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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Gustavo Rick Amaral
Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem Peirce
DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em
TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL
sob a orientação do Professor Doutor Winfried Nöth.
SÃO PAULO
2014
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
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_____________________________________
_____________________________________
Este trabalho é dedicado a Paula Salazar,
exemplo de força e vida
Agradecimentos
Ao professor e orientador Winfried Nöth,
pelo rigor germânico e por ser um orientador "padrão Fifa"
(no"país da CBF")
À professora Lucia Santaella,
por ter me apresentado e me guiado pela densa selva dos
escritos peirceanos e especificamente por ter elaborado, ao
longo de trinta anos, uma abordagem à semiótica de Peirce
que criou um norte para esta pesquisa
Ao professor Edélcio Gonçalves de Souza,
cujas aulas e seminários a respeito de lógica e teoria de
conjuntos tornaram possível parte considerável das análises
desenvolvidas nesta pesquisa
Ao professor Jorge de Albuquerque Vieira,
pela magnificência com a qual consegue formar pontes sobre
o abismo que separa a mentalidade reinante na área "das
exatas" daquela que reina na área "das humanas"
A Paula Salazar,
pela paciência, companhia e apoio ao longo desses quatro
anos de pesquisa e, sobretudo, pelo exemplo de superação e
coragem oferecido a todos que testemunharam sua vitória
contra uma das maiores adversidades que um ser humano pode
encontrar nesta vida.
À família que deixei em Brasília,
minha mãe, meu pai e meu irmão,
sempre presentes mesmo estando longe.
À família que me acolheu quando cheguei na “cidade grande”
Tia Rosa, Manu e Maurício,
Aos amigos de Brasília,
que sempre nos obrigam a pensar diversas vezes em
retornar à cidade natal.
Aos amigos de São Paulo,
principalmente, Marcelo Santos e Tarcísio Cardoso,
por ainda terem, depois de alguns anos, paciência
para ouvir minhas divagações teóricas.
E também à Poliana e ao Caio.
Aos Gatos,
Chico Legi, Branquinha, Amelie, Zuzu, Toninho,
Lechuga e Maria Eduarda,
pela inseparável companhia.
Devo agradecer ainda ao corpo docente do TIDD
Um agradecimento especial a Edna, pela infinita paciência e presteza, e à CAPES, pela concessão da
bolsa de estudos.
Palavras-chave: representação, recursividade, interpretante, cognição, semiótica, Peirce.
Resumo: Esta tese versa sobre o tipo de definição ou caracterização que Peirce utilizou
para construir um conceito central dentro de sua semiótica: o conceito de representação.
As análises que foram desenvolvidas para sustentar esta tese se limitam aos escritos
peirceanos do final da década de 1860, época em que o pensamento de Peirce começa a
se afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos próprios. O foco de toda a pesquisa
realizada para a sustentação desta tese é o elemento lógico do sistema filosófico de
Charles S. Peirce, i.e., a estruturação argumentativa desenvolvida pelo filósofo para
validar as teorias que são oferecidas como respostas a problemas filosóficos.
De modo diverso das abordagens diádicas desenvolvidas para explicar o funcionamento
de um processo de representação, a concepção de representação elaborada por Peirce
dentro da semiótica é triádica e esta diferença está longe de ser meramente numérica.
Nossa tese é que, com a introdução desse terceiro elemento (o interpretante), a
caracterização do conceito de representação (elaborado dentro da semiótica peirceana)
torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterização é uma exigência interna
da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou ser o problema
central da filosofia: como são possíveis os raciocínios sintéticos (i.e., ampliativos) ou,
sob outro ângulo, como é possível haver crescimento do conhecimento?
Com intuito de provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade deste tipo de
caracterização conceitual dentro do projeto filosófico peirceano, dedicamos parte
considerável deste texto à tarefa de estabelecer não apenas que a semiótica é central
para tal projeto, mas também estabelecer que algumas teses centrais dentro da semiótica
são decorrência direta do fato do conceito de representação ter sido definido ou
caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais foram denominadas de teses
elementares da semiótica: "não há primeiro signo (num processo interpretativo)" e
"não há último signo (num processo interpretativo)". Então, para que seja sustentável a
solução teórica encontrada por Peirce para o (que considera o) problema central da
filosofia, estas duas teses elementares acima referidas têm que ser estabelecidas dentro
da teoria semiótica (desenvolvida pelo próprio Peirce), e o estabelecimento destas teses
depende da recursividade que é encontrada dentro da concepção de signo ou de
processo representativo (e é introduzida pelo conceito de interpretante). Portanto, a
nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do conceito de representação
que está no coração do conceito de signo da semiótica peirceana é necessariamente
recursiva, pois sem esta recursividade, simplesmente não seria possível derivar as duas
teses elementares da semiótica.
Key words: Representation, recursion, interpretant, cognition, semiotics, Peirce.
Abstract: This thesis addresses the type of definition or characterisation used by Peirce
to formulate a central concept within his semiotics: the concept of representation.
Analyses carried out to support this thesis are limited to Peirce's texts from the end of
the 1860s, an era in which Peirce's thinking begins to detach itself from his Kantian
matrix and take on its own features. The focus of all research conducted in support of
this thesis is the logical element of Charles S. Peirce’s philosophical system, i.e. the
argumentative structuring developed by the philosopher to validate the theories offered
as responses to philosophical problems.
Differently from dyadic approaches developed to explain the workings of a
representation process, the conception of representation elaborated by Peirce within
semiotics is triadic and such difference is far from merely numerical. Our thesis is that,
with the introduction of this third element (the interpretant), characterisation of the
concept of representation (elaborated within Peircean semiotics) becomes recursive by
necessity and such characterisation is an in-built requirement of the theory that Peirce
intends to offer as an answer to what he considered to be the central issue of
philosophy: how is synthetic (i.e. ampliative) reasoning possible or, from another angle,
how is it possible for knowledge to grow?
With a view to proving our thesis in respect of the necessity for this type of conceptual
characterisation within the Peircean philosophical project, we have dedicated a
significant part of this text to the task of establishing not only that semiotics is central to
such a project, but also to demonstrating that some central semiotic theses are a direct
result of the fact that the concept of representation has been defined or characterised in a
recursive manner. These central theses were termed elementary theses (of semiotics):
"there is no first sign (in an interpretative process)" and “there is no last sign (in an
interpretative process)". Therefore, to render the theoretical solution found by Peirce
sustainable for the (what he considered to be) central issue of philosophy, the two
elementary theses referred to above must be established within semiotic theory
(developed by Peirce himself), and their establishment depends on the recursion found
within the concept of a sign or of a representative process (and introduced by the
concept of interpretant). Our thesis is, therefore, precisely that the characterisation or
definition of the concept of representation at the heart of the Peircean semiotics sign
concept is necessarily recursive, because without such recursion it would simply be
impossible to derive the two elementary theses of semiotics.
SUMÁRIO
Introdução Geral......................................................................................................................................... 2
CAPÍTULO 1 - Semiótica: a respeito das origens................................................................................. 11
CAPÍTULO 2 - Lógica e as raízes da semiótica..................................................................................... 23
2.1 - Síntese: de Hume a Kant............................................................................ ............................. 27
2.2 - Sinai: de Kant a Peirce............................................................................................................ 42
2.3 - Síntese: a distância entre Kant e Peirce................................................................................... 52
CAPÍTULO 3 - O problema das fundações............................................................................................ 58
3.1 - O projeto cartesiano da fundação última do conhecimento físico-matemático....................... 61
3.2 - A impossibilidade do projeto das fundações seguras.............................................................. 80
3.3 - Um modelo lógico da mente.................................................................................... ............... 87
CAPÍTULO 4 - Introdução à análise do texto "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem" (QFCM) e análise da primeira questão............................................ 97
4.1 Análise (da primeira parte) da Q1: Sobre a capacidade intuitiva de distinguir intuições........ 104
4.2 Análise (da segunda parte) da Q1: sobre a capacidade intuitiva de distinguir intuições......... 129
CAPÍTULO 5 - Análise da segunda e da terceira questões do texto "Questões concernentes a certas
faculdades reivindicadas para o homem"............................................................................................. 147
5.1 Análise da Q2: sobre a autoconsciência intuitiva................................................................. ... 148
5.2 Análise da Q3: sobre elementos subjetivos de diferentes tipos de cognições......................... 168
CAPÍTULO 6 - Análise da quarta questão do texto "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 180
6.1 Análise da Q4: sobre a capacidade de introspecção................................................................ 181
6.2 Excurso: o problema do segundo tipo de intuição.................................................................. 194
CAPÍTULO 7 - Análise da quinta questão do texto "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 208
7.1 Análise (da primeira parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar sem signos........................ 209
7.2 Análise (da segunda parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar sem signos......................... 225
CAPÍTULO 8 - Análise da sexta e da sétima questões do texto "Questões concernentes a certas
faculdades reivindicadas para o homem"............................................................................................. 236
8.1 Análise da Q6: sobre o significado do incognoscível.............................................................. 237
8.2 Análise da Q7: sobre as origens.................................................................. ............................ 247
CAPÍTULO 9 - Resultados da análise do texto "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 273
9.1 Primeiro movimento argumentativo geral do QFCM: o estabelecimento da tese-base da
semiótica......................................................................................................................................276
9.2 Segundo movimento argumentativo geral do QFCM: o estabelecimento da tese a respeito das
origens do processo cognitivo......................................................................................................290
CAPÍTULO 10 - Análise do texto "Sobre uma nova lista de categorias" (ONLC).......................... 298
10.1 Primeira parte da análise do ONLC: conceitos-chave........................................................... 302
10.2 Segunda parte da análise do ONLC: método de exposição hipotético-construtivo.............. 316
10.3 Terceira parte da análise do ONLC: método de exposição hipotético-desconstrutivo.......... 320
10.4 Quarta parte da análise do ONLC: a síntese no contexto argumentativo.............................. 327
CAPÍTULO 11 - Análise da definição de interpretante dentro do texto "Sobre uma nova lista de
categorias" (ONLC).................................................................................................................. .............. 335
11.1 A primeira definição de Interpretante dentro do modelo triádico de signo........................... 337
11.2 Análise dos exemplos que acompanham a primeira definição de Interpretante dentro do
modelo triádico de signo................................................................................................................ 340
11.3 Excurso: alguns modelos de interpretação do conceito peirceano de representação............. 353
CAPÍTULO 12 - Interpretante e recursividade................................................................................... 357
12.1 Análise do trecho de Savan a respeito da relação entre interpretante e recursividade...........359
12.2 A caracterização recursiva do conceito de representação na semiótica peirceana.................368
12.3 Recursividade e a sétima questão do QFCM..........................................................................377
CAPÍTULO 13 - Recursividade e a concepção de representação como fluxo................................... 385
13.1 As teses elementares da semiótica..........................................................................................387
13.2 A recursividade como condição necessária............................................................................403
13.3 A Hipótese da prisão linguística.............................................................................................413
Considerações finais ............................................................................................................................... 434
Referências............................................................................................................................................... 441
2
Introdução Geral
A ideia de representação na semiótica peirceana
Precisamente, esta tese de doutorado trata do tipo de definição ou caracterização que
Peirce utilizou para construir um conceito central na sua teoria semiótica: o conceito de
representação. Nossa tese é que, com a introdução do terceiro elemento (denominado
interpretante) na definição peirceana de signo, a caracterização do conceito de
representação torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterização é uma
exigência interna da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou
ser o problema central da filosofia: como são possíveis os raciocínios sintéticos (i.e.,
ampliativos) ou, sob outro ângulo, como é possível haver crescimento do conhecimento?
O que pretendemos provar nas próximas centenas de páginas é que esta caracterização
recursiva é uma condição necessária para a sustentação do projeto filosófico elaborado
pelo jovem Peirce na década de 1860, época em que o pensamento peirceano começa a se
afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos próprios. Portanto, as análises e
argumentos que desenvolveremos a seguir recobrem apenas a fase inicial da construção
do sistema filosófico peirceano, embora acreditemos que as principais teses defendidas no
interior da semiótica bem como esta caracterização recursiva da representação são
elementos essenciais ao pensamento semiótico de Peirce, o que nos leva a acreditar (sem
obviamente poder estabelecer [nesta tese] este ponto) que tais elementos permaneceram
sob todas as reformulações às quais o próprio Peirce submeteu seu sistema filosófico ao
longo do tempo1. A estrutura geral e os principais componentes deste projeto filosófico
elaborado pelo jovem Peirce na década de 1860 serão apresentados no primeiro capítulo.
Nossa tese central pode ser expressa da seguinte forma:
TESE de Doutorado - A caracterização do conceito de representação (interno
à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva.
As descrições de Peirce sobre processos de significação e as definições de signo2
invariavelmente incluem três elementos: o signo (propriamente dito), o objeto e o
1 Esta tese à qual aludimos (sem querer alimentar a esperança no leitor de que teremos a oportunidade de
defendê-la) afirma apenas que algumas teses e algumas características da teoria semiótica elaborada ao final
da década de 1860 não foram alteradas em versões posteriores. Isto é muito diferente de afirmar que não
houve mudança alguma na semiótica e mesmo na filosofia peirceana (ao longo da carreira de Peirce). Por
exemplo, é de conhecimento até do reino mineral que, entre o período de 1870 - 1885, Peirce desenvolveu
um novo aparato para análise lógica que passou a chamar de "lógica dos relativos" (que consiste justamente
na introdução do uso de quantificadores e variáveis ligadas na análise lógica e seria equivalente ao que hoje
entendemos por lógica de primeira ordem). Este novo aparato teve um impacto considerável, pois é a partir
dele que Peirce reorganiza seu sistema de categorias (que está na base de seu sistema filosófico). 2 Como veremos no décimo segundo capítulo, há um interminável debate entre os estudiosos da obra
peirceana se, de fato, Peirce denominou de signo a relação triádica como um todo (i.e., a relação entre
3
interpretante. Em termos gerais, o signo é um conceito que Peirce utiliza para descrever
um processo representacional em que um primeiro elemento (o signo propriamente
dito), para representar um segundo elemento (o objeto da representação), deve
necessariamente produzir um terceiro elemento (denominado de interpretante) que
possui função mediadora. A recursividade essencial a este modo de explicar o
funcionamento de um processo de representação está no modo como este terceiro
elemento é definido. Como, para haver representação entre os dois primeiros elementos,
é necessário que o terceiro elemento entre em cena e este terceiro elemento é ele mesmo
uma representação (um novo primeiro elemento, ou seja, um novo signo), então ele
deve necessariamente produzir um quarto elemento (i.e., um novo terceiro elemento, ou
seja, um novo interpretante) e assim por diante. O modo recursivo como foi definido o
terceiro elemento do signo cria, dentro da semiótica, uma noção de sequência ou
processo. Como veremos, uma sequência de interpretantes ou um processo
interpretativo. O conceito de representação, dentro da semiótica peirceana, é captado
por esta noção de sequência ou processo interpretativo (introduzida na teoria pelo
terceiro elemento acima mencionado). A nossa tese central é que a noção geral de
recursividade é fundamental não apenas para os campos da matemática, da lógica e,
mais recentemente, da computação, mas também para a semiótica (no caso, peirceana).
A ideia de correlacionar este conceito peirceano de interpretante com o conceito de
recursividade nos foi sugerida por uma breve passagem de um texto de David Savan3.
Nesta passagem, Savan afirma que o "o que há de característico de quase todas
definições peirceanas de interpretante (...) é que o terceiro relatum é uma instância ou
uma réplica de uma regra de recursão" (Savan, 1986, p. 133). A definição de
recursividade da qual Savan lança mão para esclarecer o que Peirce entende por
interpretante está presente no livro "Mathematical logic" do filósofo e lógico norte-
americano W. Quine. Na verdade, no trecho do livro de Quine, citado por Savan,
encontramos uma definição do que é uma definição recursiva ou uma caracterização
recursiva de um conceito. De acordo com a definição fornecida por Quine,
"qualquer noção geral que é resolvida numa sequência infinita de casos especiais é dita
recursivamente caracterizada quando explicamos o primeiro caso e adicionamos uma
regra geral que descreva (i+1)-ésimo caso, para cada i, em termos dos primeiros i casos"
(Quine, 1981, p. 86). Vejamos um exemplo para que esta noção de recursividade se
torne mais palpável.
Na verdade, não tão palpável assim, uma vez que escolhemos um exemplo proveniente
do campo da matemática mesmo sabendo que, com isso, devemos perder nas próximas
signo, objeto e interpretante) ou ele apenas reservou o termo "signo" para se referir à primeira posição
dentro dessa relação triádica. 3 Como veremos com mais detalhes no caítulo 12, na época em que Peirce estava lançando os
fundamentos de sua semiótica (ao final da década de 1860), o conceito de recurisividade ainda não havia
sido plenamente desenvolvido e definido de forma precisa, embora os lógicos e matemáticos deste
período já tivessem alguma noção (ainda que vaga) do procedimento de recursividade. De acordo com
Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, o próprio Peirce parece ter sido o responsável pela primeira definição
recursiva que se tem notícia sem, no entanto, ter estabelecido formalmente o que vem ser uma definição
recursiva (cf. Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, 1973, p. 299)
4
linhas parte de nossos leitores. Na matemática, o fatorial de um número qualquer é uma
certa operação definida como o produto de todos os números que sejam iguais ou
menores que o número em questão. Esta operação é representada pelo símbolo " ! ".
Assim, o fatorial de um número n é representado como n! e o resultado desta operação é
" n x (n - 1)! ", ou seja, o valor resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n
é o número n multiplicado pelo fatorial de seu antecessor. Por exemplo, para que
saibamos o resultado do fatorial do número 3 é necessário que calculemos o seguinte
produto: 3 x 2 x 1. Obviamente, o resultado da operação 3! é 6.
Como acreditamos que esta operação já esteja minimamente esclarecida, passemos a fazer
algumas observações sobre o modo como ela foi definida, que é o ponto que efetivamente
nos interessa neste texto introdutório. No parágrafo anterior, afirmamos que o valor
resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n é o número n multiplicado pelo
fatorial de seu antecessor, ou seja, o resultado da operação n! é n x (n - 1)! . Isto significa
que o resultado desta operação depende do resultado desta mesma operação para um caso
anterior. A ideia de recursividade está presente justamente no fato desta operação recorrer
à uma referência a ela mesma para poder ser definida. A definição não é circular, como
veremos, pois esta recorrência é sempre efetuada para um caso anterior da aplicação da
operação definida. Este caso anterior é dado por uma sequência.
Podemos apresentar esta definição ou caracterização recursiva da operação fatorial com
apenas duas cláusulas. As duas cláusulas ou regras que compõem esta definição
recursiva funcionam como um algoritmo que serve para que encontremos o resultado da
operação fatorial aplicada sobre algum número específico.
Caracterização recursiva da operação fatorial
Cláusula n°1 (cláusula base) --> Se o número (diante do símbolo que representa a
operação fatorial) for menor ou igual a 1, então o valor da operação fatorial é 1.
Cláusula n°2 (regra geral) --> Caso o número (diante do símbolo que representa a
operação fatorial) tenha outro valor que não seja menor ou igual a 1, então o
valor da operação fatorial é o valor do número multiplicado pelo valor da
operação fatorial aplicada sobre o antecessor deste número.
Por exemplo, calculemos a operação 4! . O primeiro passo é olhar para o número que
está na frente símbolo que representa a operação fatorial. Neste caso é o número 4.
Vejamos se devemos aplicar a este número a primeira ou segunda cláusula. Não é difícil
perceber que não podemos aplicar a primeira delas, pois a condicionante desta cláusula
nos diz que ela só deve ser aplicada a números que forem menores ou iguais a 1.
Obviamente o 4 não cumpre esta condicionante. Assim, temos que nos encaminhar para
a segunda cláusula (uma vez que o número tem um valor que não igual nem menor que
1). De acordo com a segunda cláusula, devemos pegar o número 4 e multiplicá-lo pelo
resultado da operação fatorial aplicada sobre aquele número que antecede o número 4.
5
Ora, o número que antecede ao número 4 é o número 3. Logo, o que a segunda cláusula
nos pede para fazer é multiplicar o número 4 pelo resultado da operação fatorial
aplicada sobre o número 3. Em símbolos, o que a segunda cláusula nos solicita fazer é
encontrar o valor de 4 x 3! . Isto significa que, para encontrarmos o valor de 4!, é
preciso, antes, encontrar o valor de 3!. E de onde vamos tirar o resultado da operação
fatorial 3! ? Simples, basta que apliquemos a esta operação a segunda cláusula (uma vez
que, como o número 3 não é menor ou igual a 1, então ele também não cumpre a
condicionante da primeira cláusula). Aplicar a segunda cláusula significa isolar o
número 3 e multiplicá-lo pelo resultado da operação fatorial aplicada sobre o seu
antecessor, que é o número 2. Então, o que temos é que o valor de 3! é dado pela
operação 3 x 2! . E, assim, estamos diante de outro fatorial: a operação 2! . Mais uma
vez, perguntemo-nos o que pode ser feito para encontrar o valor de 2! ? Claro está que
devemos aplicar a segunda cláusula novamente, pois o número 2, como o 3 e o 4,
também não cumpre a condicionante expressa na primeira cláusula. Ao aplicar a
segunda cláusula ao número 2, descobrimos que o valor de 2! é 2 x 1! (pois o número q
é o antecessor de 2). E isto nos põe novamente diante de outro fatorial: a operação 1!.
Entretanto, esta é a última delas, pois, pela primeira vez, estamos diante de uma
operação fatorial feita sobre um número que é igual ou menor que 1. Isto significa que
está cumprida a condição para aplicarmos a primeira cláusula. Logo, o valor de 1! é 1.
Note que, ao contrário de todos os outros passos anteriores esta operação ( 1! ) não nos
apresentou como resultado outro fatorial.
Revisemos nossos passos. Começamos nos perguntando pelo valor de 4! . Descobrimos
que 4! = 4 x 3! . Então nos perguntamos pelo valor de 3! e descobrimos que 3! = 3 x 2! .
Com isso, sabemos que o valor de 4! é, na verdade, 4 x 3 x 2! . Porém, o valor de 2! é 2
x 1! . Logo, o valor de 4! é 4 x 3 x 2 x 1! . Mas, deve-se recordar que o valor de 1! (pela
primeira cláusula) é 1. Assim, o que temos é que 4! tem como valor o resultado da
seguinte multiplicação: 4 x 3 x 2 x 1 . Logo, o valor de 4! é 24.
Por qual motivo esta definição apresentada da operação fatorial é denominada
recursiva? A recursividade está justamente no fato de que, segundo esta definição, para
saber o resultado da aplicação desta operação sobre um número n temos que recorrer ao
resultado desta mesma operação aplicada sobre o antecessor do número n (i.e., o número
n - 1) e esta recorrência é feita até que se atinja um ponto de parada. Da mesma forma,
as definições que Peirce oferece de signo também possuem tal noção geral de
recursividade. Na semiótica, conforme a sugestão de Savan (que citamos acima), a
recursividade fica patente na definição do terceiro elemento do signo, o interpretante. O
terceiro elemento possui um papel de mediação essencial em qualquer processo de
representação. Para haver representação, deve sempre haver produção de interpretante.
Dentro dos limites da semiótica peirceana, uma coisa não pode representar outra sem
produzir um interpretante, i.e., sem recorrer a um terceiro elemento mediador. Um signo
A apenas pode representar um objeto B caso seja produzido um interpretante C, que, por
sua vez, é um novo signo do mesmo objeto B. Porém, se afirmamos que C é um novo
signo, então ele deve produzir um novo interpretante D (que, por sua vez, será um novo
6
signo para o mesmo objeto B) e, assim, ele também deve produzir (por ele mesmo)
outro interpretante E. Tal processo de representação continua indefinidamente. Porém,
deve-se chamar atenção para uma importante característica (das definições de signo de
Peirce), o resultado de uma representação específica também depende de uma
representação anterior. Claro está que, neste exemplo, começamos pelo signo A.
Entretanto, este signo deve ser entendido como resultado de uma representação anterior
ainda que não tenhamos nos referido a ela diretamente.
Na semiótica peirceana, a relação de representação entre o signo e objeto
necessariamente produz um interpretante e esta relação é ela mesma necessariamente
resultado de algum interpretante anterior. Assim, toda representação entre um signo e
um objeto deve desencadear um processo interpretativo e deve ela mesma ser resultado
de um processo interpretativo anterior. Isto significa que não há um ponto de origem
para o processo de representação. É como se estivéssemos diante de um processo
definido recursivamente para o qual não há cláusula base. Não há um ponto de partida,
nem um ponto de chegada pré-estabelecido. O que há é fluxo. Isto nos leva a uma
estranha teoria que entende a representação como um processo que necessariamente
ocorre numa espécie de fluxo.
Estrutura da tese
Para que possamos provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade do tipo de
caracterização conceitual mobilizada dentro do projeto filosófico peirceano, seremos
obrigados a estabelecer, em primeiro lugar, que a semiótica é uma teoria central neste
projeto e, em segundo lugar, que algumas teses centrais dentro da semiótica são
decorrência direta do fato de o conceito de representação ter sido definido ou
caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais serão denominadas de teses
elementares da semiótica (e serão explicadas de forma mais detalhada no nono
capítulo).
Teses elementares da semiótica peirceana
Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo interpretativo).
Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo interpretativo).
Assim, podemos resumir da seguinte forma a ligação entre todas estas ideias (i.e., entre
as teses defendidas pelo próprio Peirce em seus escritos e a nossa tese acerca da
semiótica peirceana): para que seja sustentável a solução teórica encontrada por Peirce
para o (que considera o) problema central da filosofia, estas duas teses elementares
7
acima apresentadas têm que ser estabelecidas dentro da teoria semiótica (desenvolvida
pelo próprio Peirce), e o estabelecimento destas teses depende da recursividade que é
encontrada dentro da concepção de signo ou de processo representativo (e é introduzida
pelo conceito de interpretante). Se, por um lado, como pretendemos provar, estas duas
teses são condições necessárias para a sustentação do projeto filosófico peirceano, por
outro lado, como também pretendemos provar, a caracterização recursiva de
representação (mobilizada por Peirce para definir a relação entre signo, objeto e
interpretante) é uma condição necessária para o estabelecimento das duas teses
elementares. Portanto, a nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do
conceito de representação que está no coração do conceito de signo da semiótica
peirceana é necessariamente recursiva. Sem esta recursividade, simplesmente não seria
possível derivar as duas teses elementares da semiótica: "não há primeiro signo num
processo interpretativo" (Tese_1 da semiótica) e "não há último signo num processo
interpretativo" (Tese_2 da semiótica). Como veremos no último capítulo, se
concebermos uma teoria semiótica alternativa àquela proposta por Peirce, i.e., sem a
caracterização recursiva de representação, não seria possível garantir que, em todo
processo interpretativo, não haja ponto originário ou ponto de chegada preestabelecido.
Isto significa que a teoria da representação que está subentendida no projeto filosófico
peirceano necessariamente mobiliza um conceito de "representação como fluxo". Como
teremos a oportunidade de explicar detalhadamente, o conceito de interpretante
(proveniente da semiótica) deve ser entendido como uma espécie de princípio que
instaura um processo representacional (uma cadeia de interpretantes) que ocorre num
fluxo, sem ancoragem alguma, sem ponto de partida ou chegada absoluto.
Como nossa tarefa consiste em mostrar que a recursividade é uma condição necessária
para o projeto filosófico peirceano, ou seja, para as soluções teóricas propostas por
Peirce em seu sistema filosófico, então teremos que começar pela explicação e
contextualização deste projeto. Por este motivo, antes mesmo de nos voltarmos para as
análises dos argumentos elaborados por Peirce e para a argumentação de nossa tese
(propriamente dita), parte considerável de nosso texto é dedicada a apresentar o
surgimento da semiótica nos escritos peirceanos da década de 1860. Assim, optamos
por dividir nosso texto em três grandes partes: I) o panorama histórico do surgimento da
semiótica no pensamento peirceano e a relação da filosofia de Peirce com outros
sistemas filosóficos, como o de Kant e de Descartes (capítulos 1,2 e 3); II) as análises
do texto peirceano (capítulos 4 - 11)4; III) as argumentações para sustentação da tese
propriamente dita (capítulo 12 e, sobretudo, 13): "a caracterização do conceito de
representação (interno à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva".
4 Aproveitemos este texto introdutório para esclarecer o significado de algumas abreviações de títulos ou
coletâneas de textos elaborados por Peirce que deverão aparecer ao longo desta tese: CP – Collected
Papers; NEM – The New Elements of Mathematics; EP – Essential Peirce; MS – Manuscritos da
Houghton Library. As referências aos “Collected Papers” serão feitas pela numeração relativa ao volume
e ao parágrafo (e não às páginas). Por exemplo, uma citação cuja referência bibliográfica esteja CP 2.101
quer dizer que tal trecho pertence ao parágrafo de número 101 do segundo volume dos “Collected
Papers”. As referências ao "Essential Peirce" serão feitas pela numeração relativa ao volume seguida de
uma numeração para as páginas. Por exemplo, "EP2, p.44" significa que o trecho em questão está na
página 44 do segundo volume do "Essential Peirce".
8
Algumas observações sobre metodologia
O foco deste trabalho é o elemento lógico do sistema filosófico de Charles S. Peirce. E
por elemento lógico entendemos a estruturação argumentativa da obra que constitui e
valida as teorias apresentadas pelo filósofo como respostas a problemas (filosóficos)
estabelecidos internamente, i.e., dentro de seu próprio sistema filosófico, ou
externamente, i.e., pela tradição. Assim, procuramos organizar toda a exposição a ser
feita do pensamento peirceano (e também das análises e interpretações acerca dele) em
torno do que pode ser considerado o problema central da filosofia de Peirce: a
possibilidade das sínteses (ou, em outros termos, a possibilidade da ampliação do
conhecimento, de um sistema de crenças). De acordo com Martial Gueroult (2007
[1957]), considerar que também a atividade filosófica (como a científica) procura
resolver problemas por meio de teorias é entender a filosofia a partir da noção de
problemática.
Sendo, como a ciência, um esforço para conhecer e compreender o real, a
filosofia institui, como ela, uma problemática. Todas as grandes doutrinas
podem se caracterizar a partir de problemas: problema do uno e do múltiplo
entre os pré-socráticos; problema da possibilidade da ciência e da predicação
em Platão; problema das causas primeiras, da demonstração, do método
geral das ciências da natureza em Aristóteles; problema do fundamento da
física matemática em Descartes; problema do fundamento da possibilidade
das ciências e da metafísica como ciência em Kant; problema dos vínculos
entre a história e o racional em Hegel, etc.
Como a ciência, a filosofia deve, ao instituir problemas, respondê-los através
de teorias. Ora, toda teoria só é válida na medida em que é demonstrada. A
demonstração não visa simplesmente que a teoria seja imposta a outrem,
mas que faça nascer em toda inteligência, incluindo na de seu protagonista,
a intelecção do problema e de sua solução.
É por isso que o elemento lógico deve assumir em toda filosofia, não uma
função de tradução (de uma paisagem mental ou de uma intuição), mas uma
função de validação e até de constituição.
(Gueroult, 2007 [1957], p. 235)
Ao longo de nossa exposição do pensamento peirceano daremos pouca atenção a fatores
externos ao sistema filosófico como as (denominadas) condicionantes históricas ainda
que saibamos serem elas relevantes para determinados tipos (bem habituais) de
abordagem da obra de um filósofo. Da mesma forma, pouca atenção será dada a outros
tipos de fatores externos como condicionantes pessoais, psicológicas, culturais, sociais,
etc. . Fortemente inspirados por uma abordagem estruturalista, consideraremos o texto
peirceano um objeto autônomo, como um conjunto de teses e movimentos
argumentativos que devem ser subtraídos do tempo histórico e entendidos dentro de um
tempo lógico (cf. Goldschmidt, 1970 [1949], p. 139). Com isso, não pretendemos, de
forma alguma, depreciar análises que também levem em conta estes fatores (que aqui
9
denominamos de) externos. Porém, três motivos podem ser arrolados para justificar a
desconsideração desses fatores externos na presente tese. Os dois primeiros motivos são
carências: de espaço e de competência. Em primeiro lugar, como o leitor notará, a
análise somente de "fatores internos" ao texto peirceano nos tomou tantas páginas
(centenas delas) que nos falta espaço para desenvolver análises de qualquer outro tipo.
Em segundo lugar, falta-nos competência para elaborar análises mais rigorosas (que
valeriam a pena serem publicadas) acerca desses fatores externos citados. Deixemos
esta tarefa para especialistas (historiadores, psicólogos, sociólogos, antropólogos, etc.).
O terceiro e mais importante dos motivos é que esta desconsideração decorre de uma
opção metodológica. Para esclarecer este posicionamento metodológico é preciso
observar que a sustentação da tese que pretendemos defender depende de uma
interpretação global do sistema filosófico peirceano (ao menos dos seus primeiros
desenvolvimentos). Não só a sustentação de nossa tese propriamente dita, mas também
o estabelecimento de grande parte dos passos intermediários (que nela desembocam) só
faz sentido a partir de uma interpretação global do sistema filosófico peirceano. A
afirmação de que "a caracterização do conceito de representação (interno à teoria
semiótica peirceana) é necessariamente recursiva" só pode ser justificada na
dependência de algum quadro interpretativo. O que pretendemos, com esta tese, é
simplesmente oferecer uma interpretação de um conceito central ao pensamento
peirceano com o objetivo de enxergar o seu papel dentro do sistema como um todo, ou
seja, sua função na resolução do problema maior da filosofia peirceana (aquele relativo
às possibilidades das sínteses).
A última observação a ser é feita diz respeito ao modo de expressão que utilizamos ao
longo da tese. Como o enfoque de nossas análises é o movimento argumentativo dentro
de textos peirceanos e nossa preocupação está voltada única e exclusivamente para o
que chamamos de elemento lógico destes textos, os valores que nortearam a escrita
desta tese são clareza e precisão. Por diversas vezes sacrificamos o "estilo" e certa
elegância da escrita em nome da clareza e precisão. Por exemplo, praticamente
abolimos o uso de pronomes (principalmente os pessoais e, nalguns casos, também os
demonstrativos). Optamos por repetir palavras ou expressões algumas vezes dentro de
um curto espaço de texto somente para evitar a possibilidade de ambiguidade que
sempre acompanha o uso de pronomes. Não confiamos ao contexto a tarefa de fixar
referências (de termos substituídos). Com intuito de garantir que o sentido captado pelo
leitor seja efetivamente aquele que intencionamos, optamos também por apresentar
algumas ideias, que julgamos mais relevantes, sob mais de um aspecto ou sob mais de
uma forma ainda que isso tenha tornado o texto redundante nalguns trechos. Em nossas
exposições, não faltaram pares de frases que guardam entre si uma relação de sinonímia
que é marcada pelo uso das seguintes expressões: "ou seja", "i.e.", "em outras palavras",
"em resumo", etc. Isto aumenta consideravelmente o nível de redundância de um texto,
mas também cria vias mais seguras para que se possa interpretá-lo. Todas estas medidas
são desaconselháveis para qualquer pessoa que queira elaborar um texto que possa ser
lido de forma minimamente agradável. Na verdade, neste texto, comportamo-nos menos
como escritores e mais como escreventes, escriturários ou escrivães. Assim, para que
10
não nos alonguemos, o resultado geral é um texto repetitivo e burocrático. Uma clara
exceção à regra (além deste texto introdutório) são as primeiras páginas do primeiro
capítulo (e, em menor medida, a última seção do último capítulo).
11
CAPÍTULO 1
Semiótica: a respeito das origens
Não é sem a companhia de alguma perturbação que surgem, aos mortais, questões e
reflexões relativas a origens. A fonte desta perturbação parece ser o fato de que, quando
se busca um ponto originário corre-se o risco de encontrar a prova da finitude daquilo
cuja origem foi encontrada. O ponto de fuga da busca pela origem da espécie humana é
estabelecer, de uma vez por todas, a prova da finitude do homem e a atribuição de um
caráter histórico a tudo que lhe disser respeito. Entretanto, e isto soa paradoxal, embora
o questionamento a respeito das origens seja fonte de perturbação, mais perturbador
ainda é o estado de total desconhecimento das origens. E, seguindo uma gradação, mais
perturbador do que essa situação de total desconhecimento é o estado no qual tomamos
conhecimento da impossibilidade de se perguntar sobre as origens com esperança de
obter alguma resposta minimamente aceitável. Por um lado, se a busca pelas origens nos
perturba por evidenciar nossos limites, também devemos reconhecer que ela nos
conforta ao oferecer a possibilidade de algum espaço originário ao qual podemos
pertencer. Por outro lado, a impossibilidade de se fixar uma origem não parece ter
nenhuma contraparte confortante, pois ela provoca um sentimento eterna e
constantemente renovado de desenraizamento. No campo da epistemologia, um dos
resultados mais notáveis dos argumentos peirceanos (que estão envolvidos no
estabelecimento de um pensamento propriamente semiótico) é nos levar a crer que não
é possível se fixar uma origem para os nossos processos de conhecimento. Não há
fundação possível para nosso sistema de crenças.
É inegável que haja algo de perturbador nos escritos de Peirce. A filosofia peirceana
possui um componente fortemente aversivo aos brios da civilização, ao culto da
estabilidade e, no campo da epistemologia, ao enaltecimento da razão como provedora
de repostas definitivas. Este componente, ao qual nos referimos com a metáfora um
tanto vaga do fluxo, pode ser responsabilizado por este sentimento de incômodo. Este
componente seria a marca da impressão de que há algo fora do lugar. Não pretendemos
nesta tese traçar correlações da filosofia peirceana com processos da história humana
contados em larga escala de tempo (como a marcha civilizatória que torna nosso
passado nômade cada vez mais remoto) ou com processos evolutivos cuja ocorrência se
distribui por um intervalo maior ainda de tempo (como a história evolutiva que levou
nossos cérebros ao vício da busca por padrões, regularidades, estabilidade, etc.). Nem
pretendemos, por meio de comparações quase sempre inusitadas, encaixar Peirce dentro
do clima pós-moderno de fins de século XX: a era do pensamento mole. Nossas
intenções são bem mais humildes e precisas. Como deve ter ficado claro já no nosso
texto introdutório, nesta tese, pretendemos apresentar um panorama do surgimento da
12
semiótica peirceana para dentro dela localizar o conceito de interpretante, que, de
acordo com nossa interpretação, deve ser correlacionado à noção de recursividade ou
regra recursiva.
Como veremos, a semiótica e também a epistemologia em torno da qual ela é construída
têm como um dos principais objetivos sustentar a seguinte tese: todo processo de
conhecimento que termina por estabelecer alguma crença é sempre falível e este estado
de crença resultante é sempre provisório. De acordo com as linhas argumentativas
desenvolvidas por Peirce (e que analisaremos nas próximas centenas de páginas), o
motivo deste falibilismo é a tese também peirceana de que sempre há um resíduo de
incerteza contido em qualquer crença que possamos obter. Em linhas gerais, a semiótica
está inserida num corpo teórico que funciona (dentro do sistema filosófico peirceano)
como uma retumbante lição de humildade epistemológica. O problema é que, a partir de
algumas perspectivas mais habituais, esta lição só parece poder ser assimilada como
uma derrota da razão. Se partirmos do pressuposto que o conjunto de nossas faculdades
cognitivas deveria nos permitir, em determinadas condições, obter conhecimento
absoluto acerca do mundo, é óbvio que uma teoria que estabeleça que, na prática, nosso
conhecimento é provisório e falível deve ser interpretada como uma derrota da razão.
Os resultados de uma teoria falibilista, neste contexto, são claramente decepcionantes.
Por isso, não é incomum que sintamos certo incômodo na leitura de passagens da obra
peirceana. Nos escritos que vamos analisar, notaremos que Peirce investe grande parte
de sua energia para desmontar estes pressupostos que nos impedem de aceitar o
falibilismo exceto como um fracasso da razão5.
Como estamos numa região introdutória deste texto, esta localização nos permite um
pouco de liberdade com relação ao modo de expressão. Tentemos algumas comparações
mais metafóricas para que comecemos a esclarecer por qual motivo os escritos
peirceanos, ainda que levem a noção de incerteza para dentro da teoria do
conhecimento, não devem ser lidos como um elogio à incerteza, ao erro, ou seja, uma
apologética da irracionalidade. Que a espécie humana tenha pavor do estado de
incerteza nos parece fora de discussão. Prova disso é que nos últimos tempos, para
cercar o acaso, acuá-lo, dominá-lo, temos inventado enormes sistemas de previdência
social (que os estados nacionais mal conseguem sustentar) e os mais incríveis sistemas
privados de seguro e contrasseguro projetados para nos proteger contra doenças, pestes,
epidemias, roubos, assaltos, sequestros, atentados, acidentes de trânsito, terremotos,
tsunamis, erupções vulcânicas e qualquer outro evento que pareça estar nas mãos do
acaso. O combate contra o acaso é permanente e a vitória definitiva contra a fonte
geradora de incertezas parece ser uma questão de honra para uma espécie que ostenta
um cérebro tão grande, pesado e caro do ponto de vista evolutivo. Aprendemos a
5 De acordo com interpretação de Santaella, a concepção de razão que emerge dos escritos de Peirce é
muito distinta daquela que pode ser encontrada noutros sistemas propostos por filósofos modernos. Para
Santaella, a concepção peirceana de razão é muito distante daquela elaborada, por exemplo, no
pensamento hegeliano, uma vez que, para Peirce, não há um ponto de fuga pré-estabelecido na forma do
Absoluto, mas a mudança é a essência inalienável própria da "razão, que, sem perder nunca a interação com
os fatos brutos do mundo, está sempre em estado de incompletude, num processo cujo fim está
permanentemente em aberto" (Santaella, 1994, p. 195).
13
acreditar piamente que foi por isso mesmo que fizemos uma revolução científica há
algum tempo atrás. As concepções mais instrumentais de ciência (essas, mais fáceis e
palatáveis, que ensinamos para as crianças nas escolas) nos dizem que conhecimento
serve para que nos emancipemos da tirania de uma natureza que só é capaz de evoluir
(aparentemente) de forma lenta e cega, como se caminhasse lentamente para prolongar
seu deleite dos sabores do acaso. Ao contrário da natureza, temos pressa e sabemos
onde queremos chegar (ao menos esta é a imagem que temos feito de nós mesmos).
Como estamos em combate permanente com o estado de incerteza, entrar num estado no
qual a incerteza é a única constante, ainda que residual, é perturbador. Para exemplificar
como a constância de um estado de incerteza é perturbadora para seres humanos,
podemos apresentar um caso proveniente da psicologia. É altamente desaconselhável
começar com um exemplo de psicologia a sustentação de uma tese que pretende se
concentrar no elemento lógico da obra de um filósofo que se definia como lógico (e que
pode ser considerado um dos primeiros a defender uma visão anti-psicologista da
lógica). Entretanto, as vaguezas contidas nas metáforas, às vezes, sugerem com
facilidade o que a precisão dos argumentos só parece conseguir expressar mediante
esforço colossal do intelecto. Além do mais, como afirmamos, a região do texto em que
nos encontramos nos concede margem para manobras (puramente) retóricas.
Que se observe ou ao menos que se imagine o espírito em permanente estado de
perturbação de pais cujos filhos desapareceram nalgumas tragédias históricas (das quais,
aliás, o século XX esteve repleto) como guerras, ditaduras, genocídios, etc. Há uma
distância considerável entre constatarmos que uma pessoa está morta e imaginarmos
que ela o esteja por causa de sua ausência, de seu desaparecimento em condições que
nos levam a crer que ela esteja morta. É possível que parte da importância de nossos
ritos fúnebres esteja justamente neste ato de constatação. Ao contrário da morte
confirmada por alguns de nossos ritos fúnebres, como o enterro ou a cremação, quando
uma pessoa desaparece em condições que nos levam a crer que ela esteja morta,
aparentemente nossa imaginação se sente mais à vontade para alimentar a esperança de
que o desaparecido retorne algum dia. As ditaduras instaladas na América Latina na
segunda metade do século XX (dentro do contexto da Guerra Fria) utilizaram o
desaparecimento como estratégia política para controlar setores mais revoltosos da
população. Por estes dias, sistemática e institucionalmente torturava-se, matava-se e
privavam-se famílias do direito ancestral de enterrar seus mortos. Imagine os
pensamentos que "percorrem" de tempos em tempos as circunvoluções do cérebro de
uma mãe cujo filho desapareceu nestas condições. É de se supor que, se a esta mãe fosse
dada a oportunidade de ver e enterrar o corpo de seu filho, ela poderia ter certeza de que
nunca mais voltaria a vê-lo. Porém, sem a materialidade do corpo, é como se a morte
não se concretizasse para a mente daqueles que conheciam a pessoa e, assim, o coração,
na contramão da razão, envia para o cérebro mensagens para que este inclua em seus
cálculos (que projetam cenários e futuros possíveis) a possibilidade de que aquela
pessoa desaparecida retorne. Por menor que seja (de um ponto de vista racional), esta
probabilidade parece muito grande toda vez que nela se pensa. Isto mantém a mente
inquieta. Não há estado de repouso. A fonte de perturbação é justamente o fato de que
14
esta possibilidade permanece eternamente aberta. O mecanismo que faz funcionar esta
espécie de tortura continuada está justamente no fato de que esta porta não parece poder
ser fechada nunca.
Embora seja moralmente execrável, deve-se reconhecer que esta "estratégia do
desaparecimento" é altamente eficiente para os fins para os quais foi desenvolvida, a
saber, perpetuar o sofrimento (que é inicialmente apenas) de um indivíduo para além de
sua morte, atingindo pessoas que lhe são próximas com o intuito de disseminar o medo
dentro (de alguns setores) de uma sociedade. O princípio maquiavélico por trás desta
estratégia não é nenhuma novidade: planta-se medo para colher obediência. De
atrocidades a história humana não carece. O que foi novidade no século XX foi a escala
em que as atrocidades foram cometidas e o maquinário institucional, calculadamente
construído pela engenhosa razão humana, para cometê-las, o que explica a eficiência.
Ainda que tenhamos introduzido este exemplo como um caso de psicologia, é provável
que a eficiência desta "tortura do desaparecimento" não possa ser explicada somente por
algumas especificidades, algumas fraquezas da estrutura psíquica humana, mas este
lamentável sucesso parece residir no fato de tal violência ser capaz de atingir
coletivamente seres humanos e feri-los numa região muito sensível do "corpo social":
um direito adquirido tão logo nos tornamos isso que somos. Se levarmos em
consideração que ritos fúnebres são um dos primeiros traços comportamentais a nos
distinguir de outros animais e também considerarmos a incontável quantidade de
camadas simbólicas que viemos sobrepondo durante todos esses milênios a estes ritos,
notaremos sem muita dificuldade que negar ao homem a oportunidade de enterrar seus
mortos é um crime cometido contra a espécie (e não somente contra indivíduos espaço-
temporalmente situados). Esta tortura continuada, esta perturbação constantemente
renovada é um dos efeitos de longo prazo mais nocivos dessas ditaduras, espécie de
efeito letal da radiação que vai atravessar gerações. Antes de abandonarmos este
exemplo, notemos que o que tortura aquela mãe cujo filho desapareceu (naquelas
condições descritas) é o pensamento renitente acerca da possibilidade de seu retorno. O
mecanismo responsável pela tortura funciona justamente porque esta possibilidade é
mantida aberta. É como se a porta da casa dessa família não pudesse ser fechada. Ela
permanece sempre aberta ou, que seja, entreaberta. Nunca totalmente fechada.
A perturbação no espírito provocada pela aceitação de algumas teses peirceanas parece
funcionar segundo este mesmo mecanismo da "porta eternamente entreaberta". O
incômodo em aceitar a tese de que não há fundação completamente segura para o
conhecimento humano está no pressuposto de que deveria haver alguma fundação desse
tipo. Aceitar a tese de que a incerteza é uma espécie de resíduo irredutível de qualquer
crença só parece desconfortável para aqueles que pressupõem a possibilidade do
conhecimento certo e seguro. Bem no início de sua carreira filosófica, uma das
primeiras tarefas às quais Peirce se dedicou (como veremos) foi questionar estes
pressupostos e provar que era possível estabelecer teorias que explicassem as faculdades
cognitivas do homem sem recorrer nem sequer à possibilidade de conhecimento
absolutamente certo e seguro. Um dos primeiros movimentos da filosofia peirceana é
15
fechar esta porta. Da perspectiva peirceana, enquanto nos movermos nos interiores de
teorias que nos permitem sistematicamente alimentar a esperança de alcançar um ponto
originário, uma fundação inabalavelmente segura para o conhecimento humano, sempre
teremos nosso espírito invadido por um mal-estar toda vez que percebemos que ainda
não atingimos este ponto. É como se todas as nossas crenças fossem ilegítimas.
Sentiremo-nos mal toda vez em que percebemos que nossos edifícios (por mais
imponentes e complexos que sejam) não possuem fundações seguras. Observada do
ponto de vista de um projeto fundacionalista como aquele defendido por Descartes nos
primeiros dias da modernidade, a filosofia peirceana é uma vertigem.
Demos este volteio retórico só para informar que, durante os primeiros três capítulos
desta primeira parte da tese, vamos tratar das origens da semiótica no desenvolvimento
do pensamento peirceano. E, como o leitor deve ter percebido, origem é um tema caro a
Peirce. Pode-se estabelecer como data oficial para o nascimento da semiótica peirceana
a publicação do artigo "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o
homem". A tese central deste artigo é uma proposição que equaciona o conceito de
pensamento ao conceito de signo: "todo pensamento é pensamento em signos" (CP
5.253 [1868])6. Este artigo é o primeiro de uma série de três textos que compõem o que
os estudiosos da obra peirceana passaram a chamar de "série sobre a cognição" ou
simplesmente "série cognitiva". Este conjunto de textos constitui uma estrutura
argumentativa única cujo propósito último é fornecer uma resposta à pergunta que
Peirce formulou como problema filosófico maior: como são possíveis as sínteses, como
é possível o raciocínio sintético? Transcrevemos a seguir a formulação deste problema7
pelas próprias palavras do filósofo:
De acordo com Kant, a questão central na filosofia é "como são possíveis os
juízos sintéticos a priori ?" Porém, antes desta pergunta, vem a questão como
são possíveis os juízos sintéticos, em geral, e de forma mais geral ainda,
como o raciocínio sintético é possível? Quando a resposta a este problema
geral tiver sido obtida, aquele problema particular será comparativamente
mais simples. Este é a fechadura na porta da filosofia.
(CP 5.348 [1868])8
Dez anos mais tarde, Peirce volta a tratar este problema como central.
Ao final do último século, Immanuel Kant levantou a questão "como são
possíveis os juízos sintéticos a priori ?" Por juízos sintéticos, ele se referia A
juízos que afirmam fatos positivos e não são questão de mero arranjo; em
resumo, estes são os juízos do tipo produzido por raciocínio sintético e que os
raciocínios analíticos não podem produzir. Por juízo a priori, ele se refere
6 No original: "all thought is in signs". A tradução para o português que Santaella oferece em suas obras
sobre semiótica peirceana é a seguinte: "todo pensamento se dá em signos" (cf. Santaella, 1994, p. 44). 7 Este trecho foi retirado do segundo artigo da série cognitiva.
8 No original: " According to Kant, the central question of philosophy is "How are synthetical judgments
a priori possible?" But antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general, and
still more generally, how synthetical reasoning is possible at all. When the answer to the general problem
has been obtained, the particular one will be comparatively simple. This is the lock upon the door of
philosophy".
16
àqueles juízos que afirmam, por exemplo, que todos os objetos externos estão
no espaço, todo evento tem uma causa, etc., proposições que, de acordo com
ele, não podem ser inferidas da experiência. Não tanto por sua resposta, mas
simplesmente por ter levantado tal questão, toda a filosofia de seu tempo foi
estilhaçada, destruída e uma nova época na história da filosofia nasceu.
Entretanto, antes de ter feito tal pergunta, ele deveria ter feito uma pergunta
mais geral: "Como são possíveis os juízos sintéticos, em geral?" Como é
possível que um homem possa observar um fato e, em seguida, pronunciar
um juízo a respeito de outro (distinto) fato que não esteja envolvido no
primeiro? Este é um paradoxo estranho. O abade Gratry afirma ser um
milagre; e que toda indução verdadeira é uma inspiração imediata das alturas.
Respeito esta explicação muito mais que outras tentativas pedantes de
resolver a questão a partir de malabarismos com probabilidades, com formas
de silogismos, o que deixa de ser. Respeito porque esta explicação demonstra
uma apreciação da profundidade do problema, porque ela atribui uma causa
adequada e também porque ela está intimamente concectada como uma
verdadeira explicação deve estar com uma filosofia geral do universo. Ao
mesmo tempo, não aceito este tipo de explicação, pois uma explicação deve
nos revelar como algo é feito, e afirmar a existência de um milagre perpétuo
parece ser um abandono de toda esperança de fazer isso [revelar como algo é
feito], sem justificativas que sejam suficientes.
(CP 1.690 [1878])9
A semiótica nasce associada a uma teoria da cognição que foi apresentada por Peirce
como uma alternativa às teorias epistemológicas que, ao recorrerem ao conceito de
intuição, tornam-se incapazes de fornecer uma explicação aceitável a respeito do
funcionamento e da possibilidade do raciocínio sintético. Construir um corpo teórico
livre (ou quase livre) do conceito de intuição custou a Peirce algumas dezenas de
páginas de paciente análise e minuciosa desconstrução dos posicionamentos
epistemológicos dominantes na filosofia moderna, aos quais se referia com a rubrica
"cartesianismo" ou "espírito do cartesianismo", e custou-lhe também um esforço
descomunal para operar um deslocamento de perspectiva que o permitisse explicar
9 No original: Late in the last century, Immanuel Kant asked the question, "How are synthetical
judgments a priori possible?" By synthetical judgments he meant such as assert positive fact and are not
mere affairs of arrangement; in short, judgments of the kind which synthetical reasoning produces, and
which analytic reasoning cannot yield. By a priori judgments he meant such as that all outward objects
are in space, every event has a cause, etc., propositions which according to him can never be inferred
from experience. Not so much by his answer to this question as by the mere asking of it, the current
philosophy of that time was shattered and destroyed, and a new epoch in its history was begun. But before
asking that question he ought to have asked the more general one, "How are any synthetical judgments at
all possible?" How is it that a man can observe one fact and straightway pronounce judgment concerning
another different fact not involved in the first? Such reasoning, as we have seen, has, at least in the usual
sense of the phrase, no definite probability; how, then, can it add to our knowledge? This is a strange
paradox; the Abbe Gratry says it is a miracle, and that every true induction is an immediate inspiration
from on high. I respect this explanation far more than many a pedantic attempt to solve the question by
some juggle with probabilities, with the forms of syllogism, or what not. I respect it because it shows an
appreciation of the depth of the problem, because it assigns an adequate cause, and because it is
intimately connected--as the true account should be--with a general philosophy of the universe. At the
same time, I do not accept this explanation, because an explanation should tell how a thing is done, and to
assert a perpetual miracle seems to be an abandonment of all hope of doing that, without sufficient
justification" (trecho retirado de um capítulo do Lógica crítica [critical logic]; sétimo capítulo, intitulado a
probabildiade da indução [the probability of induction]).
17
todas as faculdades cognoscitivas que as teorias adversárias explicavam e ainda explicar
aquilo que, de acordo com sua crítica, os recursos conceituais das teorias adversárias
tornavam inexplicável: a possibilidade de síntese10
.
De forma bem geral, a semiótica pode ser entendida como um aparato conceitual que
tornou possível esse deslocamento de perspectiva. Uma teoria da cognição baseada no
conceito de signo (e não no conceito de intuição) é uma teoria que explica a ligação
entre (a abstração na mente de) o sujeito cognoscente e o objeto como uma relação
sígnica, uma relação de representação, portanto uma relação indireta. Como
pretendemos demonstrar nas próximas centenas de páginas, é justamente esta teoria
semiótica da cognição (cuja tese central é o equacionamento entre o conceito de
pensamento e o conceito de signo) que permite a Peirce encontrar uma solução para o
problema do raciocínio sintético. Entretanto, para poder enunciar sua solução para tal
problema, Peirce reorganizou as posições das peças do jogo epistemológico redefinindo
algumas das funções de cada uma delas. Quase nenhum conceito relevante do campo
epistemológico passou incólume a decisão peirceana de se lançar numa cruzada contra
as epistemologias de base intuicionista e de se propor a erigir uma teoria sobre base
diversa. Dentro deste quadro teórico e em consequência de sua tese central, Peirce
precisou propor alterações (às vezes, drásticas e profundas) em conceitos como o de
sujeito cognoscente, objeto, verdade, realidade, pensamento, consciência, etc. As
consequências do estabelecimento de uma teoria semiótica da cognição são
apresentadas nos dois outros artigos que compõem a série cognitiva: "Algumas
consequências das quatro incapacidades" ("Some Consequences of Four Incapacities"),
publicado em 1868; e "Fundamentos da validade das leis da lógica: outras
consequências das quatro incapacidades" ("Grounds of Validity of the Laws of Logic:
Further Consequences of Four Incapacities"), publicado em 1869.
Neste terceiro artigo ("Fundamentos da validade das leis da lógica: outras
consequências das quatro incapacidades"), Peirce defende uma teoria acerca dos
raciocínios ampliativos (o que inclui, para a filosofia peirceana, uma teoria da indução e
10
Esta versão da história do desenvolvimento da semiótica no pensamento peirceano que apresentamos
neste capítulo ignora uma espécie de "pré-história" da semiótica (na filosofia antiga e medieval). Na
verdade, de acordo com alguns historiadores, a semiótica nasce,de fato, como doutrina dos signos, no
pensamento escolástico. Com relação a este período de gestação da doutrina dos signos no ventre do
pensamento escolástico, podemos indicar dois livros do semioticista norte-americano John Deely:
“Introdução à semiótica – História e Doutrina” (1995) e “Semiótica básica” (1990). Deely tem realizado
há décadas um admirável esforço para trazer à luz uma época, por ele e por outros (cf. Randall apud
Deely, 1995, p.59), considerada como o “período menos conhecido da história da filosofia ocidental”.
Esta “terra incognita” vai de 1350 (ano da morte de Guilherme de Ockham – que representa um dos
pontos culminantes da filosofia escolástica [latina] e é um dos últimos pensadores considerados pela
historiografia oficial como filosoficamente relevante) até 1650 (ano da morte de Descartes – pensador
pós-latino e “pai” da filosofia moderna). São nestas terras que são plantadas, de acordo com as pesquisas
e os levantamentos históricos realizados por Deely, as primeiras sementes de um pensamento
propriamente semiótico. Em outros textos (1986, p.5), o semioticista trata este período como aquele que
favoreceu um lento processo de coalescência da consciência semiótica embora tenha sido apenas na
passagem entre os séculos XIX e XX que Peirce obteve uma visão geral e sistêmica do território da
semiótica (em toda a sua extensão e capacidade revolucionária de constituir-se num novo início para toda
a empresa da filosofia [1995, p.79 e 1986, p.16]). Não lhe faltaram motivos, como veremos, para
denominar a compreensão peirceana da semiótica de “A Grande Visão” (Deely, 1996, p. 45).
18
da hipótese) segundo a qual o raciocínio indutivo pode ter sua validade fundamentada se
for observada uma condicionante básica: tal raciocínio deve ser aplicado por um tempo
indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Esta solução
oferecida ao que considera ser o problema maior da filosofia, só se torna disponível a
partir de duas reformulações conceituais efetuadas no segundo dos artigos da série
("Algumas consequências das quatro incapacidades"). A primeira dessas reformulações
conceituais é aquela que torna o sujeito cognoscente uma espécie de sujeito coletivo ao
substituir a noção de indivíduo por uma noção de comunidade indefinida de
pesquisadores e a segunda delas é a reformulação do conceito de realidade, que passa a
ser um ser in futuro, i.e., um ponto de convergência ao qual tendem todas as linhas de
investigação levadas a cabo por aquela comunidade indefinida de pesquisadores. Como
todas essas teorias estão encaixadas dentro de uma estrutura única de argumentação que
tem o objetivo de fornecer uma resposta para o problema dos raciocínios ampliativos ou
sintéticos, estas reformulações (do conceito de sujeito cognoscente e de realidade) são
consequências diretas da teoria da cognição defendida no primeiro artigo da série
("Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem"). Assim,
podemos resumir da seguinte forma esta estrutura única de argumentação por trás dos
artigos que compõem a série cognitiva: a teoria peirceana sobre a fundamentação das
leis da lógica e, em particular, sua teoria acerca dos raciocínios ampliativos (i.e.
sintéticos), apresentadas no terceiro artigo da série, são uma consequência da teoria
peirceana da realidade, apresentada no segundo artigo; esta última, por sua vez, é uma
consequência da teoria peirceana da cognição, elaborada, principalmente, no primeiro
artigo da série (mas que também foi desenvolvida no segundo artigo).
Portanto, a semiótica surge dentro do quadro teórico da série cognitiva como uma
espécie de teoria generalizada das representações elaborada com o intuito de explicar
como são possíveis as sínteses (como é possível o raciocínio sintético em geral). O
cerne da explicação fornecida por Peirce nestes três textos é que a síntese depende de
um processo de representação que possui uma estrutura na qual entra certo número de
elementos indispensáveis para que o mecanismo de síntese funcione adequadamente.
Tanto a estrutura desse processo de representação (o mecanismo que lhe é subjacente)
como quantos e quais eram seus elementos tinham sido descritos por Peirce num artigo
intitulado "Sobre uma nova lista de categorias" ("On a New List of Categories"),
publicado no ano de 1867 no Proceedings of the American Academy of Arts and
Sciences. Neste artigo, Peirce apresenta sua teoria de categorias (que são conceitos
universais presentes em toda experiência) e, a partir destas, consegue estabelecer a
estrutura triádica do signo (ou do processo representativo) e, assim, fixar o papel de
cada um de seus elementos durante o processo de representação. É justamente neste
artigo que Peirce consegue atingir uma definição formal e precisa do terceiro elemento
do signo, o interpretante, o que o permite descrever o mecanismo de representação que,
de sua perspectiva teórica, é capaz de explicar o funcionamento das sínteses (do
raciocínio sintético). Portanto, a partir da teoria exposta neste artigo, Peirce tem à sua
disposição aquele maquinário conceitual (os princípios básicos ou, ao menos, o
mecanismo do conceito básico de sua semiótica [que é a ideia de representação]) que
19
será mobilizado durante a série cognitiva para fornecer uma resposta ao problema
filosófico das sínteses. Ainda que consideremos que o nascimento oficial da semiótica
peirceana seja a enunciação da tese central do primeiro artigo da série cognitiva, não se
pode deixar de notar que já estava presente em escritos muito anteriores e acabou por
tomar forma (praticamente definitiva11
) na teoria das categorias o mecanismo sígnico ou
representacional pelo qual a semiótica, em geral, e o conceito de signo, em particular,
viriam a se tornar ferramentas teóricas indispensáveis para se explicar as faculdades
cognoscitivas e, ao mesmo tempo e em última instância, tornar possível a validação do
raciocínio ampliativo ou sintético.
Já no ano de 1865, quando é convidado para uma série de palestras em Harvard (W1;
165-301), Peirce, em meio a reflexões sobre Kant, Boole, Mill e também sobre os
fundamentos da indução, dedica um considerável espaço para marcar enfaticamente
posição contra uma visão psicologista da lógica e propor que a lógica fosse entendida
como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169 [1865]). É neste
contexto que Peirce toma emprestado o termo "semiótica", cunhado por Locke no
"Ensaio sobre o entendimento humano" (obra publicada 1690)12
. Nestas palestras, já
aparecem as primeiras classificações sígnicas (cf., por exemplo, W1; 237 [1865]) e
alguns temas fundamentais para o pensamento peirceano que posteriormente seriam
englobados pela semiótica, como a tese a respeito do crescimento dos símbolos (que é o
modo como Peirce trata o problema da ampliação de um sistema de conhecimento). Por
exemplo, ainda nestas palestras ministradas em Harvard em 1865, Peirce apresenta uma
"lógica da informação" justamente para abrigar uma teoria a respeito do crescimento
dos símbolos (W1; 272).
No ano seguinte, quando é convidado para uma série de palestras no Lowell Institute,
em Boston (W1; 358-504 [1866]), Peirce continua a desenvolver muitas destas ideias e
já começa a se aproximar da definição de signo desenvolvida no “Sobre uma nova lista
de categorias” (em 1867). Na sétima destas palestras (outubro-novembro de 1866),
pode-se notar que Peirce já utiliza o termo “interpretante” (W1, 465 [1866]) para
designar aquele elemento que é resultado de um processo de representação13
. Este termo
já tinha sido introduzido alguns meses antes, em março de 1866 (W1; 347), numa
11
A estrutura triádica dentro da qual o signo é definido neste artigo e também as funções de cada um de
seus elementos seguiram praticamente inalteradas durante todo o desenvolvimento do pensamento de
Peirce. Acreditamos que as mudanças que o conceito de signo e também o conceito de representação (que
é mobilizado pela definição peirceana signo) sofreram ao longo do tempo não alteraram a essência dessas
concepções. Estas mudanças funcionaram como uma evolução direcionada, como um aprofundamento.
Para um ótimo histórico da evolução do conceito de representação em Peirce, consultar o artigo de
Winfried Nöth (2011b) intitulado "Da representação à Terceiridade e do Representamen ao Medium: a
evolução de termos-chave e tópicos-chave peirceanos ("From Representation to Thirdness and
Representamen to Medium: Evolution of Peircean Key Terms and Topics"). 12
cf. capítulo XXI ("sobre a divisão das ciências") do quarto livro ("sobre conhecimento e
probabilidade") do Ensaio de Locke. 13
Nesta palestra, o conceito de interpretante, embora ainda esteja fora da estrutura triádica (na qual será
encaixado posteriormente) já é definido com a função de substituição ("surrogate"). Neste contexto, o
interpretante é entendido como um segundo termo que se apresenta como equivalente a um primeiro
termo. O trecho em questão (Lowell Lecture VII ─ W1, 464-5 [1866]) será apresentado e analisado no
texto introdutório ao décimo segundo capítulo.
20
anotação sobre as partes que compõem um argumento, embora neste trecho Peirce não
ofereça definição do que entende por interpretante. De acordo com um levantamento
feito por Max Fisch (texto introdutório do W1,1982, p. xxxiii), se observamos os
escritos de Peirce à época, notaremos que ele experimenta, por algum tempo, alguns
termos como "sujeito" ("subject") ou "correspondente" ("correspondent") e, ao se
aproximar do fim do ano de 1866, quando provavelmente nota que a novidade
subjacente ao conceito que pretendia nomear exigia um nome novo, acaba por cunhar o
termo "interpretante".
Acreditamos que a história da origem da semiótica dentro pensamento peirceano ou a
história de como a semiótica passou a ser central para toda a sua filosofia pode ser
contada como uma narrativa a respeito do modo como Peirce, ao longo da década de
1860, vai gradualmente se afastando da matriz kantiana na qual seu pensamento foi
(inicialmente) moldado. Esta afirmação acerca deste afastamento pertence a um tema
muito debatido entre os estudiosos da obra peirceana, pois há uma corrente de
intérpretes que sustentam a tese de que existem "dois Peirces", há uma tensão não-
resolvida entre transcendentalismo e naturalismo. A formulação clássica desse problema
relativo a esta tensão no pensamento peirceano pode ser encontrada no livro "O
empirismo de Charles Peirce" ("Charles Peirce's empiricism") de Justus Buchler (1939)
e também no livro "O pensamento de C. S. Peirce" ("The Thought of C. S. Peirce) de
Thomas Goudge (1969 [1950]). Não pretendemos entrar neste debate mais amplo por
dois motivos: primeiro, porque a intenção desta parte inicial de nossa exposição é
simplesmente apresentar o cenário (do pensamento peirceano) para que localizemos
nossa tese central; segundo, ainda que quiséssemos, não teríamos "munição" suficiente.
Embora o artigo seminal "Sobre uma nova lista de categorias" tenha sido produzido sob
uma inegável influência kantiana, nossa tese (com relação a este ponto) é que a teoria
peirceana das categorias já não se encaixa dentro dos limites do que geralmente se
entende por filosofia kantiana14
não apenas pelo fato das listas de categorias destes dois
filósofos serem bastante distintas, mas pelo fato de a própria derivação (peirceana) das
categorias já ser fruto de uma concepção semiótica da lógica que inviabiliza um dos
principais recursos conceituais utilizados por Kant na "Crítica da Razão Pura": o
conceito de intuição. É verdade que alguns termos emprestados da "Crítica da Razão
Pura" ainda são empregados na exposição que Peirce fez de sua lista de categorias.
Também é verdade que o ponto de partida deste artigo é uma teoria kantiana (aquela, "já
estabelecida", segundo a qual a função dos conceitos é reduzir a multiplicidade das
impressões dos sentidos à unidade cf. CP 5.545 [1867]) e também não deixa de ser
verdade que a própria formulação do problema a ser resolvido tem um teor kantiano
("como são possíveis as sínteses?"). Entretanto, o artigo "Sobre um nova lista de
categorias" pode até ser considerado kantiano na letra, mas já é peirceano no espírito.
14
Alguns autores consideram o afastamento de Peirce com relação a Kant uma condição para o
estabelecimento da "nova lista de categorias". Por exemplo, Andre De Tienne (1989, p. 389-90) entende
que a busca peirceana pelas categorias é levada a cabo sobre uma teoria da cognição que, por sua vez, só
pôde ser construída a partir da rejeição de algumas doutrinas tradicionais dentro da epistemologia. Dentre
estas doutrinas rejeitas por Peirce, de acordo com De Tienne, está o transcendentalismo.
21
O que pretendemos mostrar com este breve panorama (acompanhado de algumas
poucas análises) é que a semiótica peirceana pode ter suas origens esclarecidas quando
passamos a elencar os motivos que levaram Peirce a abandonar o projeto kantiano
enunciado na Crítica. Nossa tese é que estes motivos são essencialmente lógicos. Estes
motivos foram se acumulando graças a descobertas realizadas no único "laboratório" do
qual se pode dizer que Peirce trabalhou durante toda sua vida, o campo da lógica. Como
se sabe, por trás do sistema de categorias de Kant está um sistema de funções lógicas.
Cada categoria pertencente à lista de categorias kantianas é derivada de alguma função
lógica pertencente à lista de funções lógicas (do juízo). O progressivo afastamento de
Peirce com relação a Kant parece ter sido motivado por descobertas no campo da lógica
que resultaram de algumas pesquisas que se estendem do ano de 1864 até 1866.
Acreditamos que este afastamento começa quando, em 1864 (cf. MS 477), Peirce
descobre o primeiro problema numa das tríades das funções lógicas (mobilizada por
Kant para derivar suas categorias) e se prova irreversível quando, já ao final de 1866,
publica um artigo sobre silogismo aristotélico15
em que fica claro que sua concepção de
lógica não pode ser conciliada com aquela que Kant mobilizou para derivar as
categorias. São estas descobertas no campo da lógica que o leva a propor sua própria
lista de categorias.
Quando afirmamos que a semiótica nasce da separação do pensamento peirceano da
matriz kantiana não significa que Peirce tenha resolvido se exilar em "terras pré-
críticas". Não parece haver uma linha nos escritos que nos permita afirmar que o projeto
filosófico de Peirce a partir 1867 seja reverter a Revolução Copernicana operada por
Kant no campo da epistemologia. Como tal afastamento se dá por conta daquilo que
Peirce denominou de "avanços mais recentes nas pesquisas no campo da lógica" (cf.
W1, p. 352 [1866]) e é a lógica que está por trás das categorias que permitiram o
movimento de inversão copernicana, pode-se afirmar que o conflito (entre o pensamento
peirceano e kantiano) que origina a semiótica peirceana ocorre nos bastidores da
revolução copernicana da "Crítica da Razão Pura". Não é por outro motivo que, em seu
estudo clássico sobre o desenvolvimento do sistema filosófico de Peirce, Murray
Murphey denomina o pensamento peirceano de "fenomenalismo semiótico" (1993
[1961], p. 90).
Antes de passarmos ao panorama histórico e filosófico acima anunciado, devemos
apresentar de forma esquemática um resumo do desenvolvimento do pensamento
peirceano. Como nestes capítulos nosso intuito é reconstruir a estrutura lógica do
pensamento peirceano nesta fase de surgimento semiótica, óbvio está que a ordem
preconizada neste esquema é uma ordem lógica (e que não precisa coincidir com a
ordem cronológica). Outro ponto que deve ser enfatizado (do qual já tratamos no texto
introdutório) é que, por opção metodológica, organizamos toda a exposição a ser feita
do desenvolvimento do pensamento peirceano a partir do que o próprio Peirce
considerou como problema central à filosofia.
15
"Notas sobre o silogismo aristotélico" ("Memoranda concerning the Aristotelian Syllogism") - ( W1,
505-14 [1866])
22
Passos lógicos – construção inicial do sistema filosófico peirceano
I) Descobertas no campo da lógica (entre 1864 e 1866) levam ao questionamento
das categorias kantianas.
II) Elaboração de uma nova lista de categorias.
III) A terceira categoria proveniente da nova lista de categorias leva ao
questionamento de todas as teorias epistemológicas que posicionam a intuição
como conceito responsável por explicar as fundações do conhecimento.
IV) O questionamento de todas as teorias epistemológicas que colocam o conceito
de intuição naquela "posição fundacional" leva à elaboração de uma nova teoria
da cognição.
V) A elaboração de uma teoria da cognição (condizente com a teoria das
categorias e alternativa àquelas teorias que recorrem à intuição) leva a uma
reformulação do conceito de realidade e o estabelecimento de uma teoria da
realidade que é considerada compatível com as descobertas na área da lógica e
com a epistemologia de base semiótica (inaugurada por Peirce).
VI) A reformulação do conceito de realidade torna possível a proposição de uma
teoria que funciona como uma validação (à prazo) para o raciocínio sintético (ou
ampliativo).
Apresentados de forma esquemática os primeiros passos do desenvolvimento do
pensamento peirceano, passemos a expor nosso roteiro para o estabelecimento de nossa
tese. O movimento geral de nossa exposição é partir do macro para o micro.
Começamos (nos capítulos 2 e 3) por pintar um quadro geral da filosofia peirceana para
nela localizar o surgimento da semiótica. Dentro desse quadro geral, pretendemos
colocar em evidência a relação de Peirce com outros filósofos dos quais teve maior
influência ou com os quais entrou em debate mais direto. O passo seguinte é analisar os
próprios textos peirceanos. Iniciamos estas análises (nos capítulos 4 - 9) pelo primeiro
artigo da série cognitiva, texto no qual Peirce começa a expor sua teoria semiótica ou
inferencial da cognição. Este é o nascimento "oficial" de um pensamento propriamente
semiótico dentro do sistema filosófico peirceano. Depois de examinado cuidadosamente
este primeiro artigo, voltaremos (no capítulo 10) nossa atenção ao texto imediatamente
anterior à série cognitiva e que, inclusive, lhe serve de base: "Sobre uma nova lista de
categorias" (1867). A análise da estrutura deste texto como um todo será seguida (no
capítulo 11) de um estudo pormenorizado de uma de suas partes: o parágrafo específico
no qual Peirce define (pela primeira vez dentro de uma estrutura triádica) o conceito de
interpretante. O restante de nossa exposição (capítulo 12 e 13) é dedicado à análise do
conceito de recursividade e sua correlação com o conceito de interpretante.
23
CAPÍTULO 2
Lógica e as raízes da semiótica
Como antecipamos no texto introdutório, o berço da semiótica é aquela disciplina
filosófica que passou a ser central na modernidade: a epistemologia. O assunto ao redor
do qual gravitam as teorias epistemológicas é a relação (de conhecimento que se supõe
haver) entre o sujeito cognoscente e o objeto (a ser conhecido). Não é difícil notar que
aquela pergunta que Peirce escolheu como norte para suas investigações filosóficas (cf.
CP 5.348 [1868]) pode ser entendida como uma instância da seguinte questão: como é
possível ao sujeito cognoscente obter conhecimento acerca do objeto? Esta pode ser
entendida como a questão nuclear da epistemologia e, ao redor dela, muitas outras são
cabíveis: qual a origem do conhecimento? Qual o fundamento do conhecimento? Qual a
natureza do conhecimento (humano)? etc. . A história das respostas que os filósofos
encontraram ao longo do séculos para cada uma dessas perguntas (e que estavam
implicadas em suas teorias) é rica o suficiente para nos desencorajar em resumi-la em
pouquíssimas linhas. Limitaremo-nos a tratar daquele ciclo de debates epistemológicos
mais próximo de Peirce e que acabou por influenciá-lo de forma mais direta. O cenário
que estava montado no palco quando Peirce entra em cena na segunda metade do século
XIX é constituído basicamente pelos notáveis resultados dos esforços da síntese
operada por Kant16
.
Deve-se recordar que já no nascedouro da modernidade filosófica, a maioria dos debates
teóricos no campo da epistemologia passa a se organizar em torno de duas grandes
correntes: racionalismo e empirismo. Por um lado, para os racionalistas, a fonte de todo
ato de conhecimento é a razão, ou seja, a razão é faculdade humana que deve presidir o
ato de conhecimento, pois somente ela pode fornecer um conhecimento seguro das
coisas (em contraste com os enganos dos sentidos). Por outro lado, para os empiristas, a
fonte de todo ato de conhecimento é a experiência, tudo o que se conhece é, de alguma
forma, derivado dos sentidos. A síntese entre essas duas correntes só foi possível a
partir de uma espécie de versão epistemológica da revolução copernicana. O
16
Deve-se enfatizar o uso daquele termo "basicamente", pois nos parece óbvio que, na segunda metade do
século XVIII, quando Kant produz a Crítica da Razão Pura, eram praticamente impensáveis alguns dos
elementos que, ao entrarem em cena no século XIX, estariam destinados a causar um grande impacto na
história do pensamento ocidental. Dentre estes elementos podemos citar a teoria da evolução e os avanços
representados pela lógica moderna. Com relação ao primeiro deles, sabe-se que a teoria da evolução
proposta pelo naturalista inglês Charles Darwin na obra "A origem das espécies" (publicada em 1859,
quando Peirce tinha 20 anos) exerceria uma influência notável em todos os aspectos do pensamento
peirceano. Por sua vez, outro elemento que distancia, de alguma forma, os pensadores do final do século
XIX daqueles do final do século anterior é o advento da lógica moderna (cujos primeiros
desenvolvimentos já podem ser vistos em obras de contemporâneos de Peirce ou em suas próprias
pesquisas no campo da lógica).
24
responsável por essa reviravolta foi o filósofo alemão Immanuel Kant. Em sua teoria do
conhecimento apresentada na "Crítica da Razão Pura" (1781), Kant encontrou uma
maneira de rearranjar as peças do tabuleiro do jogo epistemológico para que não apenas
a experiência e a razão passassem a ter papéis complementares, mas para que se
tornasse possível explicar como o conhecimento obtido a partir da experiência poderia
ser considerado racionalmente necessário. Esta obra de Kant é um ponto de inflexão
dentro da filosofia moderna, e é inegável a influência kantiana no pensamento do jovem
Peirce.
Em 1863, num texto intitulado de "O lugar de nossa época na história da civilização"
("The place of our age in the history of civilization"), Peirce se refere à "Crítica da
Razão Pura" como "a maior obra do intelecto humano" (W1; 104). De acordo com o
jovem Peirce, toda a fecundidade do pensamento do século XIX, "que é muito maior do
que a de todas as outras épocas juntas", é o resultado direto desta obra monumental de
Kant e "todas as filosofias posteriores devem ser julgadas de acordo com as ideias nela
contidas, uma vez que todas elas são resultado direto desta produção" (W1; 104 [1863]).
Nos anos que se seguiram, Peirce passa a aprofundar seus estudos no campo da lógica, o
que o leva a um conjunto de descobertas que acreditamos estar na raiz de seu
afastamento com relação a Kant. Como veremos, a devoção de Peirce por Kant começa
a diminuir na medida em que começa a crescer sua desconfiança com relação às bases
lógicas sobre as quais foi erigida a "Crítica da Razão Pura". A tese que defendemos
neste segundo capítulo é que as raízes mais evidentes do pensamento semiótico estão
nas descobertas lógicas que datam de 1864-1866. São estas descobertas que marcam o
afastamento do pensamento peirceano com relação à "matriz kantiana" e que preparam
o terreno para que Peirce possa estabelecer sua própria lista de categorias, apresentada
no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (1867). Ainda que seja de incontestável
inspiração kantiana a investigação que Peirce leva a cabo neste artigo (bem como o
ponto de partida dele), insistiremos, ao longo de todo este segundo capítulo, na
afirmação de que, à essa altura, o pensamento peirceano já tem um projeto filosófico
autônomo com relação à sua matriz kantiana.
A própria formulação do que considerava o problema filosófico maior (i.e., a pergunta
sobre a possibilidade das sínteses, em geral) já demonstra que o pensamento peirceano,
a partir da proposição da nova lista de categorias, já não se move dentro dos limites do
projeto kantiano. Como deixou claro no segundo artigo da série cognitiva (CP 5.348
[1868]), Peirce generalizou a pergunta kantiana para isolar um problema filosófico que
acredita ser logicamente anterior àquele da "Crítica da Razão Pura". Por ser mais geral,
Peirce acredita que a teoria elaborada para responder a sua pergunta também
responderia, em particular, a pergunta kantiana e, por ser logicamente anterior, qualquer
resposta para a pergunta de Kant seria condicionada pela resposta à sua própria
pergunta. Assim, a pergunta central de Kant, "como são possíveis os juízos sintéticos a
priori?" é generalizada para se formular a pergunta central de Peirce, "como são
possíveis os juízos sintéticos (em geral)?". A resposta peirceana é que um juízo sintético
se torna possível a partir de um processo inferencial que se desenvolve nos moldes de
25
um processo de representação, o que o leva imediatamente à tarefa de conceber uma
“ciência geral das representações” e, a partir disso, se perguntar se poderia haver algum
fundamento para tais processos representacionais, ou seja, o que, em última análise,
pode tornar tais representações válidas. Como examinaremos com algum detalhe nos
capítulos desta tese dedicados à análise de textos peirceanos, a resposta que Peirce
fornece no primeiro artigo de série cognitiva é que todo o conhecimento que podemos
obter, toda e qualquer síntese ou representação que podemos obter é resultado de
processos inferenciais (ampliativos) e esta resposta, por sua vez, o leva a formular a
pergunta a respeito da validade desses processos inferenciais. A resposta peirceana a
este segundo questionamento é desenvolvida em sua teoria da realidade e em sua teoria
acerca dos fundamentos da validade das leis da lógica (apresentadas cada uma delas
respectivamente nos dois últimos artigos da série cognitiva).
A pergunta pelo modo como o conhecimento humano pode ser ampliado é muito cara à
filosofia moderna. Pode-se afirmar que foi com uma teoria justamente a respeito das
fundações de nossos raciocínios ampliativos que o empirista escocês David Hume
acabou por perturbar o sono (dogmático) de um certo filósofo que, uma vez desperto,
passou a dedicar longos quinze anos de sua carreira filosófica à tarefa de reorganizar as
peças do tabuleiro epistemológico de forma a tornar possível o que o argumento
humeano teria provado impossível. Não é por outro motivo que começaremos este
segundo capítulo com o ceticismo humeano e o modo como Kant o mobilizou para o
seu próprio projeto epistemológico, o que influenciaria, em particular, o jovem Peirce.
A carreira filosófica de Peirce começa numa oficina nos fundos da revolução
copernicana operada por Kant.
Na primeira seção deste segundo capítulo apresentaremos o argumento humeano sobre a
impossibilidade da fundação lógico-formal da indução e a reviravolta operada por Kant
para solucionar o que entendia ser um grave problema astutamente levantando pelo
ceticismo de Hume. Na segunda seção deste segundo capítulo, passamos então a tratar
da relação de Peirce com a "Crítica da Razão Pura", sobretudo, com a tábua de
categorias, uma vez que foi tentando encontrar sólidas bases lógicas para as categorias
kantianas que o filósofo norte-americano se deparou com os primeiros elementos que o
permitiram levantar os alicerces de sua concepção semiótica da lógica e sua teoria
semiótica da cognição. Estes elementos ganharam forma na teoria das categorias de
Peirce. Na terceira e última seção deste segundo capítulo, apresentaremos algumas
razões para afirmar que o pensamento peirceano que emerge do artigo "Sobre uma nova
lista de categorias" (1867) e se desenvolve na série cognitiva (1868-9) já não pode ser
entendido dentro do projeto kantiano. A principal razão que apresentaremos é que, ao
final da década de 1860, Peirce já teria formulado um problema filosófico distinto
daquele de Kant (e que ele mesmo já entendia como mais geral do que aquele do
filósofo de Königsberg) e já teria uma resposta para este problema que exigiria o
estabelecimento de uma teoria do conhecimento muito distinta de todas aquelas que
foram elaboradas dentro da filosofia moderna (por Kant, pelos empiristas e pelos
racionalistas). Como veremos no terceiro capítulo, esta distinção está no fato de que a
26
resposta que Peirce pretende oferecer ao problema filosófico das sínteses exige que sua
epistemologia não recorra ao conceito de intuição como ponto de fundação do
conhecimento. Este segundo capítulo nos deixará no ponto em que Peirce termina seu
diálogo mais direto com Kant, lança as bases de sua semiótica (as categorias) e passa a
debater com Descartes, o fundador da modernidade filosófica.
27
2.1 - Síntese: de Hume a Kant
Um dos principais fatores impulsionadores do projeto crítico kantiano é a prova
estabelecida por Hume de que não há fundamentação lógico-formal para indução, ou
seja, que os raciocínios ampliativos (que estão na base do conhecimento produzido pela
ciência) não podem ter sua validade garantida de forma puramente racional. Se houver
alguma necessidade envolvida nas conclusões de nossos raciocínios ampliativos, esta
necessidade não pode ser de base racional.
Por exemplo, de um ponto de vista lógico, o juízo "um triângulo tem três lados" é
necessário. Esta necessidade lógica decorre do fato da negação deste juízo implicar
numa contradição, uma vez que o predicado "ser algo que tem três lados" é a própria
definição ou o próprio significado de triângulo. Como este predicado "________ tem
três lados" é a própria definição do que é triângulo, então, no fundo, o que o juízo
afirma é que "algo que tem três lados tem três lados". Sendo assim, caso este juízo fosse
negado, estaríamos diante da seguinte contradição: "algo que tem três lados não tem três
lados". Ora, este juízo é da forma A é não-A e está em flagrante contradição com um
princípio da lógica que se chama justamente "princípio da não-contradição"17
. Então, se,
por um lado, pode-se afirmar que há uma necessidade envolvida no juízo "um triângulo
tem três lados", porque sua negação implica numa impossibilidade, então, por outro
lado, também se pode afirmar que esta necessidade é lógica, porque a impossibilidade
(de sua negação) é devida a uma lei suprema da razão (ao menos de acordo com teorias
tradicionais), o princípio da não-contradição.
Para Hume (THN 1.3.14 SB 166)18
, a necessidade envolvida nos juízos "a soma
interna dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos (i.e. 180°)" e
"2x2=4" é baseada somente no entendimento que se possui acerca das ideias envolvidas.
A relação entre "os três ângulos de um triângulo" e "dois ângulos retos" é invariável
"enquanto a nossa ideia permanecer a mesma" (THN 1.3.1 SB 69) a respeito destas
17
É o princípio que afirma que a conjunção de uma proposição com sua negação (ou seja, em linguagem
formal, "p e não-p") necessariamente é falso. Fora deste quadro formal, este princípio possui outras
formulações (como "um enunciado não pode ser verdadeiro e falso") e vem desde os gregos sendo
entendido como um dos princípios fundamentais dentro da lógica capazes de explicitar as leis da razão
(cf. Gonzáles Porta, 2002, p. 115). 18
Paras citações das obras de Hume, utilizaremos um duplo sistema de referência: no primeiro sistema, a
referência é feita recorrendo-se a uma divisão (de capítulos e seções) interna à própria obra e, no segundo
sistema, a referência é feita recorrendo-se à paginação de uma edição padrão (no caso de Hume, esta
edição é aquela organizada por L. A. Selby-Bigge). Para citarmos a obra "Tratado da natureza humana"
(Treatise of Human Nature), utilizaremos a abreviatura THN seguida de três números, relativos (cada um
deles) ao livro, parte e seção onde se encontra a passagem citada (por exemplo, THN 1.3.14 se refere à
décima quarta seção da terceira parte do primeiro livro do Tratado). Ao lado dessa primeira abreviatura (e
dessa primeira numeração), colocamos uma segunda abreviatura (que é relativa à edição) SB seguida do
número da página (por exemplo, SB 166 se refere à página 166 da edição organizada por L. A. Selby-
Bigge). Para as citações da obra "Investigação sobre o entendimento humano" ("Enquiries concerning
human understanding"), o sistema de referência é muito semelhante. A grande diferença é que, neste
caso, a abreviatura da obra é EHU (e numeração que segue esta abreviatura é relativa somente à seção e à
parte em que se encontra o trecho citado).
28
expressões ou termos, ou seja, exceto no caso em que mudemos nossa concepção de
triângulo, esta relação será sempre verdadeira.
Notemos que a verdade destes juízos não é retirada do confronto com dados da
experiência. Estes juízos são entendidos como independentes de qualquer informação
que nos chegue pelos sentidos. Por este motivo, não seria possível que, algum dia,
alguns pesquisadores descobrissem em laboratório um triângulo que não tivesse três
lados. No dia em que se descobrisse um triângulo que não teria três lados, pode-se ter
certeza que neste dia o termo "triângulo" não teria mais o mesmo significado que hoje
lhe atribuímos. Mesmo no mais relativístico dos tempos, pode-se encher o peito para
afirmar que estes juízos carregam necessidade (lógica), porque podemos jogar esta
necessidade "na conta" do princípio da não-contradição, ou seja, as fundações desta
necessidade são lógico-formais. Entretanto, óbvio está que nem todos os juízos com os
quais lidamos (mesmo no dia a dia) são desse tipo.
Por exemplo, se nos perguntássemos qual é a cor do sofá que temos em casa e
respondêssemos "o sofá é vermelho", note que este juízo é feito com base na
experiência, com base na observação do objeto em questão. Se afirmamos saber que o
sofá é vermelho, este conhecimento não depende da definição do termo "sofá", mas é
um "conhecimento factual". Caso este juízo fosse negado ("o sofá não é vermelho"), isto
não implicaria, de forma alguma, numa impossibilidade ou numa contradição. Podemos
muito bem conceber uma situação (possível) em que o sofá (do qual tratamos) não seja
vermelho e note que isto não desrespeitaria o princípio da não-contradição. O juízo "o
sofá é vermelho" é uma contingência (o que ele afirma é verdadeiro, mas não é
necessariamente verdadeiro, uma vez que sua negação seria possível, i.e., logicamente
concebível). Esta contingência não nos parece perturbadora. Ninguém ficaria muito
chateado caso descobrisse que, embora o sofá que ostenta em sua sala de estar seja
atualmente vermelho (e isso o faz combinar com as demais mobílias de tal recinto), ele
poderia muito bem ser de qualquer outra cor. Notar que esta é uma verdade contingente
simplesmente não alteraria drasticamente a vida de ninguém. O problema é quando nos
voltamos para juízos que carregam pretensão de validade universal, juízos que
pretendemos que sejam necessariamente verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, notamos
que o único motivo que nos levaria a acreditar que tais juízos sejam necessariamente
verdadeiros é que até o momento a experiência teria nos garantido que eles têm sido
sempre verdadeiros. O que é problemático é que a experiência só é capaz de nos ensinar
como são ou foram as coisas (até o presente momento), mas não como elas devem ser
(do presente momento em diante). O problema são aqueles juízos que, apesar de suas
origens estarem fincadas no chão da experiência, pretendem alçar voo rumo ao céu das
verdades eternas, invariáveis. É exatamente este o caso de alguns juízos que residem no
coração das ciências empíricas. Antes de entrarmos nesta seara (de afirmações
científicas), comecemos "por baixo". Vejamos exemplos mais prosaicos.
No dia a dia, não é incomum que nos expressemos com frases nas quais escondemos
pretensões de verdade necessária. Quando afirmamos que "o sol nascerá amanhã" ou
que "todos os homens são mortais" (cf. THN 1.3.11 SB 124), estamos diante de
29
contingências. A base que temos para afirmar que amanhã o sol há de nascer e que todo
homem, algum dia, há de morrer é a experiência passada que nos informa que até hoje
não houve um dia sequer que o sol não tenha nascido e também não foi encontrado
nenhum homem que exibisse a propriedade da imortalidade. Entretanto, notemos que,
ainda que consideremos o conhecimento expresso por estes juízos como algo certo e
ainda que ajamos como se estas fossem verdades necessárias, estes juízos não
expressam um conhecimento que seja decorrente das definições das ideias envolvidas.
A negação destes juízos ("o sol não nascerá amanhã" ou "algum homem não é mortal")
não implica numa contradição. Da mesma forma (e quase com a mesma facilidade) que
podemos conceber que um sofá que atualmente é vermelho fosse de outra cor, podemos
imaginar que o sol (que até hoje nasceu a cada dia) não nasça no dia de amanhã e
também podemos imaginar que homens (que atualmente são mortais) sejam, dentro de
um cenário possível, imortais. Ao contrário daquele caso do "triângulo" que não
possuiria três lados, a negação destes juízos não implica numa contradição. Isto
significa que, se há alguma necessidade envolvida neles, esta não poderia ser uma
necessidade de ordem lógica.
Se acreditamos que tais juízos devem ser sempre verdadeiros, i.e., necessariamente
verdadeiros, é porque supomos haver algum motivo, razão, princípio, lei natural, em
resumo, uma espécie de força que seja eternamente operante e, assim, torne impossível,
na prática, que este juízo seja falso (ainda que, em teoria, possamos conceber a
possibilidade do caso contrário). Se acreditamos que é sempre verdadeiro o juízo "o sol
nascerá amanhã" é porque supomos haver algo que seja capaz de agir a cada dia fazendo
com que o sol nasça. Este algo, esta força eternamente operante pode receber o nome de
causa. Como todos os dias que começaram foram acompanhados do nascimento do sol,
nossa mente se acostumou a juntar estas duas ideias "o começo do dia" e "o nascimento
do sol" estabelecendo que a primeira delas é uma causa cujo efeito é a segunda dessas
ideias. A cada 24 horas, a cada "começo de dia", o sol deve surgir. O mecanismo de
associação que está por trás desta crença é a causação (ou causalidade).
Voltemo-nos para o tratamento que Hume deu à noção de causação, pois análise
humeana desta noção e a teoria dela resultante estariam destinadas a impulsionar Kant a
produzir sua inversão copernicana (na epistemologia). De acordo com análise levada a
cabo por Hume na obra "Tratado da natureza humana", diante da ideia de causação, o
primeiro ponto as ser notado é que ela deve ser derivada da relação entre dois objetos
(THN 1.3.2 SB 75), um deles deve entrar na relação como causa e o outro como
efeito. Nesta relação de causa e efeito, há, de acordo com Hume (THN 1.3.2 SB 76-7),
três componentes essenciais: I) contiguidade; II) sucessão; e III) conexão necessária.
Partindo do princípio que toda ideia deve ter origem nos sentidos, se isolarmos a ideia
de causação e nos indagarmos a respeito de sua origem na experiência, ou seja, se nos
perguntarmos quais são as exatas impressões dos sentidos que correspondem à ideia de
causação ou às suas partes, notaremos, que apenas as duas primeiras componentes
(contiguidade e sucessão) têm como fonte as impressões dos sentidos. Por exemplo,
suponha que estejamos observando a perplexidade de uma criança diante do fato de uma
30
bola de bilhar poder "transmitir" (não sem alguma considerável "contraparte" sonora)
seu movimento para outra bola e tentemos explicar para ela como essas "coisas"
ocorrem. Nossa tentativa consiste em afirmar que "toda vez que uma bola que está se
movimentando encosta numa bola que está parada, esta passa a se movimentar". A
explicação que fornecemos à criança (e esta é o coração das teorias científicas) é que
um certo fenômeno é apontado como efeito para o qual algum outro fenômeno é
apontado como causa. O movimento da bola branca causa o movimento da bola
vermelha. Nesta relação de causa e efeito, o que efetivamente vemos é que os dois
fenômenos (os dois movimentos de ambas as bolas de bilhar) são contíguos e
sucessivos, ou seja, o que nossos sentidos nos informam é que estes fenômenos
ocorreram em proximidade espaço-temporal e que um deles é anterior ao outro (o
movimento apresentado como causa é anterior ao movimento apresentado como efeito).
Se analisarmos as ideias (complexas) que temos desses movimentos, de acordo com a
teoria humeana, poderíamos chegar a ideias simples (componentes) que devem
corresponder biunivocamente a determinadas impressões dos sentidos. O mesmo não
pode ser feito com o terceiro componente essencial da relação de causa e efeito: a
conexão necessária. Para esta ideia, não há correspondência direta com a experiência.
Esta ideia simplesmente não está baseada na experiência do momento presente (quando
estamos diante daquela mesa de bilhar ao lado da criança), ela é inferida de experiências
anteriores. Portanto, a parte "problemática" da explicação fornecida para criança é
aquela expressão com a qual iniciamos o enunciado explicativo: "toda vez que..." .
Como veremos, a resposta (que tanto perturbou Kant) fornecida por Hume no Tratado,
era que a origem da necessidade envolvida na causalidade estava no hábito. Embora aos
olhos da criança tudo seja novo, já vimos diversas vezes que fenômenos de certo tipo
(como o movimento da primeira bola) eram sempre seguidos de fenômenos de outro
tipo (como o movimento da outra bola). A inferência que fazemos é a seguinte: se em
diversas situações anteriores os objetos que estavam em repouso começaram a se mover
depois que foram tocados por outros objetos que estavam em movimento, então, no
presente caso, em que estou diante de bolas de bilhar que são objetos muito semelhantes
aos objetos envolvidos nas situações anteriores, devo esperar que uma bola que esteja
em repouso vá começar a se mover logo que for tocada por uma bola que esteja em
movimento.
De acordo com a exposição de Hume (TNH 1.3.6 SB 87), é justamente a conjunção
constante em todas as situações anteriores que faz com que, "sem muita cerimônia",
chamemos um desses fenômenos de causa e o outro de efeito. E é esta mesma
conjunção que nos faz, de forma muito natural, inferir a existência de um a partir da
existência do outro. Tal inferência é a marca de um hábito adquirido pela mente graças à
repetição de experiências nas quais um objeto é entendido como causa de outro.
Tornada habitual esta associação de causa e efeito, logo que a impressão relativa ao
primeiro desses objetos nos atinge os sentidos, imediatamente nos vem à mente a ideia
relativa ao segundo objeto. É isto que nos permite antecipar que, por exemplo, a bola
vermelha (que inicialmente está em estado de repouso) passará a se mover se for
31
atingida pela bola branca (que já está em movimento). Logo que vemos a bola branca se
mover, já nos vem à mente a ideia do movimento da bola vermelha (o que ainda está por
ocorrer). É este hábito que nos permite "descolarmos" do presente imediato da
experiência e visar o futuro. É a partir de uma associação habitual da mente que é
gerada a crença de que o futuro deve ser similar ao passado. A fonte da necessidade que
"enxergamos" na ideia que temos de causalidade é o hábito.
Na obra "Investigação sobre o entendimento humano" (1777), Hume nos apresenta a
estrutura básica das inferências que nos levam da causa ao efeito lançando mão de duas
proposições: "Descobri que tal objeto tem sido sempre acompanhado de tal efeito e
prevejo que outros objetos que, por serem similares na aparência, serão acompanhados
de efeito similar" (EHU sec. VI, parte 2 SB 34). Denominemos esta inferência de
inferência causal.
Inferência causal
proposição_1 --> Objetos do tipo a tem sido sempre acompanhados do efeito b.
proposição_2 --> Todos os objetos do tipo a são (sempre) acompanhados do efeito b.
A passagem da primeira para a segunda destas proposições não é, de forma alguma,
necessária de um ponto de vista lógico. Apenas com o que a lógica nos oferece de
princípios reguladores (como aquele da não-contradição acima referido), não podemos
garantir a verdade da conclusão a partir da verdade da premissa. Se esta inferência
causal fosse necessária, válida universalmente, então deveria ser impossível que a
natureza mudasse seu curso, ou seja, se tal inferência causal fosse necessária, então seria
válido aquilo que é geralmente denominado de princípio da uniformidade: "Todas as
situações, das quais não tivemos experiência, se parecem com aquelas situações com as
tivemos experiência e o curso da natureza continua sempre o mesmo" (THN, 1.3.6 SB
89). Se insistirmos que esta inferência causal é necessária do ponto de vista lógico,
seremos obrigados a encontrar algum argumento que possa justificar logicamente o tal
princípio da uniformidade. Justificar logicamente uma proposição significa encontrar
um argumento cuja conclusão seja proposição em questão.
Notemos que o que estamos testando é a hipótese de que a inferência causal seja
necessária de um ponto de vista lógico, ou seja, a hipótese a ser testada é de que a
necessidade (a conexão necessária) envolvida dentro da noção de causalidade tenha
fundações racionais.
Hipótese: "Toda inferência causal é necessária de um ponto de vista lógico".
Para testá-la, vamos, primeiro, supor a situação em que ela é verdadeira para que
observemos suas consequências. Como já antecipamos, se esta proposição for
32
verdadeira, então deve ser possível encontrar algum argumento que sustente o tal
princípio da uniformidade.
Teste para hipótese: Se a proposição "toda inferência causal é necessária de um
ponto de vista lógico" for verdadeira, então há um argumento para sustentar o
princípio da uniformidade.
Ora, se a proposição de que a inferência causal é necessária logicamente (ou,
alternativamente, que a necessidade envolvida é de "origem racional") implica a
proposição de que há algum argumento que seja capaz de sustentar o princípio da
uniformidade, então o próximo passo é procurar por este argumento. Assim,
observemos que, para justificarmos logicamente o princípio, temos duas opções: ou
recorrermos a um argumento demonstrativo (uma dedução) ou recorremos a um
argumento provável (uma indução).
Vejamos, em primeiro lugar, o caso do argumento demonstrativo. Não podemos
construir um argumento demonstrativo para sustentar este princípio, porque, como
aquela inferência causal trata de uma questão de fato, é sempre concebível uma situação
em que a proposição_1 seja verdadeira e a proposição proposição_2 seja falsa. Ao
contrário daquelas situações em que examinamos uma proposição cuja negação é
inconcebível (como o caso do "triângulo" que não tem três lados), quando lidamos com
proposições baseadas na experiência (i.e., com questões de fato), é sempre possível
imaginarmos que a natureza sempre poderia seguir um curso distinto daquele observado
no passado.
Estabelecido que um argumento demonstrativo (uma dedução) não é capaz de sustentar
o princípio, voltemos para o outro caminho possível: o argumento provável (a indução).
Se tentássemos estabelecer o princípio da uniformidade a partir de uma coleção de
observações particulares coletadas na experiência, notaríamos que, no momento em que
fôssemos saltar das premissas (particulares) para a conclusão (universal), recorreríamos
sub-repticiamente ao próprio princípio que pretendemos provar. Isto significa que
estaríamos supondo o que deveríamos provar. Como os próprios raciocínios prováveis
(as induções) recorrem ao princípio da uniformidade, não podemos utilizá-los para
provar um princípio do qual o próprio funcionamento deles dependeria. O mesmo
princípio não pode ser causa e efeito de si mesmo (THN, 1.3.6 SB 89). Um argumento
desses seria circular e, por isso, incapaz de sustentar a proposição que exibe como
conclusão. Ora, se não pode haver nenhum argumento demonstrativo e também não
pode haver nenhum argumento provável que sustente o tal princípio de uniformidade e
estes são os únicos tipos de argumentos que a razão nos disponibiliza para apresentar
justificativas racionais, então o resultado é que não pode haver justificativa racional
para nossa hipótese de que toda inferência causal carrega uma necessidade lógica. Se há
alguma necessidade envolvida, a razão simplesmente não pode nos ajudar.
33
Raciocínio acerca da justificativa racional para a hipótese de que toda inferência
causal carrega uma necessidade lógica
Premissa_1: Se a proposição "toda inferência causal é necessária de um ponto de
vista lógico" for verdadeira, então há um argumento para sustentar o princípio da
uniformidade.
Premissa_2: Não há um argumento para sustentar o princípio da uniformidade.
Conclusão: A proposição "toda inferência causal é necessária de um ponto de
vista lógico" é falsa.
O resultado, portanto, é que a necessidade envolvida neste tipo de inferência (causal)
simplesmente não pode ser fundamentada em qualquer tipo de raciocínio. O que está em
jogo (e isto é central para que entendamos os desígnios do projeto epistemológico
peirceano) é o modo como validamos nossos raciocínios ampliativos (que Peirce
denominará de sintéticos). Qual a origem de nossa confiança em nossas induções? Para
Hume, em última análise, nossas induções são baseadas em hábitos e nossa confiança
nelas é uma espécie de instinto.
