Os conceitos de representação e recursividade na obra do
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gustavo Rick Amaral Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem Peirce DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL sob a orientação do Professor Doutor Winfried Nöth. SÃO PAULO 2014
Os conceitos de representação e recursividade na obra do
Text of Os conceitos de representação e recursividade na obra do
PUC-SP
Gustavo Rick Amaral
Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem
Peirce
DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em
TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
sob a orientação do Professor Doutor Winfried Nöth.
SÃO PAULO
exemplo de força e vida
Agradecimentos
pelo rigor germânico e por ser um orientador "padrão Fifa"
(no"país da CBF")
À professora Lucia Santaella,
por ter me apresentado e me guiado pela densa selva dos
escritos peirceanos e especificamente por ter elaborado, ao
longo de trinta anos, uma abordagem à semiótica de Peirce
que criou um norte para esta pesquisa
Ao professor Edélcio Gonçalves de Souza,
cujas aulas e seminários a respeito de lógica e teoria de
conjuntos tornaram possível parte considerável das análises
desenvolvidas nesta pesquisa
pela magnificência com a qual consegue formar pontes sobre
o abismo que separa a mentalidade reinante na área "das
exatas" daquela que reina na área "das humanas"
A Paula Salazar,
anos de pesquisa e, sobretudo, pelo exemplo de superação e
coragem oferecido a todos que testemunharam sua vitória
contra uma das maiores adversidades que um ser humano pode
encontrar nesta vida.
minha mãe, meu pai e meu irmão,
sempre presentes mesmo estando longe.
À família que me acolheu quando cheguei na “cidade grande”
Tia Rosa, Manu e Maurício,
Aos amigos de Brasília,
retornar à cidade natal.
principalmente, Marcelo Santos e Tarcísio Cardoso,
por ainda terem, depois de alguns anos, paciência
para ouvir minhas divagações teóricas.
E também à Poliana e ao Caio.
Aos Gatos,
Lechuga e Maria Eduarda,
Devo agradecer ainda ao corpo docente do TIDD
Um agradecimento especial a Edna, pela infinita paciência e
presteza, e à CAPES, pela concessão da
bolsa de estudos.
Palavras-chave: representação, recursividade, interpretante,
cognição, semiótica, Peirce.
Resumo: Esta tese versa sobre o tipo de definição ou caracterização
que Peirce utilizou
para construir um conceito central dentro de sua semiótica: o
conceito de representação.
As análises que foram desenvolvidas para sustentar esta tese se
limitam aos escritos
peirceanos do final da década de 1860, época em que o pensamento de
Peirce começa a
se afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos próprios. O
foco de toda a pesquisa
realizada para a sustentação desta tese é o elemento lógico do
sistema filosófico de
Charles S. Peirce, i.e., a estruturação argumentativa desenvolvida
pelo filósofo para
validar as teorias que são oferecidas como respostas a problemas
filosóficos.
De modo diverso das abordagens diádicas desenvolvidas para explicar
o funcionamento
de um processo de representação, a concepção de representação
elaborada por Peirce
dentro da semiótica é triádica e esta diferença está longe de ser
meramente numérica.
Nossa tese é que, com a introdução desse terceiro elemento (o
interpretante), a
caracterização do conceito de representação (elaborado dentro da
semiótica peirceana)
torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterização é
uma exigência interna
da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que
considerou ser o problema
central da filosofia: como são possíveis os raciocínios sintéticos
(i.e., ampliativos) ou,
sob outro ângulo, como é possível haver crescimento do
conhecimento?
Com intuito de provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade
deste tipo de
caracterização conceitual dentro do projeto filosófico peirceano,
dedicamos parte
considerável deste texto à tarefa de estabelecer não apenas que a
semiótica é central
para tal projeto, mas também estabelecer que algumas teses centrais
dentro da semiótica
são decorrência direta do fato do conceito de representação ter
sido definido ou
caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais foram
denominadas de teses
elementares da semiótica: "não há primeiro signo (num processo
interpretativo)" e
"não há último signo (num processo interpretativo)". Então, para
que seja sustentável a
solução teórica encontrada por Peirce para o (que considera o)
problema central da
filosofia, estas duas teses elementares acima referidas têm que ser
estabelecidas dentro
da teoria semiótica (desenvolvida pelo próprio Peirce), e o
estabelecimento destas teses
depende da recursividade que é encontrada dentro da concepção de
signo ou de
processo representativo (e é introduzida pelo conceito de
interpretante). Portanto, a
nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do
conceito de representação
que está no coração do conceito de signo da semiótica peirceana é
necessariamente
recursiva, pois sem esta recursividade, simplesmente não seria
possível derivar as duas
teses elementares da semiótica.
Key words: Representation, recursion, interpretant, cognition,
semiotics, Peirce.
Abstract: This thesis addresses the type of definition or
characterisation used by Peirce
to formulate a central concept within his semiotics: the concept of
representation.
Analyses carried out to support this thesis are limited to Peirce's
texts from the end of
the 1860s, an era in which Peirce's thinking begins to detach
itself from his Kantian
matrix and take on its own features. The focus of all research
conducted in support of
this thesis is the logical element of Charles S. Peirce’s
philosophical system, i.e. the
argumentative structuring developed by the philosopher to validate
the theories offered
as responses to philosophical problems.
Differently from dyadic approaches developed to explain the
workings of a
representation process, the conception of representation elaborated
by Peirce within
semiotics is triadic and such difference is far from merely
numerical. Our thesis is that,
with the introduction of this third element (the interpretant),
characterisation of the
concept of representation (elaborated within Peircean semiotics)
becomes recursive by
necessity and such characterisation is an in-built requirement of
the theory that Peirce
intends to offer as an answer to what he considered to be the
central issue of
philosophy: how is synthetic (i.e. ampliative) reasoning possible
or, from another angle,
how is it possible for knowledge to grow?
With a view to proving our thesis in respect of the necessity for
this type of conceptual
characterisation within the Peircean philosophical project, we have
dedicated a
significant part of this text to the task of establishing not only
that semiotics is central to
such a project, but also to demonstrating that some central
semiotic theses are a direct
result of the fact that the concept of representation has been
defined or characterised in a
recursive manner. These central theses were termed elementary
theses (of semiotics):
"there is no first sign (in an interpretative process)" and “there
is no last sign (in an
interpretative process)". Therefore, to render the theoretical
solution found by Peirce
sustainable for the (what he considered to be) central issue of
philosophy, the two
elementary theses referred to above must be established within
semiotic theory
(developed by Peirce himself), and their establishment depends on
the recursion found
within the concept of a sign or of a representative process (and
introduced by the
concept of interpretant). Our thesis is, therefore, precisely that
the characterisation or
definition of the concept of representation at the heart of the
Peircean semiotics sign
concept is necessarily recursive, because without such recursion it
would simply be
impossible to derive the two elementary theses of semiotics.
SUMÁRIO
Introdução
Geral.........................................................................................................................................
2
3.2 - A impossibilidade do projeto das fundações
seguras..............................................................
80
3.3 - Um modelo lógico da
mente....................................................................................
............... 87
CAPÍTULO 4 - Introdução à análise do texto "Questões concernentes a
certas faculdades
reivindicadas para o homem" (QFCM) e análise da primeira
questão............................................ 97
4.1 Análise (da primeira parte) da Q1: Sobre a capacidade intuitiva
de distinguir intuições........ 104
4.2 Análise (da segunda parte) da Q1: sobre a capacidade intuitiva
de distinguir intuições......... 129
CAPÍTULO 5 - Análise da segunda e da terceira questões do texto
"Questões concernentes a certas
faculdades reivindicadas para o
homem".............................................................................................
147
5.1 Análise da Q2: sobre a autoconsciência
intuitiva.................................................................
... 148
5.2 Análise da Q3: sobre elementos subjetivos de diferentes tipos
de cognições......................... 168
CAPÍTULO 6 - Análise da quarta questão do texto "Questões
concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o
homem"................................................................................................................
180
6.1 Análise da Q4: sobre a capacidade de
introspecção................................................................
181
6.2 Excurso: o problema do segundo tipo de
intuição..................................................................
194
CAPÍTULO 7 - Análise da quinta questão do texto "Questões
concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o
homem"................................................................................................................
208
7.1 Análise (da primeira parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar
sem signos........................ 209
7.2 Análise (da segunda parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar
sem signos......................... 225
CAPÍTULO 8 - Análise da sexta e da sétima questões do texto
"Questões concernentes a certas
faculdades reivindicadas para o
homem".............................................................................................
