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Os catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis na Política Nacional de Resíduos Sólidos Fabiana Cristina Severi DOI 10.12957/dep.2014.9437 Revista Direito e Práxis Vol. 5, n. 8, 2014, pp. 152171. 152 Os catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis na Política Nacional de Resíduos Sólidos 1 The waste pickers at the National Solid Waste Policy Fabiana Cristina Severi 2 Resumo Nosso objetivo é analisar os mecanismos jurídicos presentes na PNRS voltados para a proteção jurídica dos direitos dos catadores de materiais recicláveis. Buscamos entender tais mecanismos como expressão jurídica de uma luta social por reconhecimento da relevância social, ambiental e econômica do trabalho dos catadores e catadoras, em face de um histórico de invisibilidade social e exploração econômica. Palavraschave: Resíduos Sólidos. Catadores. Exclusão. Abstract Our objective is to analyze the legal mechanisms of NSWP facing to the legal protection of the rights of waste pickers. We aimed to understand such mechanisms as the legal expression of a social struggle for recognition of social, environmental and economic importance of the waste pickers’ work, in the face of a history of economic exploitation and social invisibility. Keywords: Waste. Waste pickers. Exclusion. 1 Artigo recebido em 13 de fevereiro de 2014 e aceito em 2 Professora de Direito Constitucional, Teoria do Estado e Direitos Fundamentais na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRPUSP). Doutora em Psicologia pela USP (FFCLRP). Mestre e Graduada em Direito pela UNESP (FCHS Franca). Coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (NAJURP) da FDRPUSP. Email: [email protected].

Os Catadores de Materiais Recicláveis e Reutilizáveis Na Política Nacional de Resíduos Sólidos _ the Waste Pickers at the National Solid Waste Policy _ Severi _ Revista Direito

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  • Os catadores de materiais reciclveis e reutilizveis na Poltica Nacional de Resduos Slidos Fabiana Cristina Severi

    DOI 10.12957/dep.2014.9437

    Revista Direito e Prxis Vol. 5, n. 8, 2014, pp. 152-171.

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    Os catadores de materiais reciclveis e reutilizveis na Poltica Nacional de

    Resduos Slidos1

    The waste pickers at the National Solid Waste Policy

    Fabiana Cristina Severi2

    Resumo

    Nosso objetivo analisar os mecanismos jurdicos presentes na PNRS voltados para a proteo jurdica dos direitos dos catadores de materiais reciclveis. Buscamos entender tais mecanismos como expresso jurdica de uma luta social por reconhecimento da relevncia social, ambiental e econmica do trabalho dos catadores e catadoras, em face de um histrico de invisibilidade social e explorao econmica. Palavras-chave: Resduos Slidos. Catadores. Excluso.

    Abstract

    Our objective is to analyze the legal mechanisms of NSWP facing to the legal protection of the rights of waste pickers. We aimed to understand such mechanisms as the legal expression of a social struggle for recognition of social, environmental and economic importance of the waste pickers work, in the face of a history of economic exploitation and social invisibility. Keywords: Waste. Waste pickers. Exclusion.

    1 Artigo recebido em 13 de fevereiro de 2014 e aceito em 2 Professora de Direito Constitucional, Teoria do Estado e Direitos Fundamentais na Faculdade de Direito de Ribeiro Preto da USP (FDRP-USP). Doutora em Psicologia pela USP (FFCLRP). Mestre e Graduada em Direito pela UNESP (FCHS-Franca). Coordenadora do Ncleo de Assessoria Jurdica Popular de Ribeiro Preto (NAJURP) da FDRP-USP. E-mail: [email protected].

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    DOI 10.12957/dep.2014.9437

    Revista Direito e Prxis Vol. 5, n. 8, 2014, pp. 152-171.

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    Introduo

    A Poltica Nacional de Resduos Slidos (PNRS), Lei n 12.305/10, regulamentada pelo

    Decreto n 7.404/10, consolidou uma trajetria de mudanas legislativas3 que buscaram, desde o

    final dos anos 1990, reconhecer juridicamente o valor do produto e do trabalho dos catadores de

    materiais reciclveis e reutilizveis. Para isso, ela garantiu a integrao dos catadores nas aes

    que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, por meio de trs

    tipos de mecanismos jurdicos: de incluso social, de emancipao econmica e de garantia da

    representatividade da categoria nos espaos de participao e controle social previstos na lei.

    Nosso objetivo, no presente texto, analisar esses mecanismos de forma articulada,

    considerando alguns elementos do contexto scio histrico que deu suporte elaborao da lei,

    em especial: a) o protagonismo do Movimento Nacional de Catadores de Materiais reciclveis

    (MNCR) na defesa do desenvolvimento integral dos catadores, para que possam atuar como

    profissionais formalmente organizados e adequadamente remunerados pelos servios de coleta,

    triagem, beneficiamento, comercializao e reciclagem; b) a caracterizao do resduo slido

    reutilizvel e reciclvel como um bem econmico e de valor social; c) a necessidade de se eliminar

    as inmeras formas de explorao de trabalho historicamente presentes na cadeia produtiva de

    reciclagem.