Notemos que, ao aceitarmos o ponto de partida do empirismo e seguirmos as linhas
argumentativas elaboradas por Hume, devemos nos limitar a apenas reconhecer como
universal (ou necessário) aquele conhecimento que decorre da relação entre ideias. O
conhecimento baseado nos fatos, na experiência não pode carregar essa universalidade.
Pode-se colocar este problema da seguinte forma: a experiência nos ensina como as
coisas são (ou foram), mas ela não pode nos ensinar como as coisas necessariamente
devem ser. Observando apenas a metade vazia do copo19
, a lição a ser tirada é que todo
19
É inegável que haja uma tendência em se interpretar o argumento de Hume sobre a inferência causal de
uma perspectiva puramente negativa. Como se a intenção última do "mais engenhoso de todos os céticos"
fosse, de uma vez por todas, solapar as bases das ciências com um argumento destinado a provar que
qualquer raciocínio indutivo seria um despautério. Geralmente, este tipo de leitura de Hume está
estrategicamente encaixada em narrativas que o apresentam como um problema cuja solução é Kant. De
acordo com estas narrativas que apresentam Hume como uma espécie de filósofo-escada, "a possibilidade
das ciências da natureza, diabolicamente minada em Edimburgo, fora salva in extremis em Königsberg,
poucos anos depois" (LEBRUN, 1993 p. 11-2). Infelizmente parece fazer coro a essa leitura negativista
nossa brevíssima exposição das argumentações e análises de Hume, que, aliás, também será seguida da
solução kantiana. Entretanto, para isto não há remédio, pois nosso intuito neste capítulo é apresentar ao
leitor uma visão ampla das origens da semiótica dentro do cenário dos debates epistemológicos da
filosofia moderna. Para amenizar, podemos enfatizar que, embora a visão negativista do argumento
humeano tenha sido muito bem mobilizada por Kant em seu próprio projeto epistemológico, não há nada
que nos obrigue a pensar que a impossibilidade de se fundar a causalidade na razão (ao menos, numa
concepção tradicional de razão) seja um problema não-resolvido no horizonte do projeto filosófico de
Hume. Não estamos negando que não haja tensão alguma no pensamento humeano. Aliás, para alguns
estudiosos da obra de Hume, a questão mais importante na interpretação de toda a filosofia humeana é
compatibilização entre o ceticismo e o projeto de desenvolver uma ciência da natureza humana (Garrat,
1997, p. 206). Só o que pretendemos ressaltar (nesta longa nota-de-roda-pé) é que o argumento acerca da
34
conhecimento que depende da experiência não pode ser considerado necessário a partir
de critério lógico-formal ou, dito de outro modo, somente o conhecimento que for
independente da experiência pode ser considerado necessário a partir de critério lógico-
formal. A validade universal ou necessidade que atribuímos ao conhecimento
dependente da experiência não tem fundações racionais.
Com Hume, a polarização entre empirismo e racionalismo dentro da filosofia moderna
parece ter atingido seus limites. Seja qual fosse o próximo passo, sabemos que seria um
movimento radical. Tentemos reconstruir nalgumas poucas linhas este cenário. Por um
lado, sabemos que, em pleno desmoronamento do saber tradicional e reavivamento de
certo ânimo cético, a aventura moderna começa com o projeto cartesiano de encontrar
fundações absolutamente seguras para o conhecimento físico-matemático e, assim,
garantir a sustentação de todo o edifício do conhecimento humano. Se o racionalismo
"dogmático"20
de Descartes consegue estabelecer fundações absolutamente seguras para
edificação do conhecimento físico-matemático, o preço a ser pago pelo projeto
cartesiano seria a obrigação de ter que justificar a construção de toda uma infraestrutura
metafísica capaz de conceder validade às faculdades cognoscitivas humanas. Por outro
lado, sabemos que, um século depois de Descartes, o objetivo de Hume é levar o
método experimental (que tanto sucesso obteve na mecânica newtoniana) até "assuntos"
humanos. Um dos resultados mais evidentes deste projeto humeano de construir uma
ciência da natureza humana com base na experiência é a constatação da
incompatibilidade entre as bases empíricas que (segundo os empiristas) garantem o
progresso das ciências e as fundações metafísicas que (de acordo com racionalistas)
garantem a validade universal e o caráter necessário do conhecimento obtido pelos
empreendimentos científicos. Se o empirismo cético de Hume consegue inviabilizar a
metafísica, o preço a ser pago pelo projeto humeano seria a obrigação de ter que
justificar como seria possível a ciência newtoniana ter obtido um conhecimento
universalmente válido e necessário a partir da experiência. Esta simplesmente não
parece ser uma preocupação que tenha lugar no horizonte da filosofia de Hume. De sua
célebre análise da conexão necessária envolvida na noção de causalidade, Hume não
apenas deriva consequências seminais para suas reflexões sobre necessidade e liberdade
(cf. THN 2.3.1 SB 399), o que acaba por ter impacto direto no seu tratamento de
"assuntos" humanos (moralidade e religião), como já parece acenar para uma concepção
indução só se torna efetivamente o "problema de Hume" a partir de uma perspectiva kantiana ou, ao
menos, de uma perspectiva muito conveniente ao projeto filosófico de Kant (na Crítica). 20
O termo "dogmático", neste trecho, deve ser entendido no sentido mais estrito dado por Kant no
prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura. Para Kant (KrV B XXVI), o dogmatismo pode ser
definido como a "presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos
(conhecimento filosófico), apoiado em princípios, como os que a razão desde muito aplica, sem se
informar como e com que direitos os alcançou". Assim, arremata Kant, "o dogmatismo é, pois, o
procedimento dogmático da Razão sem uma crítica prévia de sua de usa própria capacidade". Exemplos
de "dogmatismos", de acordo com esta definição de Kant na Crítica, seriam os sistemas metafísicos de
Descartes e Leibniz, por exemplo.
35
de ciência muito distante daquela visão tradicional cujo centro gravitacional é a
necessidade ou a validade universal21
.
Hume não parece constrangido em afirmar que a razão (longe de ser exclusividade
humana) não passa de um "maravilhoso e ininteligível instinto em nossos espíritos que
nos leva de uma ponta a outra de um certo trem de ideias [train of ideias]" (THC 1.4.16
SB 179). A razão, aos olhos de Hume, em nada lembra aquela centelha furtada dos
deuses para ser entregue aos homens. Óbvio está que, se nem mesmo a própria noção de
racionalidade sai incólume do projeto humeano de levar o método experimental a
"assuntos humanos", a ciência não poderia permanecer em seu posto de atividade
humana com características divinas (ou, na versão cartesiana, atividade humana
assegurada por Deus). Kant simplesmente não está disposto a abrir mão da concepção
de ciência como conhecimento universalmente válido e necessário embora também não
esteja disposto a ter que recorrer, para fundamentar tal conhecimento, a ferramentas
metafísicas sem antes avaliar se a metafísica pode mesmo ser considerada uma ciência.
Kant não pretende recorrer à razão pura sem antes, dela, fazer uma crítica. Comecemos
a ajustar o foco para nos aproximarmos de um enquadramento propriamente kantiano
destas questões. É neste enquadramento que poderemos reconstituir os primeiros passos
da filosofia peirceana.
Todo o conhecimento que é independente da experiência é denominado por Kant de
conhecimento a priori. Ora, estabelecido que a experiência, por si só, é incapaz de
fundar algum conhecimento que seja válido universalmente, torna-se imediato o
seguinte raciocínio: se admitirmos que haja algum conhecimento válido universalmente,
então, alternativamente, este conhecimento só pode ser a priori. Admitido que tal
conhecimento seja, ao menos possível, então a próxima pergunta deve ser a seguinte:
existe algum conhecimento a priori (o único capaz de carregar validade universal e
necessidade) que seja ampliativo, ou seja, será que há algum o conhecimento a priori
que não dependa somente de uma análise do significado dos conceitos nele envolvidos
(como ocorre no caso da proposição "o triângulo tem três lados")? A resposta kantiana
é positiva.
Na "Crítica da Razão Pura"22
, Kant procura captar esta problemática sob outro
enquadramento terminológico. Nesta obra, Kant cunha o termo "juízos analíticos" para
se referir àqueles juízos cuja compreensão do significado (dos termos envolvidos) é
suficiente para se determinar o valor-de-verdade. De acordo com a exposição de Kant
(KrV B 11), neste tipo de juízo o predicado estaria contido no sujeito. Aliás, a
21
Para Owen (1999, p. 154), o que torna tão distinto o tratamento que Hume fornece para o problema do
raciocínio provável é que, para o filósofo escocês, este tipo de raciocínio não é baseado na razão, mas, em
última análise, tem suas bases lançadas em terreno movediço, em processos instintivos. 22
O sistema de referência à Crítica da Razão Pura ("Kritik der reinen Vernunft") é o padrão. A
abreviatura KrV é seguida de uma letra, relativa à edição, e um número, relativo ao parágrafo (dentro
daquela edição). A letra A é relativa à primeira edição da obra publicada em 1781 e a letra B é relativa à
segunda edição que foi publicada em 1787 (e que contém alterações consideráveis nalgumas seções). Para
citações da obra "Prolegômenos a toda metafísica futura" ("Prolegomena zu einer jeden künftigen
Metaphysik" [1783]), utilizaremos a abreviatura Pr. seguida de uma número relativo ao parágrafo.
36
denominação "analítico" decorre do fato de que o valor-de-verdade de tal juízo pode ser
determinado a partir de uma análise do conceito relativo ao termo que ocupa a posição
de sujeito (no juízo). Por exemplo, o juízo "todos os corpos são extensos" é analítico,
pois basta que analisemos o conceito de corpo (que é sujeito neste juízo) para que
descubramos dentre os seus componentes a ideia de extensão (que é predicado neste
juízo). Dentro deste mesmo quadro, Kant utiliza o termo "juízo sintético" para se referir
a juízos cuja compreensão do significado não é suficiente para se determinar o valor-de-
verdade. Novamente, de acordo com o exposto na "Crítica da razão pura" (KrV B 11),
ocorre síntese quando o conceito relativo ao predicado representa um acréscimo ao
conceito relativo ao sujeito, uma vez que aquele não está contido neste. Por exemplo, o
juízo "todos os corpos são pesados" é sintético, pois o predicado é algo completamente
distinto daquilo que pensamos no conceito de corpo em geral. Apresentada parte da
terminologia kantiana, reformulemos o problema filosófico kantiano em seus próprios
termos: como são possíveis juízos sintéticos a priori?
Formulada a pergunta por trás da "Crítica da Razão Pura", comecemos por focalizar a
resposta, a solução kantiana. O ponto de partida de Kant é a percepção de que, se
considerarmos que a realidade que acessamos pela experiência nos é dada enquanto tal e
que, por isso, o nosso conhecimento é um processo de captação de uma realidade que é
absolutamente independente do sujeito, então torna-se inexplicável como pode haver
algum conhecimento universalmente válido a respeito dos fatos. Está na origem da
virada copernicana de Kant esta percepção de que à mente não pode caber somente o
papel de "registradora epistemológica".
Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos;
porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo
que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto.
Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas
da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso
conhecimento, o que assim já concorda com o que desejamos, a saber, a
possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça
algo sobre eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança
com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação
dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se
movia e torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes
girar o espectador e deixar os astros imóveis.
(KrV, B XVI)
O ponto a ser notado é justamente que, se entendermos o conhecimento como uma
relação na qual o sujeito cognoscente tem um papel passivo (que consistiria apenas em
ser afetado) e objeto tem um papel ativo (que consistiria apenas em afetar), logo torna-
se inexplicável qualquer conhecimento que seja a priori e ao mesmo tempo sintético. A
razão pode inscrever a marca de sua validade universal e necessidade apenas naquele
conhecimento que ela produz ou que ajudou a produzir. Então, para que haja
possibilidade de conhecimento a priori, a razão teria que interferir na própria
constituição do objeto a ser conhecido (antes mesmo que ele possa ser conhecido e até
37
mesmo para que ele possa ser conhecido). A inversão copernicana à qual se refere Kant
é justamente o estabelecimento de uma posição a partir da qual o nosso aparato
sensório-cognitivo seja entendido como algo que molda a realidade que a experiência
nos apresenta. A partir desta perspectiva, embora, por um lado, tenhamos que
reconhecer que a realidade em si mesma nos é incognoscível, por outro lado, podemos
afirmar que, a respeito da realidade moldada (pelo nosso modo de captar e entender),
podemos ter conhecimento universalmente válido.
Anunciada a virada copernicana, a tarefa kantiana é, então, descrever a partir de uma
análise a estrutura a priori da experiência, que é uma espécie de molde universal e
necessário com o qual o homem está condicionado a enxergar e compreender o mundo.
O "aparato" responsável pelo conhecimento é divido em duas faculdades: aquela
relativa à sensibilidade (pela qual o sujeito recebe as impressões dos sentidos) e aquela
relativa ao entendimento (pela qual o sujeito produz conceitos). A primeira dessas
faculdades nos fornece intuições sensíveis do objeto e a segunda delas nos fornece
conceitos que nos tornam capazes de pensar o objeto. Portanto, o objeto que nos é dado
(à faculdade da sensibilidade) pelas intuições sensíveis pode ser pensado (pela
faculdade do entendimento) graças a conceitos. Para Kant, o conhecimento é obtido ao
se submeter a multiplicidade dos dados provenientes dos sentidos à unidade do
conceito.
Pelas condições de nossa natureza a intuição nunca pode ser senão sensível,
isto é, contém apenas a maneira pela qual somos afetados pelos objetos, ao
passo que o entendimento é a capacidade de pensar o objeto da intuição
sensível. Nenhuma dessas qualidades tem primazia sobre a outra. Sem a
sensibilidade nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum
seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem
conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos
(isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as
intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). Estas duas capacidades ou
faculdades não podem permutar as suas funções. O entendimento nada pode
intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém
conhecimento.
(KrV, A 51/B75-6)
Apresentada esta divisão, Kant passa a descrever as formas puras, estruturas que se
"localizam" antes da experiência e a condicionam. Como esta forma ou estrutura é a
priori (i.e., anterior e independente de qualquer conteúdo da experiência), torna-se
possível explicar a validade universal e a necessidade requerida pelo conhecimento.
Como são duas as faculdades envolvidas, também existem duas formas puras
envolvidas na relação do sujeito com objeto: as formas puras da intuição e também as
formas puras do entendimento (i.e., os conceitos puros ou as categorias). Por intuição
pura Kant entende uma espécie de moldura dentro da qual percebemos o mundo. São
reconhecidas duas formas puras da intuição: o espaço e o tempo. Seja o que for
percebido (texturas, odores, cores, sabores, sons, sentimentos, etc.), deve ser
condicionado por este molde a priori, por esta moldura espaço-temporal. Assim, em sua
38
teoria do conhecimento, Kant nos apresenta o espaço e o tempo como condições de
possibilidade de toda e qualquer experiência. Em outras palavras, isto significa que aos
humanos não é permitido perceber nada fora de uma moldura espaço-temporal. Kant
encontra nestas formas puras da intuição sensível a fonte da necessidade do
conhecimento obtido pela matemática. Deve-se recordar que o problema central de Kant
era justamente o de responder como é possível um conhecimento ser necessário sem que
tal necessidade seja lógico-formal (i.e., uma necessidade derivada do princípio da não-
contradição). Tomemos como exemplo aquela ciência que (dentro da matemática) é
responsável pelo estudo do espaço e de suas propriedades: a geometria. Como o espaço
é uma forma pura da intuição, então os objetos (pontos, linhas, planos, triângulos, etc.)
da geometria nos são dados na intuição pura e, por este motivo, o conhecimento que
obtemos a partir do estudo de suas propriedades é sintético sem deixar de ser a priori 23
.
Movamo-nos para o segundo andar do "aparato" responsável pelo conhecimento: o
entendimento. Se, por um lado, o espaço e o tempo são formas puras (a priori) que
condicionam nossa percepção do mundo, por outro lado, devem existir formas puras (a
priori) que condicionam nosso entendimento do mundo. Estas formas puras ou a priori
do entendimento são o que Kant denomina categorias. As categorias são formas puras
do entendimento que funcionam como regras sem as quais não podemos conceber, não
podemos produzir conceitos. Portanto, uma categoria do entendimento pode ser
considerada algo como um conceito puro, i.e., sem conteúdo empírico algum. Ao
contrário da maioria de nossos conceitos, que têm origem na experiência, tais conceitos
puros não partem da experiência e nem podem ser nela encontrados de forma direta,
pois eles estruturam toda a experiência possível, ou seja, estes conceitos puros, ao lado
das formas puras de intuição, entram na teoria do conhecimento (de Kant) como
condições de possibilidade da experiência. Se, no caso da faculdade de sensibilidade,
para explicar como as formas puras da intuição (espaço e tempo) condicionam nossa
experiência, utilizamos a metáfora da moldura, neste caso da faculdade do
entendimento, para explicar como as formas puras dos entendimentos (as categorias)
condicionam nossa experiência, lancemos mão da metáfora da gramática (cf. Pr., 39).
As categorias funcionam como regras que fornecem uma estrutura interna aos
fenômenos ligando, conectando seus elementos. Por este motivo, a faculdade do
23
Aliás, é justamente pela intuição (em questão, no caso da geometria) ser pura que a síntese pode ser a
priori. Esta combinação torna-se possível no interior da teoria exposta por Kant devido a seu
entendimento do que vem a ser geometria. Para Kant, a geometria é a ciência que tem por objetivo
estudar as propriedades do espaço (KrV B 40-1) e a validade universal e necessidade de seus axiomas
(postulados, noções gerais, princípios, etc.) decorre justamente de o espaço ser entendido como uma
forma pura (a priori) da intuição. Por um lado, o espaço não pode ser entendido como um conceito, pois,
se fosse, então todas as proposições da geometria seriam analíticas. E, por outro lado, a geometria
também não poderia derivar a validade de suas proposições de intuições que não fossem puras (a priori),
pois se tal validade estivesse baseada em intuições empíricas, então ela só poderia produzir conhecimento
dependente da experiência (a posteriori), o que nos impediria, como vimos com o empirismo, de declarar
tal conhecimento universal e necessário. Fosse baseado em intuição empírica (i.e., que não é pura, que
não é a priori), seríamos obrigados a afirmar que o Teorema de Tales vale apenas para aqueles triângulos
empíricos, concretos que ele desenhou na areia quando se dispôs a apresentar a prova para os colegas. A
solução kantiana depende que o espaço seja entendido como uma forma pura da intuição e as proposições
da geometria sejam, então, sintéticas e a priori.
39
entendimento é a “parte” mais propriamente ativa do ato de conhecimento e é nela que
podemos enxergar com maior nitidez o cerne da virada copernicana operada por Kant.
O entendimento humano é constitutivo da experiência. As categorias dizem respeito ao
modo próprio que o sujeito tem de estruturar toda a multiplicidade que lhe é dada na
intuição. Então, como as categorias estruturam a priori todo e qualquer fenômeno, elas
são a fonte da validade e universalidade do entendimento que podemos ter dos
fenômenos. São as categorias que permitem a Kant explicar como são possíveis os
juízos sintéticos a priori na física, por exemplo.
Dentro deste quadro teórico, diversos conceitos (como substância e causalidade) dos
quais o empirista exigia uma fundamentação adequada na experiência passaram a ser
considerados como condições da experiência em geral. Quando tais conceitos passam a
ser entendidos como categorias, eles passam a ocupar uma "posição anterior" à
experiência justamente para poder condicioná-la, para poder submetê-la às suas regras.
A causalidade, por exemplo, é uma regra que estabelece uma conexão necessária entre
fenômenos. É uma regra que nos garante que, dado um fenômeno qualquer, ele tem uma
relação necessária com algum outro fenômeno, que é sua causa. Sabe-se, assim, a priori
que qualquer fenômeno tem uma causa, pois, pela própria constituição do aparato
cognitivo humano, não podemos conceber nada que não esteja submetido à regra ou
categoria da causalidade. É uma espécie de sintaxe da nossa experiência. Em outras
palavras, devido à natureza de nosso entendimento, não podemos conceber nenhum
fenômeno que não tenha causa. Neste quadro teórico, a validade universal e a
necessidade do princípio "todo fenômeno tem uma causa" não devem ser buscadas na
experiência, mas na própria estrutura do aparato cognitivo que condiciona a nossa
experiência. Se, por um lado, no "Tratado da natureza humana", Hume estabeleceu que
não é possível encontrar correspondência alguma entre os elementos da experiência e a
necessidade envolvida dentro da noção de causalidade; então, por outro lado, na "Crítica
da Razão Pura", Kant afirma que necessidade envolvida dentro da noção de causalidade
é, no fundo, condição de possibilidade da experiência.
Porém, uma pergunta que qualquer empirista teria o direito de dirigir a Kant é a
seguinte: como foram obtidas categorias? Como dentro do quadro teórico kantiano, a
atividade do entendimento pode ser reduzida a capacidade de produzir juízos24
, pois é
através destes que aquela faculdade estabelece conexões entre diversas representações
para trazê-las à unidade, então o entendimento pode ter suas funções deduzidas das
funções do juízo. Em outras palavras, todas aquelas funções que, no entendimento, são
responsáveis pela redução da multiplicidade (provenientes dos sentidos) à unidade (do
conceito) podem ser deduzidas das funções lógicas que, no juízo, são responsáveis por
sua unidade. Todo o sistema de categorias é deduzido a partir das chamadas funções
lógicas do juízo. A cada categoria corresponde uma função lógica do juízo. São dois
sistemas (um de funções e o outro de categorias), cada um deles com doze elementos
divididos em quatro tríades. Em primeiro lugar, descrevamos a composição de cada um
24
De acordo com Kant, "Podemos (...) reduzir a juízos todas as ações do entendimento, de tal modo que o
entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar" (KrV, B94).
40
desses sistemas e, em seguida, remetamos o nosso leitor a uma ilustração (reproduzida
na próxima página) relativa aos dois sistemas25
emparelhados (para que nos seja
facilitada a percepção da correspondência entre os seus elementos).
As doze categorias kantianas estão dividas em quatro tríades: as categorias da
quantidade: Unidade, Pluralidade e Totalidade; as categorias da qualidade: Realidade,
Limitação e Negação; as categorias da relação: Inerência/Subsistência,
Causalidade/Dependência e Comunidade (ação recíproca); e, por último, as categorias
da modalidade: Possibilidade/Impossibilidade, Existência/Não-existência e
Necessidade/Contingência. Já as doze formas lógicas do juízo estão divididas também
em quatro tríades: a primeira delas é relativa à Qualidade: Universais, Particulares e
Singulares; a segunda delas é relativa à Quantidade: Afirmativos, Negativos e
Indefinidos; a terceira dessas tríades é relativa à Relação: Categóricos, Hipotéticos e
Disjuntivos; e, por último, a tríade relativa à Modalidade: Problemáticos, Assertóricos e
Apodícticos.
Apresentado este humilde panorama do projeto filosófico kantiano, já podemos voltar
nossa atenção para o desenvolvimento do pensamento peirceano, pois os primeiros
passos que Peirce dará na direção da construção de uma filosofia propriamente
semiótica guardam uma relação direta com as categorias de Kant (acima apresentadas),
sobretudo, com o modo pelo qual cada uma delas foi encontrada na obra "Crítica da
Razão Pura".
25
Nesta ilustração, “desrespeitamos” a distribuição espacial “losangular” utilizada por Kant destes dois
sistemas (tanto o de funções lógicas dos juízos [cf. KrV B95] como o de categorias [cf. KrV B106]).
41
42
2.2 - Sinai: de Kant a Peirce
Neste ponto de nossa exposição já podemos reencontrar Peirce. Inicialmente a crítica
peirceana (que desembocaria em sua semiótica), é direcionada somente contra o sistema
(as tábuas) de funções lógicas a partir do qual Kant deduziu seu sistema (suas tábuas) de
categorias. Na verdade, para que sejamos precisos, a crítica inicial parte da percepção de
que não há fundamentação para o sistema de funções lógicas.
Kant, em primeiro lugar, formou uma tábua com as diversas divisões lógicas
dos juízos, e depois deduziu suas categorias diretamente destas. Por exemplo,
correspondendo à forma categórica do juízo esta a relação de substância e
acidente, e correspondendo à forma hipotética está a relação de causa e
efeito. As correspondências entre as funções dos juízos e as categorias são
óbvias e certas. Com relação a este ponto o método é perfeito. O defeito é
que o método não oferece nenhuma garantia para a corretude da primeira
tábua, e não exibe aquela referência direta à unidade da consistência que,
sozinha, concede validade às categorias.
(W1; 351 [1866])26
Como entendia que o problema era a lógica formal que Kant mobilizara para estabelecer
seu sistema de categorias, Peirce tomou para si a tarefa de encontrar um modo de
validá-la (arranjar uma "garantia para sua correção") ou, se fosse necessário, reformá-la.
Embora, à época, por devoção ao projeto anunciado na Crítica, Peirce efetivamente
acreditasse que os defeitos que fossem encontrados nesta lógica formal poderiam ser
corrigidos, hoje, observando em retrospectiva, sabemos que os esforços que seriam
feitos pelo próprio Peirce para efetuar esta correção estavam gradualmente convergindo
para a revolução que, ao final do século XIX, daria origem à lógica moderna, à lógica
simbólica (ou matemática), muito distante da concepção aristotélica de lógica
mobilizada por Kant em seu projeto. É uma situação curiosa (ao menos para os que a
olham em retrospectiva), pois aparentemente a cada passo que Peirce dava para
reformar a lógica formal mobilizada por Kant mais do projeto original kantiano se
afastava. Afinal, aqueles eram os últimos dias da lógica conforme Aristóteles tinha a
concebido quase 25 séculos antes.
O estágio do desenvolvimento do pensamento peirceano ao qual voltaremos nossa
atenção a partir deste ponto constituem os momentos imediatamente anteriores à
elaboração do artigo “Sobre uma nova lista de categorias”, que seria publicado 1867.
Neste artigo, Peirce traz à luz o seu próprio sistema de categorias, o que nos permite
26
No original: Kant first formed a table of the various logical divisions of judgments, and then deduced
his categories directly from these. For example, corresponding to a categorical form of judgment is the
relation of substance and accident, and corresponding to the hypothetical form is the relation of cause and
effect. The correspondences between the functions of judgment and the categories are obvious and
certain. So far the method is perfect. Its defect is that it affords no warrant for the correctness of the
preliminary table, and does not display that direct reference to the unity of consistency which alone gives
validity to the categories.
43
considerá-lo como ponto onde se torna "oficial" o rompimento com o projeto kantiano.
De acordo com palavras do próprio Peirce, numa carta ao filósofo italiano Mario
Calderoni (1879-1914) 38 anos mais tarde, esta "nova lista de categorias" teria sido
fruto de uma pesquisa de três anos: "No dia 14 de Maio de 1867, após três anos de um
trabalho quase insano de concentração, que não fora interrompido nem mesmo pelo
sono, produzi minha grande contribuição para a filosofia no texto 'Nova lista de
categorias', publicado no Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences"
(CP 8.213 [1905])27
. Se confiarmos na memória do autor, então podemos deduzir que o
gradual processo de distanciamento do pensamento peirceano com relação ao de Kant
deve ter começado por volta de 1864, quando Peirce começa a concentrar seus estudos
no campo da lógica com o intuito de encontrar uma garantia para a correção da tabela
kantiana de funções lógicas dos juízos e, aos poucos, ao longo dos três anos seguintes,
vai percebendo que nenhuma garantia desse tipo poderia ser encontrada, uma vez que
suas descobertas indicam que a tabela simplesmente não poderia ser considerada correta
e as alterações que teriam que ser feitas inviabilizariam a sustentação das categorias
conforme o pretendido por Kant na "Crítica da Razão Pura".
Para expor esta etapa do desenvolvimento do pensamento peirceano seguiremos de perto
a análise e interpretação elaboradas por Murray Murphey (1993 [1961], p. 55-63). Um
dos motivos que nos levou a segui-lo é que o desenvolvimento do pensamento peirceano
em direção à elaboração de um sistema próprio de categorias passa por diversas etapas de
maturação e aquela que julgamos mais relevante para examinar a separação de Peirce da
"matriz kantiana" está quase totalmente concentrada num único manuscrito do 1864 que
foi muito bem analisado por Murphey na obra "O desenvolvimento da Filosofia de
Peirce" ("The development of Peirce's philosophy", 1993 [1961])28
. Neste manuscrito
(MS 744 [s.d.]) cujo título é "Distinção entre a priori e a posteriori" ("Distinction
between a priori and a posteriori"), Peirce chegou a uma teoria da proposição que pode
ser considerada um ponto intermediário entre uma concepção clássica da lógica (i.e.,
aquela de base aristotélica que fora utilizada por Kant na Crítica) e uma concepção
semiótica da lógica (cujos primeiros desenvolvimentos já podem ser vistos tanto na série
de palestras apresentadas em Harvard [as "Harvard Lectures", W1; 165-301] em 1865
como também naquelas apresentadas no Lowell Institute [as "Lowell Lectures", W1; 358-
504] em 1866, ainda que tal concepção de lógica só comece a ganhar contornos mais
claros a partir do artigo "Sobre uma nova lista" [1867]). Como veremos, Peirce chegou a
esta teoria da proposição a partir da descoberta de um problema dentro de uma das tríades
do sistema de funções lógicas de Kant.
27
No original: "on May 14, 1867, after three years of almost insanely concentrated thought, hardly
interrupted even by sleep, I produced my one contribution to philosophy in the "New List of Categories"
in the Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences". 28
Em 1961, quando publicou sua obra, Murphey afirmou que este texto ("Distinção entre a priori e a
posteriori") não estava datado e estimou que Peirce o teria escrito em meados de 1865. No catálogo dos
escritos peirceanos, organizado por Richard Robin (em 1967), este texto (cuja referência é MS 744)
também não está datado (cf. Robin, 1967, p. 94). Já no primeiro volume dos "Writings of Charles S.
Peirce" (publicado em 1982), o MS 744 é datado como "outono-inverno de 1864" (cf. W1, p. 574).
Tomaremos por base esta última data.
44
Durante suas pesquisas no campo da lógica, realizadas com o intuito de encontrar
alguma garantia para o sistema das funções lógicas do juízo (que estava na base das
categorias), Peirce identifica o primeiro grande problema dentro da terceira tríade do
sistema de funções lógicas (do juízo), a saber, a tríade "da relação" na qual se distinguia
os juízos categóricos, hipotéticos e disjuntivos. Este primeiro ponto de conflito entre as
tábuas kantianas relativas às funções lógicas e as descobertas peirceanas consistia no
fato de Peirce ter conseguido estabelecer que todos os silogismos podem ser colocados
dentro de uma forma hipotética. Um estudo mais detalhado dos escritos deste período (o
que, infelizmente, não podemos fazer aqui) poderia nos indicar que esta descoberta pode
muito bem ter sido influenciada pelos estudos que Peirce fez da obra de diversos lógicos
na primeira metade da década de 1860. De acordo com análise de Murphey (1993
[1961], p. 56), a esta altura, Peirce já estava sob influência do filósofo medieval Duns
Scotus, que o levou, no que diz respeito à lógica, a uma perspectiva inversa a de Kant.
Para Scotus, o verdadeiro objeto da lógica é o silogismo e o estudo do silogismo deve
preceder o estudo das proposições, uma vez que as únicas distinções logicamente
significativas entre proposições são aquelas que "afetam a função delas dentro de um
silogismo" (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 56). Ora, o pensamento kantiano segue um
princípio que vai na direção inversa. De acordo com Kant, as diversas formas de
inferência devem ser deduzidas das diversas formas de juízo29
. Então, como há juízos
categóricos, hipotéticos e disjuntivos, também deve haver silogismos categóricos,
hipotéticos e disjuntivos.
Vejamos mais de perto, então, o trecho do manuscrito (MS 744 [1864]) em que Peirce
consegue estabelecer que "todos os silogismos podem ser colocados numa forma
hipotética". O diagrama apresentado no manuscrito pode ser resumido da seguinte
forma (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 59):
Y é X Se Y, então X
Z é Y Mas, Y (sob Z)
Z é X Então, X (sob Z)
Uma interpretação possível para este esquema apresentado por Peirce neste manuscrito
(MS 744 [1864]) é o seguinte:
Todos os mamíferos são mortais Se algum ser é um mamífero, então este ser é mortal.
Todas as baleias são mamíferos Porém, se tomarmos seres, que são mamíferos, "sob a hipótese de" serem baleias.
------------------------------------------- ------------------------------------------------------------------------- Todas as baleias são mortais Então, teremos tomado seres que são mortais, sob a hipótese de serem baleias.
29
"Há (...) precisamente três espécies de inferências de razão ou de raciocínio, tantas como as dos juízos
em geral, segundo a maneira como exprimem a relação do conhecimento com o entendimento, ou seja,
raciocínios categóricos, hipotéticos e disjuntivos" (KrV A304, B361).
45
Como podemos perceber, a redução do silogismo categórico a um silogismo hipotético
pressupõe que Peirce já soubesse que toda proposição categórica pudesse ser convertida
numa proposição hipotética30
. Embora, na forma, esta proposição que Peirce denomina
hipotética ("Se Y, então X") seja a mesma que hoje, sem problema algum,
denominaríamos hipotética ou condicional, a interpretação que ele ofereceu neste
manuscrito é muito distinta. Para Peirce, em meados de 1864 (quando foi escrito o
manuscrito 744), converter uma proposição para um formato hipotético seria colocá-la
dentro de uma relação de causa e efeito. Por estranho que nos possa parecer hoje, Peirce
entendia, durante este período, que a proposição "se A, então B" era equivalente à
proposição "A é a causa de B". Parte desta estranheza pode ser "removida" se prestarmos
atenção às tábuas de Kant e nos recordarmos que Peirce estava tentando reformar a lógica
formal subjacente às categorias sem que estas tivessem que ser alteradas.
Para Kant, a categoria da causalidade era derivada justamente da função lógica
correspondente ao juízo hipotético. Dentro do sistema de funções lógicas do juízo (a tábua
da direita na nossa ilustração apresentada ao final da seção anterior), pode-se encontrar o
juízo hipotético (como segundo tipo de juízo do ponto de vista da relação, que é a terceira
tríade) que corresponde, no sistema de categorias (a tábua da esquerda), à categoria da
causalidade (que é a segunda categoria do ponto de vista da relação [i.e., dentro da
terceira tríade]). Em resumo, como, no sistema kantiano, ao juízo hipotético corresponde
a categoria da causalidade e como, de acordo com suas descobertas, todos os tipos juízos
poderiam ser convertidos em juízos hipotéticos, Peirce foi levado a construir uma teoria
causal da proposição. Graças a esta interpretação do juízo hipotético, Peirce, neste
período, entendia que "em toda proposição (...) o sujeito é representado como a causa do
predicado" (MS 744 [1864])31
. Como acreditamos que esta primeira descoberta peirceana
no campo da lógica já esteja suficientemente esclarecida para os fins pretendidos neste
capítulo, passemos, então, à segunda delas.
A segunda descoberta feita no campo da lógica a ter uma influência no desenvolvimento
da semiótica peirceana é relativa à correspondência entre as três figuras do silogismo32
e
30
Devemos recordar que, dentro da terceira tríade (a da relação) da tábua de funções lógicas dos juízos,
há também os juízos disjuntivos. Entretanto, neste trecho Peirce se preocupa apenas em demonstrar a
redutibilidade dos juízos categóricos aos hipotéticos. Segundo Murphey (1993 [1961], p. 59), isto pode
indicar que Peirce, à época, talvez já conhecesse algo a respeito da "implicação material e, assim, já
soubesse que os disjuntivos eram [também] redutíveis" a partir de seus estudo da obra do filósofo e lógico
alemão Carl von Prantl (1820-1888) ou mesmo de outra fonte. 31
No original: "In every proposition (...) the subject is represented as the cause of the predicate". 32
Em silogística, são denominadas figuras os diferentes padrões de combinação entre o termo maior,
menor e médio dentro da estrutura do argumento (que, no caso, deve necessariamente possuir duas
premissas [nas quais ocorre, em cada uma delas, o termo médio] e a conclusão [na qual o termo médio
não aparece]). Na verdade, existem quatro figuras, uma vez que, numa primeira combinação, o termo
médio pode ser sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor; numa segunda combinação, o
termo médio pode ser predicado nas duas premissas; numa terceira combinação, o termo médio pode ser
sujeito nas duas premissas; e, numa quarta combinação, o termo médio pode ser predicado na premissa
maior e sujeito na premissa menor. A "polêmica" envolvendo a quarta figura é que ela não foi definida
nem tratada por Aristóteles (nos Analíticos Posteriores). Embora Aristóteles tenha tratado apenas dos
silogismos das três primeiras figuras, depois se descobriu que alguns modos aos quais ele faz referência
(nesta obra) pertenciam ao que os lógicos mais tarde chamariam de quarta figura (cf. verbete 'quarta
figura', Mora, 2000, tomo IV, p. 2431).
46
três tipos distintos de inferência: dedução, indução e hipótese (cf. Savan, 1976, p. 3-5).
Embora Peirce já conseguisse tratar os silogismos de segunda, terceira e quarta figuras
como silogismos hipotéticos e isto o levou a estar muito próximo de descobrir aquela
correlação, é apenas com a leitura das "Leis do Pensamento" de Boole que Peirce
efetivamente se dá conta da correlação (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 60).
Esta segunda descoberta o coloca em rota de colisão com argumento de Kant no artigo "A
sutileza equivocada das quatro figuras silogísticas"33
(1762). De acordo com o argumento
de Kant, a segunda, terceira e quarta figuras envolvem apenas uma inferência da primeira
figura combinada com algum tipo de inferência mais imediata (como conversão e
contraposição). Assim, em certo sentido, todas as figuras são "redutíveis" ao Barbara ou
ao Barbara combinado com alguma inferência mais imediata.
Antes de especificarmos as consequências desta segunda descoberta e apresentarmos a
terceira, deve-se notar que a aceitação destes novos entendimentos vai aos poucos
colocando em cheque toda a confiança que Peirce tinha nas bases lógicas sobre as quais
estavam as categorias kantianas. Por um lado, Peirce descobre que distinções que
estavam presentes dentro da lógica formal de Kant não eram essenciais, pois poderiam ser
eliminadas (por exemplo, a distinção entre proposições categóricas e hipotéticas); e, por
outro lado, ele descobre que distinções que estavam ausentes na lógica formal de Kant
deveriam estar presentes ou, ao menos, deveriam ter alguma influência sobre a
composição das tabelas (das funções lógicas dos juízos), pois eram distinções essenciais
i.e., não poderiam ser eliminadas (como os três tipos de inferências correspondendo a
cada uma das três primeiras figuras silogísticas). Se Peirce conseguisse mesmo
demonstrar que as três primeiras figuras silogísticas são irredutíveis e que cada uma delas
envolve um princípio de inferência distinto, então tal demonstração o obrigaria a
encontrar um modo de derivar desses novos e distintos princípios todas as tábuas de
funções lógicas (das quais as categorias foram deduzidas). Ainda que fosse possível, para
continuar sustentando que as tábuas de juízos estavam corretas, encontrar algum modo de
fazer com que elas "saíssem" daqueles princípios, restaria ainda um problema: a terceira
dessas tábuas (a da relação) não parecia estar correta de forma alguma.
Entretanto, Peirce, ao menos até o final do ano de 1864 (quando escreve o texto
"Distinção entre a priori e a posteriori"), estava obstinado em sua missão de encontrar
garantias para a correção da lógica formal que Kant tinha mobilizado para derivar seu
sistema de categorias. Mesmo que a cada passo dado estas garantias parecessem sonhos
cada vez mais distantes, Peirce ainda tentou, pela última vez (ao que parece) no texto
"Distinção entre a priori e a posteriori" em 1864, fazer com que suas descobertas fossem
compatibilizadas com as tábuas kantianas. De acordo com a interpretação de Murphey
(transcrita a seguir), foi o fracasso retumbante desta tentativa de compatibilização que fez
com que Peirce enxergasse o caminho que deveria trilhar (ainda que tivesse seguir de
forma independente do projeto kantiano).
33
Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren erwiesen" / "The mistaken subtlety of the
four syllogistic figures"
47
Quanto mais Peirce lutava para realizar o sonho de Kant de construir uma
filosofia arquitetônica abrangente, mais as fundações lógicas deste sonho
pareciam ruir.
De frente com estas dificuldades, Peirce recorreu a um caminho altamente
duvidoso: ele tentou distinguir o real do lógico de tal maneira a fazer com
que sua lógica produzisse as tábuas kantianas. As três figuras são formas
autônomas, ele afirmou, porque a redução delas é efetuada apenas por
limitação e negação (conversão e contraposição) e estas são operações
puramente lógicas que não têm contrapartes reais. Por argumento baseado
numa divisão similar, ele procurou mostrar que as três figuras podem
fornecer a garantia necessária das funções do juízo. (...)
Como cumprimento da arquitetônica kantiana, este argumento [acima
referido] deve ser considerado como um fracasso. (...) o princípio geral que
divide o lógico do real, na verdade, mina o objetivo de todo o
empreendimento. Se a formas lógicas sem análogos reais, então parece que
seria impossível de erigir uma tábua de categorias sobre tais formas. Não
obstante, (...) Peirce enxergou a direção na qual sua resposta deveria seguir.
As três figuras devem envolver três regras de inferências distintas e o artigo
de Kant "A sutileza equivocada das quatro figuras silogísticas" deve estar, ele
mesmo, equivocado.
(Murphey, 1993 [1961], p. 61-3)
O resultado desta percepção de que Kant havia se equivocado no artigo acima
mencionado e que as três figuras poderiam ser correlacionadas a princípios de
inferências distintos apenas seria publicado ao final do ano de 1866, num artigo
intitulado "Notas sobre o silogismo aristotélico" ("Memoranda concerning the
Aristotelian Syllogism"). Neste artigo, Peirce apresenta uma prova que qualquer redução
da segunda e da terceira figuras só pode ser efetuada quando se recorre a uma inferência
que só pode ser expressa silogisticamente por aquela figura que está justamente sendo
"objeto da redução". Isto significa que as três primeiras figuras são realmente
irredutíveis e o argumento de Kant no artigo "A sutileza equivocada das quatro figuras
silogísticas" está, ele mesmo, equivocado. A seguir, o último trecho do artigo de Peirce.
Assim, parece que nenhum silogismo da segunda ou da terceira figuras pode
ser reduzido à primeira figura sem recorrer a uma inferência que somente
pode ser expressa silogisticamente naquela figura a partir da qual ela foi
reduzida. Estas inferências não são estritamente silogísticas, porque uma das
proposições tomada como premissa na expressão silogística é um fato lógico.
Porém, o fato de cada uma só pode ser expressa na segunda ou terceira figura
do silogismo, como parece ser o caso, mostra que estas figuras, de forma
isolada, envolvem os respectivos princípios de inferência. Dessa forma, está
provado que toda figura envolve um princípio da primeira figura, mas a
segunda e a terceira figuras contém, além disso, outros princípios.
(W1, 514; CP 2.807 [1866])34
34
No original: Hence, it appears that no syllogism of the second or third figure can be reduced to the first,
without taking for granted an inference which can only be expressed syllogistically in that figure from
which it has been reduced. These inferences are not strictly syllogistic, because one of the propositions
48
Entre a última tentativa de compatibilização dos "avanços mais recentes da lógica"35
com as tábuas kantianas que podemos encontrar no texto "Distinção entre a priori e a
posteriori" (MS 477 [1864]) e o "ponto-final" (nas tentativas de compatibilização)
representado pela prova exibida no texto "Notas sobre o silogismo aristotélico" (W1,
505 - 514 [1866]), há uma terceira descoberta feita por Peirce que é digna de nota nesta
(nossa) breve investigação das origens da semiótica no pensamento peirceano. Aliás,
não apenas é digna de nota, mas seria impossível não mencioná-la, uma vez que a ideia
por trás dessa terceira descoberta pode ser entendida como o próprio substrato da
semiótica. No dia 14 de novembro de 1865, Peirce escreve em seu caderno de anotações
as seguintes linhas: "Não há logicamente diferença alguma entre [juízos] hipotéticos e
categóricos. O sujeito é um signo do predicado; o antecedente, do consequente, e isto é
o único ponto que interessa à lógica" (W1, 337)36
.
Ora, que não haja diferença (do ponto de vista lógico) entre juízos categóricos e
hipotéticos é uma ideia com a qual Peirce já vinha trabalhando ao menos desde 1864,
como demonstra o exposto no texto "Distinção entre a priori e a posteriori" (MS 477
[1864]). Porém, esta anotação de novembro de 1865 nos demonstra que Peirce, a esta
altura, já abandonou aquela "teoria causal da proposição" (exposta naquele texto de
1864) segundo a qual o sujeito é entendido como causa do predicado e adotou uma
"teoria sígnica (ou semiótica) da proposição" segundo a qual o sujeito é entendido como
um signo do predicado. Entretanto, a observação mais relevante a ser feita com relação
a este diminuto trecho é que é justamente nele que, aparentemente pela primeira vez, a
relação sígnica é isolada como relação fundamental da lógica. Vejamos este assunto
com mais cuidado. Como, neste trecho, Peirce afirma haver a mesma relação sígnica
entre sujeito e predicado e entre antecedente e consequente e, logo em seguida, afirma
que este é "o único ponto que interessa à lógica", então podemos interpretar que, à
época, Peirce já entende que a relação sígnica também poderia ser encontrada entre as
premissas e a conclusão de qualquer processo inferencial, caso contrário ele não teria
declarado, de forma tão peremptória, que esta relação seria o único ponto que
interessaria à lógica, o que é equivalente a afirmar que a relação sígnica é a relação
fundamental da lógica.
Esta (nossa) interpretação desta descoberta da redução tanto da relação sujeito-
predicado como da relação antecedente-consequente à relação sígnica é sancionada por
taken as a premiss in the syllogistic expression is a logical fact. But the fact that each can only be
expressed in the second or third figure of syllogism, as the case may be, shows that those figures alone
involve the respective principles of those inferences. Hence, it is proved that every figure involves the
principle of the first figure, but the second and third figures contain other principles, besides. 35
No final do ano de 1866, no manuscrito 115, Peirce afirma que "a grande finalidade da lógica" é formar
uma tábuas de categorias e, com esta finalidade em mente, nem a lógica formal de Kant nem mesmo as
tentativas de Hegel de remediar os defeitos da lógica formal de Kant estariam de acordo os avanços mais
recentes nas pesquisas no campo da lógica (cf. W1, p. 351-2 [1866]). No parágrafo seguinte a estas
observações, Peirce passa a descrever o que seria, de acordo com sua visão, o método correto para se
forma um sistema de categorias. Já podemos notar que este método é basicamente aquele utilizado no
"Sobre uma nova lista de categorias" (em 1867). 36
No original: "There is no difference logically between hypotheticals and categoricals. The subject is a
sign of the predicate, the antecedent of the consequent; and this is the only point that concerns logic".
49
uma feita pelo próprio Peirce 33 anos depois ao olhar em retrospectiva para o início de
sua carreira. Num texto, de 1898, em que resume suas conquistas no campo da lógica e
seu progressivo afastamento do projeto kantiano até o ponto em que pôde estabelecer
sua própria lista de categorias, Peirce afirma que tais descobertas o levaram a
reconhecer que "relação entre sujeito e predicado, ou entre antecedente e consequente, é
essencialmente aquela entre premissa e conclusão" (CP 4.3 [1898])37
. Isto significa que
esta anotação datada de novembro de 1865 marca a descoberta que todas as relações
relevantes para a lógica (como aquela entre sujeito-predicado numa proposição [ou num
juízo], antecedente-consequente num condicional e premissa-conclusão numa
inferência) são casos particulares de uma relação mais fundamental: a relação sígnica. O
conceito de signo passa a ocupar o centro do sistema. É esta descoberta que permite a
Peirce estabelecer o conceito de representação (ou, em outros termos, o conceito de
"referência a um interpretante") como sua terceira categoria, que é justamente aquele
elemento que (por causa de sua função essencialmente sígnica dentro do sistema de
categorias elaborado em 1867) "abre caminho para tornar a Teoria Geral dos Signos
fundamental para a lógica, epistemologia e metafísica" (cf. Max Fisch - texto
introdutório ao primeiro volume dos Writings of Charles S. Peirce: W1,1982, p. xxvi)38
.
Embora saibamos dos efeitos, das extraordinárias consequências que esta descoberta
teria no desenvolvimento do pensamento peirceano, infelizmente não sabemos
exatamente como Peirce chegou a estabelecê-la. O que temos é apenas esta anotação de
pouco menos de três linhas. Porém, como este é um "momento" solene para semiótica
peirceana e para compensar a exiguidade deste trecho, fiquemos com um fragmento
pouco mais generoso daquele texto (citado acima) no qual Peirce, em retrospectiva,
expõe a importância de sua(s) descoberta(s)39
. Peirce começa esta retrospectiva (cujos
principais trechos transcrevemos a seguir) confessando que, no início dos anos 60 (do
século XIX), era um apaixonado devoto da obra kantiana e acreditava nas duas tábuas
das funções do juízo e das categorias tal como se elas tivessem sido trazidas do Sinai40
.
Vejamos pelas próprias palavras do filósofo o que o levou a se afastar de sua "matriz".
Achei que havia também um modo de raciocínio provável na segunda figura
essencialmente diferente tanto da indução como da dedução provável. Este é
claramente o que é chamado de raciocínio do consequente para o
37
No original: "(...) the relation between subject and predicate, or antecedent and consequent, is
essentially the same as that between premiss and conclusion". 38
Neste texto de abertura, Max Fisch afirma que a única categoria realmente nova na lista de Peirce é a
terceira, uma vez que as duas primeiras (Qualidade e Relação), de algum modo, já faziam parte das listas
aristotélica das categorias e também já estavam presentes na lista kantiana (neste caso, deve-se salientar
que Qualidade e Relação não eram exatamente categorias, mas eram os nomes de duas das tríades
apresentadas por Kant em sua lista de categorias). Para Fisch, é justamente esta novidade a responsável
por fazer com que a Teoria Geral dos Signos se torne fundamental para a lógica, epistemologia e
metafísica. 39
Com relação a centralidade deste descoberta, cf. também: Murphey, 1993 [1961], p. 63-4; Goudge,
1969 [1950], p. 149; Liszka,1996, p. 30. 40
Cf. trecho original: "In the early sixties I was a passionate devotee of Kant, at least as regarded the
Transcendental Analytic in the Critic of the Pure Reason. I believed more implicitly in the two tables of
the Functions of Judgment and the Categories than if they had been brought down from Sinai" (CP 4.3
[1898]).
50
antecedente, e, em muitos livros, é denominado de adoção de uma hipótese
que forneça uma explicação a partir dos fatos conhecidos. Seria tedioso
mostrar como esta descoberta levou à meticulosa refutação da terceira e mais
importante das tríades de Kant e à confirmação da doutrina segundo a qual,
para os propósitos dos silogismos ordinários, as proposições categóricas e as
proposições condicionais, que Kant e seus seguidores ignorantes chamam de
[proposições] hipotéticas, são um único tipo de proposição. Isto me levou a
ver que a relação entre sujeito e predicado, ou antecedente e consequente, é
essencialmente a mesma relação encontrada entre premissa e conclusão. Foi
interessante notar como o resultado combinado de todas estas melhorias e
algumas outras às quais não aludi foram decisivas para consolidar aquela
unidade sistemática ou sintética no sistema de lógica formal que ocupava um
espaço tão grande no pensamento kantiano. Porém, embora houvesse mais
unidade do que no sistema kantiano, ainda assim não havia tanta unidade
como o desejado. Por que deveria haver três princípios de raciocínio e o que
cada um deles tem a ver com os outros? Esta questão, que estava conectada
com outras partes de meu programa de investigação filosófica das quais não
preciso entrar em detalhes aqui, veio para primeiro plano. Mesmo sem as
categorias kantianas, a recorrência de tríades na lógica era digna de nota e
devem indicar o surgimento de concepções fundamentais. Então, assumi a
tarefa de averiguar quais eram estas concepções. Esta busca resultou no que
chamei de minhas categorias. Depois, dei-lhes os nomes de Qualidade,
Relação e Representação.
(CP 4.3 [1898])41
Assim, as descobertas realizadas no campo da lógica a partir de 1864 acabam por levar
Peirce a elaborar sua própria lista de categorias. A terceira categoria apresentada por
Peirce no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (1867) tem um papel essencial na
resposta que ele fornece àquela pergunta que considera central a toda filosofia: como
são possíveis os juízos sintéticos (o raciocínio ampliativo, em geral)? Dentro do
argumento defendido por Peirce, neste artigo seminal de 1867, a categoria da
Representação tem justamente a função de "fechar", de fazer a síntese, de trazer à
unidade a multiplicidade referente às impressões de sentido (come veremos no décimo
41
No origninal: "I found that there was also a mode of probable reasoning in the second figure essentially
different both from induction and from probable deduction. This was plainly what is called reasoning
from consequent to antecedent, and in many books is called adopting a hypothesis for the sake of the
explanation it affords of known facts. It would be tedious to show how this discovery led to the thorough
refutation of the third and most important of Kant's triads, and the confirmation of the doctrine that for the
purposes of ordinary syllogism categorical propositions and conditional propositions, which Kant and his
ignorant adherents call hypotheticals, are all one. This led me to see that the relation between subject and
predicate, or antecedent and consequent, is essentially the same as that between premiss and conclusion.
It was interesting to see how the combined result of all these improvements and some others to which I
have not alluded was decidedly to consolidate that systematic or synthetic unity in the system of formal
logic which occupied so large a place in Kant's thought. But though there was more unity than in Kant's
system, still, as the subject stood, there was not as much as might be desired. Why should there be three
principles of reasoning, and what have they to do with one another? This question, which was connected
with other parts of my schedule of philosophical inquiry that need not be detailed, now came to the front.
Even without Kant's categories, the recurrence of triads in logic was quite marked, and must be the
croppings out of some fundamental conceptions. I now undertook to ascertain what the conceptions were.
This search resulted in what I call my categories. I then named them Quality, Relation, and
Representation".
51
capítulo). Como já antecipamos, de forma bem esquemática, no primeiro capítulo e
como ainda veremos com detalhes nos capítulos que seguem, o conceito de signo bem
como o mecanismo que tal concepção introduz na epistemologia elaborada por Peirce
(sobretudo, dentro da série cognitiva) são elementos teóricos indispensáveis para o seu
projeto filosófico mais geral.
52
2.3 - Síntese: a distância entre Kant e Peirce
Antes de finalizarmos este breve panorama da separação do pensamento do jovem
Peirce de sua matriz kantiana e da emergência de um pensamento peirceano
propriamente semiótico, devemos fazer uma última observação, que, inclusive, nos
servirá de ponte para o próximo capítulo. A terceira categoria, a Representação, tem
uma função dentro do argumento que parece correr em paralelo à função ocupada pela
(tripla) noção de síntese dentro da "Crítica da Razão Pura". Para sermos mais exatos, o
que Peirce entende por síntese neste artigo é muito semelhante ao terceiro tipo de
síntese apresentado por Kant na "Crítica da Razão Pura": a denominada síntese de
recognição (KrV A 97-110). Na teoria de Peirce, o conceito de síntese cumpre o mesmo
papel de "unificação sob um conceito" cumprido pela "síntese de recognição".
Tomemos como exemplo o seguinte juízo:
Isto é uma cadeira.
Dentro do quadro teórico kantiano, podemos afirmar que há um objeto externo que é, na
síntese, representado diretamente. O que Kant entende por objeto? O objeto é algo que
supomos estar fora da consciência e que é o responsável pelas impressões de sentido
cuja variedade foi unificada graças à introdução do conceito. O objeto é a referência de
toda aquela miríade de impressões que obrigaram a mente a recorrer ao conceito de
cadeira para explicar o que está diante dos sentidos. É óbvio que quando nos vem à
mente a cognição "isto é uma cadeira", o termo sujeito "isto" não se refere às
impressões de sentido. Entende-se que não são as impressões de sentido que são
cadeira, mas aquilo que originou as impressões de sentido que é uma cadeira. O "isto"
se refere a algo externo à consciência. Como está presente na própria definição de
intuição este contato direto entre o objeto externo e as impressões de sentido, então
entende-se que a síntese traz à mente uma cognição (o juízo "isto é uma cadeira") que
representa diretamente algo externo. Nas próprias palavras do filósofo de Königsberg, o
"objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada" (KrV
B137). A síntese, no quadro teórico da "Crítica da Razão Pura", é uma representação
unificadora que age sobre uma base: a intuição.
No quadro teórico delineado por Peirce no artigo "Sobre uma nova lista de categorias",
não há esta base. Não pode haver intuição. Não se pressupõe que uma síntese possa ter
como resultado uma referência direta a um objeto externo (ainda que, neste artigo,
Peirce mantenha o uso da expressão "impressões de sentido"). O resultado de uma
síntese só pode ser obtido ao se recorrer ao resultado de uma síntese anterior.
Dentro da teoria das categorias exposta por Peirce no referido artigo, a síntese, realizada
("completada") pela figura do interpretante, é definida como uma operação que só pode
53
ser aplicada a um objeto na dependência de uma operação semelhante já ter sido
aplicada a este mesmo objeto anteriormente. A síntese requer uma síntese anterior do
mesmo objeto. Toda e qualquer representação requer uma representação anterior. Sem
esta dependência de uma representação anterior, uma representação qualquer não é
capaz de cumprir seu papel sintetizador. Neste artigo Peirce explica o papel do
interpretante (que é o elemento relativo à terceira categoria) no processo de síntese da
seguinte forma: para que possamos conceber dois elementos distintos da experiência
(diferentes impressões) como unificados é preciso concebê-los juntos como sendo
nossos (CP 1.554 [1867]), o que é equivalente a afirmar que, para unificá-los num
procedimento de síntese, é preciso concebê-los em relação (um com outro) para nossa
mente. Na terminologia apresentada em sua teoria de categorias, para haver síntese, é
preciso conceber quaisquer dois elementos (distintos provenientes da experiência) em
referência a um interpretante (a um terceiro elemento mediador).
Conforme já foi antecipado no texto introdutório, dentro da teoria das categorias, o
conceito de interpretante é definido como algo (uma representação) cujo intuito é
produzir outro interpretante (outra representação) e isto significa que, do modo como foi
introduzido na teoria das categorias, o conceito de interpretante só pode operar de forma
recursiva. O resultado é que, assim definido, um interpretante só pode ser definido ao se
fazer menção à produção de outro interpretante. A teoria do conhecimento que começa a
ser construída tendo como tijolos fundamentais as três categorias (Qualidade, Relação e
Representação) não pode admitir que haja algum início para este processo de
interpretação ou de representação. Não pode haver uma primeira representação, uma
síntese inaugural, não pode haver um interpretante que, para cumprir sua função de
síntese, não recorra a outro interpretante (ou não seja ele mesmo resultado de um
interpretante anterior).
Como veremos de forma mais detalhada, afirmar que não pode haver uma representação
originária é afirmar que não pode haver intuição. Por este motivo, após derivar sua
própria lista de categorias, a primeira grande tarefa de Peirce para estabelecer sua
filosofia de caráter semiótico (que decorre de sua teoria das categorias e de suas
descobertas no campo da lógica) é argumentar contra a intuição e provar que uma teoria
do conhecimento que não recorra ao conceito de intuição é plenamente capaz de
explicar todas as faculdades humanas envolvidas no ato de conhecimento (que seriam
explicadas por aquelas teorias [adversárias] que recorressem a tal conceito) e também é
plenamente capaz fornecer uma explicação para o problema do raciocínio ampliativo ou
sintético, o que é para Peirce o problema central da filosofia e que não pode ser jamais
explicado por qualquer teoria que utilize a intuição como ponto de origem (do ato de
conhecimento). Esta tarefa de erigir uma teoria do conhecimento de caráter semiótico é
realizada nos três artigos que compõem a chamada série cognitiva.
Especifiquemos melhor, então, esta incompatibilidade entre a epistemologia (de base
semiótica) elaborada por Peirce e o conceito de intuição. Se introduzimos na teoria o
conceito de intuição para ocupar o papel de fundação do conhecimento, então esta teoria
passa a admitir a existência de um ponto originário, ou seja, uma cognição (ideia,
54
pensamento ou proposição) que, por princípio, não pode ter suas origens conhecidas.
Um resíduo de realidade que não pode ser investigado. Isto nos leva a outra pergunta:
qual seria problema em se admitir o incognoscível? Ora, se a teoria admite a existência
do incognoscível, então permanece eternamente aberta a possibilidade de um raciocínio
indutivo ser "inválido" (i.e., ter sua conclusão falsa ainda que todas as suas premissas
sejam verdadeiras), o que inviabiliza, de saída, a consecução do objetivo último que
Peirce estabeleceu para sua teoria das categorias e para todo o argumento construído ao
longo dos três artigos da série cognitiva. Recordemos que este objetivo último é
justamente responder aquilo que considera o problema maior da filosofia: como são
possíveis as sínteses, como são possíveis os raciocínios ampliativos, sintéticos?
Recordemos também que a resposta peirceana é que o raciocínio indutivo pode ter sua
validade fundamentada desde que seja observada uma condicionante básica: tal
raciocínio deve ser aplicado por um tempo indefinidamente longo por uma comunidade
indefinida de pesquisadores. Neste caso, afirma Peirce, todas as linhas de investigação,
todos os processos interpretativos, convergiriam para um ponto (que, como veremos na
segunda seção do próximo capítulo, é aquilo que Peirce entende por realidade).
Admitida a intuição, deve-se reconhecer a existência de algo incognoscível.
Reconhecida a existência de algo incognoscível, a resposta que Peirce pretende oferecer
(no terceiro e último artigo da série cognitiva) ao que considera o problema maior da
filosofia deixaria de funcionar. Vejamos, com um simples exemplo, o porquê.
Suponha que exista uma caixa que contenha um número muito grande de bolinhas de
diversas cores e que queiramos descobrir quantas delas são da cor vermelha. Como a
quantidade de bolinhas nos impede de fazer uma inspeção elemento a elemento,
devemos trabalhar com amostragens. Para cada amostra que tirarmos da caixa, deve
haver certo número de bolinhas vermelhas, deve haver certa proporção de bolinhas
vermelhas para aquelas que forem de outra cor. Assim, sempre retirando amostras de
forma aleatória, a média dos resultados obtidos a partir de um número considerável de
amostras vai se aproximando, pouco a pouco, do valor que acreditamos ser a real
proporção de bolinhas vermelhas na caixa inteira. É claro que cada amostra deve trazer
um número diferente de bolinhas da cor vermelha. Entretanto, a ideia é que cada
amostra funcione como uma indução, um raciocínio feito da parte para o todo, e que
cada indução nos forneça um resultado: por exemplo, "a proporção de bolinhas
vermelhas nesta caixa é x %, porque nesta amostra específica a proporção foi de x %".
De posse dos resultados de diversas induções, podemos obter uma média, que será um
valor que se acredita estar mais próximo da proporção real de bolinhas vermelhas na
caixa inteira do que os valores de cada indução (de cada amostra) tomada
individualmente. Isto é possível porque dentro de cada amostra podemos contar o
número de bolinhas vermelhas, o que não pode ser feito com relação a todas as bolinhas
vermelhas da caixa. O raciocínio indutivo realizado com base nas amostragens pode ser
expresso da seguinte forma:
55
Raciocínio indutivo realizado sobre amostragem
Argumento 2
Premissa_1: A primeira bolinha desta amostra é de cor azul.
Premissa_2: A segunda bolinha desta amostra é de cor vermelha.
Premissa_3: A terceira bolinha desta amostra é de cor verde.
Premissa_4: A quarta bolinha desta amostra é de cor vermelha.
Premissa_5: A quinta bolinha desta amostra é de cor amarela.
-----------------------------------------------------------------------------------
Conclusão: 20% das bolinhas desta amostra são de cor vermelha.
Argumento 2
Premissa implícita: as características que observamos nas amostras são
efetivamente representativas das características da população da qual as
amostras foram retiradas.
Premissa_6: 20% das bolinhas desta amostra são de cor vermelha.
-----------------------------------------------------------------------------------
Conclusão (da indução): 20% das bolinhas desta caixa são de cor vermelha.
A esperança depositada neste método é que as características que observamos nas
amostras sejam efetivamente representativas das características da população da qual as
amostras foram retiradas, ou seja, a proporção de bolinhas vermelhas que observamos,
em média, nas amostras deve ser a mesma proporção dessas bolinhas na caixa inteira.
Neste exemplo, embora não se consiga, num instante qualquer do tempo, estabelecer
com certeza absoluta uma resposta para a questão proposta, pode-se ao menos notar que
há um processo de convergência que vai aproximando os investigadores, pouco a
pouco, de uma resposta definida (ainda que não se saiba, de antemão, qual é). É como se
houvesse um ponto para o qual seriam atraídas todas as linhas de investigação nas quais
estão cientistas que se impuseram, algum dia, a tarefa de encontrar uma resposta para
aquela pergunta. Não importa quão distante tenham sido os pontos de partida, a
tendência é que todas as linhas convirjam para um valor, para uma resposta
determinada. É "apenas" uma questão de tempo.
56
O ponto para o qual Peirce pretende chamar nossa atenção é que a validade deste tipo de
raciocínio depende que haja tal processo de convergência. Por sua vez, só podemos
admitir que haja tal processo de convergência se as amostras tiverem sido tiradas de
forma aleatória. É esta aleatoriedade que, no longo prazo, cria a tendência de que
qualquer elemento da caixa tenha a mesma probabilidade de sair (numa amostra) que
qualquer outro elemento. No longo prazo e com amostras aleatórias, todas as bolinhas
seriam, com a mesma frequência, retiradas para compor alguma amostra e, assim,
entrariam como termo sujeito de alguma premissa de alguma indução.
Pois, como todos os membros de qualquer classe são os mesmos membros
que existem para serem conhecidos; e como de qualquer parte daqueles que
ainda estão para serem conhecidos espera-se que uma indução cubra o resto,
então no longo prazo qualquer membro de uma classe vai ocorrer como
sujeito de uma premissa de uma possível indução com a mesma frequência de
qualquer outro membro e, assim, a validade da indução depende
simplesmente do fato de que as partes constituam o todo.
(CP 5.349 [1869])42
Dentro do quadro geral da epistemologia peirceana apresentada na série cognitiva, o
efeito do longo prazo e também o papel da comunidade indefinida de investigadores é
criar um ponto de fuga no qual o uso do raciocínio indutivo esteja justificado. Neste
ponto de fuga, neste ponto para o qual as investigações devem convergir, a
generalização feita das partes para o todo é justificada, pois todas as possíveis partes
que compõem o todo já teriam sido "varridas" pelos investigadores.
Neste cenário, construído por esta epistemologia peirceana, no longo prazo, as
características que observamos nas amostras têm que ser efetivamente representativas
das características da população da qual as amostras foram retiradas. De acordo com a
argumentação peirceana, o único modo de se afirmar que, no longo prazo, este processo
de amostragem não seria representativo é admitir que haja (na população investigada)
alguma característica desconhecida e que devesse, assim, permanecer. Em outras
palavras, de acordo com Peirce, para negar que dadas estas condições (tempo
indefinidamente longo e uma comunidade indefinida de pesquisadores), ainda assim não
haveria a tal convergência, seria preciso supor que há algo de incognoscível.
Voltemos para o exemplo das investigações acerca da proporção de bolinhas vermelhas
na caixa. Suponha que, ao longo de todo o tempo em que foram realizadas tais
investigações, havia um número muito grande de bolinhas vermelhas escondidas num
compartimento interno da caixa. Suponha também que este compartimento nunca tenha
sido descoberto. Então, neste caso, por mais longo que fosse o tempo de investigação e
por maior que fosse o número de pesquisadores, todas as linhas investigativas iriam
42
No original: For since all the members of any class are the same as all that are to be known; and since
from any part of those which are to be known an induction is competent to the rest, in the long run any
one member of a class will occur as the subject of a premiss of a possible induction as often as any other,
and, therefore, the validity of induction depends simply upon the fact that the parts make up and
constitute the whole.
57
convergir para um valor definido que estaria em desacordo com a realidade. Neste caso,
mesmo a longo prazo, a resposta à qual chegaria a comunidade indefinida de
pesquisadores estaria errada, pois aquelas bolinhas ocultas iriam tornar tal resposta falsa
(ainda que as premissas do raciocínio indutivo, como um todo, fossem todas
verdadeiras). Neste caso, a investigação não teria chegado à verdade, uma vez que
haveria um "bolsão" de realidade que permaneceria imperscrutável a qualquer investida
do conhecimento humano43
. Entretanto, notemos que, para os pesquisadores, para os
cientistas de nosso exemplo, a existência deste compartimento seria fruto de uma
hipótese, uma vez que eles não têm acesso nenhum a todas aquelas bolinhas vermelhas
eternamente ocultas. Notemos que, no fundo, o que uma hipótese como esta solicita a
estes pesquisadores ou cientistas é que acreditem na existência de um pedaço da
realidade ainda que não haja atualmente e nem nunca haverá nenhum sinal de sua
existência. Peirce insistirá que a mentalidade científica não pode levantar uma hipótese
como essas. Não se pode admitir a existência de algo incognoscível. Toda a realidade
deve poder ser conhecida.
43
Desenvolvamos outro exemplo para que esclareçamos esta relação entre incognoscibilidade e indução.
Suponha que, numa determinada cidade, vá ocorrer um pleito eleitoral entre os candidatos A e B e que o
candidato B tenha a maioria das intenções de votos. Imagine, então, a situação em que um número grande
de eleitores que vão votar no candidato B se escondesse nos dias exatos em que as pesquisas eleitorais
estivessem sendo feitas. Para os pesquisadores, estes eleitores simplesmente não são "realidades"
acessíveis, conhecíveis. A intenção de voto deles não é computada simplesmente, porque eles estão numa
espécie de "ponto cego" da pesquisa. Assim, os resultados das pesquisas, por maiores que sejam suas
amostras, por melhores que sejam suas metodologias (e melhor qualificados que sejam os
entrevistadores), estarão destinados a não convergir para a realidade (para o resultado "real" que sairá das
urnas no dia da votação [supondo que, neste dia, os eleitores do candidato B sairiam de seus esconderijos
para votar]).
58
CAPÍTULO 3
O problema das fundações
A partir de descobertas no campo da lógica (no período pós-64), o conceito de signo
passa a ser central para toda a filosofia peirceana. Em termos gerais, o signo é um
conceito que descreve um processo representacional em que um primeiro elemento (o
signo propriamente dito), para representar um segundo elemento (o objeto da
representação), deve necessariamente produzir um terceiro elemento (denominado de
interpretante) e, como este terceiro elemento é ele mesmo uma representação (um novo
primeiro elemento, ou seja, um novo signo), então ele deve necessariamente produzir
um quarto elemento (i.e., um novo terceiro elemento, ou seja, um novo interpretante) e
assim por diante. O modo recursivo como foi definido o terceiro elemento do signo
(aquele que, dentro da teoria, é o responsável direto pela possibilidade de síntese) e a
"ausência"44
de uma cláusula-base para tal recursão impede que possa ser estabelecido
algum ponto originário para o processo de representação (i.e., processo de produção de
interpretantes).
Se observarmos o quadro geral da epistemologia peirceana e recordarmos que o objetivo
último é responder (com a teoria das categorias) como são possíveis as sínteses e
também estabelecer (com as teorias defendidas na série cognitiva, que decorrem
diretamente das categorias) como é possível encontrar bases para validar o raciocínio
sintético, então não seria difícil notar por quais motivos Peirce não estaria "disposto" a
introduzir, em sua teoria do conhecimento, o conceito de intuição ou qualquer outro que
tenha alguma função epistemologicamente fundante. Como vimos, a intuição é a porta
de entrada para o incognoscível. E a admissão de incognoscibilidade torna impossível
que se encontre algum tipo de validade lógica para os raciocínios ampliativos ou
sintéticos (ao menos, torna impossível encontrar o único tipo de validade que Peirce
imagina que este tipo de raciocínio possa ter). Erigido o seu próprio sistema de
categorias, a próxima tarefa foi estabelecer uma teoria do conhecimento condizente com
tais categorias e, para isso, ele se viu obrigado a desmontar todas aquelas teorias que
explicam o conhecimento como um ato (ou processo) que tem início numa cognição
originária, numa intuição. Por trás de uma variedade muito grande de teorias
epistemológicas, Peirce identificou aquilo que chamou de "espírito do cartesianismo"
como a fonte geradora desta tendência em buscar e estabelecer uma origem (uma
fundação) para o processo de conhecimento. Assim, seus esforços foram concentrados
no ataque a tal fonte.
44
Desta "ausência" trataremos detalhadamente na segunda seção do décimo segundo capítulo.
59
Da mesma forma que, no capítulo anterior, defendemos a tese que o nascimento da
semiótica peirceana só pôde ocorrer na medida em que Peirce passou a se afastar da
matriz kantiana (na qual o seu pensamento fora inicialmente moldado), neste capítulo
pretendemos sustentar a tese que o estabelecimento da semiótica como núcleo de toda a
filosofia peirceana só pôde ocorrer na medida em que Peirce, depois de ter declarado
guerra ao "espírito do cartesianismo" distribuído pelas teorias epistemológicas
modernas, passou a conquistar o território inimigo seguindo pacientemente de trincheira
a trincheira. Uma teoria da cognição propriamente semiótica só foi alcançada depois de
Peirce ter examinado pacientemente ponto por ponto cada um dos conceitos-chave e das
bem sucedidas explicações fornecidas pelas teorias construídas dentro desse espírito do
cartesianismo. A concepção semiótica do funcionamento da cognição ganha relevância
(dentro da filosofia peirceana) na medida em que obtém sucesso em explicar o
funcionamento de todas as faculdades cognoscitivas que as teorias que combatia
explicavam sem abrir mão de sua posição inicial anti-fundacionalista. Peirce defende a
todo custo esta posição inicial por um motivo estratégico que já identificamos diversas
vezes. Em seu entendimento, apenas uma teoria do conhecimento que não recorresse ao
conceito de intuição (ou a pontos originários equivalentes) seria capaz de explicar a
validade (lógica) dos raciocínios ampliativos ou sintéticos.
Assim, a relevância da semiótica no projeto filosófico peirceano foi conquistada graças
a avanços realizados sobre um território antes dominado por explicações cuja fonte
primeira (ao menos aos olhos de Peirce) era Descartes. Não é por outro motivo que
dedicaremos parte considerável deste terceiro capítulo a uma exposição dos principais
conceitos e movimentos dentro do projeto cartesiano de fundações para o conhecimento
humano. Com isso, esperamos isolar algumas daquelas características que acreditamos
compor aquilo que Peirce denomina de "espírito do cartesianismo" e que foi combatido
no primeiro artigo da série cognitiva ("Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"). Interessa-nos, nesta exposição sobre Descartes, mostrar,
por exemplo, a centralidade do conceito de intuição para o projeto filosófico cartesiano,
o método de pesquisa filosófica baseado na introspecção, o método de organização
teórica baseado na geometria (conforme axiomatizada por Euclides), o enfoque no papel
da consciência individual na construção do conhecimento, etc. Cada uma dessas
características e tendências da filosofia cartesiana é objeto de crítica por parte de Peirce
e é, dentro de seu sistema, contraposta a características e tendências propriamente
semióticas. Como veremos com algum detalhe (nos capítulos desta tese dedicados às
análises de textos peirceanos), todas aquelas faculdades cognoscitivas que são
explicadas, dentro da epistemologia cartesiana, com base no conceito de intuição
passam a ser explicadas, na epistemologia peirceana, com base no conceito de
inferência.
Todo conhecimento, para Peirce, é indireto, depende de signos, ou seja, em seus termos,
todo conhecimento é inferencial. Isto o leva a introduzir um conceito propriamente
semiótico de mente para o qual é inevitável que olhemos com alguma estranheza. A
concepção de mente que emerge dos textos que compõem a série cognitiva está muito
60
distante daquela elaborada por Descartes nos primeiros dias da modernidade filosófica e
que já tem seus aspectos mais gerais simplesmente assentados no senso comum. Não
deve ter sido outro motivo que levou Santaella (2004, p. 34) a afirmar que "a
dificuldade de se entender Peirce é inversamente proporcional ao poder e à força da
herança cartesiana".
Enquanto no segundo capítulo o foco foi a relação entre Peirce e Kant (observada a
partir de dentro do período que se estende de 1864 até a elaboração do artigo "Sobre
uma nova lista de categorias" em 1867), neste terceiro capítulo passamos a focalizar a
relação entre Peirce e Descartes (observada a partir de dentro da série cognitiva,
elaborada nos anos de 1868 e 1869). A estrutura destes dois capítulos é praticamente a
mesma: na primeira seção introduz-se o filósofo com o qual Peirce dialoga (de forma
mais direta no período ou texto focalizado pelo capítulo) e, na segunda seção, examina-
se a relação entre os dois. Assim, na primeira (e maior) seção deste terceiro capítulo,
apresentaremos as principais características e tendências desenvolvidas dentro do
projeto cartesiano de fundações seguras para o conhecimento humano. Na segunda
seção, passamos a tratar do modo como Peirce se contrapõe a este projeto filosófico
cartesiano e também a todo um conjunto de teorias epistemológicas nas quais
identificou elementos do que chamava de "espírito do cartesianismo". A terceira e
última seção deste terceiro capítulo é dedicada à tarefa de fornecer um breve panorama
da concepção semiótica ou lógica de mente que resulta da teoria peirceana da cognição.
É partir desta concepção de mente que Peirce opera uma dupla reformulação conceitual
destinada a ter forte impacto, em particular, na sua epistemologia e, em geral, na sua
filosofia: o termo "sujeito cognoscente" passa a se referir a uma espécie de sujeito
coletivo do processo de conhecimento e o termo "realidade" passa a se referir a uma
espécie de ponto de fuga do processo de conhecimento. Neste panorama, teremos a
oportunidade de estabelecer um quadro geral dentro do qual podemos enxergar a
distância da epistemologia peirceana (apresentada na série cognitiva) com relação a
outros projetos epistemológicos construídos pelos filósofos modernos. As observações
feitas sobre este quadro geral nos servem de transição ao quarto capítulo, a partir do
qual começam as análises dos textos peirceanos.
61
3.1 - O projeto cartesiano da fundação última do conhecimento
físico-matemático
Descartes é um filósofo que não apenas viveu num tempo de transição, mas suas teorias
acabaram por também promovê-la, acelerá-la, enfim, moldá-la. O sistema filosófico
cartesiano é, ao mesmo tempo, causa e efeito da atmosfera desta época de transição à
qual nos referimos hoje sob o nome de Revolução Científica: o período que estende de
1543, ano da publicação da obra "De revolutionibus" de Nicolau Copérnico, até 1687,
ano de publicação da obra "Philosophiae naturalis principia mathematica" de Isaac
Newton.
Nesta passagem dos séculos XVI e XVII, num período que se estende por pouco mais
de cem anos, os pais fundadores da ciência moderna demoliram um conjunto de teorias
que estiveram na base da "visão de mundo" do homem europeu por mais de um milênio.
O que foi demolido não era, de forma alguma, um amontoado qualquer de teorias
esparsas, mas um sistema complexo que tinha em sua base teses provenientes da física e
cosmologia elaboradas por Aristóteles (filósofo grego do século IV a. C.) e do sistema
geocêntrico elaborado por Ptolomeu (astrônomo grego [que viveu em Alexandria] no
século I d. C.). Este conjunto de teorias, denominado cosmologia aristotélico-
ptolomaica, fora utilizado ao longo de toda a Idade Média para fornecer explicações
sobre a estrutura do universo, os processos que nele ocorrem bem como a composição
(essencial) dos seres que nele existem e, o que talvez seja o mais relevante do ponto de
vista cultural, também servia para localizar o homem no cosmos.
Este desmantelamento abriu espaço para o ceticismo. Se, num intervalo relativamente
curto de tempo, alguns poucos homens de posse de alguns poucos dados empíricos
foram capazes de questionar teorias nas quais muitos homens acreditaram por muitas
gerações com base no saber tradicional, é sinal, acreditam os céticos, que talvez o
homem não seja capaz de conhecer o que julga conhecer. Se foram provadas que eram
falsas algumas teorias que, durante mais de um milênio, eram consideradas
indubitáveis, talvez nossa capacidade de obter conhecimento devesse ser seriamente
questionada. É possível que tal capacidade que julgamos ter seja uma ilusão ou, ao
menos, seja muito limitada. É possível que nosso aparato sensório e cognitivo tenha em
si mesmo problemas insolúveis. O resultado do raciocínio cético é que ou não podemos
conhecer nada (afirmariam os mais radicais) ou, na melhor das hipóteses
(contemporizariam os mais moderados), ainda que pudéssemos conhecer algo, tal
conhecimento jamais poderia ser considerado certo, absoluto.
Se, por um lado, o desmantelamento da visão de mundo baseada no saber tradicional
abre espaço para o ceticismo, por outro lado, este mesmo processo provoca uma reação
conservadora na instituição dominante (a Igreja), uma vez que seu poder de se fazer
ouvir e obedecer dependia do conjunto de crenças que estava sob questionamento. O
projeto filosófico cartesiano pode ser entendido como uma busca de uma resposta
62
definitiva para o desafio cético que contemple tantos os avanços da nova ciência como a
possibilidade (e necessidade) da existência de Deus num universo que passaria a ser
minuciosamente examinado e explicado pelo discurso científico.
Esta atividade mental que chamamos de raciocínio parece intimamente ligada a uma
busca por razões. Raciocinar sobre algo é, num certo sentido, procurar razões que nos
levem a acreditar neste "algo". Diante de uma afirmação, a razão nos solicita que
indaguemos quais são as bases desta afirmação. Se a considero verdadeira, com que
direito o faço? Quais são as minhas justificativas para nesta afirmação acreditar?
Suponha que acreditemos na seguinte afirmação: "Sócrates é mortal". A pergunta a ser
feita é a seguinte: com base em que acredito que "Sócrates seja mortal"? A resposta que
todos temos sob a língua é: "ora, Sócrates é mortal, porque Sócrates é humano". Assim,
justificamos a primeira proposição "Sócrates é mortal" com a segunda proposição
"Sócrates é humano" (supondo que todo ser humano seja um ser mortal). Estamos
diante de um argumento cuja premissa é esta segunda proposição e a conclusão é aquela
primeira. Entretanto, o que, neste raciocínio, pudemos justificar foi apenas a proposição
"Sócrates é mortal" (nossa primeira afirmação).
Notemos que a proposição "Sócrates é humano" (que introduzimos como justificativa
daquela primeira afirmação) não é justificada, ou seja, com este argumento, apenas
apresentamos motivos, razões, justificativas que devem levar nosso interlocutor a
acreditar na primeira proposição. A segunda delas permanece sem justificativas. Por
este exato motivo, diante desta nova afirmação, a razão nos solicita que indaguemos
quais são as bases dela. Quais são as minhas justificativas para acreditar que "Sócrates
seja humano"? Suponha que entre em cena, então, uma terceira afirmação: "Sócrates é
um ser capaz de falar". Assim, justificamos a segunda proposição "Sócrates é humano"
com a terceira proposição "Sócrates é um ser capaz de falar" (supondo que todo ser
capaz de falar seja um ser humano). Isto é um novo argumento e temos estruturalmente
a mesma situação do raciocínio anterior: uma conclusão justificada por uma premissa
que não é, por sua vez, justificada. Isto torna possível recolocarmos a indagação a
respeito dos fundamentos: qual é a justificativa para se acreditar nesta terceira
proposição (que foi apresentada como justificativa da segunda, que, por sua vez, foi
apresentada como justificativa da primeira)?
Se admitimos esta apresentação bem esquemática da racionalidade como uma busca de
razões, fundamentos, justificativas, etc. e também aceitarmos uma análise muito
tradicional segundo a qual conhecimento é crença verdadeira justificada, então pode-se
formular um problema muito geral: quais são os fundamentos daquilo que conhecemos
(ou julgamos conhecer); quais são os fundamentos últimos de todas aquelas afirmações
que julgamos verdadeiras?
O problema cartesiano não é apenas encontrar uma fundação para o conhecimento
humano, especificamente aquele conhecimento-base, i.e., a física e matemática, mas
uma fundação que seja completamente segura, inabalável. Descartes acreditava que não
apenas era possível se encontrar tal fundação segura, como esta busca poderia, em
63
princípio, ser feita por todo e qualquer homem com iguais chances de sucesso. Esta
crença se manifesta na primeira linha da obra o "Discurso do Método" (1637): "o bom
senso é a coisa melhor compartilhada no mundo". O bom senso ou razão é o primeiro
passo, o primeiro requisito necessário para se buscar a verdade. Ainda que seja
necessário, não é suficiente, pois, além de possuirmos o bom senso, devemos aplicá-lo
bem, i.e., utilizá-lo de forma adequada. É por conta deste segundo requisito (a adequada
aplicação da razão ou do bom senso) que entra em cena a necessidade de se desenvolver
um método.
Com esta linha inicial da obra que geralmente é considerada a inauguração da
modernidade filosófica, Descartes põe em marcha o movimento que traria para dentro
do sujeito cognoscente o princípio de fundamentação do conhecimento (que antes
estivera fora dele, ou em Deus [no caso dos medievais] ou na Natureza [no caso dos
antigos]). Este movimento (que só se completaria em Kant) começa a projetar na
nascente mentalidade moderna algumas de suas principais características: as noções de
individualidade, autonomia e, sobretudo, (de forma conjuntiva) a noção de indivíduo
autônomo. Não é por outro motivo que Descartes escreve o seu o "Discurso do Método"
em língua vernácula (francês). A intenção geral desta obra já estava presente numa obra
anterior, mas que não fora publicada durante a vida do filósofo: "Regras para a direção
do espírito". Vejamos dela um trecho45
.
Por método, entendo regras confiáveis que sejam de fácil aplicação e que,
caso sejam observadas com exatidão por quem quer que seja, deverão
impedir que se tome o falso por verdadeiro ou se desperdice esforço mental,
mas deverão fazer com que cresça constante e gradualmente o conhecimento
até que o indivíduo chegue a um verdadeiro entendimento de tudo que esteja
dentro de suas capacidades.
(AT X 371-2; CSM I 16)
No Discurso do Método, Descartes expõe quatro regras: I) dúvida metódica, II) análise,
III) síntese e IV) enumeração. A primeira delas, a denominada dúvida metódica, pode
ser enunciada da seguinte forma: "jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu
não conhecesse evidentemente como tal" e, mais adiante, continua Descartes, "não
incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e tão
distintamente a meu espírito que eu não tivesse ocasião alguma de pô-lo em dúvida"
(AT VI 18; CSM I 120; cf. Descartes, 1973 [1637], p. 45). Na apresentação desta
primeira regra, recorre-se àquilo que é reconhecido como o critério de evidência do
sistema cartesiano: a clareza e a distinção. Clareza e distinção são as marcas de uma
"captação ou percepção" direta (realizada pela mente) de uma verdade indubitável. Esta
45
Para as citações das obras de Descartes, recorremos a um sistema bastante utilizado por comentadores.
A abreviatura AT é referente à edição francesa completa das obras de Descartes organizada por C. Adam
e P. Tannery intitulada "Ouevres de Descartes" (11 vols.) e a abreviatura CSM é referente à tradução
inglesa realizada por J. Cottingham, R. Stoothoff e D. Murdoch intitulada "The philosophical Writings of
Descartes". Cada uma dessas abreviaturas é seguida de um número (em algarismos romanos) relativo ao
volume e um número (em algarismos arábicos) relativo à página em que se encontra o trecho citado. Em
alguns casos, também é feita referência à edição em língua portuguesa.
64
"captação ou percepção" direta é também denominada intuição e este é um conceito
central para a filosofia cartesiana.
Por "intuição", entendo não o testemunho flutuante dos sentidos ou o juízo
enganador da imaginação ao compor um remendo de coisas, mas um conceito
formado por uma mente clara e atenta, que é tão fácil e distinto que não pode
haver espaço para dúvida sobre o que compreendemos. Ou, então, o que é a
mesma coisa, uma intuição é um conceito indubitável formado por uma
mente clara e atenta, o qual procede unicamente da luz da razão.
(AT X 368; CSM I 14).
Por trás da noção de intuição no sistema cartesiano, parecem residir duas condições: a
primeira delas é a simplicidade, que é o caráter elementar, i.e., não-composto de um
conceito (ou de uma representação); a segunda dessas condições é a distinguibilidade
(ou separabilidade), que é a possibilidade de uma total distinção ou separação entre os
conceitos (ou as representações). Se, para haver intuição, as ideias (ou representações
ou ainda conceitos) com os quais se lida devem poder ser simples e distintos, então o
método deve prescrever alguma maneira pela qual podemos encontrar ideias que
tenham estas características. Isto nos leva à segunda regra enunciada por Descartes no
Discurso do método.
A segunda regra é a da análise. De acordo com a segunda regra, devemos, diante de um
problema, dividi-lo em tantas partes menores, quantas for possível e necessário para
melhor resolvê-lo (AT VI 18; CSM 120; cf. Descartes, 1973 [1637], p. 45-6). Como o
critério de evidência assumido dentro do sistema de Descartes é a clareza e a distinção,
para que se possa aplicá-lo a determinado conceito, é necessário que este seja simples
ou, ao menos, seja entendido como algo que possa ser decomposto em partes que sejam
elas mesmas simples. O objetivo desta segunda regra é fornecer um modo de se chegar a
elementos simples para que se possa deles ter um conhecimento seguro, indubitável, ou
seja, ter uma "percepção" direta de sua verdade. No fundo, o papel da regra de análise
(dentro do método) é fornecer as condições para que se possa aplicar a intuição. A
terceira regra, a síntese, segue no sentido oposto da anterior. Deve-se, de acordo com
esta terceira regra, recompor aquilo que foi objeto de análise (exigida pela regra
anterior) e esta recomposição deve seguir um determinado princípio de ordenação que
parte do mais simples em direção ao mais complexo criando, assim, uma cadeia em que
cada passo depende do passo anterior. A quarta regra é a da enumeração, que pode ser
enunciada da seguinte forma: deve-se fazer ao longo de toda a cadeia de raciocínio (que
foi construída para resolver um problema) enumerações tão completas e revisões tão
gerais que se possa ter certeza de que nada foi omitido (AT VI 19; CSM 120; cf.
Descartes, 1973 [1637], p. 46). O objetivo desta quarta regra parece ser o de criar um
dispositivo de segurança que faça uma espécie de confirmação última da eficiência do
método e, assim, garanta a verdade das proposições às quais se chega ao final de uma
cadeia de raciocínio (feita sob orientação das regras do método). Como a verdade das
ideias iniciais é garantida pela intuição (o critério de clareza e distinção) e a verdade das
ideias derivadas daquelas iniciais é garantida pelo procedimento dedutivo (que é, por
65
definição, aquele tipo de inferência capaz de preservar a verdade das premissas [AT X
369; CSM I 15])46
, então, como último recurso para afastar os erros, deve-se enumerar
cada passo da inferência, o que deve facilitar a revisão de todo o processo.
Após ter apresentado as quatro regras, Descartes passa aplicá-las ao seu próprio sistema
de crenças (i.e., o conjunto de todas as proposições nas quais ele acredita)47
. Em linhas
gerais, a estratégia da dúvida metódica cartesiana é separar toda e qualquer crença que
carregue a mínima possibilidade de ser posta em dúvida com o intuito de isolar aquelas
crenças das quais seja impossível duvidar. Ao se separar aquelas crenças que sejam
duvidáveis, deve-se, ainda que provisoriamente, rejeitá-las como se fossem todas
absolutamente falsas (AT VI 31-2; CSM 127; cf. Descartes, 1973, p. 54). Assim, o que
restar, deve ser indubitável e, por este motivo, considerado uma fundação segura a partir
da qual pode-se edificar o conhecimento. Podemos, portanto, dividir o projeto
cartesiano em dois grandes estágios: o primeiro deles é o da "desconstrução" do sistema
de crenças a partir do uso da dúvida metódica, o que deve permitir o isolamento de
verdades fundamentais que sejam auto-evidentes (ou intuitivas); o segundo desses
estágios é o da "reconstrução" do sistema de crenças a partir do encadeamento de
verdades que sejam garantidas pela verdade inicial, indubitável.
Ao longo de todo o "Discurso do método", Descartes, para se referir ao sistema de
crenças como um todo (e que deve ser construído sobre bases seguras), recorre à
metáfora da casa. A relação de analogia por trás desta metáfora é que, da mesma forma
que um sistema de crenças deve cair por terra caso esteja baseado em falsas proposições
(que geralmente são fruto de conclusões apressadas ou de "preconceitos" trazidos da
infância do pensamento), uma casa deve ruir caso suas fundações não estejam firmes,
seguras. Dentro desta metáfora, a dúvida metódica funcionaria como uma espécie de
marreta. Claro está que Descartes não pretende exigir que se passe a percorrer todas as
crenças para que se possa duvidar de cada uma delas individualmente, pois esta seria
uma tarefa infindável. Basta que sejam minadas as fundações de uma edificação para
que tudo que estiver construído sobre elas desabe. Assim, afirma Descartes na obra em
que está exposto de forma mais detalhada o seu projeto fundacionalista, as "Meditações
de Filosofia Primeira" (publicado em 1641), para cumprir este estágio de
"desconstrução" (capitaneado pela dúvida metódica) devo me concentrar "nos princípios
básicos sobre os quais repousavam todas as minhas antigas crenças" (AT VII 18; CSM
12, Descartes, 1973[1637]), p.93)48
.
46
Descartes, portanto, reconhece apenas dois "atos do intelecto mediante os quais somos capazes de
alcançar um conhecimentos das coisas sem medo de nos enganarmos": a intuição e a dedução (AT X 368:
CSM I 14). 47
Entre os comentadores de Descartes (cf. Skirry, 2010 p. 41) , há um reconhecimento geral de que,
enquanto o narrador em primeira pessoa da obra "Discurso do método" tem como referência seu próprio
autor (uma vez que este é um discurso reconhecidamente autobiográfico), o narrador em primeira pessoa
da obra "Meditações sobre Filosofia Primeira" tem como referência um personagem que não se confunde
com próprio autor. Este personagem é referido na literatura secundária com o nome de "o Meditador".
Adotaremos nesta seção (que trata especificamente da obra cartesiana) esta convenção. 48
Aliás, justamente por esta obra ("Meditações de Filosofia Primeira") ser considerada aquela em que
Descartes apresenta de forma mais completa seu sistema de fundação de todo o conhecimento físico-
66
Para cumprir este primeiro estágio de seu projeto fundação do conhecimento, a
demolição do sistema de crenças por meio da dúvida metódica, o filósofo francês divide
este sistema em dois grandes conjuntos. No primeiro deles estão todas aquelas crenças
que estão baseadas nos sentidos. No segundo desses conjuntos, estão todas aquelas
crenças baseadas em noções matemáticas. Vejamos, em primeiro lugar, o que se quer
dizer com crenças que sejam baseadas nos sentidos (ou em dados sensórios). No
exemplo que demos há pouco, a afirmação de que "Sócrates é mortal" foi baseada na
afirmação de que "Sócrates é humano", que por sua vez foi baseada na afirmação de que
"Sócrates é um ser capaz de falar". Para que não continuemos indefinidamente,
podemos supor que esta última afirmação seja baseada no fato de a pessoa que nela
acredita ter visto Sócrates falando. Neste caso, esta afirmação (bem como todas aquelas
outras feitas anteriormente) depende, em última análise, de dados provenientes do
aparato sensório, ou seja, esta é uma crença baseada nos sentidos.
O primeiro passo para que entendamos o critério que presidiu esta divisão é notarmos
que existem certas crenças das quais é mais fácil (ou, ao menos, natural) se duvidar do
que outras49
. Dentre estas crenças das quais podemos duvidar com maior facilidade (ou
naturalidade), estão todas aquelas que são baseadas na sensação, ou seja, o primeiro
conjunto acima referido. Certa desconfiança com relação aos sentidos estaria justificada,
pois, de acordo com Descartes, "é prudente nunca confiar completamente no que já foi
capaz de nos enganar alguma vez" (AT VII 18; CSM II 12, Descartes, 1973, p. 94).
Entretanto, existem gradações. Mesmo dentre as crenças baseadas nos sentidos, existem
algumas das quais nos parece ser mais difícil duvidar, como as experiências sensoriais
mais imediatas. Por exemplo, a crença de que "eu estou aqui sentado diante de um
computador" que é baseada na sensação tátil que as teclas imprimem na ponta de meus
dedos. Esta nos parece uma experiência sensorial tão imediata que se torna difícil dela
duvidar.
Para colocar, de uma só vez, todas as crenças baseadas nos sentidos sob dúvida,
Descartes introduz a hipótese do sonho. Num sonho, minha mente pode ser posta diante
de imagens que acredito ter como causa um objeto externo percebido, mas, na verdade,
tudo é fruto de minha imaginação, as imagens são "produções internas" à mente e não
correspondem a nenhum objeto externo. Por exemplo, posso estar neste momento
deitado, dormindo numa rede e sonhando que "eu estou aqui sentado diante de um
computador". Neste sonho, acredito estar sentado diante do computador, pois tenho, por
exemplo, a mesma sensação tátil (das teclas na ponta de meus dedos) que teria se
estivesse realmente neste lugar. De "dentro" do sonho não posso diferenciá-lo da
realidade. Noto que, diante de uma experiência sensorial, uma percepção qualquer, não
sou capaz de saber com certeza absoluta se esta experiência (ou percepção) é real ou
matemático (e, assim, por extensão de todo o conhecimento que podemos ter do mundo), deste ponto em
diante, a nossa breve exposição do pensamento de Descartes vai se basear nos argumentos e exemplos
nesta obra apresentados (e colocaremos em segundo plano a "versão" dessas ideias apresentada no
"Discurso do método"). 49
Pode-se considerar que esta divisão em crenças baseadas nos sentidos e crenças baseadas na
matemática também espelha uma distinção presente já no problema filosófico cartesiano que é o
estabelecimento de uma fundação completamente segura para o conhecimento físico-matemático.
67
sonhada. Em outras palavras, noto que sempre posso estar enganado com relação ao fato
de achar que estou acordado quando, na verdade, estou sonhando. Ainda que, de dentro
de um sonho, eu não possa saber se estou ou não sonhando, posso, ao menos, tomar a
atitude cautelosa de sempre levar em conta a possibilidade de estar sonhando. Dentro de
sua teoria, o que Descartes pretende fazer com a introdução da hipótese do sonho é
focalizar esta irremovível possibilidade de se estar sonhando quando se julga estar
acordado. Esta possibilidade (por menor que seja) sempre existe, o que nos leva a
colocar sob dúvida toda e qualquer crença que esteja baseada em dados provenientes
dos sentidos.
Se nos perguntarmos de onde vem tal possibilidade de se estar sonhando mesmo quando
se julga estar em estado de vigília, observaremos que os sonhos só podem ser falsos,
imaginários porque são "complexos", i.e., são compostos de elementos mais simples. É
o fato da experiência sensória ser composta (ou complexa) que torna possível o engano.
Repare que mesmo no sonho mais absurdo, i.e., numa cena ou imagem sonhada em que
nada parece poder corresponder à realidade, ainda temos que pressupor que haja
algumas partes desta cena ou imagem que devem ser reais. Embora a composição como
um todo seja irreal, alguma de suas partes devem poder ser consideradas reais. O que se
pode depreender da exposição de Descartes é que, caso contrário, tal sonho seria
impossível. Neste mesmo trecho da primeira meditação (citado acima), Descartes
apresenta o exemplo dos pintores de "imagens ficcionais": "mesmo quando os pintores
tentam criar sereias e sátiros com os corpos mais extraordinários, eles não podem dar
eles naturezas que sejam novas em todos os aspectos; o que os pintores fazem é
simplesmente juntar membros de diferentes animais" (AT VII 20, CSM II 13). Mesmo
na situação em que o pintor consiga produzir algo realmente novo, ainda assim teríamos
que pressupor que, ao menos, as cores utilizadas são reais (ibid). A condição de
possibilidade da dúvida instaurada pela hipótese do sonho neste caso é a
composicionalidade da experiência sensória.
Portanto, com a introdução desta hipótese do sonho, Descartes é capaz de colocar sob o
manto da dúvida e, assim, suspender (considerando como se fosse falsa) grande parte do
conjunto de crenças. Grade parte da casa já está no chão. A partir de tal hipótese, não
temos base para acreditar em muito do que geralmente acreditamos. Por exemplo, todas
as ciências que dependem, em última instância de dados observacionais, estão sob
dúvida, pois todas as observações que nos levaram a construir teorias em cada uma
dessas ciências podiam ser, de acordo com a hipótese, simplesmente sonhos. Entretanto,
deve-se observar que há um número considerável de crenças que são plenamente
capazes de resistir à hipótese do sonho. Todas aquelas crenças que dependem de noções
matemáticas escapam à hipótese do sonho. O argumento que Descartes traz desde a obra
"Regras para direção do espírito" é que a matemática "lida com objetos tão puros e
simples que ela não faz asserções que a experiência poderia tornar incertas" (AT X 365;
CSM I 12). O que está presente na experiência sensorial (e, por isso, a torna capaz de
ser falsa, i.e., ser sonhada), mas está ausente no caso das noções matemáticas é
justamente a composicionalidade. Por não serem compostas, não há condições de
68
possibilidade das noções matemática não corresponderem a algo externo. As
proposições da matemática são, então, noções simples cuja verdade pode ser captada de
forma clara e distinta de uma só vez. É a simplicidade ou a não-composicionalidade que
faz com que as chamadas "verdades matemáticas" não possam ser enganadoras (como
as crenças que dependem dos sentidos). Sabemos da verdade delas pela luz natural, ou
seja, por intuição. No seguinte trecho da primeira meditação, Descartes conclui,
partindo da hipótese acima apresentada, que uma série de crenças de base científica
devem ser suspensas por estarem todas baseadas (em última instância) em dados
sensórios. Entretanto, notemos que há ainda algumas crenças que escapam à dúvida
introduzida pela hipótese do sonho.
Então, uma conclusão razoável disso pode ser que a física, astronomia,
medicina e todas as outras disciplinas que dependem do estudo das coisas
compostas são duvidáveis; enquanto a aritmética e a geometria e outras
disciplinas deste tipo, que lidam apenas com as coisas mais simples e gerais e
desconsideram se tais coisas existem na natureza ou não, possuem algo certo
e indubitável. Pois quando estou acordado ou adormecido, dois mais três é
igual a cinco e um quadrado não tem mais que quatro lados. Parece
impossível que sob tais verdades tão transparentes pudesse pairar qualquer
suspeita de que elas sejam falsas.
(AT VII 20; CSM 14; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 27)
A natureza simples (não-composicional) das verdades matemáticas, então, se interpõe
como um obstáculo à tarefa de demolir o restante do sistema de crenças (a casa). Se
considerarmos a hipótese do sonho como uma ferramenta (à disposição do meditador
que utiliza o método da dúvida para buscar a verdade), então o raciocínio matemático
poderia ser considerado um tipo de "concreto" utilizado nalgumas paredes da casa que
as tornaria resistentes ao uso desta ferramenta específica. Como o objetivo de Descartes
é isolar uma certeza completa, algum ponto que seja indubitável para lhe servir de
fundação última, então é necessário encontrar um modo de prosseguir com o método da
dúvida e colocar sob suspeita também o conhecimento matemático. Isto significa que é
necessário se recorrer a uma ferramenta mais forte, é preciso elaborar uma hipótese
mais forte do que aquela primeira.
Como veremos, esta segunda hipótese deve, para ter um alcance muito maior do que a
primeira, necessariamente possuir um caráter metafísico, pois a intenção é que sua
introdução na teoria nos permita duvidar daquilo que, pela própria natureza da mente,
não podemos duvidar: as chamadas verdades matemáticas. Para isto, Descartes precisa
construir um novo cenário hipotético dentro do qual seja possível se enganar também a
respeito das noções matemáticas. Para tornar possível que seja falsa uma asserção de
caráter matemático que naturalmente consideramos verdadeira, Descartes constrói um
cenário em que existe um ser infinitamente poderoso que é plenamente capaz de nos
enganar com relação até mesmo ao conhecimento matemático que julgamos certo e
indubitável. Este recurso metafísico ficou conhecido na literatura especializada com o
nome de hipótese do gênio maligno (ou também deus enganador ou ainda diabo
embusteiro).