236
8.2 Análise da Q7: sobre as
origens..................................................................
............................ 247
CAPÍTULO 9 - Resultados da análise do texto "Questões concernentes
a certas faculdades
reivindicadas para o
homem"................................................................................................................
273
9.1 Primeiro movimento argumentativo geral do QFCM: o
estabelecimento da tese-base da
semiótica......................................................................................................................................276
9.2 Segundo movimento argumentativo geral do QFCM: o
estabelecimento da tese a respeito das
origens do processo
cognitivo......................................................................................................290
CAPÍTULO 10 - Análise do texto "Sobre uma nova lista de categorias"
(ONLC).......................... 298
10.1 Primeira parte da análise do ONLC:
conceitos-chave...........................................................
302
10.2 Segunda parte da análise do ONLC: método de exposição
hipotético-construtivo.............. 316
10.3 Terceira parte da análise do ONLC: método de exposição
hipotético-desconstrutivo.......... 320
10.4 Quarta parte da análise do ONLC: a síntese no contexto
argumentativo.............................. 327
CAPÍTULO 11 - Análise da definição de interpretante dentro do texto
"Sobre uma nova lista de
categorias"
(ONLC)..................................................................................................................
.............. 335
11.1 A primeira definição de Interpretante dentro do modelo
triádico de signo........................... 337
11.2 Análise dos exemplos que acompanham a primeira definição de
Interpretante dentro do
modelo triádico de
signo................................................................................................................
340
11.3 Excurso: alguns modelos de interpretação do conceito peirceano
de representação............. 353
CAPÍTULO 12 - Interpretante e
recursividade...................................................................................
357
12.1 Análise do trecho de Savan a respeito da relação entre
interpretante e recursividade...........359
12.2 A caracterização recursiva do conceito de representação na
semiótica peirceana.................368
12.3 Recursividade e a sétima questão do
QFCM..........................................................................377
CAPÍTULO 13 - Recursividade e a concepção de representação como
fluxo................................... 385
13.1 As teses elementares da
semiótica..........................................................................................387
13.2 A recursividade como condição
necessária............................................................................403
13.3 A Hipótese da prisão
linguística.............................................................................................413
Considerações finais
...............................................................................................................................
434
A ideia de representação na semiótica peirceana
Precisamente, esta tese de doutorado trata do tipo de definição ou
caracterização que
Peirce utilizou para construir um conceito central na sua teoria
semiótica: o conceito de
representação. Nossa tese é que, com a introdução do terceiro
elemento (denominado
interpretante) na definição peirceana de signo, a caracterização do
conceito de
representação torna-se necessariamente recursiva e este tipo de
caracterização é uma
exigência interna da teoria que Peirce planeja oferecer como
resposta ao que considerou
ser o problema central da filosofia: como são possíveis os
raciocínios sintéticos (i.e.,
ampliativos) ou, sob outro ângulo, como é possível haver
crescimento do conhecimento?
O que pretendemos provar nas próximas centenas de páginas é que
esta caracterização
recursiva é uma condição necessária para a sustentação do projeto
filosófico elaborado
pelo jovem Peirce na década de 1860, época em que o pensamento
peirceano começa a se
afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos próprios.
Portanto, as análises e
argumentos que desenvolveremos a seguir recobrem apenas a fase
inicial da construção
do sistema filosófico peirceano, embora acreditemos que as
principais teses defendidas no
interior da semiótica bem como esta caracterização recursiva da
representação são
elementos essenciais ao pensamento semiótico de Peirce, o que nos
leva a acreditar (sem
obviamente poder estabelecer [nesta tese] este ponto) que tais
elementos permaneceram
sob todas as reformulações às quais o próprio Peirce submeteu seu
sistema filosófico ao
longo do tempo 1 . A estrutura geral e os principais componentes
deste projeto filosófico
elaborado pelo jovem Peirce na década de 1860 serão apresentados no
primeiro capítulo.
Nossa tese central pode ser expressa da seguinte forma:
TESE de Doutorado - A caracterização do conceito de representação
(interno
à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva.
As descrições de Peirce sobre processos de significação e as
definições de signo 2
invariavelmente incluem três elementos: o signo (propriamente
dito), o objeto e o
1 Esta tese à qual aludimos (sem querer alimentar a esperança no
leitor de que teremos a oportunidade de
defendê-la) afirma apenas que algumas teses e algumas
características da teoria semiótica elaborada ao final
da década de 1860 não foram alteradas em versões posteriores. Isto
é muito diferente de afirmar que não
houve mudança alguma na semiótica e mesmo na filosofia peirceana
(ao longo da carreira de Peirce). Por
exemplo, é de conhecimento até do reino mineral que, entre o
período de 1870 - 1885, Peirce desenvolveu
um novo aparato para análise lógica que passou a chamar de "lógica
dos relativos" (que consiste justamente
na introdução do uso de quantificadores e variáveis ligadas na
análise lógica e seria equivalente ao que hoje
entendemos por lógica de primeira ordem). Este novo aparato teve um
impacto considerável, pois é a partir
dele que Peirce reorganiza seu sistema de categorias (que está na
base de seu sistema filosófico). 2 Como veremos no décimo segundo
capítulo, há um interminável debate entre os estudiosos da
obra
peirceana se, de fato, Peirce denominou de signo a relação triádica
como um todo (i.e., a relação entre
3
interpretante. Em termos gerais, o signo é um conceito que Peirce
utiliza para descrever
um processo representacional em que um primeiro elemento (o signo
propriamente
dito), para representar um segundo elemento (o objeto da
representação), deve
necessariamente produzir um terceiro elemento (denominado de
interpretante) que
possui função mediadora. A recursividade essencial a este modo de
explicar o
funcionamento de um processo de representação está no modo como
este terceiro
elemento é definido. Como, para haver representação entre os dois
primeiros elementos,
é necessário que o terceiro elemento entre em cena e este terceiro
elemento é ele mesmo
uma representação (um novo primeiro elemento, ou seja, um novo
signo), então ele
deve necessariamente produzir um quarto elemento (i.e., um novo
terceiro elemento, ou
seja, um novo interpretante) e assim por diante. O modo recursivo
como foi definido o
terceiro elemento do signo cria, dentro da semiótica, uma noção de
sequência ou
processo. Como veremos, uma sequência de interpretantes ou um
processo
interpretativo. O conceito de representação, dentro da semiótica
peirceana, é captado
por esta noção de sequência ou processo interpretativo (introduzida
na teoria pelo
terceiro elemento acima mencionado). A nossa tese central é que a
noção geral de
recursividade é fundamental não apenas para os campos da
matemática, da lógica e,
mais recentemente, da computação, mas também para a semiótica (no
caso, peirceana).
A ideia de correlacionar este conceito peirceano de interpretante
com o conceito de
recursividade nos foi sugerida por uma breve passagem de um texto
de David Savan 3 .
Nesta passagem, Savan afirma que o "o que há de característico de
quase todas
definições peirceanas de interpretante (...) é que o terceiro
relatum é uma instância ou
uma réplica de uma regra de recursão" (Savan, 1986, p. 133). A
definição de
recursividade da qual Savan lança mão para esclarecer o que Peirce
entende por
interpretante está presente no livro "Mathematical logic" do
filósofo e lógico norte-
americano W. Quine. Na verdade, no trecho do livro de Quine, citado
por Savan,
encontramos uma definição do que é uma definição recursiva ou uma
caracterização
recursiva de um conceito. De acordo com a definição fornecida por
Quine,
"qualquer noção geral que é resolvida numa sequência infinita de
casos especiais é dita
recursivamente caracterizada quando explicamos o primeiro caso e
adicionamos uma
regra geral que descreva (i+1)-ésimo caso, para cada i, em termos
dos primeiros i casos"
(Quine, 1981, p. 86). Vejamos um exemplo para que esta noção de
recursividade se
torne mais palpável.