    1. Os catadores em movimento: da invisibilidade mobilizao social

    3 Os principais textos legislativos so: a) o reconhecimento, feito em 2002 pelo Cdigo Brasileiro de Ocupaes, da Categoria profissional de Catador de Material Reciclvel (Portaria n 397/02 do Ministrio do Trabalho e Emprego); b) a criao do Comit Interministerial da Incluso Social de Catadores de Lixo (Decreto de 11 de setembro de 2003), que implementou o Projeto Interministerial Lixo e Cidadania, a fim de garantir condies dignas de vida e trabalho populao catadora de lixo e apoiar a gesto e destinao adequada de resduos slidos nos Municpios, e buscou articular polticas setoriais e acompanhar a implementao dos programas voltados populao catadora de lixo; c) a instituio da coleta seletiva solidria pelos rgos e entidades da administrao pblica federal direta e indireta, com destinao dos materiais reciclveis para os Catadores dos resduos reciclveis descartados (Decreto n 5.940/06); d) a permisso de contratao de Cooperativas de Catadores pelo poder pblico municipal, com dispensa de licitao para coleta de resduos slidos (Lei n 11.445/07); e) a instituio do Programa Pr-Catador, que redimensionou o Comit Interministerial para Incluso Social e Econmica dos Catadores de Materiais Reutilizveis e Reciclveis (CIISC) e previu a adeso voluntria dos entes federados ao Programa Pr-Catador (Decreto n 7.405/10).

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    A cadeia produtiva de reciclagem compreende todo o processo de gerenciamento dos

    resduos slidos: o descarte ps-consumo, a coleta, a triagem, o enfardamento, a comercializao

    do material, a logstica de transporte, o beneficiamento pela indstria e o desenvolvimento do

    mercado para o novo produto (SANTOS et al., 2010, p. 71).

    O trabalho de catao, separao e triagem do material retirado dos resduos slidos

    urbanos nas cidades brasileiras corresponde a 89% do circuito acima descrito e, por dcadas,

    realizado pelos milhares de catadores e catadoras de reciclveis como meio para a subsistncia. s

    indstrias, restam 11% do trabalho (MNCR, 2009). Entre os catadores e as indstrias, figura outro

    ator na cadeia de reciclagem: os intermedirios (ou sucateiros) que compram dos catadores

    pequenas quantidades de materiais e revendem, em grandes volumes, s indstrias (SANTOS et.

    al., 2010).

    Essa cadeia tem sido responsvel por garantir ao Brasil posies de liderana nos

    rankings mundiais em eficincia na reciclagem de latas de alumnio, material PET, papelo e

    embalagens longa vida. Alm disso, quando se consideram os atuais ndices de reciclagem do pas,

    estima-se que a atividade tem sido capaz de gerar benefcios econmicos ambientais entre R$ 1,4

    bilho e R$ 3,3 bilhes anuais. Esse clculo realizado em relao produo com uso de matria-

    prima virgem, medindo o custo evitado pela reciclagem em termos de consumo de recursos

    naturais e de energia, bem como a diminuio dos impactos sobre o meio ambiente devido ao

    consumo de energia, s emisses de gases de efeito estufa, ao consumo de gua e perda de

    biodiversidade (HARGRAVE et al., 2010).

    Mas os benefcios, sobretudo econmicos, no so compartilhados, de forma

    minimamente equitativa, entre todos os grupos da cadeia. O maior percentual dos benefcios

    econmicos decorrentes do uso de materiais reciclveis como matria-prima fica para as

    indstrias. Os ganhos advindos da comercializao dos reciclveis so dos intermedirios

    (sucateiros). Isso porque so eles que geralmente possuem a infraestrutura necessria (balana,

    prensa, triturador, caminho, galpo, telefone e capital financeiro) para garantir s indstrias os

    materiais em grande volume.

    J os catadores, sejam autnomos, associados, cooperativados ou organizados em

    redes, trabalham frequentemente em condies precrias e subumanas, sem obter o suficiente

    para viver com dignidade e em situao de subordinao aos outros elos da cadeia produtiva da

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    reciclagem (intermedirios e indstria de reciclagem), em razo da necessidade de capital de giro

    de curtssimo prazo, da falta de equipamentos e da capacitao tcnica para a manipulao e

    comercializao do material recolhido (SANTOS et al., 2011).

    Aos catadores, alm de poucos benefcios, ficam os maiores prejuzos tambm. So

    eles os que mais sofrem com as oscilaes de preos dos materiais reciclveis no mercado, pois

    sobre o trabalho deles, precarizado e informal, que os intermedirios e as indstrias conseguem,

    em curto prazo, repassar as redues de preos. Quando o preo da matria-prima virgem

    diminui, as indstrias passam a utiliz-la em substituio aos reciclveis, o que, por sua vez,

    estimula as indstrias de pr-beneficiamento a comprarem matria-prima reciclada em menor

    quantidade. Os intermedirios, buscando diminuir seus prejuzos econmicos, diminuem ainda

    mais os valores pagos aos catadores pela coleta (SANTOS et. al., 2011).

    Os catadores, portanto, sempre estiveram includos na economia da reciclagem, mas

    de maneira perversa, precria e marginal.

    Sua incluso precria e marginal porque, tal qual acontece com outras categorias

    sociais vinculadas a alguns setores do sistema produtivo brasileiro menos regulados, garantida

    estritamente em termos do que racionalmente conveniente e necessrio mais eficiente (e

    barata) reproduo do capital (MARTINS, 1997, p. 20).

    tambm perversa porque se encontra sempre associada, dialeticamente, a vrias

    formas reais de excluso social: a explorao do trabalho dos catadores compromete sua

    dignidade e sua representao pblica; est articulada a processos, sobretudo sutis e informais, de

    negao de direitos e de participao dos catadores nos processos de tomada de decises

    tcnicas, polticas e jurdicas relevantes para o setor; uma situao de privao coletiva de

    direitos e condies dignas de trabalho, mas que vivida por eles como algo individual e, em razo

    disso, manifesta-se, do ponto de vista subjetivo, no sentir-se discriminado ou mesmo culpado pela

    condio em que est (SAWAIA, 2006).