69
Com a introdução da hipótese do gênio maligno, torna-se possível duvidar até mesmo
do que não é da natureza de nossa mente duvidar. Não é por outro motivo que se afirma
que esta última hipótese instaura uma dúvida metafísica enquanto a hipótese do sonho
instaura uma dúvida natural. De acordo com a leitura de Martial Gueroult, um dos
maiores intérpretes da obra cartesiana no século XX, Descartes, para estabelecer dentro
de seu sistema a possibilidade desta dúvida de caráter metafísico, recorre à noção de
"livre vontade" ou livre arbítrio do homem. A possibilidade de considerar como se fosse
falso mesmo aquilo que a natureza da mente nos apresenta como evidentemente (i.e.
clara e distintamente) verdadeiro é proveniente da vontade humana entendida como
infinitamente livre e da onipotência divina (i.e., um deus infinitamente poderoso). Para
Gueroult (1984 [1952], p. 18), é este duplo aspecto do infinitude presente no livre
arbítrio (do homem) e também presente na onipotência (divina) que torna possível a
passagem da dúvida natural para a dúvida metafísica. Então, se por um lado, a ideia de
composicionalidade da experiência sensória é apresentada como condição de
possibilidade da dúvida natural, por outro lado, a ideia de infinita liberdade da vontade
humana e a ideia de infinito poder de deus são apresentadas como condição de
possibilidade da dúvida metafísica.
Este processo de radicalização, esta insistência em levar o procedimento da dúvida até
os limites últimos é absolutamente essencial para uma filosofia que busca encontrar os
fundamentos últimos do conhecimento. Afinal, situações extremas exigem medidas
extremas. A radicalidade do projeto cartesiano permite a Gueroult compará-lo ao
projeto kantiano (apresentado na "Crítica da Razão Pura"), do qual tratamos no capítulo
anterior.
Descartes deseja colocar o problema da certeza em sua máxima extensão.
Neste ponto, ele se assemelha a Kant, que julgaria necessário, para se
reformar a razão, instituir uma crítica que envolve toda a faculdade do
conhecimento, em vez de apenas censurar algumas doutrinas particulares.
Entretanto, ele difere de Kant na medida em que, para ele, uma hipótese
metafísica o permite colocar o problema, e um conhecimento metafísico o
permite solucioná-lo; ele também difere de Kant na medida em que a
fundação da validade do meu conhecimento não pode ser descoberta a partir
de dentro de minha mente, mas a partir de fora.
(Gueroult, 1984 [1952], p. 19)
Se, sob a hipótese do gênio maligno, a dúvida metódica alcança até mesmo a
matemática, então não deve ter restado nada de nosso sistema de crenças. A casa deve
ter sido completamente demolida. Na verdade, mesmo introduzida a hipótese do gênio
maligno, deve restar algo. Sob os escombros do sistema de crenças, resta algo que
escapa mesmo à dúvida metafísica, o que sobra se apresenta como condição interna ao
ato de duvidar: a existência do pensamento (daquele que duvida). Como não pode ser
posta dúvida nem pela mais corrosiva das dúvidas (que é aquela de natureza metafísica,
i.e., a hipótese do gênio maligno), então este pensamento de que existo (porque penso
[ou duvido]) é a certeza fundamental. Dele não se pode duvidar simplesmente, porque
não só não há condições que me permitam dele duvidar como ele próprio é condição
70
para duvidar de qualquer outra coisa. A enunciação desta certeza fundamental é
provavelmente a frase mais conhecida da filosofia: "penso, logo existo" (ou, em latim,
"Cogito, ergo sum").
A indubitabilidade do Cogito reside, portanto, numa condição interna ao ato de duvidar
(ou pensar). A existência daquele que duvida é uma condição para a dúvida. A
existência daquele que pensa é uma espécie de plataforma que torna possível o
pensamento. O gênio maligno pode me enganar com relação a tudo que conheço ou
julgo conhecer, exceto com relação ao conhecimento que tenho de minha existência
(como algo que pensa). E ele não pode me enganar com relação a isso justamente pelo
fato de meu pensamento ser real. Não posso duvidar da realidade do meu pensamento,
porque ainda que seja um pensamento enganoso, ilusório, (ainda que tal pensamento
seja uma falsa representação da realidade exterior), ele não deixa de ser um pensamento.
E um pensamento, de qualquer tipo (verdadeiro ou falso), pressupõe algo que pensa.
Esta é a intuição fundamental. É a pedra sobre a qual será erguido o edifício do
conhecimento.
Após a radicalização do procedimento de dúvida realizada durante a primeira meditação
(e na quarta parte do "Discurso do método"), Descartes passa admitir como indubitável
somente a existência daquele que duvida. Na verdade, o que é admitido é apenas que há
algo que pensa, uma substância que pensa. A existência de um corpo e de qualquer
realidade externa à mente (daquele que duvida) continua sob dúvida. A certeza
encontrada diz respeito somente à existência do sujeito (enquanto substância pensante) e
não do objeto, que permanece sob o manto da dúvida metódica. Por este motivo,
Descartes passa, na segunda meditação, a argumentar a favor da tese de que a mente
(daquele que está duvidando) é mais facilmente conhecida do que o corpo (que este
indivíduo que duvida supõe ser seu).
Há, no pensamento cartesiano, uma prioridade do conhecimento da mente (ou da alma)
sobre o do corpo. Na verdade, mente e corpo são definidos (dentro do sistema) por
propriedades fundamentais distintas. Mente e corpo são entendidos como substâncias
completamente desligadas uma da outra. É este dualismo que está por trás do célebre
exemplo do pedaço de cera, apresentado na terceira meditação.
Suponha que observemos um pedaço de cera que acabou de ser retirado de um favo de
mel e que façamos uma lista de suas propriedades que sejam perceptíveis pelos cinco
sentidos. Notaríamos que este pedaço de cera guarda algo do gosto do mel; tem ainda o
aroma das flores das quais foi tirado e também a cor, o formato e o tamanho são bem
específicos. Pode-se notar também que este pedaço de cera é duro e podemos produzir
som caso batamos em sua superfície com a junta dos dedos. De acordo com Descartes,
este pedaço de cera, assim descrito, possui todas as propriedades que parecem
"necessárias para que uma coisa corpórea seja conhecida da forma mais distinta
possível" (AT VII 30; CSM 20; Descartes, 2004 [1641], p. 55). Entretanto, continua
Descartes, se aproximarmos este pedaço de cera do fogo, notaríamos que todas aquelas
propriedades se perderiam: aquele sabor residual de mel e também aquele afável cheiro
71
das flores desapareceriam. Poderia se observar que a cor, formato e tamanho já não
seriam mais os mesmos. A cera, que antes era dura e fria, torna-se quente e mole. Com
sua consistência alterada dessa maneira, já não poderíamos, como antes, produzir som
ao "tamborilarmos" na superfície deste pedaço (agora derretido) de cera. Se basearmos
o conhecimento que temos deste pedaço de cera naquela lista de propriedades sensíveis,
seríamos obrigados a reconhecer que, depois de termos o levado ao fogo, estaríamos
diante de outro objeto, completamente distinto. Porém, isto não ocorre. De alguma
forma, sabemos que aquele é exatamente o mesmo pedaço de cera.
A explicação de Descartes é que a identidade de um objeto é independente de quaisquer
alterações de propriedades que possam ser captadas pelos sentidos. Aliás, e é este o
cerne deste exemplo, aquilo que faz da cera o que ela é não pode ser percebido pelos
sentidos. Mas pode somente ser percebido pela mente.
Porém, o que é esta cera que é percebida apenas pela mente? É claro que é a
mesma cera que vejo, toco e que retrato na minha imaginação, em resumo, a
mesma cera que pensei ser desde o início. E ainda, e aqui está o ponto
principal, a percepção que tenho dela não é um caso de visão, tato ou
imaginação nem nunca foi, apesar das aparências mas um caso de puro
escrutínio mental; e isto pode ser imperfeito e confuso, como era antes, ou
claro e distinto como é agora, dependendo de quão cuidadosa for minha
concentração para saber no que consiste esta cera.
(AT VII 31; CSM II 21, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 57)
Portanto, o conhecimento (verdadeiro) daquilo que um objeto é (no que ele consiste)
não pode ser baseado em características cambiantes. O conhecimento não pode se
basear no que é acidental ou inessencial no objeto, mas naquilo que deve permanecer
através das mudanças. E, de acordo com Descartes, apenas a extensão é uma
propriedade que permanece sob todas as mudanças possíveis e pode, assim, ser
considerada a propriedade essencial das coisas corpóreas. O que é, nos objetos,
percebido de forma clara e distinta é apenas a extensão. Qualquer outra propriedade que
possamos atribuir a um objeto pressupõe a ideia de extensão. Ser redondo, ser quadrado,
ser alto, ser magro, ser azul, ser árido, ser espesso, etc. Todos esses modos de ser são
apenas modos de ser extenso, i.e., modos particulares pelos quais uma coisa é extensa.
Como veremos mais adiante, esta definição de tudo o que pode existir de matérico a
partir de uma propriedade essencial (a extensão) é uma condição para as fundações
seguras do conhecimento sobre o mundo externo. Um mundo (externo) que é feito
essencialmente de coisas extensas pode, ainda que não saibamos se ele existe ou não,
ser descrito matematicamente.
O mais importante neste ponto da exposição é que enxerguemos como dentro deste
cenário teórico em que há a primazia da mente sobre o corpo, o conhecimento da mente
e das ideias que nela se apresentam é mais certo e mais seguro do que o conhecimento
do mundo externo (cuja existência, aliás, ainda está para ser provada). Até mesmo a
visão ou imaginação da cera atesta, antes, a existência daquele que a vê ou imagina.
72
Com certeza minha consciência do meu próprio eu não é apenas muito mais
verdadeira e certa que a minha consciência da cera, mas também muito mais
distinta e evidente. Pois, se julgo que a cera existe do fato que a vejo,
claramente este mesmo fato implica de forma muito mais evidente que eu
mesmo existo. É possível que o que vejo não seja exatamente a cera, é
possível que eu não tenha olhos com os quais possa ver alguma coisa. Porém,
quando eu vejo ou penso ver (não estou aqui distinguindo os dois),
simplesmente não é possível que eu, que estou pensando agora, não seja
alguma coisa.
(AT VII 33; CSM 22, Descartes, 1974 [1641], p. 61).
Antes que continuemos, é necessário que chamemos atenção para uma relevante
consequência do princípio metafísico de total separação entre substância pensante e
substância extensa. Dentro dos limites da teoria cartesiana, ainda que se possa afirmar
que sinais, símbolos, palavras, em resumo, a linguagem facilite o raciocínio, não
podemos afirmar que estes expedientes sensíveis dos quais o homem lança mão sejam
essenciais à atividade do pensamento50
. O motivo é que obviamente o lugar teórico da
linguagem no pensamento cartesiano é do lado das coisas corpóreas, o que a faz ser
definida em radical oposição ao pensamento ou ao que lhe é próprio. Se Descartes
admitisse que os sinais que utilizamos, por exemplo, durante um raciocínio, para
representar o conteúdo do que pensamos fossem essenciais ao próprio ato de pensar,
então teria que admitir que o pensamento (numa atividade que lhe é própria, o
raciocínio) teria que necessariamente recorrer a algo corpóreo, o que entraria em
conflito com o princípio de independência entre a substância pensante e substância
extensa. Portanto, uma tese que podemos derivar naturalmente deste princípio da
filosofia cartesiana é que o emprego de expedientes sensíveis para simbolizar os
conteúdos mentais não é essencial ao pensamento. Este é um posicionamento
diametralmente oposto, por exemplo, ao do filósofo e matemático alemão Gottfried
Wilhelm Leibniz (1646-1716): o uso de expedientes sensíveis é uma condição sine qua
non da própria atividade de pensar. O pensamento é essencialmente simbólico. Para
Leibniz, a linguagem "constitui o melhor espelho do espírito humano e que uma análise
exata da significação das palavras ajudaria, melhor que qualquer outra coisa, a conhecer
as operações do entendimento" (Novos ensaios, livro III, cap. 7, sec. 6; Leibniz, 1974
[1710], p. 219). Conforme já antecipamos, o espelhamento entre linguagem e
pensamento é uma das ideias mais gerais e profícuas de toda a filosofia peirceana. A
correlação entre os conceitos de pensamento e linguagem atravessa toda a obra de
Peirce.
A partir da terceira meditação, Descartes começa a preparar o terreno para, da primeira
certeza (o cogito), derivar outras verdades. Como a única "coisa" a respeito da qual se
tem certeza é a existência da mente (ou alma), o único movimento possível, a esta
altura, é um movimento de introspecção. Como a única "coisa" que se provou existir é a
mente (do meditador), então o único material que está disponível para se trabalhar é 50
Se, por um lado, Descartes reconhece, por exemplo, no Discurso do Método (parte V), que linguagem
seja um indício de racionalidade (AT VI 57-8; CSM 141; cf. DESCARTES, 1973, p. 69), por outro, numa
obra intitulada "Princípios de Filosofia", ela é considerada como fonte de erro (AT IXB 37; CSM 220).
73
aquele apresentado na consciência individual: as ideias que o meditador tem em mente.
Terminado o estágio de demolição, encontrada a primeira certeza e estabelecido o
princípio de separação entre mente e corpo (i.e. esclarecido que a mente é melhor
conhecida que o corpo), o meditador deve se voltar para sua consciência individual.
Neste movimento de introspecção, de acordo com Descartes, o meditador deve perceber
que possui em mente uma diversidade de ideias. Contemplando este panorama interno,
pode-se notar que tais ideias podem ser agrupadas de acordo com a sua origem ou, na
terminologia utilizada no "Meditações", de acordo com a causa. Assim Descartes nos
afirma que dentre suas ideias algumas lhe parecem inatas, outras lhe parecem
adventícias (i.e., provenientes do exterior) e outras ainda lhe parecem inventadas pela
própria mente; estas últimas são as chamadas ideias factícias (cf. AT VII 35; CSM II
26; Descartes, 2004 [1641], p. 76-7). Como veremos, o problema é que, como todas as
faculdades cognoscitivas tiveram suas credenciais cassadas em virtude da dúvida
metódica, não há nada que nos garanta que aquelas ideias chamadas de adventícias
sejam representações de alguma coisa externa à mente. A esta altura, não podemos
saber se a mente que duvida está só num universo de representações criadas por ela
mesma e que não têm correspondência alguma com algum objeto exterior. O que temos
até este momento da exposição é apenas o estabelecimento da ideia de que a mente (que
duvida, pensa) existe e nada mais.
Como este terceiro grupo de ideias diz respeito a uma criação da própria mente, então
nos parece óbvio que tais ideias não têm muito a nos revelar sobre existência de algo
"do lado de fora" da mente e a validade das representações que esta produz. Por
definição, podemos considerar que tais ideias têm como causa última a própria mente ou
o funcionamento desta.
O segundo grupo de ideias, as chamadas adventícias, também não pode nos ajudar
muito, pois ainda que julguemos que elas são causadas por objetos (supostamente)
exteriores, não há nada que nos garanta que tais objetos existam e tenham efetivamente
as causado. Aliás, deve-se recordar (e isto é muito relevante para argumentação
cartesiana) que, graças à ação da dúvida metódica, é sempre possível que estejamos
enganados com relação a uma ideia que julgamos representar algo externo à mente. Isto
é só outra maneira de afirmar que as ideias adventícias podem ser, sob a hipótese do
sonho, por exemplo, produzidas internamente. Deve-se observar ainda que entre todas
estas ideias adventícias não há nenhuma com relação à qual seja problemática a
afirmação de que tal ideia pode ter sido criada pela mente, ou seja, tenha como causa a
própria mente. Por exemplo, separemos algumas destas ideias que consideramos
adventícias: a ideia que tenho de corpo, ideia de outra pessoa, ideia de lua. Todas estas
ideias que geralmente temos em mente podem ter como causa a própria mente. E de
acordo com que se pode depreender da exposição de Descartes, não há nenhum
problema em se admitir que tais ideias possam ter como causa a mente, porque
nenhuma destas ideias envolve uma realidade mais "alta", mais perfeita do que a própria
mente que as possui.
74
Outras ideias, que, por isto, foram classificadas por Descartes como ideias inatas, não
podem ter como origem ou causa a própria mente que as possui (nisto, elas se
distinguem das ideias factícias), mas também não podem ter sido adquiridas pela mente
graças ao aparato sensório como ocorre, por exemplo, com a ideia de mesa (nisto, essas
ideias inatas se distinguem, então, das ideias adventícias). Como não é adquirida, nem
tem causa interna, as ideias inatas não se confundem com aquelas pertencentes aos dois
outros grupos acima referidos. O estabelecimento da existência de ideias inatas é um
ponto fulcral para todo o sistema cartesiano. Para estabelecer a existência desse terceiro
tipo de ideia Descartes lançou mão do que pode ser chamado de "princípio de
causalidade", que foi enunciado da seguinte forma:
Agora é, em verdade, manifesto pela luz natural que na causa eficiente e total
deve haver pelo menos tanto quanto há em seu efeito. Pois, pergunto, de onde
o efeito poderia receber sua realidade senão da causa? E como esta poderia
dá-la, se não a possuísse também? De onde se segue, porém, não ser possível
que algo resulte do nada e nem também que o mais perfeito, isto é, o que
contém em si mais realidade resulte do menos perfeito.
(AT VII 40-1; CSM II 28; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 81-2)
Aceito tal princípio51
(que, para Descartes, é intuitivo), chega-se a conclusão que existe
pelo menos uma ideia que não pode ter como causa a própria mente: a ideia de "uma
substância infinita, independente, eterna, imutável, sumamente inteligente, sumamente
poderosa e pela qual eu mesmo fui criado e tudo o mais existente, se existe alguma
outra coisa" (AT VII 45; CSM II 31; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 91). Como esta ideia
envolve atributos que tornam o ente (esta substância infinita...) nela representado um
ente mais perfeito que aquele ente que possui esta ideia (que é o meditador, i.e., a
substância que duvida, que pensa), logo, pelo princípio de causalidade acima anunciado,
esta substância infinita não pode ter como causa (como origem) a própria mente. Então,
deve-se necessariamente pressupor que esta ideia corresponde a um ente (com todos
aqueles atributos) que existe de forma independente da mente. Óbvio está que este ente
é aquele ao qual nos referimos com nome de "Deus". O argumento cartesiano é o
seguinte: é necessário se reconhecer a existência de Deus como um ente independente
da mente, pois, caso contrário, tornaríamos inexplicável a posse pela mente da ideia de
Deus. Como o efeito é infinito, a causa também deve ser infinita. Já contamos com duas
certezas: a existência da mente (ou alma) e a existência de Deus.
51
A ideia por trás deste princípio é afirmar que não pode haver mais realidade no efeito do que na causa.
Não pode haver mais realidade no ponto de chegada do que há no ponto de partida. Para que possamos
esclarecer este ponto, desenvolvamos um exemplo. Suponha que uma pessoa tenha que percorrer alguns
quilômetros todos os dias para buscar água num poço e que, para trazer água e encher o reservatório de
sua casa, esta pessoa sempre utilize um balde com capacidade de 5 litros. Ora, neste caso, se ela foi ao
poço e colocou no balde 4 litros, não é possível que, ao chegar em casa para despejar a água no
reservatório, note que havia no balde 5 litros d'água. Isto é impossível, mesmo que saibamos que cabem 5
litros no balde. O que torna isto impossível não é a capacidade do balde, mas o fato de não poder haver
mais água no momento da chegada do que havia no momento da partida (supondo que não tenha "caído
água do céu"). Este 1 litro de diferença não pode ter sido criado "no meio do caminho". A ideia do
princípio utilizado por Descartes é estruturalmente semelhante: não pode ser criada mais realidade no
meio do caminho entre a causa e o efeito.
75
Por uma prudência típica, logo depois de apresentar tal prova, Descartes passou a
investigar a possibilidade de se construir um segundo argumento que, a partir do mesmo
princípio, fosse além daquilo que foi provado neste primeiro argumento (acima
apresentado). Neste trecho, Descartes se põe investigar se a própria existência daquele
que possui a ideia de Deus não é devida à existência de Deus (AT VII 48; CSM II 33;
cf. Descartes, 2004 [1641], p. 97).
Assim tratou de apresentar um segundo argumento, desta vez destinado a provar algo
mais forte do que a afirmação de que "a ideia (que o meditador possui) de uma
substância infinita requer a existência desta substância infinita". Este segundo
argumento pretende estabelecer a afirmação de que a própria existência da mente (i.e., a
substância que pensa) requer a existência de Deus. Em primeiro lugar, comecemos pelo
ente cuja existência já tinha sido provada: o meditador (i.e., a substância que pensa).
Supondo que aquele que medita não tenha sido criado por Deus, resta-nos dois
caminhos a considerar: que ele tenha sido criado por si mesmo (que ele seja a causa de
sua própria existência) ou que ele tenha sido criado por outros seres que são menos
perfeitos que Deus. Neste primeiro caminho, notamos que se o meditador fosse a causa
de sua própria existência, então ele não deveria duvidar, desejar ou ter carência alguma,
pois ele deveria ter dado a si mesmo todas as perfeições das quais tivesse ideia e, neste
caso, seria ele mesmo Deus (AT VII 48; CSM II 33, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 97 ).
Se fosse Deus, então não poderia se reconhecer como um ser imperfeito (uma
substância finita que duvida, deseja ou tem carências). Como a dúvida é a prova de que
aquele que duvida é, nalguma medida, finito e imperfeito, pois possui alguma carência
de conhecimento que o leva a duvidar, então aquele que duvida não pode ter "colocado"
em sua própria mente a ideia de um ente infinito e perfeito, pois, para que isso fosse
possível, aquele que duvida teria que ser infinito e perfeito, o que contraria o fato de ele
estar em dúvida. Portanto, este primeiro caminho nos leva a uma contradição e, por tal
motivo, não pode ser admitido.
O segundo caminho é que a existência daquele que medita tenha sido derivada de outros
seres menos perfeitos que Deus, por exemplo, os pais dele. Porém, neste caso, como
também os pais (do meditador) são substâncias finitas que contém a ideia de uma
substância infinita, a pergunta é recolocada: qual é a origem desta ideia de uma
substância infinita na mente dos pais do meditador? Tem-se um regresso infinito. Se
considerarmos, então, que uma cadeia causal infinita é ininteligível, então devemos
buscar outra explicação para o fato de uma criatura finita ter em mente uma ideia acerca
de uma substância infinita. A única explicação que restou é aceitar a ideia de que deve
necessariamente existir de forma independente uma substância infinita, Deus, que seja
responsável pela existência da mente que duvida (e de todas as outras coisas, se elas
existirem).
Deve-se enfatizar que a ideia de Deus não pode ser nem adventícia (não pode ser
proveniente dos sentidos), nem pode ser uma ideia construída pela própria mente (uma
vez que devido a sua objetividade não é possível que a mente, desta ideia, tire ou
coloque qualquer elemento). Descartes conclui, então, ao final da terceira meditação,
76
que a ideia de Deus só pode pertencer ao grupo das ideias inatas (AT VII 51; CSM II
35, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 103). A ideia de Deus é a marca do artífice impressa
em sua obra. Portanto, dentro do sistema, já contamos com duas existências provadas: a
da mente (que pensa, que duvida) e de Deus. A existência deste é provada com base na
existência do primeiro. Por isso, já temos uma segunda certeza estabelecida na cadeia de
raciocínio: "I) penso, logo existo; II) existo, logo Deus existe.", (ou em latim, "I)
Cogito, ergo sum; II) Sum, ergo Deus est"52
).
Estabelecida a tese da existência de Deus, Descartes se volta para a tarefa de "resgatar"
as faculdades cognitivas que estavam desde o início das meditações sob ação da dúvida
metafísica (a hipótese do gênio maligno). Para isso, já na passagem da terceira para a
quarta meditação, ele começa a apresentar a tese de que Deus não pode enganá-lo. O
trecho que segue é retirado do início da quarta meditação.
Em primeiro lugar, reconheço ser impossível que Deus jamais me engane, já
que em toda falácia ou engano há algo imperfeito. E, embora o poder enganar
pareça ser um sinal de esperteza e poderio, é indubitável, porém, que o querer
enganar atesta fraqueza e malícia e, desta forma, não pode ocorrer em Deus.
Em seguida, experimento que há em mim uma certa faculdade de julgar que,
a exemplo de tudo o mais em mim, recebi de Deus. E, como Deus não quer
me enganar, seguramente não me deu esta faculdade para que viesse a errar
caso a usasse corretamente.
(AT VII 53-4; CSM II 37-8, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 112-3)
Dentro do sistema cartesiano, o estabelecimento da existência de Deus (a partir da
existência daquele que duvida) significa a derrota do gênio maligno, pois a partir do
momento que se prova a existência de Deus, a hipótese do gênio maligno torna-se
insustentável. De forma muito semelhante ao que ocorre na matemática (sob uma
perspectiva formalista), a hipótese do gênio maligno só pôde ser levantada, porque ela
não era (antes da prova da existência de Deus) inconsistente com nada que se admitia
como verdadeiro. Naquele ponto das meditações, o gênio maligno era um objeto
possível. A partir do momento que a existência de Deus é provada, a hipótese da
existência de um gênio maligno deve ser abandonada, pois ela se torna inconsistente
com a existência de Deus. Estes dois entes, Deus e o gênio maligno, não podem
coexistir.
Deve-se recordar que, de acordo com a hipótese do gênio maligno, não deveríamos
confiar nem mesmo naquilo que nos aparecesse de forma clara e distinta, ou seja, não
deveríamos confiar nem mesmo naquilo que nossas faculdades cognoscitivas nos
garantem ser verdadeiro. A hipótese do gênio maligno só possui este alcance radical,
porque ela coloca sob suspeita até mesmo o critério de clareza e distinção que a mente
possui para saber se está ou não diante de uma verdade. Ela, como vimos, é uma
hipótese de caráter metafísico justamente porque vai contra a natureza da mente.
52
Esta último proposição "existo, logo Deus existe" já está presente na décima segunda das "Regras para
a direção do espírito" (AT X 422; CSM I 46).
77
Portanto, quando prova a existência de Deus e anula a hipótese do gênio maligno,
Descartes passa a resgatar a validade do conhecimento obtido pelas faculdades
cognoscitivas humanas. Em última instância, Deus é a garantia de que tais faculdades
funcionam. Aquilo que nos aparecer clara e distintamente como verdadeiro é
efetivamente verdadeiro, uma vez que (como Deus existe) não há mais a possibilidade
de existir um ente maligno que nos enganasse a esse respeito. Devido à natureza
confiável de Deus, podemos afirmar que, na base, nossa capacidade para produzir
conhecimento é também confiável. O critério de evidência (clareza e distinção) é, assim,
recuperado.
Dentro do sistema, a prova de que as faculdades cognoscitivas humanas estão aptas a
cumprir suas funções é o fato de todas elas serem obras divinas. E esta prova depende
da ideia de que não seria condizente com a natureza confiável de Deus criar em nós uma
faculdade projetada para nos enganar, i.e., produzir "conhecimento enganoso".
Estabelecido que nossa capacidade para produzir conhecimento está em perfeita ordem
e não pode por si mesma nos enganar, a pergunta mais imediata que podemos dirigir a
Descartes é a seguinte: como explicar o erro e a ignorância do homem? A resposta
cartesiana é que o erro é proveniente do uso incorreto de tais faculdades. Portanto, de
acordo com Descartes, Deus garante que as faculdades cognoscitivas humanas estão
aptas a cumprir suas funções se forem usadas corretamente. O erro surge do manuseio
impreciso de um instrumento de máxima qualidade que foi projetado para tornar o erro
impossível caso seja manuseado adequadamente. Para continuar no terreno das
metáforas explicativas, é como se a máxima qualidade de nossas faculdades
cognoscitivas fosse garantida pelo fabricante, no caso, Deus. Entretanto, deve-se
observar que o fabricante garante que o produto desenvolva de forma perfeita as
funções para as quais ele foi projetado para desenvolver desde que seja utilizado de
forma adequada. E, como todos sabemos, a forma adequada é aquela descrita no manual
de instruções. No caso do conhecimento humano, o manual de instruções é o método. E
a primeira regra do método para obtenção da verdade é, de acordo com Descartes,
aceitar como verdade somente aquilo que nos parece clara e distintamente verdadeiro.
Este é o critério de evidência e sua validade é garantida pela existência de Deus.
Já contamos, então, com duas certezas inabaláveis: a existência de Deus e a existência
da alma (ou da mente). Entretanto, até esta altura da exposição, ainda permanecem sob
o manto da dúvida tanto a existência do próprio corpo (daquele que duvida) e também a
existência de todo o mundo externo. Ora, se as faculdades cognoscitivas do homem
estão em "ordem", isto é, estão aptas para cumprir suas funções, então também devemos
acreditar nas informações que nos chegam pelo aparato sensório. O argumento que
pretende provar a existência do mundo externo (inclusive do corpo) a partir das ideias
que se tem das coisas corpóreas é muito semelhante ao que foi desenvolvido para provar
a existência de Deus (a partir da ideia de Deus). As argumentações relativas à existência
do mundo externo estão na sexta meditação.
De acordo com a exposição de Descartes, mais uma vez, num movimento de
introspecção (até porque não parece haver outra paisagem possível para se contemplar),
78
o meditador passa a observar algumas ideias que estão em sua mente e passa a se
perguntar qual a causa daquelas ideias relativas a corpos. Tais ideias não podem ter
como causa a própria mente do meditador, pois ideias relativas a dados sensoriais estão
fora do controle da mente. A mente não pode mudar a seu bel prazer uma sensação
desagradável por uma que lhe seja aprazível. De acordo com Descartes, tais ideias
simplesmente "são produzidas sem minha cooperação e mesmo contra a minha vontade"
(AT VII 79; CSM II 55, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 171). Portanto, a origem das
ideias de coisas corpóreas que temos deve estar "fora" da mente. Estas ideias, de acordo
com Descartes, devem ser causadas por coisas que efetivamente sejam externas e
independentes da mente. Se forem observadas as regras do método e se for seguido o
critério de clareza e distinção, deve-se, então, confiar naquilo que o aparato sensório
humano capta. A base dessa argumentação é, novamente, a natureza confiável de Deus e
das faculdades cognoscitivas por Ele ao homem concedidas (e, em consequência disso,
também a inexistência de um gênio maligno que pudesse nos enganar com relação aos
nossos dados sensórios).
[Deus] me concedeu uma grande inclinação a acreditar que estas ideias são
produzidas por coisas corpóreas. Portanto, não vejo como Deus poderia ser
entendido senão como um enganador caso estas ideias fossem transmitidas de
uma fonte outra que não as próprias coisas corpóreas. Segue-se, então, que as
coisas corpóreas existem. Pode ser que nem todas existam de forma a
corresponder exatamente à maneira como as capto sensoriamente, pois em
muitos casos a captação pelos sentidos é muito obscura e confusa. Entretanto,
ao menos elas possuem todas aquelas propriedades que compreendo de forma
clara e distinta, ou seja, todas aquelas propriedades que, consideradas de
forma generalizada, compõem o objeto de estudo da Matemática pura.
(AT VII 79-80; CSM II 55; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 171-3)
Estabelecidas estas três provas, a relativa à existência da alma (mente), de Deus e do
mundo externo, já podemos voltar nossa atenção a Peirce, uma vez que o que já
apresentamos do sistema filosófico cartesiano já é mais do que suficiente para que
possamos traçar, mais adiante, algumas contraposições com relação ao projeto
epistemológico peirceano. Antes de passarmos à próxima seção, fechemos este
panorama com a transcrição de um longo trecho retirado do segundo volume da obra "A
filosofia de Descartes interpretada de acordo com a ordem das razões". Neste trecho,
conclusivo de sua obra, Martial Gueroult apresenta as seis meditações cartesianas como
se fossem, em sua totalidade, uma esfera dentro da qual as três primeiras e as três
últimas meditações se opõem como dois hemisférios separados pela "veracidade
divina".
O primeiro hemisfério está sob a regra do princípio do engano universal. Este
princípio impõe o propósito estabelecido de duvidar de tudo, mesmo daquilo
que nossa mente, por natureza, considera, inelutavelmente indubitável. a
saber, ideias claras e distintas. Neste campo onde reinam absolutos o erro e a
dúvida, o Cogito registra uma tênue, porém perfurante exceção de fato. Uma
batalha, então, começa entre o princípio da regra e a exceção do fato. E esta
batalha termina com a derrota do princípio e a vitória da exceção. Primeiro
79
reduzida a um ponto em meio à escuridão da dúvida, a luz do Cogito,
aumentando, de alguma forma, sobre si mesma finalmente encontra o Deus
infinito, que é outro além de mim mesmo e que, ao destruir a sombria ficção
do engano universal, ilumina todo o céu, de um horizonte a outro, através do
supremo esplendor da veracidade absoluta.
Entramos então num novo mundo. A lei do segundo hemisfério é a negação
daquela que rege o primeiro. Ela impõe, contra o propósito estabelecido de
duvidar de tudo, um propósito inverso de afirmar a verdade de tudo, mesmo
daquilo que, para o meu entendimento, é por natureza a coisa mais duvidosa
possível a saber, os sentidos.
Entretanto, mantendo a simetria com relação ao Cogito no hemisfério do
falso, é registrada também no hemisfério do verdadeiro, neste campo onde
reinam absolutas a certeza e a verdade, uma tênue, porém inquebrável
exceção de fato: o erro humano. Ela perfura a luz da veracidade com um
ponto escuro exatamente como o Cogito perfurou a escuridão do engano
universal com um ponto de luz.
Aqui como lá, uma batalha começa entre o princípio da regra e a exceção do
fato. Porém, a batalha termina desta vez com a vitória do princípio. A
veracidade divina, sobrepujando a exceção introduzida pelo erro, obtém êxito
em salvaguardar sua imaculada integridade, enquanto que restaura aos
sentidos uma verdade que corresponda exatamente à quantidade de realidade
objetiva deles.
(Gueroult, vol. 2 - 1985 [1952], p. 216)
Conforme já antecipamos nos capítulos anteriores, depois de abandonada a matriz
kantiana na qual seu pensamento foi inicialmente formado, Peirce passou a travar um
diálogo mais direto com a filosofia cartesiana. A semiótica (como uma ciência geral das
representações) é construída como uma alternativa às teorias defendidas por Descartes
em seu projeto de fundação do conhecimento físico-matemático.
80
3.2 - A impossibilidade do projeto das fundações seguras
Como vamos passar a próxima centena de páginas somente em análises de teorias
peirceanas e como elas estão distantes daquelas elaboradas por Descartes, acreditamos
que seria de bom tom começar esta seção com algumas poucas observações a respeito
de alguns poucos pontos de contato entre as filosofias cartesiana e peirceana.
Por mais que nos afastemos de Descartes (e parece que no século XX este filósofo foi
muito mais combatido do que lido ou apenas lido para ser melhor combatido), ainda
temos a impressão de que estamos pisando em terreno por ele conquistado. Entre os
estudiosos da filosofia peirceana, acostumamo-nos a chamar a série cognitiva de textos
anti-cartesianos de Peirce. É bem verdade que Peirce tenha declarado abertamente suas
intenções em apresentar uma epistemologia construída sob os escombros daquela
erigida por Descartes. Esta epistemologia comporia uma nova plataforma exigida, de
acordo com a visão peirceana, pela ciência moderna e pela lógica moderna a partir da
qual a filosofia poderia se desenvolver ao tomar emprestado os métodos das ciências
que obtiveram êxitos em seus propósitos de produção de conhecimento (CP 5.265
[1868]). No trecho a seguir (presente no segundo artigo da série cognitiva), Peirce faz
um desenho de seu adversário.
Descartes é o pai da filosofia moderna, e o espírito do cartesianismo aquele
que se distingue, sobretudo, da escolástica que acabou por substituir pode
ser resumido como segue:
1. Ele ensina que a filosofia deve começar pela dúvida universal; enquanto a
escolástica nunca questionou os fundamentos.
2. Ele ensina que o teste último para se estabelecer a certeza deve ser
encontrado na consciência individual; enquanto a escolástica se baseava no
testemunho dos sábios e da Igreja Católica.
3. A argumentação multiforme da idade média foi substituída por uma linha
única de inferência que, geralmente, depende de premissas que não são
facilmente perceptíveis.
4. A escolástica tinha seus mistérios de fé, porém tentava explicar todas as
coisas criadas. Por sua vez, existem muitos fatos que o cartesianismo não
apenas não explica como torna absolutamente inexplicáveis, a menos que
afirmar que "Deus os fez assim" deva ser considerado uma explicação.
Sob alguns desses aspectos, ou sob todos, a maioria dos filósofos modernos
tem sido cartesiana. Agora, ainda que não pretenda retornar à escolástica,
parece-me que a ciência e a lógica modernas requerem que sejamos capazes
de nos colocarmos sob uma plataforma muito diferente desta [apresentada].
(CP 5.264-5 [1868])53
53
No original: Descartes is the father of modern philosophy, and the spirit of Cartesianism -- that which
principally distinguishes it from the scholasticism which it displaced -- may be compendiously stated as
follows: 1. It teaches that philosophy must begin with universal doubt; whereas scholasticism had never
questioned fundamentals. / 2. It teaches that the ultimate test of certainty is to be found in the individual
81
É evidente que Peirce busca, sob diversos aspectos, inspiração no pensamento medieval
que antecedeu a entrada em cena de Descartes. Por exemplo, o primeiro artigo da série
cognitiva ("Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem") foi
escrito de acordo com uma estrutura muito próxima a uma forma literária (típica do
período medieval) denominada quaestio. Entretanto, neste trecho acima referido, Peirce
deixa claro que não pretende propor um retorno à escolástica, não pretende reconstituir
um espaço pré-moderno perdido. Peirce não propõe, de forma alguma, uma "filosofia da
saudade" como algumas lamúrias contemporâneas feitas em honra a tempos idos.
Entretanto, se Descartes contribuiu para constituir o espírito da modernidade, há de se
presumir que, para combater o espírito cartesiano, sem abandonar as terras da
modernidade, deve-se dele guardar algo (ao menos, é o que nos dizem certas
concepções "dialéticas" da história). Esta é uma situação paradoxal que parece emergir
toda vez que se lida diretamente com fundações. E o problema de Peirce com relação à
epistemologia cartesiana, como veremos, é justamente a noção de fundação.
A prova elementar de que Peirce não pretende voltar à escolástica e que manteve alguns
dos avanços mais gerais e importantes conquistados pelo espírito cartesiano é que sua
própria epistemologia (semiótica) é construída dentro do chamado "primado das
representações". De forma muito geral, a marca deste primado é constatação de que
qualquer discurso filosófico que se possa fazer sobre as coisas existentes é condicionado
pelo modo particular como estas coisas (que julgamos existentes) nos aparecem, nos são
representadas. É a partir de Descartes que começa a emergir na filosofia a consciência
desta anterioridade (de caráter lógico). Esta é a constatação de que tudo o que sabemos
do mundo, só o sabemos a partir de nossas ideias sobre o mundo. Temos acesso ao
objeto somente por uma representação dele. A estratégia de Descartes é partir da ideia
em direção ao que a ideia representa54
. É partir do representante em direção ao
representado. O passaporte para modernidade filosófica parece ser este reconhecimento
de que apenas estudando a consciência e seus elementos, i.e., as ideias, as
representações (mentais), podemos verificar se há por trás delas os objetos que elas
professam representar. Assim a filosofia passa de um cenário em que produz
basicamente teorias sobre objetos (sobre "o que há", sobre o que existe) para um cenário
em que produz teorias sobre o (nosso) conhecimento de objetos (sobre o nosso acesso
ao que há ou o que deve haver).
consciousness; whereas scholasticism had rested on the testimony of sages and of the Catholic Church. /
3. The multiform argumentation of the middle ages is replaced by a single thread of inference depending
often upon inconspicuous premisses. / 4. Scholasticism had its mysteries of faith, but undertook to explain
all created things. But there are many facts which Cartesianism not only does not explain but renders
absolutely inexplicable, unless to say that "God makes them so" is to be regarded as an explanation. In
some, or all of these respects, most modern philosophers have been, in effect, Cartesians. Now without
wishing to return to scholasticism, it seems to me that modern science and modern logic require us to
stand upon a very different platform from this. 54
Nota-se que, nas meditações, por exemplo, Descartes (ou o meditador) chega à prova da existência
(objetiva) de Deus partindo da ideia que Dele se tem na consciência. Outro exemplo é que Descartes (ou o
meditador) descobre que a propriedade essencial de todas as coisas corpóreas é a extensão partindo de
uma análise da ideia que se tem das coisas corpóreas (ainda que não se saiba, à essa altura das
meditações, se tal ideia corresponde a algo objetivo).
82
Longe de ter abandonado Descartes por completo, o projeto de Peirce acaba por
aprofundar uma das principais conquistas da filosofia cartesiana. A teoria da cognição
desenvolvida por Peirce em paralelo à sua crítica ao espírito cartesiano tem como ponto
nevrálgico a descoberta de que a relação de representação (que está dentro do conceito
de signo) é central para explicar as nossas faculdades cognoscitivas. Como já
antecipamos no primeiro capítulo (e veremos com mais detalhes adiante), esta teoria da
cognição (alternativa ao sistema cartesiano) teve como ponto de partida uma teoria de
categorias (de inspiração kantiana [ao menos na forma]) que tinha por objetivo
descobrir quais são concepções mais gerais presentes em todo e qualquer fenômeno, ou
seja, as investigações filosóficas de Peirce estão ainda dentro do chamado "primado das
representações", uma vez que partem de uma análise não das coisas existentes
(consideradas em si mesmas), mas do modo como elas aparecem à mente. A
investigação parte dos fenômenos.
Com estas observações pretendemos apenas relativizar (e melhor situar) o
anticartesianismo das reflexões peirceanas desenvolvidas na série cognitiva. É óbvio
que há uma distância enorme entre Descartes e Peirce. Esta distância pode, inclusive,
ser medida pela grandeza de uma terceira filosofia que os separa: o criticismo kantiano.
Também é óbvio que o entendimento da relação entre filosofia e ciência no pensamento
de Peirce e no de Descartes é completamente distinto. Aliás, pode-se dizer que os
posicionamentos dos dois são diametralmente opostos. Enquanto Peirce pretende tomar
os métodos das ciências exitosas como modelo para a filosofia (e, principalmente, para
a metafísica), Descartes, ao contrário, utiliza-se da filosofia para ter acesso ao que
considera os fundamentos últimos do conhecimento científico. O filósofo francês, para
fundamentar o método científico, lança mão de expedientes teóricos provenientes de
uma disciplina tipicamente filosófica, a metafísica. Como vimos na seção anterior, se
não fosse uma dúvida de caráter metafísico (a hipótese do gênio maligno), não seria
possível a Descartes demolir todo o sistema de crenças para isolar o cogito como único
ponto indubitável (e, assim, declará-lo fundação completamente segura a partir da qual
deveria ser reconstruído todo o sistema de crenças). A metafísica, para Peirce, só é
possível guiada pela lógica55
.
Num livro sobre Descartes e a metafísica da modernidade, Franklin Leopoldo e Silva,
introduz, da seguinte forma, um texto sobre a herança cartesiana:
Todos os grandes filósofos modernos e contemporâneos consideram que o
primado da representação deve ser visto como um progresso decisivo na
marcha do espírito filosófico. O fato de a filosofia tomar como ponto de
partida a consciência abriu perspectivas de largo alcance para a ciência, a
ética e, de forma geral, para a compreensão do homem e de suas realizações.
A relação entre liberdade e responsabilidade, configurada na noção cartesiana
de sabedoria, veio conferir à consciência o lugar de centro do universo, ponto
ao qual devem ser referidos o conhecimento e a ação.
55
De acordo com um dos principais comentadores da obra peirceana, Cristopher Hookway (1992 [1985],
p. 18), as intenções de Peirce em seu projeto anti-cartesiano eram, na verdade, metafísicas.
83
Mas a consciência assumia em Descartes essa função e essa importância na
exata medida em que se punha solitariamente no caminho da construção do
saber. A coesão do sistema exigia que a ordenação de tudo o que se pode
saber, bem como a sua fundamentação, fosse obra de um único sujeito. O
progresso da ciência suas redefinições, ampliações e especializações v
mostrou a inviabilidade dessa perspectiva. Ao tempo de Descartes ainda era
possível a um único homem, em certa medida, todo o saber de sua época. A
diversificação do conhecimento trouxe a necessidade de uma separação:
nesse sentido, o próprio progresso da racionalidade, em que Descartes tanto
acreditava, motivou a correção desse individualismo, levando-nos a aceitar a
maior eficácia de uma divisão de trabalho e de ima interrelação daquilo que
coletivamente é produzido em termos de conhecimento.
(Leopoldo e Silva, 2005, p. 88-9)
Para avaliar um projeto filosófico que se apresenta como alternativo a algum outro
produzido em período histórico anterior deve-se levar em conta também tal
distanciamento temporal. De acordo com a exposição de Leopoldo e Silva, fatores
históricos podem ser utilizados para explicar os motivos que nos levaram a abandonar
certos elementos presentes na filosofia cartesiana, sobretudo, o individualismo, que é
muito criticado por Peirce, manifesto na ideia de apresentar a consciência individual
como locus da certeza última.
A ciência e uma explicação científica do mundo, à época, de Descartes era ainda um
projeto. Os séculos que o separam de Peirce testemunharam o triunfo do discurso
científico. Em seus primeiros dias, a ciência moderna se restringia ao trabalho de alguns
poucos homens, sempre em comunicação uns com os outros, espalhados pele Europa.
Não só era plenamente possível como era necessário que um só homem tivesse
conhecimento em várias frentes, matemática, física, astronomia, biologia, medicina (e
também em áreas hoje consideradas extra-científicas como astrologia, alquimia, etc.).
Não só era comum, mas, neste período incipiente, era necessário que o cientista
detivesse não apenas o saber teórico, mas também algum conhecimento prático, pois ele
deveria encontrar os meios para comprovar por experimentos aquilo que afirmava
dentro de suas teorias. Aliás, pode-se afirmar que uma das condições que permitiram o
nascimento da ciência moderna na forma como a conhecemos é o abandono de certa
indisposição para com o trabalho manual em favor do trabalho puramente especulativo,
traço marcante do gênio helênico. Por exemplo, sabe-se que o telescópio tinha sido
inventado e já circulava pela Holanda ao menos desde o início do século XVII.
Entretanto, apenas depois de estudar detalhadamente seu funcionamento e produzir um
telescópio muito superior aos já existentes em sua época, Galileu se tornou capaz de
observar com alguma nitidez manchas solares e crateras na Lua (o que contrariava a tese
[de teor, aliás, altamente especulativo] defendida por Aristóteles a respeito da
incorruptibilidade dos corpos celestes). No início, todos estes traços distintivos da
ciência moderna estavam concentrados nalguns poucos indivíduos ou mesmo em apenas
um deles.
84
Com o avanço da ciência, esta concentração de funções nas mãos e mente de um só
homem não apenas se tornou desnecessária, como acabou por se mostrar impossível. A
divisão do trabalho científico e a especialização parecem ter sido uma exigência do
próprio avanço da racionalidade (cf. Leopoldo e Silva, 2005, p. 88). Na segunda metade
do século XIX, época que Peirce viveu, já se pode falar em uma comunidade científica
internacional plenamente estabelecida. Neste período, os cientistas desta comunidade
contavam, então, com avanços outrora inimagináveis nas ciências formais (lógica e
matemática) que constituem uma espécie de infraestrutura de toda produção científica
de conhecimento. É óbvio que, até pela complexidade de suas produções teóricas, o
modo coletivo como a ciência funcionava à época de Peirce deve ter, ao menos, lhe
servido de inspiração para dirigir suas críticas à epistemologia cartesiana.
O risco destas observações é que elas podem ser entendidas como uma explicação
puramente historicista das críticas peirceanas a Descartes. O problema é que as palavras
de Peirce (ao menos da forma como foram colocadas) podem nos levar a crer que a
necessidade em se construir uma nova plataforma para as investigações filosóficas tenha
vindo de fatores puramente históricos. Se fosse assim, seríamos obrigados a reconhecer
que, no entendimento de Peirce, o grande problema do projeto cartesiano de encontrar
fundações seguras é que ele ficou desatualizado, ou seja, é como se, inicialmente, tal
projeto fundacional tivesse sido possível, mas, ao longo do tempo, tornou-se, por algum
motivo, inviável. A crítica que Peirce dirigiu a Descartes não depende essencialmente
de fatores históricos. Da perspectiva peirceana, a cruzada fundacionalista de Descartes
estava, desde sempre, fadada ao fracasso. Pode-se vasculhar a consciência individual, o
graal já mais poderia ser encontrado. O argumento peirceano, como veremos, é que o
homem não possui a faculdade que o permitiria distinguir o graal de um cálice
ordinário.
Mesmo que a crítica peirceana não dependa de condicionantes históricas, antes de
continuarmos, deve-se enfatizar que é possível se desenvolver uma interpretação de
acordo com a qual parte essencial do projeto fundacionalista de Descartes seja entendida
como independente de fatores históricos. Pode-se afirmar que o projeto cartesiano de
fundação completamente segura da ciência não tinha como exigência básica esta
concentração de todo conhecimento num indivíduo apenas. O que parece estar
implicado no projeto cartesiano é que seja ao menos possível teoricamente (ainda que
não o seja na prática) que o conjunto das crenças seja justificado recorrendo-se a
fundamentos últimos, inabaláveis. Assim, de acordo com o sistema cartesiano, seria
sempre possível retroceder a cadeia de justificações até se chegar a um ponto
indubitável, a uma primeira premissa da qual não se pode duvidar56
. Para Peirce, tal
56
O mesmo parece ocorrer com outra grandiosa e admirável cruzada fundacionalista: o projeto de
fundação de toda matemática na lógica desenvolvido por Bertrand Russell e Alfred Whitehead no início
do século XX. Este projeto (que foi apresentado ao mundo nos três longuíssimos volumes de uma obra
denominada Principia Mathematica) também não tinha como exigência básica que todo e qualquer
matemático tivesse em mente, ao estabelecer uma proposição matemática, toda a cadeia de raciocínios
que fundamentaria aquela proposição específica nalgum princípio lógico. O que parece estar implicado no
projeto de Russell e Whitehead é que seja ao menos possível teoricamente (ainda que ninguém o faça na
prática) retroceder a cadeia de raciocínios até se atingir um princípio lógico fundante.
85
concentração não é impossível somente pela quantidade de informação que um único
cientista deveria ter posse, mas porque há um problema com a própria ideia de
fundação. Ainda que fosse possível retroceder esta cadeia de justificativas, o que é
problemático, para Peirce, é a chegada (prevista na teoria cartesiana) a este ponto de
partida indubitável.
Para fazer esta crítica, Peirce ataca o conceito responsável pela função de fundação
dentro da teoria cartesiana: a intuição. Na verdade, como veremos, Peirce não lança um
ataque direto à intuição, mas investe grande parte de suas forças numa crítica a algo que
está pressuposto em toda teoria epistemológica que recorra à intuição: a capacidade de
se reconhecer uma cognição como intuitiva (e diferenciá-la de uma que não o seja). Não
é por outro motivo que o primeiro artigo da chamada série cognitiva é uma exposição de
uma teoria epistemológica que sistematicamente constrói caminhos explicativos que se
apresentam como alternativos àqueles que seriam percorridos dentro de teorias que
utilizam a concepção de intuição. Neste artigo (que será analisado no próximo capítulo),
Peirce tenta estabelecer que é plenamente possível construir uma teoria que explique os
fenômenos básicos envolvidos no ato de conhecimento apenas recorrendo a faculdades
cuja existência não são questionadas (como a capacidade de fazer inferências), o que
tornaria desnecessário qualquer recurso a faculdades cuja existência fosse questionável
(como a intuição ou a capacidade para se reconhecer intuições).
De acordo com esta teoria da cognição desenvolvida por Peirce, todo o pensamento tem
uma natureza inferencial. E, como para Peirce, a relação de inferência (estabelecida
entre premissas e conclusão) pode ser entendida como um caso particular de relação
sígnica, então todo o pensamento pode ser entendido como um signo.
Como afirmamos nos dois primeiros capítulos, a raiz desta correlação (entre signo e
pensamento) está na descoberta realizada por Peirce em 1865 de que tanto a relação
entre sujeito e predicado (numa proposição), a relação entre antecedente e consequente
(numa proposição hipotética) e também a relação entre premissa e conclusão (num
argumento) podem ser todas entendidas como casos particulares de uma relação mais
básica que é a relação sígnica. Como já foi tratado no capítulo anterior, esta descoberta
aparece com toda a força na teoria peirceana das categorias, apresentada em 1867 num
artigo intitulado "Sobre uma nova lista de categorias". Nele, Peirce se pergunta quais
são as concepções básicas (as categorias) que qualquer mente deve possuir para ser
capaz de produzir juízos. Tanto o ponto de partida da investigação como a formulação
do problema a ser tratado neste artigo tem um teor kantiano. Entretanto, como revela um
ano mais tarde, no segundo artigo da chamada série cognitiva ("Algumas consequências
das quatro incapacidades"), Peirce entende que seu problema filosófico é anterior (ou
mais geral) ao formulado por Kant na "Crítica da Razão Pura". Para Kant, deve-se
perguntar "como são possíveis os juízos sintéticos a priori?" Para Peirce, antes deve-se
perguntar "como são possíveis juízos sintéticos, em geral, ou, o que é mais geral ainda,
como é possível o raciocínio sintético,em geral?" (CP 5.348 [1868]).
86
A resposta encontrada neste artigo pode ser formulada da seguinte maneira: para que se
torne possível algum processo de síntese é necessário que sejam introduzidas na
atividade cognitiva certas "figuras de mediação", denominadas tecnicamente de
interpretantes. Como também dedicaremos um capítulo inteiro57
à análise desta teoria
das categorias elaborada por Peirce, justamente para acompanhar o nascimento deste
conceito de interpretante58
, neste ponto do texto nos limitaremos a explicar de forma
abreviada a função deste conceito seminal na semiótica e filosofia peirceanas. Para que
possamos conceber dois elementos distintos da experiência (diferentes impressões)
como unificados é preciso concebê-los juntos como sendo nossos (CP 1.554 [1867]), o
que significa que, para unificá-los num procedimento de síntese, é preciso concebê-los
em relação (um com outro) para nossa mente. Na terminologia apresentada em sua
teoria de categorias, para haver síntese, é preciso conceber quaisquer dois elementos
(distintos provenientes da experiência) em referência a um interpretante (a um terceiro
elemento mediador).
Com relação à teoria das categorias (da qual já tratamos no segundo capítulo), o ponto
principal a ser focalizado neste capítulo é que o conceito de interpretante é definido
como algo (uma representação) cujo intuito é produzir outro interpretante (outra
representação). Nossa tese central é que, do modo como foi introduzido na teoria das
categorias, o conceito de interpretante só pode ser definido de forma recursiva. Assim,
um interpretante só pode ser definido ao se fazer menção à produção de outro
interpretante. É justamente isto que cria dentro semiótica peirceana a noção de fluxo
incessante, a impressão de se estar num processo inferencial que recua infinitamente na
impossibilidade de se ancorar nalgum ponto originário. Esta noção de fluxo é estranha
às teorias fundacionalistas.
Para Peirce até mesmo o mais simples ato de perceber um objeto recorre a cognições
anteriores. Para que haja um julgamento de percepção "isto é um sofá", deve-se
pressupor que a mente tenha realizado uma inferência hipotética que recorreu a uma
correlação (uma comparação) entre as características daquele objeto e as características
de objetos que foram anteriormente classificados como sofá. De acordo com a teoria
peirceana, até mesmo para vermos algo levamos em conta o que não vemos (ou o que já
vimos). Há sempre que se recorrer a cognições anteriores. A última questão levantada
no primeiro dos artigos da série cognitiva é a seguinte: "se existe alguma cognição que
não seja determinada por uma cognição anterior"? A resposta de Peirce é negativa.
Lógica ou semioticamente, não pode haver um primeiro pensamento. A concepção de
mente que emerge deste quadro pintado por Peirce é muito distante daquela que
podemos encontrar numa das metades do dualismo cartesiano.
57
Capítulo 10. 58
Capítulo 11.
87
3.3 - Um modelo lógico da mente
O modo como a cognição é entendida por Peirce simplesmente não harmoniza bem com
que o senso comum entende por pensamento. É como se os pensamentos "ocorressem"
fora da cabeça daqueles que os "tem". O leitor terá diversas oportunidades de "conferir"
tal estranheza com os próprios olhos durante os próximos capítulos, que serão
inteiramente dedicados à análise de textos peirceanos. Parte de nossa tarefa nestas
análises será dissipar este estranhamento aos explicitarmos que os argumentos
peirceanos na série cognitiva têm na retaguarda um posicionamento anti-psicologista.
Como já esclarecemos no primeiro capítulo, ainda que não o faça neste primeiro artigo
da série cognitiva, Peirce sustenta de forma bastante enfática uma visão anti-
psicologista da lógica, ao menos, desde a série de palestras em Harvard (W1; 165-301)
no ano 1865. Aliás, foi nessa ocasião que passou a propor que a lógica fosse entendida
como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169 [1865]). Esta é
uma das raízes da semiótica.
Se observarmos o quadro geral do pensamento peirceano ao final da década de 1860 (e
mantivermos em mente aquela questão a respeito das sínteses, que Peirce considerava,
então, o problema maior da filosofia), notaremos que nem a semiótica e nem uma teoria
da cognição que tenha em seu centro a tese que afirma que todo pensamento é signo (CP
5.253 [1868]) fariam muito sentido se não fossem construídas com um pano-de-fundo
anti-psicologista. É justamente contra este fundo que toma forma uma concepção de
mente sui generis. Isto deve levá-lo a duas imensas reformulações conceituais com forte
impacto dentro do campo da epistemologia: em primeiro lugar, o sujeito cognoscente
passa a ser entendido como uma entidade coletiva (a comunidade indefinida de
intérpretes) e, em segundo lugar, o termo "realidade" passa a ser entendido como um
ponto de fuga para o qual tendem as interpretações (e, assim, o conceito de "verdade"
começa a ganhar certas feições que, mais tardes, poderiam ser identificadas com o
pragmatismo).
Como a semiótica nasce sob uma forte tendência anti-psicologista, o foco da teoria
peirceana da cognição não pode ser os pensamentos entendidos como processos
concretos que ocorrem no cérebro de indivíduos. Por isso, a concepção de mente
desenhada pela filosofia peirceana não diz respeito a um centro imaterial de comando e
controle de pensamentos sediado na consciência do indivíduo, mas parece se referir a
um processo lógico. Mente, para Peirce, é um processo de natureza lógica. Óbvio está
que quando afirmamos acima que a teoria peirceana da cognição não pode ser entendida
de forma "psicologizante", mas deve ser entendida a partir de uma visão anti-
psicologista da lógica, isto já envolve interpretação do texto de Peirce, pois
infelizmente, embora em 1865 anti-psicologismo de Peirce seja evidente, ao longo da
série cognitiva (sobretudo, no primeiro desses textos), não há um posicionamento muito
claro. Se entendermos o termo cognição numa acepção "psicologizante", i.e., num
sentido de ideia ou pensamento como algo espaço-temporalmente localizado que ocorre
88
concretamente no cérebro de indivíduos, parece inevitável que se considere paradoxal a
tese peirceana de que "não há nenhuma cognição que não seja determinada por uma
cognição anterior" (ou seja, da forma como colocamos ao final da seção anterior, não há
um "primeiro pensamento"). Não faltaram comentadores que considerassem este ponto
da teoria peirceana da cognição como um erro, para alguns, insolúvel. Há mais de
cinquenta anos atrás, Murphey (1993 [1961], p. 121) tratou este paradoxo como uma
decorrência direta de um problema não-resolvido que atravessa toda a filosofia
peirceana (a distinção entre continuum e discreto)59
. Recentemente, num livro sobre a
teoria peirceana dos signos, Thomas Short (2007, p. 42 e 43) chegou a considerar este
ponto uma falha grave o suficiente para exigir revisões na teoria (o que Peirce teria
feito, de acordo com Short, a partir do final da década de 1870). Não pretendemos
antecipar esta discussão, que, a rigor, só pode ser feita depois que analisarmos o próprio
texto peirceano. Entretanto, separemos algumas poucas linhas para apresentar, ainda
que sucintamente, a interpretação de Ransdell (1966, p. 42), pois, além de contrária a de
Murphey e também a de Short, ela nos servirá para começar desde já apresentar a
concepção peirceana de mente que permite aquela dupla reformulação conceitual à qual
nos referimos acima.
Para Ransdell (1966, p. 42), aquele (aparente) paradoxo pode ser dissolvido caso seja
feita uma distinção entre um ponto de vista psicológico (a partir do qual o pensamento
seria entendido como um processo contínuo) e um ponto de vista lógico (a partir do qual
o pensamento seria entendido como um processo que pode ser "quebrado" em unidades
discretas [tais como premissas e conclusões]). De acordo com Ransdell (1966, p. 91), a
preocupação de Peirce nos textos de 1867 e 1868 é de natureza lógica (e não
psicológica)60
. Como já deve ter ficado claro desde o início do parágrafo anterior, nesta
tese, em geral, seguiremos a interpretação de Ransdell (ou, ao menos, algo muito
próximo disso). Então, quando dentro de sua teoria da cognição, Peirce afirma que todo
pensamento é inferencial (i.e., é sígnico), ele se refere a um processo de ordem lógica e
esta expressão, "ordem lógica", deve ser entendida numa visão anti-psicologista da
lógica (nos moldes daquela que foi, por ele mesmo, defendida nas Palestras em Harvard
[1865]). Porém, o que seria este processo inferencial entendido sob tal perspectiva (anti-
psicologista)? Há uma passagem esclarecedora no segundo artigo da série cognitiva
(justamente numa seção sobre "ação mental") na qual Peirce afirma que, em termos
gerais, um processo inferencial pode ser entendido como um processo de substituição.
Assim, a conclusão de uma inferência nada mais seria que o resultado de um processo
de substituição. Segundo Peirce, "a conclusão pode ser considerada como a proposição
que substituiu qualquer das premissas e a substituição é justificada pelo fato afirmado
na outra premissa" (CP 5.279 [1868])61
.
59
Voltaremos a este ponto na análise da quinta questão do primeiro texto da série cognitiva e, sobretudo,
ao final da análise da sétima dessas questões. 60
Ransdell, em seu próprio texto, capta esta distinção com as expressões ordem lógica e ordem temporal. 61
No original: The conclusion may be regarded as a proposition substituted in place of either premiss, the
substitution being justified by the fact stated in the other premiss".
89
Vejamos um exemplo, deste modelo de processo inferencial como uma troca, uma
substituição de proposições. Suponha que nos venha à mente o pensamento "Sócrates é
mortal" logo depois de ter vindo o pensamento "Sócrates é humano". Óbvio está que
esta passagem só foi possível (logicamente) graças a um terceiro pensamento, que neste
caso permaneceu implícito: "Todos os humanos são mortais". Este "acontecimento
mental" pode ser expresso no seguinte argumento: o primeiro pensamento "Sócrates é
humano" junto com um segundo pensamento, "Todos os humanos são mortais", nos
serviram de premissas (a primeira, explícita e a segunda, implícita) para concluir o
pensamento "Sócrates é mortal". Neste caso, denominamos de inferência exatamente a
passagem de "Sócrates é humano" para "Sócrates é mortal" (passando por "Todos os
humanos são mortais"). E o que Peirce afirma no trecho transcrito acima é que podemos
entender esta passagem como um processo de substituição de uma premissa pela
conclusão. Além disso, pode-se asseverar que o processo de substituição de uma
premissa pela conclusão é justificado pelo que é afirmado pela outra premissa. Por
exemplo, se entendermos tal inferência como uma substituição do pensamento "Sócrates
é humano" pelo pensamento "Sócrates é mortal" então esta substituição foi justificada
pelo que é afirmado na outra premissa, a saber, o pensamento "Todo humano é
mortal"62
.
É a partir desta passagem do texto peirceano, citada acima, que Ransdell nos oferece
uma explicação esclarecedora do que Peirce, dentro da série cognitiva, entende por
mente.
Para propósitos lógicos, a mente deve ser considerada como uma sucessão de
elementos puramente formais, a natureza dessa sucessão constitui a natureza
da mente enquanto tal. Em outras palavras, a mente não é uma coisa, mas um
certo processo ordenado um processamento logicamente ordenado de
pura forma (...). Assim (...), podemos entender porque Peirce trata o processo
inferencial em termos de substituição. No processamento lógico, uma forma
toma o lugar, substitui (logicamente) alguma outra como o único conteúdo
positivo da mente no dado instante (lógico). De modo mais prosaico, a
inferência é a substituição de um termo no lugar ocupado por outro termo.
(Ransdell, 1966, p. 93)
Portanto, a teoria da cognição defendida na série cognitiva traz à luz um modelo lógico
da mente. Se Descartes é o responsável pela introdução do termo "mente" no
vocabulário filosófico, Peirce é provavelmente o responsável pela primeira explicação
estritamente lógica do que é uma mente e de como ela funciona. E este modelo
estritamente lógico tem algo de perturbador. Em termos estritamente lógicos, não há
nada que nos leve a crer que uma proposição específica que esteja na posição de
premissa (de algum argumento) devesse necessariamente ser considerada como
originária ou indemonstrável. Se afirmamos que uma proposição assim o é devemos
fazê-lo com base em critérios que escapam à lógica. Este é um tipo de consideração que
62
Há outra situação possível: se entendermos tal inferência como uma substituição do pensamento "Todo
humano é mortal" pelo pensamento "Sócrates é mortal" então esta substituição foi justificada pelo que é
afirmado na outra premissa, a saber, o pensamento "Sócrates é humano".
90
só pode ser realizada a partir de fora da lógica. Suponha que estamos diante da
afirmação que uma proposição p deve ser considerada originária, indemonstrável, deve
ser entendida como um ponto de partida (nunca chegada) de nossos raciocínios. Os
critérios que justificariam a consideração desta proposição como originária podem
provir de diversas fontes teóricas. Imaginemos alguns deles e notemos que são sempre
"extra-lógicos".
Pode ser que a proposição p seja considerada originária, porque ela é relativa a um
julgamento da percepção e, de acordo com uma teoria epistemológica P, aquilo que for
dado na percepção deve ser considerado como premissa primeira para o conhecimento.
Pode ser que a proposição p seja considerada originária, porque ela é relativa a uma
verdade fornecida diretamente por uma divindade (ou por um sábio ou uma autoridade
que aja em nome dela) e, de acordo com uma teoria epistemológica (provavelmente
imbricada numa teoria metafísica), esta verdade diretamente fornecida deve ser
considerada premissa primeira para o conhecimento. Pode ser que a proposição p seja
considerada originária, porque ela integra o conjunto de axiomas de uma teoria
específica e, de acordo com o proponente desta teoria, esta proposição deve constar
neste conjunto porque é uma verdade autoevidente ou porque a inclusão dela neste
conjunto segue critérios práticos. O importante é notar que a consideração de que uma
proposição específica é originária (i.e., não pode ser jamais demonstrada) simplesmente
não pertence à lógica.
De um ponto de vista formal, premissas são simplesmente proposições que cumprem
um papel de justificativa para alguma outra proposição que, dentro de um argumento,
denominamos conclusão. Dentro dos limites de um argumento, apenas a conclusão é
proposição justificada. Restando às premissas sempre o papel de proposições que
permanecem (naquele argumento) injustificadas. Ora, se permanecem injustificadas,
não há nada que nos impeça de perguntar pelas suas possíveis justificativas. Nada nos
impede de perguntar por um possível argumento anterior cujo ponto de chegada
(conclusão) seja justamente aquela premissa que, antes, estava injustificada. Pode-se
sempre se indagar a respeito das cognições anteriores que nos levaram até aquele ponto.
Na verdade, a razão nos impulsiona a sempre colocar esta pergunta sobre as origens,
sobre as bases, sobre as premissas de uma afirmação. Óbvio está que uma concepção
puramente lógica de mente deveria emergir contra um pano de fundo epistemológico
que não admitisse fundações últimas para quaisquer crenças.
Solicitar a alguém que entenda determinada proposição, determinada ideia, determinada
cognição como um ponto de partida, (jamais como ponto de chegada) de um raciocínio
é no fundo fazer um pedido velado para que não pense no assunto. Estabelecer, de uma
vez por todas (por meio de uma teoria), que determinado ponto deve ser considerado
(necessariamente) um ponto de partida dos raciocínios (e jamais como ponto de
chegada) é, no fundo, desestimular o impulso da racionalidade. Afirmar, por princípio,
que não há raciocínio possível que possa chegar a este ponto (só dele partir) é, no fundo,
afirmar que não adianta perscrutar, não importa quão longe forem as investigações, este
ponto permanecerá mudo, desconhecido, inexplicável, incompreensível. Por mais que o
91
conhecimento avance, tal ponto restará incognoscível. Este parece ser, para Peirce, o
maior pecado que uma teoria epistemológica pode cometer: o de "criar" um ponto cego
com relação às faculdades cognoscitivas. Se uma teoria é um discurso elaborado para
explicar algo, então não faz sentido uma teoria que estabeleça que a explicação de algo
é que não há explicação alguma. Estas teorias estão em flagrante conflito com aquela
que, de acordo com Peirce (CP 7.135 [1989] ou EP2, p.48), é a lei fundamental da razão
(que deveria ser gravada em todo e qualquer muro da cidade da filosofia): "Não
bloqueie o caminho da investigação".
Entretanto, como a teoria da cognição não pode admitir a existência de um ponto
originário para os processos inferenciais (que constituem a atividade cognitiva), então
cria-se o problema de como explicar a obtenção de informação pela mente. Se não se
admite intuição, se não se admitem primeiras premissas, como explicar a percepção?
Como uma mente pode ter contato com a realidade? Como pode haver crescimento do
conhecimento?
Em decorrência desta teoria lógica (ou semiótica) da cognição e da completa ausência
de fundações, de origens ou qualquer sistema definitivo de ancoragem, Peirce se vê
obrigado a elaborar uma teoria da realidade que seja consistente com o seu modelo
lógico da mente63
.
Dentro do projeto fundacionalista de Descartes, o conhecimento é validado pelo fato de
nosso aparato sensório e cognitivo ser uma criação de um ser infinitamente poderoso,
perfeito e de natureza confiável cuja existência é provada a partir de nossa própria
consciência. Claro que Peirce não aceita este tipo de validação, uma vez que ela se
baseia, em última análise, na consciência individual. Se, por um lado, sua teoria de
categorias estabelece que atividade de síntese pode ser explicada como um processo
contínuo de interpretação sígnica, por outro lado, sua teoria da cognição estabelece que
toda a atividade cognitiva pode ser explicada também recorrendo-se a noção de signo (e
ao processo contínuo de interpretação sígnica).
A tese central da teoria peirceana da cognição é que "todo pensamento é pensamento em
signos" (CP 5.251-3 [1868]). Assim, dentro dos limites desta teoria, deve-se a um
processo sígnico tanto a atividade cognitiva que gera a autoconsciência como aquela
que nos torna capaz de distinguir cognições e classificá-las em diversos tipos (por
exemplo, distinguir uma cognição sonhada de uma efetivamente "experienciada" ou
uma que seja simplesmente concebida de uma na qual se efetivamente acredita). Até
mesmo o conhecimento que se tem do "ambiente interior" (que no sistema cartesiano é
obtido de forma direta, por introspecção), na teoria peirceana da cognição é devido a um
processo inferencial, i.e., é devido a um pensamento no qual se recorre necessariamente
a elementos externos (signos). Portanto, o resultado da teoria das categorias
(apresentado no artigo "Sobre uma nova lista de categorias") e o resultado da teoria da
cognição (apresentado no artigo "Questões concernentes a certas faculdades
63
Dentro do "roteiro" de passos lógicos para a construção do sistema filosófico peirceano (que
apresentamos no primeiro capítulo), esta é a passagem para o sexto passo.
92
reivindicadas para o homem") é que tanto o processo de síntese como qualquer
atividade cognitiva deveriam ser explicados a partir da ideia de um processo contínuo
de interpretação sígnica.
Num processo (válido) de inferência lógica, a verdade da conclusão é garantida pela
verdade das premissas, i.e., a verdade daquilo que é afirmado no ponto de chegada é
garantida pela verdade do que tiver sido afirmado no ponto de partida. Impossibilitado
de admitir uma primeira premissa que seja necessariamente verdadeira, Peirce
estabelece que este processo contínuo de interpretação sígnica deve, se forem cumpridas
algumas condicionantes, convergir para a verdade. A teoria peirceana da cognição retira
o conceito de verdade de sua posição habitual, o ponto de partida do processo de
conhecimento, e o projeta numa espécie de ponto de fuga do processo de conhecimento.
A verdade deixa de estar localizada num ponto cego da visão do sujeito cognoscente e
passa a ser projetada à sua frente, transformando-se numa espécie de ser in futuro. As
teorias peirceanas desenvolvidas neste período (1867-8) não propõem apenas um
deslocamento do que se deve entender pelo termo "verdade" (note que este é o
nascimento de concepções que mais tarde amadureceriam para constituir o pragmatismo
peirceano), mas também estabelecem um deslocamento "do foco de atenção
epistemológica do indivíduo para uma comunidade cognitiva" (Haack, 1982, p. 156).
De fato, de acordo com a exposição de Peirce, a principal condicionante para que um
processo contínuo de interpretação sígnica possa convergir para a verdade é que tal
processo seja levado adiante por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Ao final
do segundo artigo da série cognitiva ("Algumas consequências das quatro
incapacidades"), Peirce apresenta a concepção de realidade que emerge de sua
epistemologia.
E que o significamos com o termo "real"? É uma concepção que devemos ter
tido pela primeira vez quando descobrimos que existia algo irreal, uma
ilusão; ou seja, na primeira vez em que nos corrigimos. Agora, a distinção
para qual este fato foi exclusivamente convocado [a explicar] logicamente era
entre um ens relativo às determinações internas e privadas [de um ego], às
negações pertencentes à idiossincrasia, e um ens tal qual como seria no longo
prazo. O real, então, é algo ao qual se finalmente chega, cedo ou tarde, como
resultante de informação e raciocínio e que é, portanto, independente de
movimentos erráticos meus ou seus . Então, a origem da concepção de
realidade nos mostra que ela envolve a noção de uma COMUNIDADE, sem
limites definidos, e capaz de um crescimento definido do conhecimento.
Então, aquelas duas séries de cognição a real e a irreal consistem naquela
que, num tempo suficientemente afastado do presente, a comunidade irá
continuar a reafirmar e naquela que, sob as mesmas condições, deverá
continuar a ser negada.
(CP 5.311 [1868])64
64
No original: And what do we mean by the real? It is a conception which we must first have had when
we discovered that there was an unreal, an illusion; that is, when we first corrected ourselves. Now the
distinction for which alone this fact logically called, was between an ens relative to private inward
93
Para Peirce, todo o nosso conhecimento é necessariamente falível. Não importa o quão
seguros nos sentimos com relação a ele. Tampouco importa quão antigo ou evidente ou
simples tal conhecimento seja. Desde uma simples percepção até a mais poderosa e
eficiente de nossas teorias, o que temos são hipóteses. Desde o que percebemos de
forma confusa, sem muita atenção no olhar, até mesmo o que afirmamos com base no
melhor de nossos métodos e na mais confiável de nossas teorias, o que temos ainda são
hipóteses. Na epistemologia peirceana, toda esperança de se atingir alguma verdade
com relação a alguma crença está depositada nas mãos de um sujeito coletivo, a
comunidade indefinida de pesquisadores ou, na feliz expressão de Haack (1982, p. 156),
a comunidade cognitiva.
Esta concepção de realidade (acima apresentada) é uma decorrência direta da teoria da
cognição defendida por Peirce no primeiro artigo da série cognitiva. Dependem desta
concepção de realidade tanto a teoria peirceana sobre a fundamentação das leis da
lógica como também a teoria acerca dos raciocínios ampliativos (i.e. sintéticos),
apresentadas no terceiro artigo desta mesma série. Para Peirce, as filosofias que afirmam
que a realidade é somente aquilo que é dado na intuição devem ser classificadas como
nominalistas. Embora a adesão "oficial" à doutrina do realismo escolástico ocorra
apenas em 1871 numa longa resenha sobre a edição de Alexander Campbell Fraser da
obra de George Berkeley, já podemos notar um posicionamento marcadamente realista
nos três artigos da série cognitiva (cf. "Algumas consequências das quatro
incapacidades", trecho W2, 239-242 [1868] e cf. também "Fundamentos da validade das
leis da lógica: outras consequências das quatro incapacidades", trecho W2, 269-270
[1869]). Ao lado de uma visão anti-psicologista da lógica (da qual já tratamos no início
desta seção), o realismo parece ser outro ingrediente indispensável dentro da teoria
semiótica da cognição que Peirce apresenta na série cognitiva. Tratemos deste ponto
pelo resto desta seção, uma vez que compreender o que Peirce entendia por
nominalismo é um ótimo modo de enxergar a distância entre suas teorias e
posicionamentos filosóficos e as teorias e posicionamentos dos demais filósofos que
eram, por ele, classificados de nominalistas.
Christopher Hookway apresenta, no primeiro capítulo de seu livro sobre a filosofia
peirceana, uma excelente sinopse do que Peirce entendia por nominalismo, sobretudo,
quando utiliza tal termo dentro de um texto para identificar (com relação à disputa dos
universais) o posicionamento do seu adversário como oposto ao seu (o realismo). De
acordo com Hookway (1992 [1985], p. 20 e 21), Peirce critica sob o rótulo de
nominalismo "um quadro que se manifesta numa variedade muito grande de teorias
filosóficas" e, desse modo, "quase nenhum grande filósofo escapa de ser chamado por
Peirce de nominalista em alguma fase de sua carreira". No caso dos textos que
determinations, to the negations belonging to idiosyncrasy, and an ens such as would stand in the long
run. The real, then, is that which, sooner or later, information and reasoning would finally result in, and
which is therefore independent of the vagaries of me and you. Thus, the very origin of the conception of
reality shows that this conception essentially involves the notion of a COMMUNITY, without definite
limits, and capable of a definite increase of knowledge. And so those two series of cognition -- the real
and the unreal -- consist of those which, at a time sufficiently future, the community will always continue
to re-affirm; and of those which, under the same conditions, will ever after be denied.
94
compõem a série cognitiva, continua Hookway, este quadro é "capturado na
reivindicação que o homem possui intuições" e pelo conceito de intuição deve-se
entender "uma cognição (um juízo ou uma sensação) cujo conteúdo não reflete
nenhuma outra cognição que a produziu, mas reflete a ação direta da 'coisa tal como ela
é em si mesma' " (Hookway, 1992 [1985], p.21). Não é por outro motivo que reflexões a
respeito do papel do objeto externo à consciência (dentro do processo de conhecimento)
ocupam um lugar de destaque dentro do primeiro artigo da série cognitiva. Para Peirce,
o problema do estabelecimento da hipótese que algumas de nossas cognições (as
chamadas intuitivas) "são determinadas por algo absolutamente externo" à consciência
(CP 5.260 [1868]) representa a instalação do incognoscível dentro da teoria. No trecho
transcrito a seguir, Hookway capta, com uma pergunta, a contraposição peirceana ao
conceito de intuição e passa a mencionar aqueles filósofos que Peirce classificava como
nominalistas.
Se a intuição é somente determinada pela ação (sobre ela) de objetos
externos, então como podemos justificar a suposição que ela reproduz com
acurácia as características da realidade. Peirce observa em diversas ocasiões
que o nominalismo leva diretamente a um quadro da realidade retratado
como um reino de incognoscíveis coisas em si65
.
Peirce traçou o desenvolvimento desse quadro nominalista dos nominalistas
medievais como Ockham passando por Hobbes, Berkeley, Locke e Hume e
chegando até epistemólogos do século XIX como James Mill e John Stuart
Mill; subsequentemente, (...), chegou a enxergar até mesmo Kant como um
herdeiro desta tradição.
(Hookway, 1992 [1985], p.21)
Embora, ao longo deste terceiro capítulo, tenhamos insistido que a construção de uma
teoria peirceana da cognição de base semiótica tenha se dado através de um debate mais
direto com Descartes, as críticas de Peirce não têm como alvo apenas o projeto
cartesiano de fundação do conhecimento (expresso nas "Meditações" ou no "Discurso
do método"), mas elas pretendem atingir também as epistemologias de base empirista e
mesmo a solução epistemológica kantiana oferecida na "Crítica da Razão Pura" (de
onde partira com suas primeiras pesquisas no campo da lógica). Conforme já
argumentamos no segundo capítulo, ao final da década de 1860, Peirce já não apenas
teria formulado um problema filosófico distinto daquele de Kant (e que ele mesmo
passou a entender como uma questão mais geral do que aquela que está no centro da
"Crítica da Razão Pura") como já teria uma resposta para tal problema que exigiria o
estabelecimento de uma teoria do conhecimento muito distinta de todas aquelas que
foram elaboradas dentro da filosofia moderna. Um ótimo modo para se "medir" esta
distância é observar o tratamento que se despende "ao problema do objeto externo à
consciência" (ou o objeto transcendental) nas teorias epistemológicas sob comparação66
.
65
Em seu texto, Hookway faz referência às seguintes passagens: CP 5.312 [1868] e CP 6.492 [1896]. 66
Aliás, este seria o método mais adequado para uma análise dos textos de 1867-1869, pois, apenas em
1871, passa a ser efetivamente feita (pelo próprio Peirce) a distinção do seu próprio posicionamento como
realista (de tipo escolástico) com relação ao posicionamento de seus adversários, que seriam todos
95
Com relação a Kant, já nos referimos (na última seção do segundo capítulo) à diferença
fundamental entre o que Peirce entende por síntese no artigo "Sobre uma nova lista de
categorias" e o que Kant entende por síntese (da recognição) na Crítica. A distinção
reside justamente no fato de Peirce não admitir a tese de que exista um contato direto
entre o objeto externo e as impressões de sentido que fornecem o "material sensório"
sobre o qual opera a síntese67
. Com relação aos empiristas britânicos, não deve haver
muita dificuldade para se enxergar a distância da teoria semiótica da cognição elaborada
por Peirce (sobretudo, na série cognitiva) e aquelas teorias que encontramos nas obras
de Locke, Berkeley e também Hume. Por exemplo, no seguinte trecho, transcrito do
"Ensaio sobre o entendimento humano", pode-se notar o papel central que possui o
conceito de intuição para a teoria do conhecimento elaborada por Locke.
A diferente clareza de nosso conhecimento me parece repousar na maneira
diferente que a mente tem de perceber o acordo ou desacordo de qualquer
uma de suas ideias. Pois, se nos colocarmos a refletir a respeito de nossas
próprias maneiras de pensar, notaremos que, às vezes, a mente percebe um
acordo ou desacordo entre duas ideias imediatamente a partir delas mesmas,
sem a intervenção de nenhuma outra ideia: e acredito que podemos chamar
isto de conhecimento intuitivo, uma vez que, neste caso, a mente não sofre
para provar ou examinar, mas percebe a verdade como o olho faz a luz,
apenas estando diretamente voltado para ela. Então, a mente percebe que o
branco não é preto, que o círculo não é triângulo, que três é mais do que dois
e igual a um mais dois. Estes tipos de verdade são percebidas pela mente na
primeira vista das duas ideias juntas, por intuição; sem intervenção de
qualquer outra ideia: e este tipo de conhecimento é o mais claro e o mais
certo que a fragilidade humana pode atingir. Esta parte do conhecimento é
irresistível e, como o brilho de um raio do sol, ela se força imediatamente
para ser percebida e, logo que a mente se volta para ela, não há espaço para
hesitação, dúvida, ou exame, mas a mente é, naquele momento, preenchida
pela clara luz desse tipo de conhecimento. É desta intuição que depende toda
a certeza e evidência de nosso conhecimento.
(ECHU, Livro 4, capítulo 2, sec. 2)
O longo trecho transcrito a seguir, retirado da obra "O desenvolvimento do pensamento
peirceano" de Murphey, trata exatamente da distância entre Peirce e a "escola britânica".
É essencial entender que Peirce quase literalmente considera que a existência
da intuição envolve a existência do objeto transcendental e, portanto,
[envolve] uma falácia que leva ao nominalismo. É por esta razão que ele
considera fundamentalmente nominalistas os empiristas britânicos. Pois a
teoria lockeana da cognição afirma que todo o conhecimento se origina na
forma de ideias simples ou percepções imediatas. Estas ideias simples são
tanto sensações que se referem a coisas externas ou reflexões que se referem
a operações de nossas próprias mentes. Sensações, de acordo como Locke,
incorrigivelmente nominalistas. Na letra do texto, no artigo "Sobre uma nova lista de Categorias" (1867) e
na série cognitiva (1868-9), Peirce não identifica o posicionamento contrário ao seu como nominalista.
Neste caso, as teorias adversárias são todas aquelas que admitem a intuição ou algum tipo de elemento
fundante. O que pode ser afirmado, para estes textos, é que os filósofos que defendem tais teorias seriam
aqueles, que mais tarde, Peirce rotularia de nominalistas. 67
Para Kant, "objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada" (KrV B137).
96
são causadas por ações diretas de realidades exteriores sobre nossos sentidos.
Algumas dessas ideias assim produzidas podem ser consideradas cópias das
qualidades da realidade estas são as qualidades primárias , porém, outras
as qualidades secundárias não se parecem com nada na realidade, mas
tem uma correspondência com ela, pois são seus efeitos constantes. Assim,
em ambos os casos, percebemos o real em nossas primeiras impressões. Deve
ser considerada como a contribuição de Berkeley ter provado que o real
nunca é percebido, mas deve ser inferido pelo princípio da causalidade; e
deve ser considerada como a contribuição de Hume ter demonstrado que esta
inferência é inválida. Deste modo, a existência do real não pode ser provada.
Peirce acreditava que até mesmo Kant caiu nesta armadilha quando postulou
o objeto transcendental como o objeto da intuição (CP 5.213). Qualquer
sistema, afirma Peirce, que comece por estabelecer que perceptos estejam
relacionados diretamente ao objeto real enfrentam o mesmo destino, pois a
acurácia destas percepções não pode ser provada e inevitavelmente se é
levado ao solipsismo (CP 8.12).
A negação da intuição é o golpe mais forte contra a escola britânica, pois
Locke, Berkeley e Hume requerem como axioma a existência da intuição.
Hume baseou todo o seu argumento sobre "nosso princípio fundamental de
que todas as nossas ideias são copiadas de impressões" [Tratado da natureza
humana, Livro 1, parte 3, sec. XIV], onde por "impressões" deve-se entender
"todas as nossas sensações, paixões e emoções quando aparecem pela
primeira vez em nosso espírito"[Tratado da natureza humana, Livro 1, parte
1, sec. I]. Negar este princípio mina todo o Tratado.
(Murphey, 1993 [1961], p. 108-9)
Traçadas estas correlações entre o posicionamento realista de Peirce e o (que entendia
por um) posicionamento fundamentalmente nominalista daqueles filósofos modernos
que se submeteram à tarefa de elaborar teorias do conhecimento, acreditamos que já
fechamos esta parte da tese dedicada à oferecer uma visão panorâmica deste período
inicial do pensamento peirceano em que nasce a semiótica e já podemos, então, passar à
parte de análise dos textos peirceanos propriamente ditos.
97
CAPÍTULO 4
Introdução à análise do texto "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas para
o homem" (QFCM) e análise da primeira questão
Durante os três primeiro capítulos, o que fizemos foi apresentar uma visão panorâmica de
uma fase do pensamento de Charles S. Peirce, a saber, aquele período que viu nascer a
semiótica como uma teoria central dentro do quadro geral da filosofia peirceana e, em
particular, central também à epistemologia peirceana. Nesses capítulos, procuramos
também oferecer uma visão ampla da relação entre o pensamento peirceano e o de Kant e
também o de Descartes. Nesta fase de surgimento de um pensamento propriamente
semiótico, Peirce formulou o que considerava ser a pergunta fundamental da filosofia e
passou a traçar uma estratégia para respondê-la. A pergunta fundamental peirceana era a
respeito da possibilidade das sínteses ou do raciocínio sintético em geral e a resposta por
ele encontrada passaria pela construção de uma espécie de "teoria geral das
representações", o que seria denominado de semiótica. Por sua vez, a semiótica teve suas
bases lançadas no artigo “Sobre uma nova lista de categorias” (1867) e foi,
posteriormente, desenvolvida na forma de uma teoria sígnica (ou inferencial) da cognição.
Esta teoria da cognição, que Peirce apresentou como alternativa às teorias
epistemológicas animadas pelo que chamava de “espírito do cartesisanismo”, foi
elaborada ao longo da série cognitiva, sobretudo, no primeiro desses textos: "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem".
A partir deste quarto capítulo, entramos na parte de nossa tese dedicada às análises do
texto peirceano propriamente dito. Analisaremos, em primeiro lugar, o texto que abre a
série cognitiva, "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem",
e deixaremos para analisar, em segundo lugar, o texto em que Peirce apresenta sua teoria
das categorias, "Sobre uma nova lista de categorias". Com isso, invertemos tanto a ordem
cronológica (uma vez que este texto foi publicado antes daquele) como também a ordem
lógica de exposição (uma vez que a base da teoria da cognição apresentada na série
cognitiva se encontra na teoria das categorias). Obviamente, temos um motivo para tal
inversão. Conforme explicado na introdução geral e também no primeiro capítulo, nosso
objetivo geral é sustentar a afirmação de que, dentro da definição de signo, o conceito de
interpretante opera como uma espécie de "regra de recursão" e demonstrar que é esta
recursividade no coração da definição de signo que acaba por criar uma noção de
representação que só faz sentido caso seja entendida como um processo (de representação
que sempre recorre a alguma representação anterior e sempre remete a alguma
98
representação posterior). É esta recursividade que cria a noção de fluxo sígnico, a cadeia
de interpretantes, peculiar à semiótica peirceana. Para cumprir este objetivo, optamos por
partir dos efeitos em direção à causa. Antes de analisarmos a definição (de interpretante
dentro da definição de signo) que é responsável por tal recursividade, decidimos analisar a
teoria da cognição criada a partir desta definição e o modo como tal teoria foi mobilizada
para o combate à epistemologia cartesiana, o que Peirce entendia como um confronto
essencial para o estabelecimento de seu próprio projeto filosófico.
Como vimos, Peirce entendia que a introdução do conceito de intuição dentro de uma
teoria epistemológica cria "pontos cegos", "resíduos incognoscíveis", o que, por sua vez,
torna inexplicável o raciocínio ampliativo ou sintético. Acreditamos que a recursividade é
justamente o mecanismo encontrado por Peirce para explicar atividade cognitiva (que é
capaz de ampliar o conhecimento) sem recorrer à intuição como ponto originário do
processo. Optamos por expor, em primeiro lugar, os efeitos de se definir recursivamente a
noção de representação dentro do signo, para depois expor a própria definição em
questão. Portanto, durante os próximos cinco capítulos, dedicaremo-nos a analisar o texto
em que Peirce apresenta sua teoria (semiótica) da cognição como uma alternativa às
teorias que têm em sua base o conceito de intuição. Este texto é o "Questões concernentes
a certas faculdades reivindicadas para o homem". A partir do décimo capítulo, voltamos
nossa atenção para o artigo "Sobre uma nova lista de categorias", que é o texto no qual o
termo interpretante é, pela primeira vez, definido de forma recursiva dentro da definição
geral de signo. Portanto, a ideia desta inversão na ordem de exposição é criar um certo
movimento de aproximação. Pretendemos partir de um quadro geral (a teoria da cognição
e seu lugar no projeto filosófico peirceano) e nos aproximarmos aos poucos do que
consideramos ser o centro nevrálgico da semiótica, a ideia de representação (que é
definida recursivamente dentro o conceito de signo).
Antes de passarmos à análise do primeiro artigo da série cognitiva, "Algumas questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" devemos fazer algumas
observações gerais de caráter introdutório sobre tal texto e também sobre o que já foi
produzido na literatura secundária a respeito dele. Comecemos com uma observação feita
por Thomas Prendergast num artigo intitulado "A estrutura do argumento de Peirce no
texto 'Algumas questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem' ".
Este artigo de Prendergast pode ser considerado um dos comentários mais completos e
sistemáticos já elaborados até hoje a respeito deste que é primeiro texto da séria cognitiva
de Peirce.
Uma das primeiras publicações de Peirce, "Questões concernentes a certas
faculdades reivindicadas para o homem", é um ataque à doutrina do
conhecimento imediato que Peirce identifica como central ao "espírito do
cartesianismo" na filosofia moderna. O caráter revolucionário da ataque
peirceano é evidente quando se reconhece que tal doutrina tem estado
incrustada no pensamento filosófico por mais de duzentos anos.
Embora certo número de autores tenham analisado este artigo, nenhum deles
elaborou um comentário questão-a-questão no qual pudesse ser exibida tanto a
99
estrutura dos argumentos em cada questão bem como a estrutura do artigo
como um todo.
(Prendergast, 1977, p. 288)
De acordo com Prendergast (1977, p. 288), o comentário que mais se aproximou de
oferecer uma visão integral (questão a questão) da estrutura deste primeiro texto da série
cognitiva foi elaborado por C. F. Delaney num artigo intitulado "A crítica peirceana do
Fundacionalismo" (Delaney, 1973, p. 240 - 251) embora não trate nem da quinta nem
sexta questões. É óbvio que, quase trinta anos depois, a lista de autores que analisaram e
comentaram o primeiro artigo da série cognitiva aumentou. A seguir, apresentamos
alguns deles. Deste ponto em diante passamos a nos referir ao texto "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" pela seguinte sigla:
QFCM68
.
Carl Hausman tem toda uma seção de seu livro "A filosofia evolucionária de Charles S.
Peirce" dedicada à análise do que chamou de "base anti-cartesiana do pragmatismo e da
semiótica" (1993, p. 60 - 67). Também Cornelis De Waal, ao tratar das origens do
pragmatismo peirceano em seu livro "Sobre o pragmatismo", faz uma breve análise dos
argumentos presentes no QFCM (cf. De Waal, 2007, p. 20 -16). Hookway separou parte
considerável do capítulo de abertura de seu livro intitulado "Peirce" para examinar o
ataque peirceano ao "espírito do cartesianismo" (Hookway, 1992 [1985], p. 19 - 30) Já
Gallie, no livro "Peirce e o pragmatismo", elabora uma análise um pouco mais completa
do que denominou de "Assalto ao cartesianismo" (Gallie, 1966, p. 59 - 84). Também
muito mais completo é o estudo realizado por Murphey em sua obra "O
desenvolvimento do pensamento de Peirce". Neste livro, as análises de Murphey sobre a
série cognitiva estão no terceiro capítulo, que trata do que o autor chama de "segundo
sistema" do pensamento peirceano (1993 [1961], p. 55 - 97), e no quinto capítulo (1993
[1961], p. 106 - 123), que trata da nova teoria da cognição. Alguns comentários que não
poderíamos deixar de mencionar é o de Maneley Thompson (1953, p. 37 - 44) no livro
"A filosofia pragmática de C. S. Peirce" e o ensaio introdutório de Joseph Chenu à
publicação de uma tradução francesa de alguns textos peirceanos, dentre eles, os três
que compõem a série cognitiva69
. Outro comentário relativo à série cognitiva,
sobretudo, ao primeiro artigo é aquele elaborado por Buchler (1966, p. 3 - 18) no início
de seu livro (hoje, clássico) sobre "O empirismo de Charles Peirce".
Entretanto, com relação à série cognitiva, as análises mais completas já produzidas a
respeito do QFCM (além daquela, já citada, de Prendergast) são aquelas elaboradas por
Lucia Santaella no livro "O método cartesiano de C. S. Peirce" e por Royce Paul Jones
numa tese de doutorado (não-publicada até os dias de hoje) intitulada "Peirce: sobre
intuição e instinto" (cf. Jones apud Santaella, 2004, p. 34). No primeiro capítulo de seu
livro, Santaella (2004, p. 29 - 46) comenta questão por questão todo o artigo "Questões
68
A justificativa para esta sigla é obviamente as iniciais de algumas das palavras que compõem o título
do artigo no idioma original: "Question concerning certain Faculties Claimed for Men". 69
Este ensaio pode ser encontrado em na seguinte publicação: PEIRCE, C. S. (1984) Textes
anticartésiens. Paris, Aubier.
100
concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" e passa a analisar
também individualmente todas as consequências que Peirce, no segundo artigo da série
("Algumas consequências das quatro incapacidades"), deriva das conclusões dos
argumentos elaborados no primeiro artigo da série. Embora os comentários sobre a série
cognitiva estejam concentrados no primeiro capítulo, pode-se afirmar que todo o livro
de Santaella diz respeito ao assunto ao qual dedicamos os próximos capítulos de nossa
tese: o surgimento da semiótica dentro de um confronto com o que o Peirce chamava de
"espírito do cartesianismo".
Nosso objetivo nestes próximos cinco capítulos é apresentar uma análise que não
apenas siga o texto peirceano questão a questão (o que já foi feito por alguns
comentadores), mas linha a linha. A intenção é isolar e avaliar as principais linhas
argumentativas que sustentam o que viemos denominando de tese central ou tese-base
da semiótica ("todo pensamento é pensamento em signos"). Ao contrário do que podem
sugerir as primeiras impressões, no QFCM, Peirce não está pura e simplesmente
combatendo o chamado "espírito do cartesianismo", mas, paralelamente, construindo
uma teoria da cognição que compõe uma epistemologia alternativa àquela que é
criticada. Observada desta "perspectiva positiva", não é difícil notar por qual motivo as
teses expostas no QFCM são centrais para defesa de nossa própria tese acerca da
correlação entre interpretante e recursividade. Acreditamos que o QFCM é um "lugar"
privilegiado na obra peirceana para observar como a teoria do interpretante (que nasce
com a nova lista de categorias) está intimamente relacionada ao conceito de
recursividade, uma vez que, conforme nossas análises, é justamente o papel da recursão
(dentro da definição de signo) impedir que surja qualquer possibilidade de ser
estabelecido um ponto originário para o processo de conhecimento. Ao impedir
qualquer possibilidade de fundação (do conhecimento), a ideia de recursão
(internalizada, por definição, no conceito peirceano de signo) impede que surja, no
horizonte da teoria da cognição exposta no QFCM, quaisquer resíduos de
incognoscibilidade. E, assim, são criadas as condições de possibilidade de se estabelecer
uma resposta para a pergunta central da filosofia: como são possíveis os raciocínios
ampliativos?
Como já antecipamos no terceiro capítulo, a forma literária que Peirce escolheu para
expor os seus argumentos contrários ao "espírito do cartesianismo" (e, assim,
estabelecer sua concepção semiótica da cognição e da produção de conhecimento) é a
quaestio. Na verdade, é mais preciso afirmar que a estrutura do QFCM é inspirada pela
organização interna de uma quaestio, embora nem sempre o texto peirceano siga
conforme manda o figurino, como lembra Prendergast (1977) por diversas vezes em
seus comentários. Antes que passemos a tratar diretamente da estrutura geral do QFCM,
é de bom tom que expliquemos no que consiste esta forma literária na qual Peirce se
inspirou, uma vez que a própria opção de apresentar seus argumentos contrários à
epistemologia cartesiana dentro de uma forma típica do período medieval faz parte da
estratégia argumentativa peirceana. No seguinte trecho, retirado do livro "Filosofia
Medieval: uma introdução histórica e filosófica", John Marenbon explica o que se
101
entendia por quaestio e nos fornece um exemplo de filosofia produzida dentro desta
forma literária.
Numa quaestio, coloca-se um problema para que ele seja respondido com um
"sim" ou "não". Por exemplo, no seu De veritae, uma disputa escrita, Tomás
de Aquino questiona (q.1, a.5) se "alguma verdade além da primeira verdade
é eterna" (a "primeira verdade" obviamente é Deus). O autor, então, apresenta
(1) os argumentos para a resposta que ele não quer propor, precedida pela
frase Et videtur quod sic/non ("E parece que é assim/que não é assim").
Neste caso, Tomás de Aquino , pretende argumentar que nenhuma verdade é
eterna exceto na medida em que está na mente de Deus e é idêntica a Deus.
Assim, ele começa com o caso contrário a esta posição dizendo Et videtur
quod sic. Tomás de Aquino, então, passa a citar nada menos do que vinte e
dois argumentos para mostrar que as verdades distintas de Deus, a primeira
verdade, são eternas. Muitas quaestiones teriam menos destes argumentos
(em sua Summa, Tomás de Aquino utiliza quatro ou cinco), mas, como neste
exemplo, tais argumentos iriam misturar referências à autoridade - Tomás de
Aquino cita Aristóteles, Agostinho e Anselmo - com argumentos baseados
em puro raciocínio. (...) A próxima seção (2) de uma quaestio é precedida
pela frase sed contra ("mas, contra [isso]") e, então, apresenta-se um ou dois
breves argumentos a favor da posição que o autor deseja tomar. Neste caso,
Tomás de Aquino oferece dois curtos argumentos racionais, mas o mais
esperado é que [nestas situações] seja apresentada uma afirmação baseada em
autoridade (por exemplo, no Summa Theologiae - I, q. 2,a.3 - (...), o sed
contra consiste simplesmente na asserção de Deus no Exodus iii,14; Ego
sum qui sum [eu sou quem sou]). Então, depois disso, se segue (3) o corpus
da quaestio, no qual o autor estabelece sua posição a respeito do problema
junto com explanações de apoio e argumentos necessários para justificar tal
posicionamento. Finalmente, o autor (4) apresenta suas repostas para cada um
dos argumentos contrários ao posicionamento por ele preferido com o qual a
quaestio começou.
(Marebon, 2007, p. 216)
Como veremos nas análises de cada uma das questões das quais trata Peirce no QFCM,
nem sempre este "roteiro" (acima apresentado) é seguido. O que Peirce de fato segue à
risca no QFCM é o modelo de argumentação multiforme observado neste exemplo
retirado da obra de Tomás de Aquino. Uma das principiais críticas de Peirce dirigidas
contra o que chama de "espírito cartesiano" é o fato de Descartes, por meio de seu
projeto fundacionalista (exposto, sobretudo, nas "Meditações" e no "Discurso do
Método" cf. primeira seção do segundo capítulo), ter promovido uma substituição da
argumentação multiforme da Idade Média por uma linha única de inferência que parte
de um ponto que se supõe indubitável (cf. CP 5.264 [1868]). Portanto, a escolha de uma
forma literária que permite uma argumentação multiforme é parte da estratégia
argumentativa que pretende desmontar uma filosofia projetada para encontrar fundações
completamente seguras para edificar todo o conhecimento humano. Afinal, é a
suposição de Descartes de que sua filosofia foi efetivamente capaz de isolar um ponto
fundacional completamente seguro (o cogito) que o permite confiar numa linha única e
infalível de argumentação. No QFCM, o ponto de partida da crítica peirceana é
justamente esta suposição cartesiana. Esta capacidade humana de distinguir uma
102
intuição e, em particular, encontrar a intuição fundamental ("cogito, ergo sum") é
reivindicada por Descartes para o homem. É justamente esta capacidade que é
questionada por Peirce na abertura do QFCM.
A seguir apresentamos as sete questões do QFCM e passamos a fazer algumas
observações com relação à estrutura geral deste texto:
Questão 1: Se pela simples contemplação de uma cognição, independente de
qualquer conhecimento anterior e independente de qualquer raciocínio por signos,
somos capazes de julgar corretamente se uma cognição foi determinada por uma
cognição anterior ou se tal cognição se refere imediatamente ao seu objeto70
.
Questão 2: Se temos uma autoconsciência intuitiva71
.
Questão 3: Se temos uma capacidade intuitiva de distinguir entre os elementos
subjetivos dos diferentes tipos de cognição72
.
Questão 4: Se temos alguma capacidade de introspecção ou se nosso
conhecimento do mundo interior é derivado de observação de fatos externos73
.
Questão 5: Se somos capazes de pensar sem signos74
.
Questão 6: Se um signo pode ter qualquer significado, se por sua definição ele for
um signo de algo absolutamente incognoscível75
.
Questão 7: Se há alguma cognição que não seja determinada por uma cognição
anterior76
.
No caso do QFCM, praticamente todas as questões têm a seguinte estrutura. Começa-se
por apresentar a questão (o que é feito no primeiro parágrafo) simplesmente
enunciando-a. O passo seguinte é apresentação de uma definição para o conceito-chave
da questão. Por exemplo, na primeira, segunda e quarta questões, os conceitos-chave
são "intuição", "autoconsciência" e "introspecção". Estas definições geralmente são
70
No original: Question 1: Whether by the simple contemplation of a cognition, independently of any
previous knowledge and without reasoning from signs, we are enabled rightly to judge whether that
cognition has been determined by a previous cognition or whether it refers immediately to its object. 71
No original: Question 2: Whether we have an intuitive self-consciousness. 72
No original: Question 3: Whether we have an intuitive power of distinguishing between the subjective
elements of different kinds of cognitions. 73
No original: Question 4: Whether we have any power of introspection, or whether our whole
knowledge of the internal world is derived from the observation of external facts. 74
No original: Question 5: Whether we can think without signs. 75
No original: Question 6: Whether a sign can have any meaning, if by its definition it is the sign of
something absolutely incognizable. 76
No original: Question 7: Whether there is any cognition not determined by a previous cognition.