Na verdade, não tão palpável assim, uma vez que escolhemos um
exemplo proveniente
do campo da matemática mesmo sabendo que, com isso, devemos perder
nas próximas
signo, objeto e interpretante) ou ele apenas reservou o termo
"signo" para se referir à primeira posição
dentro dessa relação triádica. 3 Como veremos com mais detalhes no
caítulo 12, na época em que Peirce estava lançando os
fundamentos de sua semiótica (ao final da década de 1860), o
conceito de recurisividade ainda não havia
sido plenamente desenvolvido e definido de forma precisa, embora os
lógicos e matemáticos deste
período já tivessem alguma noção (ainda que vaga) do procedimento
de recursividade. De acordo com
Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, o próprio Peirce parece ter sido o
responsável pela primeira definição
recursiva que se tem notícia sem, no entanto, ter estabelecido
formalmente o que vem ser uma definição
recursiva (cf. Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, 1973, p. 299)
4
linhas parte de nossos leitores. Na matemática, o fatorial de um
número qualquer é uma
certa operação definida como o produto de todos os números que
sejam iguais ou
menores que o número em questão. Esta operação é representada pelo
símbolo " ! ".
Assim, o fatorial de um número n é representado como n! e o
resultado desta operação é
" n x (n - 1)! ", ou seja, o valor resultante da operação fatorial
aplicada sobre o número n
é o número n multiplicado pelo fatorial de seu antecessor. Por
exemplo, para que
saibamos o resultado do fatorial do número 3 é necessário que
calculemos o seguinte
produto: 3 x 2 x 1. Obviamente, o resultado da operação 3! é
6.
Como acreditamos que esta operação já esteja minimamente
esclarecida, passemos a fazer
algumas observações sobre o modo como ela foi definida, que é o
ponto que efetivamente
nos interessa neste texto introdutório. No parágrafo anterior,
afirmamos que o valor
resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n é o
número n multiplicado pelo
fatorial de seu antecessor, ou seja, o resultado da operação n! é n
x (n - 1)! . Isto significa
que o resultado desta operação depende do resultado desta mesma
operação para um caso
anterior. A ideia de recursividade está presente justamente no fato
desta operação recorrer
à uma referência a ela mesma para poder ser definida. A definição
não é circular, como
veremos, pois esta recorrência é sempre efetuada para um caso
anterior da aplicação da
operação definida. Este caso anterior é dado por uma
sequência.
Podemos apresentar esta definição ou caracterização recursiva da
operação fatorial com
apenas duas cláusulas. As duas cláusulas ou regras que compõem esta
definição
recursiva funcionam como um algoritmo que serve para que
encontremos o resultado da
operação fatorial aplicada sobre algum número específico.
Caracterização recursiva da operação fatorial
Cláusula n°1 (cláusula base) --> Se o número (diante do símbolo
que representa a
operação fatorial) for menor ou igual a 1, então o valor da
operação fatorial é 1.
Cláusula n°2 (regra geral) --> Caso o número (diante do símbolo
que representa a
operação fatorial) tenha outro valor que não seja menor ou igual a
1, então o
valor da operação fatorial é o valor do número multiplicado pelo
valor da
operação fatorial aplicada sobre o antecessor deste número.
Por exemplo, calculemos a operação 4! . O primeiro passo é olhar
para o número que
está na frente símbolo que representa a operação fatorial. Neste
caso é o número 4.
Vejamos se devemos aplicar a este número a primeira ou segunda
cláusula. Não é difícil
perceber que não podemos aplicar a primeira delas, pois a
condicionante desta cláusula
nos diz que ela só deve ser aplicada a números que forem menores ou
iguais a 1.
Obviamente o 4 não cumpre esta condicionante. Assim, temos que nos
encaminhar para
a segunda cláusula (uma vez que o número tem um valor que não igual
nem menor que
1). De acordo com a segunda cláusula, devemos pegar o número 4 e
multiplicá-lo pelo
resultado da operação fatorial aplicada sobre aquele número que
antecede o número 4.
5
Ora, o número que antecede ao número 4 é o número 3. Logo, o que a
segunda cláusula
nos pede para fazer é multiplicar o número 4 pelo resultado da
operação fatorial
aplicada sobre o número 3. Em símbolos, o que a segunda cláusula
nos solicita fazer é
encontrar o valor de 4 x 3! . Isto significa que, para encontrarmos
o valor de 4!, é
preciso, antes, encontrar o valor de 3!. E de onde vamos tirar o
resultado da operação
fatorial 3! ? Simples, basta que apliquemos a esta operação a
segunda cláusula (uma vez
que, como o número 3 não é menor ou igual a 1, então ele também não
cumpre a
condicionante da primeira cláusula). Aplicar a segunda cláusula
significa isolar o
número 3 e multiplicá-lo pelo resultado da operação fatorial
aplicada sobre o seu
antecessor, que é o número 2. Então, o que temos é que o valor de
3! é dado pela
operação 3 x 2! . E, assim, estamos diante de outro fatorial: a
operação 2! . Mais uma
vez, perguntemo-nos o que pode ser feito para encontrar o valor de
2! ? Claro está que
devemos aplicar a segunda cláusula novamente, pois o número 2, como
o 3 e o 4,
também não cumpre a condicionante expressa na primeira cláusula. Ao
aplicar a
segunda cláusula ao número 2, descobrimos que o valor de 2! é 2 x
1! (pois o número q
é o antecessor de 2). E isto nos põe novamente diante de outro
fatorial: a operação 1!.
Entretanto, esta é a última delas, pois, pela primeira vez, estamos
diante de uma
operação fatorial feita sobre um número que é igual ou menor que 1.
Isto significa que
está cumprida a condição para aplicarmos a primeira cláusula. Logo,
o valor de 1! é 1.
Note que, ao contrário de todos os outros passos anteriores esta
operação ( 1! ) não nos
apresentou como resultado outro fatorial.
Revisemos nossos passos. Começamos nos perguntando pelo valor de 4!
. Descobrimos
que 4! = 4 x 3! . Então nos perguntamos pelo valor de 3! e
descobrimos que 3! = 3 x 2! .
Com isso, sabemos que o valor de 4! é, na verdade, 4 x 3 x 2! .
Porém, o valor de 2! é 2
x 1! . Logo, o valor de 4! é 4 x 3 x 2 x 1! . Mas, deve-se recordar
que o valor de 1! (pela
primeira cláusula) é 1. Assim, o que temos é que 4! tem como valor
o resultado da
seguinte multiplicação: 4 x 3 x 2 x 1 . Logo, o valor de 4! é
24.
Por qual motivo esta definição apresentada da operação fatorial é
denominada
recursiva? A recursividade está justamente no fato de que, segundo
esta definição, para
saber o resultado da aplicação desta operação sobre um número n
temos que recorrer ao
resultado desta mesma operação aplicada sobre o antecessor do
número n (i.e., o número
n - 1) e esta recorrência é feita até que se atinja um ponto de
parada. Da mesma forma,
as definições que Peirce oferece de signo também possuem tal noção
geral de
recursividade. Na semiótica, conforme a sugestão de Savan (que
citamos acima), a
recursividade fica patente na definição do terceiro elemento do
signo, o interpretante. O
terceiro elemento possui um papel de mediação essencial em qualquer
processo de
representação. Para haver representação, deve sempre haver produção
de interpretante.
Dentro dos limites da semiótica peirceana, uma coisa não pode
representar outra sem
produzir um interpretante, i.e., sem recorrer a um terceiro
elemento mediador. Um signo
A apenas pode representar um objeto B caso seja produzido um
interpretante C, que, por
sua vez, é um novo signo do mesmo objeto B. Porém, se afirmamos que
C é um novo
signo, então ele deve produzir um novo interpretante D (que, por
sua vez, será um novo
6
signo para o mesmo objeto B) e, assim, ele também deve produzir
(por ele mesmo)
outro interpretante E. Tal processo de representação continua
indefinidamente. Porém,
deve-se chamar atenção para uma importante característica (das
definições de signo de
Peirce), o resultado de uma representação específica também depende
de uma
representação anterior. Claro está que, neste exemplo, começamos
pelo signo A.
Entretanto, este signo deve ser entendido como resultado de uma
representação anterior
ainda que não tenhamos nos referido a ela diretamente.
Na semiótica peirceana, a relação de representação entre o signo e
objeto
necessariamente produz um interpretante e esta relação é ela mesma
necessariamente
resultado de algum interpretante anterior. Assim, toda
representação entre um signo e
um objeto deve desencadear um processo interpretativo e deve ela
mesma ser resultado
de um processo interpretativo anterior. Isto significa que não há
um ponto de origem
para o processo de representação. É como se estivéssemos diante de
um processo
definido recursivamente para o qual não há cláusula base. Não há um
ponto de partida,
nem um ponto de chegada pré-estabelecido. O que há é fluxo. Isto
nos leva a uma
estranha teoria que entende a representação como um processo que
necessariamente
ocorre numa espécie de fluxo.