    A incluso econmica precria, marginal e perversa dos catadores , portanto, a face

    da sua excluso social. E as tentativas de incluso social que no so capazes de modificar as

    formas de incluso econmica perversa transformam-se, tambm, em formas de incluso social

    perversa.

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    Sawaia (2006) entende que os processos scio-histricos de excluso no Brasil so

    constitudos pela sua contraditoriedade, ou seja, so idnticos aos processos de incluso (incluso

    social perversa):

    A sociedade exclui para incluir e esta transmutao condio da ordem social desigual, o que implica o carter ilusrio da incluso. Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e digno, no circuito reprodutivo das atividades econmicas, sendo a grande maioria da humanidade inserida atravs da insuficincia e das privaes, que se desdobram para fora do econmico (SAWAIA, 2006, p. 8).

    Portanto, em lugar da excluso, a autora refere-se dialtica da excluso/incluso

    para buscar revelar as filigranas do processo que liga o excludo ao resto da sociedade no

    processo de manuteno da ordem social (SAWAIA, 2006, p. 8).

    O termo excluso constantemente aplicado a vrias categorias sociais que sofrem

    algum tipo de privao, discriminao ou banimento para, dessa forma, serem includas por

    mediaes de diferentes ordens, em um todo social (o ns) que as exclui, gerando sentimento

    de culpa individual pela excluso (SAWAIA, 2006). Ou seja, mesmo includas, inmeras e distintas

    formas sociais de segregao iro operar para que essas categorias permaneam sempre

    diferentes de um todo social aparentemente privado de conflitos e contradies. As

    diferenciaes as mantm apartadas para que possam servir, a qualquer momento, como mo de

    obra superexplorada e dcil.

    No campo do discurso jurdico, a diferenciao feita para garantir a incluso social em

    termos de direitos, em muitas circunstncias, atua como forma jurdica de segregao, acabando

    por favorecer, tambm, a reproduo das prticas de excluso/incluso social perversa. Como

    atribudo, maioria dos direitos vinculados ao objetivo de incluso social, o carter de direito

    prestacional ou de proteo social, sua efetivao acaba condicionada a fatores considerados de

    relevncia geral. Assim, por exemplo, esses direitos so os primeiros a serem sacrificados para se

    manter o equilbrio financeiro do Estado ou o desenvolvimento econmico do pas em momentos

    de crise. Tambm no incomum aparecer, no repertrio das tcnicas de interpretao e

    classificao normativa, dispositivos que operam de modo a favorecer a dialtica da

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    excluso/incluso perversa (como o princpio da reserva do possvel e as normas de eficcia

    contida ou limitada).

    Na medida em que o vnculo dos catadores de reciclveis com a cadeia produtiva de

    reciclagem dado pelo seu trabalho (explorado), as transformaes nas relaes de produo

    (regulando o setor) devem ser prioritrias por parte dos agentes pblicos. Mas, como os processos

    de excluso social so fenmenos multifacetados, tecidos em meio a trajetrias distintas de

    desvinculao, sua superao s pode ser perseguida de forma a integrar mudanas com

    dimenses sociais, culturais, jurdicas, econmicas e polticas, sem desconsiderar os conflitos e

    tenses a imbricados.

    As mobilizaes e protestos sociais buscando transformaes nesse cenrio

    comearam a se esboar a partir do processo de organizao social, econmica e poltica dos

    prprios catadores, em articulao com vrios grupos da sociedade civil (como as pastorais da

    igreja catlica, a UNICEF, ONGs, fraes do Poder Pblico e do setor privado, universidades e

    movimentos sociais). Isso na perspectiva de se melhorarem as condies de trabalho e renda dos

    catadores, regular o setor de reciclagem e institucionalizar novas polticas pblicas de gesto

    integrada e gerenciamento dos resduos slidos no Brasil.

    Nesse sentido, desde a dcada de 1980, surgiram as primeiras iniciativas de

    organizao social e produtiva dos catadores em formato de associaes e cooperativas, com a

    perspectiva inicial de gerao de renda, maior autonomia aos profissionais e estabelecimento de

    novas formas de relao dos grupos de catadores com os poderes pblicos, em especial com os

    Municpios.

    Em 1989, foi criada a primeira cooperativa de catadores de reciclveis no Brasil: a

    Cooperativa dos Catadores Autnomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitveis

    (COOPAMARE-SP). Aps seu surgimento, ocorreu uma multiplicao de associaes e cooperativas

    em diversas cidades do Brasil, que logo criaram mecanismos para atuao em rede social.

    H uma srie de benefcios decorrentes da organizao poltica, social e produtiva dos

    catadores. Eles conquistaram o reconhecimento jurdico do trabalho de catador como categoria

    profissional, seguido dos seus direitos sociais. Puderam garantir que sua sada dos lixes e aterros

    (principalmente as crianas e moradores de rua) fosse realizada com o mnimo de proteo social.

    A organizao em cooperativas e associaes tambm tem possibilitado, em diversas experincias,

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    a venda direta s indstrias de reciclagem, o que garante maiores preos na venda e, por

    consequncia, a melhoria na renda (MARTINS, 2005; GONALVES-DIAS, 2009; GRIMBERG, 2007;

    GRIMBERG; TUSZEL; GOLDFARB, 2004).