103
oferecidas ainda no primeiro parágrafo (logo depois da enunciação da questão
propriamente dita). Então, o terceiro passo é (quase sempre) a apresentação de um
argumento para desmontar a tese que considera auto-evidente a posse da faculdade que
é objeto da questão. Descartada a auto-evidência, deve-se buscar alguma evidência,
algum argumento que sustente esta existência ou posse e, por este motivo, o passo
seguinte é a exposição dos argumentos favoráveis à existência ou posse da faculdade
que está sob questionamento. Como vimos na estrutura típica da quaestio medieval, a
primeira posição apresentada não é a resposta que o autor (no caso, Peirce) pretende dar
para questão. Então, depois de contra-argumentar a resposta positiva à questão, Peirce
expõe o seu posicionamento, que é uma resposta negativa à questão, e passa argumentar
para sustentá-la. Das sete questões, talvez, a única que escape à regra seja a quinta. Mas
isto pode ser explicado pelo "local" que ela ocupa no argumento geral do QFCM. A
quinta questão é uma espécie de centro nervoso do argumento do QFCM. Todas as
linhas argumentativas das quatro primeiras questões convergem para a seguinte tese
enunciada na quinta questão: "todo pensamento é pensamento em signos" (CP 5.253
[1868]). Esta tese já foi, por nós, denominada ainda nas primeiras linhas deste texto, de
tese central da semiótica.
Passemos então para as análises de cada uma das questões levantadas por Peirce no
QFCM. A abreviação que será utilizada para designar cada uma dessas questões será a
letra (maiúscula) "Q" seguida do número da pergunta. Por exemplo, "Q3" é a abreviação
de “terceira questão do QFCM”.
104
4.1 Análise (da primeira parte) da Q1: Sobre a capacidade
intuitiva de distinguir intuições
Questão 1: Se pela simples contemplação de uma cognição,
independente de qualquer conhecimento anterior e
independente de qualquer raciocínio por signos, somos capazes
de julgar corretamente se uma cognição foi determinada por
uma cognição anterior ou se tal cognição se refere
imediatamente ao seu objeto.
Na primeira questão, Peirce se pergunta acerca da capacidade do homem de distinguir
entre uma cognição intuitiva e uma cognição não-intuitiva, i.e., derivada. De forma mais
exata, a pergunta é se tal capacidade de distinção é ela mesma intuitiva ou não. O
problema levantado nesta primeira questão não é se temos ou não intuição, mas se,
diante de uma cognição qualquer, temos ou não uma capacidade direta, certeira de
"julgar se estamos diante de uma cognição intuitiva". Outra forma de apresentar esta
primeira questão é a seguinte: diante de uma cognição específica, teríamos ou não a
capacidade de, a partir de uma mera contemplação dela, distinguir se a cognição é
produto de uma intuição ou de uma inferência? Já no primeiro parágrafo da Q1, define-
se o que se entende por intuição.
Ao longo deste artigo, o termo intuição será entendido como significando
uma cognição não determinada por uma cognição anterior do mesmo objeto
e, assim, sendo determinado por algo fora da consciência. Permita-me
solicitar ao leitor que note o seguinte. Intuição será aqui entendido como algo
quase idêntico a uma "premissa que não é (ela mesma) uma conclusão"; a
única diferença é que premissas e conclusões são julgamentos, enquanto uma
intuição pode, na medida em que sua definição permite, ser qualquer tipo de
cognição. Porém, exatamente como uma conclusão (boa ou má) é, na mente
daquele que raciocina, determinada por suas premissas, então as cognições
que não são julgamentos podem ser determinadas por cognições anteriores.
Uma cognição que não for assim determinada e for determinada diretamente
por um objeto transcendental deve ser chamada de intuição.
(CP 5.213 [1868])77
Então, pela definição apresentada acima, o termo intuição pode ser entendido como um
conceito que é "complementar" ao conceito de cognição derivada (inferência) se os
77
No original: Throughout this paper, the term intuition will be taken as signifying a cognition not
determined by a previous cognition of the same object, and therefore so determined by something out of
the consciousness.^P1 Let me request the reader to note this. Intuition here will be nearly the same as
"premiss not itself a conclusion"; the only difference being that premisses and conclusions are judgments,
whereas an intuition may, as far as its definition states, be any kind of cognition whatever. But just as a
conclusion (good or bad) is determined in the mind of the reasoner by its premiss, so cognitions not
judgments may be determined by previous cognitions; and a cognition not so determined, and therefore
determined directly by the transcendental object, is to be termed an intuition.
105
considerarmos como tipos (subconjuntos) de cognições. Declarar que estes dois
conceitos designam conjuntos complementares significa que não há intersecção entre
eles, ou seja, não há cognições que sejam ao mesmo tempo intuitivas e derivadas.
Ilustremos esta situação. Suponha a existência de um conjunto C que contenha todas as
cognições. Existem diversas maneiras de classificarmos cognições, o que quer dizer que
existem diversas maneiras de dividirmos este conjunto C em subconjuntos, i.e., em tipos
de cognição. A divisão com a qual estaremos preocupados é aquela que separa o
conjunto C num primeiro subconjunto onde estariam todas as cognições intuitivas e
num segundo subconjunto onde estariam todas as cognições derivadas.
O importante é notar que esta classificação das cognições entre aquelas que são
intuitivas e as que são derivadas acaba por "particionar" o conjunto C. Na ilustração a
seguir, dividimos o conjunto de todas as cognições (C) entre o subconjunto D de todas
as cognições que são determinadas por outra cognição do mesmo objeto (i.e., as
cognições derivadas) e o subconjunto I de todas as cognições que não são determinadas
por outra cognição do mesmo objeto (i.e., as cognições intuitivas). Assim, podemos
facilmente notar que não há intersecção alguma entre o conjunto I e o conjunto D.
Como veremos, a existência de algum elemento neste conjunto I é uma hipótese, ou
seja, é apenas uma suposição que exista alguma cognição que não seja determinada por
nenhuma outra cognição anterior. Uma pergunta que atravessa todo o QFCM é se, para
explicar as capacidades cognitivas humanas, seria mesmo necessário recorrer a esta
hipótese. Antes de passarmos para as análises que Peirce elaborou na Q1 sobre o
argumento favorável e contrário à existência de tal capacidade, devemos abrir um par de
parênteses para fazer um último comentário sobre a definição do conceito-chave da Q1:
intuição. Acreditamos (junto com Hausman [1993, p.61] e Prendergast [1977, p. 289])
que Peirce tenha operado uma distinção entre dois tipos de intuição.
A definição (para o termo "intuição") apresentada no trecho acima transcrito é
diferenciada por Peirce de uma segunda definição de acordo com a qual intuição seria o
"conhecimento do presente como presente". Tal distinção é feita numa nota de rodapé
(CP 5.213 [1868]) sobre a origem histórica do termo. De acordo com Peirce, a palavra
106
intuitus ocorre como termo técnico pela primeira vez na obra Monologium (1076) de
Santo Anselmo. Nesta obra, Anselmo opõe o conhecimento que se pode obter acerca
das coisas finitas, o que seria por ele denominado de intuição, ao conhecimento que se
pode obter de Deus, o que seria denominado de speculation. Ao longo da Idade Média,
continua Peirce, o termo "cognição intuitiva" tinha dois significados principais
referentes a dois "tipos" de intuição: no primeiro deles, a intuição é entendida como
uma cognição não-determinada por nenhuma cognição anterior; no segundo tipo, a
intuição é entendida como o conhecimento do presente enquanto presente (o que, para
Peirce, está acordo com a definição original do termo dada por Anselmo). Ao longo do
QFCM, Peirce se dedica a construir uma teoria da cognição que esteja livre apenas do
primeiro tipo de intuição acima referido. Os argumentos desenvolvidos por Peirce neste
artigo se preocupam em rejeitar o conceito de intuição somente neste sentido de
cognição não-determinada por cognição anterior. O segundo tipo de intuição
definitivamente não é o alvo das críticas do filósofo no QFCM. Segundo interpretação
de Hausman (1993, p.61), o conceito de intuição deste segundo tipo teria sido
mencionado no corpo do texto do QFCM, mas não teria sido rejeitado por Peirce.
Vejamos o trecho em que Hausman desenvolve sua análise a respeito deste ponto.
Numa nota de rodapé, ele [Peirce] distingue dois tipos de intuição. Um tipo
de intuição ocorre quando temos conhecimento do presente como presente.
Este tipo é mencionado tanto na nota como no corpo do texto; e não é
rejeitado (5.213, nota 1, e 5.214). Se Peirce tivesse refletido a respeito do que
identifica neste ponto, acredito que o termo conhecimento, que é utilizado
para identificar a intuição do presente como presente, teria sido substituído
pela expressão consciência de. Acredito que é este o seu significado; caso
contrário, uma intuição consistindo do conhecimento do presente como
presente seria uma inferência.
(Hausman, 1993, p.61)
Em seu texto Hausman apenas faz uma referência genérica ao parágrafo (CP 5.214
[1868]) em que Peirce teria mencionado este segundo tipo de intuição. É muito provável
que o comentador esteja se referindo à seguinte passagem: "Toda cognição, como algo
presente, é, claro, uma intuição de si mesma (CP 5.214 [1868])78
.
Devemos nos deter neste comentário de Hausman, pois este ponto é muito importante
para as análises que serão (por nós) desenvolvidas. Caso interpretássemos a expressão
"conhecimento do presente como presente" como uma espécie de acesso ao "conteúdo"
ou ao significado do que está sendo pensado no momento presente, então este
conhecimento só poderia ocorrer por inferência e, por este motivo, não poderia ser uma
intuição. Se esta expressão for assim interpretada, seriamos levados a uma
inconsistência grave na teoria da cognição desenvolvida por Peirce no QFCM. Como
veremos, uma das teses centrais do QFCM é que não podemos ter conhecimento de
nada (nem mesmo de nossos pensamentos) de forma direta, intuitiva (ou, ao menos, não
há evidência nenhuma que sustente a ideia de que temos tal capacidade de conhecer por
78
No original: "Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself".
107
intuição). Todo conhecimento que obtemos, tudo que afirmamos conhecer pode ser
explicado como um produto de inferências e, como a capacidade de produzir inferências
é uma faculdade cuja existência é dada como certa (i.e., não se duvida que o ser humano
a tenha) e (de acordo com Peirce) esta capacidade é suficiente para explicar todas as
capacidades cognitivas humanas, então não haveria necessidade, para explicá-las, de se
recorrer a uma faculdade (a intuição) cuja existência não é dada como certa.
Analisaremos pela próxima centena de páginas toda a argumentação peirceana dirigida
contra a hipótese de que tenhamos faculdades cognitivas diretas (i.e., que dependam de
intuições) e favorável à hipótese de que apenas tenhamos faculdades cognitivas
indiretas (i.e., que dependam de inferências). O que importa notar neste ponto é que, por
ser sempre inferencial, todo o nosso conhecimento, de acordo com o argumento geral de
Peirce no QFCM, é de natureza hipotética. Se é assim então como Peirce admite a
existência de algum conhecimento intuitivo (e, por isso, não-hipotético) já no segundo
parágrafo (CP 5.214 [1868]) de um artigo dedicado a construir uma teoria da cognição
que não recorra ao conceito de intuição? Ou esta teoria peirceana é inconsistente ou este
conhecimento intuitivo (de uma cognição como algo presente) admitido deve ser
entendido como pertencente a um segundo tipo de intuição. Por enquanto, vamos acatar
esta sugestão de Hausman e supor que a intuição da qual trata Peirce no trecho referido
é uma intuição de segundo tipo até que possamos analisar de forma mais detalhada este
ponto. Na verdade, este problema só será tratado de forma direta ao final de nossas
análises da quarta questão, pois, a esta altura, já teremos condições plenas de enxergar
as teses que se chocam com esta admissão de intuição dentro da teoria da cognição
desenvolvida na QFCM. Esta questão é tão relevante para as análises que pretendemos
elaborar que devemos batizá-la com um nome: problema do segundo tipo de intuição. A
seguir, apenas apresentaremos alguns aspectos gerais deste problema, uma vez que esta
apresentação pode esclarecer as afirmações presentes neste segundo parágrafo do
QFCM. Esta é uma imperdível oportunidade de explicitação deste parágrafo (CP 5.214
[1868]) que pode, aliás, ser considerado um dos mais obscuros em todo o artigo.
Como esta intuição cuja existência foi admitida pertenceria a um segundo tipo, a
sugestão de Hausman é que o termo "conhecimento" da expressão "conhecimento do
presente como presente" seja substituído por "consciência". Assim, esta cognição que é
uma intuição de si mesma seria "a consciência do presente como presente". Entretanto,
se quiséssemos manter inalteradas as palavras de Peirce neste trecho do QFCM, o termo
"conhecimento" poderia ser interpretado como sinônimo de "identificação", ou seja, a
expressão "conhecimento do presente como presente" significaria "identificação de uma
cognição como algo presente" (o que seria o mesmo de se ter consciência de uma
cognição como algo presente à mente [que, afinal, é a sugestão de Hausman]). Neste
caso, quando Peirce afirma que "toda cognição, como algo presente, é, claro, uma
intuição de si mesma (CP 5.214 [1868])" entenderíamos que a identificação do que
estamos pensando em determinado momento é imediata. Seria este, então, o único tipo
de intuição admitida no QFCM. Este seria, então, o único tipo de "conhecimento" direto
admitido dentro da teoria da cognição de Peirce (apresentada no QFCM).
108
Embora Hausman dê a entender que o único trecho do QFCM em que Peirce admite
haver uma possibilidade de "conhecimento" direto é este segundo parágrafo da Q1 (CP
5.214 [1868]), há também uma passagem na Q3 (CP 5.238 [1868]) em que Peirce
parece tratar deste mesmo tipo de "conhecimento". Nesta passagem da Q3, o filósofo
norte-americano apresenta uma espécie de anatomia da cognição. De acordo com esta
"anatomia", toda cognição tem duas partes elementares: a chamada parte objetiva (ou
elemento objetivo) é aquilo a que a cognição se refere, é o que a cognição representa, é
seu objeto; a chamada parte subjetiva (ou elemento subjetivo) é algum modo (ativo ou
passivo) pelo qual o ego representa o objeto (a parte objetiva) da cognição. Esta divisão
da cognição é introduzida apenas na Q3 para estabelecer os termos da seguinte
pergunta: mesmo admitido que a parte objetiva de uma cognição seja conhecida
diretamente, poderia se afirmar o mesmo da outra parte, ou seja, a parte subjetiva seria
também conhecida diretamente? Esta pergunta é a que está por trás da terceira questão
do QFCM. A passagem em que esta divisão da cognição é apresentada é a seguinte: "a
cognição é em si mesma uma intuição de seu elemento objetivo, que pode ser, então,
chamado de objeto imediato. O elemento subjetivo não é necessariamente conhecido
imediatamente (...)" (CP 5.238 [1868])79
.
Notemos que, neste pequeno trecho da Q3, Peirce já considera a parte objetiva da
cognição como algo que se conheça imediatamente. E esta afirmação, neste trecho, está,
portanto, fora de discussão. O que é efetivamente discutido na Q3 é se a outra parte da
cognição é também conhecida desta forma. Se a esta altura do QFCM, já se admite (sem
a necessidade de se argumentar ou explicar) a existência de um "conhecimento" direto
(i.e., de um caso de intuição), então supomos que, neste trecho específico (CP 5.238
[1868]) transcrito acima Peirce esteja novamente se referindo àquele segundo tipo de
intuição definido numa nota-de-rodapé ainda no segundo parágrafo da primeira questão
do QFCM. Quando, na Q3, Peirce afirma que uma "cognição é em si mesma uma
intuição de seu elemento objetivo", ele está retomando, com outras palavras, a
proposição de que "toda cognição, como algo presente, é uma intuição de si mesma"
(CP 5.214 [1868]).
Ao final da Q4, quando apresentarmos nossa proposta de resolução (na verdade,
dissolução) deste problema do segundo tipo de intuição, explicaremos de forma muito
mais detalhada esta interpretação que conecta o segundo parágrafo da Q1 com o
primeiro parágrafo da Q3. Por enquanto, podemos apenas fazer algumas observações
para justificar esta conexão. Esta interpretação que fazemos é baseada na leitura e
análise do resto do parágrafo da Q1 em que Peirce admite pela primeira vez haver um
"conhecimento" direto, imediato ou intuitivo (CP 5.214 [1868]). Se prestarmos atenção
nos termos que Peirce utiliza neste mesmo parágrafo em que afirma que "toda cognição,
como algo presente, é uma intuição de si mesma" (CP 5.214 [1868]), notaremos que ele
está pressupondo aquela divisão (que chamamos de "anatomia") de uma cognição.
Integralmente, o parágrafo em questão é o seguinte:
79
No original: "The cognition itself is an intuition of its objective element, which may therefore be called,
also, the immediate object. The subjective element is not necessarily immediately known (...)".
109
Uma coisa é ter uma intuição e outra é saber intuitivamente que se está diante
de uma intuição, e a questão é se estas duas coisas, distinguíveis em
pensamento, são de fato invariavelmente conectadas de forma a fazer com
que sempre possamos distinguir intuitivamente entre uma intuição e uma
cognição determinada por outra. Toda cognição, como algo presente, é
obviamente uma intuição de si mesma.
Porém, a determinação de uma cognição por outra cognição ou por um objeto
transcendental não é, ao menos na medida em que parece óbvio à primeira
vista, uma parte do conteúdo imediato daquela cognição, embora pareça que
ela [a determinação de uma cognição por outra cognição ou por um objeto
transcendental] seja um elemento da ação e da paixão do ego transcendental
e que não esteja, talvez, na consciência imediatamente; e ainda esta ação ou
paixão transcendental pode invariavelmente determinar uma cognição de si
mesma, então, de fato, a determinação ou não-determinação da cognição por
outra cognição pode ser parte da cognição. Neste caso, devo dizer que
teríamos uma capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de outra
cognição.
(CP 5.214 [1868])80
Notemos que, por exemplo, ao fazer referência ao que denominou na Q1 de "conteúdo
imediato" (CP 5.214 [1868]) de uma cognição, é muito provável que Peirce esteja se
referindo ao que chama, na Q3, de parte objetiva ou "elemento objetivo" (CP 5.238
[1868]) de uma cognição. Outro exemplo é o trecho em que afirma que a determinação
de uma cognição (por outra cognição ou por um objeto transcendental) "parece ser um
elemento da ação e da paixão do ego transcendental"(CP 5.214 [1868]). Isto que na Q1
Peirce denomina de "elemento da ação e da paixão do ego transcendental" é o que é, por
ele mesmo, denominado, na Q3, de parte subjetiva ou "elemento subjetivo" (CP 5.238
[1868]) de uma cognição. O problema é que neste trecho da Q1, Peirce se refere a
conceitos que só serão definidos e aclarados na Q3. Assim, como lida com matéria que
ainda será tratada em pormenor noutro ponto do QFCM, algumas questões deste trecho
são contemporizadas com uso de expressões que exprimem incerteza: "ao menos na
medida em que parece óbvio à primeira vista"81
, "talvez" e o verbo "parecer"82
. Isto faz
80
No original: "Now, it is plainly one thing to have an intuition and another to know intuitively that it is
an intuition, and the question is whether these two things, distinguishable in thought, are, in fact,
invariably connected, so that we can always intuitively distinguish between an intuition and a cognition
determined by another. Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself. But the
determination of a cognition by another cognition or by a transcendental object is not, at least so far as
appears obviously at first, a part of the immediate content of that cognition, although it would appear to
be an element of the action or passion of the transcendental ego, which is not, perhaps, in consciousness
immediately; and yet this transcendental action or passion may invariably determine a cognition of itself,
so that, in fact, the determination or non-determination of the cognition by another may be a part of the
cognition. In this case, I should say that we had an intuitive power of distinguishing an intuition from
another cognition". 81
O trecho em que aparece esta expressão é o seguinte: "Porém, a determinação de uma cognição por
outra cognição ou por um objeto transcendental não é, ao menos na medida em que parece óbvio à
primeira vista, uma parte do conteúdo imediato daquela cognição (...)"(CP 5.214 [1868]).
No original: "But the determination of a cognition by another cognition or by a transcendental object is
not, at least so far as appears obviously at first, a part of the immediate content of that cognition" 82
O trecho em que aparece a expressão "talvez" e também o verbo "parecer" é o seguinte: "Embora
pareça que ela [a determinação de uma cognição por outra cognição ou por um objeto transcendental]
110
deste parágrafo acima transcrito uma das passagens mais difíceis para se ler e interpretar
em todo o QFCM, principalmente o trecho em que Peirce admite haver um tipo de
"conhecimento" que é direto, intuitivo. Nossa interpretação é que tanto este trecho
específico como aquele outro trecho da Q3 (CP 5.238 [1868]) acima referido tratam do
mesmo tipo de "conhecimento", do mesmo tipo de intuição. Este tipo de intuição não
pode ser confundido com aquele primeiro tipo que Peirce define no primeiro parágrafo
da Q1 (também acima transcrito) e que constitui o alvo de suas críticas ao longo de todo
o QFCM. Vejamos a argumentação encaminhada ao final deste trecho da Q1. Feitas
estas observações, voltemos às análises.
Comecemos pela análise justamente deste parágrafo (CP 5.214 [1868]) que
transcrevemos acima. No fundo, o problema com qual Peirce lida neste parágrafo é a
distinção entre ter uma intuição e saber intuitivamente que se está diante de uma
intuição. A pergunta é se temos ou não a capacidade de (sempre) poder distinguir
intuitivamente entre uma intuição e uma cognição determinada por outra (cognição).
Neste trecho, Peirce admite que há uma "parte" da cognição (i.e., uma espécie de
"conteúdo imediato") que é apresentada na própria cognição de forma imediata, direta.
Neste trecho, Peirce parece encarar uma cognição (enquanto algo que está presente à
mente) como uma intuição de seu próprio conteúdo (imediato). Portanto, o acesso a este
conteúdo seria imediato.
Tudo que for parte do conteúdo imediato de uma cognição é acessado de forma direta,
intuitiva. Entretanto, de acordo com a exposição do autor, a determinação de uma
cognição não parece poder ser entendida como algo que pertença ao conteúdo imediato
de tal cognição. Ou seja, o fato de uma cognição específica ter sido determinada por
outra cognição ou por um objeto transcendental (i.e. um objeto externo à consciência)
não parece poder ser conhecido diretamente junto com a cognição. Como este fato (a
determinação da cognição por algo) não faria parte do conteúdo imediato da cognição,
então não poderíamos saber de tal fato diretamente. Assim, só nos restaria a
possibilidade de vir a conhecê-lo por inferência. Entretanto, Peirce considera outra
possibilidade. Pode ser que esta determinação da cognição (por outra cognição ou por
um objeto externo) fosse um elemento da parte subjetiva da cognição83
. Se podemos
acessar de forma direta, intuitiva esta parte subjetiva de uma cognição (como podemos
fazer com a parte objetiva) é um ponto que será discutido apenas na Q3. Por este
motivo, neste trecho da Q1 transcrito acima, logo após ter levantado a hipótese de que a
determinação da cognição (por outra cognição ou por um objeto externo) seria um
elemento da parte subjetiva da cognição, Peirce afirma que "talvez" esta parte da
cognição não esteja imediatamente presente à consciência, ou seja, isto significaria que,
neste caso, apenas poderíamos ter acesso a esta parte subjetiva da cognição a partir de
seja um elemento da ação e da paixão do ego transcendental e que não esteja, talvez, na consciência
imediatamente"(CP 5.214 [1868]).
No original: "although it would appear to be an element of the action or passion of the transcendental ego,
which is not, perhaps, in consciousness immediately". 83
No texto, Peirce não utiliza a expressão "parte subjetiva da cognição", que só será definida, aliás, na
Q3. Neste trecho da Q1, Peirce afirma que talvez a determinação da cognição seja um elemento da ação
ou paixão do ego transcendental.
111
uma inferência (e nunca de forma direta). Entretanto, como não foi ainda estabelecido
como é o acesso a tal parte subjetiva de uma cognição (se é direto [intuitivo] ou indireto
[inferencial]), o que Peirce parece tentar explorar a seguir neste trecho da Q1 é
justamente o que ocorreria caso tivéssemos um acesso direto a tal parte da cognição. Se
este acesso fosse direto, então poderíamos saber de forma direta, intuitiva se uma
cognição é ou não determinada por outra (cognição). O raciocínio de Peirce parece ter
sido o seguinte: suponha que a determinação ou a não-determinação de uma cognição
(por outra cognição) seja um elemento da parte subjetiva desta cognição. Então,
considere que esta parte subjetiva possa sempre determinar uma cognição de si mesma a
ponto de fazer com que, de fato, a determinação ou a não-determinação da cognição
(por outra cognição) possa ser uma parte dela, i.e, parte da cognição.
O raciocínio neste trecho é o seguinte: se (o conhecimento sobre) a determinação ou
não-determinação de uma cognição X (por uma outra cognição) é um elemento da parte
subjetiva desta cognição X e temos acesso direto a todos os elementos da parte subjetiva
de uma cognição (o que será chamado a seguir de suposição_2), então, neste caso,
teríamos acesso direto ao conhecimento sobre a determinação ou não-determinação de
uma cognição X (por uma outra cognição).
Argumento a respeito o conhecimento direto sobre a determinação ou não-
determinação de uma cognição
Premissa1 (suposição_1): (o conhecimento sobre) A determinação ou não-
determinação de uma cognição X (por uma outra cognição) é um elemento da
parte subjetiva desta cognição X.
Premissa2 (suposição_2): Se algo é um elemento da parte subjetiva de uma
cognição, então temos acesso direto a este elemento.
Conclusão: Temos acesso direto a (o conhecimento sobre) a determinação ou não-
determinação de uma cognição X (por uma outra cognição).
Peirce não volta para argumentar contra esta possibilidade de haver uma capacidade
intuitiva de se saber se uma cognição é determinada por outra ou não por um motivo
muito simples. Esta possibilidade foi admitida dentro de um cenário hipotético. Neste
cenário hipotético, supomos que teríamos acesso direto a todos os elementos da parte
subjetiva de uma cognição (que é o que denominamos acima de suposição_2).
Entretanto, esta suposição é descartada graças à argumentação desenvolvida durante a
terceira questão. Como a possibilidade apresentada acima de haver tal capacidade
intuitiva (de se saber se uma cognição é determinada por outra) deve ser descartada,
Peirce no terceiro parágrafo da Q1 (CP 5.215 [1868]) passa a considerar outra evidência
que geralmente é considerada favorável à suposição de que exista tal capacidade
intuitiva.
112
Antes de seguirmos com as análises, cabe fazer uma observação de caráter geral. Deve-
se notar, que o primeiro grande movimento de Peirce neste artigo (QFCM) é
problematizar aquele ponto que não é encarado como problema no (que entende por)
cartesianismo, uma vez que é pressuposto: a capacidade do homem de distinguir entre
uma cognição intuitiva e uma cognição não-intuitiva, i.e., derivada. É por este motivo
que, ao longo de toda Q1, Peirce vai argumentar que não há evidência alguma de que
temos a capacidade sob questionamento. Para Peirce, a única "evidência" seria que nós
sentimos que temos esta capacidade. Devemos dar detalhada atenção a esta solitária
evidência (de que temos tal capacidade), pois, como veremos, todas as outras evidências
apresentadas ao longo desta primeira questão tratada no artigo de Peirce corroboram
com a tese contrária (a saber, de que não temos a tal capacidade colocada em questão).
A ideia de que "temos a capacidade (sob questionamento), porque sentimos que a
temos" deve ser considerada o argumento favorável à capacidade (sob questionamento)
dentro da Q1. A pergunta aqui é se temos ou não temos a capacidade intuitiva de fazer
distinção entre cognições intuitivas e cognições derivadas. Há de se enfatizar novamente
que nesta primeira questão, Peirce não está tentando estabelecer de forma direta a tese
de que não há intuições. Em linha alguma deste trecho do texto, o filósofo afirma que
não há intuição. O que é posto em dúvida é (e este é o problema de fundo) se temos ou
não a capacidade intuitiva de distinguir uma cognição intuitiva de uma que não o seja.
Vejamos, então, como Peirce argumenta contra a consideração deste sentimento como
uma evidência favorável à hipótese de que temos tal capacidade.
Não há evidência que tenhamos tal faculdade, exceto que sentimos que
parecemos tê-la. Porém, o peso deste testemunho depende inteiramente da
suposição de que temos a capacidade de distinguir neste sentimento se ele [o
sentimento] é resultado de educação, de associações antigas, etc. ou se ele é
uma cognição intuitiva; assim, em outras palavras, ele depende da
pressuposição justamente daquele ponto para o qual ele pretende servir de
testemunha. Este sentimento é infalível? E este julgamento que o considera
infalível e assim por diante, ad infinitum? Ao supor que um homem pudesse
se trancar dentro de uma crença desta, ele estaria, claro, "impermeável" com
relação a qualquer verdade, qualquer "prova por evidência".
(CP 5.214 [1868])84
De acordo com esta evidência, diante de alguma cognição, haveria um sentimento que
nos "diria" se esta cognição é intuitiva ou derivada85
. Porém, o que tornaria este
84
No original: There is no evidence that we have this faculty, except that we seem to feel that we have it.
But the weight of that testimony depends entirely on our being supposed to have the power of
distinguishing in this feeling whether the feeling be the result of education, old associations, etc., or
whether it is an intuitive cognition; or, in other words, it depends on presupposing the very matter
testified to. Is this feeling infallible? And is this judgment concerning it infallible, and so on, ad
infinitum? Supposing that a man really could shut himself up in such a faith, he would be, of course,
impervious to the truth, "evidence-proof."
85 Além dessa metáfora sonora relativa à "voz" que nos "diria" se uma cognição específica é ou não uma
intuição, pode-se fazer referência a uma metáfora visual, que, aliás, é muito mais recorrente na obra dos
filósofos que estabeleceram a intuição como elemento de fundação ou, ao menos, como ponto de partida
para o conhecimento: a metáfora da intuição como uma luz. Descartes, em suas "Meditações", trata, por
113
sentimento confiável em sua função de julgar se uma cognição específica é ou não
intuitiva? Por exemplo, imagine que estejamos diante de uma cognição c e que um certo
sentimento s nos garanta que c é uma cognição intuitiva. Há dois caminhos possíveis
que chamaremos respectivamente de caso I e caso II: ou este sentimento (de que c é
uma intuição) é (em si mesmo) uma intuição ou este sentimento (de que c é uma
intuição) é derivado (de cognições anteriores). Por exemplo, para este caso II,
imaginemos uma situação em que o sentimento s tenha sido resultante de um processo
de aprendizagem ou de associações anteriores. Nesta situação, o grau de confiança que
temos em s depende do grau de confiança que temos em tal processo ou conjunto de
associações. Não é difícil notar que, como, neste caso II, o sentimento s (que nos diz
que c é uma cognição intuitiva) é derivado de fatores externos (o processo de
aprendizagem e as associações anteriores), então, além de nossa capacidade de
distinguir intuições não ser intuitiva (sendo, ao contrário, derivada, inferida, indireta),
tal capacidade não poderia ser julgada infalível e seus resultados não poderiam ser, de
forma alguma, indubitáveis. Como a análise deste caso II resulta obviamente numa
resposta negativa à pergunta Q1, analisemos o outro caminho que nos resta, o caso I. O
outro caminho consiste em afirmar que este sentimento s (de que c é uma intuição) é
(em si mesmo) uma intuição. De forma mais simples, no caso I, supomos que s é
intuitivo. Porém, se somos capazes de fazer este julgamento (de que s é intuitivo) de
forma direta (i.e., sem derivá-lo de nada mais) é porque já pressupomos que temos a
capacidade intuitiva de distinguir entre uma cognição intuitiva e uma cognição derivada.
O problema é que, neste caso I, somos obrigados a pressupor o que deveríamos provar.
O caso I, que seria o argumento favorável à existência da faculdade intuitiva de
distinguir intuições, é, na verdade, uma falácia denominada petitio principii (ou "petição
de princípio"). Vejamos este ponto de forma detalhada.
O argumento de Peirce é que há uma circularidade incontornável quando estabelecemos
nossa suposta capacidade intuitiva de distinguir intuições num sentimento
(supostamente) de caráter intuitivo. Tal circularidade pode ser apresentada da seguinte
forma: para apresentar um sentimento como prova de que somos capazes de identificar
algo como uma intuição, já temos que identificar ou classificar este sentimento como
uma intuição, ou seja, para provar que somos capazes de distinguir intuitivamente
intuições, já temos que ser capazes de distinguir intuitivamente intuições.
Como nos dois (únicos) casos analisados, a resposta é negativa, a conclusão é que não
temos a capacidade intuitiva de distinguir entre intuições e não-intuições. Mas, antes de
voltarmos nossa atenção para esta conclusão negativa (que é a tese que Peirce vai
"levar" desta Q1), notemos que todo este raciocínio acerca da capacidade intuitiva de
distinguir intuições pode ser visto sob diversos ângulos e isto nos auxilia a reconstruir a
estrutura lógica e o contexto desta teoria apresentada na QFCM. Podemos, por exemplo,
vezes, a intuição como uma espécie de luz natural (cf. o trecho que citamos na primeira seção do capítulo
3 desta tese AT VII 40-1; CSM II 28; cf. DESCARTES, 2004 [1641], p. 81-2). Locke, por exemplo, em
seu "Ensaio sobre o entendimento humano" trata a intuição como "um raio de sol" que se impõe de forma
imediata e irresistível (cf. trecho que citamos na terceira seção do capítulo 3 ECHU, Livro 4, capítulo
2, sec. 2).
114
enxergar esta primeira questão como se fosse uma pergunta acerca do critério de
identidade das intuições. Imaginemos que exista um critério que nos permita saber se
uma cognição é ou não intuitiva. A questão então é a seguinte: este critério (que
supomos existir) é (ele mesmo) válido intuitivamente?
Colocar esta (primeira) questão sob esta forma pode nos ajudar a enxergar o pano de
fundo contra o qual vão se mover os argumentos peirceanos no QFCM. É ponto pacífico
entre os comentadores que Peirce neste artigo tem como alvo o conceito de intuição. É
este o conceito “combatido”. Porém, se tentarmos observar o papel que este conceito
tem na economia interna das teorias epistemológicas em que ocorre, notaremos que sua
função primordial (na maioria delas) é de estabelecer pontos de partida seguros (para o
conhecimento). E se também observamos que Peirce admite algum tipo de intuição
dentro de sua teoria, então notaremos que o que Peirce parece estar perseguindo neste
artigo QFCM não é exatamente a intuição, mas o conceito de infalibilidade que está a
ela associado.
Uma intuição é uma espécie de garantia de infalibilidade com relação à verdade de
determinadas proposições ou ideias. Quando afirmamos que determinada ideia é
intuitiva é porque sabemos de forma direta que esta ideia é verdadeira, ou seja, sabemos
que ela é verdadeira sem a necessidade de alguma prova ou justificativa. É uma
verdade, diz-se, auto-evidente. Ela não depende da verdade de nenhuma outra ideia. É,
por isso, dita também independente. Entretanto, por meio do argumento apresentado
nesta segunda parte do segundo parágrafo de seu artigo (CP 5.214 [1868]), Peirce
afirma não haver evidência de que podemos julgar de forma certeira, direta e infalível se
estamos ou não diante de uma intuição. A única forma certeira, direta e infalível de
julgar se estamos ou não diante de uma intuição é considerar este julgamento (de que
estamos diante de uma intuição) algo certeiro, direto e infalível. Mas, se fizermos isso,
se julgarmos infalível o julgamento (de que estamos diante de uma intuição), estaremos
apenas andando em círculos, pois estaríamos afirmando que a única maneira de
identificarmos uma intuição seria termos uma intuição que tivemos uma intuição. A
pergunta, então, é recolocada: como sabemos que esta segunda cognição é mesmo uma
intuição?
Diante destas observações, só nos restaria concluir que a intuição não consegue
efetivamente cumprir seu papel de "garantidor de infalibilidade". Ainda que existam
intuições e elas, por serem sempre inabalavelmente verdadeiras, sejam os melhores
"lugares" possíveis a partir dos quais se pode começar uma linha de raciocínio, os
humanos simplesmente não conseguem encontrá-las ou, se, por acaso, acontecesse de
encontrá-las, não poderiam saber, com certeza, que as encontraram. De acordo com
Peirce, ainda que cognições intuitivas existam e sejam efetivamente infalíveis, não há
nada que nos garanta que seja infalível a nossa capacidade de encontrá-las ou identificá-
las. Como não podemos ter certeza se estamos ou não diante de uma intuição, toda a
infalibilidade prometida por este conceito deixa de ter importância. De que adianta
estabelecermos teoricamente que existem pedras preciosas especiais que, por definição,
nunca poderão ser encontradas ou identificadas com absoluta certeza?
115
Antes que sigamos com as análises dos parágrafos subsequentes da Q1, desenvolvamos
dois exemplos com o intuito de esclarecer o problema que Peirce enxergou envolto no
conceito de intuição. Na verdade, o problema reside na reivindicada capacidade de
distinguir intuições (de cognições derivadas) e consiste numa incontornável
circularidade. É fundamental que seja entendido por qual motivo Peirce, a partir das
argumentações da Q1, passa a considerar problemática qualquer explicação que recorra
ao conceito de intuição. Deste ponto em diante no QFCM, todo e qualquer caminho
teórico que recorra a tal conceito deve ser preterido em prol de um percurso alternativo.
Vejamos o primeiro de nossos exemplos que nos serve de expediente para esclarecer a
referida circularidade.
Imaginemos a seguinte situação: as monotitiledôneas86
formam o grupo de árvores cuja
semente possui um risco. Dititiledôneas formam o grupo de árvores cuja semente possui
somente dois riscos. Durante muito tempo, os botânicos acordaram serem estes os
únicos tipos de classificação das árvores com relação ao tipo de semente, pois os
cientistas espalhados pelo planeta haviam encontrado apenas sementes com um ou dois
riscos. Então, um botânico propôs um terceiro termo que diria respeito a um terceiro
grupo de árvores que não se confundiria nem com as monotitiledôneas, nem com as
dititiledôneas, embora suas sementes tivessem um ou dois riscos. Ele chamou este
terceiro grupo de xongotitiledôneas. Como a diferenciação não poderia ser feita pelo
número de riscos que a semente possuiria, a comunidade científica perguntou ao
proponente do novo termo qual seria o critério para se distinguir as xongotitiledôneas
das demais. A resposta foi que as xongotitiledôneas formariam o grupo de árvores cuja
semente seria classificada como uma xonguerma. É obvio que a próxima pergunta é
como poderia se diferenciar uma semente que é uma xonguerma de uma que não o seja.
Então, o cientista respondeu que, apenas observando a semente, não há como classificá-
la como uma xonguerma. A única forma, continuou o proponente, de saber se uma
semente específica é uma xonguerma ou não é verificando de que árvore ela saiu. Se tal
semente tiver saído de uma xongotitiledônea, então necessariamente ela (a semente) é
uma xonguerma.
Ora, claro está que, com esta definição de “xongotitiledônea”, jamais poderíamos saber
se estamos diante de uma xongotitiledônea ou não. Simplesmente o critério que temos
(a partir da definição fornecida) não pode ser aplicado a uma situação real porque ele é
circular. Para sabermos, por exemplo, se um espécime diante do qual estamos é ou não
xongotitiledônea já teríamos que saber identificar se este mesmo espécime é ou não uma
xongotitiledônea. Algo muito semelhante ocorre com a reivindicada capacidade de
distinguir intuições (de cognições derivadas). De acordo com a crítica de Peirce, para
identificar uma intuição com certeza, o único critério disponível seria recorrer a uma
"intuição anterior".
86
Caro leitor, não consultes dicionários nem a literatura especializada (em biologia). Não é nem o caso
destas palavras não estarem aqui no sentido que eles lhes dão, pois esta terminologia é puramente fictícia,
não deve constar em livro algum, mas qualquer semelhança com os termos utilizados em botânica não
terá sido obviamente mera casualidade.
116
Esta circularidade, uma vez descoberta, passa obviamente a ser considerada nociva para
qualquer teoria epistemológica que se preze. Por este motivo, no QFCM, Peirce parece
estabelecer que tal circularidade (que surge quando nos pomos a pensar sobre nossa
capacidade de distinção de intuições) é uma espécie de "vício de origem" de qualquer
teoria epistemológica que recorra à intuição como fundamento do conhecimento.
Assumir que há intuição nos termos da definição apresentada no início do QFCM (i.e.,
uma cognição que não tenha sido determinada por nenhuma outra cognição anterior do
mesmo objeto) é estabelecer que existe algo que não pode ser conhecido, nem
explicado. Como veremos no tratamento que Peirce dá às últimas questões deste artigo,
admitir que haja intuição (naquele sentido) é bloquear o caminho da investigação, uma
vez que é, de uma vez por todas, estabelecido que as origens de todo e qualquer
conhecimento são inexplicáveis.
Esta circularidade fica evidente somente quando se deixa de considerar a nossa
capacidade de distinguir uma intuição como um pressuposto, como uma ideia não
problemática. A partir do momento que colocamos em dúvida tal capacidade e
passamos a investigá-la mais a fundo, notamos que há uma circularidade oculta. A
crítica peirceana se dirige para a afirmação de que o conceito de intuição só parece
funcionar para finalidade fundacional para a qual foi concebido quando ocultamos esta
circularidade sob a capa da pressuposição.
Esta situação deve nos levar a questionar a infalibilidade associada ao conceito de
intuição. A ideia é que apenas conseguimos ter plena confiança em determinada ideia
que julgamos intuitiva porque pressupomos que somos capazes intuitivamente de
distinguir cognições intuitivas. Esta segurança desaparece quando investigamos mais a
fundo esta questão, pois notamos que não sabemos exatamente o que queremos dizer
quando afirmamos que estamos diante de uma intuição. A ideia é que toda a nossa
confiança na verdade inabalável de uma ideia intuitiva seria devida à nossa ignorância
disfarçada de certeza. É como se a intuição fosse a garantia de certeza sobre a qual não
se pode ter certeza. A fonte de luz que nunca pode ser iluminada. A fonte de certeza que
é (ela mesma) misteriosa. As metáforas pululam. O importante, neste ponto de nossas
análises, é notar que Peirce apresenta a intuição como uma hipótese problemática por
conta daquela circularidade acima referida e pelas inúmeras evidências contrárias à
ideia de que teríamos a capacidade intuitiva de distinguir intuições (de cognições
derivadas). Para Peirce, o notório desacordo entre os homens a respeito do que é ou do
que deixa de ser uma cognição intuitiva é um claro sinal de que os seres humanos não
possuem a alegada faculdade de distinguir intuições. A inexistência de tal faculdade
parece ficar mais evidente naqueles casos espetaculares em que se prova ser falsa uma
afirmação que inicialmente julgamos ser uma verdade universal, absoluta, eterna e,
sobretudo, uma verdade auto-evidente, ou seja, uma intuição. Vejamos um caso desses.
Um exemplo muito interessante de uma intuição que passou, ao longo do curso das
investigações, de verdade eterna para falsidade comprovada é fornecido por Cornelis De
Waal (2007, p. 28) em suas explicações acerca da desconfiança de Peirce no QFCM
com relação ao conhecimento intuitivo. O exemplo é a respeito da célebre proposição "o
117
todo é sempre maior que quaisquer de suas partes" e ainda que esteja apenas na análise
de De Waal (e não no próprio texto peirceano) é um ótimo expediente para
explicitarmos a argumentação de Peirce neste trecho da Q1 que ora analisamos. Por este
motivo, tomemos emprestado o exemplo de De Waal e desenvolvamos uma reflexão
pouco mais demorada.
A afirmação "o todo é sempre maior que quaisquer de suas partes" é geralmente
entendida como um excelente exemplar de conhecimento intuitivo, i.e., ela é geralmente
considerada uma proposição que sabemos ser verdade sem a necessidade de qualquer
demonstração. Sem quaisquer inferências, "vemos" imediatamente sua verdade. Não é
por outro motivo que esta afirmação figura como uma das noções gerais dos Elementos
de Euclides87
. A impressão que temos é que é absolutamente impossível encontrar
algum exemplo em que esta afirmação seja falsa.
Entretanto, apenas lançando mão de algumas noções muito básicas de teoria de
conjuntos, não é difícil encontrar um exemplo em que não valha a afirmação de que "o
todo é maior do que quaisquer de suas partes". Como o exemplo que se segue é a
respeito de conjuntos numéricos, antes de apresentá-lo, convém fazer uma breve
observação sobre a maneira como contamos e como comparamos os tamanhos de
conjuntos. Por exemplo, quando contamos quantos pães estão dentro de um cesto o que
fazemos, de certa forma, é correlacionar cada unidade de pão com uma unidade de um
sistema de contagem. É por meio deste processo de emparelhamento (abstrato) entre
elementos de um conjunto (o cesto de pães) e os elementos do outro conjunto (o sistema
de contagem [por exemplo, os números naturais]) que sabemos que estes dois conjuntos
têm o mesmo número de elementos.
Poderíamos selecionar qualquer outro conjunto que contenha três elementos e fazer este
procedimento de ligar cada elemento de um conjunto (cada pão) a algum elemento do
outro conjunto que escolhemos. Suponha que tenhamos feito tal procedimento
correlacionando cada pão do nosso conjunto de três pães com uma pedra retirada de um
saquinho. Óbvio que teríamos que retirar três pedras deste saquinho, uma para cada pão
(de nosso cesto). Ao emparelharmos estes dois conjuntos (um pão para cada pedra),
87
Oitava noção comum, Livro I.
118
estaríamos aptos a "controlar" a quantidade de pães de nosso cesto. Caso, em algum
momento posterior à contagem inicial, sobrasse alguma pedra ao emparelharmos
novamente o conjunto de pães com o conjunto de pedras (correspondentes), saberíamos
que alguma quantidade de pão foi subtraída do cesto. Ainda que fosse um número muito
grande de pães, teoricamente este procedimento seria sempre possível (desde que não
nos faltem pedras).
Feitas estas observações sobre procedimento de contagem e comparação entre
conjuntos, desenvolvamos um exemplo em que o todo não é maior que quaisquer de
suas partes. Suponha que estejamos diante do célebre conjunto dos Números Naturais:
N.=.{0,1,2,3,4,5,6,7,...} e decidamos dividi-lo em duas partes: de um lado, o
subconjunto de todos os números pares, que é, então, denominado de conjunto P; e, de
outro lado, o subconjunto de todos os números ímpares, que é denominado de conjunto
E. Como todos sabemos, este conjunto N contém um número infinito de elementos. E
isto significa que não pode haver último elemento neste conjunto, uma vez que é sempre
possível adicionar mais um elemento a qualquer número que se candidate ao posto de
último elemento. Porém, o conjunto dos números pares (e também o dos números
ímpares) possui esta mesma propriedade de "sempre ser possível somar mais um
elemento", o que significa que também este conjunto é infinito. Não existe um último
número par. O mais notável é que pode ser feito um emparelhamento entre os elementos
do conjunto N e os elementos do conjunto P. Para isso, basta que, em primeiro lugar,
correlacionemos o primeiro elemento de N (o número 1) ao primeiro elemento de P (o
número 2); em segundo lugar, correlacionemos o segundo elemento de N (o número 2)
ao segundo elemento de P (o número 4); em terceiro lugar, correlacionemos o terceiro
elemento de N (o número 3) ao terceiro elemento de P (o número 6) e, assim, por diante.
119
Como estamos diante de dois conjuntos infinitos, então nunca vai faltar nenhum
elemento do conjunto P para ser emparelhado com algum elemento do conjunto N. Isto
significa que estes dois conjuntos têm exatamente o mesmo tamanho. Esta conclusão é
"contra-intuitiva", pois, como o conjunto P é uma parte do conjunto N, o que seria de se
esperar é que a parte fosse menor que o todo. E este é um caso em que a parte não é
menor que o todo (pois, neste caso, parte e todo são do mesmo tamanho). Logo, a
proposição "o todo é sempre maior que quaisquer de suas partes" é falsa. E este é
também o caso de uma proposição que era considerada uma intuição, uma verdade auto-
evidente (ao menos assim o foi até que surgisse, no final do século XIX, novas
definições de infinito [como a do matemático alemão Dedekind] ou até mesmo teorias
matemáticas que lidassem diretamente com o infinito [como a chamada "teoria dos
conjuntos", que nasce dos trabalhos do também matemático alemão Georg Cantor]).
Ora, se uma proposição era considerada intuitivamente verdadeira e, ao se obter uma
prova em contrário, ela deixa de ser uma intuição, então não se pode dizer que, algum
dia, esta proposição foi verdadeiramente uma intuição. "Intuições de validade
temporária" são um contrassenso. A descoberta de que o que se julgava intuição, na
verdade, não o era acaba por nos levar a desconfiar (não só de intuições em geral, mas)
de nossa capacidade de julgar o que é e o que não é efetivamente uma intuição.
Se temos diversos casos em que nos enganamos ao julgarmos que estávamos diante de
uma intuição, então se abrem duas possibilidades: ou isto significa que não existem
intuições (e este tipo de cognição seria apenas uma criação de nossas teorias
epistemológicas) ou isto significa que não é infalível nossa capacidade de julgar se
estamos ou não diante de uma intuição (e, neste caso, tal capacidade não poderia ser
intuitiva). Como já foi dito, Peirce não afirma que não existem intuições. Seus
argumentos se dirigem contra a capacidade de distingui-las, i.e., a segunda das
possibilidades acima descrita. Como passa a argumentar a partir do terceiro parágrafo
da Q1 (CP 5.215 [1868]), as evidências sugerem que não é intuitiva nossa capacidade
de fazer distinção entre as cognições intuitivas e derivadas. A ideia por trás deste
argumento é que, se chegamos ao ponto de poder afirmar que nossas distinções (entre o
que é e o que deixa de ser uma intuição) não são infalíveis, isto é um sinal de que nossa
120
capacidade de distinguir intuições não é ela mesma intuitiva. Se fosse não poderíamos
falhar. Enfatizamos este ponto porque esta ideia constitui a primeira premissa daquilo
que (mais adiante em nossas análises) chamaremos de argumento geral da Q1. Esta
(primeira) premissa pode ser expressa da seguinte forma: “se houvesse uma capacidade
intuitiva de distinguir intuições, então não deveria haver desacordo a respeito do que é
intuição e do que é derivado”. Assim, além de negar haver evidências favoráveis à
hipótese de que tenhamos a capacidade intuitiva de distinguir intuições de outras
cognições que não o sejam, Peirce, a partir deste terceiro parágrafo da Q1 (CP 5.215
[1868]), passa a elencar uma série de evidências que apontam para a tese contrária (i.e.,
de que não temos tal faculdade). Para que sejamos precisos, neste quarto parágrafo (que
transcrevemos a seguir), é apresentada uma visão panorâmica das reflexões
epistemológicas na filosofia medieval e moderna. Este trecho da Q1 serve para localizar
o problema enfrentado por Peirce na QFCM dentro de um contexto histórico. Apenas
depois desta contextualização, é que o filósofo norte-americano passa a apresentar
aquelas referidas evidências.
Porém, comparemos a teoria com os fatos históricos. A capacidade de
distinguir intuitivamente intuições de outras cognições não tem impedido os
homens de disputar calorosamente a respeito de quais cognições são
intuitivas. Na idade média, a razão e a autoridade externa eram consideradas
duas fontes coordenadas do conhecimento exatamente como a razão e a
autoridade da intuição são consideradas agora; a diferença é que ainda não
tinha se chegado ao feliz dispositivo de considerar as enunciações da
autoridade como essencialmente indemonstráveis. Todas as autoridades não
eram consideradas infalíveis, não mais do que todas as razões; Entretanto,
quando Berengarius afirmou que a autoritatividade [o caráter de autoridade]
de qualquer autoridade deve estar baseada na razão, sua proposição foi
considerada duvidosa, irreverente e absurda. Então, a credibilidade da
autoridade era considerada pelos homens daquele tempo simplesmente como
uma premissa última, como uma cognição não determinada por uma
cognição anterior do mesmo objeto, ou, nos nossos termos, uma intuição. É
estranho que eles tivessem considerado esta questão dessa forma, pois, como
supõe a teoria que está aqui sob discussão, por mera contemplação a
credibilidade da autoridade, tal como um Faquir faz com relação ao seu Deus,
eles poderiam ter visto que isto não era uma premissa última. Agora, e se
nossa autoridade interna tivesse o mesmo destino, na história das ideias, que
aquela autoridade externa teve? Pode ser considerado absolutamente certo
aquilo a respeito do que muitos homens sãos, bem-informados e pensativos
têm dúvida?
(CP 5.215 [1868])88
88
No original: "But let us compare the theory with the historic facts. The power of intuitively
distinguishing intuitions from other cognitions has not prevented men from disputing very warmly as to
which cognitions are intuitive. In the middle ages, reason and external authority were regarded as two
coordinate sources of knowledge, just as reason and the authority of intuition are now; only the happy
device of considering the enunciations of authority to be essentially indemonstrable had not yet been hit
upon. All authorities were not considered as infallible, any more than all reasons; but when Berengarius
said that the authoritativeness of any particular authority must rest upon reason, the proposition was
scouted as opinionated, impious, and absurd. Thus, the credibility of authority was regarded by men of
121
Neste quarto parágrafo após afirmar aquela proposição que mais adiante
denominaremos primeira premissa do argumento geral da Q1 ("a capacidade de
distinguir intuitivamente intuições de outras cognições não tem impedido os homens de
disputar calorosamente a respeito de quais cognições são intuitivas"), Peirce faz
referência a fatos históricos com o objetivo de localizar o problema filosófico do QFCM
num quadro geral de reflexões epistemológicas. Uma das principais diferenças entre as
teorias epistemológicas construídas na Idade Moderna e as reflexões epistemológicas
desenvolvidas nos períodos anteriores é que, enquanto a filosofia moderna, em geral,
funda o conhecimento humano num princípio interno (a Razão)89
, os filósofos da
Antiguidade e da Idade Média fundam o conhecimento humano em princípios externos:
na ordem da Natureza (no caso dos primeiros) e em Deus (no caso dos últimos). Esta
passagem de um estado de "heteronomia" a um estado de "autonomia" (que pode ser
vista não só no campo da Epistemologia, mas também na Ética) pode ser entendida
como decorrente de um movimento interno aos próprios debates filosóficos (aos
embates entre as distintas soluções para o mesmo problema filosófico ou formulação de
um problema noutro nível [logicamente anterior]) e não uma substituição fortuita de
temas ou uma mudança arbitrária de interesses (cf. Gonzáles Porta, 2002, p. 161). É a
este movimento muito geral de "internalização" do princípio que funda o conhecimento
humano que parece se referir Peirce no trecho que está sob análise. De acordo com as
palavras do próprio autor (CP 5.215 [1868]), da mesma forma que, durante o período
medieval, a razão e alguma autoridade externa eram consideradas como duas fontes
coordenadas do conhecimento; na modernidade, quem assumiu estes "papéis de
fundação" do conhecimento foram a razão e a intuição como uma espécie de autoridade
interna.
No caso dos filósofos medievais, a autoridade externa era considerada uma "premissa
última". Isto significa que ela é uma espécie de cognição que não é determinada por
nenhuma outra cognição anterior (do mesmo objeto), o que a coloca, portanto, no
conjunto das cognições intuitivas. Neste ponto do texto, Peirce estabelece uma relação
de semelhança entre aquilo que os medievais encaravam como uma "premissa última" e
o que, no QFCM, foi definido como intuição. Esta semelhança está baseada no fato de
que, ao se estabelecer que há algo que não se reporta a nenhuma instância superior ou
anterior, tanto a função da autoridade externa (a premissa última dos medievais) como a
da autoridade interna (a intuição dos modernos) é servir de fundamento último para o
conhecimento (ainda que, para os filósofos medievais, as autoridades externas não
fossem todas elas, lembra Peirce, consideradas infalíveis). Estabelecida esta
that time simply as an ultimate premiss, as a cognition not determined by a previous cognition of the same
object, or, in our terms, as an intuition. It is strange that they should have thought so, if, as the theory now
under discussion supposes, by merely contemplating the credibility of the authority, as a Fakir does his
God, they could have seen that it was not an ultimate premiss! Now, what if our internal authority should
meet the same fate, in the history of opinions, as that external authority has met? Can that be said to be
absolutely certain which many sane, well-informed, and thoughtful men already doubt?". 89
É bem verdade que, no caso de Descartes, embora a fundação do conhecimento seja lançada dentro dos
"limites do sujeito", ainda se recorre a uma instância externa (Deus) para se "garantir" a verdade do
conhecimento. Entretanto, o ápice deste movimento da filosofia moderna rumo à "autonomia" é
obviamente Kant. Na crítica da Razão Pura, não se recorre mais a instâncias externas.
122
semelhança, Peirce afirma que os filósofos medievais poderiam ter notado que uma
autoridade externa não poderia ser uma "premissa última" se simplesmente resolvessem
"contemplar a credibilidade da autoridade" tal como, compara Peirce, um faquir faz com
seu Deus. Se compreendemos bem esta comparação, ao se desafiar a autoridade externa,
ao se questionar a respeito de sua credibilidade, estes filósofos deveriam perceber que o
que chamam de premissa última era, de alguma forma, determinada por uma premissa
ulterior. E foi exatamente o que ocorreu ao longo do tempo, quando a tradição e as
autoridades externas passaram a ser questionadas já nos primeiros movimentos do que
hoje chamamos de filosofia moderna. A pergunta que Peirce se coloca ao se aproximar
do final deste trecho (CP 5.215 [1868]) é se a autoridade interna (a intuição) não deve
ter, no longo curso do tempo, o mesmo destino que sua antecessora?
Esta pergunta só faz sentido uma vez estabelecida aquela relação de semelhança (acima
referida) entre o que os medievais consideravam premissa última e o que os modernos
consideram intuições (seja o "cogito, ergo sum" [no caso de Descartes] ou as ideias
simples [no caso de Locke] ou as impressões das quais nossas ideias são cópias [no caso
de Hume], por exemplo). Para Peirce, em ambos os casos estamos diante de intuições
conforme a definição geral apresentada no QFCM, a saber, uma intuição é uma
cognição que não é determinada por nenhuma outra cognição anterior do mesmo objeto.
Por este exato motivo, no texto, Peirce chama tanto as premissas últimas (dos
medievais) como as intuições (dos modernos) de "autoridades" (uma, externa e a outra,
interna). O que Peirce, por uma analogia, parece insistir neste trecho é que as
semelhanças entre autoridades externa e interna deveria nos levar desconfiar da
possibilidade de que ambas compartilhem também o mesmo destino. Embora, durante a
passagem do período medieval para o moderno, a autoridade ou o fundamento do
conhecimento tenha sido transferido para dentro do sujeito cognoscente, a pergunta
formulada pelo filósofo norte-americano é se os mesmo motivos que nos levaram a
questionar as fundações externas não deveriam nos levar também a levantar dúvidas a
respeito dessa fundação interna? A principal evidência que aponta para a urgência em se
duvidar da autoridade interna é o desacordo entre o que é e o que não é uma verdade
chancelada por esta autoridade interna. A evidência que deveria nos levar a questionar a
autoridade da intuição é o desacordo entre o que é e o que deixa de ser uma cognição
intuitiva. Na verdade, o que Peirce faz no QFCM é questionar a nossa capacidade em
identificar, com alguma autoridade (i.e., com certeza), cognições intuitivas. Ou,
colocado de outra forma, o que é questionado é justamente nossa autoridade em
distinguir intuições. A partir do quarto parágrafo da Q1 (na verdade, do CP 5.216 até
CP 5.218), Peirce se dedica a apresentar alguns exemplos desses desacordos com
relação ao que é intuitivo.
Os primeiros exemplos arrolados no quarto parágrafo (CP 5.216 [1868]) são relativos a
testemunhos proferidos em juízo ou testemunhos de observadores de truques realizados
por prestidigitadores ou mesmo de participantes de rituais. "Todo advogado sabe o quão
difícil é para as testemunhas distinguirem entre o que viram e o que inferiram. Isto é
particularmente notável nos casos de pessoas que descrevem as performances de
123
médiuns espirituais e de prestidigitadores hábeis" (CP 5.216 [1868])90
. Estas evidências
mostram que nem "sempre é muito fácil distinguir entre uma premissa e uma
conclusão", o que nos leva a acreditar (seguindo o argumento peirceano) que "não
temos uma capacidade infalível" de fazer tal distinção (ibid). Se possuíssemos tal
capacidade intuitiva, as distinções seriam infalíveis e, se fossem infalíveis, deveria então
ser fácil distinguir entre premissas (pontos de partida, por exemplo, aquilo que vemos) e
conclusões (pontos de chegada, i.e., aquilo que inferimos).
Peirce estende esta análise para os sonhos, pois não é "infrequente que um sonho seja
tão vívido que a memória que dele temos seja confundida com a memória de uma
ocorrência real" (CP 5.217 [1868])91
. Um dado momento (ou uma imagem proveniente)
do sonho não pode ser diferenciado da realidade por uma simples contemplação. De
acordo com Peirce, somos capazes de tal distinção por meio de inferências que fazemos
a partir de alguns sinais que observamos nos sonhos quando estamos sonhando. A
distinção não é feita de forma direta (intuitiva), i.e., por uma simples contemplação.
Nesta mesma leva de exemplos, Peirce afirma que, se perguntarmos a uma criança
como ela aprendeu algo que ela atualmente sabe, as respostas, na maioria dos casos,
sugeririam que também os infantes não possuem a tal capacidade intuitiva de, por uma
simples contemplação, distinguir entre uma intuição e uma cognição determinada por
outras anteriores (CP 5.218 [1868]). Se questionadas, crianças muitas vezes afirmam
que nunca aprenderam sua língua materna, que sempre souberam (ou souberam "desde
que se dão por gente").
Em cada um desses casos apresentados, Peirce procura apontar para o fato de que há
sempre uma fronteira difusa entre aquilo que é apontado como conhecimento intuitivo e
o que é apontado como conhecimento derivado ou mediado. Podemos começar a
esboçar a argumentação peirceana apresentada, sobretudo, durante este primeiro trecho
(do CP 5.216 até CP 5.218) da Q1 num típico modus tollens. O argumento de Peirce
parece ser o seguinte: se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições,
então não deveria haver desacordo entre o que é intuição e o que deixa de sê-lo. Porém,
há desacordo (e sabemos disso pelas evidências apresentadas). Logo, não há (evidências
que sustentem a existência da) capacidade intuitiva de distinguir intuições. Embora esta
linha de argumentação esteja presente nesta primeira questão e seja relevante, ela ainda
não é o argumento geral de Peirce na Q1, uma vez que a conclusão de que não há
(evidência que sustentem a existência de) uma capacidade intuitiva de distinguir
intuições é estabelecida sobre uma base mais forte do que a proposição acerca de um
desacordo entre o que seria e o que deixaria de ser uma cognição intuitiva. Este
desacordo pode servir de indício de que não haja a capacidade sob questionamento, mas
não pode provar esta inexistência. Para podermos enunciar o que seria este argumento
90
No original: "Every lawyer knows how difficult it is for witnesses to distinguish between what they
have seen and what they have inferred. This is particularly noticeable in the case of a person who is
describing the performances of a spiritual medium or of a professed juggler" 91
No original: "Not unfrequently a dream is so vivid that the memory of it is mistaken for the memory of
an actual occurrence"
124
geral da Q1 é necessário que analisemos uma segunda leva de casos (do CP 5.219 até
CP 5.224) apresentados por Peirce.
Nos outros casos analisados por Peirce no resto da Q1 (do CP 5.219 até CP 5.224),
Peirce concentra sua atenção em situações que envolvam a percepção. Em geral, estes
casos dizem respeito a algumas situações concretas em que a hipótese de que os dados
sensórios seriam intuídos (seriam captados imediatamente, ou seja, não seriam
inferidos) é negada e tal negação, em cada um desses casos, Peirce insiste, depende
sempre de um processo de inferência (o que nos leva a desconfiar que sejamos, então,
capazes de distinguir intuitivamente intuições). Com esta segunda leva de exemplos,
Peirce pretende apresentar casos em que se julga (sem sombras de dúvida) que se está
diante de uma cognição intuitiva e, depois, descobre-se que o que parecia uma
intuição era, na verdade, uma cognição derivada. Como estas descobertas, em todos os
casos avaliados, seriam resultado, de acordo com Peirce, de um processo inferencial (e
não de uma intuição), então o resultado avaliação de todos esses casos (em conjunto)
poderia ser oferecido como evidência de que não temos a capacidade intuitiva de
distinguir intuições.
Como veremos, todos os argumentos apresentados para esta segunda leva de casos (do
CP 5.219 até CP 5.224) pretendem, de forma mais direta, sustentar a seguinte
afirmação: "todos os casos em que é possível distinguir se uma cognição é produto de
uma intuição ou de uma inferência são casos em que esta distinção é resultado de uma
inferência" (e não de uma intuição). Esta tese é fundamental para a sustentação do
próprio argumento geral da Q1, que apresentamos a seguir de forma esquemática.
argumento geral da Q1
Premissa1: Se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições, então
deveria haver alguma evidência dessa capacidade, ou seja, deveria haver ao
menos um caso em que tenha sido possível, sem recorrer a quaisquer
inferências, distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma
inferência.
Premissa2: Não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem
recorrer a quaisquer inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou
de uma inferência.
Conclusão: Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições.
Com relação a este segundo grupo de casos para os quais Peirce elaborou argumentos,
há ainda uma observação a ser feita. Acreditamos que há uma mudança na estratégia
argumentativa a partir deste ponto da Q1, pois embora os argumentos de Peirce
relativos a estes outros casos (do CP 5.219 até CP 5.224) contribuam para sustentar a
125
proposição de que "Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições" (que é a
resposta peirceana à Q1), este segundo grupo de argumentos já parece ter um papel
mais amplo dentro do QFCM e mesmo de toda a série cognitiva (e não apenas na Q1).
Acreditamos que este segundo grupo de argumentos já funciona como um apoio
(construído desde a Q1) para o argumento geral que, na sétima questão, pretende
estabelecer que não há cognição que não tenha sido determinada por uma cognição
anterior, i.e., não há primeira cognição. Este segundo grupo de argumentos já lida com
uma questão fundamental dentro da série cognitiva: o problema relativo à "porta de
entrada de informação" ou o problema da relação do sujeito cognoscente com o objeto
externo à consciência (que é também chamado de objeto transcendental). Ainda que
Peirce deixe para afirmar a tese que até mesmo "o conhecimento obtido a partir dos
sentidos é derivado (i.e., não é direto ou intuitivo)" apenas no segundo artigo da série
cognitiva (cf. CP 5.291 [1868]), acreditamos que as bases de sustentação dessa tese
começam a ser construídas neste segundo grupo de casos dentro da Q1. A seguir
listamos todos estes casos (para os quais Peirce apresenta um argumento). O que
identificamos como primeiro grupo de casos envolve os casos I, II, III e IV (do CP
5.216 até CP 5.218) e o segundo grupo envolve os casos V, VI, VII, VIII e IX (do CP
5.219 até CP 5.224).
Casos apresentados e analisados por Peirce na Q1
I) Caso advogado
II) Caso do prestidigitador (ou do
médium)
III) Caso do sonho
IV) Caso da criança (CP 5.218)
V) Caso da crença de que a terceira
dimensão do espaço é intuída
(referência a Berkeley)
VI) Caso do ponto do cego na retina
VII) Caso da textura (do tecido)
VIII) Caso da altura de um som
IX) Caso da percepção de duas
dimensões no espaço
Os argumentos aduzidos para os casos V, VI, VII, VIII e IX nos garantem o seguinte:
sempre que descobrimos que uma cognição que julgávamos ser uma intuição é, na
verdade, uma cognição derivada, esta descoberta não é realizada por uma mera
contemplação, ou seja, sempre que descobrimos que uma cognição é derivada (e não
intuitiva), esta descoberta não é intuitiva, mas derivada de uma intuição. Reparemos
que todos estes 5 casos são apresentados por Peirce como situações em que, graças a
algum processo inferencial, passamos de um estado A no qual se acredita (às vezes,
ingenuamente) que determinado tipo de cognição é intuitivo a um estado B no qual
este tipo de cognição é (ou passa a ser) considerado não-intuitivo, i.e., derivado ou
produto de inferência. Em nenhum dos casos relatados e analisados por Peirce ocorre
126
o movimento em sentido contrário. Em nenhum desses casos, passa-se do estado (B)
em que se acredita que uma cognição seja derivada para o estado (A) em se acredita
que tal cognição seja intuitiva. De acordo com a nossa análise, esta nova estratégia
dentro da Q1 está muito bem sintetizada no primeiro caso disto que identificamos
como segundo grupo ou no quinto caso (na contagem geral desta primeira questão):
"Caso da crença de que a terceira dimensão do espaço é intuída (referência a
Berkeley)".
Não pode haver dúvida alguma que antes da publicação do livro de
Berkeley sobre visão, acreditava-se geralmente que a terceira dimensão do
espaço era imediatamente intuída, embora, atualmente, quase todos
admitem que ela é conhecida por inferência. Temos contemplado o objeto
desde a criação do homem, mas esta descoberta não foi feita antes que nos
puséssemos a raciocinar sobre isso.
(CP 5.219 [1868])92
Enquanto apenas contemplávamos tal questão, acreditávamos que se tratava de um
caso de conhecimento por intuição (i.e. conhecimento imediato), entretanto, depois
que nos pusemos a raciocinar a respeito, descobrimos que, na verdade, tratava-se de
um caso de "conhecimento por inferência". Todos os últimos cinco casos relatos e
analisados no Q1 tem essa estrutura. Isto obviamente tem um papel direto dentro do
argumento geral da Q1, mas, de acordo com nossa leitura, também tem um papel
relevante na economia interna da teoria da cognição defendida na QFCM e na série
cognitiva como um todo.
Como veremos nas análises deste segundo grupo, o que Peirce pretende estabelecer
com os argumentos apresentados para cada um dos casos é que "todos os casos em
que é possível distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma
inferência são casos em que esta distinção é resultado de uma inferência". Esta tese
tem que ser sustentada dentro da Q1, pois ela constitui a segunda premissa do
argumento geral da primeira questão. Como ficará claro com a análise de cada um dos
casos (e de seus respectivos argumentos) que faremos na próxima seção, Peirce
estabelece esta tese a partir de uma avaliação de uma coleção de casos particulares. O
argumento que a sustenta, portanto, é indutivo. Entretanto, ao avaliar cada um desses
casos para concluir essa tese, Peirce constrói uma base que o permite estabelecer uma
segunda tese (ainda que ele não o faça durante a Q1), que estaria implicada na
primeira e no fato de, neste segundo grupo, todos os casos analisados serem relativos
à percepção. Esta segunda tese é que não há evidências que apoiem a hipótese de que
a percepção seja direta, intuitiva. Chamemos esta segunda linha argumentativa que
corre em paralelo dentro da Q1 de argumento secundário da Q1.
92
No original: There can be no doubt that before the publication of Berkeley's book on Vision, it had
generally been believed that the third dimension of space was immediately intuited, although, at present,
nearly all admit that it is known by inference. We had been contemplating the object since the very
creation of man, but this discovery was not made until we began to reason about it.
127
argumento secundário da Q1
Premissa1: Todos os casos analisados (no segundo grupo) são relativos à
percepção.
Premissa2: Em todos os casos analisados, descobriu-se que o que era considerado
intuitivo era, na verdade, derivado.
Conclusão: Todos os casos relativos à percepção que foram analisados são casos
em que o conhecimento obtido é derivado (e não intuitivo).
Embora, a intenção de Peirce na Q1 seja apenas afirmar que todas estas descobertas,
estas distinções foram resultados de processos inferenciais (o que significa que não há
evidência que apoie a existência de uma faculdade intuitiva de distinguir intuições), há
uma resultado secundário: como todas as descobertas (distinções) relatadas nos dizem
que algo percebido como produto de uma intuição, na verdade, é produto de uma
inferência, então, se tomarmos como base apenas estas descobertas (que dizem respeito
a "casos perceptivos"), o podemos afirmar que só há evidências de que as percepções
são produto de inferência e não de intuição. Assim, temos (apenas) evidências de casos
relativos à percepção que eram considerados "conhecimento intuitivo" e passaram a ser
considerados "conhecimento derivado", ou seja, (inversamente) não temos evidência de
algum caso relativo à percepção que era considerado "conhecimento derivado" e passou
a ser considerado "conhecimento intuitivo". Esta tese secundária só se torna possível a
partir de uma mudança de estratégia que pode ser observada a partir do exemplo da
criança (CP 5.218 o quarto caso na numeração apresentada acima). A partir deste
exemplo, Peirce passa a lidar somente com casos relativos à percepção.
Esta mudança parece-nos plenamente justificável, pois poucos duvidariam que o
candidato mais natural ao posto de conhecimento intuitivo, direto seja o conhecimento
obtido pela percepção93
. Isto ocorre porque a percepção é candidata natural a ocupar a
posição de primeira premissa. A intuição, como vimos, é uma espécie de elemento
originário do raciocínio. Suponha que nos perguntemos como chegamos a determinada
conclusão c e que a resposta seja "a partir da premissa p1". Suponha, então, que
refaçamos esta pergunta para esta premissa p1 e a resposta seja a seguinte: "chegamos à
conclusão p1 a partir da premissa p2". Note que o que era premissa no argumento
anterior (p1) passa a ser conclusão neste novo argumento e repare também que tal busca
pode continuar, pois o próximo passo seria afirmar que "chegamos à conclusão p2 a
partir da premissa p3". Se quisermos evitar que fiquemos para sempre refazendo este
procedimento, devemos supor que haja uma premissa que seja a primeira de todas: a
premissa pn. O conhecimento proveniente dos sentidos se apresenta, então, como o
responsável por uma premissa que não é ela mesma uma conclusão. Os dados sensórios
93
Ainda que isto não queira dizer muito numa análise de argumentos e de fundamentação (de teses),
etimologicamente o termo intuição e o verbo correspondente "intuir" são originados na palavra latina
intueris cujo significado é ver, observar atentamente ou mesmo contemplar.
128
constituem o ponto de partida absoluto, um "lugar" do qual se parte sem nunca se saber
exatamente como se chega.
De acordo com a análise elaborada por Gallie (1966, p. 67) a respeito dos artigos que
compõem a chamada série cognitiva (o que inclui o QFCM), Peirce não dedica muito
espaço à análise da crença de que o conhecimento que obtemos a partir da percepção
seria direto e intuitivo.
Nos seus artigos de 1868, Peirce trata de forma muito breve de (...) nosso
conhecimento dos mais simples "dados da consciência", ou "dados sensórios"
como muitos filósofos contemporâneos o descrevem. Em geral e estamos
preenchendo seu tratamento inicial94
desta questão à luz de seus escritos de
maturidade ele rejeita a tese de que temos conhecimento direto intuitivo
destes dados elementares com base na ideia de que toda vez que temos
conhecimento de algo temos o conhecimento disso como algo como tendo
esta ou aquela característica ou como estando nesta ou naquela relação. Em
outras palavras, para saber algo, devemos classificá-lo ou relacioná-lo.
(Gallie, 1966, p. 67)
Talvez o problema não seja especificamente o espaço que Peirce dedicou à questão, pois
são cinco parágrafos (do CP 5.219 até CP 5.224) inteiramente dedicados a fenômenos
(perceptivos) geralmente considerados, por excelência, conhecimento intuitivo, direto
(indubitável). Como veremos, nestes cinco parágrafos, Peirce apresenta quatro casos (da
suposta intuição do espaço tridimensional; da suposta intuição da textura de objetos; da
suposta intuição da altura de um som; da suposta intuição de superfícies [o último caso
é acompanhada de uma breve exposição da teoria peirceana do espaço e do tempo]) e
desenvolve uma análise e uma argumentação para cada um deles. Talvez o problema
seja o fato de Peirce não ter tratado deste ponto numa questão específica e ter optado
por colocá-lo dentro do espaço dedicado à análise e argumentação relativas à primeira
questão. Outros fenômenos também geralmente associados a conhecimentos intuitivos
como a autoconsciência e a introspecção foram tratados dentro de questões específicas
no QFCM (respectivamente a segunda e a quarta questões). Uma explicação plausível
seria o fato de Peirce, à época, ainda não ter desenvolvido uma teoria da percepção (que
julgasse) satisfatória 95
.
94
Nota de tradução - Gallie se refere ao tratamento que Peirce dá a esta questão neste artigos de 1868
(entre eles, o QCFM) 95
De acordo com Theresa Calvet de Magalhães (2006, p.67), o que podemos denominar de teoria
peirceana da percepção "é o resultado de um longo processo de desenvolvimento que se inicia, em 1868,
com uma teoria 'semiótica' do conhecimento. Tal teoria é introduzida em 1902 num livro cujo título
pretendido era Minute Logic. Este livro, como outros que Peirce tentou escrever, permaneceu incompleto
e seus trechos foram esparramados pelos Collected Papers (cf. CP 2.1 - 2.117; CP 2.119-2; e também cf.
CP 1.203-283). Entretanto há outros trechos dos Collected Papers em que Peirce volta a tratar desta
teoria: cf., por exemplo, CP 7.619-622 [1903]; CP 7.643 [1903]; CP 5.54 [1903]. Deve-se observar
também que esta teoria da percepção foi analisada por diversos estudiosos da obra peirceana. Dentre os
quais, podemos citar os seguintes: cf. Bernstein, 1964; Almender, 1970; Rosenthal, 1969; Hausman,
1990; Santaella, 2012.
129
4.2 Análise (da segunda parte) da Q1: sobre a capacidade intuitiva
de distinguir intuições
Na análise dos casos sobre percepção que compõem o que, na seção anterior,
identificamos como segundo grupo de casos da Q1 (do CP 5.219 até CP 5.224), Peirce
começa pelo sentido dominante na espécie humana: a visão. Depois de fazer uma
breve referência à contribuição da teoria de Berkeley para derrubar a crença de que a
terceira dimensão do espaço seria imediatamente intuída (CP 5.219 [1868]), Peirce
passa a tratar do que denominamos de "caso do ponto cego da retina" (que é o sexto
caso na listagem apresentada na seção anterior). De acordo com argumento
apresentado, experimentos que provam haver um ponto-cego na retina apontam para a
impossibilidade de se distinguir, por mera contemplação, entre aquilo que é resultante
(de operações do) intelecto e o que é dado intuitivo. Segundo o relato de Peirce, ao
contrário do que se imagina, o experimento (descrito com algum grau de detalhamento
no QFCM) revela que o espaço não possui uma contínua forma oval, mas possui uma
forma de anel, i.e., há um vazio no meio (que seria o tal ponto cego). O preenchimento
desta parte vazia, afirma Peirce, deve ser obra do intelecto. A dificuldade que temos
de notar que o espaço conforme o enxergamos é fruto de uma inferência e a hesitação
que temos em fazer tais distinções são apresentadas, então, como evidências de que
não há capacidade intuitiva de se saber o que uma intuição ou não. Por este motivo,
Peirce termina a análise deste caso com a seguinte frase: o espaço que "vemos
(quando um de nossos olhos está fechado) não é, como imaginávamos, continuamente
ovulado, mas é um anel e o preenchimento deve ser obra do intelecto". Então, ele
arremata este caso com a seguinte pergunta retórica: "haveria exemplo mais forte da
impossibilidade de distinguir, por mera contemplação, resultados do intelecto de
informação intuitiva do que esse?" (CP 5.220 [1868])96
.
No parágrafo subsequente (CP 5.221 [1868]), Peirce considera um caso de dado
sensório tátil (o sétimo caso). Ele admite que uma pessoa é capaz de distinguir
texturas de tecidos obviamente graças a dados provenientes dos sentidos, entretanto,
esta distinção não pode ser feita de forma imediata (ou intuitiva). É necessário (para
fazer tal distinção) que a pessoa "mova os dedos sobre o tecido, o que demonstra que
ela é obrigada a comparar as sensações de um instante com as sensações de outro
instante" (CP 5.221 [1868])97
. A afirmação é que apenas "observando" um desses
dados sensórios de forma isolada não somos capazes de distinguir nada a respeito da
textura. Para que saibamos algo a respeito da textura do tecido em questão,
96
No original: (...) see (when one eye is closed) is not, as we had imagined, a continuous oval, but is a
ring, the filling up of which must be the work of the intellect. What more striking example could be
desired of the impossibility of distinguishing intellectual results from intuitional data, by mere
contemplation? 97
No original: "(...) he requires to move his fingers over the cloth, which shows that he is obliged to
compare the sensations of one instant with those of another".
130
precisamos de mais de um dado sensório. A percepção da textura emerge, portanto, de
uma sequência de dados sensórios. Um dado apenas não é suficiente.
Deve-se notar que, ainda que Peirce não tenha sido explícito com relação a isto neste
sétimo caso, fica implícito que a descoberta de que a distinção de textura não é
intuitiva não foi obtida por "mera contemplação" da questão. Esta descoberta foi
resultado de inferência, o que contribui para sustentar a tese de que não temos a
capacidade intuitiva de distinguir intuições. Neste sétimo caso, ele deixou de fazer tal
observação. O problema é que, nos caso em que Peirce não finaliza a análise com esta
observação como fez no quinto e, sobretudo, no sexto caso, a aparência é que, nestas
situações, ele pretende sustentar apenas a tese de que a percepção (neste sétimo caso,
de texturas) não é intuitiva, enquanto sabemos que seu objetivo geral dentro desta
primeira questão não é esse. A solução de leitura que encontramos para esses "lapsos"
é que Peirce teria desenvolvido uma estratégia argumentativa na qual todos estes
argumentos (relativos ao segundo grupo de casos) teriam uma dupla função: apoiar
diretamente a segunda premissa do argumento geral da Q1 ("não há nenhum caso em
que tenha sido possível distinguir, sem recorrer a quaisquer inferências, se uma
cognição é produto de uma intuição ou de uma inferência") e apoiar indiretamente o
que denominamos argumento secundário da Q1 (cuja conclusão é "todos os casos
relativos à percepção que foram analisados são casos em que o conhecimento obtido é
derivado [e não intuitivo]"). O detalhe é que, quando não é feita aquela observação
(acima mencionada), a impressão é que o objetivo da análise elaborada por Peirce para
o caso em questão é sustentar o argumento secundário e não o argumento geral da Q1.
Notemos que, no próximo caso analisado, ele volta a fazer a tal observação (como foi
feito ao final da análise dos dois últimos casos).
No parágrafo seguinte (CP 5.222 [1868]), Peirce passa a examinar um caso relativo a
dados sensórios auditivos: a percepção de altura de determinado som. De acordo com
a exposição do autor, um som é formado por uma série de vibrações e estas produzem
impulsos que, por sua vez, são percebidos pelo ouvido humano. A percepção da altura
de um som depende, então, da velocidade com que certas impressões são levadas até a
mente. Como estas impressões devem existir antes do som propriamente dito (pois
este é justamente formado por aquelas), então, conclui Peirce, "a sensação de altura é
determinada por cognições anteriores" (CP 5.222 [1868]). Esta é mesma situação do
exemplo da textura, um dado (relativo às impressões) somente não é suficiente. A
diferença é que, neste oitavo caso, Peirce, logo após concluir que "a sensação de altura
[de um som] é determinada por cognições anteriores", faz a seguinte observação sobre
tal conclusão: "Não obstante, isto nunca poderia ter sido descoberto pela mera
contemplação daquele sentimento"(CP 5.222 [1868])98
.
O último e mais longo dos casos (CP 5.223 [1868]) tratados por Peirce nesta
(segunda) parte da primeira questão do QFCM é (como o quinto e sexto casos)
relativo à percepção espacial. A diferença é que neste caso o fenômeno que é objeto
98
No original: "(...) the sensation of pitch is determined by previous cognitions. Nevertheless, this would
never have been discovered by the mere contemplation of that feeling."
131
da investigação é (ao menos inicialmente) a percepção do espaço bidimensional. O
argumento geral neste ponto do texto é construído da mesma forma que aquele
apresentado para casos anteriores (aquele da suposta intuição do espaço tridimensional
e aquele do ponto-cego da retina) desta seção sobre casos relativos à percepção dentro
da Q1. A ideia é afirmar que, quando percebemos uma superfície, entra em cena
alguma operação da mente, i.e., a superfície conforme percebida é resultante de um
processo inferencial e não de um conhecimento direto e intuitivo. Neste último caso,
Peirce apresenta elementos mais gerais do que chamou de teoria do espaço.
Nossa retina, de acordo com o relato de Peirce, é formada por "inúmeras agulhas
apontando na direção a luz e a distância entre cada uma é definitivamente maior do
que a distância do mínimo visível" (CP 5.223 [1868]). A ideia desta teoria peirceana
do espaço, como veremos com algum detalhamento a seguir, é afirmar que é a mente a
responsável por cobrir estes espaços e, como isto só poderia ser descoberto por um
processo de inferência, então este seria mais um ponto de apoio para a tese que nega a
existência de uma faculdade intuitiva de distinguir intuições. Neste ponto do texto,
Peirce pede ao leitor que suponha uma situação perceptiva normal em que estes
pontos nervosos (estas "agulhas") carreguem a sensação a respeito de uma pequena
superfície colorida. Nesta situação, o que deveríamos ver imediatamente é uma
coleção de pontos e não uma superfície contínua. O trecho em questão é o seguinte.
(...) todas as analogias do sistema nervoso são contrárias à suposição de que a
excitação de um único nervo possa produzir uma ideia tão complexa como a
de espaço, por menor que seja. Se a excitação de algum desses pontos
nervosos pode imediatamente veicular a impressão de espaço, então a
excitação de todos não pode fazê-lo também. Pois a excitação de cada um
produz alguma impressão (de acordo com as analogias do sistema nervoso),
então, a soma de todas estas impressões é uma condição necessária para
qualquer percepção produzida pela excitação de todos; ou, em outros termos,
a percepção produzida pela excitação de todos é determinada pelas
impressões mentais produzidas pela excitação de todo e cada um deles.
(CP 5.223 [1868])99
O argumento sobre a origem da ideia de espaço desenvolvido por Peirce neste trecho
pode ser explicitado da forma que se segue:
99
No original: "(...) all the analogies of the nervous system are against the supposition that the excitation
of a single nerve can produce an idea as complicated as that of a space, however small. If the excitation of
no one of these nerve points can immediately convey the impression of space, the excitation of all cannot
do so. For, the excitation of each produces some impression (according to the analogies of the nervous
system), hence, the sum of these impressions is a necessary condition of any perception produced by the
excitation of all; or, in other terms, a perception produced by the excitation of all is determined by the
mental impressions produced by the excitation of every one".
132
Argumento sobre a origem da ideia de espaço
Premissa1: Se a excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão
complexa como a de espaço, então a excitação de todos os nervos também não
pode.
Premissa2: A excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão
complexa como a de espaço.
Conclusão: A excitação de todos os nervos não pode produzir uma ideia tão
complexa como a de espaço.
Que esta conclusão se segue destas premissas não é algo muito difícil de enxergar. A
dificuldade está em tentar perceber de onde Peirce tirou estas premissas. A segunda
delas foi retirada de observações empíricas, i.e., "de analogias do sistema nervoso". Já a
primeira delas é uma regra geral que afirma que uma propriedade100
que não é
encontrada nas impressões que resultam da excitação de cada um dos nervos
separadamente também não pode ser encontrada na percepção que resulta da excitação
de todos os nervos. Esta regra afirma que esta percepção é determinada por aquelas
impressões. Levando em conta que "a excitação de cada nervo produz alguma
impressão" (o que pode ser considerado uma terceira premissa deste argumento),
notemos que Peirce apresenta no texto QFCM duas versões disto que (em nossa análise)
chamamos de premissa1.
Primeira versão apresentada por Peirce da premissa1 do argumento sobre a
origem da ideia de espaço: A soma das impressões geradas pela excitação de cada
nervo é uma condição necessária para qualquer percepção produzida pela
excitação de todos os nervos.
Segunda versão apresentada por Peirce da premissa1 do argumento sobre a
origem da ideia de espaço: A percepção produzida pela excitação de todos os
nervos é determinada por impressões mentais produzidas pela excitação de cada
um desses nervos.
Podemos considerar esta regra como uma instância da seguinte regra (mais) geral: algo
que não está em cada uma das partes não pode estar no todo. A seguir, vamos apresentar
algumas versões que não estão no texto, porém são logicamente equivalentes àquelas
100
A propriedade em questão é a capacidade de produzir a ideia de espaço.
133
apresentada por Peirce. Nestas versões fica explícito esta ideia de que uma propriedade
encontrada no todo deve ser encontrada também nas partes101
.
Versão1 da premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço: Se há
uma percepção produzida pela excitação de todos os nervos, então esta percepção
é condicionada por impressões produzidas pela excitação de cada um desses
nervos.
Versão2 da premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço: Não
pode haver nada na percepção produzida pela excitação de todos os nervos que já
não estivesse presente nas impressões produzidas por cada um dos nervos.
Versão original da premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço:
Se a excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão complexa
como a de espaço, então a excitação de todos os nervos também não pode.
Revisemos, então, a linha de raciocínio desenvolvida até este ponto. O argumento de
Peirce parte da seguinte proposição: a excitação de cada um dos nervos é condição para
a excitação do conjunto deles. Se cada um deles isoladamente não é capaz de "carregar"
de forma imediata a noção que temos de espaço, então o conjunto deles também não
poderá veiculá-la (de forma imediata). Esta noção de espaço deve ser proveniente de
outra fonte ou deve ser formada de outro modo e Peirce afirma ser possível explicá-la
sem recorrer à faculdade da intuição (i.e., sem recorrer à afirmação que ela ocorre de
forma imediata, direta), apenas recorrendo a faculdades cuja existência seja conhecida
(cf. CP 5.223 [1868]).
Óbvio está que este outro caminho que, para o filósofo, explica a existência da
percepção do espaço é afirmar que sabemos de tal existência a partir de uma inferência.
Para argumentar à favor da tese de que este conhecimento é obtido a partir de um
processo inferencial, Peirce leva em conta alguns fatos experimentais do que chamou de
fisio-psicologia. Estas proposições que se seguem servirão de "axiomas" para a
argumentação desenvolvida para sustentar a teoria peirceana do espaço defendida no
QFCM.
101
O que é afirmado nesta premissa está em desacordo com uma noção contemporânea proveniente
principalmente das propostas de teoria geral de sistemas: a de emergência. Diz-se que uma propriedade de
um sistema é emergente se e somente se ela não puder ser reduzida às partes do sistema e às propriedades
das partes do sistema. De um ponto de vista funcional, uma propriedade emergente de um sistema não
pode ter seu funcionamento explicado em termos do funcionamento das partes do sistema. De acordo com
o físico e filósofo da ciência Mario Bunge (2002, cf. verbete emergência e emergentismo), o fenômeno da
emergência dentro de um sistema é a admissão de que este sistema é dotado de certas propriedades que
faltam às suas componentes.
134
Fato1 --> "A excitação de um nervo, por si mesma, não nos informa em que
extremidade ele está situado";
Fato2 --> "Uma única sensação não nos informa sobre quantos nervos ou
pontos nervosos são excitados";
Fato3 --> "Podemos distinguir entre as impressões produzidas por excitações
de pontos nervosos distintos";
Fato4 --> "as impressões distintas produzidas por excitações distintas de
pontos nervosos similares são similares".
(CP 5.223 [1868])102
Como pretende estabelecer que o conhecimento que temos a existência da percepção do
espaço é fruto de um processo (inferencial) e não uma apreensão imediata (intuitiva), o
primeiro movimento de Peirce logo após a apresentação dos quatro fatos é negar que
seja possível obter tal conhecimento a partir da captação de uma imagem momentânea
pela retina. Este conhecimento só se torna possível a partir de impressões relativas a
mais de um instante. Vejamos então a argumentação de Peirce.
Como numa imagem momentânea, não sabemos quantos nervos foram excitados
(fato2), a impressão formada pela excitação de um conjunto de nervos não pode ser
distinguida daquela que seria possivelmente produzida por um nervo somente.
Estabelecido este ponto no texto, Peirce passa sem dar mais explicações à seguinte
afirmação: "não é concebível que uma excitação momentânea de somente um nervo
devesse gerar a sensação de espaço" (5.223 [1868])103
. Como não há clareza neste
trecho da argumentação, podemos apenas supor qual seria a justificativa para esta
afirmação. Uma suposição é que Peirce tenha recorrido neste ponto do texto à uma
outro afirmação feita anteriormente neste mesmo parágrafo 223 e que seria logicamente
equivalente. Esta afirmação é a proposição que foi por nós chamada de premissa2 do
argumento sobre a origem da ideia de espaço: "a excitação de um único nervo não pode
produzir uma ideia tão complexa como a de espaço". Naquele ponto do texto, Peirce
pareceu estabelecer esta premissa2 com base em dados empíricos ("analogias do sistema
nervoso"). Podemos fazer uma segunda suposição que justificaria a afirmação de que
"não é concebível que uma excitação momentânea de somente um nervo devesse gerar a
sensação de espaço". Outra suposição (feita com base no argumento que Peirce
desenvolveu logo em seguida neste mesmo parágrafo do QFCM para imagem em
movimento) é que, no caso da imagem momentânea, não estão estabelecidas as
condições para se inferir a existência da percepção do espaço porque não há relação
entre diferentes impressões provenientes dos sentidos e não há relação (entre impressões
102
No original: 1. The excitation of a nerve does not of itself inform us where the extremity of it is
situated. If, by a surgical operation, certain nerves are displaced, our sensations from those nerves do not
inform us of the displacement; 2. A single sensation does not inform us how many nerves or nerve-points
are excited; 3. We can distinguish between the impressions produced by the excitations of different nerve-
points; 4. The differences of impressions produced by different excitations of similar nerve-points are
similar. 103
No original: It is not conceivable that the momentary excitation of a single nerve should give the
sensation of space.
135
provenientes dos sentidos) porque há apenas uma impressão. No argumento
desenvolvido para a imagem em movimento, Peirce deixa um pouco mais claro que
entende que a sensação de espaço depende de algumas condições para surgir. Dentre
estas, está o reconhecimento de uma relação entre impressões dos sentidos. Só pode
haver sensação de espaço, quando se reconhece a relação entre uma impressão com
outra, pois, como veremos, a concepção de espaço só viria à mente com o intuito de
reduzir a complexidade gerada pelas relações entre diversas impressões. No caso da
imagem momentânea, não estão presentes estas condições que nos permitem reconhecer
uma relação entre impressões, pois, na imagem momentânea, devido à impossibilidade
referida no fato2 há apenas uma impressão dos sentidos. Obviamente só é possível
haver relação se há mais de uma impressão. Como, na imagem momentânea, não há
relação (entre impressões) e tal relação é algo que condiciona a sensação de espaço,
então "não é concebível que uma excitação momentânea de somente um nervo devesse
gerar a sensação de espaço" (ibid).
O próximo passo dado pelo filósofo no argumento desenvolvido neste trecho foi
generalizar o que foi afirmado a respeito da excitação de um nervo para um conjunto de
nervos. De acordo com esta generalização, nem mesmo a excitação momentânea de
vários nervos pode gerar a sensação de espaço. Embora também não esteja claro no
texto, podemos supor que Peirce tenha feito esta generalização com base (novamente)
no fato2. Ainda que a imagem momentânea seja formada a partir da excitação de
diversos nervos, não há como saber quantos nervos foram excitados (fato2), portanto, o
que temos é novamente apenas uma impressão. Neste caso, não há como reconhecer a
relação entre mais de uma impressão (pois não há mais de uma impressão). Assim,
como também na imagem momentânea formada a partir de vários nervos, não há
relação (entre impressões) e tal relação é algo que condiciona a sensação de espaço,
então não é concebível que uma excitação momentânea de vários nervos devesse gerar a
sensação de espaço. Destas considerações (explícitas e, acreditamos, implícitas [que
explicitamos nesta nossa análise]), Peirce conclui que "a excitação momentânea de
todos pontos nervosos da retina não pode mediatamente ou imediatamente produzir a
sensação de espaço" (CP 5.223 [1868])104
. A conclusão de todo este trecho é que
instantaneamente não pode haver conhecimento sobre a existência da percepção do
espaço.
Repare que o problema que impede que a sensação do espaço surja da captação de uma
imagem momentânea não é a constituição desta (se ela é formada a partir de um ou de
vários nervos ou pontos nervosos é algo que se torna indiferente graças ao fato2). O
problema é que ela é momentânea. Por estar presa a um instante somente, tal imagem
não consegue juntar as condições para permitir que a sensação de espaço surja. Peirce
afirma então que este argumento é válido para a formação de qualquer imagem estática
na retina e passa tratar de caso diverso: o de uma imagem em movimento (na retina).
Neste caso, de acordo com o que podemos entender do texto, a excitação que ocorre
104
No original: Therefore, the momentary excitation of all the nerve-points of the retina cannot,
immediately or mediately, produce the sensation of space.
136
num instante afeta um ponto nervoso e num instante posterior afetará outro (cf. o trecho
transcrito a seguir). Então com base no fato4 (já enunciado), Peirce afirma que estas
excitações em diferentes pontos vão carregar impressões que serão consideradas
similares. Vejamos esta passagem de forma mais detida, pois esta conclusão de que
aquelas impressões sejam similares não nos parece poder ser derivada das ideias
anteriores por conta de alguns percalços no meio do argumento. Os principais
problemas deste argumento de Peirce são uma discordância entre termos utilizados nas
premissas e na conclusão e também a vagueza de alguns termos. Isto deve ser fruto,
como já comentamos, do fato de o autor ainda não ter desenvolvido sua teoria da
percepção, o que obviamente interfere na sua teoria do espaço. O trecho inteiro que
abriga este argumento dentro do parágrafo 223 é o que se segue:
Suponha, entretanto, que a imagem se mova na retina. A excitação particular
que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante posterior,
outro. Estes irão carregar impressões que são similares a partir do fato4 e
que, ainda assim, são distinguíveis a partir do fato3.
(CP 5.223 [1868])105
Para conforto do leitor, reescrevemos a seguir a proposição que consiste no fato4.
fato4 --> "as diferenças de impressões produzidas por excitações distintas de
pontos nervosos similares são similares"
Da forma como está escrito, inclusive no original (pois isto não nos parece um problema
de tradução), Peirce afirma que tais diferenças (de impressões) são similares, ou seja,
esta proposição afirma que o que são similares são as diferenças entre impressões (e não
as próprias impressões). O problema é que no trecho transcrito mais acima Peirce
pretende concluir que "as impressões são similares". Antes de tentarmos explicitar o
argumento peirceano, devemos prestar alguma atenção à conclusão: "estes irão carregar
impressões que são similares". Nesta proposição (que é a conclusão do argumento), o
autor utiliza o pronome demonstrativo "estes" (no original: these). O pronome "estes"
deve ter como referência os pontos nervosos dos quais trata a frase anterior. Esta talvez
seja a interpretação mais plausível para a referência deste pronome, pois é pouco
provável que o termo "estes" se reporte ao termo "imagem" ou ao termo "excitação"
(uma vez que estes termos estão no singular) e, por sua vez, faria pouco sentido que o
pronome em questão se reportasse ao termo "instante". Portanto, podemos retraduzir
esta proposição (conclusão do argumento) da seguinte forma: "as impressões
(carregadas pelos pontos nervosos referidos na proposição anterior) são similares".
Outra possibilidade de retradução (que nos reaproxima do texto original) é escrever da
105
No original: Suppose, however, that the image moves over the retina. Then the peculiar excitation
which at one instant affects one nerve-point, at a later instant will affect another. These will convey
impressions which are very similar by 4, and yet which are distinguishable by 3.
137
seguinte forma: "estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares". E,
nesse último caso, ficaria subentendido que o pronome "estes" serve para afirmar que os
pontos nervosos de que trata a conclusão são exatamente os mesmos de que trata a
proposição anterior (que, aliás, será chamada a partir deste momento de premissa2 deste
argumento). Feitas estas observações com relação à conclusão, tentemos reconstruir o
argumento peirceano.
Argumento sobre a semelhança entre impressões
Premissa1 (fato4) --> "As diferenças de impressões produzidas por excitações
distintas de pontos nervosos similares são similares"
Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação
particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante
posterior, outro ponto nervoso.
Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares.
Ora, não é preciso muito tempo para notar que estas premissas (sozinhas e da forma que
estão) não sustentam a pretendida conclusão. A partir do fato4 (premisssa1) e daquela
suposição (premissa2) enunciada antes da conclusão não é possível derivar que os tais
pontos nervosos irão carregar impressões que são similares. Os principais problemas
parecem ser o uso de termos não definidos ou vagos nas duas premissas (como "pontos
nervosos similares" e "excitação particular") e o fato de se ter usado um termo na
conclusão que definitivamente não aparece nas premissas. Vejamos, em primeiro lugar,
este último problema mencionado. Na premissa1, não há afirmação alguma acerca de
impressões, mas apenas de "diferenças de impressões". Conforme já nos referimos, o
que são similares, de acordo com a premissa1, são as diferenças de impressões (e não as
próprias impressões). Para fins de análise, se optarmos por retraduzir esta premissa para
um condicional, teríamos a seguinte proposição: "se as diferenças de impressões forem
produzidas por excitações distintas de pontos nervosos similares, então estas diferenças
de impressões são similares". Note que garantido o antecedente ("se as diferenças de
impressões forem produzidas por excitações distintas de pontos nervosos similares"),
poderíamos concluir apenas o consequente: "estas diferenças de impressões são
similares". Este seria um raciocínio da forma que em lógica é denominada de Modus
Ponens. O problema ocorre quando Peirce pretende concluir que as próprias impressões
(carregadas pelos pontos nervosos referidos na proposição chamada de premissa2) são
similares. Como deve estar claro, não é sobre "isso" que trata a premissa. Para que a
conclusão possa se seguir algumas alterações têm que ser feitas. Ou alteramos a
premissa1 ou alteramos a conclusão do argumento. Optamos por mexer na premissa,
porque esta nos parece uma intervenção menos "invasiva" para o argumento. É esta que
servirá de ponto de apoio para Peirce sustentar a tese defendida em todo este parágrafo
138
(de que a sensação do espaço é derivada e não intuitiva). A modificação que propomos é
retirar a expressão "as diferenças" para que o termo apresentado nesta primeira premissa
seja apenas "as impressões" (e não mais "as diferenças de impressões"). Nossa segunda
tentativa ficaria assim:
Reconstrução do argumento sobre a semelhança entre impressões (versão I)
Premissa1 (fato4) --> ""As (diferenças de ) impressões [distintas] produzidas por
excitações distintas de pontos nervosos similares são similares"
Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação
particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante
posterior, outro ponto nervoso.
Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares.
Esta primeira premissa modificada pode ser também posta em formato condicional: "se
impressões [distintas] forem produzidas por excitações distintas de pontos nervosos
similares, então estas impressões [distintas] são similares". O que a premissa1 afirma
que uma condição para que impressões seja similares é que elas sejam produzidas por
excitações distintas de pontos nervosos similares. Mesmo depois desta alteração
proposta, ainda temos o problema do termo "pontos nervosos similares" que ocorre na
primeira premissa. Este termo não foi definido no texto em questão106
. Parece-nos claro
que, ainda que não saibamos exatamente no que consistiria a tal similaridade entre
pontos nervosos, precisaríamos de uma terceira premissa que nos garantisse que as duas
premissas se referem aos mesmos pontos nervosos. Caso contrário não poderíamos
derivar a conclusão. Tal terceira premissa (que Peirce pode ter deixado simplesmente
implícita) afirmaria que os pontos nervosos de que trata a segunda premissa são
similares ("seja lá o que isso queira dizer"). Como estes pontos são similares, então eles
cumprem a condição imposta na primeira premissa e, por isso, as impressões que eles
carregam são similares. Mais uma tentativa de reconstrução:
Reconstrução do argumento sobre a semelhança entre impressões (versão II)
Premissa1 (fato4) --> "As (diferenças de ) impressões [distintas] produzidas por
excitações distintas de pontos nervosos similares são similares"
Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação
particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante
posterior, outro ponto nervoso.
106
Em 1877, quando volta a defender esta teoria do espaço (nestes mesmos moldes), Peirce não se refere
a esta similaridade entre pontos nervosos (cf. CP 6.416).
139
Premissa3 --> Suponha que estes pontos nervosos sejam similares.
Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares.
Com todas estas alterações e observações, é possível que a conclusão se siga das
premissas (assim) apresentadas. Há ainda outro termo usado que traz alguma vagueza
para o argumento: "excitação particular"107
(que ocorre na segunda premissa). Porém,
acreditarmos que é desnecessário nos determos ainda mais sobre este argumento
específico, pois acreditamos que a conclusão já pode ser estabelecida a partir do que
temos. Levemos então adiante a análise do parágrafo 223.