Estrutura da tese
Para que possamos provar esta (nossa) tese a respeito da
necessidade do tipo de
caracterização conceitual mobilizada dentro do projeto filosófico
peirceano, seremos
obrigados a estabelecer, em primeiro lugar, que a semiótica é uma
teoria central neste
projeto e, em segundo lugar, que algumas teses centrais dentro da
semiótica são
decorrência direta do fato de o conceito de representação ter sido
definido ou
caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais serão
denominadas de teses
elementares da semiótica (e serão explicadas de forma mais
detalhada no nono
capítulo).
Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo
interpretativo).
Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo
interpretativo).
Assim, podemos resumir da seguinte forma a ligação entre todas
estas ideias (i.e., entre
as teses defendidas pelo próprio Peirce em seus escritos e a nossa
tese acerca da
semiótica peirceana): para que seja sustentável a solução teórica
encontrada por Peirce
para o (que considera o) problema central da filosofia, estas duas
teses elementares
7
acima apresentadas têm que ser estabelecidas dentro da teoria
semiótica (desenvolvida
pelo próprio Peirce), e o estabelecimento destas teses depende da
recursividade que é
encontrada dentro da concepção de signo ou de processo
representativo (e é introduzida
pelo conceito de interpretante). Se, por um lado, como pretendemos
provar, estas duas
teses são condições necessárias para a sustentação do projeto
filosófico peirceano, por
outro lado, como também pretendemos provar, a caracterização
recursiva de
representação (mobilizada por Peirce para definir a relação entre
signo, objeto e
interpretante) é uma condição necessária para o estabelecimento das
duas teses
elementares. Portanto, a nossa tese é justamente que a
caracterização ou definição do
conceito de representação que está no coração do conceito de signo
da semiótica
peirceana é necessariamente recursiva. Sem esta recursividade,
simplesmente não seria
possível derivar as duas teses elementares da semiótica: "não há
primeiro signo num
processo interpretativo" (Tese_1 da semiótica) e "não há último
signo num processo
interpretativo" (Tese_2 da semiótica). Como veremos no último
capítulo, se
concebermos uma teoria semiótica alternativa àquela proposta por
Peirce, i.e., sem a
caracterização recursiva de representação, não seria possível
garantir que, em todo
processo interpretativo, não haja ponto originário ou ponto de
chegada preestabelecido.
Isto significa que a teoria da representação que está subentendida
no projeto filosófico
peirceano necessariamente mobiliza um conceito de "representação
como fluxo". Como
teremos a oportunidade de explicar detalhadamente, o conceito de
interpretante
(proveniente da semiótica) deve ser entendido como uma espécie de
princípio que
instaura um processo representacional (uma cadeia de
interpretantes) que ocorre num
fluxo, sem ancoragem alguma, sem ponto de partida ou chegada
absoluto.
Como nossa tarefa consiste em mostrar que a recursividade é uma
condição necessária
para o projeto filosófico peirceano, ou seja, para as soluções
teóricas propostas por
Peirce em seu sistema filosófico, então teremos que começar pela
explicação e
contextualização deste projeto. Por este motivo, antes mesmo de nos
voltarmos para as
análises dos argumentos elaborados por Peirce e para a argumentação
de nossa tese
(propriamente dita), parte considerável de nosso texto é dedicada a
apresentar o
surgimento da semiótica nos escritos peirceanos da década de 1860.
Assim, optamos
por dividir nosso texto em três grandes partes: I) o panorama
histórico do surgimento da
semiótica no pensamento peirceano e a relação da filosofia de
Peirce com outros
sistemas filosóficos, como o de Kant e de Descartes (capítulos 1,2
e 3); II) as análises
do texto peirceano (capítulos 4 - 11) 4 ; III) as argumentações
para sustentação da tese
propriamente dita (capítulo 12 e, sobretudo, 13): "a caracterização
do conceito de
representação (interno à teoria semiótica peirceana) é
necessariamente recursiva".
4 Aproveitemos este texto introdutório para esclarecer o
significado de algumas abreviações de títulos ou
coletâneas de textos elaborados por Peirce que deverão aparecer ao
longo desta tese: CP – Collected
Papers; NEM – The New Elements of Mathematics; EP – Essential
Peirce; MS – Manuscritos da
Houghton Library. As referências aos “Collected Papers” serão
feitas pela numeração relativa ao volume
e ao parágrafo (e não às páginas). Por exemplo, uma citação cuja
referência bibliográfica esteja CP 2.101
quer dizer que tal trecho pertence ao parágrafo de número 101 do
segundo volume dos “Collected
Papers”. As referências ao "Essential Peirce" serão feitas pela
numeração relativa ao volume seguida de
uma numeração para as páginas. Por exemplo, "EP2, p.44" significa
que o trecho em questão está na
página 44 do segundo volume do "Essential Peirce".
8
Algumas observações sobre metodologia
O foco deste trabalho é o elemento lógico do sistema filosófico de
Charles S. Peirce. E
por elemento lógico entendemos a estruturação argumentativa da obra
que constitui e
valida as teorias apresentadas pelo filósofo como respostas a
problemas (filosóficos)
estabelecidos internamente, i.e., dentro de seu próprio sistema
filosófico, ou
externamente, i.e., pela tradição. Assim, procuramos organizar toda
a exposição a ser
feita do pensamento peirceano (e também das análises e
interpretações acerca dele) em
torno do que pode ser considerado o problema central da filosofia
de Peirce: a
possibilidade das sínteses (ou, em outros termos, a possibilidade
da ampliação do
conhecimento, de um sistema de crenças). De acordo com Martial
Gueroult (2007
[1957]), considerar que também a atividade filosófica (como a
científica) procura
resolver problemas por meio de teorias é entender a filosofia a
partir da noção de
problemática.
Sendo, como a ciência, um esforço para conhecer e compreender o
real, a
filosofia institui, como ela, uma problemática. Todas as grandes
doutrinas
podem se caracterizar a partir de problemas: problema do uno e do
múltiplo
entre os pré-socráticos; problema da possibilidade da ciência e da
predicação
em Platão; problema das causas primeiras, da demonstração, do
método
geral das ciências da natureza em Aristóteles; problema do
fundamento da
física matemática em Descartes; problema do fundamento da
possibilidade
das ciências e da metafísica como ciência em Kant; problema dos
vínculos
entre a história e o racional em Hegel, etc.
Como a ciência, a filosofia deve, ao instituir problemas,
respondê-los através
de teorias. Ora, toda teoria só é válida na medida em que é
demonstrada. A
demonstração não visa simplesmente que a teoria seja imposta a
outrem,
mas que faça nascer em toda inteligência, incluindo na de seu
protagonista,
a intelecção do problema e de sua solução.
É por isso que o elemento lógico deve assumir em toda filosofia,
não uma
função de tradução (de uma paisagem mental ou de uma intuição), mas
uma
função de validação e até de constituição.
(Gueroult, 2007 [1957], p. 235)
Ao longo de nossa exposição do pensamento peirceano daremos pouca
atenção a fatores
externos ao sistema filosófico como as (denominadas) condicionantes
históricas ainda
que saibamos serem elas relevantes para determinados tipos (bem
habituais) de
abordagem da obra de um filósofo. Da mesma forma, pouca atenção
será dada a outros
tipos de fatores externos como condicionantes pessoais,
psicológicas, culturais, sociais,
etc. . Fortemente inspirados por uma abordagem estruturalista,
consideraremos o texto
peirceano um objeto autônomo, como um conjunto de teses e
movimentos
argumentativos que devem ser subtraídos do tempo histórico e
entendidos dentro de um
tempo lógico (cf. Goldschmidt, 1970 [1949], p. 139). Com isso, não
pretendemos, de
forma alguma, depreciar análises que também levem em conta estes
fatores (que aqui
9
denominamos de) externos. Porém, três motivos podem ser arrolados
para justificar a
desconsideração desses fatores externos na presente tese. Os dois
primeiros motivos são
carências: de espaço e de competência. Em primeiro lugar, como o
leitor notará, a
análise somente de "fatores internos" ao texto peirceano nos tomou
tantas páginas
(centenas delas) que nos falta espaço para desenvolver análises de
qualquer outro tipo.