    A atuao das cooperativas em rede foi estabelecendo as bases para que surgisse, em

    1999, o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Reciclveis (MNCR). Em 2001, foi

    realizado o 1 Congresso Nacional dos catadores e dele se extraiu o principal documento do

    MNCR, a chamada Carta de Braslia, contendo as principais reivindicaes do movimento,

    organizadas em trs eixos: a) em relao ao Poder Executivo, a exigncia de que os catadores

    tivessem recursos de fomento e subsdios para suas atividades de organizao socioprodutiva e de

    capacitao tcnica, que a profisso fosse regulamentada e que fosse implantada a gesto

    integrada dos resduos slidos urbanos; b) a respeito da cadeia produtiva da reciclagem, a

    reivindicao da prioridade aos catadores e seus empreendimentos nas polticas de

    industrializao dos materiais reciclveis, garantindo-lhes acesso e domnio sobre a cadeia, como

    estratgia de incluso social e gerao de trabalho e renda; e c) sobre os moradores de rua, a luta

    pelo reconhecimento da sua existncia, por parte do Censo do IBGE, com a criao de polticas

    especficas de atendimento s pessoas que vivem e trabalham nas ruas, alm da sua incluso em

    programas especiais, como "sade da famlia" e similares, "sade mental" e DST/AIDS/HIV.

    O MNCR, no decorrer de sua histria, fortaleceu o protagonismo de tais sujeitos nos

    espaos pblicos para que fossem conquistadas melhores oportunidades de trabalho na

    reciclagem dos resduos slidos e que suas associaes e cooperativas fossem consideradas

    parceiras prioritrias das instncias municipais e federais para a realizao da coleta seletiva

    (SILVA, 2006). Ele tambm favoreceu a ampliao da participao social e poltica dos catadores na

    formulao de polticas pblicas ligadas a demandas como: combate ao trabalho infantil, educao

    ambiental, saneamento bsico e sustentabilidade.

    As mudanas legislativas que ocorreram, a partir de 2002, para combater os processos

    de incluso/excluso perversa dos catadores e reconhec-los como agentes econmicos e sociais

    importantes na gesto integrada de resduos slidos foram elaboradas a partir dos

    encaminhamentos e deliberaes realizados nos congressos, encontros e fruns sobre resduos

    slidos e reciclagem que contaram com a participao do MNCR (SILVA, 2006). E, sem dvidas, a

    aprovao da PNRS insere-se nesse rol.

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    2. A criao da Poltica Nacional de Resduos Slidos e o protagonismo do MNCR

    As discusses sobre a elaborao de uma Poltica Nacional de Resduos Slidos no pas

    tm sua origem no PL n 354/89, proposta pelo Senado. Vrios outros projetos/propostas

    substitutivas de lei e comisses especiais de estudo foram criados a partir de ento, envolvendo

    setores sociais e rgos pblicos os mais diversos.

    Em 2006, foi apresentado um substitutivo por uma comisso especial, a partir de

    contribuies advindas, principalmente, do Conama, de rgos ministeriais, do Frum Nacional

    Lixo e Cidadania (composto por 24 fruns estaduais e vrios municipais), das Conferncias do

    Meio Ambiente (2003 e 2005) e do MNCR.

    Os debates em torno do Projeto de Lei n 354/89 estenderam-se at agosto de 2010,

    quando foi aprovada a Lei n 12.305/10, resultado de um equilbrio instvel entre as vrias foras

    sociais que a tornaram possvel.

    Dizemos instvel porque a PNRS decorrente de uma luta, em termos de hegemonia,

    entre vrias foras sociais e diversos projetos materializados em discursos como: a) da

    sustentabilidade ambiental; b) da economia solidria; c) da valorizao econmica do lixo; d) do

    esverdeamento da economia; e) da governana democrtica; f) da integrao dos catadores; g)

    da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.

    Os elementos de convergncia entre tais projetos permitiram consensos em torno da

    aprovao da PNRS. Mas cada um deles guarda um conjunto de contradies e tenses, que se

    revelam e entram novamente em disputa no momento seguinte promulgao da Lei. Comea a

    uma batalha pela produo dos sentidos e significados da lei.

    O equilbrio necessrio para que a lei pudesse ser aprovada desfeito por meio de

    processos complexos de ressignificao, naturalizao ou desgastes de palavras ou de conceitos

    nela contidos. Tais processos sero to eficazes quanto mais os conceitos forem analisados de

    maneira apartada dos contextos reais que os engendraram ou as escolhas lingusticas do texto

    legislativo no forem analisadas a partir das tenses discursivas nelas imbricadas.

    No caso dos catadores, medida que eles puderam ingressar, como fora social, na

    luta por novos direitos, puderam tambm ampliar o entendimento sobre as condies para sua

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    cidadania, ao mesmo tempo em que suas identidades individuais e coletivas foram se

    modificando. A adoo de cada um dos termos utilizados na lei para se referir aos seus direitos faz

    parte de uma intensa batalha que no tem a ver s com esse processo de construo da

    identidade de catador, mas com a disputa pela significao das suas demandas. A batalha pelas

    palavras e seus significados , tambm, uma batalha de carter poltico-social.