Todo este argumento nos serviu simplesmente para concluir que é possível, no caso da
imagem em movimento, considerar similares duas (ou mais) impressões (carregadas
pelos pontos nervosos similares afetados pela tal excitação particular ou por excitações
particulares). Deve-se atentar para o seguinte detalhe: é justamente esta similaridade que
se apresenta como uma das condições para o surgimento da sensação de espaço. A outra
condição deve ser encontrada (de acordo com a exposição de Peirce), observando-se o
que foi chamado de fato3. Vejamo-la. Se a partir do fato4, pode-se estabelecer que duas
impressões podem ser consideradas similares, por sua vez, a partir do fato3, pode-se
estabelecer que (embora sejam comparáveis e similares) estas duas impressões não se
confundem. Desta vez, não acreditamos haver problemas. A passagem para a conclusão
se dá de forma mais direta. Este argumento pode ser escrito de forma esquemática.
Argumento sobre a distinção de impressões
Premissa1 (fato3) --> "Podemos distinguir entre as impressões produzidas por
excitações de pontos nervosos distintos".
Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação
particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante
posterior, outro ponto nervoso.
Conclusão --> Estes irão carregar impressões que são distinguíveis.
Para facilitar (nossa tarefa de explicitação), podemos aplicar a este argumento as
mesmas observações que fizemos na análise do argumento anterior (com relação à
conclusão). E, com o intuito de explicitar ainda mais este argumento, podemos fazer
uma suposição que entraria na posição de terceira premissa da seguinte maneira:
107
A expressão utilizada no texto original é "peculiar excitation". Se traduzíssemos a expressão por
"excitação peculiar" é provável que o trecho ficasse ainda mais vago.
140
Reconstrução do argumento sobre a distinção de impressões
Premissa1 (fato3) --> "Podemos distinguir entre as impressões produzidas por
excitações de pontos nervosos distintos".
Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação
particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante
posterior, outro ponto nervoso.
( Premissa3 --> Suponha que estes pontos nervosos sejam distintos. )
Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são
distinguíveis.
Nota-se que este segundo argumento (para estabelecer a segunda condição acima
referida) está em melhores condições do aquele argumento (sobre a semelhança entre
impressões) que analisamos antes. Quando estamos diante de duas impressões geradas
pela excitação de pontos distintos da retina, ainda que estas impressões sejam muito
similares, somos capazes de distingui-las. Segundo a exposição de Peirce, estariam
presentes então "as condições para o reconhecimento da relação entre estas impressões"
e, assim, "como há número muito grande de pontos nervosos afetados por um número
muito grande de excitações sucessivas, as relações entre as impressões resultantes serão
quase inconcebivelmente complicadas" (CP 5.223[1868]). O próximo passo do
argumento peirceano é justamente afirmar que a concepção de extensão vem à mente
para lidar com a complexidade gerada por esta miríade de relações entre impressões.
Antes de analisarmos este passo, revisemos o argumento que nos trouxe até este ponto.
Peirce, neste trecho analisado do parágrafo 223, começa por apresentar 4 proposições
relativas a 4 fatos do que chamou de fisio-psicologia. Então, ele utiliza dois desses fatos
(a terceira e a quarta proposições) para inferir que, numa imagem em movimento,
podemos distinguir impressões e também podemos considerá-las similares. Estas são as
condições para que haja relação entre as impressões. Estabelecido este ponto, Peirce
argumenta que, como há (condições para que haja) relações, então se cria um quadro de
complexidade, uma vez que há um número muito grande de pontos nervosos afetados
por um número muito grande de excitações sucessivas. O espaço surge então por meio
do conceito de extensão, que, por sua vez, é uma concepção que a mente introduz com o
intuito de reduzir a complexidade com qual ela lida no ato da percepção.
É uma conhecida lei da mente que, quando são apresentados fenômenos de
extrema complexidade, que seriam reduzidos à ordem ou a uma simplicidade
mediada pela aplicação de uma certa concepção, esta concepção, cedo ou
tarde, surge em aplicação daqueles fenômenos. No caso sob consideração, a
concepção de extensão reduziria os fenômenos à unidade e, dessa forma, sua
gênese seria totalmente explicada. Resta apenas explicar por qual motivo
cognições anteriores que a determinam não são apreendidas de modo tão
claro. Com relação a esta explicação, vou me referir a um artigo a respeito de
uma nova lista de categorias, na seção 5, apenas acrescentando que da mesma
141
forma que somos capazes de reconhecer nossos amigos por certas aparências,
embora não possamos dizer o que são exatamente estas aparências e embora
estejamos inconscientes dos processos de raciocínios [envolvidos], assim,
quando o raciocínio for fácil e natural para nós, por mais complexas que
sejam suas premissas, elas afundam na insignificância e esquecimento de
forma proporcional à satisfatoriedade da teoria nelas baseada.
(CP 5.223 [1868])108
Antes de continuarmos a análise deste longuíssimo parágrafo da Q1, é necessário que se
faça uma observação de caráter geral. Esta lei da mente à qual se refere Peirce neste
trecho transcrito é de grande relevância para entendermos o problema filosófico
enfrentado no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (On a New List of Categories,
CP 1.545 - 59). É justamente neste artigo, publicado um ano antes do QFCM, que
Peirce introduz o conceito de interpretante. Este conceito, como já antecipamos na
introdução, é o responsável dentro do quadro geral da semiótica peirceana pela ideia de
fluxo (e pelo que viemos chamando no presente texto de concepção de "representação
como fluxo"). Logo que terminarmos a análise do QFCM (o que, pelo "andar da
carruagem", deve levar ainda uma centena de páginas), passaremos para um estudo
deste artigo.
Toda esta argumentação serviu para que Peirce chegasse ao ponto de estabelecer que
não há necessidade de se levantar a hipótese de que a existência da percepção do espaço
é uma impressão imediata (intuitiva) porque pode-se explicá-la como sendo o resultado
de uma inferência. Este processo inferencial tem como ponto de chegada a concepção
de extensão (o que nos leva à percepção do espaço). Sabemos que enxergamos o espaço
(não porque o "vemos" diretamente, mas) porque inferimos a existência da percepção
dele da concepção de extensão (introduzida pela menta para lidar com a complexidade
de dados provenientes dos sentidos). Porém, a pergunta não respondida no QFCM é
aquela a respeito das origens de tal inferência. Por que não temos consciência dos
passos anteriores deste processo inferencial? A resposta oferecida neste artigo por
Peirce é que, quando o raciocínio é fácil e natural para a mente a tendência é que as
premissas (por mais complicadas que sejam) "caiam no esquecimento". Quanto maior
for a confiança na teoria que nestas premissas se baseiam, "maior" será este
"esquecimento". De acordo com Peirce, a análise dos fatos o levou a enunciar não só
esta teoria do espaço, mas também uma teoria acerca do tempo.
108
No original:" Now, it is a known law of mind, that when phenomena of an extreme complexity are
presented, which yet would be reduced to order or mediate simplicity by the application of a certain
conception, that conception sooner or later arises in application to those phenomena. In the case under
consideration, the conception of extension would reduce the phenomena to unity, and, therefore, its
genesis is fully accounted for. It remains only to explain why the previous cognitions which determine it
are not more clearly apprehended. For this explanation, I shall refer to a paper upon a new list of
categories, Section 5, merely adding that just as we are able to recognize our friends by certain
appearances, although we cannot possibly say what those appearances are and are quite unconscious of
any process of reasoning, so in any case when the reasoning is easy and natural to us, however complex
may be the premisses, they sink into insignificance and oblivion proportionately to the satisfactoriness of
the theory based upon them".
142
Esta teoria do espaço é confirmado pela circunstância de que uma teoria
exatamente similar é exigida imperativamente pelos fatos com referência ao
tempo. Que o curso do tempo devesse ser sentido imediatamente é
obviamente impossível, pois, neste caso, deveria haver um elemento deste
sentimento em cada instante. Porém, em um instante, não há duração e,
assim, não há sentimento imediato de duração. Por este motivo, nenhum
desses sentimentos elementares é um sentimento imediato de duração; e,
assim, a soma de todos não pode ser. Por outro lado, as impressões de
qualquer momento são muito complexas contendo todas as imagens
(elementos de imagens) do sentido e memória cuja complexidade é redutível
à simplicidade mediada graças à concepção de tempo.
(CP 5.223 [1868])109
Com relação a esta teoria do tempo exposta de forma muito breve ao final do parágrafo
223, não vamos desenvolver uma análise detalhada como foi feito para a teoria do
espaço, uma vez que as duas "correm em paralelo". Do ponto de vista formal, estas duas
teorias têm a mesma estrutura. Limitaremo-nos a apresentar de forma esquemática o
argumento geral desta teoria do tempo e traçar algumas observações com intuito
analítico simplesmente (i.e., sem fazer comentários a respeito da fundamentação da
teoria em questão [o que foi feito para a teoria do espaço]). Para que facilitemos o
entendimento da linha de raciocínio desenvolvida neste trecho, dividiremos a
argumentação geral (da teoria do tempo) em 4 argumentos menores.
Primeiro argumento - teoria do tempo exposta no QFCM
Premissa1: Se o tempo pudesse ser sentido imediatamente, então deveria haver,
em cada instante, um elemento deste sentimento de passagem do tempo.
Premissa2: Se houvesse, em cada instante, um elemento deste sentimento de
passagem do tempo, então deveria haver, em cada um destes instantes, um
sentimento de duração.
Premissa3: Se houvesse, em cada um destes instantes, um sentimento de duração,
então deveria haver duração num instante.
Premissa4: Não há duração num instante.
Conclusão: O tempo não pode ser sentido imediatamente (e também não há, em
um instante, sentido de duração).
109
No original: "This theory of space is confirmed by the circumstance that an exactly similar theory is
imperatively demanded by the facts in reference to time. That the course of time should be immediately
felt is obviously impossible. For, in that case, there must be an element of this feeling at each instant. But
in an instant there is no duration and hence no immediate feeling of duration. Hence, no one of these
elementary feelings is an immediate feeling of duration; and, hence the sum of all is not. On the other
hand, the impressions of any moment are very complicated containing all the images (or the elements of
the images) of sense and memory, which complexity is reducible to mediate simplicity by means of the
conception of time".
143
Deve-se notar que ao lado da conclusão principal "o tempo não pode ser sentido
imediatamente", colocamos uma conclusão intermediária "não há, em um instante,
sentido de duração". Esta conclusão intermediária pode ser obtida de maneira muito
simples: apenas devemos negar o consequente da premissa3 utilizando-nos da
premissa4; dessa forma chegamos à negação do antecedente da premissa3, que é "não
há, em um instante, sentido de duração". É justamente com esta proposição (a conclusão
intermediária) que começamos o segundo argumento. Repare que esta proposição é o
antecedente do condicional que consiste na primeira premissa do segundo argumento e
também é obviamente a segunda premissa deste mesmo argumento.
Segundo argumento - teoria do tempo exposta no QFCM
Premissa1 Se não há, em um instante, sentido de duração, então nenhum dos
sentimentos elementares é um sentimento imediato de duração.
Premissa2: não há, em um instante, sentido de duração
Conclusão: Nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de
duração.
Estabelecida a conclusão de que "nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento
imediato de duração", o próximo passo é afirmar que "a soma de todos os sentimentos
elementares também não pode ser um sentimento imediato de duração" (esta
proposição, por sua vez, é a conclusão do terceiro argumento). Porém, para construir
este terceiro argumento (que apresentamos a seguir) e dar continuidade ao raciocínio
desenvolvido neste trecho do parágrafo 223, Peirce tem que recorrer a regra geral de
que "se nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de duração,
então a soma de todos também não pode ser (um sentimento imediato de duração)". Esta
regra geral é o que chamamos de premissa1.
Terceiro argumento - teoria do tempo exposta no QFCM
Premissa1: Se nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de
duração, então a soma de todos também não pode ser (um sentimento imediato de
duração).
Premissa2: Nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de
duração.
Conclusão: A soma de todos os sentimentos elementares também não pode ser um
sentimento imediato de duração.
144
Deve-se notar que esta regra geral (premissa1) deste argumento é similar à seguinte
regra geral que foi utilizada neste mesmo parágrafo, mas na teoria do espaço: "se a
excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão complexa como a de
espaço, então a excitação de todos os nervos também não pode" (esta proposição foi a
premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço).
Então com estes três argumentos, Peirce já pode sustentar que não pode haver um
sentimento imediato de duração. O passo seguinte é afirmar que há complexidade nas
impressões de cada momento, pois, de acordo com o declarado paralelo com a linha de
raciocínio apresentada para defender a teoria do espaço, é a partir da complexidade
(multiplicidade ou, ainda, diversidade) dada nas impressões de um momento que se
apresentam as condições para a introdução da concepção de tempo. O argumento para
sustentar que haja tal complexidade parece ser o seguinte:
Quarto argumento - teoria do tempo exposta no QFCM
Premissa1: As impressões de qualquer momento contêm todas as imagens (ou os
elementos das imagens) dos sentidos e da memória.
Conclusão: As impressões de qualquer momento são muito complexas.
De forma similar ao que foi feito na teoria do espaço (com relação à concepção de
extensão), nesta breve apresentação de sua teoria do tempo, ao chegar à conclusão de
que "as impressões de qualquer momento são muito complexas", Peirce recorre à (muito
conhecida) lei da mente (acima referida) e afirma que a concepção de tempo vem à luz
justamente para reduzir tal complexidade.
Muito importante é notar o papel condicionante da multiplicidade ou diversidade de
elementos no surgimento da concepção tanto de espaço como de tempo. É a
multiplicidade ou diversidade que vem com os dados sensórios que é apresentada como
ocasião de entrada destas concepções. Para Peirce, só podemos encontrar as condições
que permitem a introdução do conceito de extensão (e, portanto, de espaço) na
complexidade dada, por exemplo, na imagem em movimento (e não na “simplicidade”
dada na imagem instantânea) e só podemos encontrar as condições que permitem a
introdução do conceito de tempo na complexidade dada nas diversas imagens (ou
elementos de imagens) dos sentidos e da memória contidas em qualquer momento.
Espaço e tempo são concepções introduzidas para reduzir a complexidade gerada pela
relação entre diversos elementos. Tem que haver uma multiplicidade para que haja tais
concepções. Este é apenas outro modo de afirmar que tanto espaço como tempo são
concepções determinadas por cognição anteriores. Tornamo-nos conscientes de que
percebemos algo no espaço ou no tempo na dependência de cognições anteriores.
145
Repare que, de acordo com as teorias expostas, nunca chegamos a estas concepções de
forma direta, intuitiva. Sempre recorremos a cognições anteriores. Mas, o que são estas
cognições anteriores? No caso da concepção de espaço, seriam cognições provenientes
de impressões geradas por excitações (anteriores) em diferentes pontos nervosos da
retina. No caso da concepção de tempo, seriam cognições provenientes de imagens (ou
elementos de imagens) contidas nas impressões (de um momento). A tese de Peirce é
que tanto o espaço como o tempo são concepções que surgem em nossa mente como
resultado de uma cadeia de cognições, de uma inferência. Entretanto, este processo
inferencial não é consciente. Não temos acesso aos primeiros passos de tal processo110
.
Em linhas gerais, este é o mesmo argumento utilizado nos demais casos de que Peirce
tratou nesta segunda parte da Q1. Para perceber a textura de um tecido, é necessário, de
acordo com as explanações do autor, que a pessoa "mova os dedos sobre o tecido, o que
demonstra que ela é obrigada a comparar as sensações de um instante com as sensações
de outro instante" (CP 5.221 [1868]). A percepção de uma textura é, então, determinada
por cognições anteriores do mesmo tecido. Da mesma forma que percepção da textura
depende da relação entre elementos (sensações, no caso), a percepção da altura do som
depende da relação entre as impressões dos impulsos (que formam a onda sonora). Não
poderíamos chegar à concepção de altura com apenas uma impressão relativa a um
impulso. Assim, também "a sensação de altura é determinada por cognições anteriores".
Não se pode chegar à percepção do espaço, do tempo, da textura, da altura (de um som)
sem se recorrer a cognições anteriores. Não se pode, então, perceber de forma direta.
Nem mesmo nosso acesso ao que percebemos é direto. Para saber o que vemos
recorremos ao que não "vemos" (ao que já "vimos"). De acordo com a leitura que
desenvolvemos, com estes argumentos Peirce desenvolve uma dupla linha
argumentativa: uma delas para estabelecer, a partir do que chamamos de argumento
geral da Q1, uma resposta (negativa) à primeira questão (se há ou não alguma
capacidade intuitiva de distinguir intuições) e a segunda delas para estabelecer, a partir
do que chamamos de argumento secundário da Q1, uma relevante tese que será
utilizada em toda a série cognitiva (a saber, aquela segundo a qual até mesmo as
percepções são produtos de inferência e não de intuições). Portanto, ainda que este
último grupo de argumentos (do CP 5.219 até CP 5.224) funcione como apoio ao
argumento cuja conclusão é que "todos os casos relativos à percepção que foram
analisados são casos em que o conhecimento obtido é derivado (e não intuitivo)",
acreditamos que a função principal de todos estes argumentos é sustentar a seguinte
tese: "não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem recorrer a
quaisquer inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma
inferência". Esta tese é muito importante para responder (negativamente) a primeira
questão, porque ela constitui a segunda premissa do argumento geral da Q1111
.
110
A teoria peirceana do espaço e do tempo é aquela apresentada dentro dos limites do QFCM. Em
momento nenhum de nossas análises e da reconstrução dos argumentos de Peirce recorremos a outras
formulações (tardias e mais maduras) destas ideias. Para uma apresentação mais geral da teoria do espaço
e do tempo, cf. Goudge, 1969 [1950], p. 239-47. 111
Recordemos, nesta nota-de-roda-pé, o argumento geral da Q1:
146
Esta tese foi obtida a partir de uma coleção de casos particulares (i.e., todos aqueles
analisados por Peirce na Q1). Portanto, a segunda premissa do argumento geral da Q1 é
sustentada por uma indução. Por este motivo, na segunda "leva de casos" (do CP 5.219
até CP 5.224) para análise, Peirce tentou escolher, ao menos, um caso para cada tipo de
dado sensório (que julgasse mais relevante para atividade cognitiva): visual, auditivo e
tátil. Óbvio está que o modo como cada caso deste segundo grupo foi analisado e a
própria escolha dos casos (pois todos eles dizem respeito a conhecimentos supostamente
obtidos diretamente a partir da percepção) também contribui para o que chamamos de
argumento secundário da Q1112
e, assim, tem um papel que transcende a primeira
questão.
Assim terminamos a análise da primeira das sete questões colocadas por Peirce no
QFCM. A primeira questão era justamente se, diante de uma cognição, por um ato de
simples contemplação, poderíamos saber se ela é uma intuição (ou uma cognição
derivada). A pergunta desta Q1 é se a nossa capacidade de distinguir intuições é ela
mesma intuitiva, i.e., certeira, absoluta. A resposta é negativa. Não (há evidência de
que) temos a capacidade intuitiva de distinguir intuições.
Premissa1: Se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições, então deveria haver alguma
evidência dessa capacidade, ou seja, deveria haver ao menos um caso em que tenha sido possível, sem
recorrer a quaisquer inferências, distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma
inferência.
Premissa2: Não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem recorrer a quaisquer
inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma inferência.
Conclusão: Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições.
112
Aproveitemos também esta nota-de-roda-pé para recordarmos o argumento secundário da Q1:
Premissa1: Todos os casos analisados são relativos à percepção.
Premissa2: Em todos os casos analisados, descobriu-se que o que era considerado intuitivo era, na
verdade, derivado.
Conclusão: Todos os casos relativos à percepção que foram analisados são casos em que o
conhecimento obtido é derivado (e não intuitivo).
147
CAPÍTULO 5
Análise da segunda e da terceira questões do
texto "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"
Depois de estabelecida, com os argumentos apresentados na Q1, a negação da
capacidade intuitiva de distinguir intuições, Peirce lança sombra sobre as teorias
epistemológicas que recorrem ao conceito de intuição (num papel fundacional) para
explicar as faculdades cognitivas. Assim, está aberto o caminho para a construção de
uma teoria inferencial da cognição. As explicações e os conceitos mobilizados por tal
teoria passam ao largo do conceito de intuição e de fundação (ou ponto originário do
processo de conhecimento). Os dois primeiros passos para a construção desta teoria
(alternativa, livre do conceito de intuição) que Peirce pretende erigir no QFCM é provar
que ela pode explicar a capacidade que o homem possui de saber de sua própria
existência (uma capacidade à qual geralmente se dá o nome de autoconsciência) e
também pode explicar a capacidade humana de distinguir entre os diversos tipos de
estados mentais recorrendo-se apenas à inferência (sem se utilizar, portanto, do conceito
de intuição no papel de ponto originário). Estes dois importantes passos, que serão (por
nós) analisados nas duas seções das quais é composta este quinto capítulo, são dados
por Peirce na Q2 e na Q3 dentro do QFCM.
148
5.1 Análise da Q2: sobre a autoconsciência intuitiva
Questão 2: Se temos uma autoconsciência intuitiva.
Nesta segunda questão, Peirce volta sua atenção para aquele pode ser considerado um
caso privilegiado de cognição: a autoconsciência. Parece não haver sombras de dúvidas
que, dentre vários fatos dos quais podemos ter consciência ao longo da vida, a
consciência de que existimos ou a chamada autoconsciência seja o conhecimento acerca
do qual mais se possa ter certeza (ou, visto de outro ângulo, sobre o qual não poderia
pairar a menor dúvida). Se imaginarmos uma escala de certeza sobre tudo aquilo que
pensamos (ou podemos pensar), talvez o pensamento de que aquele que está pensando
existe seja o pensamento que atinge o grau máximo em tal escala. Em resumo, a
autoconsciência é um forte candidato ao posto de conhecimento certo, indubitável,
intuitivo.
De forma similar ao que foi feito na Q1, o primeiro parágrafo da Q2 é dedicado
inteiramente à definição do principal conceito desta seção: a autoconsciência. De saída,
Peirce trata de distinguir o que ele entende por autoconsciência no QFCM não só do
conceito kantiano de "apercepção pura"113
e de sentido interno, mas também da noção
de consciência em geral. A autoconsciência, conforme definida no QFCM, é um
conhecimento que tem como objeto a existência de um ego (individual, empírico,
"situado"). A autoconsciência seria, então, o conhecimento que temos de nossa própria
existência individual, i.e., como um "eu privado". A pergunta que deve ser feita é a
113
O termo "apercepção" que parece ter sido definido de forma mais clara pela primeira vez por
Leibniz, embora já estivesse presente em Descartes (cf. Mora, 2000, tomo I, p. 159) significa
"consciência que acompanha a percepção". Este termo designa uma espécie de consciência de que há
"algo" que percebe (além do objeto da percepção). Em Kant, encontra-se uma distinção entre apercepção
empírica e apercepção pura (cf. KrV, B 132). Esta consciência que acompanha cada percepção particular
e que torna possível distinguir aquele que percebe do objeto percebido, na terminologia kantiana, seria a
apercepção empírica ou sentido interno (KrV, A107). Esta é a consciência de si mesmo dada
empiricamente (por isso de forma sempre mutável) num "rio de fenômenos internos" (ibid). Já a
apercepção pura é definida justamente como uma condição da consciência em geral, é a condição que
precede toda experiência e torna esta possível (ibid). Enquanto a apercepção empírica é a consciência de
si (o "eu penso") que acompanha cada uma minhas representações (em particular), a apercepção pura é a
consciência de si (o "eu penso") que acompanha todas as representações compondo-as umas com as
outras e me tornando consciente de sua síntese (KrV, A107). Com notável atenção ao que já foi chamado
(por alguns poetas no século XX) de concreção da linguagem, Peirce lança mão de expedientes
tipográficos para esclarecer esta distinção kantiana e, dessa forma, elucidar o que entende por
autoconsciência no QFCM. De acordo com Peirce, "apercepção pura é a auto-asserção dO ego. A
autoconsciência de que trato aqui [no QFCM] é o reconhecimento de meu eu privado. Eu sei que EU (e
não meramente O eu ) existo" (CP 5.225 [1868])*. Como ficará evidente, nesta segunda questão, o uso
que faz Peirce do termo autoconsciência está muito mais próximo do que Kant, na Crítica da Razão Pura,
entende por apercepção empírica.
* No original: "Pure apperception is the self-assertion of THE ego; the self-consciousness here meant is
the recognition of my private self. I know that I (not merely the I) exist".
149
seguinte: como obtemos este conhecimento (esta autoconsciência)? Mais uma vez,
estamos diante de uma bifurcação. Ou afirmamos que a autoconsciência é um
conhecimento intuitivo (i.e., obtido de forma direta ou imediata) ou afirmamos que a
autoconsciência é um conhecimento derivado, determinado por cognições anteriores
(i.e., obtido por meio de inferência). Como foi feito na análise da Q1, chamemos estas
alternativas respectivamente de caso I e caso II.
Desta vez, comecemos pelo caso I. Na verdade, comecemos pela análise do
posicionamento que trata este caso I (a autoconsciência intuitiva) como uma proposição
auto-evidente, como algo que está fora de questionamento. Esta é alternativa mais
"natural", mais próxima ao senso comum. Parece-nos auto-evidente que o conhecimento
que temos de nossa própria existência é uma cognição originária, intuitiva. Entretanto, e
o argumento peirceano é construído nesta linha, para que seja auto-evidente que temos a
faculdade intuitiva especial que gera a autoconsciência, seria necessário que tivéssemos
uma capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de cognições determinadas (por
outras cognições). Só podemos afirmar que é, para nós, evidente que determinado tipo
de objeto possua a propriedade A se pressupormos que nós temos a capacidade de
identificar A (e distingui-lo de B, C, etc.). O problema é justamente a ausência desta
faculdade, o que acabou de ser demonstrado na primeira questão. Pode até ser que
tenhamos autoconsciência intuitiva, entretanto o que Peirce mostra já no segundo
parágrafo da Q2 (transcrito a seguir) é que isto não pode ser (de forma alguma)
considerado auto-evidente.
A autoconsciência de que trato aqui [no QFCM] é o reconhecimento de meu
eu privado. Eu sei que EU (...) existo. A questão é como eu sei isto; por uma
capacidade intuitiva especial ou isto é determinado por cognições prévias?
Ora, não é auto-evidente que tenhamos tal capacidade intuitiva, pois acabou
de ser mostrado que não temos nenhuma capacidade intuitiva de distinguir
entre uma intuição e uma cognição determinada por outras [cognições].
Portanto, a existência ou não existência dessa capacidade deve ser
estabelecida por evidência (...).
(CP 5.225 - 226 [1868])114
Repare que o ponto defendido neste trecho transcrito é que, se afirmarmos que a
autoconsciência é evidentemente um conhecimento intuitivo, então está pressuposto que
temos alguma capacidade intuitiva para distinguir intuições de cognições determinadas
(caso contrário, não poderíamos garantir ser este conhecimento uma intuição de forma
evidente). Porém, não podemos contar com este pressuposto em Q2, pois acabamos de
demonstrar em Q1 que não há evidência que (sequer) sugira que haja uma faculdade
intuitiva de distinguir intuições.
114
No original: "the self-consciousness here meant is the recognition of my private self. I know that I (...)
exist. The question is, how do I know it; by a special intuitive faculty, or is it determined by previous
cognitions? / Now, it is not self-evident that we have such an intuitive faculty, for it has just been shown
that we have no intuitive power of distinguishing an intuition from a cognition determined by others.
Therefore, the existence or non-existence of this power is to be determined upon evidence (...)".
150
Argumento sobre a auto-evidência do caráter intuitivo da autoconsciência
Premissa1: Se fosse auto-evidente que a autoconsciência é um conhecimento
intuitivo, então teríamos a capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de
cognições determinadas (por outras cognições).
Premissa 2 (estabelecida em Q1): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir
uma intuição de cognições determinadas (por outras cognições).
Conclusão: Não é auto-evidente que a autoconsciência seja um conhecimento
intuitivo.
Dentro da exposição da Q2, o resultado desta argumentação é que, como não é auto-
evidente, devemos procurar por evidências que sejam favoráveis a tal autoconsciência
intuitiva. Entretanto, a estratégia peirceana não é procurar estas evidências favoráveis a
autoconsciência intuitiva e argumentar contra a existência deste tipo de conhecimento
intuitivo. No lugar disso, como já estabeleceu na Q1 o problema envolvido em qualquer
capacidade que se considera intuitiva, Peirce passa a enunciar evidências favoráveis à
tese de que a autoconsciência é inferencial ou derivada (i.e., não-intuitiva) justamente
com o intuito de demonstrar que, como é possível explicar este fenômeno (o surgimento
da autoconsciência) a partir de faculdades das quais não resta dúvida que o homem
possua (como a capacidade de fazer inferências), não seria necessário recorrer a
faculdades das quais não se tem certeza se o homem possui ou não (como a intuição).
Antes de passarmos a tratar do modo como Peirce, a partir do terceiro parágrafo da Q2
(CP 5.227 [1868]), construiu seu o argumento contrário à tese de que a autoconsciência
é intuitiva (ou, de outra perspectiva, argumento favorável à tese de que a
autoconsciência é derivada ou inferencial), deve-se observar que apenas no penúltimo
parágrafo da Q2 (CP 5.237 [1868]), ele considerou o argumento adversário (i.e., aquele
que pretende sustentar tese de que a autoconsciência é intuitiva). Portanto na Q2, Peirce,
em primeiro lugar, apresenta o seu argumento (que responde negativamente a segunda
questão) e, em segundo lugar, apresenta uma crítica ao argumento adversário (que
responde positivamente a segunda questão). Em nossas análises, vamos inverter esta
ordem e tratar primeiro do modo como Peirce lidou com o argumento que sustenta a
tese oposta à sua. O penúltimo parágrafo da Q2 é o seguinte:
O único argumento sobre autoconsciência intuitiva que vale a pena citar é o
seguinte. Estamos mais certos de nossa existência do que de qualquer outro
fato; uma premissa não pode determinar que uma conclusão seja mais certa
do que ela mesma é; então, nossa própria existência não pode ter sido inferida
de qualquer outro fato. A primeira premissa pode ser admitida, porém a
segunda premissa é fundada numa uma teoria lógica ultrapassada. Uma
conclusão não pode ser mais certa do que algum dos fatos que suporta a sua
verdade, mas ela pode facilmente ser mais certa do que qualquer um daqueles
fatos. Suponhamos, por exemplo, que uma dúzia de testemunhas afirmam ter
havido uma ocorrência. Então, minha crença naquela ocorrência está baseada
151
na crença de que, em geral, deve-se acreditar em cada um daqueles homens
que está sob juramento. Ainda assim, é mais certo o fato testemunhado do
que é confiável cada um desses homens. Do mesmo modo, para a mente de
um indivíduo (adulto, maduro), sua própria existência é suportada por
qualquer outro fato, e é, então, incomparavelmente mais certa do que
qualquer um desses fatos. Entretanto, não se pode dizer que ela [a minha
existência] é mais certa do que a existência de outro fato, uma vez que não há
nenhuma dúvida perceptível em nenhum dos casos.
(CP 5.237 [1868])115
Comecemos nossas análises deste longo e complicado trecho pela observação de que a
estratégia peirceana é desmontar o argumento enunciado no início do parágrafo com um
ataque direta a segunda de suas premissas. O argumento que Peirce analisa e pretende
desmontar neste trecho pode ser expresso da seguinte forma:
Argumento favorável à tese da autoconsciência intuitiva
Premissa1: Estamos mais certos de nossa existência do que de qualquer outro fato.
Premissa:2 Uma premissa não pode determinar que uma conclusão seja mais certa
do que ela mesma é.
Conclusão: Nossa própria existência não pode ter sido inferida de qualquer outro
fato.
Reparemos que o argumento que Peirce critica afirma que "nossa própria existência não
pode ter sido inferida de qualquer outro fato", porque nossa própria existência é mais
certa do que qualquer outro fato e também porque uma conclusão não pode "conter"
mais certeza do que a premissa que a suporta. Ou seja, como não é possível que a
premissa (nesse caso, um fato qualquer) seja mais certa que a conclusão (nesse caso,
nossa própria existência), não é possível, então, inferir nossa existência a partir de um
fato qualquer.
115
No original: "The only argument worth noticing for the existence of an intuitive self-consciousness is
this. We are more certain of our own existence than of any other fact; a premiss cannot determine a
conclusion to be more certain than it is itself; hence, our own existence cannot have been inferred from
any other fact. The first premiss must be admitted, but the second premiss is founded on an exploded
theory of logic. A conclusion cannot be more certain than that some one of the facts which support it is
true, but it may easily be more certain than any one of those facts. Let us suppose, for example, that a
dozen witnesses testify to an occurrence. Then my belief in that occurrence rests on the belief that each of
those men is generally to be believed upon oath. Yet the fact testified to is made more certain than that
any one of those men is generally to be believed. In the same way, to the developed mind of man, his own
existence is supported by every other fact, and is, therefore, incomparably more certain than any one of
these facts. But it cannot be said to be more certain than that there is another fact, since there is no doubt
perceptible in either case".
152
Argumento sobre o relato das doze testemunhas
Premissa1: (Como a testemunha n°1 está sob juramento) a ocorrência relatada
pela a testemunha n°1 realmente aconteceu. .
Premissa2: (Como a testemunha n°2 está sob juramento) a ocorrência relatada
pela a testemunha n°2 realmente aconteceu.
Premissa3: (Como a testemunha n°3 está sob juramento) a ocorrência relatada
pela a testemunha n°3 realmente aconteceu.
...
Premissa12: (Como a testemunha n°12 está sob juramento) a ocorrência relatada
pela a testemunha n°12 realmente aconteceu.
Conclusão: (Como todas as testemunhas estão sob juramento) a ocorrência
relatada pelas 12 testemunhas realmente aconteceu.
De acordo com o que se pode compreender da análise peirceana do exemplo das doze
testemunhas, o que Peirce pretende estabelecer é que, se tomarmos isoladamente, uma
dessas testemunhas, notaremos que nossa confiança nela é mais fraca do que nossa
confiança na conclusão. Ainda que a nossa crença na conclusão não seja mais forte do
que nossa crença no relato das doze testemunhas, podemos afirmar que a nossa crença
na conclusão é ou, ao menos, pode ser mais forte do que nossa crença no relato de uma
testemunha isolada. Se a análise de Peirce estiver correta, então seria possível que uma
conclusão fosse "mais forte" que uma de suas premissa, ou seja, seria possível que uma
premissa determinasse (ou contribuísse para determinar) que sua conclusão fosse mais
certa do que ela mesma é, o que nega a premissa2 do argumento favorável à tese da
autoconsciência intuitiva. Ao negar esta premissa, abre-se espaço para se afirmar que
"nossa própria existência pode ter sido inferida de qualquer outro fato".
Argumento relativo à autoconsciência
Premissa1: O fato n°1 atesta a proposição "eu existo"
Premissa2: O fato n°2 atesta a proposição "eu existo"
Premissa3: O fato n°3 atesta a proposição "eu existo"
...
Premissa n: O fato n° n atesta a proposição "eu existo"
Conclusão: eu existo.
153
De acordo com Peirce (no trecho transcrito) a mesma análise feita para o raciocínio
acerca da ocorrência relatada pelas doze testemunhas vale para este raciocínio sobre a
própria existência. Estou muito mais certo do que afirma a conclusão do que aquilo que
afirma qualquer uma das premissas tomadas isoladamente. Entretanto, pelo que se pode
entender deste trecho da Q2 (CP 2.237 [1868]), deve-se traçar uma distinção entre o que
afirma a proposição (as premissas ou a conclusão) e a própria existência ou crença na
existência dos fatos envolvidos (tanto o fato do "eu" existir como os demais fatos, i.e.,
todos os outros fatos que atestam a existência do "eu"). Por este motivo, Peirce afirma
que, ainda que a existência do "eu" seja incomparavelmente mais certa do que qualquer
um daqueles fatos que a suportam, a existência mesma desses fatos não pode ser
considerada menos certa do que a existência do "eu". Em outras palavras, não posso
dizer que estou mais certo do que afirma a conclusão (i.e., que eu existo) do que da
existência de algum outro fato que ateste minha existência. A existência do fato deve ser
tão certa quanto a existência do "eu", uma vez que não há nenhuma dúvida perceptível
em nenhum dos casos. Embora minha crença na ideia que minha existência é atestada
por todos os outros fatos seja mais forte do que a minha crença na ideia de que algum
fato específico isoladamente ateste minha existência, a minha crença na minha
existência não é mais forte do que a minha crença na existência de algum fato (que
ateste minha existência). Esta equiparação entre existência do "eu" e do fato é seminal
para as linhas argumentativas que Peirce desenvolve dentro da Q2. Não é por outro
motivo que a teoria peirceana sobre o modo como a autoconsciência emerge a partir de
um processo inferencial (e não de uma intuição) nos leva para uma paisagem teórica
muito distante daquela que podemos contemplar a partir da exposição de Descartes, por
exemplo, nas meditações.
Nas meditações, Descartes nos apresenta uma espécie de gradação de certezas cujo
centro de radiação de certezas seria existência do "eu" captada pela proposição fundante
"penso, logo existo" (cogito, ergo sum). Como vimos na seção dedicada a uma breve
exposição de linhas gerais do pensamento cartesiano (cf. capítulo 3, seção 2), como a
existência da mente é a certeza inicial, estamos mais certos da existência da mente do
que da existência do corpo. A teoria da cognição exposta no QFCM e, em particular, o
modo como a autoconsciência é explicada levaram Peirce a conclusões opostas as de
Descartes.
Analisada a contraposição que Peirce apresenta, no penúltimo parágrafo (CP 5.237
[1868]), com relação ao argumento que sustenta a tese de que a autoconsciência é
intuitiva, voltemos para a "ordem normal" do texto peirceano.
A partir do terceiro parágrafo (CP 5.227 [1868]), Peirce passa a enunciar, então,
evidências contrárias à tese de que a autoconsciência é intuitiva (ou, de outra
perspectiva, evidências favoráveis à tese de que a autoconsciência é derivada ou
inferencial).
Uma evidência que corrobora com a ideia de que não temos uma autoconsciência
intuitiva é o fato de crianças não possuírem tal conhecimento. Peirce apoia esta ideia na
154
observação de que apenas tardiamente as crianças aprendem a usar a palavra "eu" (o
que, observa o filósofo norte-americano, já teria sido notado por Kant). Como o uso
tardio desta palavra indica uma autoconsciência imperfeita nas crianças observadas e
"enquanto for admissível que [disso] retiremos alguma conclusão a respeito do estado
mental daqueles que são ainda mais jovens, então esta conclusão deve ser contrária à
existência de qualquer autoconsciência nestas crianças" (CP 5.227 [1868])116
.
Portanto, com este argumento, é estabelecido que não há autoconsciência em indivíduos
muito jovens. Este estágio anterior à emergência da autoconsciência é descrito, então,
como uma consciência que abarca indistintamente o mundo externo e interno, como se
fosse um "todo indiviso". Não há noção alguma de que haja algo externo justamente por
não ser ter fronteira alguma, pois, neste estágio, o indivíduo não tem noção alguma de
que ele é "algo" que, de alguma forma, se contrapõe a outro "algo" que não é ele (i.e., o
mundo externo).
Pode-se notar que uma criança em tenra idade sempre observa seu próprio
corpo com grande atenção. E ela tem toda razão em fazê-lo, pois, do ponto de
vista da criança, o seu próprio corpo é a coisa mais importante no universo.
Apenas o que ele [este corpo] toca possui qualquer sentimento de presença ou
atualização, apenas o que está diante dele tem realmente alguma cor; apenas
o que está em sua língua tem realmente algum gosto.
(CP 5.229 [1868])117
Ninguém questiona que, quando um som é ouvido pela criança, ela não pensa
a si mesma como algo que ouve, mas ela pensa no sino ou qualquer outro
objeto como algo que soa. E quando a criança deseja mover uma mesa? Será
que ela pensa nela mesma como alguém que deseja [algo] ou será que ela
pensa na mesa como algo suscetível de ser movida? Que a criança tenha este
último pensamento está além de qualquer questão; que ela tenha aquele
primeiro pensamento deve, até que seja provada a existência de uma
autoconsciência intuitiva, ser considerada uma suposição arbitrária que
carece de bases.
(CP 5.230 [1868])118
De acordo com o exposto neste trecho transcrito acima, esta ausência de
autoconsciência pode ser entendida como espécie de "ausência de sistema de
referência". Privado de autoconsciência, o indivíduo não pode fazer referência a si
116
No original (trecho completo): "It has already been pointed out by Kant that the late use of the very
common word 'I' with children indicates an imperfect self-consciousness in them, and that, therefore, so
far as it is admissible for us to draw any conclusion in regard to the mental state of those who are still
younger, it must be against the existence of any self-consciousness in them". 117
No original: "A very young child may always be observed to watch its own body with great attention.
There is every reason why this should be so, for from the child's point of view this body is the most
important thing in the universe. Only what it touches has any actual and present feeling; only what it faces
has any actual color; only what is on its tongue has any actual taste". 118
No original: " No one questions that, when a sound is heard by a child, he thinks, not of himself as
hearing, but of the bell or other object as sounding. How when he wills to move a table? Does he then
think of himself as desiring, or only of the table as fit to be moved? That he has the latter thought, is
beyond question; that he has the former, must, until the existence of an intuitive self-consciousness is
proved, remain an arbitrary and baseless supposition".
155
mesmo como centro a partir do qual se conhece e se modifica o mundo. A criança não
tem consciência de que enxerga o mundo do ponto de vista de um indivíduo. Por isso, a
criança não representa a si mesma como alguém (um ego) que ouve o som emitido pelo
sino, mas ela simplesmente pensa no sino como algo que emite um som. Quando decide
mover a mesa, a criança não vê a si mesma (ou a sua vontade) como a causa do
movimento da mesa, mas ela simplesmente vê a mesa como algo que pode ser movido.
Neste exemplo da mesa, Peirce deixa claro que seu argumento é que, diante da questão
se há ou não autoconsciência em crianças muito jovens, as evidências apontam para a
ausência deste conhecimento nestes indivíduos. Para Peirce, se, por um lado, as
evidências empíricas (i.e., observações do comportamento infantil) apoiam a tese de que
as crianças (muito jovens) simplesmente pensam na mesa (como algo a ser movido) sem
fazer referência alguma ao ego que possui a vontade de movê-la; por outro lado, não há
evidências que sustentem a tese contrária: de que mesmo as crianças (muito jovens)
seriam capazes de pensar em si mesmas como algo (um ego) que possui a vontade de
mover a mesa. Então, na ausência de evidências, esta última tese só conseguiria se
sustentar se apelássemos à ideia de que há autoconsciência intuitiva. Mas, como não
podemos afirmar que a tal autoconsciência intuitiva é auto-evidente (graças ao que foi
estabelecido no argumento sobre a auto-evidência do caráter intuitivo da
autoconsciência), se quisermos sustentar esta segunda tese, só nos resta provar que
existe esta autoconsciência intuitiva. Por este motivo, Peirce termina este trecho da Q2
transcrito acima afirmando que, até que se encontre uma prova (de que há
autoconsciência intuitiva), deve se considerar aquela última afirmação (de que crianças
muito jovens possuem autoconsciência) uma suposição infundada e arbitrária.
Notemos que, em momento algum da Q2, Peirce se dá ao trabalho de tentar provar
existência de uma faculdade de autoconsciência intuitiva, pois, para provar isto, seria
necessário recorrer ao conceito de intuição e, por tabela, seria necessário recorrer a uma
faculdade que não sabemos se possuímos ou não: a capacidade de distinguir entre
intuições e cognições não-intuitivas (cf. argumentação da Q1). Para Peirce, a
autoconsciência poderia ser explicada pela ação de faculdades que sabemos existir (CP
5.226 [1868]). O conhecimento que obtemos acerca de nossa própria existência seria
resultado de um processo inferencial realizado pela mente (e não fruto de uma geração
imediata propiciado por uma misteriosa capacidade que não sabemos se temos).
O primeiro passo para a emergência da autoconsciência é a observação feita pela
criança (desde muito cedo de acordo com o relato de Peirce) de que há alguma conexão
entre o corpo (dela) e o movimento daquele outro corpo que é objeto apto a ser movido
(no exemplo, a mesa). A criança observa que este objeto passa a se mover apenas depois
que há o contato entre aquele "corpo mais importante do universo" (o próprio corpo
dela) e o objeto em questão. Entretanto, de acordo com a linha de exposição apresentada
nesta segunda questão, este primeiro passo não pode constituir a emergência da
autoconsciência. A tese de Peirce é que a autoconsciência, a noção de há um "ego", é
uma hipótese que só pode surgir em decorrência de um descompasso entre o "ambiente
interno e o ambiente externo". Por exemplo, um descompasso entre a vontade da criança
156
em ver a "mesa ser movida" e o fato da mesa não se mover (por ser muito pesada). Esta
resistência é a condição que permite que surja uma fronteira entre um ego (cuja vontade
foi negada pelo mundo) e um mundo externo (cuja realidade negou a vontade do ego).
O exemplo dado no QFCM foi o seguinte:
Uma criança escuta alguém dizer que o fogão está quente. Mas, ele não está
quente, diz a criança; e, realmente, aquele corpo central não está em contato
com o fogão e apenas o que o corpo central toca é que está quente ou frio.
Porém, a criança toca o fogão e acaba por confirmar de um modo extremo o
testemunho [que tinha ouvido]. Então, ela se torna consciente da ignorância,
e é necessário supor um ego no qual a ignorância possa residir. Então o
testemunho apresenta os primeiros raios do alvorecer da autoconsciência.
(CP 5.233 [1868])119
No exemplo fornecido, há uma discrepância entre a representação que a criança faz do
fogão (como algo que não está quente, ao contrário do que foi dito para ela) e o real ou
atual estado do fogão (como algo que está quente, em acordo com o que foi dito para
ela). São os fatos externos e esta resistência (deles em ser conforme a representação que
deles se faz) que criam a necessidade em se levantar uma hipótese para explicar o
motivo pelo qual "nem tudo sai como esperado". A noção de ego surge numa mente
individual como uma hipótese para abrigar o erro e a ignorância. Ela é resultado de uma
inferência feita a partir de fatos externos. A existência de si próprio é "inferida de fora
para dentro". Nesta explicação genética da autoconsciência, não se pode afirmar que a
existência do ego seja mais certa do que a existência dos fatos externos a partir dos
quais ela foi derivada. De forma marcadamente distinta com relação ao pensamento
cartesiano, não há gradações de certezas, não há uma escala dentro da qual, a existência
do próprio corpo, em particular, e das coisas corpóreas, em geral, seria menos conhecida
do que a existência da mente (e de Deus). Dentro da teoria exposta por Peirce no
QFCM, não há conhecimento que seja privilegiado, nem mesmo o conhecimento acerca
da existência daquele que conhece. Para Peirce, a própria existência é um conhecimento
tão hipotético como o conhecimento relativo aos fatos externos. A esta altura de nossas
análises do QFCM, já podemos notar que a epistemologia peirceana é, num certo
sentido, diametralmente oposta àquela elaborada por Descartes. O ponto de partida
cartesiano é, para Peirce, ponto de chegada.
Tentemos supor como seriam os argumentos (a sequência de ideias) que poderiam levar
um indivíduo a ter conhecimento de sua própria existência. Enfatizemos que as linhas
de raciocínio apresentadas a seguir são apenas "simulações". Como reconhece Peirce
num trecho (CP 5.236 [1868]) que transcreveremos adiante, ainda que observações
indiquem que crianças com pouca idade já sejam capazes de exercitar suas faculdades
mentais a ponto de poder desenvolver tais raciocínios (ou outros que os valham), não há
119
No original: “A child hears it said that the stove is hot. But it is not, he says; and, indeed, that central
body is not touching it, and only what that touches is hot or cold. But he touches it, and finds the
testimony confirmed in a striking way. Thus, he becomes aware of ignorance, and it is necessary to
suppose a self in which this ignorance can inhere. So testimony gives the first dawning of self-
consciousness”.
157
obviamente como saber se elas o fazem da exata forma que a teoria peirceana prevê. O
importante é reter que autoconsciência seria fruto de uma inferência que começa por
notar uma discrepância entre representação e objeto representado.
Argumentos-simulação que antecedem à hipótese da existência do ego
Premissa_A1: Algo só pode estar quente ou frio se estiver em contato com o
corpo central.
Premissa_A2: O fogão não está em contato com o corpo central.
Conclusão_A3: O fogão não está quente (bem como também não deve estar frio).
Premissa_B1: O corpo central se queimou ao tocar o fogão.
Premissa_B2: Apenas aqueles objetos que estão quentes são capazes de queimar o
corpo central.
Conclusão_B3: O fogão está quente.
As proposições A3 e B3 (ambas conclusões) são contraditórias: uma afirma o que a
outra nega. As duas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, o que nos leva a crer
que há uma inconsistência. Em outras palavras, se A3 e B3 são contraditórias, uma
delas deve estar errada. E, se uma delas deve estar errada, o mínimo que se pode
concluir é que há erro. Como explicar o erro? Como explicar o fato de que num instante
se chega a conclusão de que o fogão não está quente e num outro instante se chega a
conclusão que ele está quente? A hipótese mais plausível para explicar esta
inconsistência ou este erro é supor que haja dois ambientes distintos. Um deles é um
ambiente externo cuja existência (seria uma hipótese que) serviria para abrigar o que
podemos chamar de "fogão real"; o outro é um ambiente interno cuja existência (seria
uma hipótese que) serviria para abrigar o que podemos chamar de "fogão representado",
ou seja, o fogão conforme representado para uma consciência. Há então dois "fogões": o
fogão real que, por estar quente, queimou o corpo central e o fogão representado que,
como foi representado como algo que não está quente, não deveria (se tal representação
estivesse correta) queimar o corpo central.
Se houvesse um ambiente interno (que podemos denominar ego), então obviamente
estariam apresentadas as condições de possibilidade do erro. Assim, pode-se apresentar
a existência de uma ego como hipótese explicativa da possibilidade de erro. Esta
existência hipotética de um ego.
158
Argumento para a confirmação da hipótese da existência do ego
Premissa_C1: Se existisse um ego (o ambiente interno), então haveria a
possibilidade de erro.
Premissa_C2: Existe um ego.
Conclusão_C3: Há a possibilidade de erro.
Visto dessa forma, o raciocínio parece bastante simples. A única afirmação contida nele
é que, para haver possibilidade de erro, já seria suficiente que houvesse um ego (i.e., o
ambiente interno). Por isso, na situação em que houvesse um ego, a existência dele já
explicaria a possibilidade de erro. Se colocarmos esta última ideia num formato
condicional então ficaríamos com a seguinte proposição: "se existisse um ego (o
ambiente interno), então haveria a possibilidade de erro". E esta é a nossa premissa_C1.
O problema é como chegamos à premissa_C1? Afinal, é ela que faz a ligação entre a
hipotética existência de um ego e a possibilidade de erro. É esta premissa que faz com
que a hipótese funcione.
Para chegar até a premissa_C1, responsável pelo funcionamento de todo o raciocínio
hipotético, devemos pensar de trás para frente. Partimos da constatação que há erro (o que
ficou estabelecido, por exemplo, na contradição entre as proposições A3 e B3
apresentadas acima) e nos perguntamos o que deveria ocorrer para que erros, em geral,
sejam possíveis. O procedimento que levamos a cabo neste ponto da análise é muito
semelhante ao que Peirce utiliza para estabelecer como hipóteses as categorias no artigo
"Sobre uma nova lista de categorias" (CP 1.545 - 59 [1868]). De forma geral, o
procedimento possui uma forma simples e não é incomum pensarmos hipoteticamente no
dia-a-dia. Por exemplo, suponha que observamos na calçada uma poça d'água e
consideramos isto um fenômeno anômalo, i.e., um daqueles fenômenos que clamam por
explicação. A partir da constatação de que há uma poça d'água, começamos a imaginar o
que deveria ocorrer para que se formasse aquela poça naquele local e nos damos conta
que a chuva consistiria numa boa explicação, pois chuvas geralmente são responsáveis
pela formação de poças. Então, feito este raciocínio, chegaríamos ao seguinte condicional:
"se tivesse chovido, então seria possível que poças (como esta) fossem formadas". O que
precisamos fazer para chegar à hipótese da existência de um ego é algo muito parecido ao
que fizemos neste exemplo da poça d'água. A diferença é que as proposições e as ideias
envolvidas são um pouco mais complicadas. Porém, a forma do raciocínio é a mesma.
Acreditamos que para chegar à premissa_C1 "se existisse um ego (o ambiente interno),
então haveria a possibilidade de erro" seriam necessárias as quatro premissas que seguem:
159
Argumento para o estabelecimento da hipótese da existência de um ego
Premissa1: Se existisse um ego, então haveria uma distinção entre um ambiente
interno onde seriam produzidas representações e um ambiente externo que poderia
ser objeto dessas representações.
Premissa2: Se houvesse uma distinção entre um ambiente interno onde seriam
produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas
representações, então haveria a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo.
Premissa3: Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo, então haveria a possibilidade de
erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno).
Conclusão: Se existisse um ego, então haveria a possibilidade de erro (nas
representações produzidas pelo ambiente interno).
Apresentadas as quatros premissas (todas na forma de condicional), o primeiro ponto a
ser notado é que alguns desses condicionais têm como consequente o antecedente de
outros, ou seja, alguns deles acabam onde outros começam. Isto significa que podemos
arranjá-los numa sequência tal como se fosse uma fila indiana de dominós. Então, neste
arranjo, sabemos que, se derrubarmos o primeiro deles, o último deverá também cair.
Para que não depositemos toda nossa confiança em metáforas ilustrativas que podem
não evocar na mente do leitor o significado (por nós) intencionado, apresentemos uma
versão formalizada deste mesmo raciocínio. É verdade que, ao lançar mão de
formalizações, a dificuldade de se fazer entender aumenta, porém isto deve ser
compensado pelo aumento da precisão no que é dito. Cada uma das proposições que
compõem as premissas será representada no raciocínio formalizado por uma letra.
proposição P = Existe um ego
proposição Q = Há uma distinção entre um ambiente interno onde seriam
produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas
representações.
proposição R = Há a possibilidade do ambiente interno produzir representações a
respeito do ambiente externo
proposição S = Há a possibilidade de erro (nas representações produzidas pelo
ambiente interno)
160
O passo a passo do argumento para o estabelecimento da hipótese da existência de um
ego é o seguinte:
1. P--> Q Pr.
2. Q --> R Pr.
3. R --> S Pr.
4. | P Hip. P
5. | Q MP 1,4
6. | R MP 2,5
7. | S MP 3,7
8. P --> S Hip. P 4,7
A numeração que corre verticalmente na margem direita diz respeito aos passos do
raciocínio em questão. Os três primeiros passos consistem simplesmente na afirmação
de cada uma das três premissas de nosso argumento. É por este exato motivo que em
cada uma das linhas relacionadas aos três primeiros passos aparece, na margem
esquerda, a abreviação "Pr.", que significa que a proposição que está em tal linha entra
no argumento como uma premissa. Ainda na margem esquerda, em cada uma das
demais linhas, aparece a justificativa para a proposição que se encontra em cada uma
das linhas. Por exemplo, note que na linha 5 (i.e. no quinto passo do raciocínio) temos a
letra Q e, na margem esquerda, a justificativa "MP 1,4". Tudo isso quer dizer que, neste
raciocínio, chegamos à afirmação Q por meio da aplicação da regra (conhecida sob o
nome de) Modus Ponens às proposições que se encontram na linha 1 e na linha 4. Na
linha 1, temos a proposição "P--> Q" e, na linha 4, temos a proposição "P". E, dessas
duas proposições (juntas), podemos concluir a proposição "Q", que é exatamente o que
está na linha 5. Por este motivo, neste raciocínio, a abreviação "MP 1,4" é oferecida
como justificativa desta linha.
Na linha 4, após serem afirmadas todas as premissas do argumento, foi introduzida uma
proposição que não é um premissa nem é derivada das premissas. Esta é a proposição P
(que afirma existir um ego). Como ela não é premissa, nem é derivada (das premissas),
só podemos introduzi-la por meio de uma hipótese. Só podemos supor o que tal
proposição afirma e derivar algumas cosenquências de tal suposição. Todos os passos
dentro do raciocínio que foram feitos na dependência desta hipótese estão um pouco
mais afastados da margem esquerda. Há também uma linha horizontal tracejada que
indica que estamos raciocinando sob a hipótese de que haja um ego (proposição P).
Porém, o que quer dizer supor a proposição P ou, em linguagem natural, o que significa,
neste raciocínio, supor que exista um ego? Note que o que temos, de saída, são apenas
161
três premissas. E, como já foi observado, as três podem ser "encadeadas". Isso pode ser
visto de forma mais direta simplesmente olhando para as premissas escritas em
linguagem simbólica: P-->Q , Q-->R e R-->S .
Supor a existência de um ego é simplesmente imaginar uma situação, um cenário
possível em que exista algo como um ego. Dentro deste cenário possível, sabemos de
pelo menos uma verdade (obviamente além da verdade que existe um ego): que neste
cenário deve haver "uma distinção entre um ambiente interno onde seriam produzidas
representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas representações".
Como sabemos disso? Porque é justamente isto que afirma a premissa1.
Premissa1: Se existisse um ego, então haveria uma distinção entre um ambiente
interno onde seriam produzidas representações e um ambiente externo que poderia
ser objeto dessas representações.
Esta premissa transcrita acima nos garante que na situação em que existir um ego,
também deve haver tal distinção. Esta é a primeira consequência que derivamos de
nossa hipótese. Já temos até este ponto duas afirmações: a que "existe um ego" e a que
"há uma distinção entre um ambiente interno onde seriam produzidas representações e
um ambiente externo que poderia ser objeto dessas representações". A primeira dessas
afirmações foi introduzida em nosso raciocínio por hipótese e a segunda foi introduzida
em decorrência da introdução da primeira. Mas, podemos não parar por aí. Aliás,
devemos continuar, uma vez que a meta é chegar à proposição sobre a possibilidade de
erro. Se observamos com alguma atenção, não será difícil notar que a última de nossas
proposições (aquela sobre a distinção, a relativa à letra Q) é exatamente a proposição
que está no início da premissa2. Para que sejamos precisos, esta proposição (Q) é o
consequente do condicional que constitui a premissa2.
Premissa2: Se houvesse uma distinção entre um ambiente interno onde seriam
produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas
representações, então haveria a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo.
Então, graças à premissa2, podemos saber de outra verdade a respeito de nosso cenário
hipotético: é que nele também "há a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo". É a premissa2 que nos garante que na
situação em que há aquela distinção (da qual trata a premissa1), então deve haver esta
possibilidade. Com isso, já contamos, então, com três afirmações: a primeira é que
existe um ego, a segunda é que há uma certa distinção (entre um ambiente interno e um
externo) e a terceira é que há a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo. A primeira afirmação é introduzida por
162
hipótese, a segunda foi introduzida em decorrência da introdução da primeira e, por sua
vez, a terceira afirmação foi introduzida em decorrência da introdução da segunda.
Deve-se notar que só chegamos a esta última afirmação graças à hipótese de que haja
um ego. Acreditamos que o próximo passo já seja previsível.
Premissa3: Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo, então haveria a possibilidade de
erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno).
Como afirmamos que há, neste cenário possível que estamos construindo, a possibilidade
do ambiente interno produzir representações a respeito do ambiente externo, então só nos
resta concluir que, neste mesmo cenário, deve haver a possibilidade de erro (nas
representações produzidas pelo ambiente interno). O que nos permite tirar esta conclusão
a partir daquela afirmação é justamente a premissa3. Com este último movimento,
passamos a contar, então, com quatro afirmações: a primeira é que existe um ego, a
segunda é que há uma certa distinção (entre um ambiente interno e um externo), a terceira
é que há a possibilidade do ambiente interno produzir representações a respeito do
ambiente externo e, por último, a quarta afirmação é que há a possibilidade de erro (nas
representações produzidas pelo ambiente interno). Assim, utilizamos em nosso raciocínio
todas as (três) premissas que estavam disponíveis e chegamos a meta intencionada: a
afirmação de que há a possibilidade de erro. Entretanto, devemos nos recordar que
durante estes últimos passos da argumentação estivemos raciocinando sob uma hipótese.
As últimas três proposições só foram afirmadas graças à afirmação hipotética da primeira
proposição: "existe um ego". Todos esses passos (que na formalização aparecem ladeados
pela linha vertical tracejada e) que nos levaram a afirmar as últimas três proposições (Q,
R e S) fazem parte de uma suposição. Como foi construída tal suposição? Imaginamos
uma situação (um cenário possível) em que a primeira proposição é verdadeira. Então,
notamos que, na situação em que a primeira proposição é verdadeira, a segunda
proposição também tem que ser verdadeira (e isto nos é garantido pela premissa1).
Posteriormente, notamos que, na situação em que a segunda proposição é verdadeira, a
terceira proposição também tem que ser verdadeira (e isto nos é garantido pela
premissa2). E, por último, notamos que, na situação em que a terceira proposição é
verdadeira, a quarta proposição também tem que ser verdadeira (e isto nos é garantido
pela premissa3). Então, neste cenário possível em que a primeira proposição é verdadeira,
a quarta proposição também tem que ser verdadeira. Na situação em que existir um ego,
então deve haver a possibilidade de erro (nas representações produzidas pelo ambiente
interno). Esta é a conclusão de todo o raciocínio e note que ela está numa forma
condicional.
Conclusão: Se existisse um ego, então haveria a possibilidade de erro (nas
representações produzidas pelo ambiente interno).
163
Esta conclusão não foi estabelecida na forma de um condicional à toa. Num condicional
não afirmamos de forma isolada nem a proposição que está na posição de antecedente
nem a proposição que está na posição de consequente. O que se afirma num condicional
é simplesmente que, se for o caso em que a proposição que está no antecedente for
verdadeira, então a proposição que está no consequente também o será. Por exemplo, o
condicional "se chover, então a corrida será adiada" não afirma que "está chovendo" ou
que "a corrida será adiada", mas este condicional (como um todo) afirma simplesmente
que, a situação em que chove é uma situação em que a corrida será cancelada. No caso
de nosso argumento, não faz parte da conclusão afirmar que há um ego, tampouco
afirmar que há a possibilidade de erro. O que é estabelecido na conclusão é que no caso
de haver um ego também deve haver a possibilidade de erro. Como na conclusão não
nos comprometemos com a afirmação de que (efetivamente) há um ego, então já
podemos abandonar nossa hipótese de que há um ego. A hipótese que afirmava esta
primeira proposição (de que há um ego) só nos serviu para descobrir que toda vez que
se afirma esta proposição deve-se também afirmar a quarta proposição (de que há
possibilidade de erro). Descoberta tal relação, já podemos descartar a hipótese de que
(efetivamente) há um ego e concluir que a existência de um ego tem como consequência
a possibilidade de erro, ou seja, se existisse um ego, então haveria a possibilidade de
erro. Antes de continuar, pedimos ao leitor que volte algumas páginas e note que a
conclusão já não faz parte da "zona hipotética" do raciocínio. Por este motivo, a linha
horizontal tracejada termina no passo 7 (quando chega-se à afirmação da quarta
proposição, i.e., de S). A linha 8 (relativa à conclusão) já voltou para perto da margem
esquerda.
Antes de continuarmos, devemos apresentar uma versão estendida deste argumento
recém-analisado, pois é possível que possa ser levantado alguns questionamentos com
relação à terceira das premissas. Na versão do argumento que acabamos de analisar, esta
premissa é a que segue:
Premissa3: Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo, então haveria a possibilidade de
erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno).
Uma crítica plenamente admissível a esta Premissa3 é que ela pode não estar bem
estabelecida, ou seja, ela é um condicional falso, pois poderia ser o caso em que o
antecedente seja verdadeiro e o consequente seja falso. Por exemplo, é (ao menos do
ponto de vista lógico) possível que "um ambiente interno seja capaz de produzir
representações a respeito do ambiente externo" (o que torna o antecedente verdadeiro) e
que "todas estas representações produzidas sejam verdadeiras" (o que torna o
consequente falso). Como é (ao menos logicamente) possível que "todas as
representações (produzidas pelo ambiente interno) sejam infalivelmente corretas", então
aquele condicional como um todo (a Premissa3) admite um contra-exemplo. A solução
164
que propomos é que modifiquemos esta terceira premissa dentro de uma nova versão
deste argumento para o estabelecimento da hipótese da existência de um ego. Esta
premissa deve conter no lugar da proposição que estava na posição de antecedente uma
disjunção que contemple aquela possibilidade que estava excluída na versão original: a
possibilidade de que "todas as representações (produzidas pelo ambiente interno) sejam
infalivelmente corretas". Tal premissa assim reformada ficaria da seguinte forma:
Premissa3': Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo, então ou haveria a possibilidade de
erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno) ou todas as
representações (produzidas pelo ambiente interno) seriam infalivelmente corretas.
Com esta modificação, claro está que o resto do argumento teria que também ser
alterado. Entretanto, não é muito difícil de notar que este novo caminho aberto pela
possibilidade admitida na disjunção deve acabar numa rua sem saída, ou seja, se
admitirmos que "todas as representações (produzidas pelo ambiente interno) seriam
infalivelmente corretas", acabaríamos numa contradição, pois teríamos de admitir que,
como todas as representações estão corretas e isto significa que há uma total
coincidência entre representante e representado, então não mais seria possível fazer uma
distinção entre ambiente interno e ambiente externo. A contradição é que já na primeira
premissa afirmamos que (como supomos a existência de um ego, então) haveria uma
distinção entre um ambiente interno e um ambiente externo.
Argumento estendido para o estabelecimento da hipótese da existência de um ego
Premissa1': Se existisse um ego, então haveria uma distinção entre um ambiente
interno onde seriam produzidas representações e um ambiente externo que poderia
ser objeto dessas representações.
Premissa2': Se houvesse uma distinção entre um ambiente interno onde seriam
produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas
representações, então haveria a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo.
Premissa3': Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir
representações a respeito do ambiente externo, então ou haveria a possibilidade de
erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno) ou todas as
representações (produzidas pelo ambiente interno) seriam infalivelmente corretas.
Premissa4': Se todas as representações produzidas pelo ambiente interno fossem
infalivelmente corretas, então haveria (uma incrível) coincidência entre (todas) as
representações e seus respectivos objetos.
165
Premissa5': Se houvesse (esta incrível) coincidência entre (todas) as
representações e seus respectivos objetos, então não haveria possibilidade
distinção entre um ambiente interno onde seriam produzidas representações e um
ambiente externo que poderia ser objeto dessas representações.
Conclusão: Se existisse um ego, então haveria a possibilidade de erro (nas
representações produzidas pelo ambiente interno).
Este mesmo raciocínio analisado acima em sua versão formal ficaria assim:
1. P--> Q Pr.
2. Q --> R Pr.
3. R --> S v T Pr.
4. T --> U Pr.
5. U --> Z Pr.
6. Z --> ~Q Pr.
7. | P Hip. P
8. | Q MP 1,7
9. | R MP 2,8
10. | S v T MP 3,9
11. | | T Hip. T
12. | | U MP 4,11
13. | | Z MP 5,12
14. | | ~Q MP 6,13
15. | | Q ^ ~Q Ad. 8,14
16. | ~T Abs. 15
17. | S SD 10,16
18. P --> S Hip. P 7,16
166
É evidente que todos esses raciocínios são simplesmente simulações. Outros
argumentos são plenamente possíveis. Enfatizamos que não sabemos como tudo ocorre
dentro da cabeça da criança ainda que se saiba que, de acordo com o que Peirce afirma
(no trecho que transcrevemos a seguir) na idade em que surge a autoconsciência, os
infantes já são capazes de produzir raciocínios muito mais elaborados do que estes
exigidos para que se tenha alguma autoconsciência.
Na idade em que sabemos que uma criança já possui autoconsciência,
também sabemos que ela está consciente a respeito da ignorância e do erro; e
sabemos que elas possuem, nesta idade, capacidade suficiente de
entendimento que as permite inferir da ignorância e do erro sua própria
existência. Assim, chega-se ao ponto de se poder afirmar que capacidades
que nos são conhecidas, agindo sob condições que sabemos existir, dariam
origem à autoconsciência. O único defeito nesta abordagem a esta questão é
que, embora saibamos que as crianças sejam capazes de exercer tanto
entendimento quanto é suposto nesta abordagem, não sabemos se elas
exercem esse entendimento exatamente da forma aqui suposta. Ainda assim,
a suposição que as crianças são capazes é infinitamente mais suportada por
fatos do que a suposição de uma faculdade inteiramente peculiar da mente.
(CP 5.236 [1868])120
Portanto, ainda que não se saiba exatamente quais são os raciocínios pelos quais as crianças
chegam a este estado de autoconsciência, as evidências suportam a suposição de que
crianças sejam efetivamente capazes de "chegar" à autoconsciência a partir de inferências.
Antes de enunciarmos o argumento geral desta Q2, cumpre observar que, caso a teoria de
Peirce esteja mesmo correta e a existência do ego seja mesmo uma hipótese levantada pela
mente para explicar a possibilidade de erro (e não fruto de um inexplicável insight), então
só podemos saber que existimos a partir da existência do mundo externo ou na dependência
da observação de fatos externos. Uma pura inspeção pela alma (ou pela mente) não
adiantaria. Novamente, estamos no antípoda do cogito cartesiano.
argumento geral da Q2
Premissa1: Se a autoconsciência fosse um conhecimento intuitivo, não seria
necessário recorrer a dados externos para se obter tal conhecimento.
Premissa2: É necessário recorrer a dados externos para se obter a
autoconsciência.
Conclusão: A autoconsciência não é um conhecimento intuitivo.
120
No original: "At the age at which we know children to be self-conscious, we know that they have been
made aware of ignorance and error; and we know them to possess at that age powers of understanding
sufficient to enable them to infer from ignorance and error their own existence. Thus we find that known
faculties, acting under conditions known to exist, would rise to self-consciousness. The only essential
defect in this account of the matter is, that while we know that children exercise as much understanding as
is here supposed, we do not know that they exercise it in precisely this way. Still the supposition that they
do so is infinitely more supported by facts, than the supposition of a wholly peculiar faculty of the mind".
167
Grande parte da tarefa de Peirce na Q2 foi apresentar evidências para afirmar esta
premissa2. A ideia de Peirce é que a autoconsciência é um tipo de conhecimento que
deve ser inferido a partir do erro, isto é, a partir do reconhecimento de que há uma
discrepância entre representação e objeto representado. A existência de um "ego" é uma
hipótese que serviria, de acordo com esta teoria exposta na Q2, para explicar a
possibilidade de erro (nas representações). Como esta hipótese só pode ser levantada na
dependência do conhecimento de um mundo externo (que é a causa da discrepância
entre representação e objeto representado), logo a cognição que afirma existir um ego
não é originária, mas derivada de dados a respeito de um mundo externo.
Assim, terminamos a análise da segunda das sete questões estabelecidas por Peirce no
QFCM. A segunda questão era justamente se temos ou não uma autoconsciência
intuitiva. A pergunta desta Q1 é se o conhecimento que temos da existência de nosso
"eu privado", de nosso ego é intuitivo. A resposta é (novamente) negativa. De acordo
com as palavras do próprio autor, "devemos concluir, então, que não há nenhuma
necessidade em supor que haja uma autoconsciência intuitiva, uma vez que ela [a
autoconsciência] pode facilmente ser resultado de inferência" (CP 5.237 [1868])121
.
121
No original: "It is to be concluded, then, that there is no necessity of supposing an intuitive self-
consciousness, since self-consciousness may easily be the result of inference".
168
5.2 Análise da Q3: sobre elementos subjetivos de diferentes tipos
de cognições
Questão 3: Se temos uma capacidade intuitiva de distinguir
entre os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição.
Nesta terceira questão, Peirce focaliza outro caso ao qual o conceito de intuição parece
ser aplicado sem sombras de dúvida: a capacidade que temos de distinguir entre os
diversos tipos de estados mentais, i.e., a capacidade que temos em saber se estamos
sonhando, imaginando, concebendo, acreditando etc. Antes de analisarmos o
argumento, façamos uma breve análise do primeiro parágrafo da Q3 (CP 5,238 [1868]),
pois, como nos casos anteriores, neste espaço, Peirce apresenta a definição do conceito
central da questão: o que denomina elementos subjetivos dos diferentes tipos de
cognição. Neste primeiro parágrafo, Peirce afirma que toda cognição tem duas partes
elementares e passa a defini-las. A chamada parte objetiva ou elemento objetivo é
aquilo a que a cognição se refere, é o que a cognição representa, é seu objeto. A
chamada parte subjetiva ou elemento subjetivo é algum modo (ativo ou passivo)122
pelo
qual o ego representa o objeto (a parte objetiva) da cognição. Passemos ao "reino dos
exemplos" (onde tudo se torna mais "palpável").
Por exemplo, suponha que um rapaz esteja recordando de como era a vila onde morava
durante os anos de sua infância. Esta cognição pode ser dividida, de acordo com a
definição de Peirce, naquelas duas partes. O elemento objetivo desta cognição é a
imagem que o homem tem diante de si durante esta recordação. Esta imagem é o objeto
imediato desta cognição. Suponha, então, que tal homem tenha noção de que aquilo que
está vendo é apenas uma recordação e não se confunde, de forma alguma, com uma
visão da vila real (como uma experiência atual do local em questão). Se ele é capaz de
saber que está diante de uma lembrança (e não da vila real), então deve haver algum
elemento, nesta cognição, que o permita fazer tal diferenciação. Este elemento é aquilo
que foi denominado por Peirce de elemento subjetivo da cognição. A questão, como
veremos, é justamente se temos uma capacidade intuitiva para conhecer este elemento
subjetivo das cognições.
122
No texto original Peirce utiliza os termos "ação" e "paixão": "toda cognição envolve algo representado,
ou aquilo do que estamos conscientes, e alguma ação ou paixão do eu pela qual ele [este algo] se torna
representado (CP 5.238 [1868] - no original: "every cognition involves something represented, or that of
which we are conscious, and some action or passion of the self whereby it becomes represented"). Os
termos "ação" e "paixão" têm uma longa trajetória na história da filosofia e já aparecem, por exemplo,
como duas categorias aristotélicas. Neste caso, a categoria da paixão é entendida como inverso da
categoria da ação, i.e., a paixão pode ser entendida como o caráter passivo da ação: um exemplo da
categoria de ação é "(ele) ama" e um exemplo da categoria da paixão é "(ele) é amado". Entretanto, o uso
que Peirce faz desses termos nos parece mais próximo de uma acepção mais moderna (ainda que muito
geral). Na filosofia moderna, o termo "paixão" se refere a afecções ou modificações passivas da alma (ou
do "eu" na linguagem utilizada por Peirce no trecho acima citado) e, nisto, seria o oposto do termo
"ação", que, por sua vez, se refere a uma modificação ativa da alma (ou do "eu").
169
Ora, ainda que admitamos que, ao termos determinada cognição, tenhamos um acesso
direto ao objeto (ou ao elemento objetivo) desta cognição e, por este exato motivo,
Peirce o denominou de objeto imediato (da cognição)123
, não pode ser considerado auto-
evidente que tenhamos uma acesso imediato do elemento subjetivo de qualquer
cognição.
A cognição é em si mesma uma intuição de seu elemento objetivo, que pode
ser, então, chamado de objeto imediato. O elemento subjetivo não é
necessariamente conhecido imediatamente, mas é possível que tal intuição do
elemento subjetivo (...) deva acompanhar toda cognição. A questão é se este é
o caso.
(CP 5.238 [1868])124
Definidos os termos (elementos objetivo e subjetivo da cognição) e estabelecida a
questão (se há capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos subjetivos de
diferentes tipos de cognição), passemos à análise e argumentação desenvolvidas por
Peirce nesta Q3.
O primeiro ponto que devemos analisar é o argumento a respeito da suposta
autoevidência da capacidade sob investigação, pois, como afirmado no trecho transcrito
acima “o elemento subjetivo não é necessariamente conhecido imediatamente” (CP
5.238 [1868]). A estratégia relativa a este argumento é a mesma utilizada em Q2:
recorrer ao resultado da argumentação desenvolvida em Q1 (i.e., de que não há motivo
para supor que haja uma capacidade intuitiva de distinguir intuições) para "desarmar" a
certeza de que há uma capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição. O argumento é o que segue:
(...) nota-se que não sabemos intuitivamente da existência desta faculdade,
pois esta é uma faculdade intuitiva e nós não podemos intuitivamente saber
que uma cognição é intuitiva. A questão é, então, se é necessário supor a
existência desta faculdade ou se os fatos podem ser explicados sem esta
suposição.
(CP 5.240 [1868])125
123
Neste trecho Peirce novamente admite haver intuição. O outro trecho identificado é o segundo
parágrafo da Q1 (CP 5.214 [1868]). Conforme já explicamos, acreditamos que Peirce se refere nestes dois
trechos ao mesmo tipo de intuição. É o que denominamos de intuição de tipo II e a admissão, dentro da
teoria da cognição, da existência deste tipo de intuição gera uma inconsistência interna, que pretendemos
provar ser aparente. Esta inconsistência, que foi (por nós) denominada de problema do segundo tipo de
intuição só será tratado ao final das análises relativas à quarta questão do QFCM. 124
No original: “The cognition itself is an intuition of its objective element, which may therefore be
called, also, the immediate object. The subjective element is not necessarily immediately known, but it is
possible that such an intuition of the subjective element (…) should accompany every cognition. The
question is whether this is so”.
125
No original: “(...) be it noted that we do not intuitively know the existence of this faculty. For it is an
intuitive one, and we cannot intuitively know that a cognition is intuitive. The question is, therefore,
whether it is necessary to suppose the existence of this faculty, or whether then the facts can be explained
without this supposition”.
170
Para que fosse intuitivamente sabido (fosse auto-evidente) que temos esta faculdade
intuitiva que nos torna capaz de diferenciar os tipos de cognição pelos seus elementos
subjetivos, seria necessário que tivéssemos uma capacidade intuitiva de distinguir uma
intuição de cognições determinadas (por outras cognições). Podemos explicitar este
argumento peirceano no seguinte esquema:
Argumento sobre a auto-evidência da capacidade intuitiva de distinguir os
elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição
Premissa1: Se fosse auto-evidente a capacidade intuitiva de distinguir os
elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição, então teríamos a
capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de cognições determinadas (por
outras cognições).
Premissa 2 (estabelecida em Q1): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir
uma intuição de cognições determinadas (por outras cognições).
Conclusão: Não é auto-evidente que tenhamos a capacidade intuitiva de distinguir
os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição.
As linhas argumentativas deste ponto do texto correm em paralelo com o que já foi
apresentando na questão anterior: só podemos afirmar que é, para nós, evidente que uma
cognição específica pertença a determinado tipo de cognição por possuir a propriedade
A se pressupormos que nós temos a capacidade de identificar A (e distingui-lo de B, C,
etc.). O problema é justamente a ausência desta faculdade, o que foi demonstrado na
primeira questão. Pode até ser que haja a tal capacidade intuitiva para se distinguir entre
os elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição, entretanto o que Peirce
novamente mostra é que isto não pode ser (de forma alguma) considerado algo que é
conhecido de forma intuitiva,ou seja, isto não é auto-evidente. Como não é evidente por
si mesmo, devem-se buscar evidências que apoiem a hipótese de que haja tal capacidade
intuitiva.
Como já é de costume, dividamos as duas respostas possíveis em caso I e caso II. No
primeiro caso, afirmamos que é intuitiva nossa capacidade para distinguir os elementos
subjetivos dos diferentes tipos de cognição e, no segundo caso, afirmamos que tal
capacidade é derivada. Analisemos o primeiro destes casos.
Como suposta evidência de que seria intuitiva a capacidade de distinguir os elementos
subjetivos dos diferentes tipos de cognição, Peirce apresenta os seguintes fatos: há uma
diferença imensa, por exemplo, "entre ver uma cor e imaginá-la" e também há uma
considerável diferença entre o "sonho mais vívido e a realidade". Entretanto, aqueles
que defendem que estes fatos são evidências nas quais podemos sustentar a ideia de que
a capacidade em questão é intuitiva confiam num argumento insustentável (de acordo
171
com a exposição de Peirce). Fiquemos apenas com o exemplo da distinção entre sonho
e realidade, mas a análise e argumentação desenvolvidas valem também para a outra
distinção apresentada, a saber, visão e imaginação. O argumento em questão e que
Peirce critica pode ser colocado nas seguintes palavras:
Argumento (criticado por Peirce) sobre distinção sonho/realidade
Premissa: Há diferenças entre sonhos e realidade.
Conclusão: Somos capazes de distinguir intuitivamente sonhos de realidade.
Peirce não coloca em dúvida a verdade expressa nesta premissa. O que é criticado neste
ponto é justamente a passagem da premissa para a conclusão. Esta não se segue, de
acordo com a crítica, daquela. O problema deste argumento é o argumento como um
todo. Não há duvida de que haja marcas distintivas nos sonhos que nos permitem
identificá-los como sonhos126
em contraposição à experiência atual. Aliás, de acordo
com que podemos entender do argumento peirceano neste trecho do texto, o fato de,
graças a essas marcas, haver uma diferença imensa entre sonho e realidade deve ser
considerado uma fonte de onde tiramos a seguinte ideia: há a possibilidade de se
distinguir entre sonho e realidade. Mas, se a possibilidade de distinguir (sonho de
realidade) é retirada da observação de um fato (i.e., de que há marcas distintivas), então
obviamente nossa capacidade de distinguir sonho de realidade não é intuitiva (como
queria o argumento criticado), mas é inferida. Portanto, aquela premissa que
supostamente seria uma evidência para a hipótese de que seria intuitiva a capacidade de
distinguir os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição acaba por se
apresentar como uma evidência da tese contrária: de que é inferencial a capacidade de
distinguir os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição. Só sabemos que
dois estados mentais (ou cognições) são diferentes pela observação (e comparação) de
certas marcas que carregam. Diante de um sonho não sabemos imediatamente que
estamos sonhando, mas apenas nos tornamos conscientes de que estamos em tal estado
a partir do momento que observamos certas características e delas inferimos de que tipo
de cognição se trata. Portanto, a evidência que seria favorável ao caso I acabou se
apresentando como favorável ao caso II.
Ao final desta Q3, Peirce estende esta argumentação para a distinção entre outros tipos
de estados mentais ou, na terminologia do QFCM, outros tipos de cognições. Por
exemplo, é notável que haja também uma grande diferença entre acreditar em algo
(estar num estado de crença) e apenas conceber algo. Para Peirce, "podemos distinguir
inquestionavelmente uma crença de uma concepção, na maioria dos casos, por meio de
126
De certa forma o posicionamento crítico de Peirce diante deste argumento já foi antecipado num trecho
da primeira questão (aquele que ele trata de "marcas" em sonhos que nos permitem diferenciá-los da
realidade - cf. CP 5.217[1868]).
172
um sentimento peculiar de convicção"(CP 5.242 [1868])127
. No caso das faculdades em
questão (acreditar e conceber), a marca distintiva do estado de crença é este "peculiar
sentimento de convicção" que o acompanha. Descobrimos que acreditamos em algo por
uma inferência da sensação de convicção e também por observação de fatos externos.
Antes que nos aprofundemos em nossas análises sobre este trecho específico do texto
peirceano (CP 5.242 [1868]), vamos abrir um parêntese para fazer um comentário
acerca de uma análise desenvolvida por Gallie a respeito do reconhecimento do estado
de crença. Este comentário é uma excelente oportunidade para que enxerguemos este
trecho da Q3 dentro das linhas argumentativas mais gerais do QFCM.
Em sua análise do artigo QFCM, Gallie afirma que a tese peirceana de que sabemos que
acreditamos por um sentimento de convicção que acompanha o estado mental de crença
seria baseada numa teoria elaborada por um psicólogo escocês chamado Alexander Bain
(1818-1903). O trecho em questão é o seguinte:
(...) Peirce argumenta, por sugestão do psicólogo escocês Alexander Bain,
que nós sabemos quando estamos acreditando por conta de nossa prontidão
para agir a respeito daquilo que acreditamos, enquanto que, quando apenas
consideramos uma suposição, não podemos encontrar prontidão para agir
alguma.
(Gallie, 1966, p. 67)
O primeiro ponto a ser observado é que há uma diferença entre a terminologia utilizada
por Gallie em sua análise do argumento de Peirce neste trecho da Q3 e a terminologia
utilizada pelo próprio autor cujo texto é analisado. As expressões empregadas por Peirce
são "um sentimento peculiar de convicção" e "sensação de convicção" (CP 5.242
[1868]). A expressão que Gallie utiliza é "prontidão para agir" ("readiness to act"). Na
verdade, o que Gallie parece fazer em sua análise é apresentar a tese peirceana de
acordo com uma reformulação que o próprio Peirce fez ao longo dos anos 1870. A
exemplo do que fez na análise sobre o argumento peirceano para a questão da
percepção128
, é bem possível que Gallie esteja novamente "preenchendo" o tratamento
que Peirce deu a esta questão em 1868 com elementos retirados de escritos posteriores a
esta data. A diferença é que, desta vez, ele não avisou que executaria tal
"preenchimento". Estamos fazendo esta observação, pois acreditamos haver algumas
dúvidas pairando sobre a afirmação de que Peirce, no QFCM, recebeu influência direta
da teoria de Bain. Acreditamos que a tese de Gallie sobre a tal influência na tese de
Peirce deve ser apresentada, no máximo, sob a forma de hipótese. Como pretendemos
demonstrar a seguir, não há evidências que nos permitam estabelecer esta tese de Gallie.
Para esta análise que faremos da tese de Gallie (a respeito daquela tese de Peirce),
lançaremos mão de informações obtidas por Max Fisch após uma minuciosa pesquisa
que resultou num artigo intitulado "Alexander Bain e a genealogia do pragmatismo"
127
No original: "Now, we can unquestionably distinguish a belief from a conception, in most cases, by
means of a peculiar feeling of conviction"; 128
Neste trecho (que já citamos) de sua análise, Gallie (1966, p. 67) afirma estar "preenchendo seu
tratamento inicial desta questão à luz de seus escritos de maturidade".
173
(publicado originalmente em 1954). Óbvio que o propósito de Fisch é correlacionar a
teoria da crença de Bain com o nascimento do pragmatismo, o que ocorreu apenas no
início da década de 1870. Entretanto, parte das informações apresentadas neste artigo
nos servirá para avaliarmos se há condições ou não de se afirmar que Peirce, em 1868
(especificamente no QFCM), já tinha conhecimento da teoria da crença de Bain.
Em 1907, numa carta ao editor da revista The Nation (CP 5.12 [1907]), ao retraçar as
origens do pragmatismo nas reuniões do "clube metafísico" (metaphysical club)129
ocorridas em Cambridge, Massachusetts, no início da década de 1870, Peirce afirma que
o pragmatismo é pouco mais que um corolário da definição de crença elaborada por
Bain. A definição em questão, ainda segundo Peirce, é que crença é aquilo "sobre o qual
um homem está disposto a agir" (CP 5.12 [1907])130
. Este período originário ao qual se
refere o filósofo norte-americano é aproximadamente 1872 e, de acordo com a pesquisa
de Fisch (1986, p. 79), não foi encontrada nenhuma afirmação de Peirce anterior ao ano
de 1907 que conecte o pragmatismo à teoria da crença de Bain. É verdade que Fisch,
neste artigo escrito em 1954, deixou claro não ter encontrado tal afirmação em nenhum
dos escritos peirceanos publicados e também não tê-la encontrado em grande parte de
seus escritos não-publicados, o que significa que sua investigação não pôde se estender
à totalidade dos escritos (aliás, a dificuldade em ter acesso à obra de Peirce na íntegra é
algo que acomete ainda hoje estudiosos e especialistas mesmo passados 60 anos da
publicação deste artigo específico de Fisch e transcorridos exatos 100 anos da morte do
próprio filósofo). De qualquer forma, o importante para nossa análise é que esta
afirmação (feita em 1907) que conecta o pragmatismo à teoria de Bain, só nos garante
que Peirce teria tido conhecimento desta teoria a partir do início do anos 1870 (a época
do nascimento do pragmatismo). A tese de Gallie (1966, p. 67) que está sob
questionamento é que Peirce, já no QFCM em 1868, recebeu influência direta da teoria
de Bain. Como Gallie, em seu texto, não ofereceu evidências que suportem sua tese,
colocamo-nos a procurá-las e encontramos dois fatos que parecem poder ser arrolados
como evidências favoráveis à tese de Gallie:
1) No artigo subsequente ao QFCM, "Algumas consequências das quatro
incapacidades", também publicado em 1868, há um trecho em que Peirce utiliza a
expressão "disposto (ou preparado) para agir" em referência ao conceito de
crença.
2) Peirce possuía uma cópia da primeira edição da obra "Ciência mental e moral"
(Mental and Moral Science) de Bain publicada em 1868.
129
O clube metafísico era um grupo de discussões filosóficas formado jovens pensadores norte-
americanos cujas ideias exerceriam considerável influência na filosofia do século XX. O clube metafísico
ficou conhecido por ser o berço do pragmatismo (cf. Fisch, 1986, p. 137 e cf. também Fisch, 1981). Neste
grupo estavam, além de Peirce, o filósofo e psicólogo William James e o jurista Oliver Wendell Holmes
Jr. (que, mais tarde, chegaria a Suprema Corte de Justiça). 130
No original: "(...) that upon which a man is prepared to act."
174
Vejamos se este primeiro fato acima apresentado pode cumprir o papel de evidência que
sustente a tese de Gallie. O trecho em questão do artigo "Algumas consequências das
quatro incapacidades" é o seguinte:
Porém a mente realmente percorre todo o processo silogístico? Certamente é
muito duvidoso se de fato a conclusão como algo que existe
independentemente na mente, tal como uma imagem repentinamente
desaloje duas premissas que existem naquela mente de forma semelhante.
Entretanto, é uma questão de experiência constante que, se um homem é
levado a acreditar nas premissas, no sentido que ele agirá a partir delas e
também afirmará que elas são verdadeiras, então, sob circunstâncias
favoráveis, ele irá também estar pronto para agir a partir da conclusão e
afirmar que também ela é verdadeira. Algo, portanto, ocorre dentro do
organismo e é equivalente ao processo silogístico.
(CP 5.268 [1868])131
É verdade que neste trecho Peirce entende o estado de crença como um estado no qual o
indivíduo está disposto a agir com relação àquilo em que se acredita (logo que as
condições aparecerem). E também é verdade que os termos utilizados por Peirce já estão
mais próximos dos termos utilizados por Gallie em sua análise da Q3 do QFCM.
Entretanto, essas verdades não podem ser consideradas provas de que Peirce recebeu
influência direta da teoria de Bain no QFCM, pois, neste trecho do artigo subsequente
transcrito acima, não há evidência textual (i.e., não há referência ao nome ou à teoria de
Bain). E, ainda que houvesse, isto apenas provaria que Peirce foi influenciado neste
segundo artigo ("Algumas consequências das quatro incapacidades"), o que não nos
autorizaria concluir que houve influência também no primeiro artigo (QFCM). Por si só,
esta semelhança terminológica pode, no máximo, apontar para a hipótese de que tenha
havido influência direta de Bain em Peirce, jamais sustentar alguma certeza a respeito
desta questão.
O segundo item acima também não será muito feliz em sua missão de comprovar a tese
de Gallie. O fato de Peirce possuir uma cópia de um livro de Bain (que continha uma
exposição de sua teoria da crença) publicado em 1868 não significa que ele adquiriu
este livro neste ano e, ainda que tenha adquirido, isso não significa que tenha lido. De
acordo com o levantamento realizado por Fisch, não podemos encontrar evidências (que
Peirce teria tido conhecimento da teoria da crença de Bain antes do início da década de
1870) nem nos escritos de Peirce e nem mesmo na cópia do livro que ele possuía.
Peirce e James ambos possuíam cópias da primeira edição do livro "Ciência
mental e moral" (Mental and Moral Science) de Bain publicado em 1868 em
Londres. A cópia de James, hoje na biblioteca Houghton na universidade de
131
No original: "But does the mind in fact go through the syllogistic process? It is certainly very doubtful
whether a conclusion -- as something existing in the mind independently, like an image -- suddenly
displaces two premisses existing in the mind in a similar way. But it is a matter of constant experience,
that if a man is made to believe in the premisses, in the sense that he will act from them and will say that
they are true, under favorable conditions he will also be ready to act from the conclusion and to say that
that is true. Something, therefore, takes place within the organism which is equivalent to the syllogistic
process".
175
Harvard, o capítulo sobre crença tem marcações e anotações. Na cópia de
Peirce, hoje na biblioteca da Universidade John Hopkins, não há nenhum tipo
de marcação neste capítulo.
(Fisch, 1986, p. 88)
Estes dois fatos acima enumerados não servem, portanto, para apoiar de forma
inconteste a tese de Gallie. Não que seja impossível o que ela afirma, porém, por falta
de provas mais concretas, acreditamos que esta tese estaria muito bem caso recuasse
para o posto de hipótese. É apenas provável que Peirce tenha sofrido influência direta de
Bain neste trecho específico da Q3 (CP 5.242 [1868]). Aliás, é mais provável que a tese
peirceana apresentada neste trecho em questão seja independente da teoria de Bain. É
justamente a favor de tal independência que passamos a argumentar a partir do próximo
parágrafo.
A tese peirceana de que sabemos que acreditamos por um sentimento de convicção que
acompanha o estado mental de crença é uma afirmação sustentada por Peirce na ocasião
em que examinava uma das distinções (entre suposição/crença) que escolheu para serem
analisadas na terceira questão do QFCM. A conclusão a qual chegou nesta parte da Q3 é
coerente não só com as conclusões às quais chegou quando examinou as outras
distinções analisadas na Q3 (como sonho/realidade ou imaginação/visão), mas também
é coerente com as conclusões de outras análises em outras questões do QFCM. Assim,
já era de se esperar que Peirce chegasse a sustentar, neste caso específico da Q3, a tese
que efetivamente sustenta. Mesmo que não tivesse tido acesso à teoria de Bain, Peirce
sustentaria esta tese (ou uma que fosse equivalente), porque ela decorre de um
movimento interno ao pensamento peirceano. Tal tese é decorrente do movimento
argumentativo de Peirce no QFCM em busca de uma teoria da cognição alternativa às
teorias que recorrem ao conceito de intuição.
Recordemos que a pergunta de Peirce neste trecho não é se temos ou não a capacidade
de saber que determinada cognição é relativa a um sonho ou à realidade. A pergunta é
se este conhecimento que efetivamente podemos ter é intuitivo (direto) ou inferencial
(indireto). Como já é de se esperar, Peirce defende a tese de que tal conhecimento é
inferencial. E, com o intuito de defender esta tese, ele afirma que, para se descobrir se
estamos ou não em "estado de crença" com relação à determinada ideia ou cognição,
devemos observar algo externo à ideia ou à cognição propriamente dita. Este algo
externo é justamente sentimento de convicção que, de acordo com Peirce, acompanha o
estado mental de crença e que não se confunde de forma alguma com cognição
propriamente dita (com relação à qual se tem a crença). É esta "ajuda externa" que
fornece a este conhecimento o caráter inferencial. Pela simples contemplação da
cognição de forma isolada e em um só instante não podemos saber se ela é objeto de
crença ou uma mera suposição. Não somos capazes de fazer esta distinção de forma
imediata. Sabemos que acreditamos naquela cognição ou ideia graças a uma inferência
efetuada a partir de algo que não é aquela cognição ou ideia, mas que a acompanha, uma
marca.
176
Então, se supuséssemos que Peirce não tivesse tido acesso à teoria de Bain em 1868,
ainda assim poderíamos imaginar que o filósofo norte-americano teria chegado a mesma
conclusão com relação a este trecho específico da Q3 (CP 5.242 [1868]), porque esta
conclusão é coerente com as demais encontradas nesta mesma questão e com a
argumentação geral desenvolvida ao longo do QFCM. No caso contrário, i.e., no
cenário em que Peirce efetivamente teve conhecimento prévio da teoria de Bain, ainda
assim poderíamos notar que Peirce não só não faz referência direta ao nome do
psicólogo escocês ou à sua teoria como também não utiliza, ao menos no QFCM,
terminologia a ela associada. Portanto, ainda nesta situação possível em que Peirce teria
tido conhecimento prévio da teoria de Bain, é muito mais provável que esta tenha
entrado num papel de apoio independente da tese peirceana e não como uma sugestão
de base como nos faz acreditar a exposição de Gallie do assunto.
Antes de continuarmos, enfatizemos uma vez mais que o tratamento que Peirce deu à
distinção entre crença e suposição no trecho recém discutido obedece a uma estratégia
argumentativa que atravessa todo o QFCM. Para finalizarmos nossa análise desta Q3,
devemos desenvolver um exemplo para explicitar o argumento que sustenta a resposta
de Peirce a esta terceira questão. O exemplo que segue é a respeito da capacidade em
distinguir sonho de realidade, ou seja, o acesso ao denominado elemento subjetivo (ou
parte subjetiva) de uma cognição.
De acordo com o exposto por Peirce ainda na Q1 (CP 5.217[1868]), uma das principais
marcas distintivas dos sonhos seria certa "fragmentariedade"132
. Então, imaginemos um
cenário em que um sonho possa ser diferenciado da realidade a partir da percepção desta
característica de "fragmentariedade". Suponha que estejamos relaxando numa cadeira de
praia com os olhos semicerrados e, de repente, nos vem à mente uma sequência de
imagens de uma pessoa que tenta insistentemente se comunicar conosco em uma língua
que desconhecemos. De acordo com a teoria de Peirce, não seríamos capazes de afirmar
que o que vimos era um sonho simplesmente observando uma imagem da sequência.
Como a marca distintiva do sonho seria certa "fragmentariedade", só poderíamos
percebê-la ao longo da sequência. Para podermos julgar se estamos diante de um sonho
ou de uma experiência real precisamos observar, ao menos, mais de uma imagem. Caso
contrário, com apenas uma imagem da sequência, não seria possível haver comparação
entre elas e, assim, não poderíamos saber que possuem a propriedade de
"fragmentariedade". A cognição que nos diz que "esta sequência de imagens é um
sonho" é determinada por cognições anteriores (desse mesmo objeto). E que cognições
anteriores são estas? Por exemplo, a cognição que nos afirma que "esta sequência de
imagens tem um caráter fragmentário (ou possui a propriedade da 'fragmentariedade')"
seria uma cognição anterior àquela (bem como seriam todas as outras que determinaram
esta última). Por este motivo, o conhecimento de que estamos diante de um sonho é
inferencial (e não intuitivo). Outro modo ainda de expor este ponto é o seguinte: se
132
Caráter do que é fragmentário (tradução de "fragmentariness").
177
precisamos de mais de uma observação ou de mais de uma cognição para distinguir
entre sonho e realidade, então esta distinção "leva tempo" para ser feita133
.
Uma pergunta possível é se esta análise valeria para as outras distinções, principalmente
para a diferenciação entre estado de crença e de suposição. Nesta não parece haver
nenhuma sequência de imagens envolvida (como ocorre nos sonhos, fabulações,
imaginações, etc.) e aparentemente uma simples contemplação da ideia bastaria para
saber se a classificamos no grupo das "ideias meramente supostas" ou no grupo das
"ideias que efetivamente acreditamos". O importante é notar o papel da marca distintiva
neste caso. Repare que, para saber se acreditamos numa ideia que nos ocorre, temos que
"observar" não somente a ideia propriamente dita, mas também se ela carrega aquela
marca distintiva que a identificaria como pertencente ao grupo das "ideias que
efetivamente acreditamos". Suponha que venha à nossa mente a ideia de que "há um
penhasco à frente". Como podemos saber se esta ideia é algo no acreditamos ou
simplesmente uma suposição? Esta ideia (ou cognição) pertence à qual grupo: os das
"ideias meramente supostas" ou os das "ideias nas quais efetivamente acreditamos"?
Segundo a teoria peirceana apresentada no QFCM, só podemos julgar a cognição de que
"há um penhasco à frente" como uma crença se conseguimos "observar" um certo
sentimento de convicção "ao lado" dela. E, para notar esta marca, precisamos de outra
cognição. Portanto, a cognição que nos diz que estamos diante de uma crença é uma
cognição determinada por outra cognição. A primeira delas só vem à mente na
dependência da segunda. Ora, se é determinada por uma cognição anterior, a capacidade
que temos para fazer tal distinção é (novamente) inferencial, indireta, mediada, etc.
Mais uma vez, a distinção "leva tempo". Ela não pode ser feita de uma só vez, porque
exige mais de uma "observação", mais de uma cognição, em resumo, mais de um
instante.
Argumento para a distinção entre os elementos subjetivos de diferentes tipos de
cognição.
Premissa1: Esta cognição possui a marca x.
Premissa2: Todas as cognições que possuem esta marca x, são classificadas como
cognições do tipo Y.
Conclusão: Esta cognição é do tipo Y.
No caso da distinção entre estado de crença e de suposição, a tal marca x seria o
sentimento de convicção. No caso da distinção entre sonho e realidade, a tal marca
poderia ser aquela "fragmentariedade" (ou a ausência dela, a continuidade). O fator
133
Argumento semelhante foi utilizado nas análises que Peirce elaborou para os casos a respeito de
fenômenos perceptivos apresentados naquela segunda parte da Q1 (do CP 5.219 até CP 5.224).
178
decisivo nesta questão (Q3) é o papel destas marcas distintivas. Todos sabemos que, ao
longo da década 1870, Peirce reformulou sua concepção de crença colocando-a dentro
do quadro geral de uma teoria que pretendia explicar a passagem do estado de dúvida
para o estado de crença (bem como alguns modos de fixação deste último). Uma das
principais características desta teoria exposta num artigo intitulado "a fixação da
crença" (CP 5.358-87 [1877]) é ter relacionado diretamente tanto o estado de dúvida
como o estado de crença ao conceito de ação134
. Se fôssemos analisar aquele exemplo
do penhasco à luz desta teoria, afirmaríamos que só podemos julgar a cognição de que
"há um penhasco à frente" como uma cognição na qual efetivamente acreditamos se
conseguimos notar que estaríamos dispostos a agir de acordo com esta cognição. Em
outras palavras, sabemos que acreditamos que "há uma penhasco à frente" se notarmos
que estaríamos dispostos a agir como uma pessoa que acredita que está diante de um
penhasco. O problema é que, no QFCM, Peirce não relaciona de forma direta o estado
de crença à ação (ou à disposição para ação). Esta ligação só foi desenvolvida anos
depois e dentro de um quadro teórico diferente (com propósitos também distintos)135
.
No QFCM, para estabelecer que a distinção crença/suposição é fruto de uma inferência,
o argumento de Peirce recorre somente à ideia de marca distintiva, neste caso, o
sentimento de convicção. Embora este "sentimento de convicção" possa parecer vago e
insuficiente para os propósitos da teoria exposta no artigo "a fixação da crença" (do
final da década de 1870), ele se mostra bem adequado aos desígnios divisados no
QFCM (um decênio antes). Se trouxermos elementos posteriores para a análise do
QFCM, se fizermos tal antecipação, corremos o risco de ofuscar o que há de mais
importante neste trecho da Q3 que trata de crença: a necessidade em se recorrer a
fatores exteriores à própria cognição que pretendemos saber se é ou não uma crença. O
fator exterior à cognição sob questão é justamente a marca distintiva. Assim, já estamos
em condições de apresentar de forma esquemática o argumento geral desta terceira
questão.
134
Nesta teoria, tanto o estado de dúvida como o estado de crença levam à ação. Entretanto de forma
distintas (cf. DE WAAL, 2007, p. 32). 135
É possível que a tese defendida no trecho específico da Q3 do QFCM seja também válida dentro do
quadro geral da teoria do final da década de 1870 (embora, para esta teoria e para seus argumentos,
aquela tese não pareça ter uma importância muito direta). Nos dois contextos teóricos, a distinção
crença/suposição continua sendo determinada por cognições anteriores (e é apenas isto que importa no
contexto argumentativo do QFCM). Comparemos duas versões da mesma tese nos dois contextos
teóricos. A primeira delas é uma versão da tese na qual estão presentes apenas termos utilizados por
Peirce neste artigo de 1868 (QFCM). A segunda é uma versão na qual estão presentes termos utilizados
por Peirce no artigo de 1877 (a fixação da crença CP 5.358-87 [1877]). Na primeira versão (a relativa
ao QFCM), a tese pode ser colocada da seguinte forma: a cognição que nos diz que a cognição de que "há
um penhasco à frente" é uma crença é determinada por uma cognição que nos diz que, naquele momento,
"há em nosso espírito um sentimento de convicção". Por sua vez, na segunda versão (a relativa ao artigo
"a fixação da crença"), a tese pode ser colocada da seguinte forma: a cognição que nos diz que a cognição
de que "há um penhasco à frente" é uma crença é determinada por uma cognição que nos diz que
"estaríamos dispostos a agir a partir da ideia de que 'há um penhasco à frente' ". De qualquer forma, a
cognição que nos revela estarmos diante de uma crença seria determinada por cognições anteriores (ou
pela cognição relativa ao sentimento de convicção [que seria a marca distintiva] ou pela cognição relativa
à disposição para agir (que também teria o papel de marca distintiva).