Em segundo lugar, falta-nos competência para elaborar análises mais
rigorosas (que
valeriam a pena serem publicadas) acerca desses fatores externos
citados. Deixemos
esta tarefa para especialistas (historiadores, psicólogos,
sociólogos, antropólogos, etc.).
O terceiro e mais importante dos motivos é que esta desconsideração
decorre de uma
opção metodológica. Para esclarecer este posicionamento
metodológico é preciso
observar que a sustentação da tese que pretendemos defender depende
de uma
interpretação global do sistema filosófico peirceano (ao menos dos
seus primeiros
desenvolvimentos). Não só a sustentação de nossa tese propriamente
dita, mas também
o estabelecimento de grande parte dos passos intermediários (que
nela desembocam) só
faz sentido a partir de uma interpretação global do sistema
filosófico peirceano. A
afirmação de que "a caracterização do conceito de representação
(interno à teoria
semiótica peirceana) é necessariamente recursiva" só pode ser
justificada na
dependência de algum quadro interpretativo. O que pretendemos, com
esta tese, é
simplesmente oferecer uma interpretação de um conceito central ao
pensamento
peirceano com o objetivo de enxergar o seu papel dentro do sistema
como um todo, ou
seja, sua função na resolução do problema maior da filosofia
peirceana (aquele relativo
às possibilidades das sínteses).
A última observação a ser é feita diz respeito ao modo de expressão
que utilizamos ao
longo da tese. Como o enfoque de nossas análises é o movimento
argumentativo dentro
de textos peirceanos e nossa preocupação está voltada única e
exclusivamente para o
que chamamos de elemento lógico destes textos, os valores que
nortearam a escrita
desta tese são clareza e precisão. Por diversas vezes sacrificamos
o "estilo" e certa
elegância da escrita em nome da clareza e precisão. Por exemplo,
praticamente
abolimos o uso de pronomes (principalmente os pessoais e, nalguns
casos, também os
demonstrativos). Optamos por repetir palavras ou expressões algumas
vezes dentro de
um curto espaço de texto somente para evitar a possibilidade de
ambiguidade que
sempre acompanha o uso de pronomes. Não confiamos ao contexto a
tarefa de fixar
referências (de termos substituídos). Com intuito de garantir que o
sentido captado pelo
leitor seja efetivamente aquele que intencionamos, optamos também
por apresentar
algumas ideias, que julgamos mais relevantes, sob mais de um
aspecto ou sob mais de
uma forma ainda que isso tenha tornado o texto redundante nalguns
trechos. Em nossas
exposições, não faltaram pares de frases que guardam entre si uma
relação de sinonímia
que é marcada pelo uso das seguintes expressões: "ou seja", "i.e.",
"em outras palavras",
"em resumo", etc. Isto aumenta consideravelmente o nível de
redundância de um texto,
mas também cria vias mais seguras para que se possa interpretá-lo.
Todas estas medidas
são desaconselháveis para qualquer pessoa que queira elaborar um
texto que possa ser
lido de forma minimamente agradável. Na verdade, neste texto,
comportamo-nos menos
como escritores e mais como escreventes, escriturários ou
escrivães. Assim, para que
10
não nos alonguemos, o resultado geral é um texto repetitivo e
burocrático. Uma clara
exceção à regra (além deste texto introdutório) são as primeiras
páginas do primeiro
capítulo (e, em menor medida, a última seção do último
capítulo).
11
Semiótica: a respeito das origens
Não é sem a companhia de alguma perturbação que surgem, aos
mortais, questões e
reflexões relativas a origens. A fonte desta perturbação parece ser
o fato de que, quando
se busca um ponto originário corre-se o risco de encontrar a prova
da finitude daquilo
cuja origem foi encontrada. O ponto de fuga da busca pela origem da
espécie humana é
estabelecer, de uma vez por todas, a prova da finitude do homem e a
atribuição de um
caráter histórico a tudo que lhe disser respeito. Entretanto, e
isto soa paradoxal, embora
o questionamento a respeito das origens seja fonte de perturbação,
mais perturbador
ainda é o estado de total desconhecimento das origens. E, seguindo
uma gradação, mais
perturbador do que essa situação de total desconhecimento é o
estado no qual tomamos
conhecimento da impossibilidade de se perguntar sobre as origens
com esperança de
obter alguma resposta minimamente aceitável. Por um lado, se a
busca pelas origens nos
perturba por evidenciar nossos limites, também devemos reconhecer
que ela nos
conforta ao oferecer a possibilidade de algum espaço originário ao
qual podemos
pertencer. Por outro lado, a impossibilidade de se fixar uma origem
não parece ter
nenhuma contraparte confortante, pois ela provoca um sentimento
eterna e
constantemente renovado de desenraizamento. No campo da
epistemologia, um dos
resultados mais notáveis dos argumentos peirceanos (que estão
envolvidos no
estabelecimento de um pensamento propriamente semiótico) é nos
levar a crer que não
é possível se fixar uma origem para os nossos processos de
conhecimento. Não há
fundação possível para nosso sistema de crenças.
É inegável que haja algo de perturbador nos escritos de Peirce. A
filosofia peirceana
possui um componente fortemente aversivo aos brios da civilização,
ao culto da
estabilidade e, no campo da epistemologia, ao enaltecimento da
razão como provedora
de repostas definitivas. Este componente, ao qual nos referimos com
a metáfora um
tanto vaga do fluxo, pode ser responsabilizado por este sentimento
de incômodo. Este
componente seria a marca da impressão de que há algo fora do lugar.
Não pretendemos
nesta tese traçar correlações da filosofia peirceana com processos
da história humana
contados em larga escala de tempo (como a marcha civilizatória que
torna nosso
passado nômade cada vez mais remoto) ou com processos evolutivos
cuja ocorrência se
distribui por um intervalo maior ainda de tempo (como a história
evolutiva que levou
nossos cérebros ao vício da busca por padrões, regularidades,
estabilidade, etc.). Nem
pretendemos, por meio de comparações quase sempre inusitadas,
encaixar Peirce dentro
do clima pós-moderno de fins de século XX: a era do pensamento
mole. Nossas
intenções são bem mais humildes e precisas. Como deve ter ficado
claro já no nosso
texto introdutório, nesta tese, pretendemos apresentar um panorama
do surgimento da
12
semiótica peirceana para dentro dela localizar o conceito de
interpretante, que, de
acordo com nossa interpretação, deve ser correlacionado à noção de
recursividade ou
regra recursiva.
Como veremos, a semiótica e também a epistemologia em torno da qual
ela é construída
têm como um dos principais objetivos sustentar a seguinte tese:
todo processo de
conhecimento que termina por estabelecer alguma crença é sempre
falível e este estado
de crença resultante é sempre provisório. De acordo com as linhas
argumentativas
desenvolvidas por Peirce (e que analisaremos nas próximas centenas
de páginas), o
motivo deste falibilismo é a tese também peirceana de que sempre há
um resíduo de
incerteza contido em qualquer crença que possamos obter. Em linhas
gerais, a semiótica
está inserida num corpo teórico que funciona (dentro do sistema
filosófico peirceano)
como uma retumbante lição de humildade epistemológica. O problema é
que, a partir de
algumas perspectivas mais habituais, esta lição só parece poder ser
assimilada como
uma derrota da razão. Se partirmos do pressuposto que o conjunto de
nossas faculdades
cognitivas deveria nos permitir, em determinadas condições, obter
conhecimento
absoluto acerca do mundo, é óbvio que uma teoria que estabeleça
que, na prática, nosso
conhecimento é provisório e falível deve ser interpretada como uma
derrota da razão.
Os resultados de uma teoria falibilista, neste contexto, são
claramente decepcionantes.
Por isso, não é incomum que sintamos certo incômodo na leitura de
passagens da obra
peirceana. Nos escritos que vamos analisar, notaremos que Peirce
investe grande parte
de sua energia para desmontar estes pressupostos que nos impedem de
aceitar o
falibilismo exceto como um fracasso da razão 5 .