    Todavia, quando a lei aprovada, ela ingressa em um mundo de representaes

    prprio (chamamos de ordenamento jurdico) e passa a ser interpretada e analisada,

    predominantemente, por uma categoria de tcnicos que falam outra linguagem e, com

    frequncia, so pouco sensveis a essa disputa. Como o ato de interpretar a lei um exerccio de

    reduo dos significados, a tendncia que, aos poucos, sejam empregados os significados

    disponveis no repertrio geral das prticas jurdicas, que pouco refletem as tenses presentes no

    momento de construo do texto da lei.

    A reduo de significados e a reapropriao dos conceitos tambm operam como

    mecanismos de debilitao dos direitos conquistados, sem que eles precisem ser revogados.

    Fairclough (2001) nomeia de mercantilizao de prticas discursivas o processo de construo de

    textos (inclusive legais) capazes de operarem mudanas discursivas, mas no mudanas sociais e

    culturais significativas.

    No caso da construo da PNRS, possvel constatar uma mudana significativa no

    discurso das foras sociais ali presentes, de modo a acomodar as crescentes tendncias de

    esverdeamento da economia, de governana democrtica, economia solidria, sustentabilidade

    ambiental e integrao dos catadores. So acomodaes que no criam compromisso, de fato,

    com as modificaes no mbito sociopoltico, mas so to necessrias quanto uma bela

    embalagem. condio para viabilizar a circulao de determinado produto. O que resta saber

    se o compromisso expresso na PNRS com a valorizao do trabalho dos catadores de materiais

    reciclveis e reutilizveis do Brasil se materializar em mudanas sociais e polticas efetivas ou

    tender a ser apenas um belo invlucro para velhas e novas formas de excluso/incluso

    perversas.

    Nesse sentido, entendemos que o esforo interpretativo dos mecanismos de incluso

    social, empoderamento econmico e participao dos catadores presentes na PNRS deve

    caminhar no sentido de compreend-los articulados entre si, aos objetivos da lei, principalmente,

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    de integrao do catador na responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto, bem

    como aos significados das lutas sociopolticas dos catadores por reconhecimento e equidade.

    3. A PNRS e a integrao dos catadores de materiais reciclveis e reutilizveis

    Incluir e integrar so verbos transitivos e, como tais, supem um objeto (pessoa,

    animal ou coisa) sobre o qual recairo as aes significadas pelos verbos e praticadas pelos

    sujeitos.

    Os significados encontrados para o verbo incluir so: encerrar, pr dentro de; fazer

    constar de; juntar(-se) a; inserir(-se), introduzir(-se), fazer parte de certo grupo, certa categoria de

    pessoas. O termo refere-se conduta de inserir algum ou alguma coisa em algum lugar.

    Para o verbo integrar, encontramos: incluir um elemento num conjunto, formando um

    todo coerente; incorporar(-se), integralizar(-se), adaptar algum a um grupo ou coletividade; fazer

    sentir-se como um membro antigo ou natural dessa coletividade, unir-se formando um todo

    harmonioso (HOUAISS; VILLAR, 2001).

    Considerando tais significados para incluso e integrao, poderamos utiliza-los como

    sinnimos no processo de interpretao da lei, j que incluso aparece dentre os significados

    possveis para integrao. Mas, do ponto de vista das cincias humanas e sociais, h um amplo

    esforo terico no sentido de se distinguir os dois termos, especialmente quando eles so

    empregados para delimitarem-se polticas pblicas de combate a inmeras formas de

    desigualdades, pelo fato de se referirem a situaes de insero diferentes4. A integrao tem

    como objeto da ao o prprio sujeito e, para tanto, Estado e sociedade devem oferecer servios e

    recursos necessrios para que o sujeito possa ser inserido em condies de maior igualdade

    possvel com relao aos demais. No caso, por exemplo, dos estudos e debates sobre as polticas

    pblicas voltadas para pessoas com deficincias, o termo integrao foi substitudo por incluso,

    j que o primeiro cria uma expectativa de que a pessoa com deficincia possa vir a se assemelhar

    ao no deficiente, sendo que a inteno de tais polticas a garantia de igualdade de

    4 Para ilustrar o uso distinto dos termos, seguem algumas referncias bibliogrficas que no apenas tratam deles, como tambm assumem uma perspectiva crtica em face do abuso (ou do prprio uso enquanto categoria de anlise do social) da utilizao de tais termos nas cincias sociais: BOURDIEU (1989), CASTEL (1999), DUPAS (1999), DURKHEIM (1984), FERNANDES (1970), GENTILI (1999), HOBSBAWN (2000), MARTINS (1997), OLIVEIRA (1997), POCHMANN (2004), XIBERAS (1993).

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    oportunidades sem a negao da diversidade. Com o termo incluso, foi possvel explicitar melhor

    que os problemas das pessoas com deficincia no advm necessariamente das deficincias, mas

    sim do funcionamento social que determina os problemas ou cria desvantagens para os

    deficientes no desempenho de papis sociais.

    A PNRS faz uso dos dois termos, incluso e integrao, mas em contextos lingusticos

    distintos. Integrao aparece no inciso XII do art. 7, referindo-se aos propsitos de reconhecer os

    catadores como agentes econmicos e sociais relevantes nas polticas de gesto e gerenciamento

    dos resduos slidos e garantir condies equitativas de oportunidade e obrigaes entre o

    conjunto de agentes responsveis pelo ciclo de vida dos produtos.

