe, e um dia podero se arre-pender de ter feito subir toda a linfa cabea do corpo poltico.

    Enquanto se entregava a esses profundos raciocnios, o sol se punha no horizonte; seu disco no era mais que uma imagem enganosa, e o crepsculo expulso por espessas trevas fugia da

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    aurora, da qual s estava separado por um arco bastante curto: a noite j negra aparecia aos olhos do tmido Tifars em seus lgu-bres aparatos; seu carro puxado pelas corujas tinha como rodas as almas do purgatrio dobradas em forma de cicloide, grandes morcegos com nariz em forma de ferradura o abanavam com o movimento de suas asas. Dois vampiros montados em cima de lobisomens conduziam o carro, e trs ogros cavalgando xofran-gos corriam na frente, gritando huu-huu, para manter a equipa-gem protegida da luz. O Espanto, que fazia parte do triste cor-tejo, bastou avistar o corao empedernido da tmida criatura que ali foi se alojar com tanto desvelo quanto um ordenana dos marechais da Frana que no jantou h trs semanas s custas de nenhum fidalgo, e pe-se em posio de sentido em nome do rei e de nossos senhores marechais diante de algum provincial com quem tenta comprar briga. O coitado habitante de Chartres agarrou o brao do irmo e, prendendo a respirao o melhor que pde, comeou a andar como um pobre cujos ps descalos e esfolados servem de cpula para o colmo na qual o ceifeiro ain-da no separou a palha e as espigas. Sem os imensos trilhos das rodas dos carros Bissot no saberia se estava nos campos ou na estrada; quanto a Tifars, estava bem longe de pensar em outras vias alm daquelas da salvao, recitava oraes e, por uma pre-cauo um tanto intil, fechara completamente os olhos, o que no o impedia de ver fantasmas de todo tipo.

    Nossos viajantes estavam rendidos, e j no imaginavam ou-tra deciso alm daquela de se deitar num sulco e ali passar a noi-te. Bissot j comeava a se dar conta dos inconvenientes da pura natureza. Os selvagens, dizia consigo mesmo, no encontram a toalha posta no canto da colina onde a noite os flagra. E se a caa for ruim, ou se, embrenhados num canto estril, os frutos acabarem faltando? Mas pouco importa, tenho que manter meu plano, e a fome e o frescor da noite no me faro desistir.

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    assim que um ministro sistemtico mergulha um Estado na confuso e na anarquia, para sustentar suas opinies: em vo ele se d conta de que os laos sociais se afrouxam, de que as partes se desagregam, sua arrogncia o faz preferir pr fogo nos quatro cantos de uma provncia vergonha de se retratar, e ele conse-quente em sua loucura, at que o medo de perder um lugar pelo qual tanto suspirou o afasta insensivelmente de seu caminho. No entanto, no sei muito bem se Bissot teria resistido com igual constncia, pois nisso, como em muitas outras coisas, todos os filsofos que conheci se parecem com os senhores nossos prega-dores, uns e outros deram ensejo, pelo enorme disparate de seus sermes e de sua conduta, a esse provrbio, gide dos tolos e dos ignorantes: a prtica vale mais que a teoria. Os conselhos dos moralistas so duros e assustadores, mas seus costumes sempre me pareceram dos mais cmodos. Felizmente, para a glria de nosso legislador errante, a voz de um co veio socorr-lo em sua filosofia, apoi-lo em seus princpios; reanimou sua coragem e apoiou seus planos com a esperana de encontrar uma ceia e um catre que, conquanto fossem to ruins como os de Pont-Faverg, ainda seriam preferveis s bolotas e ao colmo. Essa voz que fortaleceu Bissot em sua cavalgadura filosfica no produziu o mesmo efeito em Tifars, cujo estmago, to vazio quanto seu crebro, o predispunha ao pavor. Mal bateu em seus ouvidos, ele se preparou para dar no p. Os latidos do co parecem-lhe sair do fundo do rebo; convencido de que so os gritos do Crbero de Lcifer, ou pelo menos os do porteiro do purgatrio, pe-se a rezar, e s ameaando deix-lo sozinho que seu irmo o arrasta para o lado de onde ouvira a voz em que baseava sua esperana, e que s parecia sair das entranhas da terra porque vinha do fundo de um valo atapetado por uma relva bastante fresca e banhada por um riacho cujo murmrio no demoraram a ouvir.

    Tinham dado apenas cinquenta passos, seguindo o curso

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    desse riacho, quando o mastim tricfalo fez-se ouvir cada vez mais: mas de to perto que, de repente, Tifars no mais o con-siderou um esprito de cachorro, mas de fato um animal raivoso: assim, ps-se o quanto antes a recitar a orao do finado sr. Saint Hubert,7 o que no impediu o co de ameaar de maneira cruel suas ndegas descarnadas, e ainda bem que naquele dia ele ves-tira seis camisas.

    Mas o que voc pensou, flor dos confeiteiros de Chartres, quando numa curva da colina sentiu encostar em seu estmago a ponta de um fuzil, e uma voz assustadora repetiu cinco ou seis vezes em seus ouvidos: Alto l quem est a? Pela morte se mexer, eu te mato? Tifars!, o pavor deixou-o eloquente, e caindo sobre esses joelhos to endurecidos como os de Joo, o Evangelista, voc exclamar com voz lamentvel: Senhor, tende piedade de ns, e o senhor, seu ladro, d-nos ao menos o tempo de nos reconhecer; ainda no estamos maduros para a eternidade: conceda a vida a dois pobres sbios que o amor da filosofia e o temor dos oficiais de justia jogaram nestes desertos horrorosos. Aqui esto sete libras e dois soldos, toda a nossa fortuna, e que Deus faa cair em suas mos a caixa de um arre-cadador das talhas!* Meu irmo um dos mais ilustres advoga-dos que jamais obtiveram a licena em Reims, desde que l se vendem licenciaturas, e se o senhor tiver algum processo, ele o servir com zelo e fidelidade: portanto, escute nossas preces e no nos mate.

    o que teremos de ver recomeou a voz ; siga meus passos, e daqui a pouco saberei se seu relato verdico.

    Tifars no precisou ouvir duas vezes, e seguindo os passos do invisvel fuzileiro no demorou a avistar vrias pessoas que riam e

    * A talha era um tributo pago pelos vassalos para a defesa do feudo pelos se-nhores. Era pago com parte da produo. (N. T.)

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    cantavam em volta de uma grande fogueira, em cuja claridade o guia deles parecia um gigante de imensa estatura.

    Finalmente, chegaram junto daquele grupo. Aqui esto disse a seus companheiros a temvel senti-

    nela uns cavalheiros que me fizeram a graa de me confundir com um ladro: esto perdidos, e como no h aldeia a mais de trs lguas daqui, provavelmente vo gostar muito de passar a noite em boa companhia.

    E de fazer uma boa ceia acrescentou o chefe do ban-do, mandando-os tomarem assento perto do fogo. E foi assim que viram que, na vida, no h to triste posio a ponto de des-truir a esperana de se fazer uma boa refeio antes de morrer.