Como estamos numa região introdutória deste texto, esta localização
nos permite um
pouco de liberdade com relação ao modo de expressão. Tentemos
algumas comparações
mais metafóricas para que comecemos a esclarecer por qual motivo os
escritos
peirceanos, ainda que levem a noção de incerteza para dentro da
teoria do
conhecimento, não devem ser lidos como um elogio à incerteza, ao
erro, ou seja, uma
apologética da irracionalidade. Que a espécie humana tenha pavor do
estado de
incerteza nos parece fora de discussão. Prova disso é que nos
últimos tempos, para
cercar o acaso, acuá-lo, dominá-lo, temos inventado enormes
sistemas de previdência
social (que os estados nacionais mal conseguem sustentar) e os mais
incríveis sistemas
privados de seguro e contrasseguro projetados para nos proteger
contra doenças, pestes,
epidemias, roubos, assaltos, sequestros, atentados, acidentes de
trânsito, terremotos,
tsunamis, erupções vulcânicas e qualquer outro evento que pareça
estar nas mãos do
acaso. O combate contra o acaso é permanente e a vitória definitiva
contra a fonte
geradora de incertezas parece ser uma questão de honra para uma
espécie que ostenta
um cérebro tão grande, pesado e caro do ponto de vista evolutivo.
Aprendemos a
5 De acordo com interpretação de Santaella, a concepção de razão
que emerge dos escritos de Peirce é
muito distinta daquela que pode ser encontrada noutros sistemas
propostos por filósofos modernos. Para
Santaella, a concepção peirceana de razão é muito distante daquela
elaborada, por exemplo, no
pensamento hegeliano, uma vez que, para Peirce, não há um ponto de
fuga pré-estabelecido na forma do
Absoluto, mas a mudança é a essência inalienável própria da "razão,
que, sem perder nunca a interação com
os fatos brutos do mundo, está sempre em estado de incompletude,
num processo cujo fim está
permanentemente em aberto" (Santaella, 1994, p. 195).
13
acreditar piamente que foi por isso mesmo que fizemos uma revolução
científica há
algum tempo atrás. As concepções mais instrumentais de ciência
(essas, mais fáceis e
palatáveis, que ensinamos para as crianças nas escolas) nos dizem
que conhecimento
serve para que nos emancipemos da tirania de uma natureza que só é
capaz de evoluir
(aparentemente) de forma lenta e cega, como se caminhasse
lentamente para prolongar
seu deleite dos sabores do acaso. Ao contrário da natureza, temos
pressa e sabemos
onde queremos chegar (ao menos esta é a imagem que temos feito de
nós mesmos).
Como estamos em combate permanente com o estado de incerteza,
entrar num estado no
qual a incerteza é a única constante, ainda que residual, é
perturbador. Para exemplificar
como a constância de um estado de incerteza é perturbadora para
seres humanos,
podemos apresentar um caso proveniente da psicologia. É altamente
desaconselhável
começar com um exemplo de psicologia a sustentação de uma tese que
pretende se
concentrar no elemento lógico da obra de um filósofo que se definia
como lógico (e que
pode ser considerado um dos primeiros a defender uma visão
anti-psicologista da
lógica). Entretanto, as vaguezas contidas nas metáforas, às vezes,
sugerem com
facilidade o que a precisão dos argumentos só parece conseguir
expressar mediante
esforço colossal do intelecto. Além do mais, como afirmamos, a
região do texto em que
nos encontramos nos concede margem para manobras (puramente)
retóricas.
Que se observe ou ao menos que se imagine o espírito em permanente
estado de
perturbação de pais cujos filhos desapareceram nalgumas tragédias
históricas (das quais,
aliás, o século XX esteve repleto) como guerras, ditaduras,
genocídios, etc. Há uma
distância considerável entre constatarmos que uma pessoa está morta
e imaginarmos
que ela o esteja por causa de sua ausência, de seu desaparecimento
em condições que
nos levam a crer que ela esteja morta. É possível que parte da
importância de nossos
ritos fúnebres esteja justamente neste ato de constatação. Ao
contrário da morte
confirmada por alguns de nossos ritos fúnebres, como o enterro ou a
cremação, quando
uma pessoa desaparece em condições que nos levam a crer que ela
esteja morta,
aparentemente nossa imaginação se sente mais à vontade para
alimentar a esperança de
que o desaparecido retorne algum dia. As ditaduras instaladas na
América Latina na
segunda metade do século XX (dentro do contexto da Guerra Fria)
utilizaram o
desaparecimento como estratégia política para controlar setores
mais revoltosos da
população. Por estes dias, sistemática e institucionalmente
torturava-se, matava-se e
privavam-se famílias do direito ancestral de enterrar seus mortos.
Imagine os
pensamentos que "percorrem" de tempos em tempos as circunvoluções
do cérebro de
uma mãe cujo filho desapareceu nestas condições. É de se supor que,
se a esta mãe fosse
dada a oportunidade de ver e enterrar o corpo de seu filho, ela
poderia ter certeza de que
nunca mais voltaria a vê-lo. Porém, sem a materialidade do corpo, é
como se a morte
não se concretizasse para a mente daqueles que conheciam a pessoa
e, assim, o coração,
na contramão da razão, envia para o cérebro mensagens para que este
inclua em seus
cálculos (que projetam cenários e futuros possíveis) a
possibilidade de que aquela
pessoa desaparecida retorne. Por menor que seja (de um ponto de
vista racional), esta
probabilidade parece muito grande toda vez que nela se pensa. Isto
mantém a mente
inquieta. Não há estado de repouso. A fonte de perturbação é
justamente o fato de que
14
esta possibilidade permanece eternamente aberta. O mecanismo que
faz funcionar esta
espécie de tortura continuada está justamente no fato de que esta
porta não parece poder
ser fechada nunca.
Embora seja moralmente execrável, deve-se reconhecer que esta
"estratégia do
desaparecimento" é altamente eficiente para os fins para os quais
foi desenvolvida, a
saber, perpetuar o sofrimento (que é inicialmente apenas) de um
indivíduo para além de
sua morte, atingindo pessoas que lhe são próximas com o intuito de
disseminar o medo
dentro (de alguns setores) de uma sociedade. O princípio
maquiavélico por trás desta
estratégia não é nenhuma novidade: planta-se medo para colher
obediência. De
atrocidades a história humana não carece. O que foi novidade no
século XX foi a escala
em que as atrocidades foram cometidas e o maquinário institucional,
calculadamente
construído pela engenhosa razão humana, para cometê-las, o que
explica a eficiência.
Ainda que tenhamos introduzido este exemplo como um caso de
psicologia, é provável
que a eficiência desta "tortura do desaparecimento" não possa ser
explicada somente por
algumas especificidades, algumas fraquezas da estrutura psíquica
humana, mas este
lamentável sucesso parece residir no fato de tal violência ser
capaz de atingir
coletivamente seres humanos e feri-los numa região muito sensível
do "corpo social":
um direito adquirido tão logo nos tornamos isso que somos. Se
levarmos em
consideração que ritos fúnebres são um dos primeiros traços
comportamentais a nos
distinguir de outros animais e também considerarmos a incontável
quantidade de
camadas simbólicas que viemos sobrepondo durante todos esses
milênios a estes ritos,
notaremos sem muita dificuldade que negar ao homem a oportunidade
de enterrar seus
mortos é um crime cometido contra a espécie (e não somente contra
indivíduos espaço-
temporalmente situados). Esta tortura continuada, esta perturbação
constantemente
renovada é um dos efeitos de longo prazo mais nocivos dessas
ditaduras, espécie de
efeito letal da radiação que vai atravessar gerações. Antes de
abandonarmos este
exemplo, notemos que o que tortura aquela mãe cujo filho
desapareceu (naquelas
condições descritas) é o pensamento renitente acerca da
possibilidade de seu retorno. O
mecanismo responsável pela tortura funciona justamente porque esta
possibilidade é
mantida aberta. É como se a porta da casa dessa família não pudesse
ser fechada. Ela
permanece sempre aberta ou, que seja, entreaberta. Nunca totalmente
fechada.
A perturbação no espírito provocada pela aceitação de algumas teses
peirceanas parece
funcionar segundo este mesmo mecanismo da "porta eternamente
entreaberta". O
incômodo em aceitar a tese de que não há fundação completamente
segura para o
conhecimento humano está no pressuposto de que deveria haver alguma
fundação desse
tipo. Aceitar a tese de que a incerteza é uma espécie de resíduo
irredutível de qualquer
crença só parece desconfortável para aqueles que pressupõem a
possibilidade do
conhecimento certo e seguro. Bem no início de sua carreira
filosófica, uma das
primeiras tarefas às quais Peirce se dedicou (como veremos) foi
questionar estes
pressupostos e provar que era possível estabelecer teorias que
explicassem as faculdades
cognitivas do homem sem recorrer nem sequer à possibilidade de
conhecimento
absolutamente certo e seguro. Um dos primeiros movimentos da
filosofia peirceana é
15
fechar esta porta. Da perspectiva peirceana, enquanto nos movermos
nos interiores de
teorias que nos permitem sistematicamente alimentar a esperança de
alcançar um ponto
originário, uma fundação inabalavelmente segura para o conhecimento
humano, sempre
teremos nosso espírito invadido por um mal-estar toda vez que
percebemos que ainda
não atingimos este ponto. É como se todas as nossas crenças fossem
ilegítimas.