    J incluso social aparece duas vezes no texto da PNRS: no art. 15, V e no art. 17, V:

    Art. 15. A Unio elaborar, sob a coordenao do Ministrio do Meio Ambiente, o Plano Nacional de Resduos Slidos, com vigncia por prazo indeterminado e horizonte de 20 (vinte) anos, a ser atualizado a cada 4 (quatro) anos, tendo como contedo mnimo: [...] V - metas para a eliminao e recuperao de lixes, associadas incluso social e emancipao econmica de catadores de materiais reutilizveis e reciclveis; [...] Art. 17. O plano estadual de resduos slidos ser elaborado para vigncia por prazo indeterminado, abrangendo todo o territrio do Estado, com horizonte de atuao de 20 (vinte) anos e revises a cada 4 (quatro) anos, e tendo como contedo mnimo: [...] V - metas para a eliminao e recuperao de lixes, associadas incluso social e emancipao econmica de catadores de materiais reutilizveis e reciclveis;

    Nas demais circunstncias em que a lei se refere aos catadores de materiais reciclveis

    e reutilizveis ou s suas cooperativas e associaes, os termos empregados so: participao,

    atuao, parceria, contratao e incentivo.

    Apenas pela anlise do contexto lingustico dos termos, j possvel entendermos que

    a incluso social refere-se garantia de direitos queles grupos de catadores que ainda

    sobrevivem em condies precrias e de superexplorao (os que trabalham em lixes ou em

    condies similares). Essa uma das condies para que os catadores e suas formas de

    organizao socioprodutivas possam participar (econmica e politicamente), atuar em parceria

    (com setores privados e pblicos), serem contratados (pelos servios realizados), receberem

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    incentivos e apoio, enfim, para que o objetivo da integrao deles na responsabilidade

    compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos possa se efetivar.

    4. Responsabilidade compartilhada e a integrao dos catadores

    A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos considerada uma

    das grandes inovaes trazidas pela PNRS. Esse instituto, ao mesmo tempo em que delimita

    juridicamente as responsabilidades e atribuies de cada um dos agentes na gesto e

    gerenciamento de resduos, prev a integrao e o protagonismo dos catadores, especialmente

    nas formas organizadas em cooperativas e associaes.

    Assim, o art. 7, inciso XII, da lei prev, como um dos objetivos gerais da PNRS, a

    integrao dos catadores de materiais reutilizveis e reciclveis nas aes que envolvam a

    responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.

    A prpria lei traz a definio de responsabilidade compartilhada, no seu artigo 3,

    inciso XVII:

    [...] conjunto de atribuies individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos servios pblicos de limpeza urbana e de manejo dos resduos slidos, para minimizar o volume de resduos slidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados sade humana e qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos.

    Por tal dispositivo legal, os catadores foram incorporados ao conjunto dos vrios

    sujeitos responsveis ou partcipes da gesto e gerenciamento dos resduos slidos (fabricantes,

    importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores e titulares dos servios pblicos de

    limpeza urbana e manejo de resduos slidos), cada um deles com atribuies distintas e

    encadeadas.

    Os princpios gerais da PNRS norteadores da integrao do catador na

    responsabilidade compartilhada so: a) a viso sistmica, na gesto dos resduos slidos, que

    considere as variveis ambiental, social, cultural, econmica, tecnolgica e de sade pblica; b) o

    desenvolvimento sustentvel; c) a cooperao entre as diferentes esferas do poder pblico, do

    setor empresarial e demais segmentos da sociedade; d) o reconhecimento do resduo slido

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    reutilizvel e reciclvel como um bem econmico e de valor social; e) o direito da sociedade

    informao e ao controle social.

    Alm dos dispositivos referentes aos incentivos organizao e fortalecimento das

    cooperativas ou outras formas de associaes de catadores, podemos encontrar na PNRS vrios

    mecanismos jurdicos da lei que buscam operacionalizar a integrao. Destacaremos aqui os

    mecanismos encontrados no tratamento dos seguintes temas: a logstica reversa e a coleta

    seletiva.

    4.1 A logstica reversa

    A logstica reversa busca eliminar ou reduzir os impactos ambientais decorrentes de

    atividades produtivas, sobretudo por meio da promoo do retorno dos materiais ao ciclo

    produtivo aps o trmino da sua vida til. Pela PNRS, ela definida como (art. 3, inciso XII):

    [...] instrumento de desenvolvimento econmico e social caracterizado por um conjunto de aes, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituio dos resduos slidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinao final ambientalmente adequada.

    As suas implantao e operacionalizao so obrigatrias aos fabricantes,

    importadores, distribuidores e comerciantes dos produtos e embalagens indicados pela lei, para

    que recebam de volta os resduos e embalagens gerados e deem a destinao adequada a eles.

    O processo de recuperao dos bens ps-consumo inicia-se com a coleta e termina

    com a sua reintegrao ao processo produtivo. A agregao de valor a tais produtos ir depender

    da habilidade dos agentes envolvidos na manipulao desses materiais em todo o seu percurso

    nos canais reversos (SOUZA; PAULA; SOUZA-PINTO, 2012). Historicamente, os canais reversos tm-

    se aproveitado da atividade de coleta de materiais reciclveis e reaproveitveis, em especial as

    embalagens ps-consumo, feitas pelos catadores.

    Um dos maiores desafios das cooperativas e associaes de catadores tem sido manter

    algumas fontes de renda relativamente fixas que permitam suportar as oscilaes frequentes de

    preo e volume de material reciclvel da cadeia produtiva da reciclagem. Nos sistemas de logstica

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    reversa h uma relativa estabilidade em termos de volume e de qualidade dos resduos obtidos, o

    que pode favorecer o equilbrio financeiro das organizaes de catadores.