179
argumento geral da Q3
Premissa1: Se houvesse capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição, então não seria necessário recorrer a
dados externos a uma cognição específica para se saber a qual tipo ela pertenceria.
Premissa2: É necessário recorrer a dados externos a uma cognição específica para
se saber a qual tipo (de cognição) ela pertence.
Conclusão: Não há capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição.
Se este argumento geral que atravessa toda a Q3 for comparado com aquele da Q2,
pode-se reparar que estruturalmente o papel pelas segundas premissas de cada um deles
é muito semelhante. Novamente, deve-se notar que grande parte da Q3 foi dedicada à
apresentação de evidências que sustentassem a segunda premissa acima. O resultado da
argumentação é que não temos a capacidade de, por uma pura contemplação de uma
cognição, saber de forma direta se a que tipo ela deve pertencer. Para que possamos
classificar, é necessário sempre recorrer a algo externo à própria cognição a ser
classificada. Diante de determinada cognição, por exemplo, não temos nem a
capacidade intuitiva de saber se ela é proveniente de nosso espírito ou é algo externo.
Para fazer esta avaliação é necessário que observemos elementos externos à própria
cognição (alguma "marca"). Esta incapacidade vai ter um papel importante nas
argumentações desenvolvidas para a Q4.
Assim, terminamos a análise da terceira das sete questões estabelecidas por Peirce no
QFCM. A terceira questão era justamente se temos ou não uma capacidade intuitiva de
distinguir entre os elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição. A pergunta
desta Q3 é se é intuitivo o conhecimento que temos que nos permite classificar uma
cognição como algo pertencente a algum tipo (por exemplo, sonho ou realidade, crença
ou suposição, etc.). A resposta é (novamente) negativa. Não há motivos que nos levem a
suspeitar que exista uma capacidade intuitiva de distinguir entre elementos subjetivos
dos diferentes tipos de cognição. Aliás, como já foi feito antes, a estratégia de Peirce é
demonstrar que é desnecessária a suposição de que seria intuitiva a capacidade de
distinguir os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição, pois podemos
explicar tal capacidade a partir da noção de inferência. Por este motivo, nas últimas
linhas da Q3, depois de ter apresentado a explicação alternativa àquela que recorre à
peculiar capacidade da intuição, Peirce afirma que "os argumentos em favor desta
peculiar capacidade da consciência desaparece e a presunção é novamente contrária a tal
hipótese" (CP 5.243 [1868])136
.
136
No original: "the arguments in favor of this peculiar power of consciousness disappear, and the
presumption is again against such a hypothesis"
180
CAPÍTULO 6
Análise da quarta questão do texto "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas
para o homem"
Este sexto capítulo está quase inteiramente dedicado à análise da quarta questão. Na Q4,
Peirce procurou estabelecer que a sua teoria inferencial da cognição é plenamente capaz
de explicar como funciona a capacidade que os indivíduos possuem de conhecer fatos
internos. A pergunta é a seguinte: como é gerado o conhecimento que o indivíduo
obtém sobre sua própria mente, sobre o seu "interior"? Uma minuciosa análise do
tratamento que Peirce dá a esta quarta questão é fundamental para entendermos o modo
como a tese central do QFCM é estabelecida (na Q5). Deve-se enfatizar que o objetivo
de Peirce nestas três últimas questões (tanto nesta Q4 bem como na Q2 e Q3) é
justamente estabelecer que as capacidades137
em torno das quais giram cada uma dessas
questões podem ser melhor explicadas teoricamente a partir do conceito de inferência, o
que tornaria desnecessária qualquer recurso ao conceito de intuição. Antes de passarmos
à quinta questão (cuja análise deve ser apresentada no sétimo capítulo), separamos uma
seção deste sexto capítulo para tratar de um problema que viemos evitando desde o
quarto capítulo (no qual analisamos a Q1). Este problema é o que denominamos de
segundo tipo de intuição (dentro do QFCM).
137
Capacidade de se gerar autoconsciência (Q2), a capacidade para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição (Q3) e a capacidade de introspecção (Q4).
181
6.1 Análise da Q4: sobre a capacidade de introspecção
Questão 4: Se temos alguma capacidade de introspecção ou se
nosso conhecimento do mundo interior é derivado de
observação de fatos externos.
Nesta quarta questão, Peirce trata de uma capacidade (reivindicada para o homem) que é
geralmente entendida como um caso claro de intuição: a introspecção. Aceita a ideia de
que há um conjunto de fatos dos quais se diz geralmente que são externos enquanto
outros são considerados internos, pode-se colocar a seguinte pergunta: como são
conhecidos estes fatos (considerados) internos?
Da forma como é estabelecida a quarta questão do QFCM, são oferecidas duas respostas
(excludentes) a esta pergunta que acabamos da fazer. Ou este conhecimento dos fatos
internos é dado por uma espécie de acesso direto ou este conhecimento dos fatos
internos é dado de forma indireta (ou seja, é dado como o resultado de uma inferência
feita a partir de observações de fatos externos). Na primeira resposta, afirmamos existir
uma capacidade intuitiva de conhecer os fatos internos e, na segunda resposta, ao
contrário, afirmamos existir apenas uma capacidade não-intuitiva (inferencial, indireta)
de vir a conhecer tais fatos. No QFCM, Peirce entende por introspecção apenas o
primeiro desses casos.
Não é a intenção aqui assumir a realidade do mundo externo. Somente
assumir que há um certo conjunto de fatos que são geralmente considerados
como externos, enquanto outros, como internos. A questão é se os últimos
podem ser conhecidos de alguma outra forma que não por inferência
realizada a partir dos primeiros. Por introspecção, entendo a percepção direta
do mundo interno, porém não necessariamente a percepção deste mundo
como interno. Com este termo [introspecção] também não pretendo limitar o
significado da palavra intuição, mas pretendo estendê-lo a qualquer
conhecimento do mundo interno que não seja derivado de observação
externa.
(CP 5.244 [1868])138
Portanto, neste primeiro parágrafo, Peirce deixa claro que entende por introspecção uma
percepção direta do mundo interno ou qualquer conhecimento do mundo interno que
não seja derivado de observações externas. Neste trecho, Peirce observa que, no QFCM,
embora a introspecção seja entendida como uma percepção (direta) do mundo interno,
ela não é necessariamente uma percepção de tal mundo enquanto interno. Acreditamos
138
No original: It is not intended here to assume the reality of the external world. Only, there is a certain
set of facts which are ordinarily regarded as external, while others are regarded as internal. The question
is whether the latter are known otherwise than by inference from the former. By introspection, I mean a
direct perception of the internal world, but not necessarily a perception of it as internal. Nor do I mean to
limit the signification of the word to intuition, but would extend it to any knowledge of the internal world
not derived from external observation.
182
que Peirce fez esta observação, pois, para se perceber uma cognição enquanto algo
interno (em oposição às cognições que seriam relativas ao mundo externo), deve-se
distinguir o elemento subjetivo desta cognição e, assim, classificá-la como pertencente a
um tipo de cognição. E, para que tal distinção possa ser feita e para que possamos saber
que ela é relativa a algo externo ou interno, deve-se necessariamente recorrer a
inferências. Este ponto foi estabelecido ao final da Q3.
Deve-se chamar atenção também para o fato de que, nesta quarta questão, Peirce coloca
em dúvida a própria capacidade de introspecção. Nas questões anteriores, Peirce isolava
certa capacidade e passava a questionar se tal capacidade era intuitiva ou não. Na Q1,
era a capacidade de distinguir intuições (de cognições derivadas); na Q2, era a
capacidade relativa à autoconsciência; na Q3, era a capacidade de distinguir entre os
elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição. Em cada uma destas questões, a
pergunta era se a capacidade sob análise era intuitiva. Note que, nesta quarta questão,
não tem sentido se perguntar se a capacidade de introspecção é ou não intuitiva, porque,
pela definição, o conhecimento que seria introspectivo (no caso de haver tal capacidade)
seria também intuitivo. As respostas negativas a todas as questões anteriores não
estabelecem, no argumento geral desenvolvido no QFCM, que não haja capacidade de
se fazer distinção entre intuições, de se gerar autoconsciência ou de se diferenciar entre
os diversos tipos de cognição. Tais respostas negativas estabelecem apenas que tais
capacidade não são intuitivas (ou que não há evidência suficiente que sustente a
hipótese que propõe que estas faculdades sejam intuitivas). Na Q4, é a própria
capacidade de introspecção (como um todo) que será descartada, caso a resposta seja
novamente negativa. E, a julgar pelo que já testemunhamos até este ponto do QFCM,
não devemos esperar outro destino para esta capacidade.
Antes de continuarmos, chamemos a atenção para uma suposta inconsistência
terminológica no texto peirceano, pois, embora ela não atrapalhe o argumento elaborado
por Peirce nesta Q4, pode haver alguma confusão, principalmente com relação à
resposta negativa que resulta do tratamento desta questão do QFCM. De acordo com a
definição que acabamos de fornecer, o conceito central desta quarta questão, a
introspecção, diz respeito a "uma percepção direta do mundo interno". Esta definição
dada já no primeiro parágrafo (CP 5.244 [1868]) não condiz com o uso que Peirce faz
do termo "introspecção" no seguinte trecho (que está no terceiro parágrafo da Q4):
"Embora introspecção não seja necessariamente intuitiva, não é auto-evidente que
possuamos esta capacidade"(CP 5.246 [1868])139
. Neste trecho transcrito, ele parece
usar o termo num sentido lato, diferente do sentido mais estrito utilizado na definição
(do primeiro parágrafo da Q4). Entretanto fiquemos, em nossas análises, com o sentido
dado na definição, ou seja, o termo introspecção como um tipo de percepção
necessariamente intuitivo, uma vez que é, por definição, direto.
Seguindo a linha geral da estratégia argumentativa que vem desenvolvendo para lidar
cada uma das questões levantadas no QFCM, também o primeiro passo dado por Peirce
139
No original: "Although introspection is not necessarily intuitive, it is not self-evident that we possess
this capacity"
183
nesta Q4 é estabelecer que a capacidade de introspecção não é auto-evidente. A
argumento utilizado para este fim pode ser explicitado da seguinte forma:
Argumento sobre a auto-evidência da capacidade de introspecção
Premissa1: Se fosse auto-evidente a capacidade de introspecção, então teríamos a
capacidade intuitiva de distinguir diferentes modos subjetivos de consciência.
Premissa 2 (estabelecida em Q3): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir
diferentes modos subjetivos de consciência.
Conclusão: Não é auto-evidente que tenhamos a capacidade da introspecção.
Para que esta conclusão seja aceitável, devemos avaliar a pretensa verdade (que deve
estar) contida nesta primeira premissa, ou seja, temos que analisar por qual razão Peirce
faz esta conexão entre a (suposta) auto-evidência da introspecção e a capacidade
intuitiva de distinguir diferentes modos subjetivos de consciência. Por trás desta
primeira premissa, há ideia de que, se afirmamos que temos a capacidade de julgar
infalivelmente que temos a tal capacidade de introspecção, é porque pressupomos que
temos a capacidade de julgar infalivelmente se estamos diante de um fato interno ou de
um fato externo.
O problema de fundo neste ponto é a certeza, a infalibilidade que deve acompanhar um
julgamento intuitivo. Suponha que tenhamos certeza de que estamos observando um
fato interno (i.e., estamos certos que estamos "olhando para dentro de nós mesmos").
Então, neste caso, só podemos ter esta certeza se também tivermos certeza a respeito do
julgamento que nos diz que aquele fato que observamos é interno (e não externo).
Entretanto, não podemos ter esta última certeza, pois, caso fosse possível tê-la, então
deveríamos ser capazes de julgar infalivelmente (leia-se, intuitivamente) se estamos
diante de um fato interno ou de um fato externo. Não temos esta última capacidade e
este foi o ponto estabelecido na Q3. O que está em discussão neste ponto da Q4 é que só
poderíamos ter certeza acerca de nossa capacidade de introspecção se tivéssemos
certeza acerca da nossa capacidade de diferenciar os modos subjetivos de consciência (o
que foi objeto de investigação na Q3). Em resumo, só seria auto-evidente a tal
capacidade de introspecção, se fossemos capazes de distinguir intuitivamente fato
interno de externo. Porém, não somos capazes de distinguir intuitivamente fato interno
de externo (o que resulta da Q3). Logo, a tal capacidade de introspecção não é evidente
por si mesma. O resultado desse argumento é que, como a capacidade em questão não é
auto-evidente, devemos procurar evidências que sustentem a ideia de que haja algo
como introspecção.
A pergunta, então, é a seguinte: como temos acesso aos fatos internos, ao mundo
interno? Este acesso é direto ou indireto (intuitivo ou inferencial)? Como foi feito na
184
análise das questões anteriores, denominemos estes duas possíveis respostas como caso
I e caso II respectivamente. Vejamos, em primeiro lugar, evidências que corroborariam
o caso I.
O primeiro ponto analisado por Peirce é a tese que se pode obter conhecimento de fatos
internos se atendo à sensação. Esta tese afirma que, considerando dados sensoriais,
poderíamos ter algum conhecimento do mundo interior e a questão é se este
conhecimento é ou não intuitivo. Tal tese parte da ideia de que toda sensação é, em
parte, determinada por condições internas. O raciocínio que nos leva a esta tese pode ser
ilustrado pelo seguinte exemplo: "a sensação de vermelidão é o que é graças à
constituição da mente. E, neste sentido, ela é a sensação de algo interno. Então,
podemos derivar um conhecimento da mente de uma consideração acerca desta
sensação" (CP 5.245 [1868])140
. Porém, ainda que possamos ter algum conhecimento
sobre fatos internos (sobre a mente, nos termos de Peirce) graças a considerações de
dados sensórios, não podemos afirmar que este acesso é intuitivo, pois este
conhecimento seria, de fato, resultado de uma inferência acerca da "vermelidão" como
um predicado de algo externo. O conhecimento obtido sobre fatos internos, nesta
situação, seria retirado de fatos externos, i.e., da observação de diversos objetos
vermelhos. Esta seria, portanto, uma evidência favorável ao caso II (não ao caso I).
No próprio texto do QCFM, Peirce não desenvolve argumentação com relação a esta
tese específica sobre o "conhecimento da mente derivado da consideração de uma
sensação". Entretanto, há elementos nesta quarta questão e também em outros pontos do
QFCM que podem nos auxiliar a reconstruir este argumento. Por exemplo, ainda na Q4,
quando passa a analisar se o conhecimento que podemos obter a respeito de outros tipos
de sentimentos141
(como as emoções) exigiria a suposição de uma faculdade intuitiva
(introspectiva, direta), Peirce afirma que as emoções (como a raiva, por exemplo) não
implicam que objeto externo (que é "alvo" da emoção) tenha um caráter determinado e
constante. Como esta observação é feita logo após uma análise da sensação, pode-se
afirmar que Peirce entende que a sensação (ao contrário da emoção) é um sentimento
que implica que seu objeto externo tenha um caráter determinado e constante. Outro
elemento que pode auxiliar nesta reconstrução é a teoria segundo a qual a função de um
conceito é trazer à unidade a multiplicidade das impressões dos sentidos. Esta teoria foi
utilizada por Peirce não apenas no artigo (imediatamente anterior à série cognitiva)
intitulado "Sobre uma nova lista de categorias", mas também na Q1 do QFCM (cf. CP
5.223 [1868]). Tentemos, então, reconstruir a argumentação peirceana para sustentar a
tese que ao conhecimento que se obtém pela consideração de uma sensação é um
conhecimento indireto (não-intuitivo).
Como alguém pode saber que está tendo uma "sensação de vermelho"? Como alguém
pode saber que está vendo algo vermelho? A resposta mais óbvia seria que esta pessoa
140
No original: "Thus, the sensation of redness is as it is, owing to the constitution of the mind; and in this
sense it is a sensation of something internal. Hence, we may derive a knowledge of the mind from a
consideration of this sensation". 141
Termo original: "feeling"
185
saberia que está diante de um objeto vermelho simplesmente porque ela reconheceria
um certo padrão na impressão dos sentidos. Porém, cumpre notar que, para Peirce, este
reconhecimento é indireto, pois depende de uma comparação com experiências
anteriores, i.e., todas aquelas vezes em que esta pessoa esteve diante de algum objeto
que julgou ser vermelho. Este é, portanto, um conhecimento falível, hipotético. É
sempre possível que estes objetos que tenham sido classificados como vermelhos pela
mente desta pessoa não o sejam. Suponha que tal pessoa tenha passado a vida
classificando como vermelhos objetos que, na verdade, eram azuis. Toda vez que este
indivíduo estava diante de um objeto azul e sua mente recebia do aparato sensório uma
miríade de impressões (causadas pelo objeto), ela tratava de unificá-las sob o conceito
de vermelho. Isto é improvável, mas não é impossível. Sabemos que isto é improvável,
pois, para manter este conceito de vermelho, a pessoa em questão teria que viver isolada
ou, se tivesse algum contato com outros indivíduos, não teria oportunidade de usar o
termo relativo ao "seu" conceito de vermelho em enunciações linguísticas. Caso tivesse
contato com outros indivíduos e oportunidades de externalizar suas percepções acerca
dos objetos que julga vermelho, a tendência é que a pessoa possa, ao poucos, corrigir
sua concepção, inicialmente, errônea de vermelho.
Este tratamento do conhecimento obtido pela sensação como indireto é coerente com o
quadro geral da epistemologia peirceana (apresentado em toda a séria cognitiva) e,
sobretudo, com o objetivo de responder a pergunta que Peirce considera central na
filosofia: como são possíveis as sínteses, i.e., como é possível haver ampliação do
conhecimento ("absorção" de informação sobre o mundo)? Dentro deste quadro geral,
os juízos da percepção são também falíveis e o conhecimento neles baseado é sempre de
natureza hipotética. Mais uma vez, os projetos epistemológicos peirceanos e cartesianos
nos apresentam teses diametralmente opostas. Se, por um lado, na epistemologia
peirceana, o indivíduo (o sujeito cognoscente entendido individualmente) é o locus do
erro e da ignorância; por outro lado, para o projeto epistemológico cartesiano (das
fundações do conhecimento físico-matemático), a mente do indivíduo é o locus da
certeza e do conhecimento seguro.
Se esta interpretação das teses peirceanas nesta Q4 estiver certa, então a possibilidade
de um pensamento ser externalizado é essencial para a teoria da cognição de Peirce. A
partir da Q4, ao negar que haja introspecção, i.e., ao negar que haja algum
conhecimento direto de fatores internos, torna-se possível equacionar dentro da teoria o
conceito de pensamento e de signo (o que Peirce faz efetivamente apenas na Q5).
Realizado este passo fundamental dentro do QFCM, torna-se possível, dentro do projeto
mais amplo da série cognitiva, responder aquela questão que Peirce julga ser a mais
importante da filosofia. A negação da introspecção é, portanto, um passo estratégico
dentro do projeto epistemológico peirceano. Por este motivo, no segundo artigo da série
cognitiva, Peirce afirma que, negada a capacidade de introspecção, deve-se "deixar de
lado todas as preconcepções derivadas de uma filosofia que baseia o nosso
conhecimento do mundo externo em nossa autoconsciência". E, assim, "não podemos
admitir nenhuma afirmação sobre o que se passa dentro de nós exceto como uma
186
hipótese necessária para explicar o que ocorre no que chamamos comumente de mundo
externo" (CP 5.266 [1868])142
. A noção de pensamento (ou cognição) que emerge dos
escritos peirceanos é muito peculiar. Dentro da teoria da cognição apresentada na série
cognitiva, sobretudo, no QFCM, o pensamento é entendido como um fenômeno social.
De acordo com que se pode depreender das teses peirceanas no QFCM, o ato de pensar
é um processo que parece ocorrer fora das nossas cabeças. A possibilidade de
comunicação com o mundo externo está pressuposta no modo como um indivíduo
organiza seus "conteúdos mentais". A noção de comunidade está pressuposta nesta
teoria da cognição. Não é por outro motivo que, ao final do terceiro artigo da série
cognitiva, Peirce, para poder oferecer sua resposta à pergunta sobre a possibilidade das
sínteses (i.e., do raciocínio sintético), enuncia uma espécie de "teoria social da lógica"
(cf. CP 5.341[1869]). Neste terceiro artigo, como afirmamos ainda no primeiro capítulo,
defende-se a ideia que os raciocínios ampliativos podem ter sua validade garantida
apenas se for pressuposta uma teoria da lógica que leve em consideração um conceito de
comunidade143
.
Imaginemos o seguinte cenário altamente ficcional: um homem nasce e cresce numa
ilha sem nenhum contato com outros seres humanos. Neste caso, pode-se supor que não
haja nada que obrigue este indivíduo a desenvolver algum nome, algum traço
externalizável para exprimir seus juízos perceptivos (pensamentos ou emoções) para
outros. Não se pode afirmar que lhe ocorreria a cognição "isto é vermelho", uma vez
que ele não teria formado algum conceito de vermelho sob o nome "vermelho".
Entretanto, suponha que, como este indivíduo teve algum contato visual com objetos
vermelhos em sua ilha, ele tenha alguma concepção de vermelho, mas sob outra
denominação (que, inicialmente, não se pretendesse externalizável). Suponha que
quando seu aparato sensório captar uma infinidade de impressões originadas por um
objeto vermelho, sua mente unifique esta variedade de dados sob o "conceito" de
htkçqbwz. Como em todos nós, esta unificação feita pela mente é uma introdução de
uma hipótese para explicar fenômenos externos (neste caso, um fenômeno basicamente
visual). De forma distinta do que ocorre com todos nós, este indivíduo isolado teria
maiores dificuldades para encontrar modos de confirmar sua hipótese perceptiva. Em
sociedade, de forma muito elementar, o que fazemos é uma espécie de experimento
intersubjetivo. Em geral, podemos ter alguma confiança em nossos juízos perceptivos
porque sempre é possível checar com outros se o que pensamos ser vermelho é mesmo
desta cor. Embora seja possível que nós e todos os outros sujeitos estejam errados em
nossos juízos perceptivos individuais, essa probabilidade tende a diminuir com o tempo
caso o juízo perceptivo em questão passe a ser investigado por uma comunidade
indefinida de pesquisadores por um tempo indefinidamente longo. De acordo com a
teoria peirceana, se uma comunidade indefinida de pesquisadores se submeter à tarefa
142
No original: "(...) we must put aside all prejudices derived from a philosophy which bases our
knowledge of the external world on our self-consciousness. We can admit no statement concerning what
passes within us except as a hypothesis necessary to explain what takes place in what we commonly call
the external world". 143
A comunidade de investigadores ou, de acordo com a expressão de Susan Haack (1982, p. 156),
"comunidade cognitiva".
187
de investigar a questão por um tempo também indefinido, a tendência é que haja uma
convergência para um ponto no qual poderia ser estabelecida a verdade ou a falsidade
deste juízo perceptivo.
Para o indivíduo isolado, ainda que não estivesse disponível esta saída, haveria alguma
possibilidade de se elaborar um processo para confirmar sua hipótese. Ele poderia
estabelecer que se aquele objeto que está diante dele for mesmo htkçqbwz, então, uma
vez exposto à condição x, este objeto deveria apresentar as propriedades y e z. Por
exemplo, um objeto que é um htkçqbwz, quando colocado na água (condição x), libera
fumaça e emite um som estridente (propriedades y e z respectivamente). Note que, a
esta altura, quando já fosse capaz de testar, ainda que modestamente, sua hipótese
perceptiva, este indivíduo já teria em mente um conceito. Quando pensasse em
htkçqbwz, ele teria diante de sua mente uma imagem composta de vários objetos que ele
viu anteriormente e classificou como um htkçqbwz. Este rótulo "htkçqbwz" teria função
de um termo geral, ou seja, dentro de um contexto proposicional, ocorreria como
predicado. Repare que já podemos afirmar que o que ele tem em mente é um certo
conceito de htkçqbwz justamente pela possibilidade de externalização. Ao criar um
teste, este indivíduo estabeleceu um critério externo, um critério público para avaliar seu
juízo perceptivo. A esta altura, ele poderia externalizar para uma outra pessoa o que
entende por htkçqbwz e esta possibilidade de externalização seria mantida ainda que não
houvesse mais ninguém no mundo além dele. Se alguém algum dia chegar nesta ilha,
este indivíduo poderia (descontadas as dificuldades envolvidas na pronúncia) explicar
que um objeto htkçqbwz é um objeto que apresenta as propriedades y e z quando
exposto à condição x. Se imaginarmos uma espécie de corrida para o ponto de
convergência, óbvio que este homem estará sempre em desvantagem com relação
àqueles que vivem em sociedade. Entretanto, o importante é notarmos que, dentro desta
teoria peirceana da cognição, o pensamento é um tipo de atividade que só faria sentido
se for pressuposto algum tipo de externalização ou, ao menos, a possibilidade de
externalização.
Este exemplo é altamente artificial e especulativo. Não sabemos como pensaria uma
pessoa que não teve contato com semelhantes. E do ponto de vista desta teoria da
cognição exposta no QFCM, é difícil imaginar como seria a vida cognitiva de um
indivíduo isolado. O caso limite é imaginarmos que este indivíduo não pensaria ou, ao
menos, desenvolveria alguma atividade cognitiva que não poderíamos classificar como
um ato de pensar. Reiteremos que, a partir desta teoria da cognição que Peirce apresenta
no QFCM, o pensamento passa a ser entendido como um fenômeno social.
O importante é notar que o conceito de vermelho surge pela primeira vez como um
predicado (da forma "________ é vermelho") aplicado a um objeto externo. Não
podemos afirmar que o conceito surge como um predicado para um objeto interno, por
exemplo, o padrão impresso nos sentidos (a sensação propriamente dita), pois, se assim
fosse, não haveria critério externo (público) que permitisse a alguém corrigir a aplicação
(individual) que faz deste conceito.
188
O resultado destas teses é que isto que chamamos de sensação do vermelho
("vermelidão") não pode ser reconhecido pela mente de forma imediata. Só posso
conhecer, saber que tenho a sensação do vermelho no momento t se notei (em momento
anterior) que determinado padrão de impressão no meu aparato sensório gerou em
minha mente a disposição para enunciar para outrem "isto é vermelho". É a partir desta
disposição que inferimos a sensação de vermelho. Só sei que tenho a sensação de
vermelho no tempo t se no tempo t - 1 percebi aquela disposição em minha mente. É
esta disposição que é utilizada como marca da referida sensação.
Esta leitura que ora apresentamos está muito próxima daquela elaborada por
Prendergast em seu artigo sobre a estrutura do argumento de Peirce no QFCM. De
acordo com Prendergast (1977, p. 296), a ideia de Peirce, neste trecho da Q4, é que "não
aprendemos a usar 'vermelho' como um predicado de algo interno tal como uma
sensação e, depois, aplicamo-lo, por inferência, a algo externo". Para Peirce, o conceito
(ou o predicado) vermelho é, em primeiro lugar, aplicado a algo externo e,
posteriormente, por inferência, chegamos à sensação de vermelho. Em outras palavras,
o conceito de vermelho é primordialmente introduzido para explicar fenômenos
externos e apenas, de forma derivada, é utilizado para explicar algum fenômeno interno
(como a sensação causada pelo objeto ou o certo padrão sensório).
Estas observações nos levam para uma interpretação próxima àquela desenvolvida por
Hookway, o que nos permite entender algumas de suas críticas com relação ao
argumento de Peirce nesta Q4. Se só podemos saber que temos uma sensação a partir de
uma inferência de que temos uma determinada disposição, então, segundo a crítica de
Hookway, temos que ter um acesso intuitivo, direto (i.e., introspectivo), ao menos, a
esta disposição.
Peirce deve ter em mente que o meu juízo que tenho a sensação de vermelho
(...) pode sempre ser uma inferência de minha vontade de fazer certas
enunciações públicas como algo é vermelho (...). Entretanto, certamente
introspecção seria necessária para estabelecer que possuo estas disposições
(...), então o argumento parece inconclusivo.
(Hookway, 1985, p. 26)
De acordo com a crítica144
de Hookway, o argumento peirceano poderia ser salvo caso
se interpretasse que o que Peirce tem em mente é que "a sensação (...) é introduzida para
explicar os pensamentos que uma pessoa julga que ela mesma tenha" (Hookway, 1985,
p. 27). É exatamente este o caminho interpretativo que estamos trilhando nesta tese (e
acreditamos que é o mesmo de Prendergast no trecho acima citado). Considerando-se
que a intenção de Peirce é explicar (sem recorrer a faculdades intuitivas) como funciona
o conhecimento (e declarações) acerca de "estados internos", de acordo com Hookway
(1985, p. 27), esta teoria apresentada é implausível.
144
Este problema apontado por Hookway é muito próximo ao que viemos desde o início das análises
chamando de "problema do segundo tipo de intuição". A segunda seção do presente capítulo será
inteiramente dedicada ao tratamento desta questão.
189
Por mais implausível que possa parecer, este ponto é essencial para a semiótica
peirceana. De forma direta, não podemos ter acesso nem mesmo aos nossos
pensamentos145
. Nossos estados internos só são acessados a partir de hipóteses e estas
são sempre relativas a um objeto externo. Entretanto, afirmando isto já estamos
antecipando as conclusões às quais Peirce chega apenas no final da Q4. Até este ponto,
só analisamos o argumento peirceano que nega a capacidade de introspecção com
relação à sensação. Continuemos as análises.
Mais adiante, ainda neste parágrafo (CP 5.245 [1868]) em que lidou com a questão
relativa à sensação, Peirce passa a tratar de uma evidência que supostamente apoiaria a
hipótese que haja capacidade de introspecção. Se, por um lado, o conhecimento sobre
fatos internos obtidos na sensação é inferencial, pois os dados sensórios, em última
análise, dizem respeitos a fatos externos, têm como origem o mundo externo, por outro
lado, as emoções são um grupo particular de sentimentos cuja percepção não parece, de
forma alguma, ter origem "do lado de fora" da mente.
Existem outros sentimentos emoções, por exemplo que parecem emergir,
em primeiro lugar, não como predicados e parecem ser referentes somente à
mente. Então, parece que, por meio destes [sentimentos, i.e., as emoções),
pode ser obtido um conhecimento da mente que não é inferido de nenhuma
característica de coisas externas. A questão é se é este o caso.
(CP 5.245 [1868])146
Emoções parecem ser elementos puramente internos. O argumento de Peirce neste
trecho do QFCM (CP 5.247 [1868]) é construído para mostrar que, ainda que
consideremos uma emoção algo interno à mente, o conhecimento que dela temos é
sempre obtido a partir de algo externo ou de alguma cognição anterior. Em resumo, a
ideia é afirmar que o acesso que temos às nossas próprias emoções (ou quaisquer
"estados internos") é indireto, mediado, inferencial. Portanto, as emoções estariam
subsumidas no caso II de acordo com a divisão apresentada acima.
Suponha que um homem esteja com raiva de algum objeto. Como ele descobre que está
com raiva? Como tal indivíduo tem acesso ao seu próprio estado emocional naquele
momento? Ao contrário do que ocorre no caso da sensação, a raiva que este indivíduo
sente não implica que haja nenhuma característica determinada e específica no objeto de
sua raiva (ibid). Comparemos estas duas situações: a emoção (de raiva) e a sensação (de
vermelidão, por exemplo). Pode-se afirmar que se sabe que se está diante de um objeto
vermelho a partir da percepção de uma tendência da mente a ter certos pensamentos ou
determinadas disposições (que são devidas, acredita-se, a características constantes no
145
Lucia Santaella talvez seja a comentadora que desenvolveu uma linha interpretativa mais próxima a
esta que procuramos apresentar nesta tese. Em seus textos de exegese da obra peirceana, Santaella parece
lidar com a tese de que um pensamento em si mesmo não poderia ser diretamente conhecido com
naturalidade e sem declará-la implausível, incômoda, estranha, etc. (cf. Santaella, 2004, p. 55). 146
No original: there are certain other feelings -- the emotions, for example -- which appear to arise in the
first place, not as predicates at all, and to be referable to the mind alone. It would seem, then, that by
means of these, a knowledge of the mind may be obtained, which is not inferred from any character of
outward things. The question is whether this is really so".
190
objeto observado, i.e., são devidas a propriedade de ser vermelho que seria justamente o
que causa a sensação de vermelidão [i.e., a sensação típica do vermelho]). O que se
entende por vermelho, então, tem como origem o predicado "______ é vermelho" feito
a partir da observação de diversos objetos vermelhos. No caso das emoções, não parece
haver nada externo do qual se possa derivar o conhecimento de que se está num estado
emocional específico e não em outro. Quando temos raiva de um objeto, o
conhecimento de que estamos com raiva não parece se originar do lado de fora de
nossas cabeças. O argumento peirceano vai contra esta aparência.
Porém, por outro lado, dificilmente se pode questionar que haja alguma
característica relativa na coisa externa que faz com que ele tenha raiva, e um
pouco de reflexão servirá para mostrar que sua raiva consiste no fato de dizer
para si mesmo "esta coisa é vil, abominável, etc." e que isso seja, assim, uma
marca que lhe devolve uma razão para dizer: "estou com raiva". Da mesma
forma, qualquer emoção é uma predicação a respeito de algum objeto (...).
(CP 5.247 [1868])147
De acordo com Peirce, o indivíduo do exemplo fornecido só se torna cônscio de que
está com raiva a partir do momento em que "pragueja" contra o objeto de que tem raiva.
A origem da cognição "estou com raiva" seria, então, devida a predicados aplicados a
objetos exteriores. É a partir dos predicados "______ é vil" e "______ é abominável"
aplicados a algo externo que o indivíduo infere que ele mesmo está em determinado
estado emocional, raiva. Estes predicados seriam as marcas distintivas do estado
emocional conhecido sob o nome de raiva. A inferência em questão poderia ser exposta
da seguinte forma:
Premissa 1: Só classifico objetos como vis e abomináveis quando estou com raiva
de tais objetos.
Premissa implícita 1.1: Este objeto é vil.
Premissa implícita 1.2: Este objeto é abominável.
Premissa 2: Acabei de classificar este objeto como vil e abominável.
Conclusão: Estou com raiva (deste objeto)
Mais uma vez nota-se o importante papel da ideia de marca distintiva na economia
interna da teoria exposta por Peirce neste trecho da Q4. De acordo com a teoria, a
pessoa que tem raiva só conseguiria identificar seu estado emocional a partir de
147
No original: But, on the other hand, it can hardly be questioned that there is some relative character in
the outward thing which makes him angry, and a little reflection will serve to show that his anger consists
in his saying to himself, "this thing is vile, abominable, etc." and that it is rather a mark of returning
reason to say, "I am angry." In the same way any emotion is a predication concerning some object (...).
191
determinas marcas distintivas. Enquanto na argumentação desenvolvida para a Q3, a
marca distintiva servia de ponto de partida para a inferência que identificaria uma
cognição como pertencente a um tipo (por exemplo, sonhos ou experiências reais;
imaginação ou percepção, suposição ou crença, etc.), nesta argumentação da Q4, o
papel da marca distintiva é servir de ponto de partida para a inferência que identifica
determinado estado de espírito. A marca distintiva que permite identificar um estado
emocional pode ser entendida como uma consequência deste estado. A ideia por trás
disso é simples: quando se está com raiva uma das consequências do fato de se estar
neste estado é agir de determinada forma (por exemplo, praguejar, esbravejar, vociferar,
etc. [ainda que seja "em pensamento"]). Sabemos que estamos com raiva quando
notamos que estamos agindo daquela forma (que é a marca distintiva da raiva) ou
quando notamos que, ao menos, estaríamos dispostos a agir daquela forma. Esta
consequência do estado emocional é o que Jones chama de "resposta" em sua análise
deste trecho do QFCM.
Um indivíduo entra numa sala escura, tropeça numa cadeira. Raiva, digamos,
é sua resposta. Alguns adjetivos escolhidos e coloridos, para indicar quão
detestável ela é, são desferidos contra a cadeira. Peirce diria que a raiva da
pessoa em questão consiste na sua atribuição dessas características à cadeira.
Apenas quando se torna consciente de sua resposta à situação é que essa
pessoa se dá conta de que está com raiva. O conhecimento de que está com
raiva, então, é inferido da predicação de características perniciosas da
cadeira. Isso ilustra a postulação peirceana de que mesmo o conhecimento de
nossas emoções é o resultado de uma inferência de algo externo.
(Jones apud Santaella, 2004, p. 43)
Ainda neste mesmo parágrafo (CP 5.247 [1868]), Peirce afirma que o mesmo
argumento exposto para as emoções em geral vale para o senso de beleza e também para
o senso moral. A base para esta generalização é que, embora pareçam ser algo
puramente interno, estes sensos surgem primeiro como predicados de objetos externos.
A formação do senso de beleza depende de uma concepção de beleza, que, por sua vez,
pressupõe alguma experiência com o que se julga belo. Então, inicialmente, a
concepção de beleza aparece nalgum predicado (da forma "_______ é belo") aplicado a
um objeto externo que se julga belo. A mesma explicação pode ser dada para o caso do
senso moral. Tal consciência que nos permite diferenciar algo bom de algo mau
depende tanto de uma concepção do que é bom como de uma concepção do que é mal.
Estas concepções, então, pressupõem alguma experiência com o que se julga bom ou
mau. Logo, inicialmente, a concepção do que é bom ou mau deve aparecer nalgum
predicado (da forma "_______ é bom" ou "_______ é mau") aplicado a um objeto
externo que se julga bom ou mau148
.
148
Na verdade, neste ponto da Q4, Peirce apresenta a seguinte disjunção: "Bom e mau são sentimentos
que surgem primeiro como predicados e, portanto ou são predicados do não-eu ou são determinados por
cognições prévias (uma vez que não há capacidade intuitiva de se distinguir entre os elementos subjetivos
da consciência)" (CP 5.247 [1868])*. O que deve ser enfatizado é que em qualquer uma das duas
possibilidades enunciadas nesta disjunção tanto o senso de bom como de mal não podem ser acessados de
forma intuitiva, direta. Neste trecho, Peirce afirma que toda concepção do que é bom ou mau deve ter
192
No parágrafo seguinte (CP 5.248 [1868]), Peirce dá mais um passo no sentido de
generalizar sua tese (de que o conhecimento de fatos internos depende de fatos
externos). Neste parágrafo, ele se pergunta se seria mesmo necessário supor que haja
uma capacidade de introspecção para explicar como é possível haver senso de vontade.
A exemplo do que ocorreu nos demais casos analisados nesta Q4, a resposta a esta
pergunta é negativa e, para "compensar" esta negação, Peirce procura afirmar que a
capacidade de fazer inferência já seria suficiente para explicar esta questão relativa à
volição. O primeiro movimento argumentativo neste trecho é identificar o conceito de
volição com a capacidade de abstração da mente. De acordo com as palavras do próprio
filósofo, a volição "nada mais é que a capacidade de concentrar a atenção, de abstrair"
(CP 5.248 [1868])149
. Feita esta identificação, Peirce afirma que o "conhecimento da
capacidade de abstrair pode ser inferido de objetos abstratos da mesma forma que o
conhecimento da capacidade de ver é inferido de objetos coloridos" (CP 5.248
[1868])150
. Sabemos de nossa capacidade de abstrair com base em certa concepção de
abstração. E tal concepção tem suas bases lançadas em cada uma das vez que estivemos
diante de um objeto que julgamos abstrato, ou seja, diante de um objeto ao qual
atribuímos o predicado "_______ é algo abstrato". Por isto, na tese defendida por Peirce
neste trecho, o conhecimento da capacidade de abstrair depende de objetos abstratos.
Aquele conhecimento é inferido a partir da "observação" de objetos abstratos. O mesmo
vale para o que Peirce chamou de "objetos coloridos" neste trecho sob análise. Sabemos
que somos capazes de ver cores151
graças a uma concepção de objeto colorido (que
temos) que, por sua vez, deve ter aparecido, em nossa mente, pela primeira vez na
posição de um predicado da seguinte forma: "_______ é um objeto colorido". A
conclusão da argumentação de todo este trecho (parágrafo 248) é que também o senso
de vontade depende da observação de fatores externos.
Então, após ter analisado os principais tipos de conhecimentos relativos ao ambiente
interno (ao "eu"), a partir de uma generalização, Peirce se encaminha para concluir, ao
final da Q4, que todo e qualquer conhecimento interno só pode ser obtido na
dependência de objetos externos. O fato de termos que recorrer aos fatos externos para
conhecer fatos internos é uma evidência favorável à hipótese de que o conhecimento
interno é também inferencial e, portanto, desfavorável à hipótese de que haja uma
capacidade intuitiva em ação quando se conhece tais fatos internos. Assim, podemos
resumir o argumento geral da seguinte forma:
aparecido nalgum predicado. Então, ou este predicado foi inicialmente aplicado a um objeto externo (ao
"não-eu") que se julga bom ou mau ou este predicado foi determinado por cognições anteriores, uma vez
que, como já foi estabelecido na Q3, não temos a capacidade intuitiva de distinguir os elementos
subjetivos da consciência.
* No original: (Good and bad are feelings which first arise as predicates, and therefore are either
predicates of the not-I, or are determined by previous cognitions (there being no intuitive power of
distinguishing subjective elements of consciousness). 149
No original: "volition (...) is nothing but the power of concentrating the attention, of abstracting". 150
No original: " the knowledge of the power of abstracting may be inferred from abstract objects, just as
the knowledge of the power of seeing is inferred from colored objects" 151
Acrescentamos o termo cores, pois, como não é difícil de se notar, Peirce utiliza apenas o verbo "ver"
(sem determinação alguma).
193
argumento geral da Q4
Premissa1: Se houvesse capacidade de introspecção, então não seria necessário
recorrer a fatos externos para obter conhecimento de fatos internos.
Premissa2: É necessário recorrer a fatos externos para obter conhecimento de
fatos internos.
Conclusão: Não há capacidade de introspecção152
.
Como já se deve ter notado (por meio de um raciocínio analógico), grande parte da
tarefa do filósofo norte-americano nesta Q4 foi apresentar evidências e elaborar análises
que sustentassem o que é afirmado na segunda das premissas deste argumento geral.
Assim, terminamos a análise da quarta das sete questões estabelecidas por Peirce no
QFCM. A quarta questão era justamente se temos ou não uma capacidade introspectiva.
A pergunta desta Q4 é se possuímos uma capacidade de "olhar para dentro" e conhecer
diretamente o que "lá" encontrarmos. A resposta é (mais uma vez) negativa. Não há
motivos que nos levem a suspeitar que exista uma tal poder de introspecção. Aliás, a
exemplo do que já foi feito para questões anteriores, a estratégia de Peirce também neste
ponto é demonstrar que é desnecessária a suposição de que teríamos tal capacidade de
introspecção, pois podemos explicar o conhecimento que temos de nosso "mundo
interior" a partir da noção de inferência. É isto que está presente nas palavras que estão
última linha da Q4: "Parece que, portanto, não há razão para supor uma capacidade de
introspecção; e, consequentemente, a única maneira de se investigar uma questão
psicológica é por inferência de fatos externos (CP 5.249 [1868])153
. Com esta quarta
resposta negativa, Peirce já está muito próximo de estabelecer a tese central de sua
teoria da cognição: o pensamento só é possível inferencialmente ou, na linguagem a ser
utilizada na Q5, o pensamento só é possível a partir de signos.
152
Como já foi apontado em nossa análise anteriormente, durante um pequeno trecho da Q4 (CP 5.246
[1868]), Peirce utiliza o termo introspecção num sentido diferente do estabelecido, por ele mesmo, na
definição apresentada no primeiro parágrafo desta quarta questão. Neste trecho o termo introspecção foi
utilizado num sentido mais amplo do que aquele estabelecido na definição. Pela definição, introspecção
seria uma espécie de conhecimento do ambiente interior necessariamente intuitivo, direto. Neste trecho
em questão, Peirce dá a entender que introspecção poderia ser um conhecimento não-intuitivo (indireto)
do ambiente interior, ou seja, poderíamos utilizar a palavra introspecção mesmo para um caso em que o
conhecimento dos fatos internos é derivado de fatos externos. Claro está que, se entendermos o termo
introspecção neste sentido lato, então haveria considerável modificação no argumento geral.
Premissa1: Se houvesse capacidade de introspecção intuitiva, então não seria necessário recorrer a fatos
externos para obter conhecimento de fatos internos.
Premissa2: É necessário recorrer a fatos externos para obter conhecimento de fatos internos.
Conclusão: Não há capacidade de introspecção intuitiva.
Entretanto, ainda que esta mudança terminológica seja considerável, isto não comprometeria a linha geral
da argumentação de Peirce no QFCM. 153
No original: "It appears, therefore, that there is no reason for supposing a power of introspection; and,
consequently, the only way of investigating a psychological question is by inference from external facts".
194
6.2 Excurso: o problema do segundo tipo de intuição
Antes de passarmos para a análise da quinta questão, devemos fazer uma pausa e abrir
um parêntese para lidar de forma mais direta com um problema que identificamos ainda
nas primeiras análises do texto peirceano. Denominamo-lo "o problema do segundo tipo
de intuição". Como já apresentamos e analisamos grande parte das linhas
argumentativas desenvolvidas no QFCM, já podemos propor uma interpretação que
contorne tal problema. Em primeiro lugar, reapresentemo-lo.
Dentro da teoria da cognição desenvolvida no QFCM, Peirce admite a existência de
"certas" intuições, de determinados "conhecimentos" diretos. É o que denominamos
(concordando com uma diligente análise feita por Hausman [1993, p.61]) de intuição de
tipo II. Conforme já foi anunciado, esta admissão está em rota de colisão com aquela
que pode ser considerada a tese central de toda teoria da cognição do QFCM: "todo
pensamento que pode ser conhecido é um pensamento em signos" ou (alternativamente)
"não podemos pensar sem recorrer a signos". Esta tese, estabelecida somente na Q5,
decorre das linhas argumentativas desenvolvidas por Peirce até a Q4. A admissão da
intuição de tipo II também se choca com algumas outras célebres teses (que se seguem
diretamente desta tese central). Por exemplo, com a afirmação de que "não há
pensamento no presente imediato". Embora vamos passar as próximas três dezenas de
páginas analisando em detalhes a argumentação que pretende sustentar a tese central
(acima referida), já podemos adiantar os movimentos gerais deste argumento. De acordo
com o que foi estabelecido ao final desta Q4, como até mesmo o que está em nossas
mentes só pode ser conhecido por inferências feitas a partir de elementos externos,
então só conhecemos nossos próprios pensamentos graças a inferências feitas a partir de
elementos externos a esses pensamentos. O problema é que o tal "conhecimento" direto
(do presente como presente) que Peirce admite existir (na Q1) pode, dependendo da
interpretação, ser considerado justamente o tipo de conhecimento (privilegiado sobre
estados internos) que ele mesmo nega existir na Q4.
Comecemos do princípio. No primeiro trecho em que se admite haver um certo tipo de
"conhecimento" direto, Peirce afirma que uma "cognição, como algo presente, é uma
intuição de si mesma" (CP 5.214 [1868]). Em outras palavras, a cognição, como algo
presente, é uma "visão direta" de si mesma. É neste trecho que Hausman identificou a
existência de um segundo tipo de intuição dentro da teoria peirceana. Num outro trecho,
mais adiante no QFCM, Peirce afirma que uma "cognição é em si mesma uma intuição
de seu elemento objetivo, que pode ser, então, chamado de objeto imediato"(CP 5.238
[1868]). Nesta segunda passagem, o filósofo norte-americano volta a sustentar que haja
algum tipo de intuição (envolvida em toda cognição). Acreditamos (e, nisso, sem a
companhia de Hausman) que Peirce, neste trecho, está se referindo ao mesmo tipo de
intuição cuja existência foi admita na Q1 (na primeira citação feita acima). É digno de
nota que estas "duas intuições" admitidas são, no fundo, relações reflexivas (i.e., uma
intuição de si mesmo).
195
O ponto para o qual pretendemos chamar atenção é que o tal problema de inconsistência
só parece surgir na dependência de uma certa interpretação do que seria este segundo
tipo de intuição (este "conhecimento do presente como presente"). Se interpretamos que
este segundo tipo de intuição, tal "conhecimento" direto é um ato cognoscitivo comum
ou um ato de percepção através do qual o sujeito descobre algo, então este segundo tipo
de intuição deveria paradoxalmente resultar num conhecimento inferencial, hipotético,
mediado, etc. como todos os outros conhecimentos admitidos pela teoria apresentada
por Peirce no QFCM. De acordo com esta interpretação, haveria dentro da teoria a
admissão de um tipo de conhecimento que seria direto e, por isso, não recorreria a
signos (ou quaisquer elementos externos). De acordo com esta interpretação, haveria,
portanto, uma inconsistência interna na teoria. Se todo pensamento só pode ser acessado
"via" signos (i.e., elementos a ele externos), então não há espaço para se admitir a
existência de intuições (i.e., de algum conhecimento direto). As quatro proposições
apresentadas a seguir pertencem à teoria da cognição elaborada no QFCM. Notemos
que (dentro desta interpretação) as proposições I e II não podem ser verdadeiras ao
mesmo tempo que as proposições III e IV.
proposição I) Toda cognição, como algo presente, é uma intuição de si mesma
(CP 5.214 [1868])
proposição II) A cognição é em si mesma uma intuição de seu elemento objetivo
(que pode ser, então, chamado de objeto imediato da cognição). (CP 5.238 [1868])
proposição III) todo pensamento que pode ser conhecido é um pensamento em
signos" (ou não podemos pensar sem recorrer a signos)
proposição IV) Não há pensamento no presente imediato.
Para que possamos enxergar com maior nitidez esta inconsistência (que acreditamos
derivar de certas interpretações como a acima referida), comparemos os dois tipos de
conhecimento em conflito, o conhecimento indireto (inferencial) e o "conhecimento"
direto (o que também denominamos [juntamente com Hausman] de intuição de segundo
tipo). Como modelo de conhecimento necessariamente indireto, tomemos um exemplo
fornecido pelo próprio Peirce: o conhecimento que uma pessoa obtém acerca do fato de
ela estar com raiva (de algo) em determinado momento, ou seja, o conhecimento que se
obtém acerca de um estado interno. De acordo com a exposição de Peirce, a raiva
consiste no fato de dizer para si mesmo "esta coisa é vil, abominável, etc." (CP 5.247
[1868]). Assim, segundo a teoria peirceana, a cognição "estou com raiva (desta coisa)"
seria, então, o resultado de uma inferência feita a partir da cognição "esta coisa é vil,
abominável, etc.". Neste caso, nota-se que esta última cognição serviu de marca ou
signo para que chegássemos à primeira cognição. Por este motivo este conhecimento é
indireto (i.e., ele recorre a algo externo, a um signo ou uma marca).
196
Vejamos o outro lado da moeda: o "conhecimento" direto do presente como presente (a
tal intuição de si mesma). Suponha que no presente momento nos venha à mente uma
cognição, um pensamento específico: o pensamento em árvore de natal. De acordo com
o que podemos depreender da teoria peirceana (sobretudo da proposição I acima
apresentada), no exato instante em que o pensamento em árvore de natal está diante da
mente, sabe-se imediatamente que se está pensando aquele pensamento (e não outro
qualquer). O problema é que quando se utiliza a expressão "sabe-se que" estamos nos
referindo, ao menos metaforicamente, a um ato cognoscitivo (ou ato de conhecimento),
ou seja, neste caso, estaríamos interpretando esta consciência da presença de algo como
um ato de conhecimento. E todo o conhecimento para Peirce é inferencial. Aliás, esta é
a justificativa para o uso das aspas quando nos referimos a este outro tipo de
conhecimento (Hausman, por exemplo, sugeriu que o termo "conhecimento" fosse
substituído por "consciência").
No caso de um sentimento (a raiva, por exemplo), dependemos daquele elemento
externo ao sentimento propriamente dito. Só nos tornamos conscientes de que estamos
com raiva de um objeto quando notamos que estamos praguejando contra tal objeto. Só
conhecemos este estado interno a partir de uma marca que é nele veiculada. A raiva
ocasiona o praguejamento e, por este motivo, sabemos daquela por este. Este ponto
pode ser apresentada na seguinte forma esquemática:
A consciência de que "estou com raiva do objeto i " é derivada da cognição "estou
praguejando contra o objeto i ".
Aparentemente, não há nada que nos impeça de aplicar este mesmo esquema para a tal
intuição de si mesma, o "conhecimento" do presente como presente. Neste caso,
poderíamos afirmar que só nos tornamos conscientes de que estamos pensando em x
quando a concepção veiculada (ocasionada) pelo fato de pensarmos em x "chega" em
nossa mente. Por exemplo, a presença (em nossa mente) da concepção de árvore de
natal (que nos torna conscientes que estamos pensando em árvores de natal) é o
resultado, é a consequência de se ter pensado em árvore de natal. Pode-se afirmar que só
nos tornamos conscientes de que estamos pensando em algo quando a concepção
veiculada por aquele pensamento nos chega à mente. É a partir da presença da
concepção de árvore de natal que "inferimos" que estamos pensando em árvores de
natal. Coloquemos de forma esquemática como fizemos para o caso anterior (o
conhecimento que se tem acerca de um estado interno).
A consciência de que "estou pensando em árvore de natal" é derivada da cognição
"veio à minha mente (minha) concepção de árvore de natal".
Se tentarmos considerar que há um inferência envolvida neste "conhecimento",
notaríamos que esta seria uma inferência muito estranha. Na verdade, parece mais um
197
jogo de palavras, pois o que, no fundo, está escrito é que "sei que estou pensando em x,
porque estou pensando em x". A origem deste estranhamento é que, no caso deste
"conhecimento" do presente enquanto presente (no caso deste segundo tipo de intuição),
estamos diante de uma relação reflexiva. É uma relação de "conhecimento" voltada para
si mesma. Este estranhamento é proveniente do fato de, neste caso do "conhecimento"
do presente (como presente), ao contrário do caso do conhecimento de um estado
interno (a raiva, por exemplo), que requer um elemento externo para se efetivar, não há
necessidade de se recorrer a algo externo àquilo que está presente e do qual se pretende
ter consciência (como algo presente). O conhecimento de um estado interno e o
"conhecimento" de algo presente (como presente) são dois tipos de conhecimento
completamente diferentes, inconfundíveis. Por um lado, quando se conhece um estado
interno, a relação de conhecimento recorre a algo externo àquele estado que se pretende
conhecer (de acordo com a teoria peirceana). Por outro lado, quando se "conhece" um
pensamento presente como algo presente (à consciência), a relação de "conhecimento"
recorre ao próprio pensamento que se pretende "conhecer". Como veremos, é
justamente esta reflexividade que permite que tal "conhecimento" do presente como
presente seja considerado imediato.
O problema é que este "conhecimento" do presente como presente, esta intuição de
segundo tipo, parece não ter espaço dentro da epistemologia peirceana desenvolvida no
QFCM. Por exemplo, uma vez admitida a existência deste "conhecimento" direto, uma
pergunta que pode surgir é a seguinte: se sei que estou pensando em x, então precisei
identificar aquele pensamento que estou tendo como um pensamento específico. Porém,
isto não significa que, para classificá-lo como um pensamento em x, precisei diferenciá-
lo de outros pensamentos e isto não faria deste "conhecimento" (do presente como
presente) o resultado de uma inferência? Por exemplo, sei que estou pensando em
árvore de natal neste momento porque veio à minha mente uma certa concepção que é
muito semelhante a outras concepções que vieram à minha mente em outros momentos
anteriores em que julguei estar pensando (justamente) em árvore de natal. Isto faria do
tal "conhecimento" (do presente como presente) um conhecimento inferencial (e
hipotético). Como já cotejamos este "conhecimento" do presente (como presente) com o
conhecimento de um estado interno, façamos, desta vez, uma comparação com juízos
perceptivos (que Peirce argumentou serem todos resultantes de inferências): quando
classifico algo que vejo como uma cadeira, o que a mente faz (de acordo com o que
pode se depreender da exposição de Peirce) é comparar determinadas características do
objeto que vejo, comparar a forma dele com uma forma geral que possuo em mente e,
depois, levantar um juízo hipotético: "isto é (ou deve ser) uma cadeira (porque 'tem
forma de cadeira')". Ora, pelo que se pode entender daquela primeira proposição (acima
apresentada), quando se está pensando em x e se identifica o pensamento que se está
tendo como um pensamento em x , tal identificação é imediata. Como seria possível
fazer uma classificação imediata? Como seria possível saber que um elemento a
pertence a um conjunto A sem compará-lo com os outros elementos desse conjunto A
(ou, dito de outro modo, sem verificar se ele cumpre a condição para entrar em tal
198
conjunto)? Acreditamos que o conceito de objeto imediato serve justamente para
oferecer uma resposta a estas perguntas.
De acordo com a própria definição de objeto imediato, fornecida pela primeira vez no
início da Q3 (CP 5.238 [1868]), este tipo de objeto é "algo" que faz parte da cognição
"em si mesma". O objeto imediato é inseparável da própria noção de cognição ou
pensamento, pois, do que se pode depreender da definição, ter uma cognição (ou
pensamento) é ter uma visão direta de uma forma. Esta definição de objeto imediato é
apresentada no que chamamos acima de proposição II: a cognição é em si mesma uma
intuição de seu elemento objetivo (que pode ser, então, chamado de objeto imediato da
cognição) (CP 5.238 [1868]).
Segundo a interpretação que ora desenvolvemos é justamente esta forma, este objeto
imediato (que é diferente em cada cognição) que nos torna capazes de "conhecer"
diretamente o que está presente enquanto algo que está presente. É esta forma que nos
permite afirmar que há uma intuição (do segundo tipo). Por exemplo, quando a
concepção de árvore está presente diante de minha consciência não posso confundi-la
com qualquer outra concepção (como a de unicórnios, por exemplo). A identificação de
um pensamento (como um pensamento em algo específico) não depende de um ato de
comparação com outros pensamentos semelhantes que aquela mente teve em momento
anteriores. É por não depender de um ato de comparação que se torna possível que esta
identificação seja imediata. Isto é só uma outra maneira de afirmar que tal identificação
não é determinada por cognições anteriores do mesmo objeto (no caso, o objeto é o
pensamento). O pensamento em árvores de natal convoca ou traz para diante da
consciência uma certa concepção (que é a concepção em árvore de natal que aquela
mente possui). Esta concepção tem uma forma, um padrão. É justamente esta forma ou
padrão que constitui o objeto imediato. A concepção de árvore é um certo "padrão
cognitivo ou mental". Toda vez que ocorre aquele padrão cognitivo ou mental nos
tornamos conscientes de que estamos pensando naquele pensamento específico. Esta
consciência ou este "conhecimento" é imediato. Este, portanto, é um caso de intuição
admitida dentro da teoria da cognição do QFCM.
É necessário enfatizar (novamente) que se esta consciência (do presente enquanto
presente) ou este "conhecimento" direto for comparado ao conhecimento obtido pela
percepção, então tal teoria da cognição passa a enfrentar inconsistências. Para esta
teoria, como vimos ainda na Q1, não há intuição envolvida na percepção. O
conhecimento obtido a partir da percepção é hipotético. Como exemplificamos há
pouco, quando vemos algo que tem uma forma de cadeira, passamos a comparar aquele
formato do objeto que percebemos (naquele instante) com a forma de cadeira que temos
em mente. Só depois desta comparação que podemos obter uma classificação (um juízo
perceptivo): "isto é (ou deve ser) uma cadeira". Na linguagem do QFCM, diz-se que
esta cognição ("isto é [ou deve ser] uma cadeira") é determinada, então, por cognições
anteriores (de objetos que se julgou serem cadeiras). No caso do "conhecimento" direto
do presente como presente (i.e., na consciência do que está diante da mente), há uma
intuição (dela mesma). É claro que se utilizarmos expressões que nos levem a
199
representar esta consciência (do presente enquanto presente) como uma espécie de
órgão sensorial interno, a inconsistência parece inevitável. Por exemplo, comparemos
esta consciência (este "conhecimento" direto) com um olhar voltado para dentro,
direcionado para os pensamentos com o intuito de identificá-los. Assim, quando
"olhamos" para um pensamento, de acordo com a teoria acima exposta (cf. proposição I
e II), sabemos imediatamente que é um pensamento em x e não um pensamento em y.
A classificação deste "olho interno" é imediata (ao contrário daquela do "olho normal",
o externo). Então, se considerarmos este "conhecimento" direto ou esta consciência (do
presente enquanto presente) como uma espécie "olhar interior", então isto nos levaria a
supor que Peirce admite alguma capacidade de introspecção, mesmo que mínima154
.
Haveria, então, na teoria da cognição peirceana a admissão de um conhecimento
privilegiado (certo, absoluto) do mundo interior (em contraposição ao conhecimento
sempre hipotético do mundo exterior). Esta seria obviamente uma recaída no "espírito
do cartesianismo". O que pretendemos mostrar é que este conflito interno é, na verdade,
induzido por uma interpretação que aproxima (metaforicamente) dois tipos de
conhecimento que são para Peirce fundamentalmente distintos. De um lado, um
conhecimento inferencial e hipotético, obtido a partir de elementos exteriores ao que é
conhecido; do outro lado, um "conhecimento" intuitivo e absoluto, obtido a partir de
uma relação reflexiva. Aliás, a distinção é tão grande que o Hausman lamentou o fato de
Peirce ter utilizado o termo "conhecimento" para se referir ao que poderia ser
denominado "consciência do presente como presente".
Uma pergunta que pode ser feita é a seguinte: por qual motivo Peirce abriu espaço em
sua teoria para este tipo de "conhecimento" direto? Se o falibilismo é uma das principais
marcas distintivas da epistemologia inaugurada no QFCM, então, pode-se perguntar:
por que Peirce (que pode ser considerado um dos primeiros filósofos a propor uma
teoria declaradamente falibilista do conhecimento) resolveria "baixar a guarda" e
admitir a existência de um "conhecimento" infalível? Por que, ao notarmos que Peirce
admite a existência de algum tipo de intuição, temos a impressão de que o filósofo
deixou entrar pela porta dos fundos o conceito que combateu e enxotou, a duras penas,
pela porta principal de sua teoria da cognição? O que veremos é que, se, por um lado,
com esta admissão, a teoria parece se tornar inconsistente, por outro lado, se não fosse
permitido este "conhecimento" direto, a teoria se tornaria efetivamente inconsistente.
Em outras e poucas palavras, a admissão do que foi chamado de intuição de tipo II é
inevitável. Vejamos alguns porquês.
Retomemos nosso exemplo padrão para lidar como o problema do segundo tipo de
intuição. Quando se está pensando em uma árvore de natal, o "conhecimento" de se que
está pensando em uma árvore de natal (e não em qualquer outro ser) é direto. Isto é o
que Peirce denomina "conhecimento do presente como algo presente" (cf. nota em CP
5.214 [1868]). Este é um "conhecimento" intuitivo e esta é uma intuição do tipo II. E se
não fosse este o caso? Se fosse o caso que Peirce não admitisse nem mesmo esta
intuição de tipo II em sua teoria? Ou seja, a questão é: e se também este "conhecimento"
154
cf. crítica de Hookway, 1985, p. 25.
200
sobre o que se está pensando fosse inferencial, indireto e hipotético? Vejamos. Se fosse
este o caso, então, haveria possibilidade de erro, o que significa que seria possível haver
uma falha de "juízo ou julgamento da consciência". Assim, quando estivéssemos
pensando, por exemplo, numa árvore de natal pode ser que nossa consciência se
confundisse (ou cometesse algum erro no processo inferencial) e nos informasse que
estávamos pensando em unicórnios. Este seria um erro de tipo muito estranho, pois este
seria um erro que jamais poderia ser classificado como tal, ao menos, por aquela mente
que estava pensando. Este seria um erro para qual não haveria possibilidade de
correção, porque seria um erro totalmente interno. Se a mente estava pensando em
árvores de natal e, por engano, informou a si mesma que estava pensando em
unicórnios, então, para todos os efeitos, ela estava pensando em unicórnios (e não em
árvores de natal). Como vimos, o "conhecimento" que se tem do que se está pensando
no instante presente é "retirado" da concepção que veio à mente naquele instante. Não
há como esta mente poderia vir algum dia a saber que estava pensando, na verdade, em
árvores de natal e não em unicórnios. Para esta mente, o que ela de fato pensou foi no
que ela julgou ("erroneamente") ter pensado: em unicórnios. Para que esta mente
pudesse saber, de alguma forma, que houve uma espécie de "erro ou falha de juízo ou
julgamento da consciência", teríamos que começar a fazer algumas suposições que nos
levariam a propor teorias da cognição cada vez mais estranhas se comparadas a que
Peirce está tentando estabelecer no QFCM (e a dele já é suficientemente estranha ou, ao
menos, implausível como classificou Hookway [1985, p. 27]). Exploremos algumas
destas possibilidades. Pedimos ao leitor que, durante este exercício de imaginação, seja
generoso com os limites de alguns conceitos como consciência, pensamento, ego, etc.
Uma possibilidade de se descobrir uma "falha de julgamento da consciência" como o
descrito acima seria supor que exista outra consciência dentro desta mesma mente. Esta
segunda consciência seria, então, capaz de enxergar o que a mente verdadeiramente
estava pensando. Esta seria uma teoria esquizofrênica da cognição e o grande problema
com ela seria o de encontrar um critério que permitisse à mente escolher qual das suas
duas consciências deveria ser a verdadeira ou a válida. Diante de uma dupla
consciência, a mente ficaria fendida também entre informações discordantes sobre dois
pensamentos diversos: um sobre árvore de natal, por exemplo, e o outro sobre
unicórnios. Não parece haver saída possível para esta teoria esquizofrênica da cognição
a não ser admitir que dois pensamentos podem ocupar o mesmo "espaço" no presente de
uma consciência ou que estes dois pensamentos pertencem a processos de raciocínio
distintos. A primeira das proposições desta disjunção não pode ser sustentada. Não
podemos admitir que "dois pensamentos podem ocupar o mesmo 'espaço' no presente de
uma consciência", porque isto nos levaria a alterar profundamente a própria concepção
de pensamento (cognição) e de consciência. A segunda das proposições da disjunção
nos parece menos problemática (ao menos se for comparada à primeira delas). Admitir
que os dois pensamentos (o da árvore de natal e o dos unicórnios) pertencem a
processos de raciocínio distintos significaria afirmar que existem duas "pessoas" (dois
"egos") pensando dentro de uma mesma mente. Este processos de raciocínios correriam
em paralelo como dois fluxos distintos ainda que o segundo deles tenha como objeto o
201
primeiro deles, ou seja, o segundo processo de raciocínio (o relativo ao pensamento
sobre unicórnios) seria uma espécie de metapensamento da segunda consciência sobre o
pensamento da primeira consciência sobre árvores de natal155
. A teoria da cognição que
Peirce apresenta no QFCM está muito distante disso.
Outra possibilidade de se descobrir aquela "falha de julgamento da consciência" seria
que alguma outra mente pudesse saber que aquela primeira mente estava, na verdade,
pensando em árvores de natal, mas julgou ter pensado em unicórnios. Haveria, então,
uma "falsa consciência" (que é a daquela primeira mente) e uma "verdadeira
consciência" (que seria a daquela segunda mente). A exemplo do que ocorre na teoria
marxista da ideologia, o mínimo que se espera da pessoa que detenha a "verdadeira
consciência" é que avise a pessoa que detenha a "falsa consciência" que ela tem
pensamentos que pertencem a outrem (e não a ela própria). Ainda que seja inusitado
para a maioria das teorias epistemológicas, este conceito de "falsa consciência" tem um
importante papel dentro da economia interna do pensamento de Marx156
. Entretanto,
dentro do quadro geral da teoria da cognição apresentada na QFCM, este conceito nos
parece "uma ideia fora de lugar".
Todos estes caminhos teóricos que apresentamos acima são decorrentes da negação que
haja um conhecimento intuitivo de tipo II. Como vimos Peirce admite já no segundo
parágrafo da Q1 que há um "conhecimento do presente como presente" que é intuitivo.
Portanto, a teoria da cognição peirceana deve admitir como intuitivo ao menos este
"conhecimento" de uma cognição enquanto algo presente à mente mesmo que, ao
admiti-lo, tenha que reconhecer que este seja um tipo de "conhecimento" infalível.
Claro está que este "conhecimento" não é uma certeza fundamental como o cogito nos
sistema cartesiano. Este "conhecimento" não serve de "fundações seguras" para o
conhecimento humano, uma vez que ele é apenas a consciência direta e certa do que
está presente à mente (enquanto presente).
A nossa tese é que Peirce admite que este "conhecimento" do presente como presente
(ou esta consciência sobre o que está diante da mente no presente instante) é uma
intuição (de segundo tipo), porque este seria um "conhecimento" que não poderia, em
hipótese alguma, ser falso. Antes de argumentarmos a favor desta tese, é necessário que
lidemos uma vez mais com sua negação para que fique claro, a partir de um
155
Enquanto a primeira consciência está pensando em árvores de natal (ou acredita estar diante do
pensamento em árvore de natal), a segunda consciência está pensando que o pensamento da primeira é
sobre unicórnios e não árvores de natal. 156
Se simplificarmos ao máximo as teses desta teoria e abrirmos mão de sua terminologia técnica,
podemos afirmar que este conceito de "falsa consciência" serve para explicar os motivos pelos quais
indivíduos que pertencem a uma classe dominada não agem contra os indivíduos da classe dominante. O
fenômeno da falsa consciência, por um lado, impede que um indivíduo se enxergue como pertencente a
uma classe e, na ausência desta consciência de classe, ele acaba por não agir à favor dela. Por outro lado,
o fenômeno da falsa consciência permite que este indivíduo tenha pensamentos "que joguem contra" sua
classe e sejam apenas favoráveis à classe oposta à sua (é o que os marxistas denominavam, no caso do
sistema capitalista, de ideologia burguesa). Como saber quem se é, para o marxismo, é ter consciência de
classe (é saber que pertence a determinada classe e saber que deve pensar e agir de determinada maneira),
então o indivíduo que não possui este tipo de consciência acaba por ter pensamentos "dos outros" em sua
cabeça. De acordo com os termos da teoria, este indivíduo estaria alienado de si mesmo.
202
"experimento mental", como seria impraticável não admitir dentro da teoria a existência
desta intuição de segundo tipo. A pergunta é a seguinte: se Peirce tivesse banido de sua
teoria da cognição toda e qualquer intuição (i.e., de qualquer tipo) e tivesse construído
um falibilismo irrestrito, radical? De acordo com este falibilismo, não poderíamos ter
certeza nem mesmo sobre o que estamos conscientes. Neste caso, poderíamos falhar ao
identificar o que está diante de nossa consciência da mesma forma que podemos falhar
ao identificar algo que observamos no mundo externo. O problema com este
posicionamento falibilista radical é que não se sabe exatamente em que circunstâncias
uma falha de julgamento (ou juízo) da consciência poderia ser descoberta. Sabemos que,
com relação a observações do mundo exterior, as falhas (de juízo da percepção) podem
ser descobertas, porque o mundo "resiste" às nossas representações (como fica
evidenciado no exemplo da criança e do fogão cf. CP 5.233 [1868]). No caso da
percepção, as falhas podem ser descobertas, pois a "relação de percepção" entre
observador e objeto observado não é uma relação reflexiva. No caso do "conhecimento"
do presente como presente, a relação de "conhecimento" é, como já afirmamos,
reflexiva. Neste caso, se supomos que haja alguma falha, como ela poderia ser
identificada? Ou seja, no caso de haver uma falha de julgamento da consciência (sobre o
que se está pensando), como a própria consciência descobriria o erro e, ainda que
houvesse alguma forma possível de descobri-lo, como se poderia ter certeza acerca do
que efetivamente se pensou? Se não forem considerados infalíveis, quem ou o que
poderia garantir os tais "julgamentos da consciência"?
Desenvolvamos um experimento mental para estabelecermos o seguinte ponto: supor
que haja alguma falha de "julgamento de consciência" nos leva, em primeiro lugar, a
uma autocontradição (pois, no QFCM, a consciência ou o "conhecimento" do presente
como presente é definido como uma relação reflexiva, o que torna impossível um erro)
e, em segundo lugar, a uma contradição com relação a teoria de formação do ego
apresentada no QFCM. Da forma como define, o "conhecimento" do presente como
presente ou a consciência (do que está diante da mente), Peirce não deixa espaço para
especularmos sobre a possibilidade de um "conhecimento" falível do presente como
presente (ou uma consciência cuja capacidade para identificar o que está presente à
mente seja falível). Então, esta consciência não pode ser falível. Se fosse, deveríamos
supor alguma outra instância que deveria ser capaz de fazer tais julgamentos de forma
infalível e, então, a (verdadeira) consciência seria transferida para esta instância. Parece-
nos que, dentro das possibilidades de fundamentação das teses do QFCM, da intuição de
tipo II, simplesmente não se pode escapar. Vamos ao experimento.
Suponha que algum governo de tendências totalitárias tenha investido durante anos até
conseguir inventar uma criatura que pudesse entrar na mente das pessoas para fiscalizar
o que elas estavam pensando com o intuito, claro, de taxar seus pensamentos.
Chamemo-la de o diabo fiscalizador. Esta criatura seria capaz de saber o que as pessoas
realmente estavam pensando (mesmo que elas se enganassem a respeito do que passava
por suas cabeças).
203
Suponha que, de acordo com a notificação do diabo fiscalizador, a mente do Sr. K
estava pensando em a. Porém, por algum motivo, a consciência do Sr. K o informou que
ele estava pensando em b". Então (conscientemente) deve ter lhe ocorrido a cognição
"estou pensando em b". Neste caso, se o Sr. K observasse a notificação emitida pelo
diabo fiscalizador, ele poderia notar que o que ele pensou foi a e não b. Porém, esta
descoberta não pode ter efeito retroativo, pois o que ele realmente pensou foi em b
(ainda que, de acordo com o diabo fiscalizador, o seu verdadeiro pensamento tenha sido
a). Note que, se o diabo fiscalizador afirma que uma pessoa pensou algo diferente do
que ela julgou ter pensado, esta informação jamais poderá ser checada pela pessoa, pois
algo que não foi efetivamente pensado não deixa traços, marcas ou resquícios na mente
(nem no comportamento "externo"). Portanto, a pessoa não pode saber que teve este
pensamento "não-efetivamente-pensado". O Sr. K jamais poderia ter certeza de que sua
mente efetivamente pensou a (como afirma a notificação do diabo fiscalizador) no lugar
de b (como julgou sua consciência no momento que o pensamento ocorria). Ele teria
que confiar no que afirma o diabo fiscalizador sobre seus próprios pensamentos.
Neste cenário que construímos podem ser evidenciados dois grandes problemas
teóricos. Em primeiro lugar, se o Sr. K precisa recorrer ao veredicto do diabo
fiscalizador para ter certeza sobre o que ele (Sr. K) está pensando, então a "consciência
do Sr. K" teria estranhamente formado sua sede fora dele (ou seria uma espécie de
consciência distribuída). E, neste caso, (seguindo as linhas da teoria da cognição
peirceana) ou não haveria condições de se levantar a hipótese da existência de um ego
ou o hipotético ego do Sr. K. deveria incluir também o diabo fiscalizador (ou seja, da
forma como enxergaria o mundo, algo externo ao corpo central faria parte do "eu" do
Sr. K). Em segundo lugar, se afirmamos que o Sr. K. pode ter plena confiança na
notificação (pois o diabo fiscalizador seria infalível), então restituímos a tal capacidade
intuitiva (que se imaginou estar completamente banida da teoria), mas a colocamos fora
da consciência do indivíduo e isto simplesmente significa que regressamos, em um nível
ainda mais elementar, a uma situação em que o pensamento humano precisa
necessariamente de recorrer a alguma autoridade externa. Em outras palavras, se
afirmamos que veredicto do diabo fiscalizador sobre o que pensa o Sr. K. é absoluto,
então apenas transferimos o problema da intuição da consciência de um indivíduo para
uma instância externa a ela. Ora, se estendermos o falibilismo também a esta instância
externa e nos perguntássemos: quem garante que a notificação do diabo fiscalizador é
confiável? Neste caso, como resultado deste questionamento, seria necessário que se
inventasse uma segunda criatura burocrático-cognitiva: algo como um auditor de
notificações do diabo fiscalizador. As notificações deste auditor também poderiam ser
questionadas (por também ser esta uma criatura falível), o que nos levaria a necessidade
de se pensar numa terceira criatura que verificasse as notificações produzidas pelo
auditor de notificações do diabo fiscalizador e, assim, por diante.
No final das contas, o Sr. K. jamais poderia ter certeza sobre o que ele mesmo teria
verdadeiramente pensado. Porém, note que só haveria motivo para que o Sr. K
duvidasse do julgamento de sua consciência se houvesse alguma evidência de que sua
204
consciência, nalgum julgamento específico, falhou. Porém, não há nenhuma evidência
desta falha, exceto o testemunho de uma instância externa (o diabo fiscalizador) que
também é falível. Como o testemunho dessa instância externa não é infalível, ela pode
falhar ao acusar alguma falha no julgamento da consciência do próprio Sr. K. Se a
instância externa pode falhar, então não há nada que obrigue o Sr. K a pensar que sua
consciência falhou em algum momento específico. O Sr. K pode escolher: ou confia no
julgamento de sua consciência (que, de acordo com as evidências, nunca falhou) ou
confia no testemunho de uma criatura cuja capacidade para identificar falhas não pode
ser considerada infalível. Não vemos motivos pelos quais o Sr. K confiaria na última em
detrimento da primeira. No caso da instância externa ser falível, para o Sr. K a hipótese
de que sua consciência tenha falhado é inútil, pois ele continuaria agindo como se
tivesse pensando aquilo que sua consciência lhe diz estar pensando. Se o testemunho da
instância externa não pode ser considerado infalível, parece-nos óbvio que toda e
qualquer pessoa confiará naquilo que sua consciência julgou ter pensado e não dará
crédito às afirmações da instância externa. Isto parece decorrer da própria concepção de
consciência (do que está diante da mente) ou do "conhecimento" do presente como
presente. Parece não haver espaço para falhas. Uma consciência que falha ao informar o
que está presente diante da mente não pode ser considerada uma consciência, i.e., um
"conhecimento" sobre o presente como presente não pode ser falho. Se fosse, não seria
obviamente um conhecimento sobre o presente enquanto presente. Este falibilismo
radical é autocontraditório.
Para supor que haja possibilidade de erro num "julgamento da consciência" (ou seja, um
erro na identificação do que está presente diante de uma mente), devemos supor que
seja possível identificar este erro. Para supor que é possível identificar tal erro, devemos
supor que exista alguma instância externa (à consciência) que faça esta identificação.
Para justificar a suposição de que exista alguma instância externa (à consciência) que
faça esta identificação, devemos supor que a identificação feita por tal instância seja
infalível (caso contrário, a instância externa estaria no mesmo "patamar" que a instância
interna [a consciência do Sr. K]). Para supor que esta identificação seja feita de forma
infalível, devemos supor que esta instância externa (responsável pela identificação)
tenha um "conhecimento" direto, imediato, absoluto do que o Sr. K verdadeiramente
pensou. Caso contrário, não podemos afirmar que o testemunho desta instância externa
seja uma evidência de que houve um erro num "julgamento de consciência" do Sr. K.
Então, para poder dar certificação ao julgamento da instância externa, teríamos que
admitir dentro da teoria novamente o tal "conhecimento" direto que tentamos banir. E,
por outro lado, se ele não for admitido, então a hipótese de que pode haver erro de
"julgamento da consciência" se torna inútil, porque as evidências que a apoiariam
seriam esvaziadas. De que adianta supor que há um certo tipo de erro para o qual não há
critérios que nos permitam identificá-lo. A estrutura do argumento que estamos
apresentando para estabelecer a necessidade em se admitir esta intuição de tipo II é
muito semelhante a do argumento enunciado por Peirce para negar que haja alguma
necessidade em se admitir a intuição de tipo I.
205
Resumamos, então, nossa proposta de dissolução do chamado problema do segundo
tipo de intuição. Não é muito difícil compreender os motivos que nos levam a defender
a tese que, para Peirce, no QFCM, o "conhecimento" do presente como presente não
pode ser falso (e, por este motivo, deve ser considerado uma intuição do tipo II).
Defendemos esta tese com base no seguinte raciocínio: há clara evidência textual157
que
este "conhecimento" (esta intuição de segundo tipo) é, na verdade, uma relação
reflexiva; sendo uma relação reflexiva, este "conhecimento" (ou intuição de segundo
tipo) tem como objeto ele mesmo (ou ela mesma); então, como este "conhecimento" (ou
intuição de segundo tipo) é uma espécie de autorrepresentação, logo este
"conhecimento" (ou intuição de segundo tipo) não pode ser falso. Não poderia haver
uma "falsa consciência".
Enfatizemos que o trecho que Peirce admite haver uma intuição é o seguinte: "toda
cognição, como algo presente, é, claro, uma intuição de si mesma" (CP 5.214 [1868])158
.
A interpretação que sustentamos neste ponto é que, ao tratar o "conhecimento" do
presente enquanto presente como "uma intuição de si mesma", Peirce está afirmando
que este tipo de "conhecimento" é um conhecimento reflexivo e, por isso, não poderia
ser considerado falível. Se for mesmo considerado um tipo de conhecimento, este
"conhecimento" (que Hausman [1993, p.61] preferiu chamar de consciência) é o único
tipo de conhecimento infalível admitido por Peirce em sua teoria da cognição
(apresentada no QFCM). Analisemos este ponto com mais paciência.
Quando tomo consciência de que estou pensando em x, imaginemos que (no lugar de
uma concepção) venha à minha mente a proposição "estou em estado de consciência de
que estou pensando em x". Note, então, que esta proposição tem como objeto de
representação o próprio estado de consciência da qual trata, ou seja, esta proposição
representa o próprio estado de consciência ou o próprio fato de se estar naquele estado
de consciência. Em resumo, esta proposição é uma autorrepresentação.
De acordo com a interpretação que estamos desenvolvendo, o que Peirce parece querer
dizer no trecho acima transcrito (CP 5.214 [1868]) é que, quando uma cognição está
presente, ela age como uma representação de si mesma ou uma "visão direta" de seu
objeto imediato. Neste caso, a cognição seria uma autorrepresentação. E, ao menos se
for respeitada "certa sensatez" manifesta na lógica clássica, não se pode afirmar que
uma autorrepresentação possa ser falsa. Para que uma representação seja falsa tem que
ser possível que haja alguma propriedade na representação que não seja encontrada
naquilo que é representado (ou vice-versa). Como há total coincidência entre
representante e representado, então não pode haver possibilidade alguma de uma
autorrepresentação ser falsa. Portanto, ela é sempre verdadeira159
.
157
cf. CP 5.214 [1868]. 158
Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself. 159
Descontadas as peculiaridades de exemplos "mais empíricos", é como se um diretor chamasse uma
pessoa para fazer o papel dela mesma numa peça sobre sua própria e vida, por algum motivo, os críticos
julgassem que tal pessoa não foi convincente no papel dela mesma.
206
E onde entra o conceito de objeto imediato? Este conceito (conforme esta interpretação)
designa a própria forma ou padrão de x do qual estamos conscientes quando temos o
pensamento em x. Uma cognição, quando presente diante de uma mente, como
afirmamos, age como uma representação de si mesma ou uma "visão direta" de seu
(próprio) objeto imediato. Estar consciente do que se está pensando é ter este
"conhecimento" direto do objeto imediato. Este equacionamento entre o "objeto
imediato" e "aquilo do que se está consciente quando se tem uma cognição" é baseado
num raciocínio desenvolvido a partir de definições fornecidas pelo próprio Peirce no
primeiro parágrafo da Q3160
(CP 5.238 [1868]).
Argumento sobre correlação entre o conceito de "objeto imediato" e o conceito de
intuição como um "conhecimento" do presente como presente.
Premissa_1: O elemento objetivo (parte objetiva) de uma cognição é o objeto
imediato.
Premissa_2: O elemento objetivo de uma cognição é algo que é representado
(quando uma cognição está presente) ou é algo do qual estamos conscientes
(quando uma cognição está presente).
Conclusão: O objeto imediato é algo do qual estamos conscientes (quando uma
cognição está presente).
Esta interpretação do objeto imediato como uma forma que nos permite identificar um
pensamento como algo presente em nossa mente e a partir desse reconhecimento nos
remeter a algo diferente dele (que seria o seu significado, seu conteúdo) é muito
importante para entendermos a equação entre os termos "pensamento" e "signo" (a ser
feita na quinta questão).
Para que fechemos este excurso sobre o problema do segundo tipo de intuição, devemos
ressaltar mais uma vez que, de acordo com nossas análises, não é possível dentro das
linhas argumentativas desenvolvidas no QFCM negar a existência do que foi
denominado de segundo tipo de intuição, i.e., o tal "conhecimento" do presente como
presente. Por esse motivo, nossa tese é que o combate que Peirce trava desde as
primeira linhas do QFCM não é especificamente contra conceito de intuição, mas contra
160
Para maior conforto do leitor, reproduzimos a seguir a parte inicial deste parágrafo.
"Toda cognição envolve algo representado ou algo do qual se está consciente e alguma ação ou paixão do
eu pela qual ela se torna representada. A primeira pode ser denominada elemento objetivo [de uma
cognição], a última pode ser denominada elemento subjetivo [de uma cognição]. A cognição é em si
mesma uma intuição do seu elemento objetivo, que pode, portanto, ser chamado também de objeto
imediato" (CP 5.238 [1868]).
No original: "Every cognition involves something represented, or that of which we are conscious, and
some action or passion of the self whereby it becomes represented. The former shall be termed the
objective, the latter the subjective, element of the cognition. The cognition itself is an intuition of its
objective element, which may therefore be called, also, the immediate object".
207
o "uso fundacional" deste conceito dentro de teorias e reflexões epistemológicas. Para
Peirce, o problema é menos o conceito em si do que a função ou a posição que ele
ocupa em determinados sistemas (como aquele construído por Descartes nas
"Meditações" ou mesmo no "Discurso do método" [cf. capítulo 3, seção 1 desta tese] ou
todos aqueles sistemas que são, de alguma forma, animados pelo que chamava de
"espírito do cartesianismo"). Uma evidência externa ao QFCM que apoia esta leitura é
o fato de, nos escritos tardios, Peirce ter construído um conceito que, embora se
assemelhasse muito à intuição, não possui um papel fundacional: o conceito de instinto
(correlacionado ao conceito de abdução)161
.
161
Cf. Santaella, 2004, p. 104-6.
208
CAPÍTULO 7
Análise da quinta questão do texto "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas
para o homem"
A quinta questão do QFCM é o centro lógico do texto. O resultado das linhas
argumentativas desenvolvidas nas últimas questões convergem para a sustentação do
que denominamos de tese-base da semiótica peirceana. O objetivo geral de Peirce no
QFCM é estabelecer uma teoria que seja capaz de explicar diversas faculdades
cognitivas afirmando que o processo cognitivo ocorre na dependência de processos
inferenciais realizados a partir de fatos externos. De acordo com esta teoria inferencial
da cognição, todo e qualquer processo cognitivo é uma inferência que parte de algum
elemento externo tal como um signo. Numa "definição genérica", o signo é um
expediente sensível que uma mente utiliza para partir na direção de um objeto (i.e., de
algo representado). O signo é algo do qual se parte em direção ao objeto representado,
mas este ponto de partida é ele mesmo diferente do objeto ( o ponto de chegada), ele é
externo ao objeto. Como a teoria peirceana da cognição descreve qualquer tipo de
conhecimento como resultante de algum processo inferencial que parte de algo externo,
esta teoria estabelece que qualquer conhecimento depende de signos. Esta afirmação de
que o pensamento depende de signos é o que denominamos de tese-base (da semiótica
peirceana). As duas seções das quais é composto este sétimo capítulo são dedicadas a
dissecar o argumento dentro da Q5 que desemboca nesta tese-base e também algumas
consequências do estabelecimento desta tese dentro do projeto filosófico de Peirce.
209
7.1 Análise (da primeira parte) da Q5: sobre a capacidade de
pensar sem signos
Questão 5: Se somos capazes de pensar sem signos.
Na quinta questão, o foco é voltado para o conceito de signo. O resultado de toda
argumentação desenvolvida no QFCM converge para o estabelecimento da seguinte
tese: "Não é possível haver pensamento sem signos" ou, na forma afirmativa, "todo
pensamento é pensamento em signos". Esta proposição será denominada em nossas
análises de tese-base da semiótica peirceana (por motivos que deverão ficar claros).
A estratégia argumentativa desenvolvida até a Q4 foi apresentar diversas evidências que
tornariam desnecessária a hipótese de que haja intuição. Na verdade, como em cada
uma das três últimas questões se desenvolveu uma explicação para o fenômeno sob
análise que tem como base a noção de inferência (que é uma capacidade que
reconhecidamente o homem possui), então tornou-se desnecessária qualquer menção a
uma capacidade cuja existência nos é desconhecida (i.e. uma capacidade que não
sabemos ao certo se possuímos ou não). E Peirce considera a intuição uma capacidade
cuja existência é desconhecida a partir da argumentação apresentada na Q1.
Todos os argumentos desenvolvidos em cada uma das questões apontaram para a
negação de que tenhamos alguma capacidade intuitiva. Nada que julgamos saber
podemos afirmar que o sabemos intuitivamente. Nada do que sabemos sobre o que
percebemos ou sentimos é produto de intuição, mas de nossa capacidade de fazer
inferências. Em outra palavras, não podemos saber de forma direta (intuitiva) o que os
sentidos percebem (i.e., os chamados dados sensórios). Também não podemos saber de
forma direta de nossa própria existência, nem das diferenças (de tipo) entre nossas
cognições e nem mesmo de nada que esteja "dentro" de nossas cabeças. Para que
saibamos de tudo isso, temos que recorrer a elementos externos. De acordo com Peirce,
é inferencial todo o conhecimento que temos do que percebemos, de nossa própria
existência, das diferenças entre nossas cognições e de qualquer estado interno de nosso
ego. O resultado parcial das respostas negativas a todas as quatro primeiras questões é
que não temos acesso direto nem mesmo ao "conteúdo" de nossos pensamentos. Para
que tenhamos uma compreensão mais clara, tentemos desenvolver um exemplo que
modele esta tese peirceana que não temos acesso direto nem mesmo ao que pensamos
(no exato momento em que pensamos)162
.
Imagine que nossos pensamentos sejam caixas. Por exemplo, um pensamento sobre uma
árvore de natal seria, neste modelo, uma caixa com uma certa concepção de árvore de
natal dentro. Podemos enxergar de forma bem distinta neste modelo do pensamento
162
A este respeito, cf. a exposição de Santaella (2004, p. 54 e 55).
210
como caixas as duas teorias em contenda: aquela que recorre à capacidade da intuição e
afirma haver, em alguns casos, um conhecimento direto (intuitivo) e aquela outra teoria
que recorre apenas à capacidade de inferência e afirma que todo conhecimento é
indireto (inferencial). Se houvesse alguma cognição que fosse (com certeza) uma
intuição, então esta cognição seria uma caixa de vidro. Por ser translúcida, poderíamos
saber ou vir a conhecer imediatamente o que ela leva em seu interior. Toda a
argumentação de Peirce no QFCM tenta nos convencer que a existência de uma
cognição como essa (i.e., intuitiva) seria apenas uma hipótese (uma vez que não poderia
ser auto-evidente sem cair num círculo vicioso [cf. argumentação da Q1]) e esta
hipótese seria dispensável. A alternativa seria afirmar então que todas as cognições são,
de alguma forma, resultantes de inferência. Esta pode ser considerada a ideia central da
teoria da cognição desenvolvida por Peirce e apresentada no QFCM. Neste caso, a caixa
seria completamente opaca. Não saberíamos o que uma cognição ou pensamento
conteria até que recorrêssemos a alguma inferência que nos levasse a descobrir o seu
conteúdo. Óbvio está que, para descobrir o conteúdo, não se poderia abrir a caixa e
simplesmente olhar (pois, esta "olhadela" seria, dentro de nosso modelo, o equivalente a
recorrer a alguma espécie de intuição, o que a teoria peirceana não admite). Teríamos
que nos limitar a conhecer o interior da caixa somente por marcas exteriores. Somente
pelo o que Peirce chamou, ao longo da Q4, de fatos externos. Diante das imposições
dessa teoria, estamos condenados a nunca ter certeza absoluta do que estas caixas
carregam. Nesta situação, todo o conhecimento que teríamos do interior da caixa, de seu
conteúdo, seria hipotético. Teríamos, no máximo, boas hipóteses. Nunca certezas.
Estas consequências que podem ser observadas em nosso modelo dos pensamentos
como caixas devem valer também para aquilo que diz a respeito aos próprios
pensamentos. Uma das principais consequências das teses estabelecidas pela teoria
peirceana é a ideia de que não há conhecimento privilegiado. O conhecimento que
temos de nós mesmos, do que se passa dentro de nossas mentes, é obtido da mesma
forma que qualquer outro conhecimento: por inferências, a partir de sinais ou marcas, a
partir de fatos externos. Ao suprimir os privilégios do conhecimento acerca de fatos
internos, até mesmo o que sabemos de nós mesmos passa a ser tão hipotético quanto o
que sabemos do mundo externo. Esta é uma das consequências mais perturbadoras desta
teoria peirceana da cognição: não sou necessariamente melhor testemunha sobre o que
se passa dentro de meu "eu" do que outra pessoa. Muito distante de ser fonte irradiadora
de certezas, a existência do ego e também tudo o que dele se sabe constituem um
conhecimento hipotético dentre outros. Mesmo esta autoconsciência que, de fato, temos
é inferencial. Sei que existo não por ter encontrado, numa entediante tarde de domingo,
o pensamento cujo conteúdo é a afirmação "(eu) existo". Não topei (diretamente) com a
cognição "(eu) existo". Sei que existo, porque encontrei um signo (um sinal, uma
marca) dessa existência na minha própria experiência com fatos externos. Um signo do
qual pude inferir minha existência. Este conhecimento é só mais um ponto de chegada
de algum raciocínio e não um ponto de partida privilegiado, primordial163
. O meu
163
Em contraste com o projeto cartesiano de fundação do conhecimento que apresentamos de forma breve
no terceiro capítulo.
211
conhecimento a respeito de minha própria existência foi resultado de uma inferência
realizada a partir de um signo de minha existência. De acordo com a exposição da
teoria, este signo seria o erro (e a ignorância). Como vimos na Q4, mesmo aquele tipo
de cognição cuja origem julgamos completamente interna, as emoções, não escapa de só
poder ser conhecida a partir de fatos externos, marcas externas.
Sustentar a tese de que só temos acesso aos nossos pensamentos a partir de fatos
externos é o mesmo que afirmar que este acesso só pode ocorrer na dependência de
signos. O signo seria o elemento externo a uma cognição específica a partir do qual se
pode ter acesso a tal cognição. Quando afirmamos que só podemos saber que estamos
em determinado estado emocional a partir de uma de suas marcas distintivas (alguma
consequência observável de tal estado), esta marca age como um signo, porque é ela que
representa para minha mente o estado emocional relativo àquele momento (em que a
notei). É o signo que me dá o acesso a tal estado. Peirce passa a utilizar na Q5 o termo
signo justamente para fazer uma referência geral ao caráter inferencial do conhecimento
que obtemos acerca de nós mesmos e do mundo externo. Porém, se não podemos
conhecer nada diretamente, se apenas conhecemos o "conteúdo" de um pensamento a
partir de algo externo a ele, então todo pensamento deve levar a algum outro
pensamento, sendo que este nos "revela" o conteúdo daquele (ou seja, o último nos
permite saber por inferência o que hipoteticamente há no primeiro). Assim, como o
segundo pensamento também deve levar a um terceiro, não há como evitar a conclusão
de que não pode haver ponto de origem, nem ponto final (embora seja previsto, pela
teoria, um ponto de convergência [nalguns casos em que forem cumpridas certas
condicionantes]). Esta é outra das consequências perturbadoras da teoria peirceana da
cognição que acabam por afastá-la do modo como o senso comum entende o que
significar pensamento. Porém, teremos mais espaço adiante na análise desta Q5 (e
também da última questão) para avaliarmos tais consequências.
Como a quinta questão é o ponto de convergência do QFCM, ela tem uma estrutura
diferente das questões anteriores. Peirce não começa pela definição do conceito-chave
desta questão (que seria o conceito de signo) e nem passou em seguida a argumentar
contra a auto-evidência da capacidade sob questionamento (que seria a de pensar sem
recorrer a signos). Em primeiro lugar, é possível que Peirce não tenha definido o termo
"signo" neste ponto do QFCM ou por ter considerado que o termo seria usado num
sentido comum (e, por isso, não precisaria ser definido) ou por ter considerado que a
concepção de signo já teria sido bem esclarecida num artigo anterior, "sobre uma nova
lista de categorias" (CP 1.545 - 59 [1867]). Em segundo lugar, Peirce não argumentou
contra a auto-evidência da capacidade de se pensar sem signos provavelmente por dois
motivos: pelo fato de todas as linhas argumentativas desenvolvidas até a Q5 nos levar
diretamente para a negação desta capacidade e também, caso desconsiderássemos este
primeiro motivo, por uma questão de redundância, pois a argumentação seguiria as
mesmas linhas daquelas desenvolvidas nas outras questões.
212
Argumento sobre a auto-evidência da capacidade de pensar sem signos
Premissa1: Se fosse auto-evidente que temos a capacidade de pensar sem signos,
então só poderíamos saber intuitivamente que temos tal capacidade.
Premissa2: Se soubéssemos intuitivamente que temos a capacidade de pensar sem
signos, então teríamos a capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de
cognições determinadas (por outras cognições).
Premissa 3 (estabelecida em Q1): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir
uma intuição de cognições determinadas (por outras cognições).
Conclusão: Não é auto-evidente que tenhamos a capacidade de pensar sem signos.
Como não é evidente por si mesmo que tenhamos a capacidade de pensar sem recorrer a
signos, então devemos buscar evidências. A primeira evidência favorável a tal
capacidade é apresentada no primeiro parágrafo da Q5 e é a ideia de que não pode haver
uma cadeia infinita de signos. Algo, que não seja um signo, deve precedê-los. Quando
nos pomos a pensar é evidente que há um primeiro pensamento, pois havia um tempo
no qual não estávamos pensando. A evidência seria o fato de ter que haver um início, ou
seja, haveria, então, um pensamento que não seria antecedido por um signo, pois este
pensamento faria o papel de ponto de partida. Nestas primeiras linhas da Q5, Peirce
traça um paralelo com o paradoxo de Zenão. O fato de, no QFCM, de acordo com esta
evidência, ter que haver um início na série de pensamentos é o equivalente, no paradoxo
de Zenão, a ter que haver a ultrapassagem da tartaruga por Aquiles. Portanto, a pergunta
se Aquiles é capaz de ultrapassar a tartaruga é, para Peirce, equivalente à pergunta se
somos capazes de pensar sem signos.
Esta é uma questão164
familiar, mas não há até hoje argumento melhor para
respondê-la de forma afirmativa do que aquele segundo o qual pensamento
deve preceder qualquer signo. Este argumento assume a impossibilidade de
uma série infinita. Mas Aquiles, de fato, irá ultrapassar a tartaruga. Como isto
ocorre é uma questão que não precisa necessariamente ser, neste momento,
respondida, na medida que isto certamente ocorre.
(CP 5.250 [1868])165
Neste ponto do texto, portanto, Peirce não explica como seria possível haver uma série
infinita de signos. Subentende-se da estratégia evasiva (facilmente) perceptível neste
trecho que se deveria deixar de lado o fato de ter que haver um começo e prestar
atenção às evidências coletadas em todas as questões anteriores, pois o conjunto delas
aponta para uma resposta negativa à Q5, ou seja, as linhas argumentativas que começam
164
Peirce se refere à quinta questão do QFCM. 165
No original: "This is a familiar question, but there is, to this day, no better argument in the affirmative
than that thought must precede every sign. This assumes the impossibility of an infinite series. But
Achilles, as a fact, will overtake the tortoise. How this happens, is a question not necessary to be
answered at present, as long as it certainly does happen".
213
nas demais questões apontam para a tese que nega que tenhamos a capacidade de pensar
sem signos. Note que o fato (de ter que haver um inicio) nos obrigaria a assumir a
proposição que afirma ser impossível haver uma série infinita. É com esta proposição
que se pode construir o argumento que Peirce considerou o melhor para sustentar uma
resposta afirmativa à Q5. Podemos explicitar tal argumento da seguinte forma:
Argumento para sustentar uma resposta afirmativa à Q5:
Premissa1 (implícita): Se houvesse algum signo que não fosse precedido por
pensamento, então este signo seria determinado por uma série infinita de outros
signos.
Premissa2 (implícita): Se tal signo fosse determinado por uma série infinita de
outros signos, então seria possível haver uma série infinita.
Premissa3: é impossível haver uma série infinita.
Conclusão: Todo signo deve ser precedido por pensamento166
.
É notável que, desta vez, e isto é um sinal da adoção de uma estratégia evasiva, Peirce
não desmontou o argumento favorável à existência da capacidade sob investigação
(como fez nas demais questões) antes de seguir para argumentação favorável à
inexistência. Na verdade, como veremos na análise da argumentação geral desta Q5,
Peirce posterga ao máximo o enfrentamento deste espinhoso problema das séries
infinitas por um motivo muito simples: durante a Q5, ele terá que começar a enfrentar
um problema logicamente anterior, a questão do incognoscível. Diz-se logicamente
anterior porque a incognoscibilidade é um problema teórico cuja solução condiciona a
resposta a ser dada à questão das séries infinitas. Além do mais, como também veremos
na análise que se segue, o tratamento dado ao problema do incognoscível durante a
quinta questão foi muito breve (até porque não era este o foco da Q5) e, por este motivo,
tal problema é recolocado no centro da sexta questão do QFCM. Na verdade, a Q6 foi
separada para tratar somente deste ponto. Assim, Peirce deixa para apresentar sua
solução teórica para o problema das séries infinitas e seu caráter (aparentemente)
paradoxal apenas na sétima e última questão do QFCM.
166
Outra versão de argumento pode ser a seguinte:
Argumento para sustentar uma resposta afirmativa à Q5 (segunda versão):
Premissa1 (implícita): ou Todo pensamento é precedido por signos ou Todo signo deve ser precedido por
pensamento.
Premissa2 (implícita): Se todo o pensamento for precedido por signos, então há uma série infinita.
Premissa3: é impossível haver uma série infinita.
Conclusão: Todo signo deve ser precedido por pensamento.
214
Tendo adiado o confronto com o argumento favorável à capacidade de pensar sem
signos, Peirce desenvolve, já no segundo parágrafo da Q5, o argumento que nega tal
capacidade. A negação de que podemos pensar sem signos, como já foi dito, constitui
não apenas o resultado das quatros respostas negativas dadas às questões anteriores, mas
também pode ser considerada a tese central do QFCM.
Se procurarmos à luz de fatos externos, os únicos casos de pensamento que
podemos encontrar são de pensamentos em signos. Simplesmente, não há
outro [tipo de] pensamento que possa ser evidenciado por fatos externos.
Porém, vimos que apenas por fatos externos os pensamentos podem ser, de
alguma forma, conhecíveis. Então, o único [tipo de] pensamento que pode ser
conhecido é o pensamento em signos. Mas, pensamentos que não podem ser
conhecidos não existem. Todo pensamento, portanto, deve necessariamente
ser em signos.
(CP 5.251 [1868])167
Antes de começar a explicitar o argumento deste ponto do texto para que possamos
analisá-lo, devemos, em primeiro lugar, numerar todas as proposições do trecho acima
transcrito, uma vez que isto nos facilitará a análise. Em segundo lugar, tentemos
também encontrar e esclarecer algumas equivalências entre os termos utilizados nestas
proposições, pois são tais equivalências que devem nos permitir reescrever estas
proposições com os mesmos termos (sem lhes alterar o sentido). Comecemos por
numerar as proposições deste trecho.
Proposições do segundo parágrafo texto original (CP 5.251 [1868])
Primeira proposição --> Se procurarmos à luz de fatos externos, os únicos casos
de pensamento que podemos encontrar são de pensamentos em signos.
Segunda proposição --> Não há outro [tipo de] pensamento que possa ser
evidenciado por fatos externos.
Terceira proposição --> Apenas por fatos externos os pensamentos podem ser, de
alguma forma, conhecíveis.
Quarta proposição --> O único [tipo de] pensamento que pode ser conhecido é o
pensamento em signos.
Quinta proposição --> Pensamentos que não podem ser conhecidos não existem.
Sexta proposição --> Todo pensamento deve necessariamente ser em signos.
167
No original: "If we seek the light of external facts, the only cases of thought which we can find are of
thought in signs. Plainly, no other thought can be evidenced by external facts. But we have seen that only
by external facts can thought be known at all. The only thought, then, which can possibly be cognized is
thought in signs. But thought which cannot be cognized does not exist. All thought, therefore, must
necessarily be in signs".