Sentiremo-nos mal toda vez em que percebemos que nossos edifícios
(por mais
imponentes e complexos que sejam) não possuem fundações seguras.
Observada do
ponto de vista de um projeto fundacionalista como aquele defendido
por Descartes nos
primeiros dias da modernidade, a filosofia peirceana é uma
vertigem.
Demos este volteio retórico só para informar que, durante os
primeiros três capítulos
desta primeira parte da tese, vamos tratar das origens da semiótica
no desenvolvimento
do pensamento peirceano. E, como o leitor deve ter percebido,
origem é um tema caro a
Peirce. Pode-se estabelecer como data oficial para o nascimento da
semiótica peirceana
a publicação do artigo "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o
homem". A tese central deste artigo é uma proposição que equaciona
o conceito de
pensamento ao conceito de signo: "todo pensamento é pensamento em
signos" (CP
5.253 [1868]) 6 . Este artigo é o primeiro de uma série de três
textos que compõem o que
os estudiosos da obra peirceana passaram a chamar de "série sobre a
cognição" ou
simplesmente "série cognitiva". Este conjunto de textos constitui
uma estrutura
argumentativa única cujo propósito último é fornecer uma resposta à
pergunta que
Peirce formulou como problema filosófico maior: como são possíveis
as sínteses, como
é possível o raciocínio sintético? Transcrevemos a seguir a
formulação deste problema 7
pelas próprias palavras do filósofo:
De acordo com Kant, a questão central na filosofia é "como são
possíveis os
juízos sintéticos a priori ?" Porém, antes desta pergunta, vem a
questão como
são possíveis os juízos sintéticos, em geral, e de forma mais geral
ainda,
como o raciocínio sintético é possível? Quando a resposta a este
problema
geral tiver sido obtida, aquele problema particular será
comparativamente
mais simples. Este é a fechadura na porta da filosofia.
(CP 5.348 [1868]) 8
Dez anos mais tarde, Peirce volta a tratar este problema como
central.
Ao final do último século, Immanuel Kant levantou a questão "como
são
possíveis os juízos sintéticos a priori ?" Por juízos sintéticos,
ele se referia A
juízos que afirmam fatos positivos e não são questão de mero
arranjo; em
resumo, estes são os juízos do tipo produzido por raciocínio
sintético e que os
raciocínios analíticos não podem produzir. Por juízo a priori, ele
se refere
6 No original: "all thought is in signs". A tradução para o
português que Santaella oferece em suas obras
sobre semiótica peirceana é a seguinte: "todo pensamento se dá em
signos" (cf. Santaella, 1994, p. 44). 7 Este trecho foi retirado do
segundo artigo da série cognitiva.
8 No original: " According to Kant, the central question of
philosophy is "How are synthetical judgments
a priori possible?" But antecedently to this comes the question how
synthetical judgments in general, and
still more generally, how synthetical reasoning is possible at all.
When the answer to the general problem
has been obtained, the particular one will be comparatively simple.
This is the lock upon the door of
philosophy".
16
àqueles juízos que afirmam, por exemplo, que todos os objetos
externos estão
no espaço, todo evento tem uma causa, etc., proposições que, de
acordo com
ele, não podem ser inferidas da experiência. Não tanto por sua
resposta, mas
simplesmente por ter levantado tal questão, toda a filosofia de seu
tempo foi
estilhaçada, destruída e uma nova época na história da filosofia
nasceu.
Entretanto, antes de ter feito tal pergunta, ele deveria ter feito
uma pergunta
mais geral: "Como são possíveis os juízos sintéticos, em geral?"
Como é
possível que um homem possa observar um fato e, em seguida,
pronunciar
um juízo a respeito de outro (distinto) fato que não esteja
envolvido no
primeiro? Este é um paradoxo estranho. O abade Gratry afirma ser
um
milagre; e que toda indução verdadeira é uma inspiração imediata
das alturas.
Respeito esta explicação muito mais que outras tentativas pedantes
de
resolver a questão a partir de malabarismos com probabilidades, com
formas
de silogismos, o que deixa de ser. Respeito porque esta explicação
demonstra
uma apreciação da profundidade do problema, porque ela atribui uma
causa
adequada e também porque ela está intimamente concectada como
uma
verdadeira explicação deve estar com uma filosofia geral do
universo. Ao
mesmo tempo, não aceito este tipo de explicação, pois uma
explicação deve
nos revelar como algo é feito, e afirmar a existência de um milagre
perpétuo
parece ser um abandono de toda esperança de fazer isso [revelar
como algo é
feito], sem justificativas que sejam suficientes.
(CP 1.690 [1878]) 9
A semiótica nasce associada a uma teoria da cognição que foi
apresentada por Peirce
como uma alternativa às teorias epistemológicas que, ao recorrerem
ao conceito de
intuição, tornam-se incapazes de fornecer uma explicação aceitável
a respeito do
funcionamento e da possibilidade do raciocínio sintético. Construir
um corpo teórico
livre (ou quase livre) do conceito de intuição custou a Peirce
algumas dezenas de
páginas de paciente análise e minuciosa desconstrução dos
posicionamentos
epistemológicos dominantes na filosofia moderna, aos quais se
referia com a rubrica
"cartesianismo" ou "espírito do cartesianismo", e custou-lhe também
um esforço
descomunal para operar um deslocamento de perspectiva que o
permitisse explicar
9 No original: Late in the last century, Immanuel Kant asked the
question, "How are synthetical
judgments a priori possible?" By synthetical judgments he meant
such as assert positive fact and are not
mere affairs of arrangement; in short, judgments of the kind which
synthetical reasoning produces, and
which analytic reasoning cannot yield. By a priori judgments he
meant such as that all outward objects
are in space, every event has a cause, etc., propositions which
according to him can never be inferred
from experience. Not so much by his answer to this question as by
the mere asking of it, the current
philosophy of that time was shattered and destroyed, and a new
epoch in its history was begun. But before
asking that question he ought to have asked the more general one,
"How are any synthetical judgments at
all possible?" How is it that a man can observe one fact and
straightway pronounce judgment concerning
another different fact not involved in the first? Such reasoning,
as we have seen, has, at least in the usual
sense of the phrase, no definite probability; how, then, can it add
to our knowledge? This is a strange
paradox; the Abbe Gratry says it is a miracle, and that every true
induction is an immediate inspiration
from on high. I respect this explanation far more than many a
pedantic attempt to solve the question by
some juggle with probabilities, with the forms of syllogism, or
what not. I respect it because it shows an
appreciation of the depth of the problem, because it assigns an
adequate cause, and because it is
intimately connected--as the true account should be--with a general
philosophy of the universe. At the
same time, I do not accept this explanation, because an explanation
should tell how a thing is done, and to
assert a perpetual miracle seems to be an abandonment of all hope
of doing that, without sufficient
justification" (trecho retirado de um capítulo do Lógica crítica
[critical logic]; sétimo capítulo, intitulado a
probabildiade da indução [the probability of induction]).
17
todas as faculdades cognoscitivas que as teorias adversárias
explicavam e ainda explicar
aquilo que, de acordo com sua crítica, os recursos conceituais das
teorias adversárias
tornavam inexplicável: a possibilidade de síntese 10
.