    Por essas razes, a participao das cooperativas ou outras formas de associaes de

    catadores, em especial na coleta e triagem das embalagens ps-consumo, dever ser priorizada

    dentre os procedimentos que podem ser adotados no sistema de logstica reversa. Essa foi uma

    maneira no s de se reconhecer juridicamente a relevncia do trabalho dos catadores, mas,

    sobretudo, de promover a emancipao econmica dos catadores.

    Como medida indutora da insero das cooperativas ou outras formas associativas de

    catadores nos sistemas de logstica reversa, a PNRS prev aos projetos que estabelecem a

    parceria, prioridade na concesso de incentivos fiscais, financeiros ou creditcios institudos pelos

    entes federados (art. 44, II).

    De acordo com o Decreto n 7.404/10, que regulamenta a PNRS, os instrumentos para

    a implementao e operacionalizao da logstica reversa so: os acordos setoriais, os

    regulamentos expedidos pelo Poder Pblico e os termos de compromisso. Quando ela

    implantada por meio de acordo setorial, alm da possibilidade de contratao das organizaes de

    catadores para execuo de aes propostas no sistema a ser implantado, prevista a

    participao de representantes dessas organizaes no processo de elaborao do acordo,

    juntamente com representantes do Poder Pblico, das indstrias e setores econmicos e dos

    consumidores. Esse seria um dos mecanismos voltados para a garantia da participao dos

    catadores nos processos de tomada das decises, fortalecendo, desse modo, seu protagonismo e

    sua representatividade social.

    Assim, nos sistemas de logstica reversa esto previstos os seguintes mecanismos

    jurdicos voltados aos catadores:

    a) a contratao de cooperativas ou outras formas de associao de catadores de

    materiais reciclveis e reutilizveis, com o objetivo de incluso social e emancipao econmica;

    b) a representatividade da categoria nos processos de elaborao dos acordos

    setoriais, com propsitos de fortalecimento da sua participao social;

    c) a criao de mecanismos que incentivem o setor empresarial a atuar em parceria

    com os catadores, com vistas efetivao da integrao na responsabilidade compartilhada pelo

    ciclo de vida dos produtos.

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    4.2 A coleta seletiva

    De acordo com a PNRS, os Municpios devero estabelecer seus prprios planos de

    gesto de resduos slidos, nomeados de Plano Municipal de Gesto Integrada de Resduos

    Slidos, respeitando-se um contedo mnimo descrito na lei e a prpria realidade local.

    J o art. 36 da PNRS determina que os titulares dos servios pblicos de limpeza

    urbana e de manejo de resduos slidos tambm devero priorizar a organizao e o

    funcionamento de cooperativas ou de outras formas de associaes de catadores de materiais

    reciclveis e reutilizveis formadas por pessoas fsicas de baixa renda, bem como sua contratao

    para sua atuao nas seguintes atividades: a) reaproveitamento e viabilizao do retorno dos

    resduos oriundos dos servios pblicos de limpeza urbana e de manejo de resduos; b) coleta

    seletiva; c) cumprimento das atividades definidas por acordo setorial ou termo de compromisso,

    mediante a devida remunerao pelo setor empresarial. Isso porque os resduos slidos

    reutilizveis e reciclveis foram reconhecidos pela PNRS um bem econmico e de valor social,

    gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania (art. 6, VIII).

    Dessa forma, so duas as obrigaes cabveis ao Poder Pblico Municipal: a) promoo

    da organizao dos catadores em formato de cooperativas ou associaes de catadores; b)

    fomento sua emancipao econmica por meio da sua contratao para realizao da coleta

    seletiva. Para cumpri-las, os Municpios podero atuar em cooperao com os Estados e a Unio,

    respeitando-se o interesse local e autonomia municipal.

    Cabe, portanto, aos Municpios o dever de realizar a incluso social e emancipao

    econmica de catadores por meio de programas e aes de apoio (social, tcnico, financeiro)

    organizao e funcionamento de organizaes socioprodutivas. Ainda, como forma de viabilizar a

    integrao deles na responsabilidade compartilhada, os Municpios devem priorizar a contratao

    das cooperativas e associaes de catadores na prestao dos servios de coleta e triagem, com

    dispensa de licitao, nos termos do inciso XXVII do art. 24 da Lei n 8.666, de 21 de junho de 1993

    (art. 36, 2 da PNRS).

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    importante reforar, aqui, o entendimento desse ltimo dispositivo, tendo em vista

    sua relevncia para a realizao dos objetivos gerais da PNRS: quando existem cooperativas ou

    associaes de catadores de materiais reciclveis e reutilizveis formadas por pessoas fsicas de

    baixa renda, ocorre o que vrios autores em Direito Administrativo nomeiam de reduo integral

    da discricionariedade da Administrao Pblica Municipal para contrataes de servios pblicos

    de limpeza urbana e de manejo de resduos slidos.

    Isso significa que a discricionariedade para contratao de servios pblicos nesses

    casos convertida em vinculao administrativa, em face da necessidade de se garantir a

    efetivao de interesses pblicos primrios previstos na PNRS (em especial, o reconhecimento do

    resduo slido reutilizvel e reciclvel como um bem econmico e de valor social, gerador de

    trabalho e renda e promotor de cidadania) e dos direitos fundamentais previstos no apenas na

    PNRS, mas tambm na Constituio Federal de 1988, e outros instrumentos legais que esto

    relacionados aos temas de resduos slidos e de proteo ao trabalho decente, ao meio ambiente

    e aos direitos sociais e econmicos dos catadores de reciclveis e reutilizveis.