215
Na primeira proposição deste parágrafo Peirce afirma que só podemos encontrar um
tipo de pensamento se nos limitarmos a procurá-los à luz de fatos externos. O tipo de
pensamento que seria encontrado seria o pensamento em signos. Nesta proposição, nada
foi afirmado sobre alguma outra situação em que se poderia procurar sob outras
condições (por exemplo, à luz dos fatos internos). Porém o que se quer dizer com as
expressões "procurar pensamentos" e "encontrar pensamentos"? É provável que Peirce
esteja se referindo, com outros termos, ao que foi estabelecido ao final da Q4: que não
há capacidade de introspecção e a única forma de investigar fatos internos (as chamadas
"questões psicológicas") seria por inferência de fatos externos (cf. CP 5.249 [1868]).
Então, obviamente Peirce se limita a "procurar pensamentos" a partir de fatos externos,
pois o resultado da Q4 nos garante que esta era única maneira encontrá-los. Nesta
primeira proposição, tudo nos leva a crer que Peirce utiliza o verbo "encontrar"
(pensamentos) como sinônimo de "conhecer" ou "ter acesso a" (pensamentos). Esta
equivalência é coerente com as teses que o filósofo vem defendendo desde o início do
QFCM. É de se esperar que, num texto em que se esteja construindo uma teoria
epistemológica, o proponente se utilize de diversos termos que considere (ainda que
implicitamente) sinônimos do termo conhecimento (ou da expressão metafórica que
seria equivalente: "ter acesso").
Recordemos que a partir das teses sustentadas até o Q4, todos os pensamentos
"encontrados" apenas se tornaram conhecidos a partir de algo externo a eles mesmos.
De acordo com tais teses, um pensamento só pode ser conhecido a partir de algo externo
(que não se confunde com ele mesmo). Este fato externo, ao longo da argumentação das
outras questões, era sempre uma marca ou, na terminologia que Peirce passou a utilizar
a partir da Q5, um signo. Por exemplo, ao praguejar contra um objeto no qual
tropeçamos nos tornamos conscientes de que estamos com raiva. Assim, as palavras
proferidas (e também o tom em que elas foram proferidas) contra o objeto constituem
um signo (uma marca) de que estamos com raiva (do objeto). Neste exemplo, é
justamente este elemento externo que nos dá acesso ao nosso estado emocional. Então,
nesta primeira proposição, substituamos as expressões "procurar (pensamentos)" e
"encontrar (pensamentos)" por "conhecer (pensamentos)". Em segundo lugar,
troquemos o termo "caso" por "tipo", pois isto nos facilitará bastante a explicitação
deste argumento. Portanto, a primeira equivalência proposta em nossa análise pode ser
expressa da seguinte forma:
Equivalência n°1 para o argumento para estabelecimento da tese-base da
semiótica peirceana
"se procurarmos à luz de fatos externos, os únicos casos de pensamento que
podemos encontrar são de pensamentos em signos"
é equivalente à
"O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é o pensamento
em signos".
216
Com relação à segunda proposição deste segundo parágrafo da Q5, também temos uma
proposta de equivalência. Neste caso, pretendemos estabelecer que a expressão (na
verdade, o predicado diádico) "______ ser evidenciado por______" pode ser substituída
pela expressão "______ pode ser conhecido a partir de______". Vejamos o porquê. Se
invertermos (para a voz ativa este trecho que está na voz passiva), teremos a seguinte
afirmação: "fatos externos não evidenciam nenhum outro [tipo de] pensamento". Por
sua vez, o verbo "evidenciar" parece ser, neste trecho, sinônimo das expressões "tornar
claro, manifesto ou evidente", o que nos aproxima bastante da ideia de conhecimento.
Tornar algo claro, manifesto ou evidente é torná-lo, de alguma forma, conhecido ou, ao
menos, torná-lo passível de ser conhecido, i.e., torná-lo conhecível ou cognoscível (este
é um termo mais técnico a ser usado, sobretudo, na sexta questão). Note, por exemplo,
que a afirmação "fatos externos não tornam manifesto nenhum outro [tipo de]
pensamento" é equivalente à afirmação "fatos externos não tornam conhecido nenhum
outro [tipo de] pensamento" ou à afirmação "fatos externos não tornam conhecível ou
cognoscível nenhum outro [tipo de] pensamento". Encontrada esta equivalência, o
próximo passo é invertemos novamente esta frase (e recolocá-la na chamada voz
passiva, que é sua "forma" original): "nenhum outro [tipo de] pensamento pode ser
conhecido a partir de fatos externos". Chegamos, assim, à segunda equivalência.
Equivalência n°2 para o argumento para estabelecimento da tese-base da
semiótica peirceana
"não há outro [tipo de] pensamento que possa ser evidenciado por fatos externos"
é equivalente à
"nenhum outro [tipo de] pensamento pode ser conhecido a partir de fatos
externos".
Uma última observação acerca de equivalências deve ser feita. Durante toda a análise
desta Q5 bem como da Q6, utilizaremos o termo "cognoscível" como sinônimo do
adjetivo "conhecível" ou da expressão "que pode ser (de alguma forma) conhecido".
Apresentadas tais equivalências, antes de partirmos para a explicitação do argumento
propriamente dito, lancemos mão de apenas mais um artifício que deve nos facilitar a
exposição: uma suposição. Como a meta de Peirce neste trecho é estabelecer que "todo
pensamento é pensamento em signos", suponhamos, desde já, que existem apenas dois
tipos de pensamento (no que diz respeito à sua relação com signos): há o tipo I
denominemo-lo de pensamento sem signos e há o tipo II denominemo-lo de
pensamento em signos. De acordo com o primeiro deles, o homem seria capaz de pensar
sem recorrer a signos, i.e., ele seria capaz de ter acesso a um pensamento ou cognição
sem utilizar qualquer elemento que fosse externo a este pensamento ou cognição; este
217
acesso se daria por uma mera contemplação imediata de tal pensamento ou cognição.
De acordo com o segundo desses tipos, o acesso a um pensamento ou cognição se daria
a partir de algum elemento (alguma marca ou sinal) externo a este pensamento ou
cognição; este acesso não seria, portanto, direto, pois seria mediado por este elemento
externo.
Com esta suposição e com aquelas equivalências já estabelecidas, já podemos
apresentar as duas primeiras proposições deste parágrafo como as duas primeiras
premissas do argumento que pretendemos analisar.
Primeiro trecho do argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica
peirceana
[Suponha que existam dois tipos de pensamento: o pensamento sem signos
(tipo I) e o pensamento em signos (tipo II)]
Premissa1: O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é o
pensamento do tipo II (i.e., o pensamento em signos).
Premissa2: Nenhum outro tipo de pensamento pode ser conhecido a partir de fatos
externos.
Conclusão (intermediária): Pensamentos do tipo I não podem ser conhecidos a
partir de fatos externos.
Notemos que, dessas duas proposições não há muito para concluir. Elas nada dizem a
respeito dos pensamentos de tipo I (i.e. pensamentos sem signos), exceto que não
podem ser conhecidos a partir de fatos externos (o que de certa forma já está
evidenciado na premissa2). Na verdade, estas premissas nada dizem a respeito da
possibilidade de haver (ou se encontrar) algum caso de pensamento que pertença ao tipo
I e que fosse conhecível por fatos internos (e não por fatos externos). Apenas com estas
premissas (as duas primeiras proposições), fica aberta a possibilidade de haver então
algum pensamento que não recorra a signos (por isso, pertenceria ao tipo I) e que só
fosse acessível a partir de fatos internos. É justamente desta possibilidade que Peirce vai
passar tratar em seguida. O próximo passo em sua argumentação é justamente "fechar
estar porta". A terceira proposição deste parágrafo da Q5 nega que haja tal possibilidade
(com base na argumentação desenvolvida no Q4). Então, depois de negada a
possibilidade de se conhecer qualquer pensamento a partir de fatos internos, Peirce parte
para concluir que "o único pensamento que poderia ser conhecível seria o pensamento
em signos". Esta é a quarta proposição no texto original. Entretanto, não é difícil notar
que Peirce deixou nas entrelinhas alguns passos lógicos desse argumento. Devemos
explicitá-lo, pois é exatamente neste trecho que surge, pela primeira vez no QFCM, a
questão do incognoscível.
218
Repassemos os primeiros passos. Apenas com as duas primeiras premissas sabemos que
a partir de fatos externos só são conhecíveis pensamentos do tipo II e de nenhum outro
tipo pode ser assim conhecido. Então, comecemos a imaginar um cenário em que
houvesse algum pensamento do tipo I. Este pensamento obviamente não seria
conhecível a partir de fatos externos, pois, se o fosse, ele deveria, graças à premissa2,
pertencer ao tipo II (e não ao tipo I como supomos). Então, se houver algum
pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem signos), este pensamento do tipo I não
seria conhecível a partir de fatos externos. Esta é nossa terceira premissa.
Premissa3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem
signos), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos
externos.
Enfatizemos que esta proposição (que constitui a terceira premissa) não está no texto
peirceano. Ela é produto de uma explicitação que propomos do argumento do autor.
Vejamos, então, o próximo ponto. Se, neste cenário possível, há um pensamento
pertencente ao tipo I e tal pensamento não pode ser conhecível a partir de fatos externos,
então só nos resta considerar duas possibilidades: ou este pensamento do tipo I (que
supomos existir) pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento do
tipo I (que supomos existir) não é conhecível de forma alguma. Não há um terceiro
caminho, uma vez que este (hipotético) pensamento do tipo I não pode ser conhecível a
partir de fatos externos (pois, se fosse, pertenceria ao tipo II). Esta bifurcação está
representada na quarta premissa.
Premissa4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de fatos
externos, então só nos restam duas possibilidades: ou este pensamento do tipo I
pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento do tipo I não é
conhecível de forma alguma.
É de fundamental importância compreender por qual motivo ocorre esta bifurcação (ou
disjunção) neste condicional. Toda argumentação que Peirce desenvolveu nas quatro
questões anteriores estava direcionada ao pensamento que, de alguma forma, poderia ser
conhecido. Desde a Q1, Peirce aparentemente vem tratando de cognições (ou
pensamentos) em geral. Em cada uma das questões subsequentes, Peirce se perguntava
se um pensamento específico (ou um tipo de pensamento) exigiria certa capacidade
ligada à noção de intuição ou poderia ser explicado apenas a partir de faculdades cuja
existência não se duvida que o homem possua (como a capacidade de fazer inferências a
partir de elementos exteriores ao pensamento [ou tipo de pensamento] sob
investigação). A estratégia peirceana foi concentrar sua força no ataque à suposta
capacidade intuitiva de distinguir intuições de cognições derivadas (o que foi executado
na Q1) e também foi criar, por todo QFCM, linhas de defesa cuja finalidade era
219
sustentar a hipótese geral de que as explicações que recorriam à inferência estavam
sempre em melhores condições (para cumprir seus propósitos teóricos) do que as
explicações que recorriam à intuição. A hipótese geral de que a inferência é sempre uma
explicação melhor estava apoiada no ataque inicial (realizado durante a Q1) à suposta
capacidade intuitiva de distinguir intuições que teria demonstrado haver uma fraqueza
"congênita"168
em todas explicações que recorrem à intuição.
Para combater a intuição e, sobretudo, a certeza e infalibilidade que a ela estão
associadas, Peirce optou por sustentar a tese que todo pensamento só é conhecido
inferencialmente a partir de algo diferente dele (uma marca, um sinal, em resumo, um
signo). Note que tal tese só faz referência a pensamentos que possam ser conhecidos.
Talvez este ponto fique mais claro se colocarmos esta tese da seguinte forma: Se "p" é
um pensamento conhecível, então "p" é conhecível apenas em virtude de uma inferência
(nunca de forma direta). Se prestarmos atenção no antecedente desta tese (apresentada
na forma de condicional), notaremos que tal afirmação trata apenas do conjunto dos
pensamentos conhecíveis. Nada foi afirmado (nem negado) com relação aos elementos
que estão fora deste conjunto, i.e., aos pensamentos não-conhecíveis. Todas as linhas
argumentativas peirceanas convergiram para sustentar uma tese que versa "somente"
sobre elementos pertencentes a um domínio: o conjunto de todos os pensamentos que
podem ser conhecidos ("acessados" ou "encontrados"). Por este exato motivo, no início
(deste parágrafo) da Q5, as únicas proposições que Peirce tem estabelecidas são
relativas a tal domínio169
.
Este ponto é crucial para todo o QFCM. Não fosse esta bifurcação, o argumento
peirceano rumo à tese de que "todo pensamento é pensamento em signos" poderia ser
desenvolvido sem muitos problemas, de forma mais direta.
168
Referimo-nos à falácia denominada petitio principii da qual tratamos nas análises da Q1. 169
Nestas análises nos comprometemos a revelar a estrutura do argumento geral construído por Peirce no
QFCM. Temos tentado só utilizar nestas análises recursos fornecidos internamente no texto estudado.
Bem à moda estruturalista. Porém, como estamos acomodados numa nota-de-roda-pé, nada nos impede
de fazer uma observação realizada a partir de um ponto externo ao texto em questão. Para "quem olha de
fora", não é difícil saber por qual motivo Peirce, no QFCM, somente trata daquelas cognições ou
pensamento que sejam conhecíveis. Conforme visto nos capítulos que dedicamos a um panorama
histórico, o motivo pelo qual Peirce entrou numa luta contra as epistemologias que recorriam ao conceito
da intuição foi justamente a percepção de que seu próprio projeto epistemológico dependia da negação do
incognoscível. Admitida a existência de qualquer incognoscibilidade, deixaria de funcionar a sua teoria
social da lógica e os raciocínios ampliativos não poderiam ter validade. Ainda que fiquemos uma centena
de páginas examinando minuciosamente os detalhes dos principais pormenores de cada linha do texto
peirceano, é necessário que tenhamos a visão de conjunto do projeto do filósofo. Isto explica o fato de
termos dedicados os três primeiros capítulos desta tese à tarefa de oferecer uma visão geral deste período
inicial do pensamento peirceano. Aqueles três capítulos panorâmicos servem para compensar a tendência
estruturalista dos capítulos de análise.
220
Argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica peirceana
desconsiderando a questão do incognoscível
Premissa_A1: O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é
o pensamento do tipo II (i.e., o pensamento em signos).
Premissa_A2: Nenhum outro tipo de pensamento pode ser conhecido a partir de
fatos externos.
Premissa_A3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem
signos), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos
externos.
Premissa_A4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de
fatos externos, então este pensamento do tipo I pode ser conhecível a partir de
fatos internos.
Premissa_A5: Se este pensamento do tipo I pudesse ser conhecível a partir de
fatos internos, então deveria, neste caso, ser possível conhecer pensamentos a
partir de fatos internos.
Premissa_A6: É impossível conhecer pensamentos a partir de fatos internos.
Conclusão_A: Não há pensamento que pertença ao tipo I (i.e., o pensamento sem
signos).
Estabelecida esta conclusão, chega-se imediatamente à tese: "todo pensamento é
pensamento em signos". Entretanto, não é isso que ocorre no QFCM. Devido às
afirmações sustentadas por argumentos já desenvolvidos, Peirce deve levar em conta
aquela alternativa na premissa4. A partir do momento que se supõe existir algum
pensamento do tipo I (i.e., pensamento sem signos), abrem-se dois caminhos: ou este
pensamento do tipo I pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento
do tipo I não é conhecível de forma alguma. Vejamos que se tomarmos o primeiro
caminho, então acabaríamos entrando em contradição com aquela proposição que
afirma que "só podemos conhecer os pensamentos a partir de fatos externos" (obtida na
Q4). Esta é a terceira proposição (deste segundo parágrafo) no texto original. No
argumento que estamos explicitando nesta análise, esta proposição aparece como a
premissa6. Como este primeiro caminho resulta numa contradição, para continuar
supondo que haja algum pensamento do tipo I, só nos resta o segundo caminho (que
afirma que tal pensamento não seria conhecível de forma alguma). Assim, de todas estas
premissas, podemos concluir que a única possibilidade de haver algum pensamento do
tipo I é se ele fosse um pensamento que não poderia ser conhecido de forma alguma (ou
seja, uma pensamento que não seria conhecível a partir de fatos internos, nem externos).
Isto pode ser colocado da seguinte forma: "ou não há pensamento que pertença ao tipo I
(i.e., o pensamento sem signos) ou (se houver), este pensamento do tipo I não pode ser
221
conhecido de forma alguma". Desse modo, fechamos (apenas) o segundo trecho do
argumento desenvolvido neste segundo parágrafo.
Segundo trecho do argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica
peirceana
Premissa3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem
signos), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos
externos.
Premissa4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de fatos
externos, então só nos restam duas possibilidades: ou este pensamento do tipo I
pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento do tipo I não é
conhecível de forma alguma.
Premissa5: Se este pensamento do tipo I pudesse ser conhecível a partir de fatos
internos, então deveria, neste caso, ser possível conhecer pensamentos a partir de
fatos internos.
Premissa6 (estabelecida na Q4): É impossível conhecer pensamentos a partir de
fatos internos.
Conclusão (intermediária): Logo, ou não há pensamento que pertença ao tipo I
(i.e., o pensamento sem signos) ou (se houver), este pensamento do tipo I não
pode ser conhecido de forma alguma.
Com esta conclusão, ainda não podemos chegar à meta, que é a seguinte tese: "todos os
pensamentos são pensamentos em signos". Para alcançá-la seria necessário que se
concluísse, neste argumento que ora analisamos, que "não há nenhum pensamento que
pertença ao tipo I", proposição que é obviamente equivalente à afirmação de que "todos
os pensamentos pertencem ao tipo II". Porém, o ponto de chegada deste segundo trecho
(o que chamamos de conclusão intermediária) não afirma que não há pensamentos de
tipo I. O que temos nesta conclusão é mais uma vez uma disjunção. Diante de uma
disjunção "A ou B", se quisermos obter a afirmação de uma das partes (de um dos
disjunctos), devemos conseguir a negação da outra parte. É justamente o que ocorre.
Neste ponto da argumentação, Peirce introduz a seguinte proposição que acaba por fazer
este papel: "pensamentos que não podem ser conhecidos não existem" ou, afirmada de
outra forma, "todos os pensamentos são cognoscíveis". Esta é a quinta proposição no
texto original e a premissa8 em nossa explicitação da argumentação peirceana. No
terceiro trecho deste argumento (apresentado a seguir), acrescentamos uma proposição
(condicional) denominada de "premissa7" para fazer uma espécie de ligação entre o que
foi afirmado na proposição final do segundo trecho (o que foi chamado de conclusão
intermediária) e a premissa8.
222
Terceiro trecho do argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica
peirceana
Conclusão do segundo trecho: Ou não há pensamento que pertença ao tipo I
(i.e., o pensamento sem signos) ou (se houver), este pensamento do tipo I
não pode ser conhecido de forma alguma.
Premissa7: Se este pensamento de tipo I não pode ser conhecido de forma algum,
então existe (ao menos um) pensamento que não pode ser conhecido.
Premissa8: Não existem pensamentos que não possam ser conhecidos.
Conclusão: Não há pensamento que pertença ao tipo I (i.e., o pensamento sem
signos).
Antes de voltarmos nossa atenção para a conclusão que segue de todos os trechos deste
argumento, façamos mais algumas observações sobre esta importante proposição que
foi denominada de premissa8. Além de ter sido indispensável neste argumento que
estabeleceu dentro do QFCM a tese de que "todo o pensamento é pensamento em
signos", esta proposição será requerida novamente nas argumentações desenvolvidas na
Q6 e, depois, na Q7. Neste trecho, Peirce não sustenta esta premissa8 em nenhuma
argumentação anterior. A explicação mais plausível seria a de que a proposição seria
garantida pela própria definição de pensamento (ou cognição) e, por isso, não poderia
haver algum pensamento que não pudesse ser conhecido. Não poderia haver uma
cognição incognoscível. Embora, no texto, não haja nenhum esclarecimento sobre o
ponto de sustentação desta proposição, o mais comum, entre os comentadores da obra
peirceana, é aceitar estar explicação (bem plausível, aliás) apresentada acima. Por
exemplo, em sua análise destas passagens do QFCM, De Waal sustenta de forma bem
direta a tese que Peirce efetivamente considera a "cognoscibilidade" ou a possibilidade
de ser conhecido como parte essencial da ideia de cognição. De acordo com De Waal, o
posicionamento peirceano no QFCM é que "pertence à essência do pensamento a
possibilidade de ser conhecido (pensamentos incognoscíveis são uma contradição em
termos)" (De Waal, 2007, p. 29).
A partir do conjunto das premissas apresentadas nesta análise (ainda que nem todas
estejam explícitas no argumento do texto original), já é possível concluir que "todo o
pensamento é pensamento em signos" (sexta proposição na exposição original). A
seguir reapresentamos todas estas premissas seguida desta conclusão. Colocadas ao
final de cada proposição, as letras (bem como o sinal de negação nalguns casos) servem
para nos ajudar a identificar esta proposição na versão formalizada deste argumento
(que é apresentada logo em seguida).
223
Argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica peirceana
Premissa1: O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é o
pensamento do tipo II (i.e., o pensamento em signos) (P).
Premissa2: Nenhum outro tipo de pensamento pode ser conhecido a partir de fatos
externos (R).
Premissa3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem signos)
(Q), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos
externos (~S).
Premissa4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de fatos
externos (~S), então só nos restam duas possibilidades: ou este pensamento do
tipo I pode ser conhecível a partir de fatos internos (T) ou este pensamento do
tipo I não é conhecível de forma alguma (U).
Premissa5: Se este pensamento do tipo I pudesse ser conhecível a partir de fatos
internos (T), então deveria, neste caso, ser possível conhecer pensamentos a
partir de fatos internos (V).
Premissa6 (estabelecida na Q4): É impossível conhecer pensamentos a partir de
fatos internos (~V).
Premissa7: Se este pensamento de tipo I não pode ser conhecido de forma algum
(U), então existe (ao menos um) pensamento que não pode ser conhecido (W).
Premissa8: Não existem pensamentos que não possam ser conhecidos (~W).
Conclusão: Não há pensamento que pertença ao tipo I (i.e., o pensamento sem
signos) (~Q).
Esta tese é a resposta (novamente negativa) à quinta questão. A incapacidade referida
nesta tese é o resultado direto das incapacidades às quais Peirce chegou em cada uma
das questões anteriores, sobretudo, a quarta delas. Em nossa explicitação do argumento
peirceano neste segundo parágrafo, optamos por utilizar um tipo de raciocínio
conhecido pelo nome de "redução ao absurdo". Como o alvo de Peirce neste trecho era
atingir a tese que afirma "não haver capacidade de se pensar sem signos", optamos por
começar o raciocínio pela suposição da tese contrária: de que "há, ao menos, um
pensamento que possa ser pensado na ausência de signos", o que é o mesmo que supor
que "temos a capacidade de pensar sem signos". A partir das premissas fornecidas e de
tal suposição, foi derivada uma contradição. E a partir desta contradição se conclui a
negação do que foi suposto. No seguinte esquema (obtido a partir da formalização do
argumento), fica mais fácil de "enxergar" estes movimentos:
224
1. P Pr.
2. R Pr.
3. Q --> ~S Pr.
4. ~S --> T v U Pr.
5. T --> V Pr.
6. ~V Pr.
7. U --> W Pr.
8. ~W Pr.
9. | Q H
10. | ~S MP 3,9
11. | T v U MP 4,10
12. | ~T MP 5,6
13. | U SD 11,12
14. | W MP 7,13
15. | W ^ ~W Ad. 8,14
16. ~Q ctr. 15
Repare que na linha nove introduzimos como uma hipótese a afirmação de que
"temos a capacidade de pensar sem signos". Então, partindo desta suposição (e lançando
mão das oito premissas apresentadas anteriormente), chegamos a uma contradição, que,
na formalização, aparece no décimo quinto passo. A contradição é que, raciocinando a
partir da hipótese (de que é possível se pensar sem signos), chegamos à afirmação de
que "existem pensamentos que não possam ser conhecidos". Entretanto, de acordo com
a oitava premissa, "não existem pensamentos que não possam ser conhecidos". Por este
motivo, na linha seguinte à descoberta de tal contradição, concluímos que aquilo que era
afirmado na suposição não podia ser verdadeiro. Logo, o resultado é que "não somos
capazes de pensar sem signos". Como o argumento que sustenta a resposta à quinta
questão é apresentado (ainda que de forma bastante tácita) já no segundo parágrafo, os
demais parágrafos da Q5 são dedicados a alguns esclarecimentos (mas, não muitos)
acerca da tese bem como algumas de suas principais consequências.
225
7.2 Análise (da segunda parte) da Q5: sobre a capacidade de
pensar sem signos
A argumentação de Peirce em toda a Q5 é fragmentária e cheia de saltos. Ao que tudo
indica, no terceiro parágrafo (CP 5.252 [1868]), ele continua, de alguma forma, lidando
com a proposição de que "não existem pensamentos que não possam ser conhecidos".
Neste terceiro parágrafo da Q5, Peirce parece tentar esclarecer que esta proposição se
refere basicamente a uma potencialidade e não a uma atualidade. Ao negar que não há
pensamentos que não possam ser conhecidos não se está afirmando que todos os
pensamentos sejam atualmente ou factualmente conhecidos, mas apenas que todos são,
em princípio, conhecíveis. O termo utilizado ao final deste terceiro parágrafo (CP 5.252
[1868]) é (pensamentos) "distinguíveis". Assim, Peirce passa a tratar de um caso em que
haveria um pensamento não-conhecido ou, ao menos, um "pensamento que não teria
sido efetivamente conhecido". No exemplo fornecido, Peirce supõe uma situação na
qual um certo indivíduo, ao raciocinar (sobre a falibilidade de Aristóteles), diz para si
mesmo as seguintes palavras: "Aristóteles é homem, portanto, ele é falível". Note que,
se formos levar em conta apenas o que o indivíduo teria efetivamente dito para si
mesmo, o seu argumento teria apenas uma premissa com uma passagem direta à
conclusão.
Argumento sobre exemplo fornecido no terceiro parágrafo da Q5 (CP 5.252 [1868])
Premissa: Aristóteles é homem
Conclusão: Aristóteles é falível.
Diante do cenário criado pelo exemplo, Peirce se pergunta se este indivíduo não teria
pensado naquilo que não teria dito para si mesmo, a saber, que "todo homem é falível".
Afinal, esta seria a premissa implícita neste argumento. A resposta de Peirce é que o
indivíduo pensou nisto na medida em que isto é dito em seu portanto. Vejamos o trecho
inteiro em que Peirce trata deste ponto:
Um homem diz para si mesmo, "Aristóteles é um homem; portanto, ele é
falível". Então, ele não pensou no que não disse para si mesmo, que todo
homem é falível? A resposta é que ele o fez na medida em que isso é dito em
seu portanto. Assim, nossa questão não é relativa a fato, mas é uma mera
pergunta pela distinguibilidade de pensamento.
(CP 5.252 [1868])170
170
No original: "A man says to himself, "Aristotle is a man; therefore, he is fallible." Has he not, then,
thought what he has not said to himself, that all men are fallible? The answer is, that he has done so, so
226
Pela última afirmação do trecho acima transcrito, notamos que Peirce tenta operar uma
clivagem. A nossa leitura é que, justamente neste trecho, começa a ganhar contornos o
posicionamento antipsicologista de Peirce. O uso do termo "distinguibilidade" pode ser
entendido como um sinal de que Peirce pretende construir sua teoria da cognição com
base em critério lógicos e não psicológicos, atitude que acabaria, então, por colocá-lo
dentro do antipsicologismo dominante na lógica no final do século XIX. Infelizmente,
no QFCM, este ponto permaneceu implícito, uma vez que Peirce não voltou, neste
artigo, ao termo "distinguibilidade" para prestar maiores esclarecimentos. Assim, de
acordo com esta leitura do termo "distinguibilidade", para teoria da cognição que Peirce
expõe no QFCM, não seria relevante que, diante de uma cognição específica, o
indivíduo tenha que ter consciência de quais são exatamente as outras cognições que a
determinam. Saber se podemos ter ou se temos que ter consciência de todas as
cognições anteriores que determinam uma cognição específica é obviamente um
problema da alçada da psicologia, o que a torna uma questão que não importa
diretamente à argumentação do QFCM (de acordo com esta interpretação que ora
propomos). O que é relevante, aliás, decisivo, para a teoria exposta é apenas a
possibilidade de tais cognições anteriores serem distinguidas. Outra forma de colocar
este ponto é afirmar que toda cognição tem que ter uma "origem" distinguível, ou seja,
sempre tem que ser possível distinguir uma outra cognição a partir da qual chegamos a
cognição cuja "origem" está sob investigação. Dada uma cognição x deve sempre ser
possível distinguir (ao menos) uma outra cognição (anterior) y que é aquela cognição a
partir da qual se chegou à cognição x.
No exemplo fornecido, não é relevante o fato de o indivíduo ter dito ou não para si
mesmo o pensamento "todo homem é falível". O relevante é que, de acordo com a
teoria, este pensamento determina o pensamento "Aristóteles é falível". A determinação
consiste na ideia que este último pensamento depende logicamente daquele anterior. A
mente do indivíduo do exemplo recorre àquela cognição para chegar até esta última
(que é a conclusão do raciocínio). Esta recorrência e dependência são de ordem lógica.
Parece-nos claro que a preocupação de Peirce é de ordem estritamente lógica e não
psicológica. Tentemos esclarecer este ponto criando um exemplo dentro do exemplo
fornecido por Peirce neste terceiro parágrafo da Q5.
Suponha que a consciência desse indivíduo do exemplo original fosse, "de repente,
assaltada" pela "inesperada" ideia de que "Aristóteles é falível" logo depois de ter tido a
ideia que "Aristóteles é homem". Imagine também que fôssemos um funcionário da
mente cuja função fosse solicitar as credenciais e investigar a procedência de
pensamentos. Então, suponha que nos fosse pedido para justificar por qual motivo
aquela mente foi levada a pensar que Aristóteles seria falível. Ao começarmos a
investigação, a primeira pista que possivelmente descobríamos seria o fato de que o
pensamento sob investigação ("Aristóteles é falível") e o pensamento que ele substituiu
("Aristóteles é homem") têm o mesmo objeto, ambos tratam da mesma referência.
far as this is said in his therefore. According to this, our question does not relate to fact, but is a mere
asking for distinctness of thought".
227
Porém, isto não seria suficiente para que as origens do pensamento investigado fossem
reveladas. Não seria suficiente porque depois de ter pensado que Aristóteles era homem,
aquela mente poderia ter tido outro pensamento qualquer sobre Aristóteles. O que nos
foi pedido para investigar foi justamente por que aquela mente teve o pensamento de
que Aristóteles seria falível logo depois de ter tido o pensamento de que este mesmo
sujeito seria homem. Portanto, não bastaria afirmar que a mente teve este pensamento
naquele segundo momento porque o pensamento anterior, num primeiro momento, tinha
sido também a respeito de Aristóteles. Se apresentássemos esta "justificativa" só ficaria
provada a nossa incompetência como investigadores.
O segundo passo seria descobrir uma ligação entre os dois pensamentos que torne
necessária a passagem de um para o outro. Na verdade, que torne necessária a
ocorrência do pensamento investigado naquele momento em que ele veio à mente. A
pergunta que nossa averiguação quer responder é a seguinte: quais as circunstâncias que
explicariam a ocorrência do pensamento "Aristóteles é falível" naquele exato momento?
Se a presença do pensamento anterior ("Aristóteles é homem") no momento anterior não
é suficiente para explicar a ocorrência, então "alguém" mais deve estar envolvido. Se
nos perguntássemos qual pensamento seria corresponsável por tal ocorrência, parece
que não haveria uma lista muito grande de suspeitos para investigar, pois, com alguma
argúcia, não demoraria para notarmos que efetivamente há um terceiro pensamento que
seria capaz de agir, ainda que de forma oculta, como ponte entre o pensamento
"Aristóteles é homem" e o pensamento "Aristóteles é falível". Este terceiro pensamento
seria aquele que afirma "todo homem é falível". Vejamos por que ele seria a peça que
faltava para darmos o caso como encerrado.
Na presença do pensamento anterior ("Aristóteles é homem"), a afirmação de que todo
homem é falível age como uma regra que "obriga" a mente a substituir o pensamento
anterior pelo pensamento "Aristóteles é falível". Esta regra opera de forma muito
simples. O pensamento "todo homem é falível" garante à mente que aquele indivíduo
(Aristóteles) que ela sabe ser homem (pelo pensamento "Aristóteles é homem") é um
dos indivíduos aos quais o pensamento "todo homem é falível" se refere. Por este
motivo, tal mente deve pensar que este mesmo indivíduo (Aristóteles) é falível. A
operação que resulta na ocorrência investigada pode ser explicada a partir de uma
metáfora visual. Se colocarmos lado a lado os outros dois pensamentos responsáveis
pela ocorrência do pensamento "Aristóteles é falível", é fácil notar que o pensamento
"Aristóteles é homem" acaba onde o pensamento "todo homem é falível" começa.
Quando tivéssemos encontrado este pensamento implícito (que, de acordo com
explicação dada no texto, teria sido pensado e dito através do termo "portanto"), então já
poderíamos considerar o caso encerrado, pois a ocorrência do pensamento investigado
("Aristóteles é falível") em um dado momento seria suficientemente explicada pela
presença, no momento anterior, do pensamento "Aristóteles é homem" e pela "presença
oculta" do pensamento "todo homem é falível" (uma espécie de "mentor intelectual"
daquela ocorrência). Dadas estas condições, o único pensamento que aquela mente
228
poderia ter tido naquele segundo momento seria aquele que ela efetivamente teve:
"Aristóteles é falível"171
.
A conclusão desta análise sustenta a seguinte interpretação: a teoria da cognição exposta
no QFCM não diz respeito a processos psicológicos de pensamento, ainda que Peirce se
utilize de exemplos e contra-exemplos obtidos a partir de dados empíricos que foram
retirados de psicologia experimental ou do que chamou de "fisio-psicologia" (CP 5.223
[1868]). As preocupações da teoria da cognição peirceana são de ordem lógica. Se as
teses peirceanas forem lidas à luz de um posicionamento psicologista, seria inescapável
que sua teoria da cognição terminasse num paradoxo. Vejamos este ponto com algum
detalhamento.
A tese peirceana que todo pensamento é pensamento em signos afirma, como vimos,
que só podemos ter acesso a uma cognição ao recorrer a elementos exteriores à própria
cognição. Ainda que possamos estar conscientes de uma cognição que esteja diante da
mente no instante presente, só podemos ter acesso ao "conteúdo" (ou significado) desta
cognição a partir de um elemento exterior (a ela). Recorrer a elementos exteriores a uma
cognição específica é, por exemplo, encontrar um sinal ou uma marca a partir do qual
tivemos acesso a tal cognição. Este sinal ou marca é justamente o signo que nos "leva"
até aquela cognição específica. Portanto, o signo é simplesmente uma cognição
(anterior) que determina uma cognição específica172
, é simplesmente um pensamento
que nos leva a outro pensamento.
A tese-base estabelece que, dado um pensamento qualquer, deve ter havido um outro
pensamento anterior que seria o signo a partir do qual chegamos àquele pensamento
(dado). Porém, a teoria não lida com questões factuais. Não é afirmado que, num
processo empírico de pensamento tomando lugar dentro dos limites da cabeça de uma
pessoa, para ter um pensamento específico x, esta pessoa teria que ter pensado
anteriormente numa série infinita de outros pensamentos que a teriam levado até o
pensamento x. Se fosse este o caso, obviamente teríamos que admitir que, na verdade,
aquela pessoa nunca chegaria efetivamente a pensar x e, assim, a teoria peirceana
apresentada no QFCM conteria uma contradição, uma inconsistência. Este problema é o
mesmo por trás do paradoxo de Aquiles e a tartaruga com o qual Peirce iniciou a Q5. Da
mesma forma que Aquiles, para alcançar a tartaruga, precisa de percorrer metade do
caminho que o separa dela e, antes disso, seria preciso percorrer metade da metade deste
caminho e, antes ainda, metade da metade da metade, etc.; no caso de uma cognição ou
pensamento qualquer, seria sempre possível encontrar ou distinguir uma cognição
prévia que determinaria aquela cognição e, novamente, seria sempre possível encontrar
ou distinguir uma cognição prévia que determinaria esta última cognição e assim por
diante. Para Murphey (1993 [1961], p. 121), este é um problema não-resolvido no
171
Note que a conclusão é uma interpretação das premissas ou, ao menos, do conjunto das premissas. Por
este motivo, pode-se afirmar que, num raciocínio, as premissas dirigem a mente para uma conclusão. 172
Esta cognição específica será chamada de interpretante da cognição anterior (que, nesse caso, está no
papel de signo embora possa ter sido, por sua vez, interpretante de uma cognição que deve ter vindo antes
dela e que a determina). O termo técnico interpretante ainda será introduzido.
229
QFCM, pois Peirce deixa indefinida relação entre os conceitos de continuidade e
descontinuidade. De acordo co Ransdell (1966, p. 42) a chave para dissolver o paradoxo
seria fazer uma distinção entre um ponto de vista psicológico (a partir do qual o
pensamento seria entendido como um processo contínuo) e um ponto de vista lógico (a
partir do qual o pensamento seria entendido como um processo que pode ser "quebrado"
em unidades discretas de premissas e conclusões). Esta (provável) solução entrevista
por Ransdell está apenas implícita no QFCM e, no caso deste trecho específico, está
baseada em certa interpretação do termo "distinguibilidade" (muito próxima da que
apresentamos). Não vamos entrar em tal discussão neste ponto de nossas análises.
Deixaremos para analisar esta relevante consequência da teoria de cognição peirceana
no espaço dedicado à última questão do QFCM, uma vez que, no texto original, Peirce
também deixou para última parte o enfrentamento deste problema. Voltemo-nos para o
último trecho da Q5.
No último parágrafo da Q5 Peirce apresenta algumas proposições equivalentes à tese de
que "todo pensamento é pensamento em signos" e deriva algumas consequências. Este
parágrafo é provavelmente o trecho mais conhecido de todo o QFCM e talvez da série
cognitiva e este ponto é também, dentro do texto, uma espécie de mirante de onde pode
se contemplar o cenário peculiar da teoria da cognição peirceana. Este cenário é peculiar
por conta da noção de fluxo. Vejamos.
Da proposição que todo pensamento é um signo segue que todo pensamento
deve se dirigir a outro pensamento, deve determinar outro pensamento, uma
vez que esta é a essência de um signo. Esta é, afinal, outra forma do axioma
familiar de que, na intuição, i.e., no presente imediato, não há pensamento ou
de que tudo sobre o que é refletido tem passado. Hinc loquor inde est173
. Do
fato que, dado qualquer pensamento, deve ter havido um pensamento [anterior]
tem seu análogo no fato que, dado qualquer tempo passado, deve ter havido
uma infinita série de tempos. Dizer, então, que o pensamento não pode ocorrer
num instante, mas requer tempo, é outra maneira de dizer que todo pensamento
deve ser interpretado em outro ou que todo o pensamento se dá em signos.
(CP 5.253 [1868])174
Após uma centena de páginas de análises, chegamos diante de um ponto do texto
QFCM no qual é possível enxergar com nitidez a noção de fluxo que é tão peculiar à
semiótica peirceana. Em algumas oportunidades anteriores já havíamos ressaltado o
que pode ser considerado uma das principais consequências das teses defendidas dentro
173
A tradução literal da expressão latina "hinc loquor inde est" é a ideia de "lugar ou momento a partir do
qual se fala" ou a ideia de que "no presente imediato (ou no exato momento em que se fala), as palavras já
foram (i.e., já passaram). Recentemente, Winfried Nöth e Gesche Linde publicaram um artigo totalmente
dedicado ao uso que Peirce faz desta expressão latina bem como a origem desta referência (cf. Nöth e
Linde, 2014). 174
No original: From the proposition that every thought is a sign, it follows that every thought must
address itself to some other, must determine some other, since that is the essence of a sign. This, after all,
is but another form of the familiar axiom, that in intuition, i.e., in the immediate present, there is no
thought, or, that all which is reflected upon has past. Hinc loquor inde est. That, since any thought, there
must have been a thought, has its analogue in the fact that, since any past time, there must have been an
infinite series of times. To say, therefore, that thought cannot happen in an instant, but requires a time, is
but another way of saying that every thought must be interpreted in another, or that all thought is in signs.
230
da teoria da cognição peirceana: na impossibilidade de ser imediato, o acesso a uma
cognição requer obviamente tempo. Entretanto, apenas depois do estabelecimento (do
que chamamos de) tese-base, pode-se notar com clareza que a passagem de tempo está
implicada no próprio entendimento do que é pensamento de acordo com esta teoria da
cognição apresentada no QFCM. O argumento é bem simples.
Argumento sobre a noção de fluxo
Premissa: Todo pensamento é signo.
Premissa: Todo signo deve se dirigir a outro signo.
Conclusão: Todo pensamento deve se dirigir a outro pensamento.
Neste parágrafo, podemos notar que há uma analogia fundamental entre o processo de
inferência e o pensamento que atravessa todo o QFCM. A semiótica peirceana nasce no
bojo desta analogia. O ápice do QFCM é este equacionamento entre os termos
"pensamento" e "signo"175
. Existem vários modos para se apresentar esta equação. De
forma um tanto vaga, mas seguindo um certo teor pragmático, podemos afirmar que esta
equação parte da observação que os pensamentos se comportam dentro da cabeça da
mesma forma que os signos se comportam do lado de fora dela. No texto, Peirce utiliza
o termo "essência": pensamento e signo são essencialmente iguais.
De acordo com uma definição bem genérica, um signo é algo que serve de "veículo"
para uma ideia. Outra definição, também não muito precisa, é a de que o signo torna
presente algo ausente. Dirijamo-nos para algo que, desde o surgimento das primeiras
teorias e reflexões semióticas (provavelmente na antiguidade), nunca se duvidou ser um
exemplar legítimo de signo: a palavra. Por exemplo, a palavra "árvore" é claramente um
signo. Se observarmos bem, isto que chamamos de palavra "árvore" materialmente é
apenas uma sucessão de sons (se estiver sendo falada) ou uma sucessão de grafemas (se
estiver sendo grafada). Porém, o essencial de uma palavra está situado bem além de sua
existência material. O essencial de uma palavra é justamente a sua capacidade de
convocar uma ideia, uma concepção, o que é algo necessariamente diverso dela mesma.
Por exemplo, a palavra "árvore" traz à mente do ouvinte ou do leitor, uma ideia, uma
concepção de árvore. Ainda que para significar um signo não possa jamais abrir mão de
sua materialidade, não é esta qualidade material que o torna um signo, mas uma
175
De um ponto de vista externo ao QFCM, pode-se observar que tanto a analogia entre pensamento e
inferência como também o equacionamento entre pensamento e signo possuem a mesma origem: a
descoberta feita por Peirce (em 1865) de que a relação sígnica é a relação fundamental para lógica (ou
seja, a relação entre sujeito e predicado, entre antecedente e consequente e entre premissa e conclusão são
casos particulares da relação sígnica). De acordo com tese defendida no segundo capítulo, esta descoberta
e algumas outras (também no campo da lógica) que afastaram Peirce do pensamento kantiano e o impeliu
a elaborar um sistema próprio de categorias (distinto daquele de Kant e também de Aristóteles).
231
qualidade imaterial que é a sua capacidade de significar, i.e., a capacidade de remeter a
mente para algo diverso (que é por ela entendida como o significado do signo).
Para que enxerguemos isto que Peirce chama de "essência" de um signo, vamos ao
proverbial exemplo das palavras num dicionário (ainda que este modo de entender o
conceito de signo esconda um perigo do qual trataremos no último capítulo). Suponha
que um dicionário venha parar na mão de uma pessoa que não conheça o significado de
nenhuma palavra que nele se encontra. Se esta pessoa quiser conhecer o significado de
um termo x qualquer, ela deve obviamente abrir o dicionário e ler o verbete
correspondente a este termo. Suponha, então, que na frente do termo x, esteja o termo y,
o que quer dizer que y é o significado de x. Se esta pessoa quiser saber o significado de
y, ela deve procurar o verbete correspondente a este termo. Suponha que o significado
de y é z e, por sua vez, o significado de z é w e assim por diante. Do x esta pessoa foi
direcionada para o y, do y ela foi direcionada para o z, do z ela foi direcionada para o w
e assim até que ela se canse e pare de procurar por significados.
O essencial do signo não é sua forma material (isto nos serve para identificá-lo apenas),
mas a sua capacidade em dirigir nossa atenção para algo distinto dele mesmo. Com o
pensamento, valem as mesmas observações. De acordo com a teoria da cognição
elaborada no QFCM, o essencial do pensamento também não é sua forma material176
.
Esta nos serve para identificá-lo somente. O essencial do pensamento é a sua capacidade
de nos remeter a algo distinto dele mesmo (em geral, a outro pensamento).
A teoria da cognição elaborada ao longo do QFCM junto com esta tese-base (da
semiótica) apresentam um modelo lógico da mente. Conforme visto nas duas últimas
seções do terceiro capítulo, este teoria que nos oferece uma visão da mente a partir de
um ponto de vista lógico (ou semiótico) pode ser entendida como uma teoria da
substituição. De acordo com Ransdell (1966, p. 93), dentro desta teoria da cognição, "a
mente não é uma coisa, mas um certo processo ordenado", a mente é uma espécie de
processamento logicamente ordenado de formas (puras). E, continua Ransdell, neste
"processamento lógico, uma forma toma o lugar, substitui (logicamente) alguma outra
como o único conteúdo positivo da mente no dado instante (lógico)".
A noção de fluxo é criada dentro desta teoria da cognição exposta no QFCM porque,
como não podemos conhecer nada diretamente, mas apenas conhecemos o "conteúdo"
de um pensamento a partir de algo externo a ele, todo pensamento deve levar a algum
outro pensamento. É este que nos "revela" o conteúdo daquele.
Se só conhecemos o conteúdo de um pensamento a partir do próximo pensamento na
sequência, então há sempre um intervalo entre o momento em que temos uma cognição
176
É de se supor que o pensamento não apenas tenha determinada forma, mas também detenha certa
materialidade (i.e., certa qualidade material [ainda que muito sutil]). Esta forma material que nos permite
identificar um pensamento é tudo aquilo que é intuído quando temos aquele pensamento diante de nossa
consciência. Esta intuição (de segundo tipo) é relativa ao "conhecimento" do presente como presente (CP
5.214 [1868]). De acordo com a interpretação pacientemente desenvolvida para resolver o que chamamos
de problema do segundo tipo de intuição, esta forma que nos permite identificar um pensamento é o
objeto imediato (cf. segunda seção do capítulo anterior).
232
e o momento em que sabemos qual era o conteúdo daquela cognição que tivemos. Isto é
muito estranho. Entretanto, negar esta consequência seria restituir a intuição ao seu
papel de conhecimento direto (e infalível). Para sabermos que temos um pensamento x,
temos que ter outro pensamento y que nos "revele" o conteúdo do pensamento x. Para
todos os efeitos, só sabemos que pensamos x a partir do momento que nos veio à mente
o pensamento y, o que significa que apenas sabemos de x quando este já não é mais o
pensamento diante do qual nossa mente está. Como o pensamento y que utilizamos
(como signo) para descobrir o que estamos pensando (x) empurra este pensamento (x)
para o passado, então sempre que o pensamento y chegar para "revelar" o conteúdo (o
significado) do pensamento x, este já não é mais o que estamos pensando, mas o que
estávamos pensando. Assim, de acordo com esta teoria, estamos condenados a nunca
saber o que pensamos no presente (imediato). Por este motivo, nesta Q5, Peirce
estabelece a tese que “na intuição, num momento apenas, não há pensamento algum”
(CP 5.253 [1868]).
Por estranho que pareça (ou mesmo implausível), dentro desta teoria da cognição, o ato
do pensamento é entendido como algo que transcorre de um instante para outro, ou seja,
é um ato que exige um intervalo de tempo. Não pode haver “ato instantâneo de
pensamento”, pois algo para ser pensado deve poder ser interpretado em outro
pensamento. Esta é a essência do pensamento. Se, por um lado, todo pensamento deve
poder ser interpretado num outro pensamento (i.e., o próximo da sequência), por outro
lado, de acordo com Peirce, todo pensamento “tem um passado”, o que significa que é
sempre possível retraçar o caminho que nos levou a um pensamento específico. A
origem de qualquer pensamento deve nos ser cognoscível, deve poder ser investigada.
Assim, não há nenhum pensamento que possa ser considerado originário (i.e., “sem
passado”). Em resumo, o argumento é que, se todo pensamento deve poder ser
interpretado em outro pensamento, então todo pensamento deve também poder ser o
resultado de uma interpretação de um pensamento anterior. Na teoria da cognição
exposta no QFCM, não há pontos de chegada (pré-estabelecidos), tampouco pontos de
partida. Não há nem mesmo pontos de parada, pois, na ausência de movimento, não
haveria pensamento algum. Esta é a noção de fluxo peculiar à semiótica peirceana.
Um problema de fundo que atravessa toda a quinta questão é que a teoria da cognição
exposta no QFCM requer a possibilidade de uma série infinita, o que parece ser contra
as evidências das quais falamos no início da Q5. Entretanto, sem admitir esta
possibilidade, parece não haver outro modo de impedir que seja introduzida na teoria
alguma concepção de intuição ou de ponto originário do processo de conhecimento. O
problema é que admitir algum ponto originário significa admitir a incognoscibilidade.
Como veremos, para qualquer um que se submeta à tarefa de construir uma teoria
epistemológica, o incognoscível se apresenta como um resíduo insistente.
Como a estratégia para estabelecer as teses que compõe a teoria da cognição exposta no
QFCM é sustentar que tudo que for conhecível ou cognoscível só pode sê-lo por
inferências (e nunca diretamente, por intuições), então o único modo de evitar que a
teoria tenha que admitir a existência de uma série infinita (de signos) é afirmar que toda
233
série (sígnica) deve ter um início. Porém, afirmar que deve haver um início é afirmar
que há um pensamento que não foi determinado por nenhum pensamento anterior. Este
ponto inicial seria um pensamento que é considerado ponto inicial justamente por não
ser resultado de processo inferencial algum. Entretanto, não podemos saber o que este
pensamento é, pois, de acordo, com a argumentação desenvolvida nas quatro primeiras
questões do QFCM, não temos acesso direto ao que pensamos ou sentimos (ou, até
mesmo, ao que percebemos). Sustentar que deveríamos conhecer diretamente o
("conteúdo" deste) primeiro pensamento seria reintroduzir, de alguma forma, a noção de
intuição que se pretendia evitar. O resultado é que, caso optemos por afirmar que há um
ponto inicial (com o intuito de evitar a admissão de uma série infinita [que
supostamente não seria apoiada por evidências]), então este ponto inicial deve
necessariamente ser incognoscível. Chega-se, então, a um dilema: ou há algo de
incognoscível envolvido em todo processo de conhecimento ou há uma série infinita
envolvida em todo processo de conhecimento. Denominemos estes de caminho I e
caminho II.
Esta bifurcação se apresenta como um dilema, pois qualquer dos caminhos nos leva a
admissão de proposições problemáticas (ao menos, assim o é à primeira vista).
Comecemos pelo caminho II. Por um lado, se admite-se que há uma série infinita de
signos (cada um deles interpretando o anterior), então haveria uma contradição com o
que é considerado evidente: que há um início para qualquer processo de pensamento.
Por outro lado, se admite-se que há algo de incognoscível no início de qualquer
processo de conhecimento, então a teoria teria introduzido uma concepção (a de
incognoscibilidade) que seria tão misteriosa e inexplicável quanto aquela que pretendia
evitar (a de intuição)177
. É claro que, diante desta bifurcação, Peirce não poderia optar
pelo caminho I. Toda a teoria da cognição peirceana parte de uma crítica à intuição
justamente porque este conceito se apresentar, de acordo com a argumentação
desenvolvida na Q1, como um mistério inexplicável e inquestionável que jaz nas
fundações das teorias epistemológicas propostas na modernidade. Não haveria sentido
construir toda uma teoria que seria exibida como alternativa àquelas que recorrem ao
conceito de intuição para, na fase de acabamento da obra, descobrirmos que toda a
construção foi feita sobre conceitos similares (ou, ao menos, conceitos que são, para
todos os efeitos teóricos, equivalentes) aos que deveriam ser evitados. A intenção de
Peirce ao criticar o uso fundacional do conceito de intuição parecia ser propor uma
teoria que não estabelecesse um conceito absolutamente inexplicável como fundamento
último do conhecimento humano (até porque, e isto ficaria evidente à luz de escritos
mais tardios, não pode haver fundação última e completamente segura). Na leitura de
Peirce, uma teoria que estabeleça um ponto originário para o conhecimento é uma teoria
que institui um ponto de incognosciblidade, um ponto cego epistemológico.
177
E, como sabemos (cf. os três primeiros capítulos), Peirce está impedido de aceitar a introdução de
qualquer tipo de incognoscibilidade em sua teoria da cognição sob pena de ter desfeita qualquer
possibilidade de explicar como são possíveis os raciocínios ampliativos ou sintéticos e também encontrar
alguma fundamentação para validade deles (que é o objetivo do argumento da série cognitiva como um
todo).
234
De forma mais imediata, o que Peirce pretende evitar é justamente uma certa
ambientação de mistério e obscuridade que é cultivada ao redor da concepção de
intuição. Como geralmente a criação de um ambiente destes serve para proteger (e, não
raras vezes, blindar) certas crenças de questionamentos, é impossível não notar certas
semelhanças entre o véu de mistério que encobre as teorias que recorrem à intuição
(como fundação última) e o véu de mistério criado em torno de dogmas ou de mitos
fundacionais. Acreditar que a origem de nossos conhecimentos não pode ser conhecida
ou questionada é muito semelhante a acreditar numa espécie de “olho que vê, mas não
pode ser visto”. Se Peirce desconfia de soluções teóricas que recorram à intuição e, por
isso, optou por construir uma teoria que lhe fosse alternativa, então não faria sentido
que tal teoria recorresse a conceitos similares ou equivalentes aos que se pretende evitar.
É como se trocássemos todos os elementos cenográficos de uma cena, mas o ambiente
noir fosse mantido.
Se a intuição, como ponto de partida (dos processos de conhecimento), foi preterida por
ter sido considerada irremediavelmente inexplicável, parece-nos óbvio que, pelo mesmo
motivo, também deve ser rejeitada a ideia de que uma cognição ou pensamento
incognoscível possa cumprir este papel de ponto inicial. Note que para rejeitar a
hipótese de que haja algo de incognoscível no conhecimento humano, i.e., eliminar o
primeiro caminho do referido dilema, a argumentação geral do Q5 (que serviu para
estabelecer a tese-base) não é suficiente. Ainda que tenha estabelecido nesta quinta
questão que todo pensamento é signo e, portanto, não deve haver pensamento
incognoscível, o problema do incognoscível é recolocado, em outro nível, na sexta
questão. Para que compreendamos este ponto é necessário rever como o problema do
incognoscível surgiu no horizonte da Q5.
O problema central da Q5 era estabelecer aquilo que chamamos de tese-base: "todo
pensamento é pensamento em signos". Para estabelecer esta tese, Peirce teve que
enfrentar diretamente, pela primeira vez no QFCM, o problema do incognoscível. Como
esperamos ter deixado claro durante as análises, toda a argumentação desenvolvida nas
questões anteriores estava voltada para um domínio específico: aqueles pensamentos
que são, de alguma forma, conhecíveis ou cognoscíveis. Nada tinha se afirmado até
então sobre a possibilidade de existir algum pensamento que estivesse fora deste
domínio. Por este exato motivo, Peirce precisou de introduzir na Q5 uma proposição178
que negasse esta possibilidade (de existir algum pensamento que não fosse
cognoscível). Apenas a partir desta proposição e de uma segunda proposição que afirma
não haver pensamentos (ou cognições) que possam ser conhecidos a partir de fatos
internos (i.e., de forma direta, por mera contemplação), Peirce consegue responder (de
forma negativa) à quinta questão. O argumento geral pode ser representado da seguinte
forma:
178
Esta é a quinta proposição (do segundo parágrafo da Q5) e a premissa8 em nossa explicitação da
argumentação peirceana.
235
Argumento geral da Q5
Premissa1: Se houvesse capacidade de se pensar sem recorrer a signos, então (ou)
haveria pensamentos incognoscíveis ou haveria pensamentos que poderiam ser
conhecidos a partir de fatos internos.
Premissa2 (estabelecida na Q4): Não há pensamentos que poderiam ser
conhecidos a partir de fatos internos.
Premissa3: Não há pensamentos incognoscíveis.
Conclusão: Não há capacidade de se pensar sem recorrer a signos.
Desnecessário dizer que é bem resumida a argumentação desenvolvida na Q5 para
sustentar que “todo pensamento é pensamento em signos” (tese-base). É como se esta
tese-base fosse um resultado que se seguisse de forma bastante direta, quase “natural”
das teses estabelecidas nas outras questões QFCM. Se observarmos este argumento
geral, não é difícil notar que Peirce não dedicou muito espaço para tal argumentação
durante a Q5, pois a segunda premissa acima já tinha sido estabelecida desde o final da
Q4 e a terceira premissa foi estabelecida, sem discussões, (aparentemente) em
decorrência de uma definição (a do próprio termo pensamento ou cognição). Quase todo
o texto da Q5 foi ocupado com esclarecimentos e consequências da tese-base bem como
com algumas proposições equivalentes.
Antes de terminarmos a análise desta Q5, façamos uma última observação (que,
inclusive, nos serve de transição para próxima questão). Mesmo tendo sustentado a tese
que "não temos a capacidade de pensar sem signos" sob afirmação que não há
pensamentos incognoscíveis, o problema do incognoscível ainda não saiu totalmente do
horizonte da teoria da cognição exposta no QFCM. O dilema persiste, pois, ao afirmar
que todo o pensamento é signo e não há pensamento/signo incognoscível, o problema
do incognoscível recua para a posição anterior ao signo, a saber, para a posição de
objeto do signo. Em outras palavras, mesmo que não haja nenhum pensamento ou signo
incognoscível (em si mesmo), resta ainda a possibilidade que haja um pensamento ou
signo cujo objeto seja incognoscível. Assim, tem que se verificar a possibilidade de
haver algum pensamento (que em si é cognoscível, mas) que represente algo que seja
em si mesmo incognoscível.
236
CAPÍTULO 8
Análise da sexta e da sétima questões do texto
"Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"
Neste oitavo capítulo, apresentaremos, na primeira seção, uma análise da sexta questão
do QFCM, que diz respeito à possibilidade de haver algum signo cujo objeto seja
incognoscível (i.e., uma cognição que represente algo incognoscível); e na segunda
seção, uma análise da sétima questão, que diz respeito ao problema da primeira
cognição. Nestas duas últimas questões do QFCM, as linhas argumentativas
desenvolvidas por Peirce foram inteiramente dedicadas à tarefa (ou tentativa) de
descartar, de uma vez por todas, qualquer necessidade de recurso à intuição ou
incognoscibilidade e à difícil tarefa (ou, mais uma vez, tentativa) de convencer o leitor
que é possível conceber a atividade cognitiva como um processo sem pontos
originários. A teoria inferencial ou sígnica da cognição elaborada por Peirce precisa de
explicar como é possível haver efetivamente pensamento se a teoria afirma que toda
cognição é determinada por uma cognição anterior (e não há ponto de origem), pois esta
afirmação é uma consequência direta da tese-base. Como veremos, de uma forma ou de
outra, na Q6 e na Q7, Peirce vai lidar com consequências do estabelecimento da tese-
base (na Q5).
237
8.1 Análise da Q6: sobre o significado do incognoscível
Questão 6: Se um signo pode ter qualquer significado, se por
sua definição ele for um signo de algo absolutamente
incognoscível.
O foco da sexta questão é inteiramente voltado para um tema que já havia surgido na
Q5: o problema do incognoscível. O objetivo de Peirce nesta Q6 ao responder (como já
era de se esperar) de forma negativa à pergunta é estabelecer a tese de que "tudo que
existe é cognoscível (ou conhecível)". Enquanto na Q5, o objetivo era estabelecer a
equação pensamento = signo, no Q6, o objetivo é estabelecer a equação ser =
cognoscível. É bem verdade que, como já foi dito, na Q5, Peirce já tinha lidado com
incognoscível também. Mas, naquela oportunidade, a questão era se havia pensamento
(cognição) incognoscível, i.e., pensamento que não possa ser conhecido (de forma
alguma). Na Q6, a pergunta é se um pensamento pode representar algo incognoscível.
Como todo pensamento é signo (tese estabelecida na Q5), a pergunta pode ser
recolocada do seguinte modo: o signo de algo incognoscível possui algum significado?
Argumentar a favor da tese de que um signo pode ter como objeto algo incognoscível é
a última chance que Peirce tem de evitar ter que admitir dentro de sua teoria da
cognição a tal série infinita (de signos). Como o leitor já deve ter antecipado, Peirce
obviamente (pelos motivos que apresentamos ainda durante a análise da Q5) não aceita
esta última oportunidade de escapar das séries infinitas. Diante do dilema formado por
um caminho que leva até a incognosciblidade e outro que leva até as séries infinitas,
Peirce optará por seguir esta última via. Porém, este é um assunto para a sétima e última
questão do QFCM. Antes, tratemos do suposto significado do incognoscível, pois a
negação de que haja algum significado num termo desse tipo irá nos conduzir até a
pergunta que constitui a Q7.
A estrutura da Q6 é muito semelhante àquela da Q5 embora a sexta questão não diga
respeito diretamente a uma capacidade, mas à possibilidade de haver significado no
signo de algo incognoscível. Como na Q5, também o primeiro parágrafo da Q6 foi
reservado para tratar da resposta positiva à pergunta. O segundo parágrafo, por sua vez,
foi dedicado à argumentação que sustenta uma resposta negativa e os últimos parágrafos
foram separados para analisar consequências de tal negação e prestar alguns
esclarecimentos.
Parece que seria possível [que um signo pudesse ter qualquer significado no
caso em que, por sua definição, ele for um signo de algo absolutamente
incognoscível], e as proposições hipotéticas e universais seriam uma
instância [deste caso]. Então, a proposição universal, "todos os ruminantes
são biungulados" trata de uma infinidade possível de animais e não importa
quantos ruminante possam ser examinados, resta sempre a possibilidade
relativa à existência de outros que não forma examinados. No caso de uma
proposição hipotética, este ponto é ainda mais claro, pois tais proposições
238
tratam não apenas de uma estado de coisas atual, mas de todo e qualquer
estado de coisas possível, os quais são todos desconhecidos na medida em
que apenas pode existir [i.e. estar atualizado].
(CP 5.254 [1868])179
Podemos apresentar a sexta questão a partir da seguinte suposição: imagine que haja um
signo cujo objeto seja incognoscível, um signo que represente algo que não possa ser
conhecido; a pergunta, então, é: este signo pode ter algum significado? No primeiro
parágrafo da Q6, transcrito acima, Peirce considera a resposta positiva a esta questão e,
de acordo com a exposição do autor, tanto proposições universais como hipotéticas
seriam casos de signos que podem ser compreendidos, i.e., possuem algum significado,
mas seus objetos não podem ser conhecidos (ou não podem ser "totalmente
conhecidos"). Vejamos, primeiro, o caso das proposições universais. O exemplo
utilizado foi a proposição "todos os ruminantes são biungulados". Como esta proposição
se refere a um conjunto infinito de seres, pode-se afirmar que seu objeto não pode nunca
ser conhecido em sua plenitude. Aquilo que esta proposição representa só poderia ser
alcançado (acessado) caso fosse possível verificar se todos os ruminantes efetivamente
são biungulados. Como não é possível fazer tal verificação (uma vez que o conjunto em
questão é infinito), então parece justo concluir que o objeto desta representação é algo
incognoscível.
O segundo caso considerado por Peirce neste primeiro parágrafo são as proposições
hipotéticas. De acordo com Peirce, proposições hipotéticas dizem respeito a estados de
coisas possíveis e tais estados não são efetivamente conhecíveis, visto que apenas um
deles pode existir", i.e., estar atualizado, e assim ser efetivamente conhecido.
Consideremos a seguinte proposição hipotética: "se Salvador fosse capital do Paquistão,
então Dorival Caymmi cantaria música sufi". Ao "lado" do estado de coisas atual (que é
o fato de Salvador ser capital da Bahia, que obviamente não fica no sul da Ásia, mas no
nordeste do Brasil), pode-se imaginar uma multiplicidade de possíveis estados de
coisas. O que esta proposição afirma é que, em cada um dos estados possíveis em que é
cumprida a condição de Salvador ser a capital do Paquistão, há um indivíduo
denominado "Dorival Caymmi" que tem a propriedade de "cantar música sufi". Repare
que a proposição não afirma que, de fato, "Dorival Caymmi" tenha a propriedade de
"cantar música sufi", mas que este indivíduo teria esta propriedade dentro de certo
cenário hipotético. Como só podemos conhecer o que de fato existe, aquilo que uma
proposição hipotética representa deve ser considerado incognoscível.
No texto do QFCM, Peirce apenas apresenta o que seria uma resposta positiva à sexta
questão. Como foi feito naquele primeiro parágrafo da Q5 (em que lidou com uma
possível resposta positiva à quinta pergunta), Peirce opta por não desenvolver um
179
No original: "It would seem that it can, and that universal and hypothetical propositions are instances
of it. Thus, the universal proposition, "all ruminants are cloven-hoofed," speaks of a possible infinity of
animals, and no matter how many ruminants may have been examined, the possibility must remain that
there are others which have not been examined. In the case of a hypothetical proposition, the same thing
is still more manifest; for such a proposition speaks not merely of the actual state of things, but of every
possible state of things, all of which are not knowable, inasmuch as only one can so much as exist".
239
contra-argumento para desmontar esta tese que afirma que um signo de algo
incognoscível possui algum significado (o que consiste numa resposta positiva à Q6),
mas prefere apostar na força do argumento que sustenta a tese contrária: que um signo
de algo incognoscível não possui significado algum (o que consiste numa resposta
negativa à Q6). Apenas, ao final da sexta questão, Peirce, num último e brevíssimo
trecho, volta ao assunto tratado neste primeiro parágrafo e afirma que, com relação ao
"argumento das proposições universais e hipotéticas, a resposta é que, embora a verdade
delas [i.e. de tais proposições] não possa ser conhecida com certeza absoluta, ela pode,
em termos de probabilidade, ser conhecida por indução" (CP 5.258 [1868])180
.
No segundo parágrafo (CP 5.255 [1868]) da Q6, Peirce passa a argumentar contra a
possibilidade de haver algum significado num signo de algo incognoscível. O primeiro
passo para construir seu argumento é afirmar que a origem de toda e qualquer
concepção é a experiência. A partir desta afirmação (que é uma espécie de regra geral) e
de algumas premissas adicionais, Peirce estabelece a tese que não podemos ter
concepção alguma do absolutamente incognoscível. E, por sua vez, é partir desta
afirmação que Peirce estabelece a tese de que o signo de algo absolutamente
incognoscível não pode ter significado algum, o que consiste na resposta (negativa) à
sexta questão. Antes de analisarmos o argumento que o leva a sustentar esta tese, deve
ser enfatizado que é neste segundo parágrafo da Q6 que pode ser encontrada a primeira
enunciação do que ficaria mais tarde conhecido sob o nome de máxima pragmática181
:
"o significado de um termo é a concepção que ele veicula". Como veremos na análise
da argumentação peirceana, esta definição de significado é essencial para economia
interna da teoria da cognição apresentada no QFCM:
Por outro lado, todas as nossas concepções são obtidas a partir de abstrações
e combinações de cognições que ocorrem primeiro em julgamentos da
experiência. Assim, não pode haver concepção do absolutamente
incognoscível, uma vez que nada desse tipo ocorre na experiência. Porém, o
significado de um termo é a concepção que ele veicula. Então, um termo não
pode ter tal significado.
(CP 5.255 [1868])182
Para explicitarmos o raciocínio de Peirce neste trecho transcrito, optamos por dividi-lo
em dois argumentos: um deles, relativo à concepção do absolutamente incognoscível e o
180
No original: "To the argument from universal and hypothetical propositions, the reply is, that though
their truth cannot be cognized with absolute certainty, it may be probably known by induction". 181
É verdade que esta é a primeira enunciação da máxima pragmática num texto publicado, pois foi
encontrada uma anotação (de caderno), datada de novembro de 1866, que já contém, segundo
interpretação de De Waal (2007, p. 30), a ideia central desta máxima. Nesta anotação Peirce afirma que
"o que não é uma questão de experiência possível não é uma questão de fato" (W 1,9). De acordo com
tese defendida por De Tienne (1989, p. 405), alguns dos germens do pragmatismo (ou pragmaticismo)
peirceano já estavam em atuação no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (publicado em 1867). 182
No original: "On the other hand, all our conceptions are obtained by abstractions and combinations of
cognitions first occurring in judgments of experience. Accordingly, there can be no conception of the
absolutely incognizable, since nothing of that sort occurs in experience. But the meaning of a term is the
conception which it conveys. Hence, a term can have no such meaning".
240
outro, relativo ao suposto significado de um termo que representa algo absolutamente
incognoscível. Vejamos o primeiro desses argumentos.
Argumento sobre a concepção do absolutamente incognoscível
Regra: Todas as nossas concepções vêm da experiência.
Premissa1: Se não há nada relativo ao absolutamente incognoscível na experiência,
então não pode haver concepção relativa ao absolutamente incognoscível.
Premissa2: Não há nada relativo ao absolutamente incognoscível na experiência.
Conclusão: Não temos concepção do absolutamente incognoscível.
Estabelecido que não temos concepção do absolutamente incognoscível, Peirce se dirige
para sustentar a tese de que um signo de algo (absolutamente) incognoscível não pode
ter significado algum. De acordo com o argumento peirceano, este signo não pode ter
significado algum, pois, se tivesse, então deveria veicular ou carregar alguma
concepção. Entretanto, tal signo não pode veicular ou carregar concepção alguma, pois,
de acordo com o que acabamos de concluir no argumento anterior, não temos concepção
alguma de algo (absolutamente) incognoscível. Ao reconstruirmos o argumento de
Peirce neste segundo parágrafo, deve-se notar que a conclusão obtida do raciocínio
explicitado anteriormente entra como premissa (a sexta delas) no argumento que segue.
Argumento sobre o significado de um termo que representa algo absolutamente
incognoscível
Premissa1: O significado de um termo é a concepção que ele carrega.
Premissa2: Se um termo tem algum significado, então este termo deve carregar
alguma concepção relativa ao que representa.
Premissa3: Suponha um termo W que represente algo absolutamente incognoscível.
Premissa4: Se o termo que representa algo absolutamente incognoscível tiver
algum significado, então este termo deve carregar alguma concepção relativa ao
absolutamente incognoscível.
Premissa5: Se tal termo deve carregar alguma concepção relativa ao
absolutamente incognoscível, então obviamente deve haver alguma concepção
relativa ao absolutamente incognoscível.
Premissa6: Não há concepção relativa ao absolutamente incognoscível.
Conclusão: O (suposto) termo W que representa algo absolutamente
incognoscível não tem significado algum.
241
Todo pensamento (graças a sua essência sígnica) deve se dirigir a outro pensamento (da
mesma forma que um signo deve ser interpretado em outro signo). O incognoscível
seria então um pensamento/signo que não ocasionaria nenhum outro pensamento/signo.
O signo de algo incognoscível seria, então, uma espécie de "veículo vazio", pois, como
vimos, nele não é carregada nenhuma concepção. A partir do exposto nestas linhas,
então, pode-se oferecer uma resposta negativa à sexta questão: um signo de algo
absolutamente incognoscível não pode ter significado algum. Entretanto, o problema do
incognoscível dentro do QFCM não termina neste ponto, pois há ainda algumas
possibilidades que precisam ser contempladas. Por exemplo, a possibilidade de que haja
algum significado composto no termo "incognoscível", ou seja, mesmo na
impossibilidade de o termo “incognoscível” ter significado como um bloco, i.e., como
um todo não-analisado, resta ainda a possibilidade de considerar o termo incognoscível
como algo composto de partes e considerar que tal termo consiga, de alguma forma,
ganhar algum significado “ao tomar emprestado” o significado de suas partes
componentes.
Consideremos, então, como faz Peirce no terceiro parágrafo da Q6 (CP 5.256 [1868]),
esta possibilidade de que o termo "incognoscível" seja um conceito composto e derive
seu significado do significado dos conceitos do qual é constituído. Este caráter
composto pode ser visto de forma mais clara na seguinte equivalência: afirmar que algo
é "in-cognoscível" é equivalente a afirmar que algo é "não-cognoscível". Assim, nota-se
que o termo "incognoscível" poderia ser decomposto no conceito "não" e no conceito de
"cognoscível". A primeira resposta de Peirce contra esta análise é que o termo "não"
seria apenas um termo sincategoremático183
e, assim, não poderia ser considerado, por si
só, um conceito (CP 5.256 [1868]). Então, se o "não" não é um conceito, esta parte da
palavra "incognoscível" não tem significado independente (pois, abstraída de sua
combinação com o termo "cognoscível" na palavra em questão, ela não carrega
concepção alguma), o que nos leva de volta ao caso analisado argumento anterior184
.
A outra possibilidade a ser contemplada dentro desta consideração de que o termo
“incognoscível” seria composto é que o termo "não" seja um conceito autônomo (algo
equivalente à concepção de "aquilo que é diferente de"). Neste caso Peirce vai retomar
a premissa que todos os conceitos que são construídos a partir da experiência são
relativos a algo cognoscível. A partir desta premissa, Peirce pode obter a seguinte
conclusão:
183
Sincategoremáticas são aquelas expressões dentro de uma linguagem às quais não é possível atribuir
um significado independente quando abstraídas da combinação com outros termos ou expressões (cf.
BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 703 [verbete sincategoremático]). 184
Argumento sobre o significado de um termo que representa algo absolutamente incognoscível.
242
Argumento sobre a equivalência entre os termos “experienciável” e
“cognoscível”
Premissa1: Tudo que puder ser experienciado é da natureza de uma cognição.
Conclusão: O mais alto conceito que puder ser atingido por abstração de
julgamentos da experiência é um conceito de algo da natureza de uma cognição.
Porém, podemos obter uma conclusão mais geral ainda, pois, por uma premissa já
apresentada em argumento anterior, sabemos que não há outro modo de se obter
concepções "mais altas" (além da abstração realizada a partir de cognições que ocorrem
primeiro em julgamentos da experiência). Como não há outro modo de se obter
concepções e dado que "tudo que puder ser experienciado é da natureza de uma
cognição" (premissa1), podemos concluir que todo e qualquer conceito (que pudermos
obter) é um conceito de algo da natureza de uma cognição.
Argumento (generalizado) sobre a equivalência entre os termos “experienciável”
e “cognoscível”
Premissa1: Tudo que puder ser experienciado é da natureza de uma cognição.
Premissa2: Todas as nossas concepções são obtidas por abstração e combinação
de cognições que ocorreram primeiro em julgamentos da experiência.
Conclusão: O mais alto conceito que podemos obter é um conceito de algo da
natureza de uma cognição.
Nesse caso, nota-se que, se o "não" for considerado um conceito, então ele também
seria um conceito de algo da natureza de uma cognição. Neste ponto do texto, Peirce
apenas afirma que, se o "não" fosse um conceito independente, ele seria um conceito do
cognoscível, ou seja, um conceito de algo cognoscível (cf. CP 5.257 [1868]). Está, neste
trecho, subsumido um relevante passo lógico, pois é provável que, para afirmar que o
conceito de "não" é um conceito de algo cognoscível, Peirce tenha recorrido
implicitamente a uma ideia que fora utilizada em argumentação na Q5: "não existem
pensamentos que não possam ser conhecidos" (esta é a quinta proposição do segundo
parágrafo da Q5 no texto original [CP 2.251] e é a premissa8 do argumento que
explicitamos em nossa análise desta questão). Esta proposição é equivalente à afirmação
de que "todos os pensamentos (ou cognições) são cognoscíveis".
243
Argumento sobre a primeira parte do termo composto “incognoscível”
Premissa1: Suponha que o termo "não" seja um conceito.
Premissa2: Se o termo "não" fosse um conceito, então o termo "não" seria um
conceito de algo da natureza de uma cognição.
Premissa3: Todos os pensamentos (ou cognições) são cognoscíveis.
Premissa4: Se o termo "não" fosse um conceito de algo da natureza de uma
cognição, então o termo "não" seria um conceito de algo cognoscível.
Conclusão: Se o termo "não" fosse conceito, então o termo "não" seria um
conceito de algo cognoscível.
Com esta conclusão, Peirce parte para estabelecer que, se o termo "não" que faz parte
do termo "não-cognoscível" for considerado um conceito autônomo (e não um termo
sincategoremático), então há uma autocontradição envolvida no termo "não-
cognoscível" (como um todo). Nesta passagem não há muitas explicações. Depois de
concluir que o termo "não" teria como objeto algo cognoscível, Peirce passa
diretamente para a afirmação de que o termo "não-cognoscível" seria, "no mínimo,
autocontraditório" (CP 5.257 [1868]), pois seria um conceito da forma "A, não-A". Para
estabelecer este ponto, Peirce parece pressupor uma espécie de regra de
composicionalidade para conceitos. Como as duas partes que constituem o conceito
(composto) de "não-cognoscível" são conceitos de algo cognoscível, então o conceito
como um todo não poderia ser um conceito de algo que não fosse cognoscível. Isto tem
um paralelo em lógica proposicional clássica. Por exemplo, se a proposição a é
verdadeira e a proposição b é verdadeira também, então não há como a conjunção (a
"composição") das duas proposições ter outro valor além daquele valor que já é
verificado para cada uma de suas partes (naquela valoração), i.e., o valor verdadeiro. Se
o termo "não" for um conceito de algo cognoscível e o termo "cognoscível" também for
um conceito de algo cognoscível, então a composição destas partes, i.e., o conceito de
"não-cognoscível" como um todo, teria que ser um conceito de algo cognoscível. Neste
caso, o termo "incognoscível" teria necessariamente como objeto algo cognoscível. Tal
termo se referiria a algo que nega existir (daquela forma que existe). Esta é,
acreditamos, a autocontradição à qual Peirce se refere neste trecho (CP 5.257 [1868]),
que, aliás, transcreveremos a seguir para que o leitor tenha uma visão geral da
argumentação do autor.
Se penso "branco", não vou tão longe como Berkeley a ponto de afirmar que
penso, neste caso, numa pessoa vendo, mas afirmo que aquilo que penso é da
natureza de uma cognição e o mesmo acontece com tudo o que puder ser
experienciado. Consequentemente, o mais alto conceito que puder ser
alcançado por abstração a partir de juízos da experiência e, assim, o mais
alto conceito que pode ser alcançado em geral é o conceito de algo da
natureza de uma cognição. Então, o não, ou aquilo que "é diferente de", se for
244
um conceito, deve ser um conceito de algo cognoscível. Assim, não-
cognoscível, se for um conceito, então deve ser um conceito da forma "A,
não-A" e é, no mínimo, contraditório. Então, a ignorância e o erro podem
apenas ser concebidos como correlacionados ao conhecimento real e
verdadeiro, o que é da natureza de uma cognição. Em oposição a uma
cognição qualquer, há uma realidade desconhecida, porém cognoscível.
Entretanto, em oposição a toda cognição possível, há apenas autocontradição.
Em resumo, cognoscibilidade (nesta acepção ampla) e ser não são apenas o
mesmo do ponto de vista metafísico, mas, na verdade, estes são termo
sinônimos.
(CP 5.257 [1868])185
O próximo passo dado por Peirce nesta Q6 na direção da tese que afirma que toda a
realidade é cognoscível foi esclarecer a origem do conceito de realidade dentro de sua
teoria. Este conceito bem como qualquer concepção relativa à realidade que temos é
proveniente da experiência. Para estabelecer este ponto, Peirce retoma um argumento
utilizado na Q2 para considerar o "ego" uma hipótese que é levantada para explicar a
possibilidade de erro e de ignorância. De acordo com o raciocínio desenvolvido naquele
ponto do QFCM (que, em nossas análises, chamamos de argumento para a confirmação
da hipótese do ego), a concepção de ego deve surgir como hipótese a partir do momento
em que se pode constatar um erro com relação a alguma representação. Entretanto,
qualquer erro só pode ser constatado a partir da experiência. Assim, o erro, a ignorância
ou qualquer outra concepção que aponte para distância entre o mundo real e o mundo
conforme representado só pode se formar a partir da experiência.
De acordo com o argumento exposto na Q6, o erro e a ignorância não podem ser
concebidos sem duas outras concepções que lhes são correlatas: o conhecimento real e a
verdade. Seria, então, impossível conceber que o nosso conhecimento do mundo está,
de alguma, errado sem conceber ao mesmo tempo que haja um conhecimento real (no
sentido de conhecimento verdadeiro). Se voltarmos ao exemplo da criança e do fogão
apresentado e analisado na Q2, podemos notar que, quando, a partir de uma experiência
(possivelmente traumática), o indivíduo em questão toma consciência que sua
representação do estado do fogão não corresponde ao real estado do fogão, ele também
toma consciência (a partir da mesma experiência) que há uma realidade desconhecida,
ou seja, que há uma realidade à qual sua representação não foi capaz de corresponder. O
individuo do exemplo toma consciência de que deve haver alguma realidade
desconhecida, pois apenas uma realidade não-correspondente à sua representação
185
No original: "If I think "white," I will not go so far as Berkeley and say that I think of a person seeing,
but I will say that what I think is of the nature of a cognition, and so of anything else which can be
experienced. Consequently, the highest concept which can be reached by abstractions from judgments of
experience -- and therefore, the highest concept which can be reached at all -- is the concept of something
of the nature of a cognition. Not, then, or what is other than, if a concept, is a concept of the cognizable.
Hence, not-cognizable, if a concept, is a concept of the form "A, not-A," and is, at least, self-
contradictory. Thus, ignorance and error can only be conceived as correlative to a real knowledge and
truth, which latter are of the nature of cognitions. Over against any cognition, there is an unknown but
knowable reality; but over against all possible cognition, there is only the self-contradictory. In short,
cognizability (in its widest sense) and being are not merely metaphysically the same, but are synonymous
terms".
245
explicaria porque o fogão foi capaz de queimá-lo enquanto ele o representava como um
objeto que não estava quente. O conhecimento real e a verdade são, portanto, conceitos
que surgem a partir da experiência (juntamente com o erro e a ignorância). Se são
conceitos que têm como origem a experiência, então são conceitos da natureza de
cognições, o que significa, por sua vez, que são ambos conceitos de algo cognoscível. O
ponto de chegada deste raciocínio é que tanto o conhecimento real (no sentido de
conhecimento verdadeiro) como a verdade são conceitos relativos ao que é cognoscível.
A argumentação peirceana se dirige para a afirmação de que a concepção de realidade e
de verdade que podemos ter (a partir da experiência) é de uma realidade cognoscível
bem como de uma verdade cognoscível. Não haveria como, de acordo com a teoria
exposta, concebermos algo como uma realidade incognoscível ou uma verdade oculta
(que nunca se desvelasse). Graças aos nossos erros, sabemos que há uma realidade
desconhecida que se contrapõe às nossas representações. Graças à impossibilidade de
haver incognoscibilidade, sabemos que esta realidade desconhecida deve, ao menos,
poder ser conhecida de algum modo, ou seja, a realidade desconhecida deve ser
conhecível ou cognoscível. Devemos enfatizar este ponto, pois, dentro desta teoria
exposta no QFCM, à realidade desconhecida (contraposta a alguma cognição) deve-se
necessariamente acrescentar a qualificação de conhecível ou cognoscível.
Afirmar que a realidade é cognoscível pressupõe que, embora ela se contraponha a
alguma de nossas cognições (ou representações), sempre dever haver, ao menos, a
possibilidade de se chegar a uma cognição que a ela corresponda (ou uma representação
seja correta). É justamente este possível "ponto de chegada" que consistiria no conceito
de conhecimento real ou verdade.
Por outro lado, afirmar que há alguma realidade incognoscível pressupõe que ela se
contraponha a todas as cognições (ou representações) possíveis. Neste caso, não seria
possível se obter esta concepção, pois o que temos a partir da experiência é a negação
de algumas cognições (ou representações) e não uma negação de todas as cognições (ou
representações) possíveis.
Assim, ao longo da Q6, Peirce examinou basicamente dois casos para considerar se há
ou não significado num termo que representa algo (absolutamente) incognoscível. No
primeiro deles, foi considerada a possibilidade de o termo “incognoscível” ter um
significado por si só e o resultado a que chegou é que este termo não poderia ter
significado algum, pois isso pressuporia que houvesse alguma concepção veiculada pelo
termo, o que, por sua vez, não pode ocorrer, uma vez que não há nada, na experiência,
que corresponda ao incognoscível (por si só). No segundo caso, foi examinada a
possibilidade de o termo “incognoscível” derivar seu significado dos conceitos
veiculados por suas partes (o termo “não” [i.e., a parte “in”] e o termo “cognoscível”).
O resultado a que chegou é que, se o termo “incognoscível” for considerado, assim, um
termo composto, então há uma contradição nele envolvida (uma vez que ambas as
partes diriam respeito a algo dado na experiência e, portanto, algo cognoscível). Dessa
forma, o resultado geral de todas estas considerações é a seguinte disjunção: “ou o signo
246
de algo absolutamente incognoscível é uma autocontradição ou este signo não tem
significado algum”. Podemos resumir o argumento geral da Q6 no seguinte esquema:
Argumento geral da Q6
Premissa1: Se o signo de algo absolutamente incognoscível tivesse algum
significado, este significado deveria ser relativo a uma concepção do
incognoscível proveniente da experiência.
Premissa2: Se o significado de tal signo fosse relativo a uma concepção do
incognoscível proveniente da experiência, então este seria um signo de algo
cognoscível.
Premissa3: Se o signo de algo absolutamente incognoscível fosse um signo de
algo cognoscível, então este signo seria uma autocontradição.
Conclusão: Ou o signo de algo absolutamente incognoscível é uma
autocontradição ou este signo não tem significado algum.
Com esta argumentação elaborada para responder a Q6, Peirce passa a sustentar a tese
de que ideia de incognoscibilidade é, na verdade, vazia, pois não há a ela
correspondente nenhuma concepção construída a partir da experiência. A existência de
algo incognoscível é uma hipótese para a qual não podem se encontrar evidências
favoráveis. Tudo "o que é" é conhecível. Depois de, na Q5, equacionar os termos
"pensamento" e "signo", nesta Q6, Peirce equaciona os termos "ser" e
"cognoscibilidade". Deve-se enfatizar que esta não é uma identidade construída
exclusivamente no campo da metafísica. Estes termos, de acordo com as palavras do
próprio autor, devem ser considerados sinônimos, ou seja, esta é uma identidade
também (e sobretudo) semântica. Estes dois termos devem possuir o mesmo significado.
Vejamos este ponto de uma perspectiva puramente extensional. De acordo com esta
identidade estabelecida por Peirce entre os termos "ser" e "cognoscibilidade", todo e
qualquer elemento que pertença ao "conjunto de tudo aquilo que é" também pertence ao
"conjunto de tudo aquilo que é passível de ser conhecido". Para Peirce, portanto, se
alguma "coisa" não pertence ao "conjunto de tudo aquilo que é passível de ser
conhecido" (e este é justamente o caso do incognoscível), então esta mesma "coisa" não
pode existir. Esta coisa "faz parte do não-ser".
247
8.2 Análise da Q7: sobre as origens
Questão 7: Se há alguma cognição que não seja determinada
por uma cognição anterior.
A sétima e última questão do QFCM é o enfrentamento de um problema que foi
posto já na quinta questão: as séries infinitas. O problema da teoria exposta não
apenas admitir, mas requerer (necessariamente) que haja uma série infinita de
cognições (que devem anteceder qualquer cognição particular) é que isso implica na
impossibilidade de haver alguma origem para as cognições (em geral), o que
obviamente contraria algumas evidências como o fato de termos a nítida e simples
impressão de que há, sim, um começo para todo e qualquer processo de pensamento.
Como a Q7 é uma pergunta acerca da existência de um ponto inicial (para a série de
cognições), Peirce, como fez nas duas últimas questões, começa por afirmar que há
evidências (“muitos fatos”) a favor de uma resposta positiva à pergunta, i.e., a favor
da suposição de que haja uma primeira cognição.
Parece que há ou que houve, pois como estamos de posse de cognições,
que são todas determinadas por cognições prévias, e estas por cognições
anteriores, então deve ter havido um primeiro termo nestas séries ou, caso
contrário, nosso estado de cognição em qualquer instante seria
completamente determinado, de acordo com leis lógicas, por nosso estado
em qualquer instante anterior. Porém, há muitos fatos contrários a esta
última suposição, e, assim, favoráveis às cognições intuitivas.
(CP 5.259 [1868])186
Tentemos reconstruir qual seria o argumento favorável à resposta positiva, ou seja, à
afirmação de que deve haver intuição, deve haver algum ponto originário na série de
signos: "Se não houvesse um ponto originário, então todo é qualquer estado de
cognição seria sempre completamente determinado por um estado anterior, o que
significaria que o processo que nos levaria a conhecer nunca começa efetivamente;
logo, o conhecimento é impossível (nesta situação em que não ponto originário)".
Aparentemente, este argumento (ao qual se refere Peirce e que tentamos reconstruir)
é do tipo transcendental (cf. análise de Prendergast, 1977, p. 302-3). Como o
conhecimento é possível, logo deve haver algum ponto originário em toda série de
signos, deve haver intuição. Este seria um argumento em favor da reposta positiva à
Q7.
A grande diferença do parágrafo inicial desta Q7 para os trechos similares nas
questões anteriores é que, na sétima questão, Peirce apenas afirma haver evidências
186
No original: "It would seem that there is or has been; for since we are in possession of cognitions,
which are all determined by previous ones, and these by cognitions earlier still, there must have been a
first in this series or else our state of cognition at any time is completely determined, according to logical
laws, by our state at any previous time. But there are many facts against the last supposition, and therefore
in favor of intuitive cognitions".
248
favoráveis à resposta positiva, mas não considera possíveis argumentos ou contra-
argumentos que sustentem ou neguem tal resposta. O motivo para isso é muito
simples: para continuar defendendo sua teoria da cognição (que se apresenta como
um corpo teórico livre do conceito de intuição187
), não há outra saída exceto afirmar
que toda cognição é determinada por uma cognição prévia. Peirce simplesmente não
considera uma resposta positiva, pois, na Q7, já não há mais bases para se
fundamentar a tese de haja uma primeira cognição. Como vimos, a última
oportunidade tinha sido descartada na Q6, quando Peirce nega que haja algo
incognoscível (que pudesse servir de objeto de um pensamento ou de um signo).
Então, qualquer tentativa de evitar a recorrência à série infinita implicaria num
retorno à intuição, o que criaria uma inconsistência interna na teoria da cognição
peirceana exposta no QFCM. Sigamos, portanto, para as análises do segundo
parágrafo desta Q7.
Por outro lado, como é impossível saber intuitivamente que uma cognição
dada não é determinada por uma cognição prévia, a única maneira de
saber disso é por uma inferência hipotética realizada a partir da
observação de fatos. Porém, apresentar uma cognição pela qual uma
cognição dada foi determinada é explicar as determinações desta cognição
[dada]. E esta é a única maneira de explicá-las. Pois algo que esteja
inteiramente fora da consciência e que se suponha ter determinado a
cognição dada pode, como tal, somente ser conhecido e somente ser
apresentado na cognição determinada em questão. Assim, supor que uma
cognição é determinada somente por algo absolutamente externo é supor
que as suas determinações não podem ser explicadas. Mas, esta é uma
hipótese que não pode ser justificada sob circunstância alguma, uma vez
que a única justificativa para uma hipótese é que ela explique os fatos, e
dizer que eles estão explicados e, ao mesmo tempo, supor que sejam
inexplicáveis é uma autocontradição.
(CP 5.260 [1868])188
O primeiro passo para que analisemos o complicado argumento que atravessa todo o
segundo parágrafo da Q7 é dividi-lo em proposições.
187
Não nos referimos às intuições de segundo tipo. 188
No original: On the other hand, since it is impossible to know intuitively that a given cognition is not
determined by a previous one, the only way in which this can be known is by hypothetic inference from
observed facts. But to adduce the cognition by which a given cognition has been determined is to explain
the determinations of that cognition. And it is the only way of explaining them. For something entirely
out of consciousness which may be supposed to determine it, can, as such, only be known and only
adduced in the determinate cognition in question. So, that to suppose that a cognition is determined solely
by something absolutely external, is to suppose its determinations incapable of explanation. Now, this is a
hypothesis which is warranted under no circumstances, inasmuch as the only possible justification for a
hypothesis is that it explains the facts, and to say that they are explained and at the same time to suppose
them inexplicable is self-contradictory.
249
Proposições do segundo parágrafo da Q7 texto original (CP 5.260 [1868])
Proposição1: é impossível saber intuitivamente que uma cognição dada não é
determinada por uma cognição prévia.
Proposição2: a única maneira de saber que uma cognição dada não é determinada
por uma cognição prévia é por uma inferência hipotética realizada a partir da
observação de fatos.
Proposição3: Apresentar uma cognição pela qual uma cognição dada foi
determinada é explicar as determinações desta cognição [dada].
Proposição4: Apresentar uma cognição pela qual uma cognição dada foi
determinada é a única maneira de explicar estas determinações.
Proposição5: Algo que esteja inteiramente fora da consciência e que se suponha
ter determinado a cognição dada pode, como tal, somente ser conhecido e somente
ser apresentado na cognição determinada em questão.
Proposição6: Supor que uma cognição é determinada somente por algo
absolutamente externo é supor que as suas determinações não podem ser
explicadas.
Proposição7: Supor que uma cognição é determinada somente por algo
absolutamente externo é uma hipótese que não pode ser justificada sob
circunstância alguma.
Proposição8: A hipótese de que uma cognição é determinada somente por algo
absolutamente externo não pode ser justificada sob circunstância alguma.
Proposição9: A única justificativa para uma hipótese é que ela explique os fatos.
Proposição10: Dizer que os fatos estão explicados e, ao mesmo tempo, supor que
sejam inexplicáveis é uma autocontradição.
Como já foi feito em outras ocasiões, teremos que dividir a argumentação elaborada por
Peirce neste segundo parágrafo da Q7 em trechos (em "sub-argumentos"). Pode-se
Notar que as linhas iniciais deste parágrafo sob análise contêm argumentos mais
simples. A argumentação desenvolvida nestas linhas é o equivalente ao que chamamos
nas análises das questões anteriores de argumento sobre a auto-evidência (da capacidade
em questão). Neste caso da Q7, o que estaria sendo questionado seria a afirmação de
que é auto-evidente a ideia que uma cognição dada não é determinada por uma cognição
prévia. Em resumo, o que Peirce pretende negar nestas primeiras linhas é que saibamos
intuitivamente que uma cognição dada não é determinada por uma cognição prévia. O
argumento peirceano pode ser expresso da seguinte forma:
250
Argumento sobre a auto-evidência da afirmação de que uma cognição dada não é
determinada por uma cognição prévia
Premissa1: Se fosse possível que soubéssemos intuitivamente que uma cognição
dada não é determinada por uma cognição prévia, então teríamos a capacidade
intuitiva de distinguir uma intuição de cognições determinadas (por outras
cognições).
Premissa2: Não temos a capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de
cognições determinadas (por outras cognições).
Conclusão: Não é possível saber intuitivamente que uma cognição dada não é
determinada por uma cognição prévia.
Exatamente como foi feito na maioria das questões anteriores, logo após ter negado que
seja auto-evidente a existência de alguma faculdade, Peirce afirma que é necessário que
se busquem evidências que nos levem a afirmar que tal faculdade exista. Neste caso, o
que está sob questionamento é como poderíamos saber que uma cognição dada não é
determinada por uma cognição prévia. Neste trecho da Q7, Peirce defende que, como
não podemos saber intuitivamente nada acerca desta questão, só nos restaria poder saber
(que uma cognição dada não é determinada por uma cognição prévia) por meio de
inferências realizadas a partir de fatos observados, i.e., evidências. Em outras palavras,
como não é auto-evidente a afirmação de que uma cognição dada não é determinada por
uma cognição prévia, devemos buscar evidências que nos levem a fazer tal afirmação.
Este raciocínio poderia ser explicitado no seguinte argumento:
Argumento sobre a necessidade em se buscar evidências para afirmação de que
uma cognição dada não é determinada por uma cognição prévia
Premissa1: Se não é possível saber intuitivamente que uma cognição dada não é
determinada por uma cognição prévia, então o único modo de saber que uma
cognição dada não é determinada por uma cognição prévia é por inferência
(hipotética) a partir de fatos observados.
Premissa2: Não é possível saber intuitivamente que uma cognição dada não é
determinada por uma cognição prévia.
Conclusão: o único modo de saber que uma cognição dada não é determinada por
uma cognição prévia é por inferência (hipotética) a partir de fatos observados.
251
Descartada a possibilidade de sabermos intuitivamente que uma cognição dada é
originária (i.e., não é determinada por alguma cognição anterior), devemos buscar
evidências que sustentem a afirmação de uma cognição dada seja originária.
Encontradas tais evidências, poderíamos, por inferência, afirmar que seria possível
encontrar um ponto de origem para a série de cognições e, assim, poderíamos responder
de forma positiva à última questão: "sim, há uma cognição que não seja determinada por
uma cognição anterior". Como sabemos, Peirce, para continuar sustentando sua teoria
da cognição, deve procurar um modo de responder à sétima questão de forma negativa:
"não, não há uma cognição que não seja determinada por uma cognição anterior". Por
este motivo, no texto, Peirce age a partir de uma estratégia argumentativa peculiar. Ao
invés de procurar por evidências que sustentem uma resposta positiva à Q7 (e contrapô-
las às evidências que sustentem a resposta negativa), Peirce apresenta a reposta positiva
como hipótese e passa analisar suas consequências. A partir de tais consequências,
afirma que a resposta positiva à Q7 seria uma proposição que não poderia ser levantada
como hipótese. Seria uma proposição que se mostra incapaz de cumprir o papel de
hipótese. Assim, ao final deste segundo parágrafo, Peirce conclui que, diante desta
sétima questão, seria a resposta negativa o único caminho possível. Porém, ao já
apresentarmos a conclusão, estamos nos adiantando demais. Analisemos o argumento
peirceano neste segundo parágrafo começando pela seguinte pergunta: como
poderíamos responder à sétima questão?
Para responder à sétima questão "se há alguma cognição que não seja determinada por
uma cognição prévia", deve-se explicar como se daria a determinação desta possível
cognição que não seria determinada por uma cognição prévia. A hipótese mais óbvia
seria que ela foi (inteiramente) determinada por algo que é uma não-cognição, i.e., algo
que, a partir de fora da consciência, determinaria uma cognição específica. Há algo que
cumpre estas condições e que recebeu, na história da filosofia, o nome técnico de
"objeto transcendental". No QFCM, Peirce o denominou simplesmente de objeto
externo. Entretanto, toda argumentação peirceana neste trecho do QFCM sustenta a
ideia de que a hipótese de que haveria um objeto externo (que seria o único responsável
pelas determinações da cognição dada) não pode ser considerada uma maneira válida de
explicar as determinações da cognição dada. Assim, afirma Peirce, a única forma válida
de explicar as determinações de uma cognição dada é apresentar alguma (outra)
cognição que teria determinado a cognição dada. Como este ponto é fundamentado no
texto é o que passaremos a analisar. Tentemos, então, explicitar o argumento peirceano.
Conforme já antecipamos, para poder descartar a hipótese relativa ao objeto externo,
Peirce afirma que ela seria inválida, pois tornaria inexplicável justamente aquilo que
pretende explicar, ou seja, seria uma proposição que se anularia enquanto hipótese. Para
estabelecer que esta hipótese consiste numa autocontradição, o ponto de partida é
afirmação da proposição5 no texto original. Neste trecho, Peirce pretende chamar
atenção para o fato de a hipótese da determinação pelo objeto externo ser muito
peculiar, pois ela é uma ideia que diz respeito a um objeto ao qual só podemos chegar a
partir daquela cognição cujas determinações pretendíamos explicar. É essencial para o
252
argumento peirceano que o seguinte ponto esteja estabelecido: como não há nenhum
outro acesso possível ao objeto "criado" pela hipótese, então nada podemos saber deste
objeto (exceto que ele é produto de uma suposição feita para explicar as determinações
de uma cognição específica). É justamente esta ausência de acesso independente que
Peirce irá utilizar para concluir que, com esta hipótese, tornamo-nos incapazes de
explicar o fato que pretendíamos explicar: as determinações da cognição dada. O
problema é que, no texto, Peirce faz esta passagem de uma forma tão breve que ela nos
parece injustificável do ponto de vista lógico. De acordo com a numeração que estamos
utilizando, tal passagem é feita da proposição5 à proposição6.
Da proposição5
“algo que esteja inteiramente fora da consciência e que se suponha ter
determinado a cognição dada pode, como tal, somente ser conhecido e
somente ser apresentado na cognição determinada em questão” (CP 5.260
[1868]).
Peirce passa direto para a seguinte equivalência (proposição6)
"supor que uma cognição é determinada somente por algo absolutamente
externo é supor que as suas determinações não podem ser explicadas" (CP
5.260 [1868])
Não há sombra de dúvidas que estão implícitos neste raciocínio uma série de passos
intermediários. Tentemos explicitá-los para que possamos avaliar, como um todo, o
argumento de Peirce para descartar a hipótese da determinação pelo objeto
(absolutamente) externo. O ponto de partida para este argumento é, como vimos, a
afirmação de que o objeto absolutamente externo (que supomos, por hipótese, existir) só
pode ser acessado ou conhecido a partir do fato que ele pretende explicar (a
determinação da cognição dada). Neste caso, não haveria acesso independente ao objeto
que supomos existir, pois o único "testemunho" que teríamos deste objeto externo seria
a cognição (dada) cujas determinações pretendemos explicar (com a introdução, por
hipótese, da existência deste mesmo objeto). O que Peirce sustenta é que, de tal objeto
externo, nada sabemos exceto que ele é algo introduzido (por hipótese) para explicar um
fato. E não podemos saber mais nada a respeito deste objeto (não podemos ter um
acesso independente a ele), porque, por definição, ele é algo inacessível, algo que está
fora da consciência. Como não temos outro acesso a este objeto, então uma das
conclusões mais evidentes é que não podemos saber nada a respeito do efeito que ele
tem na cognição dada, ou seja, como não sabemos o que é este objeto externo, não é
possível explicar sua influência sob a cognição dada. Assim, as determinações que
pretendíamos explicar com tal hipótese se tornam inexplicáveis justamente porque, pela
hipótese, não é possível saber como ocorrem as determinações em questão. Logo, a
partir do momento que elegemos um objeto externo para explicar a origem de uma
cognição dada, tornamos inexplicáveis as determinações desta cognição por este objeto.
253
Argumento para o estabelecimento da proposição6
Premissa1: Se supuséssemos que há algo absoltamente externo (algo que estaria
inteiramente fora da consciência) que teria determinado a cognição dada, então
suporíamos a existência de um objeto do qual só teríamos conhecimento pela
cognição dada.
Premissa2: Se supuséssemos a existência de um objeto do qual só tivéssemos
conhecimento pela cognição dada, então nada saberíamos deste objeto além do
fato de (tal objeto) ser algo cuja existência foi proposta como hipótese para
explicar a determinação daquela cognição dada.
Premissa3: Se nada soubéssemos deste objeto além do fato de (tal objeto) ser algo
cuja existência foi proposta como hipótese para explicar a determinação daquela
cognição dada, então não podemos saber (em particular) como este objeto teria
determinado a cognição dada.
Premissa4: Se não podemos saber (em particular) como este objeto teria
determinado a cognição dada, as determinações desta cognição (dada) não
poderiam ser explicadas de modo algum (por esta hipótese).
Conclusão: Se supuséssemos que há algo absoltamente externo (algo que estaria
inteiramente fora da consciência) que teria determinado a cognição dada, então as
determinações desta cognição (dada) não poderiam ser explicadas de modo algum
(por esta hipótese).
Assim, acreditamos ter explicitado a série de passos lógicos subsumidos entre a
proposição5 e a propsoição6 do texto original. Estabelecido este ponto, Peirce passa
imediatamente à argumentação de que uma hipótese dessas não poderia ser considerada
válida. E assim chegamos ao trecho final deste segundo parágrafo da Q7 (CP 5.260
[1868]). Antes de analisarmos o motivo pelo qual a hipótese do objeto externo deveria
ser considerada inválida, apresentemos toda esta questão dentro de uma forma
esquemática. O fato que a hipótese veio para explicar é a determinação de uma cognição
dada. Então, considere duas proposições. Uma delas se refere ao fato (a ser explicado
pela hipótese) e a outra é a própria hipótese.