De forma bem geral, a semiótica pode ser entendida como um aparato
conceitual que
tornou possível esse deslocamento de perspectiva. Uma teoria da
cognição baseada no
conceito de signo (e não no conceito de intuição) é uma teoria que
explica a ligação
entre (a abstração na mente de) o sujeito cognoscente e o objeto
como uma relação
sígnica, uma relação de representação, portanto uma relação
indireta. Como
pretendemos demonstrar nas próximas centenas de páginas, é
justamente esta teoria
semiótica da cognição (cuja tese central é o equacionamento entre o
conceito de
pensamento e o conceito de signo) que permite a Peirce encontrar
uma solução para o
problema do raciocínio sintético. Entretanto, para poder enunciar
sua solução para tal
problema, Peirce reorganizou as posições das peças do jogo
epistemológico redefinindo
algumas das funções de cada uma delas. Quase nenhum conceito
relevante do campo
epistemológico passou incólume a decisão peirceana de se lançar
numa cruzada contra
as epistemologias de base intuicionista e de se propor a erigir uma
teoria sobre base
diversa. Dentro deste quadro teórico e em consequência de sua tese
central, Peirce
precisou propor alterações (às vezes, drásticas e profundas) em
conceitos como o de
sujeito cognoscente, objeto, verdade, realidade, pensamento,
consciência, etc. As
consequências do estabelecimento de uma teoria semiótica da
cognição são
apresentadas nos dois outros artigos que compõem a série cognitiva:
"Algumas
consequências das quatro incapacidades" ("Some Consequences of Four
Incapacities"),
publicado em 1868; e "Fundamentos da validade das leis da lógica:
outras
consequências das quatro incapacidades" ("Grounds of Validity of
the Laws of Logic:
Further Consequences of Four Incapacities"), publicado em
1869.
Neste terceiro artigo ("Fundamentos da validade das leis da lógica:
outras
consequências das quatro incapacidades"), Peirce defende uma teoria
acerca dos
raciocínios ampliativos (o que inclui, para a filosofia peirceana,
uma teoria da indução e
10
Esta versão da história do desenvolvimento da semiótica no
pensamento peirceano que apresentamos
neste capítulo ignora uma espécie de "pré-história" da semiótica
(na filosofia antiga e medieval). Na
verdade, de acordo com alguns historiadores, a semiótica nasce,de
fato, como doutrina dos signos, no
pensamento escolástico. Com relação a este período de gestação da
doutrina dos signos no ventre do
pensamento escolástico, podemos indicar dois livros do semioticista
norte-americano John Deely:
“Introdução à semiótica – História e Doutrina” (1995) e “Semiótica
básica” (1990). Deely tem realizado
há décadas um admirável esforço para trazer à luz uma época, por
ele e por outros (cf. Randall apud
Deely, 1995, p.59), considerada como o “período menos conhecido da
história da filosofia ocidental”.
Esta “terra incognita” vai de 1350 (ano da morte de Guilherme de
Ockham – que representa um dos
pontos culminantes da filosofia escolástica [latina] e é um dos
últimos pensadores considerados pela
historiografia oficial como filosoficamente relevante) até 1650
(ano da morte de Descartes – pensador
pós-latino e “pai” da filosofia moderna). São nestas terras que são
plantadas, de acordo com as pesquisas
e os levantamentos históricos realizados por Deely, as primeiras
sementes de um pensamento
propriamente semiótico. Em outros textos (1986, p.5), o
semioticista trata este período como aquele que
favoreceu um lento processo de coalescência da consciência
semiótica embora tenha sido apenas na
passagem entre os séculos XIX e XX que Peirce obteve uma visão
geral e sistêmica do território da
semiótica (em toda a sua extensão e capacidade revolucionária de
constituir-se num novo início para toda
a empresa da filosofia [1995, p.79 e 1986, p.16]). Não lhe faltaram
motivos, como veremos, para
denominar a compreensão peirceana da semiótica de “A Grande Visão”
(Deely, 1996, p. 45).
18
da hipótese) segundo a qual o raciocínio indutivo pode ter sua
validade fundamentada se
for observada uma condicionante básica: tal raciocínio deve ser
aplicado por um tempo
indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de
pesquisadores. Esta solução
oferecida ao que considera ser o problema maior da filosofia, só se
torna disponível a
partir de duas reformulações conceituais efetuadas no segundo dos
artigos da série
("Algumas consequências das quatro incapacidades"). A primeira
dessas reformulações
conceituais é aquela que torna o sujeito cognoscente uma espécie de
sujeito coletivo ao
substituir a noção de indivíduo por uma noção de comunidade
indefinida de
pesquisadores e a segunda delas é a reformulação do conceito de
realidade, que passa a
ser um ser in futuro, i.e., um ponto de convergência ao qual tendem
todas as linhas de
investigação levadas a cabo por aquela comunidade indefinida de
pesquisadores. Como
todas essas teorias estão encaixadas dentro de uma estrutura única
de argumentação que
tem o objetivo de fornecer uma resposta para o problema dos
raciocínios ampliativos ou
sintéticos, estas reformulações (do conceito de sujeito cognoscente
e de realidade) são
consequências diretas da teoria da cognição defendida no primeiro
artigo da série
("Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o
homem"). Assim,
podemos resumir da seguinte forma esta estrutura única de
argumentação por trás dos
artigos que compõem a série cognitiva: a teoria peirceana sobre a
fundamentação das
leis da lógica e, em particular, sua teoria acerca dos raciocínios
ampliativos (i.e.
sintéticos), apresentadas no terceiro artigo da série, são uma
consequência da teoria
peirceana da realidade, apresentada no segundo artigo; esta última,
por sua vez, é uma
consequência da teoria peirceana da cognição, elaborada,
principalmente, no primeiro
artigo da série (mas que também foi desenvolvida no segundo
artigo).
Portanto, a semiótica surge dentro do quadro teórico da série
cognitiva como uma
espécie de teoria generalizada das representações elaborada com o
intuito de explicar
como são possíveis as sínteses (como é possível o raciocínio
sintético em geral). O
cerne da explicação fornecida por Peirce nestes três textos é que a
síntese depende de
um processo de representação que possui uma estrutura na qual entra
certo número de
elementos indispensáveis para que o mecanismo de síntese funcione
adequadamente.
Tanto a estrutura desse processo de representação (o mecanismo que
lhe é subjacente)
como quantos e quais eram seus elementos tinham sido descritos por
Peirce num artigo
intitulado "Sobre uma nova lista de categorias" ("On a New List of
Categories"),
publicado no ano de 1867 no Proceedings of the American Academy of
Arts and
Sciences. Neste artigo, Peirce apresenta sua teoria de categorias
(que são conceitos
universais presentes em toda experiência) e, a partir destas,
consegue estabelecer a
estrutura triádica do signo (ou do processo representativo) e,
assim, fixar o papel de
cada um de seus elementos durante o processo de representação. É
justamente neste
artigo que Peirce consegue atingir uma definição formal e precisa
do terceiro elemento
do signo, o interpretante, o que o permite descrever o mecanismo de
representação que,
de sua perspectiva teórica, é capaz de explicar o funcionamento das
sínteses (do
raciocínio sintético). Portanto, a partir da teoria exposta neste
artigo, Peirce tem à sua
disposição aquele maquinário conceitual (os princípios básicos ou,
ao menos, o
mecanismo do conceito básico de sua semiótica [que é a ideia de
representação]) que
19
será mobilizado durante a série cognitiva para fornecer uma
resposta ao problema
filosófico das sínteses. Ainda que consideremos que o nascimento
oficial da semiótica
peirceana seja a enunciação da tese central do primeiro artigo da
série cognitiva, não se
pode deixar de notar que já estava presente em escritos muito
anteriores e acabou por
tomar forma (praticamente definitiva 11
) na teoria das categorias o mecanismo sígnico ou
representacional pelo qual a semiótica, em geral, e o conceito de
signo, em particular,
viriam a se tornar ferramentas teóricas indispensáveis para se
explicar as faculdades
cognoscitivas e, ao mesmo tempo e em última instância, tornar
possível a validação do
raciocínio ampliativo ou sintético.
Já no ano de 1865, quando é convidado para uma série de palestras
em Harvard (W1;
165-301), Peirce, em meio a reflexões sobre Kant, Boole, Mill e
também sobre os
fundamentos da indução, dedica um considerável espaço para marcar
enfaticamente
posição contra uma visão psicologista da lógica e propor que a
lógica fosse entendida
como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169
[1865]). É neste
contexto que Peirce toma emprestado o termo "semiótica", cunhado
por Locke no
"Ensaio sobre o entendimento humano" (obra publicada 1690) 12
. Nestas palestras, já
aparecem as primeiras classificações sígnicas (cf., por exemplo,
W1; 237 [1865]) e
alguns temas fundamentais para o pensamento peirceano que
posteriormente seriam
englobados pela semiótica, como a tese a respeito do crescimento
dos símbolos (que é o
modo como Peirce trata o problema da ampliação de um sistema de
conhecimento). Por
exemplo, ainda nestas palestras ministradas