    A reduo da discricionariedade para fins de garantia de interesses pblicos primrios

    j fenmeno bastante conhecido pelo ordenamento jurdico brasileiro. J as hipteses de

    reduo da discricionariedade administrativa em face da proteo de direitos fundamentais so

    recentes, porm cada vez mais utilizadas, considerando-se o processo atual de

    constitucionalizao do Direito Administrativo (MARRARA, 2012).

    Nesse contexto, diversos autores tm buscado fortalecer o argumento de que no

    cabe mais Administrao Pblica apenas uma atuao em conformidade com a Constituio,

    mas, sobretudo, o dever de agir, de maneira propositiva, para a concretizao dos contedos

    constitucionais, de modo que eles obtenham sua mxima eficcia. Nos termos do autor

    (MARRARA, 2012, p. 225):

    [] plenamente possvel que a reduo integral da discricionariedade a zero decorra no exatamente de um valor pblico, mas sim da obrigatoriedade de o poder pblico respeitar um ou mais direitos fundamentais, sobrando-lhe, por conta dessa tarefa constitucional, apenas uma escolha possvel no caso concreto a despeito da margem de escolha garantida originariamente pela legislao.

    Assim, os direitos dos catadores de materiais reciclveis e reutilizveis, bem como os

    interesses pblicos primrios previstos na PNRS operam no sentido de vincular a Administrao

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    Pblica Municipal contratao de cooperativas ou outras formas de associao de catadores

    para a execuo dos servios relacionados limpeza urbana e ao manejo de resduos slidos, em

    especial, a coleta e triagem de resduos reutilizveis e reciclveis.

    No que se refere aos programas e aes municipais voltados aos catadores, seus

    contedos podem contemplar, por exemplo, formas de: estmulo capacitao, a incubao e ao

    fortalecimento institucional de cooperativas e associaes de catadores; apoio a pesquisas

    voltadas para sua integrao nas aes que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo

    de vida dos produtos; e melhoria das condies de trabalho dos catadores (art. 44 do Decreto n

    7.404/10). Tambm facultado ao municpio instituir medidas indutoras e linhas de financiamento

    para atender, prioritariamente, s iniciativas de implantao de infraestrutura fsica e aquisio

    de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associao de catadores de materiais

    reutilizveis e reciclveis formadas por pessoas fsicas de baixa renda (art. 42 da PNRS).

    A organizao dos catadores em cooperativas ou associaes visa, principalmente: a)

    valorizar o catador como agente formal na gesto integrada dos resduos slidos reciclveis e

    reutilizveis; b) melhorar a qualidade e o valor da matria prima reciclada; c) reduzir os riscos

    sade dos catadores; d) ampliar a sua renda, a garantia de direitos sociais; e) favorecer o

    fortalecimento da sua representatividade poltica nos espaos de deliberao pblica.

    Na perspectiva do chamado federalismo de cooperao, a PNRS tambm prev, aos

    municpios que implantarem a coleta seletiva com a participao de cooperativas ou outras

    formas de associao de catadores de materiais reutilizveis e reciclveis formadas por pessoas

    fsicas de baixa renda, a prioridade no acesso a recursos da Unio, ou por ela controlados, para

    execuo de empreendimentos e servios relacionados limpeza urbana e ao manejo de resduos

    slidos.

    Consideraes finais

    Conferir reconhecimento jurdico a demandas legtimas de determinados grupos

    sociais por meio da criao de lei um passo fundamental no processo de fortalecimento da

    cidadania. Mas, uma vez promulgada, nem sempre uma lei capaz de engendrar mudanas na

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    realidade ou de interromper processos de produo ou reproduo de situaes de injustia ou

    desigualdade.

    A PNRS foi promulgada aps um processo intenso de luta dos prprios catadores em

    movimento social para que o Estado os reconhecesse como sujeitos de direitos e buscasse formas

    de minimizao das desigualdades entre os grupos que compem a cadeia de reciclagem. Neste

    horizonte, buscou-se, com a PNRS, transcender s estratgias de incluso degradadas, comuns a

    outras polticas ou programas pblicos que acabam apenas por trazem alvio pobreza. Ela

    precisaria redefinir o prprio papel do Poder Pblico no setor, dotando-o de capacidade poltica

    para regular o mercado da reciclagem sob os pressupostos de um projeto poltico democrtico,

    garantidor direitos e no apenas das exigncias do capital.

    Nesse sentido que as estratgias de integrao dos catadores na responsabilidade

    compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos criadas pela Lei foram delineadas sobre dois eixos

    principais: o reconhecimento dos catadores pelo poder pblico na coleta seletiva, por meio do

    pagamento pelo servio prestado, e a insero dos catadores na logstica reversa, garantindo

    condies justas de mercado e acesso a recursos (financeiros e tcnicos). Em ambos, os desafios

    so inmeros e multifacetados. Mas, o principal desafio parece ser o da inovao na prpria forma

    de se pensar as polticas pblicas para o setor. A Lei exige que os poderes pblicos, sobretudo os

    municipais, olhem para os mecanismos jurdicos voltados aos catadores alm das lentes que os

    aprisionam gramtica da incluso social, pois o que se espera desses mecanismos que eles

    sejam capazes de promover o reconhecimento dos catadores como agentes econmicos, polticos

    e sociais relevantes, a remunerao adequada do trabalho e condies reais de participao nos

    espaos de deliberao pblica.

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