Raciocínio hipotético do parágrafo CP 5.260 [1868]
Proposição q --> "Há uma cognição (que foi determinada por algo)"
(fato a ser explicado)
Proposição p --> "Há um objeto externo (que determina a cognição dada)”
(hipótese)
254
Note que segunda proposição é utilizada para explicar a primeira proposição. E esta
hipótese pode ser colocada da seguinte forma: "Há uma cognição (dada), porque há um
objeto externo que a determinou". A mesma ideia pode ainda ser apresentada na forma de
um condicional: “se houvesse um objeto externo, então isso explicaria a existência e as
determinações desta cognição (dada)”. Vejamos, então, por qual motivo Peirce afirma que
esta proposição p não pode ser considerada uma hipótese válida para explicar o fato descrito
na proposição q.
O problema levantado por Peirce ao final do parágrafo transcrito acima (CP 5.260 [1868])
seria exatamente o fato de se ter recorrido a algo inexplicável para explicar alguma coisa.
De acordo com o filósofo, a única justificativa que temos para introduzir uma hipótese é
que ela possa explicar os fatos. Entretanto, se o fato a ser explicado é justamente a
determinação da cognição (dada) por algo (ou uma cognição anterior ou um objeto externo,
por exemplo), então, ao lançar a hipótese de que o único responsável por tal determinação
seria um objeto externo, esta hipótese acaba por explicar que, embora haja uma
determinação da cognição pelo objeto externo, esta determinação não pode ser explicada.
Logo, o que se pretendia explicar foi, graças à hipótese, declarado inexplicável. A crítica é
que, neste caso, a explicação consistiria justamente em afirmar que não há explicação.
No texto original, mais uma vez, a argumentação de Peirce é breve e fragmentária. Para
sustentar a afirmação de que a hipótese relativa ao objeto externo deve ser considerada
inválida (o que foi feito, de acordo com o sistema de numeração que viemos utilizando em
nossas análises, na proposição10), Peirce se apoia na argumentação anterior189
que concluiu
que, se fosse levantada a hipótese relativa ao objeto externo, então as determinações da
cognição (dada) não poderiam ser explicadas de modo algum e também se apoia em duas
outras premissas: a proposição8 e a proposição9.
A partir da proposição6 propriamente dita ou da conclusão do argumento para o
estabelecimento da proposição6:
Se supuséssemos que há algo absoltamente externo (algo que estaria inteiramente
fora da consciência) que teria determinado a cognição dada, então as
determinações desta cognição (dada) não poderiam ser explicadas de modo algum.
em conjunção com a Proposição8
A hipótese de que uma cognição é determinada somente por algo
absolutamente externo não pode ser justificada sob circunstância alguma.
em conjunção com a Proposição9,
A única justificativa para uma hipótese é que ela explique os fatos.
Peirce conclui a proposição10:
Dizer que os fatos estão explicados e, ao mesmo tempo, supor que sejam
inexplicáveis é uma autocontradição.
189
O argumento para o estabelecimento da proposição6.
255
Para que sejamos exatos, a expressão "hipótese inválida" não foi utilizada no texto
original. A conclusão que leva Peirce a rejeitar a hipótese é que ela seria
autocontraditória e, por isso, consideramos que seria uma hipótese inválida. A seguir,
expomos dois argumentos que acreditamos serem capazes de sustentar a afirmação de
que a hipótese analisada é inválida (porque autocontraditória). Como veremos, estes
dois argumentos podem ser considerados explicitações do raciocínio desenvolvido neste
trecho do parágrafo 260. A diferença entre os dois é a interpretação que se dá à
(chamada) proposição6.
Argumento para a invalidade da hipótese (primeira versão)
Premissa1: Se uma proposição pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese,
então esta proposição deve ser capaz de explicar os fatos sob investigação.
Premissa2: Se uma proposição afirma não haver explicação para os fatos sob
investigação, então esta proposição (obviamente) não é capaz de explicar os fatos
sob investigação.
Premissa3: A proposição p afirma que não há explicação para os fatos sob
investigação.
Premissa4: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese.
Conclusão: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese e a proposição
p não pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese.
(contradição)
A explicitação da argumentação apresentada acima depende que interpretemos a
proposição6190
como uma afirmação de uma equivalência. De acordo com esta
interpretação, a afirmação de que "uma cognição é determinada somente por algo
absolutamente externo" (que é, na verdade, a hipótese) é equivalente à afirmação de que
"as determinações (da cognição pelo objeto) não podem ser explicadas". É esta
interpretação que nos permite introduzir no argumento explicitado a terceira premissa.
Outra interpretação consistiria em entender que estas afirmações não são (exatamente)
equivalentes, porém a segunda se segue da primeira, ou seja, quando afirmássemos que
"uma cognição é determinada somente por algo absolutamente externo" (que seria a
hipótese), então poderíamos concluir que "as determinações (da cognição pelo objeto)
não podem ser explicadas". Para esta segunda interpretação da porposição6, teríamos
190
No texto original, o que denominamos de proposição6 afirmava o seguinte: "supor que uma cognição é
determinada somente por algo absolutamente externo é supor que as suas determinações não podem ser
explicadas" (CP 5.260 [1868]).
256
que modificar a segunda e a terceira premissas do argumento para a invalidade da
hipótese.
Argumento para a invalidade da hipótese (segunda versão)
Premissa1: Se uma proposição pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese,
então esta proposição deve ser capaz de explicar os fatos sob investigação.
Premissa2.1: Se uma proposição afirma não haver explicação para os fatos sob
investigação ou se tal proposição tiver como consequência a afirmação de que não
há explicação para os fatos sob investigação, então esta proposição (obviamente)
não é capaz de explicar os fatos sob investigação.
Premissa3.1: A proposição p afirma algo cuja consequência seria a afirmação de
que não há explicação para os fatos sob investigação".
Premissa4: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese.
Conclusão: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese e a proposição
p não pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese.
(contradição)
Portanto, a conclusão deste trecho da argumentação é que a hipótese (relativa ao objeto
externo) consiste numa autocontradição. Este ponto é afirmado na proposição10, a última
do parágrafo 260. Entretanto, a conclusão final de Peirce não está no término, mas bem no
meio deste parágrafo. A conclusão final é a proposição4: "Apresentar uma cognição pela
qual uma cognição dada foi determinada é a única maneira de explicar estas
determinações" (CP 5.260 [1868]). E o argumento para sustentá-la pode ser o que segue:
Argumento sobre a inviabilidade da hipótese de que haja um objeto externo que
seria o único responsável pelas determinações de uma cognição (dada)
Premissa1: Se (para explicar as determinações da cognição dada) não podemos
contar com a hipótese de que haja um objeto externo que seria o único
responsável pelas determinações da cognição (dada), então a única maneira de
explicar tais determinações é apresentar uma (outra) cognição anterior que
determinaria a cognição dada.
Premissa2: não podemos contar com a hipótese de que haja um objeto externo que
seria o único responsável pelas determinações da cognição (dada)
Conclusão: a única maneira de explicar tais determinações é apresentar uma
(outra) cognição anterior que determinaria a cognição dada.
257
O "pulo do gato" da argumentação de Peirce neste trecho foi a invalidação da hipótese
que constitui uma resposta positiva à Q7. Mas, para invalidar esta hipótese de que haja
um objeto externo que seria o único responsável pelas determinações de uma cognição
(dada), podemos supor que Peirce parece ter confiado em qualquer um dos seguintes
recursos: ou ele considerou a proposição que estabelece esta hipótese uma
autocontradição (em decorrência da própria definição de hipótese) ou ele recorreu a uma
espécie de princípio metateórico (para poder declará-la inválida). No primeiro caso,
Peirce teria invalidado tal hipótese por conta de uma autocontradição, que, neste caso,
poderia ser encontrada na própria definição do que é uma hipótese (movimento
semelhante parece ter ocorrido quando considerou autocontraditório a ideia de
"pensamento que não poderia ser conhecido" esta é o que denominamos quinta
proposição do segundo parágrafo da Q5 CP 5.251 [1868]). No segundo caso, Peirce
teria invalidado a hipótese ao recorrer a um princípio metateórico, ou seja, um princípio
que só poderia ser estabelecido numa teoria sobre teorias. Neste segundo caso, notemos
que a hipótese em questão só teria sido considerada inválida por não cumprir uma
condição básica que, de acordo com Peirce, deve cumprir toda e qualquer ideia que
queira se candidatar ao posto de hipótese. Esta condição pode ser expressa da seguinte
forma: "toda hipótese deve ser capaz de explicar aquilo que se propõe explicar
excluindo a possibilidade de afirmar que não há explicação para aquilo que se pretende
explicar". Note que, segundo tal princípio, qualquer proposição pode ser apresentada
(dentro de um corpo teórico) como hipótese (para explicar alguma outra proposição)
exceto aquela proposição que afirma não haver explicação (para o que se pretende
explicar).
De acordo com esta leitura, o que Peirce estaria afirmando, então, é que a hipótese em
questão é inválida não porque os fatos a contradisseram, mas porque ela simplesmente
não pode ocupar o lugar de hipótese dentro de um corpo teórico. E deve-se enfatizar que
ela não pode ocupar tal lugar justamente em decorrência do "conteúdo" do que afirma.
Por exemplo, a hipótese geocêntrica (ptolomaica) foi descartada com base no fato de os
dados empíricos a terem negado. No caso da argumentação peirceana, a hipótese
relativa ao objeto externo não foi descartada por ter sido "contrariada" pelos fatos, mas
por ter sido entendida como uma proposição que afirmava não haver explicação
possível para o fenômeno que pretendia explicar. Ela nem sequer pode ser alçada à
posição de hipótese. Portanto, em resumo, a ideia de Peirce é que uma proposição que
afirme não haver explicação possível para o fenômeno que pretendia explicar é uma
proposição que não pode ser apresentada como hipótese por descumprir aquilo princípio
metateóretico anunciado acima. Antes de nos encaminharmos para a análise do terceiro
parágrafo da Q7, desenvolvamos um exemplo do que seria uma proposição que não
poderia ser considerada hipótese pelo fato de declarar inexplicável o que pretende
explicar.
Trabalhemos com o seguinte exemplo: suponha que entremos num ambiente de trabalho
e notemos que as pessoas possuem caixas de lenços descartáveis em suas mesas. Numa
258
situação dessas, não seria estranho que a primeira hipótese que nos viria à cabeça seria a
de que estas mesmas pessoas estariam resfriadas. Ora, esta hipótese pode ser
representada pelo seguinte condicional:
“se estas pessoas estivessem resfriadas, então isso explicaria o fato destas pessoas
terem caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas”.
O que este condicional nos afirma é que, em toda situação que as pessoas estão
resfriadas, são situações em que essas pessoas também colocam em suas mesas caixas
de lenços (descartáveis). Neste condicional, a ideia de “estar resfriado” está sempre
associada à ideia de “ter caixas de lenços [...]” e é por este exato motivo que a primeira
ideia serve de hipótese para explicar a segunda ideia. Entretanto, note que a primeira
ideia (“estar resfriado”) é independente da segunda (“ter caixas de lenços [...]”).
Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas
mesas" (fato a ser explicado)
Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (hipótese)
Portanto, podemos resumir o levantamento desta hipótese ou esta tentativa de
explicação do fenômeno anômalo (os lenços em todas as mesas) com a seguinte frase:
"todas estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas, porque elas
estão resfriadas". Note que esta última parte ( "[as pessoas] estão resfriadas") é uma
hipótese não só porque acreditamos ser capaz de explicar a primeira parte como também
é dela independente.
Vejamos, então, uma segunda situação, um pouco diferente justamente por haver aquela
independência. Diante do fato a ser explicado, no lugar de supor que tais pessoas
estariam resfriadas, poderíamos lançar a seguinte "hipótese": “estas pessoas têm caixas
de lenços (descartáveis) em suas mesas, porque elas têm 'sudariumensaeose' ”. Se nos
fosse perguntado o que seria esta “sudariumensaeose”, responderíamos que é uma
condição que explicaria o porquê de pessoas terem lenços em suas mesas. Porém, se
insistissem e nos fosse perguntado no que consistiria exatamente esta condição,
responderíamos que nada sabemos a respeito da “sudariumensaeose” somente que ela é
a causa que determina o fato de as pessoas terem lenços em suas mesas. Ora, se apenas
o que sabemos desta tal “sudariumensaeose” é que ela serve para explicar o fato (de as
pessoas terem lenços em suas mesas), então esta condição não pode ser separada deste
fato. Não há um acesso independente a esta condição.
Portanto, esta hipótese explica o fato afirmando que o fato foi determinado por algo que
supomos existir toda vez que o fato existir. Ora, se o fato é determinado por algo ao
259
qual não se pode ter acesso, então o que esta hipótese faz é explicar o fato afirmando
que ele não possui explicação.
No terceiro parágrafo (CP 5.261 [1868]), Peirce volta a tratar daquele que seria a mais
forte candidata à cognição originária, primeira: os julgamentos da percepção. Afirmar,
por exemplo, que o peculiar caráter do vermelho não é determinado por nenhuma
cognição prévia é obviamente uma objeção à tese defendida por Peirce no parágrafo
anterior. Neste ponto do texto, para argumentar contra esta objeção, é apresentada uma
distinção. De acordo com Peirce, o caráter do vermelho como cognição é diferente do
caráter do vermelho como tal. Se, por um lado, o primeiro (como é uma cognição) é
sempre determinado por uma cognição anterior, por outro lado, do segundo (que é o
caráter em si) pode-se afirmar que não seja determinada por alguma cognição prévia. A
diferença é entre a ideia que se tem da cor vermelha e a própria cor (a qualidade de)
vermelho. Como base para esta distinção, Peirce apresenta um exemplo.
Caso seja feita a objeção segundo a qual o caráter peculiar do vermelho não é
determinado por nenhuma cognição anterior, replico que este caráter não é o
caráter do vermelho como uma cognição, pois se houvesse um homem para o
qual as coisas vermelhas parecessem com aquelas coisas que, para mim, são
azuis e vice-versa, então os olhos daquele homem ensinam a ele os mesmos
fatos que ensinariam caso ele fosse como eu.
(CP 5.261 [1868])191
Antes de analisarmos o exemplo peirceano e sua função de premissa (ou justificativa)
para a afirmação de que o caráter do vermelho, entendido como uma cognição, deve
sempre ser determinado por cognições anteriores, vejamos que Peirce já tinha lidado
antecipadamente com esta objeção acima transcrita. Neste ponto do QFCM é possível
que Peirce esteja retomando a argumentação desenvolvida na segunda parte da Q1 (do
CP 5.219 até CP 5.224). Naquela parte do início do QFCM, o foco era defender a tese
que nem mesmo o conhecimento que obtemos a partir dos dados sensórios pode ser
considerado intuitivo, direto e, por isso, indubitável. Até mesmo este conhecimento é
inferencial e hipotético. Ao olhar para um objeto e classificá-lo como algo de cor
vermelha, uma pessoa deve necessariamente recorrer a cognições anteriores de objetos
vermelhos. O julgamento da percepção "este objeto é vermelho" depende da capacidade
desta pessoa em abstrair e comparar este caráter de vermelho presente no objeto diante
do qual ela está com o caráter vermelho presente em outros objetos observados
anteriormente (cf. interpretação e Gallie, 1966, p. 67-8). Mesmo na primeira ocasião em
que classificou algum objeto como vermelho, tal pessoa já deveria ter em mente alguma
descrição do que seria um objeto vermelho (caso contrário, não haveria como realizar
esta primeira classificação). O importante a ser notado neste trecho é que toda as vezes
em que classificamos algum objeto como algo que pertence a uma classe (por exemplo,
a classe dos objetos de cor vermelha), recorremos, de alguma forma, a dados obtidos em
191
No original: "If it be objected that the peculiar character of red is not determined by any previous
cognition, I reply that that character is not a character of red as a cognition; for if there be a man to whom
red things look as blue ones do to me and vice versa, that man's eyes teach him the same facts that they
would if he were like me."
260
momentos anteriores. Como tudo que podemos conhecer depende de um sistema de
classificação, depende de inferências realizadas a partir de dados já obtidos, então todo
o nosso conhecimento é hipotético. Não pode haver conhecimento absoluto. Todo nosso
conhecimento é relativo a um sistema de referências. Vamos ao exemplo fornecido por
Peirce no trecho acima transcrito.
Suponha que exista um indivíduo a para o qual os objetos vermelhos parecessem azuis e
que também exista um segundo indivíduo b para o qual os objetos azuis parecessem
vermelhos. Quando o indivíduo a visse um objeto vermelho, ele iria classificá-lo como
um objeto azul, pois, dentro de seu sistema de referência, aquelas características que ele
enxerga no objeto naquele momento (por exemplo, determinado padrão perceptivo que
se supõem serem ocasionadas por certo comprimento de onda dentro do espectro
eletromagnético) são similares às características de outros objetos que outrora foram
classificados como pertencentes à classe de objetos azuis. Então, por meio de uma
inferência hipotética, tal indivíduo considera aquele objeto como algo azul. Por sua vez,
o outro indivíduo (b), se estivesse diante deste mesmo objeto vermelho, iria classificá-lo
como um objeto vermelho. Afinal, dentro do sistema de referência, aquelas
características que ele enxerga no objeto naquele momento seriam devidas ao mesmo
padrão perceptivo enxergado pelo indivíduo b. Supõe-se que este seria o mesmo padrão
perceptivo para os dois indivíduos, porque se supõe que este padrão seria ocasionado
pelo mesmo comprimento de onda dentro do espectro eletromagnético. Então, para o
indivíduo b , o objeto vermelho percebido teria características similares às
características de outros objetos que outrora foram classificados como pertencentes à
classe de objetos vermelhos. Se por um lado, o indivíduo a enxerga como azul objetos
vermelhos, por outro lado, o indivíduo b enxerga como vermelho objetos azuis. A
afirmação de Peirce neste trecho (CP 5.261 [1868]) é, apesar destas diferenças
classificatórias, os olhos destes dois indivíduos os ensinariam os mesmos fatos.
Desenvolvamos este exemplo ainda mais para que possamos esclarecer esta afirmação
de Peirce.
Suponha que no mundo onde vivem estes dois indivíduos haja uma doença que se
chama "cegueira vermelha" e que seria a privação do sentido da visão provocada pela
observação acumulada de objetos vermelhos. As pessoas deste mundo, se
permanecessem tempo demais olhando para objetos vermelhos, acabariam ficando
cegas, pois o comprimento de onda relativo ao vermelho provocaria danos às células
fotorreceptoras. Este efeito danoso causado por objetos de cor vermelha só poderia ser
revertido pela observação de objetos de cor azul. Neste mundo imaginado, todas as
vezes que as pessoas tivessem que olhar para objetos de cor vermelha durante um tempo
muito prolongado, elas eram orientadas a se curar dos danos causados por tais
observações voltando os olhos para objetos azuis. Note que tanto o indivíduo a como o
indivíduo b evitariam olhar os mesmos objetos e também "recuperariam a saúde" dos
olhos observando os mesmos objetos. A diferença é que tais objetos seriam classificados
por estes dois indivíduos de forma distinta. A única diferença é que, para o indivíduo a,
os objetos que deveriam ser evitados lhe apareceriam como azuis e os que lhe serviriam
261
para curar os olhos lhe apareceriam como vermelhos. O comportamento desses
indivíduos neste mundo seria muito semelhante, apesar desta diferença no momento de
classificar os objetos (com relação à cor). A experiência ensinaria as estes homens os
mesmos fatos192
.
O quarto parágrafo da Q7 (CP 5.262 [1868]) pode ser considerado uma espécie de
reprodução em pequena escala de todo o QFCM, algo como uma síntese das linhas
argumentativas elaboradas por Peirce ao longo de todo o artigo. Neste parágrafo, como
no QFCM em geral, há uma linha argumentativa destinada a estabelecer que as teorias
epistemológicas que recorram à hipotética faculdade cognitiva da intuição devem
resultar nalguma contradição e também há uma segunda linha argumentativa destinada a
estabelecer que uma teoria epistemológica deveria, então, recorrer somente a faculdades
cognitivas cujas existências não seriam questionadas. Para fins de análise, dividiremos
este quarto parágrafo da Q7 em duas partes. A primeira delas (relativa àquela primeira
linha argumentativa) vai do início do parágrafo até o trecho " (...) um evento que ocupa
tempo nenhum". A segunda parte começa onde termina a primeira parte e vai até o
trecho final do parágrafo " (...) só existe na medida em que é conhecida".
Além disso, não conhecemos nenhuma capacidade que nos permitisse
conhecer uma intuição. Pois, enquanto uma cognição está começando e,
portanto, está num estado de mudança, apenas no primeiro instante ela seria
uma cognição. E, portanto, a apreensão dela deve ocorrer em tempo nenhum
e ser um evento que ocupa tempo nenhum. Além disso, todas as faculdades
cognitivas que conhecemos são relativas, e consequentemente o produto
delas são relações. Porém, a cognição de uma relação é determinada por
cognições prévias. Então, nenhuma cognição que não seja determinada por
uma cognição prévia pode ser conhecida. Ela não existe, porque, em primeiro
lugar, ela é absolutamente incognoscível e, em segundo lugar, uma cognição
só existe na medida em que é conhecida.
(CP 5.262 [1868])193
No início deste quarto parágrafo da Q7, Peirce volta a afirmar a tese inicial do QFCM,
que é a resposta negativa à primeira questão: "Não há capacidade intuitiva de distinguir
intuições". Entretanto, para sustentar, desta vez, que não haveria nenhuma capacidade
que nos permitisse conhecer uma intuição Peirce apresentou um argumento distinto
daquele desenvolvido na Q1. Neste trecho da Q7, o filósofo optou por sustentar a
conclusão em premissas referentes a uma espécie de aspecto temporal da questão. O
raciocínio, neste caso, é que, se admitíssemos a existência de alguma capacidade de se
conhecer cognições como intuições, então teríamos que admitir que haveria um evento
(que seria a apreensão de tais cognições intuitivas) que não ocuparia tempo algum.
192
Buchler também desenvolveu uma interpretação para este exemplo (cf. BUCHLER, 1937, p. 9 -10) 193
No original: "Moreover, we know of no power by which an intuition could be known. For, as the
cognition is beginning, and therefore in a state of change, at only the first instant would it be intuition.
And, therefore, the apprehension of it must take place in no time and be an event occupying no time.^P1
Besides, all the cognitive faculties we know of are relative, and consequently their products are relations.
But the cognition of a relation is determined by previous cognitions. No cognition not determined by a
previous cognition, then, can be known. It does not exist, then, first, because it is absolutely incognizable,
and second, because a cognition only exists so far as it is known".
262
Como não seria possível que houvesse um evento desses, então não podemos admitir
que exista alguma capacidade de se conhecer cognições intuitivas. A seguir
apresentamos uma tentativa de reconstrução do argumento peirceano utilizado neste
trecho. Desnecessário lembrar que o argumento a seguir é uma tentativa de explicitação,
o que significa que parte do que aparece nele está apenas (acreditamos) implícito no
texto. A quarta premissa, embora seja um ponto essencial para se derivar a conclusão,
no texto original, está implícita.
Argumento sobre a capacidade de reconhecimento de uma intuição
Premissa1: Se houvesse alguma capacidade que nos permitisse conhecer uma
cognição como intuitiva, como intuição, então tal cognição apenas seria uma
intuição no primeiro instante em que estivesse sendo apreendida.
Premissa2: Se tal cognição apenas fosse uma intuição no primeiro instante em que
estivesse sendo apreendida, então a apreensão desta cognição como intuição
deveria ser um evento que ocorreria sem ocupar tempo algum.
Premissa3: Se a apreensão desta cognição como intuição fosse um evento que
ocorresse sem ocupar tempo algum, então deveria ser possível haver um evento
que ocorresse sem ocupar tempo algum.
Premissa4: Não é possível haver um evento que ocorresse sem ocupar tempo
algum.
Conclusão: Não há nenhuma capacidade que nos permita conhecer uma cognição
como intuitiva.
Devemos chamar a atenção para um fato curioso: este raciocínio (acima explicitado)
não parece ter um papel decisivo dentro dos argumentos da Q7, pois o que foi por ele
estabelecido já tinha sido sustentado por outro argumento durante a Q1. Uma das
conclusões intermediárias deste raciocínio (acima apresentado) é que "se houvesse
alguma capacidade que nos permitisse conhecer uma cognição como intuitiva, então a
apreensão desta cognição como intuição deveria ser um evento que ocorreria sem
ocupar tempo algum". Entretanto, saber que, neste caso, deveria haver um evento que
ocorreria sem ocupar tempo algum não responde de forma negativa à sétima questão
(que é o objetivo de Peirce a esta altura do QFCM). Numa nota-de-rodapé Peirce
reconhece que este argumento cobre apenas parte da sétima questão, pois, a partir dele,
podemos concluir que não deve haver alguma capacidade que nos permita conhecer
uma cognição como intuitiva, mas não se pode concluir que não haja nenhuma cognição
que não seja determinada por algo semelhante (i.e., por outra cognição).
263
Durante o resto deste quarto parágrafo da Q7 (CP 5.262 [1868]), Peirce se dedica a
construir um argumento para cobrir a "outra parte da sétima questão". Como vimos, o
argumento da primeira parte deste parágrafo não pode sustentar a ideia de que não haja
nenhuma cognição que não seja determinada por outra cognição. Esta ideia está
justamente no foco do argumento que passamos a analisar. Nesta segunda metade do
parágrafo, Peirce nos apresenta três proposições para concluir que "nenhuma cognição
que não seja determinada por uma cognição prévia pode ser conhecida" (CP 5.262
[1868]).
Proposições da segunda parte do quarto parágrafo texto original (CP 5.262
[1868])
Proposição_1: Todas as faculdades cognitivas que conhecemos são relativas.
Proposição_2: O produto de faculdades (cognitivas) relativas são relações.
Proposição_3: A cognição de uma relação é sempre determinada por cognições
anteriores.
Proposição_4 (conclusão): Nenhuma cognição que não seja determinada por uma
cognição prévia pode ser conhecida.
Enxergar como é possível estabelecer esta última proposição como conclusão a partir
das afirmações anteriores não é uma tarefa muito difícil. Para que explicitemos o
argumento relativo a este trecho, podemos recorrer ao seguinte expediente: combinemos
estas três primeiras proposições em duas proposições condicionais.
Proposições condicionais obtidas a partir de proposições da segunda parte do
quarto parágrafo texto original (CP 5.262 [1868])
Proposição condicional_1 (obtida a partir da combinação da Proposição_1 e da
Proposição_2): Se todas as faculdades cognitivas conhecidas são relativas e o
produto de faculdades (cognitivas) relativas são sempre relações, então tudo que
podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas conhecidas) são relações.
Proposição condicional_2 (obtida a partir da combinação da Proposição_2 e da
Proposição_3): Se tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas
conhecidas) são relações e a cognição de uma relação é sempre determinada por
cognições anteriores, então tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades
cognitivas conhecidas) é sempre determinado por cognições anteriores.
264
Utilizado este expediente, já podemos explicitar o argumento que tem como conclusão a
afirmação de que "nenhuma cognição que não seja determinada por uma cognição
prévia pode ser conhecida" (Proposição_4 acima). Para isso, basta que identifiquemos a
Proposição_1 do texto original como a primeira premissa de tal argumento e
apresentemos a Proposição condicional_1 e a Proposição condicional_2
respectivamente como a segunda e terceira premissas.
Argumento sobre o domínio do conhecimento
Premissa1: Todas as faculdades cognitivas conhecidas são relativas
Premissa2: Se todas as faculdades cognitivas conhecidas são relativas e o produto
de faculdades (cognitivas) relativas são sempre relações, então tudo que podemos
conhecer (graças a faculdades cognitivas conhecidas) são relações.
Premissa3: Se tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas
conhecidas) são relações e a cognição de uma relação é sempre determinada por
cognições anteriores, então tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades
cognitivas conhecidas) é sempre determinado por cognições anteriores.
Conclusão: Tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas
conhecidas) é sempre determinado por cognições anteriores.
Esta conclusão é obviamente equivalente à proposição "nenhuma cognição que não seja
determinada por uma cognição prévia pode ser conhecida" (CP 5.262 [1868]). Esta é uma
resposta negativa à sétima questão, portanto. Estabelecida esta tese, Peirce volta a afirmar
que admitir que haja alguma cognição que não fosse determinada por uma anterior seria
admitir a existência de uma cognição incognoscível, o que não pode ser feito. Neste ponto
da Q7, Peirce recorre a uma premissa utilizada na Q5 (todo pensamento é conhecível ou
cognoscível) e outra apresentada na Q6 (o incognoscível não existe). O argumento
peirceano neste último trecho do quarto parágrafo da Q7 é o seguinte:
Argumento sobre a inexistência de uma cognição originária
Premissa1: Se houvesse alguma cognição que não fosse determinada por uma
cognição anterior, então tal cognição (não-determinada) seria absolutamente
incognoscível.
Premissa2: Não pode haver alguma cognição que seja absolutamente
incognoscível (porque uma cognição só existe na medida em que é conhecida).
Conclusão: Não existe nenhuma cognição que não seja determinada por uma
cognição anterior.
265
Peirce abre a sétima questão afirmando haver evidências favoráveis a uma resposta
positiva. Uma argumentação possível é que deve haver alguma cognição que não seja
determinada por nenhuma cognição anterior, pois, caso contrário, o processo de
conhecimento não se efetivaria nunca já que não haveria um início. Esta argumentação
que apresentamos corre em paralelo ao argumento que leva ao paradoxo de Zenão.
Assim, de acordo com este argumento, a obtenção de conhecimento seria uma ilusão da
mesma forma que o movimento o é de acordo com o paradoxo de Zenão194
.
Como vimos, no início da Q7, o filósofo norte-americano não apresentou nenhum
argumento destinado a desmontar alguma argumentação em favor desta resposta
positiva. Na verdade, Peirce vem postergando uma refutação definitiva a esta resposta
positiva desde o início da Q5. No último parágrafo da Q7, Peirce opta por construir um
argumento cuja base é uma analogia entre pensamento e continuidade. No início deste
parágrafo, lemos:
A resposta ao argumento favorável à ideia de que deve haver um primeiro
elemento é a seguinte: ao retraçarmos nosso caminho das conclusões em
direção às premissas, ou das cognições determinadas em direção àquelas que
as determinaram, nós acabamos por atingir, em todos os casos, um ponto
além do qual a consciência na cognição determinada é mais vívida do que a
consciência numa cognição que a determine.
(CP 5.264 [1868])195
Então, no trecho que vem logo em seguida, Peirce solicita que imaginemos que um
triângulo invertido seja vagarosamente mergulhado na água e nos pede para supor que
cada uma das linhas que a superfície da água vai formar no triângulo (em cada instante
deste mergulho) seja considerada uma cognição. Por exemplo, no instante t, a superfície
da água deve formar uma linha que, ao atravessar o triângulo, deve obviamente estar
localizada a alguma altura do triângulo. Logo em seguida, no instante t+1, a superfície
da água deve formar uma linha que se localiza a uma altura maior ainda no triângulo.
194
Este paradoxo também é conhecido como "paradoxo de Aquiles e da tartaruga". Os argumentos do
filósofo (pré-socrático) Zenão de Eleia relativos ao paradoxo de "Aquiles e da Tartaruga" foram
desenvolvidos para provar a tese de que o movimento é ilusório. Na historieta atribuída a Zenão, Aquiles
é convocado para disputar uma corrida contra uma tartaruga e, por ser muito mais rápido, o herói grego
deixa que o vagaroso quelônio comece na frente. Zenão então nos apresenta a ideia que, para Aquiles
ultrapassar a tartaruga, ele deve (antes) percorrer metade do caminho que os separa. Entretanto, antes
disso, ele deve percorrer metade da metade do caminho que os separa. E antes disso ainda, ele deve
percorrer metade da metade da metade do caminho que os separa. E, assim infinitamente, pois, de acordo
com Zenão, o espaço a ser percorrido por Aquiles pode ser infinitamente partido em pedaços cada vez
menores (mas que são sempre maiores que o nada). Assim, conclui Zenão, como deve percorrer um
número infinito de espaços, Aquiles, na verdade, nunca sai do lugar. A ideia do filósofo eleata é que, se
para sairmos de um ponto (qualquer) x e chegarmos a um ponto y (diferente de x), tivéssemos que
percorrer infinitos trechos de espaço (por menores que estes sejam), então nunca chegaríamos a nos
mover, pois seriam necessários infinitos intervalos de tempo (por menores que estes sejam). 195
No original: "The reply to the argument that there must be a first is as follows: In retracing our way
from conclusions to premisses, or from determined cognitions to those which determine them, we finally
reach, in all cases, a point beyond which the consciousness in the determined cognition is more lively
than in the cognition which determines it".
266
Para Peirce, neste exemplo, esta última linha representa uma cognição determinada pela
cognição anterior (da linha anterior). Ambas as cognições têm o mesmo objeto.
Estabelecido isto, Peirce afirma que a consciência nesta última cognição (aquela da
linha mais alta no triângulo) é mais vívida que a cognição anterior que a determinou
(i.e., aquela da linha mais baixa no triângulo). Deve-se chamar a atenção para o seguinte
detalhe: o ponto que está no vértice do triângulo representa um objeto externo à mente
que determina ambas as cognições (as duas linhas). Construído o exemplo, Peirce se
encaminha para afirmar que dada uma linha, a qualquer altura do triângulo, é sempre
possível traçar uma segunda linha que esteja abaixo daquela primeira, ou seja, é sempre
possível encontrar alguma outra linha que esteja entre a linha dada e o vértice. Do
"outro lado da analogia", isto significa afirmar que é sempre possível encontrar
(distinguir) alguma cognição que seja anterior a qualquer cognição dada, ou seja, é
sempre possível encontrar alguma cognição entre uma cognição dada e o objeto externo
que se supõe determinar a cadeia de cognições. Note que, para a teoria peirceana, nunca
é possível afirmar que este elemento totalmente externo à consciência (este objeto
transcendental) é o único responsável pelas determinações de uma cognição específica,
pois entre uma cognição específica e este elemento externo é sempre possível distinguir
outra cognição que determinou a cognição específica. Vejamos este ponto de acordo
com as palavras do próprio Peirce:
(...) Faça a linha na altura que desejar [no triângulo], você poderá traçar a
uma distância finita tantas linhas quanto quiser abaixo da linha feita
inicialmente ou abaixo de qualquer outra. Pois qualquer secção está a alguma
distância do vértice, caso contrário, ela não seria uma linha. Seja a distância
a. Então deve haver, antes do vértice, secções a distâncias de 1/2a, 1/4a,
1/8a, 1/16a, assim por diante. Então não é verdade que deve haver um
primeiro elemento. Podem-se explicar as dificuldades lógicas deste paradoxo
(que são idênticas as do paradoxo de Aquiles) da forma que se quiser. Estou
contente com o resultado, uma vez que seus princípios estão totalmente
aplicados ao caso particular da determinação de cognições (por outras
cognições). Que se negue o movimento, se for apropriado; apenas assim se
poderia negar o processo de determinação de uma cognição por outra. Que se
diga que instantes e linhas são ficções; então, que se diga também que
estados de cognição e juízos são ficções. O ponto no qual insisti não é esta ou
aquela solução de tal dificuldade, mas é meramente que a cognição surge por
um processo de começar, de iniciar-se (beginning), bem como ocorre
qualquer outro processo de mudança.
(CP 5.263 [1868])196
196
No original: "(...) draw the horizontal line where you will, as many horizontal lines as you please can
be assigned at finite distances below it and below one another. For any such section is at some distance
above the apex, otherwise it is not a line. Let this distance be a. Then there have been similar sections at
the distances 1/2a, 1/4a, 1/8a, 1/16a, above the apex, and so on as far as you please. So that it is not true
that there must be a first. Explicate the logical difficulties of this paradox (they are identical with those of
the Achilles) in whatever way you may. I am content with the result, as long as your principles are fully
applied to the particular case of cognitions determining one another. Deny motion, if it seems proper to do
so; only then deny the process of determination of one cognition by another. Say that instants and lines
are fictions; only say, also, that states of cognition and judgments are fictions. The point here insisted on
267
A última cartada de Peirce no QFCM é um argumento por analogia. Portanto, o que
deve ser analisado neste último movimento argumentativo é a analogia que lhe serve de
base. Antes de apresentarmos esta análise, devemos explicar o porquê este último
movimento argumentativo do QFCM é tão importante., há muito em jogo nestas últimas
linhas. Para que este argumento funcione, uma sequência de pensamentos (de signos,
portanto) deve ser análoga à sequência de linhas no triângulo (do exemplo fornecido).
As sequências de pensamentos e de linhas (no triângulo) devem ser ambas contínuas. E
é neste ponto que encontramos o que pode ser considerado o problema mais grave de
todo o QFCM do ponto de vista argumentativo. Como veremos no próximo capítulo,
para que o argumento geral do QFCM funcione dentro do projeto filosófico do jovem
Peirce (cujo objetivo é responder como são possíveis os raciocínios sintéticos ou
ampliativos), a tese-base precisa estar bem estabelecida. O estabelecimento da tese-base
depende do esclarecimento do conceito de continuidade ou de continuum, uma vez que
a proposta teórica de Peirce é que a atividade cognitiva teria, tal como um processo
sígnico (de interpretação), uma natureza contínua. Como a teoria inferencial (ou
sígnica) da cognição apresentada no QFCM tem concorrentes que são capazes de
explicar de forma mais simples (ou, ao menos, natural) o funcionamento da atividade
cognitiva recorrendo ao conceito de intuição, Peirce tem por obrigação provar que a
afirmação (contra-intuitiva) de que os processos cognitivos têm natureza contínua é uma
solução teórica aceitável (comparada às propostas concorrentes). A grande dificuldade é
que, de acordo com nossa interpretação, o argumento por analogia apresentado por
Peirce ao final desta Q7 não foi capaz desmontar esta resposta positiva (à sétima
questão), pois um argumento deste tipo não é capaz de explicar no que consiste a
natureza contínua dos dois termos da comparação (da analogia). Este argumento
pressupõe que já esteja bem definida esta concepção de natureza contínua197
. Como
reconheceu Murphey, o problema é que não está bem definida no QFCM (Murphey,
1993 [1961], p. 121) a própria noção de continuidade ou de continuum nem a sua
relação com o conceito de cognição ou pensamento (cf. p. 109 e 110). De acordo com
Prendergast, seria exatamente o conceito de continuum (que está na base deste
argumento por analogia) um dos principais problemas de toda a filosofia peirceana198
.
É evidente que este importante argumento se baseia na validade da analogia
entre pensamento e o continuum matemático. Ademais, a noção de
continuum é um dos problemas mais polêmicos na filosofia peirceana.
Contudo, apesar das dificuldades e obscuridades, Peirce produziu a crítica
mais devastadora do cartesianismo dentro da epistemologia.
(Prendergast, 1977, p. 304)
is not this or that logical solution of the difficulty, but merely that cognition arises by a process of
beginning, as any other change comes to pass". 197
A definição de continuum que Peirce fornece no terceiro artigo da série cognitiva é a seguinte: "um
continuum é precisamente aquilo que, cada uma de suas partes tem partes, no mesmo sentido" (CP 5.335
[1869]). 198
Outro grande problema que atravessa toda a filosofia peirceana é a “irredutibilidade da relação
triádica”. Trataremos desta questão no último capítulo.
268
A solução que Joseph Ransdell (1966, p. 42) encontrou para este problema do conceito
de continuidade é muito elegante e coerente. Ransdell opera uma distinção entre um
ponto de vista psicológico (segundo o qual a atividade cognitiva deve ser entendida
como um processo contínuo) e um ponto de vista lógico (segundo o qual a atividade
cognitiva deve ser entendida como um processo que pode ser "quebrado" em unidades
discretas [tais como premissas e conclusões]). De acordo com Ransdell (1966, p. 91), o
que Peirce procurou fazer nos textos de 1867 e 1868 é construir um modelo lógico da
mente (cf. seção 3 do capítulo 3). Entretanto, ainda que esta solução interpretativa que
Ransdell nos oferece sobre este tema polêmico do pensamento peirceano seja muito
interessante, ela serve para o todo da obra peirceana, mas não para o texto específico
com qual viemos lidando nesta última centena de páginas: o QFCM. Não há evidências
textuais suficientes dentro do QFCM para suportar esta solução. No QFCM não há
sinais muito claros desta distinção. O que, de fato, encontramos é uma analogia. Uma
analogia, aliás, que não é capaz de esclarecer o que se entende por continuum quando se
afirma que o pensamento tem natureza contínua e não discreta.
Entretanto, onde estaria exatamente o problema de Peirce ter, como último recurso para
estabelecer sua teoria inferencial ou sígnica da cognição, confiado numa analogia?
Analisemos a analogia que está na base deste argumento. Como já vimos no início das
análises dessa sétima questão, o argumento favorável à resposta positiva à Q7 que
Peirce parece levar em consideração é um argumento transcendental e pode ser expresso
da seguinte forma: como o conhecimento é possível, logo deve haver algum ponto
originário em toda série de signos, deve haver intuição. Esta argumentação depende da
(verdade da) seguinte proposição: "Se não há primeiro elemento na série de cognições,
então não há pensamento, não há cognoscibilidade (não há processo de conhecimento)".
O que esta proposição nos garante é que haver um primeiro elemento (na série de
cognições) é uma condição necessária para haver pensamento ou cognição de algo. De
acordo com esta proposição, para que tenhamos efetivamente uma cognição de um
objeto é necessário (supor) que haja alguma primeira cognição relativa àquele objeto.
Com seu argumento por analogia, Peirce pretende mostrar que é falsa esta proposição
que estabelece tal condição necessária. Como estamos diante de uma proposição
condicional que tenta expressar uma espécie de regra para a existência ou efetividade de
um certo processo, a estratégia mais imediata seria apresentar um contraexemplo: um
caso em que a regra é descumprida, um caso em que a condição (que deveria ser
necessária) não é satisfeita e, ainda assim, o processo "ocorre normalmente". Como o
que esta regra (este condicional) estabelece é que para haver processo de cognição de
um objeto deve haver primeiro elemento, então obviamente um contraexemplo seria um
caso em que não há primeiro elemento, mas há o referido processo. O caso em que não
há primeiro elemento é uma situação em que, dada uma cognição qualquer sobre um
objeto, é sempre possível encontrar (dentro da série) um outro elemento que esteja entre
o elemento dado e o objeto (ao qual a série de cognições é relativa). O contraexemplo é
justamente este caso em que é sempre possível encontrar uma nova cognição antes do
objeto (de uma cognição qualquer). Em outras palavras, o contraexemplo de que Peirce
precisa é justamente um caso em que o pensamento, o processo de cognição de um
269
objeto tenha uma natureza contínua. Entretanto, no lugar de apresentar um
contraexemplo, Peirce construiu uma analogia entre a natureza contínua do processo de
cognição (de um objeto) e a natureza contínua das linhas que atravessam o triângulo no
exemplo dado (ou a natureza contínua do espaço no paradoxo de Zenão).
O conceito de continuum é o calcanhar de Aquiles do QFCM (e provavelmente da série
cognitiva como um todo). Numa avaliação final (que será melhor desenvolvida no
próximo capítulo e, sobretudo, no último capítulo), acreditamos que este tenha se
tornado o ponto fraco do QFCM justamente por ter ficado implícito, por não ter sido
desenvolvido nesta última questão. Na Q7, Peirce parece ter optado por colocar o
conceito de continuum num lugar de pressuposto. Este conceito não foi definido, nem
explorado dentro da série cognitiva. Devemos nos recordar que o primeiro golpe
desferido por Peirce contra o projeto cartesiano de fundação do conhecimento físico-
matemático foi justamente a explicitação e posterior problematização de algo que estava
pressuposto na obra cartesiana: a capacidade intuitiva de se distinguir intuições (de
cognições derivadas). A primeira peça que Peirce moveu no tabuleiro foi direcionada
para atacar um pressuposto central ao projeto cartesiano. O que vemos agora é a
debilidade de um dos principais pressupostos sobre os quais está assentada a teoria
inferencial da cognição proposta por Peirce. Aparentemente, na Q7, Peirce pressupõe
que o processo de conhecimento (relativo a um objeto) tenha sempre uma natureza
contínua (ao menos do ponto de vista lógico, de acordo com a distinção de Ransdell). A
impressão é que esta proposição (a quarta premissa no esquema a seguir) deveria ser
provada, estabelecida e não pressuposta. Ou argumento da Q7 é circular ou, graças à
ausência, no texto, de procedimentos destinados a esclarecer conceitos-chave ou
explicitar sentidos latentes (tal como um procedimento de definição ou de análise de
conceito), o argumento da Q7 não fecha, é inconclusivo.
Argumento geral da Q7
Premissa1: Se o processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma
natureza contínua, então, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre
possível distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou.
Premissa2: Se, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre possível
distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou, então
tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por cognições anteriores.
Premissa3: Se tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por
cognições anteriores, então não há cognição originária.
Premissa4: O processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma
natureza contínua.
Conclusão: Não há cognição originária.
270
Esta argumentação permanece problemática mesmo que levemos em conta a seguinte
definição de continuum que Peirce fornece no terceiro artigo da série cognitiva: "um
continuum é precisamente aquilo cuja cada uma de suas partes tem partes do mesmo
tipo" (CP 5.335 [1869])199
. Esta definição não ajuda a dissolver o paradoxo de o
pensamento parecer ter uma natureza contínua por um lado e uma natureza discreta por
outro. Esta definição não esclarece como é possível que um processo seja contínuo e
ainda, assim, seja composto de entidades que, ao menos, parecem discretas como
cognições (ou signos). Estes questões permaneceram em aberto.
O argumento por analogia ao final da Q7 não foi um erro de estratégia argumentativa de
Peirce. Talvez esta tenha sido sua única opção se levarmos em conta a possibilidade de,
na época, ele não ter ainda um entendimento muito desenvolvido sobre o conceito de
continuidade ou não ter "equipamentos" apropriados para lidar com infinito. Devemos
lembrar que, em sua época, estavam ainda sendo desenvolvidas as ferramentas
conceituais que seriam requeridas para um tratamento adequado das questões com as
quais Peirce começou a lidar na base de seu sistema filosófico. O infinito e o continuum
eram questões matemáticas que estavam, então, entrando na ordem do dia sob um novo
tratamento. A base da argumentação elaborada no QFCM (e na série cognitiva como um
todo) mobilizava conceitos que estariam no centro das teorias elaboradas pelo
matemático alemão Georg Cantor e que estariam destinadas a modificar profundamente
o modo de se fazer e entender (o que é) matemática. Para Murphey, o conceito de
continuum sofreu modificações ao longo do desenvolvimento do pensamento peirceano.
Então, em 1868, Peirce já tinha se envolvido com problemas a respeito de
infinitude e continuidade problemas para os quais ele ainda não tinha
respostas adequadas. Não até a década de 1880, quando teve contato com a
obra de Georg Cantor, e conseguiu fazer progressos substanciais em diversas
áreas. Enquanto isso, a relação da inferência com o processo de pensamento
requis clarificações posteriores.
(Murphey, 1993 [1961], p. 121)
Com relação aos escritos da década de 1860 não nos parece justo culpar Peirce pela
obscuridade das linhas que analisamos acima, pois sua concepção de continuum estava
solidamente baseada na matemática de seu tempo. O que está na base desta concepção é
a denominada teoria dos infinitesimais200
. Desde Newton e Leibniz (século XVII), o
cálculo esteve baseado no obscuro conceito de infinitesimal, que são quantidades
infinitamente pequenas (cf. Courant e Robins, 1941, p. 433). Ao longo do século XIX,
esta teoria dos infinitesimais seria rejeitada e substituída pela teoria dos limites.
Segundo Murphey (1993 [1961], p. 119-20), embora, ainda nas primeiras décadas do
199
No original: "a continuum is precisely that, every part of which has parts, in the same sense" 200
Tecnicamente, a teoria clássica dos infinitesimais "considera o infinitesimal como um recíproco do
infinito, então se a é finito, x é infinito, e i é infinitesimal, a/x = i e conversamente a/i = x. Além do mais,
os infinitesimais são eles mesmos capazes de serem divididos: assim (a/x) / x = i2
" Murphey, 1993
[1961], p. 120).
271
século XIX, o trabalho do matemático francês Augustin-Louis Couchy tenha
contribuído bastante para estabelecer a superioridade da teoria dos limites com relação a
teoria do infinitesimal, a aceitação geral com respeito a esta superioridade só veio, no
final desse mesmo século, com o trabalho do matemático alemão Karl Theodor Wilhelm
Weierstrass. Neste meio tempo, os matemáticos mais antigos ainda estavam presos à
antiga teoria. Dentre estes, um dos mais fieis à antiga teoria dos infinitesimais era o pai
de Peirce, o matemático norte-americano, Benjamin Peirce. De acordo com Murphey
(1993 [1961], p. 120), até o fim de sua vida, Charles Peirce nunca abandonou esta
teoria. Por este exato motivo, ainda que consideremos desenvolvimentos posteriores
deste problema do conceito de continuum relativo à teoria da cognição, não nos parece
que Peirce tenha alcançado uma solução satisfatória.
Em 1891, no artigo lei da mente ("Law of Mind"), texto no qual apresenta sua doutrina
do sinequismo201
, o conceito de continuidade aparece de forma muito mais
desenvolvida (ainda que estivesse distante da concepção cantoriana e que o próprio
Peirce tenha reconhecido alguns anos mais tarde que este tratamento que deu ao
conceito de continuidade era "desajeitado", cf. CP 6.174 [1905]). Neste artigo, a
argumentação peirceana para afirmar que é contínua a natureza da atividade cognitiva é
muito semelhante àquela desenvolvida na série cognitiva ao final da década de 1860.
Neste caso do artigo de 1891, o argumento tenta nos garantir que se o processo de
pensamento não for contínuo, então se tornaria inexplicável como é possível um
indivíduo ter memória. De acordo com Peirce, "o presente está conectado ao passado
por uma série real de passos infinitesimais" (CP 6.109 [1891])202
. Estruturalmente,
estamos diante do mesmo argumento (com algumas poucas distinções). A direção geral
do argumento é a mesma. A base é ainda a teoria dos infinitesimais como em 1868.
Este problema do continuum na teoria da cognição (do QFCM) parece insistir aberto
mesmo se considerarmos o desenvolvimento de novas abordagens em fase tardia do
pensamento de Peirce (Cf. CP 6.120 - 6 [1891], 6.168 – 170 [1901] e também CP 3.569
[1903] e 4.121 [1893]). De um ponto de vista filosófico, a definição peirceana para o
termo “continuum” é peculiar. De acordo com o filósofo Ivo Ibri, estudioso da
metafísica peirceana, Peirce juntou a definição aristotélica do termo (segundo a qual o
continuum é alguma coisa cujas partes têm um limite em comum) com aquela elaborada
por Kant (para quem o caráter essencial de uma série contínua seria a infinita
divisibilidade, ou seja, que entre quaisquer dois dos membros desta série, um terceiro
poderia sempre ser encontrado). Então, para Peirce, “o continuum é alguma coisa
infinitamente divisível cujas partes têm um limite em comum” (Ibri, 1992, p. 66). Como
veremos, com algum detalhamento, nas análises dos próximos capítulos, as duas
201
O termo utilizado por Peirce nos textos originais é “synechism”. De acordo com o filósofo, esta é a
“forma inglesa do grego ‘synechismós’ de ‘synechés’, continuo. (…)”. Mais adiante, neste mesmo
parágrafo, Peirce traz algumas distinções: “o materialismo é a doutrina de que tudo é matéria, o idealismo
é a doutrina de que tudo é ideia, o dualismo é a filosofia que separa tudo em duas partes. Assim, eu
propus que o sinequismo signifique a tendência a se considerar tudo como contínuo” (CP 7.565 [1892]).
Ainda a respeito da doutrina peirceana do sinequismo, cf. CP 6.102 – 163 [1892] e CP 6.172 [1902].
202 No original: " the present is connected with the past by a series of real infinitesimal steps".
272
características elementares deste conceito de continuum (a infinita divisibilidade e os
limites comum de suas partes) já podiam ser enxergadas dentro conceito de signo (ou de
processo sígnico) construído por Peirce para ser mobilizado dentro da série cognitiva.
Portanto, esta última questão do QFCM, o problema das origens, é um ponto nevrálgico
do pensamento peirceano. Por este motivo Lucia Santaella afirma que os problemas
levantados ao final do QFCM foram carregados por Peirce pelo resto de sua carreira
filosófica.
Argumentando que nunca podemos saber, com certeza, se uma cognição,
qualquer cognição, é, de fato, originária, Peirce continuou sustentando que
toda a cognição é determinada por outra, o que significava atacar o postulado
aristotélico-cartesiano de que as premissas primeiras da demonstração são
indemonstráveis. A complexidade da questão, contudo, não se esgota, de
modo algum, na resposta que Peirce encontrou para ela nesse artigo. Pode-se
dizer que os problemas aí implicados foram levados por ele vida afora. Suas
variações e ecos iriam, mais tarde, reaparecer nos espinhosos entreveros da
sua teoria da percepção e do objeto do signo, assim como no seu gradativo
abandono do idealismo em prol do realismo ou de um idealismo objetivo,
como ele preferia qualificar.
(Santaella, 2004, p. 45)
Voltaremos a este ponto no próximo e também no último capítulo. Esta Q7, a última
questão do QFCM, contém uma argumentação (no mínimo) inconclusiva. É uma veia
aberta. Para Peirce, 1868 é um ano que nunca terminou.
273
CAPÍTULO 9
Resultados da análise do texto "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas
para o homem"
Durante os últimos quatro capítulos, analisamos ponto por ponto, o primeiro artigo da
série cognitiva, "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o
homem" (aqui abreviado com algumas das iniciais do título no idioma original: QFCM).
Podem-se identificar neste texto dois grandes movimentos argumentativos: o primeiro
deles é aquele projetado para estabelecer a equivalência entre os conceitos de
pensamento e signo e o segundo deles tenciona provar que é possível construir uma
teoria da cognição sem pontos originários (sem intuição). Para construir esta teoria da
cognição que pretende explicar como funciona a produção de conhecimento sem
recorrer a pontos originários (intuições), Peirce lança mão de conceitos provenientes de
outro corpo teórico: a semiótica. Entretanto, só podemos notar a importância de
algumas teses estabelecidas dentro do QFCM para o projeto filosófico peirceano (como
um todo) e o entrelaçamento entre semiótica e epistemologia se observarmos o QFCM a
partir de um ponto de vista externo. A ideia deste breve (nono) capítulo é enxergar o
QFCM a partir de fora, ou seja, como esta peça argumentativa específica se encaixa na
engrenagem construída por Peirce para responder o que considerava ser o problema
fundamental da filosofia. Por este motivo, devemos começar este capítulo tratando
daquilo que está do “lado de fora” do QFCM. Revisemos de modo sucinto o projeto
filosófico de Peirce e os principais passos lógicos de sua construção.
O objetivo último do projeto filosófico dentro do qual estão os textos e as questões que
viemos analisando nos últimos capítulos é responder aquele problema considerado (por
Peirce) central na filosofia: como são possíveis as sínteses (ou, em outros termos, como
é possível o raciocínio sintético ou ampliativo)? Como foi exposto nos três primeiros
capítulos (sobretudo, no segundo), o caminho que levaria Peirce a poder fornecer dentro
dos três artigos que compõem a série cognitiva (1868-69) uma resposta a esta pergunta
começa a ser trilhado por volta do ano de 1864 quando ele faz algumas descobertas na
área da lógica. Estas descobertas acabam por afastá-lo progressivamente de sua matriz
intelectual, o pensamento kantiano, e o estimula a construir uma nova lista de
categorias. Como vimos no segundo capítulo, no ano de 1865, Peirce descobre que
todas as relações relevantes para a lógica são casos particulares de uma relação mais
fundamental: a relação sígnica. Peirce passa a considerar que tanto a relação entre
sujeito-predicado numa proposição como a relação entre antecedente e consequente
num condicional e também a relação entre premissa-conclusão numa inferência são
274
todos casos particulares de relações sígnicas. Não é por outro motivo que a relação
sígnica passa a ocupar um posicionamento central no pensamento peirceano. A teoria
peirceana das categorias utiliza justamente o conceito de signo para responder à questão
da possibilidade das sínteses. Ainda no primeiro capítulo, apresentamos uma espécie de
roteiro, um passo a passo lógico para construção do sistema filosófico peirceano. A
seguir reapresentamos este roteiro para que possamos localizar dentro dele os
argumentos do QFCM.
Passos lógicos – construção inicial do sistema filosófico peirceano
I) Descobertas no campo da lógica (entre 1864 e 1866) levam ao questionamento
das categorias kantianas.
II) Elaboração de uma nova lista de categorias.
III) A terceira categoria proveniente da nova lista de categorias leva ao
questionamento de todas as teorias epistemológicas que posicionam a intuição
como conceito responsável por explicar as fundações do conhecimento.
IV) O questionamento de todas as teorias epistemológicas que colocam o conceito
de intuição naquela "posição fundacional" leva à elaboração de uma nova teoria
da cognição.
V) A elaboração de uma teoria da cognição (condizente com a teoria das
categorias e alternativa àquelas teorias que recorrem à intuição) leva a uma
reformulação do conceito de realidade e o estabelecimento de uma teoria da
realidade que é considerada compatível com as descobertas na área da lógica e
com a epistemologia de base semiótica (inaugurada por Peirce).
VI) A reformulação do conceito de realidade torna possível a proposição de uma
teoria que funciona como uma validação (à prazo) para o raciocínio sintético (ou
ampliativo).
Se observarmos de "trás para frente", da resposta fornecida por Peirce para o problema
central de sua filosofia (ao menos nesta fase de formação de um pensamento
propriamente semiótico) na direção das descobertas efetuadas no período pós-64,
teremos o seguinte roteiro. No terceiro artigo ("Fundamentos da validade das leis da
lógica: outras consequências das quatro incapacidades"), Peirce apresenta uma teoria
que fundamenta a validade dos raciocínios ampliativos na seguinte condicionante
básica: para ser válido, um raciocínio ampliativo deve ser aplicado por um tempo
indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Como vimos,
esta solução teórica depende de duas reformulações conceituais efetuadas no segundo
dos artigos da série ("Algumas consequências das quatro incapacidades"). A primeira
275
dessas reformulações conceituais é aquela que torna o sujeito cognoscente uma espécie
de sujeito coletivo ao substituir a noção de indivíduo por uma noção de comunidade
indefinida de pesquisadores e a segunda delas é a reformulação do conceito de
realidade, que passa a ser considerado um ponto de convergência ao qual tendem todas
as linhas de investigação levadas a cabo por aquela comunidade indefinida de
pesquisadores. Estas duas reformulações são consequências diretas da teoria da
cognição apresentada, sobretudo, no primeiro artigo da série (QFCM). Por sua vez, tal
teoria da cognição é uma consequência direta da teoria das categorias (proposta por
Peirce), principalmente do papel da terceira categoria (a representação ou "referência a
um interpretante") na resposta ao problema central do projeto filosófico peirceano. E,
conforme explicado acima, esta teoria das categorias é uma consequência das
descobertas na área da lógica feitas por Peirce no período posterior ao ano de 1864.
Apresentado este panorama, já podemos localizar o QFCM como um texto cujas linhas
argumentativas se distribuem ao longo dos passos III, IV e V. Durante a última centena
de páginas, nosso trabalho de análise esteve voltado basicamente para esta “etapa”
lógica da construção do pensamento peirceano. Como veremos ao final deste capítulo,
para sustentar nossa própria tese acerca da importância do conceito de recursividade
para o projeto filosófico peirceano, os resultados das análises do QFCM nos obrigarão a
voltar nossa atenção para os primeiros passos lógicos (sobretudo, o II e o III) e para o
modo como Peirce estabeleceu num artigo anterior à série cognitiva (intitulado “Sobre
uma nova lista de categorias”) o que denominaremos de teses elementares da semiótica
peirceana. Estas teses são essenciais para que o conceito de signo funcione conforme o
esperado dentro da teoria da cognição proposta na série cognitiva. Os desenvolvimentos
dentro do pensamento peirceano relativos a esses primeiros passos lógicos serão
analisados nos próximos dois capítulos. Portanto, em resumo, neste nono capítulo,
pretendemos expor os principais resultados das análises do QFCM (realizadas nos
capítulos 4,5,6,7 e 8) e a relevância das teses estabelecidas neste primeiro artigo da série
cognitiva para o projeto filosófico peirceano.
276
9.1 - Primeiro movimento argumentativo geral do QFCM: o
estabelecimento da tese-base da semiótica
Aquela proposição que denominamos de tese-base da semiótica (“todo pensamento é
pensamento em signos” ou, noutra formulação, “todo pensamento se dá em signos”)
funciona como um “centro lógico” de todo o QFCM e de parte considerável do segundo
artigo da série cognitiva (“Algumas consequências das quatro incapacidades”). Por um
lado, convergem para esta tese as principais linhas argumentativas do QFCM
desenvolvidas para estabelecer a teoria peirceana da cognição. Por outro lado, saem
desta tese-base as consequências que são analisadas no segundo artigo da série (dentre
elas podemos citar [novamente] a reformulação do conceito de verdade e de sujeito
cognoscente). Dentro do QFCM, a tese-base é estabelecida por uma linha
argumentativa que começa a ser desenvolvida ainda na Q1 e tem por finalidade afirmar
que o homem só tem acesso aos próprios pensamentos de forma indireta, ou seja, por
inferência a partir de elementos externos. Graças à solução teórica que Peirce pretende
propor para o problema das sínteses, ele está impedido de colocar a intuição num papel
fundacional dentro de sua teoria do conhecimento. Por isso, este acesso indireto,
inferencial se torna o principal ingrediente da teoria da cognição que é por Peirce
proposta como alternativa àquelas teorias que recorrem ao conceito de intuição para o
papel de ponto originário do processo de conhecimento.
No QFCM, a argumentação contra o recurso à intuição não é direta. Peirce não prova
que as teorias que recorrem a intuição são todas falsas. O que ele de fato faz é construir
uma teoria alternativa que não só explica todas as faculdades cognitivas humanas que
suas "concorrentes" explicam como evita o seus pontos fracos (provenientes do recurso
ao conceito de intuição). Portanto, no lugar de afirmar que as teorias adversárias são
falsas, Peirce simplesmente coloca sob suspeita o recurso teórico ao conceito de
intuição (que está na base, no papel de fundação, destas teorias adversárias) e tenta
construir uma teoria sobre conceitos que estejam "acima de quaisquer suspeitas". Não é
difícil notar alguns indícios que Peirce se move de acordo com esta estratégia ao longo
de todo o QFCM. Em cada uma das questões que compõem este artigo, são
apresentados dois caminhos teóricos básicos: um deles, para explicar determinada
faculdade cognitiva, recorre à capacidade de intuir (de ter intuições) e o outro caminho,
para explicar o mesmo fenômeno, recorre à capacidade de inferir (de fazer inferências).
Durante todas as análises (nos capítulos anteriores), denominamos estes dois caminhos
de caso I e caso II (respectivamente). A estratégia peirceana é argumentar que devemos
optar por este segundo caminho teórico, uma vez que este é baseado numa capacidade
da qual não se duvida que o homem de fato possua. Isto obviamente significa que o
outro caminho recorre a uma capacidade cuja existência, de acordo com Peirce, há
dúvidas. Deve-se enfatizar que em momento algum do QFCM, encontramos uma
afirmação direta de que não existem intuições.
277
Para colocar o recurso teórico ao conceito de intuição sob dúvida, Peirce desenvolve,
em primeiro lugar, um argumento para negar que seja autoevidente que tenhamos a
capacidade de distinguir intuições. Como vimos nas análises da Q1 (capítulo 4), o
argumento favorável a existência da capacidade intuitiva de distinguir intuições é uma
falácia denominada petitio principii. Segundo Peirce, há uma circularidade
incontornável quando tentamos estabelecer nossa suposta capacidade intuitiva de
distinguir intuições nalgum elemento que seja (ele mesmo) de caráter intuitivo (por
exemplo, num sentimento supostamente de caráter intuitivo). Este movimento
argumentativo de Peirce estava destinado a questionar um pressuposto sob o qual
estavam assentadas as teorias adversárias. Estas teorias dentro da série cognitiva são
agrupadas sob a expressão "espírito do cartesianismo". Devemos recordar (da breve
apresentação que fizemos do pensamento de Descartes no terceiro capítulo) que a
capacidade de distinguir, de "isolar" intuições é um dos pressupostos do projeto
filosófico cartesiano. Enfatizemos novamente: o argumento peirceano desenvolvido na
Q1 nega apenas a existência de uma capacidade para se distinguir intuitivamente
intuições (mas, ele não nega a existência de intuições). É este movimento argumentativo
que, dentro do QFCM, é responsável por lançar uma sombra (de dúvida) sobre o
conceito de intuição. A partir deste ponto, as reflexões que foram desenvolvidas
passaram a considerar problemático o recurso teórico ao conceito de intuição. Isto abriu
caminho para uma teoria da cognição baseada no conceito de inferência. Problematizar
a intuição é apenas a parte negativa do QFCM. A construção efetiva de uma teoria
epistemológica alternativa àquelas que recorrem a tal conceito é a parte positiva.
O primeiro desafio desta teoria (alternativa, livre do conceito de intuição) que Peirce
pretendeu erigir no QFCM é provar que ela pode explicar a capacidade que o homem
possui de saber de sua própria existência, uma capacidade por vezes denominada de
autoconsciência. Isto é feito durante a Q2 do QFCM (que foi analisada no quarto
capítulo desta tese). Não é difícil notar que as teorias que recorrem ao conceito de
intuição têm uma considerável facilidade em explicar (de um ponto de vista
epistemológico) este fenômeno. Para estas teorias, o conhecimento do "eu" é direto,
fruto de uma intuição e, por isso mesmo, deve ser considerado certo e absoluto.
Entretanto, como Peirce afirmou que o recurso à intuição é uma saída teórica
problemática, ele se compromete a encontrar uma solução que recorra apenas ao
conceito de inferência (que não seria problemático). Como vimos, a solução encontrada
é sustentar que a autoconsciência seria gerada a partir de conhecimento ou, para que
sejamos precisos, da ausência de conhecimento relativo a fatos externos. De acordo com
Peirce, o conhecimento do "eu" é derivado da ignorância, da percepção de que nossas
representações individuais não estão de acordo com o mundo externo.
Notemos algo que é fundamental para a análise que pretendemos desenvolver neste
nono capítulo. Já nesta Q2, pode-se observar que começa a se desenhar um movimento
geral dentro das linhas argumentativas do QFCM. Este movimento é repetido, ao
menos, outras duas vezes: na Q3 e na Q4. Durante esta Q2, ao examinar o fenômeno da
autoconsciência, Peirce explica pela primeira vez uma faculdade cognitiva afirmando
278
que o processo de cognição depende de um elemento externo àquilo que é objeto da
cognição. Em outras palavras, o processo de conhecimento relativo a um objeto é
indireto justamente porque depende de um recurso a um elemento ou fator externo ao
próprio objeto (a ser conhecido). Este movimento argumentativo vai desembocar mais
adiante no texto, na tese-base. Esta é decorrência dessas teses que afirmam que as
faculdades cognitivas são todas indiretas, i.e., todas dependem de inferência a partir de
fatos externos (mesmo aquilo que parece puramente interno).
Tanto na terceira como na quarta questões, Peirce enfrentou a tarefa de explicar com sua
teoria inferencial duas outras capacidades (além da capacidade de se obter
autoconsciência) que parecem facilmente explicadas por teorias que se utilizam do
conceito de intuição. No caso da Q3, como vimos na segunda seção do capítulo 5,
Peirce precisou provar que é possível explicar a capacidade humana de distinguir entre
os diversos tipos de estados mentais recorrendo-se apenas à inferência (sem se utilizar,
portanto, do conceito de intuição)203
. A ideia por trás da Q3 é estabelecer que não é
intuitiva, mas inferencial (portanto, indireta) a capacidade que temos em saber se
estamos sonhando, imaginando, concebendo, acreditando etc. Já na Q4, Peirce tratou de
como o homem se torna capaz de conhecer os fatos internos. De acordo com a teoria da
cognição peirceana, mesmo o conhecimento que o indivíduo obtém sobre sua própria
mente, sobre o seu "interior", é um conhecimento indireto. Assim, a percepção de que
estamos em determinado estado de espírito é derivada de consequências (que agem
como marcas) externas daquele fato interno.
Nestes três pontos do QFCM (na Q2, Q3 e Q4), Peirce tratou daquelas que podem ser
consideradas as principais faculdades cognitivas explicadas pelas teorias adversárias
(i.e., aquelas que utilizam o conceito de intuição numa posição fundacional): a
capacidade de se gerar autoconsciência, a capacidade para se distinguir entre os
elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição e a capacidade de introspecção.
Em cada uma dessas questões, o objetivo foi estabelecer que tais capacidades podem ser
melhor explicadas teoricamente a partir do conceito de inferência, o que tornaria
desnecessária qualquer recurso ao conceito de intuição. Para provar que uma teoria
inferencial da cognição está em melhores condições para explicar o funcionamento de
determinadas faculdades do que as teorias adversárias, Peirce precisou, em primeiro
lugar, de desmontar a impressão de obviedade que está relacionada a respostas teóricas
que recorrem ao conceito de intuição. Ele precisou negar que seria auto-evidente (i.e.,
que seria óbvio) que cada uma dessas faculdades (investigadas em cada uma dessas
questões) fossem intuitivas. Ao estabelecer tal negação, as explicações que recorrem ao
conceito de intuição passam a precisar de evidências para que fossem sustentadas.
Assim, (desmontado o argumento para a auto-evidência), as evidências para se afirmar
que essas capacidades são intuitivas (diretas) podem e devem ser comparadas com as
evidências para se afirmar que essas mesmas capacidades são inferenciais (indiretas).
Nas três questões seguintes (Q2, Q3 e Q4), a tarefa central foi provar que as evidências
203
Nos termos do texto, esta capacidade foi chamada de faculdade para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição.
279
favoráveis às explicações que recorrem ao conceito de inferência são mais fortes do que
as evidências favoráveis ao outro caminho teórico e, por este motivo, deve-se optar por
uma teoria inferencial da cognição (no lugar daquelas que recorrem ao conceito de
intuição).
O elo entre a proposição estabelecida ao final da Q1 e os argumentos elaborados nas
três questões seguintes é justamente o movimento argumentativo de descartar a
afirmação de que é auto-evidente que as capacidades sob investigação (em cada uma
dessas questões) sejam intuitivas. Durante as análises denominamos este ponto de
"argumento sobre a auto-evidência" (da capacidade em questão). Por exemplo, Peirce
(logo nas primeiras linhas da Q2) descarta a afirmação de que é auto-evidente que a
autoconsciência seja intuitiva argumentando que, se fosse este o caso, então estaria
pressuposto que teríamos a capacidade intuitiva de distinguir intuições (de outras
cognições que fossem não-intuitivas). Porém, isto não pode ser pressuposto, pois foi
estabelecida ao final da Q1 justamente a afirmação de que não temos a capacidade
intuitiva de distinguir intuições. Assim, Peirce utiliza a conclusão do argumento geral
da Q1 para desabilitar a "resposta automática" de que seria auto-evidente que as
capacidades cognitivas sob investigação (nas questões seguintes) seriam intuitivas.
Como vimos, é este movimento que permite a comparação entre um caminho teórico
que explique os fenômenos em questão por meio do conceito de intuição e outro cujas
explicações recorram somente ao conceito de inferência. A seguir reapresentamos em
sequência todos os argumentos gerais desenvolvidos em cada uma das quatro primeiras
questões do QFCM. Entretanto, no esquema a seguir, optamos por explicitar uma linha
argumentativa que age como uma conexão entre o ponto de chegada da Q1 e os pontos
de partidas das três questões seguintes.
Argumento geral da Q1
Premissa1: Se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições, então
deveria haver alguma evidência dessa capacidade, ou seja, deveria haver ao menos
um caso em que tenha sido possível, sem recorrer a quaisquer inferências,
distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma inferência.
Premissa2: Não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem
recorrer a quaisquer inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou de
uma inferência.
Conclusão: Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições.
280
Linha argumentativa de ligação entre a Q1 e as três questões seguintes (Q2,
Q3 e Q4)
Premissa1: Se fosse auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e
Q4 fossem intuitivas, então estaria pressuposta que teríamos a capacidade
intuitiva de distinguir intuições.
Premissa2 (estabelecida na Q1): Não temos as capacidade intuitiva de distinguir
intuições.
Conclusão1: Não é auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e
Q4 sejam intuitivas.
Premissa3: Se não é auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e
Q4 sejam intuitivas, então deve haver evidências que as três capacidades
estudadas na Q2, Q3 e Q4 sejam intuitivas.
Premissa4: Não é auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e Q4
sejam intuitivas.
Conclusão2: Deve haver evidências que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e
Q4 sejam intuitivas.
Premissa5: Ainda que haja evidências que as três capacidades são intuitivas, para
afirmar que tais capacidades, de fato, são intuitivas, seria necessário que tais
evidências fossem mais fortes que as evidências que corroboram a tese contrária
(i.e., de que tais capacidades não são intuitivas).
Premissa6: As evidências favoráveis à tese de que as três capacidades estudadas
na Q2, Q3 e Q4 são intuitivas não são mais fortes que as evidências favoráveis à
tese de que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e Q4 não são intuitivas.
Conclusão: Não podemos afirmar que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e
Q4 são intuitivas.
Argumento geral da Q2
Premissa1: Se a autoconsciência fosse um conhecimento intuitivo, não seria
necessário recorrer a dados externos para se obter tal conhecimento.
Premissa2: É necessário recorrer a dados externos para se obter a autoconsciência.
Conclusão: A autoconsciência não é um conhecimento intuitivo.
281
Argumento geral da Q3
Premissa1: Se houvesse capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição, então não seria necessário recorrer a
dados externos a uma cognição específica para se saber a qual tipo ela pertenceria.
Premissa2: É necessário recorrer a dados externos a uma cognição específica para
se saber a qual tipo (de cognição) ela pertence.
Conclusão: Não há capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos
subjetivos de diferentes tipos de cognição.
Argumento geral da Q4
Premissa1: Se houvesse capacidade de introspecção, então não seria necessário
recorrer a fatos externos para obter conhecimento de fatos internos.
Premissa2: É necessário recorrer a fatos externos para obter conhecimento de
fatos internos.
Conclusão: Não há capacidade de introspecção.
No esquema acima apresentamos o que denominamos de linha argumentativa de ligação
entre a Q1 e as três questões seguintes (Q2, Q3 e Q4). A premissa6 (localizada no terceiro
argumento da linha) só pode ser estabelecida a partir do momento em que se coleta um
número suficiente de evidências favoráveis a uma teoria inferencial (e desfavoráveis,
portanto, a uma que fosse baseada no conceito de intuição). Dentro da economia interna do
QFCM, esta coleta de evidências é feita na Q2, Q3 e Q4. Em cada uma dessas questões,
Peirce caminha no sentido de estabelecer a ideia que as evidências em favor de uma teoria
inferencial são maiores do que as evidências em favor de uma teoria da cognição que se
baseie no conceito de intuição. Em cada uma das questões, a coleta de evidências
desemboca em proposições que afirmam que as faculdades cognitivas investigadas são
resultantes de processos de inferência. Estas proposições são aquelas que ocupam em cada
questão a posição de segunda premissa dentro do argumento geral.
Premissa2 do argumento geral da Q2: É necessário recorrer a dados externos para
se obter a autoconsciência.
Premissa2 do argumento geral da Q3: É necessário recorrer a dados externos a
uma cognição específica para se saber a qual tipo (de cognição) ela pertence.
Premissa2 do argumento geral da Q4: É necessário recorrer a fatos externos para
obter conhecimento de fatos internos.
282
Notemos que todas estas segundas premissas dos argumentos gerais da Q2, Q3 e Q4 são
a base para que se possa estabelecer a premissa6 do que denominamos "linha
argumentativa de ligação...." . Estabelecida esta premissa6, então já é possível afirmar
que todos estes tipos de conhecimento descritos na Q2, Q3 e Q4 são produto de
inferência (e não de intuição). É justamente isto que pretende a teoria da cognição
elaborada por Peirce.
Premissa6 da linha argumentativa de ligação... : As evidências favoráveis à tese
de que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e Q4 são intuitivas não são mais
fortes que as evidências favoráveis à tese de que as três capacidades estudadas na
Q2, Q3 e Q4 não são intuitivas.
Quando elaboramos as análises, questão por questão, nos capítulos precedentes, não
tivemos a oportunidade de mostrar que todas as segundas premissas dos argumentos
gerais da Q2, Q3 e Q4 são proposições que guardam uma forte semelhança entre si.
Cada uma delas afirma que a capacidade (ou faculdade) sob investigação (em cada uma
dessas questões) é sempre indireta ou inferencial, porque cada uma delas diz respeito a
uma cognição ou a um conhecimento que só pode ser produzido na dependência de algo
externo. Tanto a cognição relativa ao conhecimento da existência do ego (i.e., a
autoconsciência) como a cognição relativa ao conhecimento de algum fato ou estado
interno (como uma emoção, por exemplo) são produzidas a partir de algo diverso delas
mesmas, de algo externo a elas mesmas. Estas cognições são resultados de inferências
que partem de algum fator externo. No caso da cognição relativa à autoconsciência, o
fator externo do qual se parte é a ignorância com relação ao mundo externo. No caso da
cognição relativa ao estado interno, o fator externo do qual se parte é alguma marca
(externa) da existência deste estado (interno). O que cada uma dessas segundas
premissas faz (em sua respectiva "área de atuação") é aproximar as explicações de
Peirce para cada uma dessas faculdades cognitivas de um modelo geral. Este modelo
geral é o do signo.
Se observarmos o projeto filosófico peirceano como um todo e se recordarmos quais
foram as descobertas (no campo da lógica) que despertaram em Peirce a necessidade de
produzir uma resposta própria ao problema da possibilidade das sínteses, torna-se óbvio
porque a teoria da cognição que pretendeu desenvolver no QFCM tem como modelo
geral o processo sígnico. Como já nos referimos por diversas vezes, no período entre
1864 e 1865, Peirce descobre que todas as relações relevantes para a lógica (como as
relações sujeito-predicado, antecedente-consequente e premissa-conclusão) são casos
particulares de uma relação mais fundamental: a relação sígnica. Então, se o processo
inferencial (a relação entre premissa-conclusão) é um processo sígnico, então uma teoria
inferencial da cognição é, no fundo, uma teoria sígnica da cognição. Observando o
283
QFCM sob esta ótica, podemos ter uma compreensão por qual motivo Peirce caminha
no sentido de uma teoria inferencial da cognição.
Durante grande parte do QFCM, Peirce luta para estabelecer uma teoria que explique
diversas faculdades cognitivas afirmando que o processo cognitivo ocorre na
dependência de fatos externos. Segundo a teoria, os processos cognitivos nada mais são
que inferências que partem de fatos externos. Ora, em termo gerais, o signo é algo, é
um expediente sensível do qual se parte na direção de um objeto (i.e., de algo
representado), mas este ponto de partida é ele mesmo diferente do objeto, externo ao
objeto. Ao descrever qualquer tipo de conhecimento como resultante de algum processo
inferencial que parte de algo externo, Peirce estabelece que qualquer conhecimento
depende de signos. Esta é a tese-base.
Argumento geral da Q5
Premissa1: Se houvesse capacidade de se pensar sem recorrer a signos, então (ou)
haveria pensamentos incognoscíveis ou haveria pensamentos que poderiam ser
conhecidos a partir de fatos internos.
Premissa2 (estabelecida na Q4): Não há pensamentos que poderiam ser
conhecidos a partir de fatos internos.
Premissa3: Não há pensamentos incognoscíveis.
Conclusão: Não há capacidade de se pensar sem recorrer a signos.
É provável que para ser estabelecida nestes termos a tese-base necessite de um salto
indutivo. E isto também vale para o argumento geral da Q4, reapresentado mais acima.
Também a conclusão deste argumento depende que aquilo que foi observado para a
parte (que os tipos de pensamentos analisados dependem de algum tipo de processo
inferencial) também valha para o todo (todos os tipos de pensamento [os analisados e
os não analisados] dependam de algum tipo de processo inferencial).
Nas três questões anteriores à Q5, Peirce apenas apresentou argumentos para afirmar
que os (seguintes) três tipos de conhecimento dependem de inferência a partir de
elementos externos (i.e., dependem de signos): o conhecimento da existência do ego (a
autoconsciência), o conhecimento que nos permite distinguir entre os diversos tipos de
estados mentais e, por último, o conhecimento acerca de estados internos. Se
considerarmos que estes três tipos de conhecimento esgotam toda a atividade cognitiva,
se o que entendermos pelo termo "pensamento" puder se totalmente reduzido a estes
três tipos de conhecimento, então, neste caso, já podemos afirmar que "não há
capacidade de se pensar sem recorrer a signos". Caso contrário, devemos presumir que
Peirce, para derivar tal conclusão na Q5, deve ter considerado que estes três tipos acima
284
referidos são representativos da classe de todos os tipos de conhecimento. Porém, ainda
que a tese-base dependa de uma indução (como esta descrita), acreditamos que este não
é o ponto. Mesmo se considerarmos que a tese-base não possa ser estabelecida como
válida para todos os tipos de conhecimento possíveis, o que nos parece fundamental no
QFCM é que Peirce pretende apresentar sua teoria como a melhor hipótese capaz de
explicar a "vida" cognitiva, ao menos, melhor que as demais disponíveis que recorrem
ao conceito de intuição. Acreditamos que, neste ponto, para Peirce, já é suficiente
provar que uma teoria inferencial da cognição se sai melhor que as teorias adversárias.
Nesta quinta questão, vem à tona o problema do incognoscível. Ao longo de todo o
QFCM, Peirce tenta por diversas linhas argumentativas derrubar a hipótese de que
exista algo incognoscível. Na Q5, por exemplo, ele afirma que um pensamento não
pode ser incognoscível (cf. premissa3 do argumento geral da Q5 acima reapresentado).
Na Q6, por sua vez, Peirce afirma que o incognoscível não pode ser objeto de um signo
(ou seja, não há signo de algo incognoscível).
Argumento geral da Q6
Premissa1: Se o signo de algo absolutamente incognoscível tivesse algum
significado, este significado deveria ser relativo a uma concepção do
incognoscível proveniente da experiência.
Premissa2: Se o significado de tal signo fosse relativo a uma concepção do
incognoscível proveniente da experiência, então este seria um signo de algo
cognoscível.
Premissa3: Se o signo de algo absolutamente incognoscível fosse um signo de
algo cognoscível, então este signo seria uma autocontradição.
Conclusão: Ou o signo de algo absolutamente incognoscível é uma
autocontradição ou este signo não tem significado algum.
Na Q7, para tentar descartar de uma vez por todas, a hipótese a respeito da existência de
algum tipo de incognoscibilidade, Peirce recorre a uma espécie de princípio
metateórico. De acordo com a argumentação peirceana (que reapresentamos a seguir),
não podemos levantar a hipótese de que uma cognição seja determinada somente por
algo absolutamente externo (à consciência), porque esta hipótese se anularia na sua
função de hipótese, seria, nos termos de Peirce, uma autocontradição (cf. CP 5.260
[1868] e nossas análises no oitavo capítulo). A ideia é que a hipótese que afirma que um
objeto externo (à consciência) é o único responsável pelas determinações de uma
cognição, na verdade, está declarando que estas determinações não podem ser
explicadas. E (por uma espécie de princípio geral [metateórico] que rege a introdução de
hipóteses em teorias) uma hipótese não pode explicar um fenômeno declarando-o
inexplicável. Para Peirce, é exatamente isso que a ideia de incognoscibilidade cria
285
dentro de uma teoria epistemológica. Ela declara que há algo, há uma zona da realidade
que não pode ser conhecida.
Com relação ao problema do incognoscível, as argumentações peirceanas, da Q5 até a
Q7, vão no sentido de declarar a ideia de incognoscibilidade uma autocontradição (em
diversos níveis). Vejamos, este mesmo problema sob três ângulos diversos. Na Q5, a
ideia é afirmar que um pensamento não pode ser incognoscível. Na Q6, a ideia é afirmar
que um pensamento não pode ser sobre o incognoscível (i.e., um pensamento não pode
representar algo incognoscível). E, na Q7, a ideia é afirmar que o incognoscível não
pode estar na origem de uma cadeia de pensamentos (na forma de objeto externo).
Na Q5, Peirce defende que um pensamento, em si mesmo, não pode ser incognoscível,
aparentemente com base na ideia de que, se um pensamento pudesse ser incognoscível,
isto nos levaria a uma concepção autocontraditória da própria atividade cognitiva. Se
observássemos esta questão a partir da metáfora que correlaciona o pensamento à noção
de acessibilidade, então, caso o pensamento fosse incognoscível, ele seria algo como um
acesso inacessível, uma espécie de porta que foi construída para nunca ser aberta.
Portanto, para Peirce, todo pensamento deve torna-se acessível por meio de um signo
(i.e., algo externo a ele). Caso contrário, este pensamento seria algo como um
"pensamento que não pode ser pensado" ou uma cognição incognoscível (cf. nossas
análises na primeira seção do sétimo capítulo e também De Waal, 2007, p. 29). Já na
Q6, Peirce declara que um pensamento não pode nos levar ao incognoscível.
Estabelecido (na Q5), que todo pensamento é signo, Peirce nos garante que um
pensamento ou um signo não pode representar algo incognoscível, pois, neste caso,
como o seu significado deveria ser relativo a algo proveniente da experiência e, por isso,
algo cognoscível, o significado deste pensamento/signo sobre algo incognoscível teria
que ser relativo a algo cognoscível. Isto é um contradição. Na Q7, Peirce afirma que é
autocontraditória a própria hipótese de que haja algo de incognoscível responsável pelas
determinações do que poderíamos considerar nossas primeiras cognições. Na verdade,
dentro da teoria da cognição exposta não há primeiras cognições.
Nos três casos acima referidos (relativos às últimas três questões), a incognoscibilidade
é associada a algum tipo de autocontradição. Se sairmos do QFCM e o observarmos de
fora para dentro, perceberemos que o motivo pelo qual Peirce está impossibilitado de
admitir a existência de qualquer tipo de incognoscibilidade é que o incognoscível torna
inexplicável justamente o que seu projeto filosófico tenta explicar: a possibilidade das
sínteses. Não é por outro motivo que Peirce está impossibilitado de admitir dentro de
sua teoria a ideia de que as cognições intuitivas sejam pontos fundantes, originários (e,
por isso, absolutamente seguros) do processo cognitivo. Caso se admita a entrada da
intuição, a incognoscibilidade a acompanha. É a partir disso que podemos esclarecer a
contraposição da epistemologia peirceana e a cartesiana. No início do segundo texto da
série cognitiva ("Algumas consequências das quatro incapacidades"), Peirce apresenta
na forma de quatro itens o que entende por "espírito do cartesianismo" e o compara às
ideias filosóficas dominantes no período imediatamente anterior (a escolástica). A
286
seguir reproduzimos o quarto desses itens e o comentário geral feito por Peirce logo
depois de explicar no que consiste este "espírito do cartesianismo".
(...) 4. A escolástica tinha seus mistérios de fé, porém tentava explicar todas
as coisas criadas. Por sua vez, existem muitos fatos que o cartesianismo não
apenas não explica como torna absolutamente inexplicáveis, a menos que
afirmar que "Deus os fez assim" deva ser considerado uma explicação.
Sob alguns desses aspectos, ou sob todos, a maioria dos filósofos modernos
tem sido cartesiana. Agora, ainda que não pretenda retornar à escolástica,
parece-me que a ciência e a lógica modernas requerem que sejamos capazes
de nos colocarmos sob uma plataforma muito diferente desta [apresentada].
(CP 5.264-5 [1868])204
De acordo com que podemos depreender deste (quarto) ponto referido acima, Peirce
entende que o cartesianismo não apenas não explica a possibilidade do raciocínio sintético
como a torna inexplicável (exceto no caso em que se considere válida a explicação "Deus a
fez assim"). É conhecida a concepção peirceana de que filosofia poderia se desenvolver ao
tomar emprestado os métodos das ciências que obtiveram êxitos em seus propósitos de
produção de conhecimento (CP 5.265 [1868]). A orientação geral que Peirce segue é que a
filosofia e, em particular, a epistemologia deveriam ser reconstruídas sob novas bases e esta
reconstrução seria uma exigência da ciência e da lógica modernas. Como já esclarecemos
nos primeiros capítulos e revimos no início deste, um pensamento propriamente peirceano
(já demonstrando autonomia com relação à sua matriz [a filosofia kantiana]) começa a ser
desenvolvido a partir de descobertas no campo da lógica, sobretudo, aquela que garantiu a
Peirce que todas as relações elementares da lógica eram casos particulares da relação
sígnica. É isto que liga a descoberta no campo da lógica à solução propriamente semiótica
de um problema epistemológico: a possibilidade do raciocínio sintético e a ampliação do
conhecimento. A atividade cognitiva em geral é explicada como um processo sígnico (i.e.,
um processo interpretativo) e a ampliação do conhecimento, em particular, é explicada
como resultante de um processo sígnico que converge para um ponto de fuga. Uma das
pressuposições essenciais ao projeto filosófico peirceano (que pretende assentar a filosofia
sob novas bases) é que esta convergência não ocorreria caso houvesse "bolsões de
incognoscibilidade" na realidade. Por este motivo, dentro do QFCM, vemos Peirce lutando
contra a entrada em sua teoria da noção de incognoscibilidade. Já em período maduro de
sua carreira filosófica, esta profunda incompatibilidade entre a noção de incognoscível e a
filosofia peirceana foi sintetizada na forma de um princípio geral, que Peirce denominou de
lei fundamental da razão (CP 7.135 [1989]).
Lei fundamental da razão
"Não bloqueie o caminho da investigação"
204
No original: (...) 4. Scholasticism had its mysteries of faith, but undertook to explain all created things.
But there are many facts which Cartesianism not only does not explain but renders absolutely
inexplicable, unless to say that "God makes them so" is to be regarded as an explanation. In some, or
all of these respects, most modern philosophers have been, in effect, Cartesians. Now without wishing to
return to scholasticism, it seems to me that modern science and modern logic require us to stand upon a
very different platform from this.
287
Para Peirce, esta lei deveria ser gravada em todo e qualquer muro da cidade da filosofia.
É óbvio que a concepção do que é real que começa a emergir da teoria semiótica da
cognição exposta no QFCM não deve admitir a existência "bolsões de
incognoscibilidade" na realidade. Aliás, dentro do próprio QFCM, esta
incompatibilidade que surge dentro da epistemologia já ganha uma contraparte
metafísica. Ainda na Q6, Peirce afirma que tudo o que há deve poder ser conhecido. O
ser é ser conhecível. Não há realidade incognoscível. Esta é uma tese metafísica. É
justamente a tese-base o ponto fundamental para as teses peirceanas provenientes de
diferentes "terrenos" filosóficos, a lógica ou semiótica, epistemologia e a metafísica.
Vejamos, primeiro, porque a tese-base pode ser considerada o epicentro das
reformulações propostas por Peirce na epistemologia e como isso acarreta numa certa
visão metafísica.
A tese-base funciona como um comutador teórico. Ela transforma afirmações a respeito
de signos em afirmações a respeito de cognições e vice-versa. Assim, a teoria da
cognição desenvolvida por Peirce é estruturalmente semelhante à sua teoria geral dos
signos. Se toda e qualquer proposição de uma delas pode ser convertida numa
proposição equivalente na outra, isto significa que a proposição "não há primeira
cognição" é equivalente à proposição "não há primeiro signo". Isto, de fato, é
importante para o projeto filosófico peirceano como um todo, pois o fato de a teoria
afirmar a inexistência de último elemento na cadeia de signos/cognições desemboca
numa reformulação do conceito de realidade. É justamente neste ponto que as reflexões
epistemológicas de Peirce se encaminham para estabelecer teses no terreno da
metafísica. A concepção de realidade a que chega Peirce no segundo artigo da série
cognitiva é resultante da solução semiótica encontrada para um problema
epistemológico (a possibilidade das sínteses).
Ao equacionar, signo e pensamento, a teoria da cognição de Peirce opera uma
reformulação do conceito de verdade. Se fizermos uma comparação da epistemologia
peirceana com aquela apresentada por Descartes (no "Meditações" ou no "Discurso do
método"), o primeiro ponto a ser notado é que o conceito de verdade que emerge dos
textos da série cognitiva foi "deslocado". Na epistemologia cartesiana, a verdade é um
valor atribuído à proposição da qual se parte para fundar um sistema de crenças. No
caso do projeto fundacionalista cartesiano, a proposição inicial é "cogito, ergo sum". Na
epistemologia peirceana, como não é possível se partir de uma proposição
necessariamente verdadeira (ou, conforme a Q1, não é possível se ter certeza sobre a
verdade de um ponto de partida), todo ponto de partida é necessariamente hipotético e a
verdade passa a ser um valor que só pode ser atribuído ao ponto de chegada. O
problema é que não se pode chegar efetivamente no ponto de chegada. Ele é um
projeção, um ponto de fuga. Como conceder validade a um processo cujo ponto de
partida é necessariamente hipotético? Como poderia a verdade emergir no meio do
caminho? A resposta de Peirce é que a verdade não surge no meio, mas ao longo do
processo. E a verdade só pode emergir ao longo do processo se garantirmos que o
288
processo seja autocorrígivel. Para que o processo de conhecimento seja autocorrígivel,
deve-se pressupor que o processo seja aplicável sobre si mesmo, ou seja, que o
resultado de um estágio do processo dependa do resultado do estágio anterior. Em
linhas gerais, esta parece ser a origem da recursividade dentro do horizonte teórico do
projeto filosófico peirceano. A descrição geral do processo de obtenção do
conhecimento é que este é um processo (de natureza sígnica) que não possui ponto
originário (e, por isso mesmo, nem poderia possuir um ponto final pré-estabelecido).
Como a teoria semiótica da cognição apresentada por Peirce no QFCM não pode
admitir a existência de algo incognoscível e qualquer ponto originário (como uma
intuição num papel fundacional) acarreta a existência de alguma incognoscibilidade, a
obtenção de conhecimento só pode ser descrita como um processo interpretativo sem
ponto originário. Não é por outro motivo que o ponto final do QFCM é o
estabelecimento da tese que não há cognição originária.
Argumento geral da Q7
Premissa1: Se o processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma
natureza contínua, então, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre
possível distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou.
Premissa2: Se, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre possível
distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou, então
tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por cognições anteriores.
Premissa3: Se tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por
cognições anteriores, então não há cognição originária.
Premissa4: O processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma
natureza contínua.
Conclusão: Não há cognição originária.
Como deixamos claro na análise da Q7 (apresentada na segunda seção do sétimo capítulo),
o grande problema é a concepção de continuum mobilizada por Peirce no QFCM. Dentro
do QFCM, nas quatro primeiras questões, Peirce desenvolve linhas argumentativas que
confluem para o estabelecimento da tese-base. Esta é enunciada apenas na Q5. Nas duas
últimas questões, Peirce se dedica à tarefa de descartar de vez qualquer recurso à intuição
ou incognoscibilidade e de nos convencer que é possível conceber a atividade cognitiva
como um processo sem pontos originários. Esta é uma consequência direta da tese-base. Se
a tese-base for verdadeira, então se segue que não há primeira cognição. Para "manter de
pé" sua teoria inferencial (ou sígnica) da cognição, Peirce precisa explicar como é possível
haver pensamento se toda cognição é determinada por uma cognição anterior (e não há
ponto de origem). Como vimos, o que Peirce precisa explicar é a natureza contínua do
pensamento, da atividade cognitiva. Esta explicação cuja necessidade estava posta desde as
289
primeiras linhas da Q5 foi adiada até as últimas linhas da Q7, a questão final do QFCM.
Então, ao apagar das luzes, como última cartada, Peirce aposta num argumento por
analogia. Este ponto é essencial para o QFCM e para o projeto filosófico do jovem Peirce,
pois a tese-base para ser estabelecida depende da afirmação de que a atividade cognitiva, o
pensamento tem uma natureza contínua e não uma natureza discreta. Sem esclarecer o que
entende por continuidade no QFCM, Peirce cria um ponto altamente vulnerável para todo o
projeto filosófico, pois a tese-base é o elemento central dentro do QFCM e o QFCM é peça
indispensável para o funcionamento da "engrenagem argumentativa" da série cognitiva205
.
Recordemos que esta "engrenagem" funciona da seguinte forma: as peças básicas do
pensamento peirceano (inclusive a definição de signo) são concebidas no artigo "Sobre uma
nova lista de categorias"; estas peças são mobilizadas para construção de uma teoria
inferencial (ou sígnica) da cognição iniciada no primeiro artigo da série cognitiva (QFCM);
por sua vez, esta teoria desemboca, no segundo artigo da série, numa reformulação
conceitual (do que é realidade, verdade, sujeito cognoscente) que passa a ficar alojada
dentro de uma espécie de "teoria social da lógica" que cria condições para que Peirce possa
responder, no terceiro artigo da série, como funciona a validade para raciocínios sintéticos
(ou ampliativos). Dentro de toda esta engrenagem argumentativa, para que a teoria
inferencial (ou sígnica) da cognição possa cumprir seu papel, a tese-base da semiótica tem
que estar estabelecida. Ela que é a responsável, dentro do primeiro artigo da série (QFCM),
por fazer uma ponte entre semiótica (teoria que trata de signos) e epistemologia (teoria que
trata de conhecimento) e, assim, criar as condições que tornam possíveis aquelas
reformulações conceituais acima mencionadas (e que foram desenvolvidas por Peirce nos
artigos subsequentes). Ora, não foi por outro motivos que afirmamos que a explicação
peirceana acerca da natureza contínua do pensamento é o calcanhar de Aquiles do seu
projeto filosófico.
Entretanto, se "deixarmos" de lado este ponto fraco nas argumentações do QFCM e
considerarmos estabelecida a tese-base e, assim, também a teoria inferencial (ou sígnica) da
cognição, notaremos que por trás da série cognitiva há uma teoria semiótica que depende de
duas teses fundamentais: num processo interpretativo, não há primeiro signo e, num
processo interpretativo, não há último signo. A mais notável consequência do
estabelecimento de uma teoria inferencial da cognição (dentro da série cognitiva) é que não
pode haver primeira cognição, o que é equivalente à afirmação de que não pode haver
primeiro signo. E uma das consequências mais notáveis desta consequência acima referida é
que também não pode haver última cognição, o que é equivalente à afirmação de que não
pode haver último signo. Aliás, o segundo grande movimento argumentativo do QFCM é
justamente desenvolvido para provar que é possível se desenvolver uma teoria da cognição
sem pontos originários, sem intuição no papel de fundação do processo cognitivo. É este
segundo movimento que termina naquele argumento por analogia colocado ao final da Q7.
205
Outro problema para a “engrenagem argumentativa” para sustentar estas teses elementares é o que
ficou conhecido na literatura especializada na obra peirceana sob o nome de “tese da irredutibilidade da
relação triádica”. Trataremos deste problema (tão fundamental quanto o do continuum) no último
capítulo.
290
9.2 - Segundo movimento argumentativo geral do QFCM: o
estabelecimento da tese a respeito das origens do processo
cognitivo
Além de sustentar o que denominamos de tese-base (da semiótica), grande parte do
esforço de Peirce no QFCM está voltado para a demonstração de que é possível
estabelecer uma teoria da cognição sem recorrer ao conceito de intuição (com um papel
fundacional). Por este motivo, ele se viu obrigado a sustentar a ideia de que toda
cognição é determinada por uma cognição anterior (do mesmo objeto). Assim, dentro da
teoria da cognição (elaborada por Peirce na série cognitiva) não se pode admitir que
haja uma primeira cognição ou, o que é equivalente (uma vez estabelecida o que
denominamos de tese-base), não há um primeiro signo.
O papel do QFCM dentro do projeto filosófico peirceano é estabelecer justamente esta
equivalência entre signo e pensamento. Durante as quatro primeiras questões do QFCM,
Peirce faz uma descrição geral do que seria uma teoria da cognição alternativa àquelas
teorias que recorrem à intuição (para funcionar como ponto de fundação do processo de
conhecimento). As características atribuídas à cognição nestas quatro primeiras questões
do QFCM levam Peirce a estabelecer, na quinta questão, uma equivalência entre o
processo cognitivo (a atividade de pensar) e o processo sígnico (a atividade de
interpretar um signo em outro).
Durante as análises do Q5 (no sétimo capítulo), explicamos que o ponto comum entre o
processo cognitivo e o sígnico era em que ambos os casos o processo se dava por meio
de um procedimento no qual um elemento (um signo ou um pensamento) é algo que
deve ser sempre remetido a outro elemento semelhante (outro signo ou outro
pensamento) que lhe serve de interpretante. Da mesma forma que todo signo deve ser
interpretado em outro signo, todo pensamento deve ser interpretado em outro
pensamento. Assim, os pensamentos, as cognições parecem funcionar dentro da mente
da mesma forma que as palavras funcionam do lado fora dela. As palavras (que são
signos por excelência) parecem funcionar (i.e. significar) quando remetem a mente de
uma pessoa para outras palavras. Portanto, de acordo com a teoria desenvolvida no
QFCM, também as cognições devem necessariamente remeter a outras cognições. As
linhas argumentativas desenvolvidas até a Q4 desembocam na ideia de que o homem só
tem acesso a uma cognição (i.e., ele só pode interpretá-la) ao ser produzida uma nova
cognição (que será por este exato motivo denominada de interpretante).
Entretanto, como teoria da cognição do QFCM tem um papel central no projeto
filosófico peirceano, para que seja demonstrada a equivalência entre pensamento e
signo, Peirce deve garantir certas propriedades para ambos os processos dos quais
afirma a equivalência. Por exemplo, o filósofo americano deve garantir que tanto o
processo cognitivo como o sígnico possam funcionar na ausência de um ponto de
origem absoluto e também na ausência de um ponto de chegada (pré-estabelecido), ou
291
seja, possa funcionar numa espécie de fluxo. Essas duas propriedades (de poder
funcionar "sem início e fim") do processo cognitivo/sígnico são ideias fundamentais
para o projeto filosófico do jovem Peirce. E, de fato, podemos enxergar nas linhas
argumentativas do QFCM duas proposições que chamaremos de teses elementares da
semiótica.
Teses elementares da semiótica peirceana
Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo interpretativo).
Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo interpretativo).
Tese adicional
Tese_3 da semiótica --> Todo processo interpretativo tem um número infinito de
elementos.
A pergunta que devemos nos fazer é como estas duas teses elementares podem ser
estabelecidas dentro das linhas argumentativas desenvolvidas no QFCM ou, de forma
mais abrangente, dentro do sistema filosófico do jovem Peirce. Focalizemos na primeira
dessas teses. Como é possível, com o "material" que temos nos QFCM, sustentar a
afirmação de que, num processo interpretativo (i.e. numa cadeia sígnica), não há
primeiro signo? Uma das primeiras soluções que pode nos vir à mente é utilizar aquela
equivalência enunciada na tese-base. Entretanto, com esta medida não se vai muito
longe. Na verdade, não se vai a lugar algum, pois, caso se utilize a equivalência entre o
conceito de signo e o de cognição para afirmar que não há primeiro elemento num
processo sígnico, o argumento se torna circular. E isto ocorre por um simples motivo: o
objetivo geral do QFCM dentro do projeto filosófico é justamente provar que a
cognição age tal como um signo. Assim, feita esta observação, reparemos que, se
considerarmos que o conceito de cognição é equivalente ao conceito de signo (o que é
garantido pela tese-base), como está expresso a seguir, a argumentação geral do QFCM
seria circular.
Trecho de argumento para estabelecimento da Tese_1 da semiótica a partir do
QFCM que torna circular a argumentação do QFCM
Premissa1 (conclusão da Q7): Não há primeira cognição.
Premissa2 (tese-base da semiótica): Cognições e signos são equivalentes.
Conclusão: Não há primeiro signo.
292
O problema está justamente no fato de que, para estabelecer a tese-base, a proposição
"não há primeiro signo" já deve estar estabelecida. Isto nos leva a desconfiar que a tese
"não há primeiro signo" esteja pressuposta no QFCM. Durante todo o QFCM, o
conceito central, o signo, não foi discutido, definido, nem analisado em seus
pormenores. O motivo que nos parece justificar tais ausências é o fato de tal conceito já
ter sido apresentado num artigo imediatamente anterior ao QFCM e que, inclusive, lhe
serve de base. Este artigo é o "Sobre uma nova lista de Categorias" (1867) e ele será
objeto de um detalhado estudo que nos custará outra centena de páginas (capítulos 10,
11 e 12).
Se nos limitarmos a observar as linhas argumentativas a partir de uma perspectiva
interna ao próprio texto (o que, por motivos metodológicos, nos comprometemos a fazer
durante os capítulos de análise do QFCM), parece que a tese que afirma que não há
primeira cognição é estabelecida em primeiro lugar e depois correlacionada à tese a
respeito da não existência do primeiro signo. A aparência é a de que Peirce primeiro
constrói uma teoria da cognição e depois a encaixa numa teoria semiótica, ou seja,
primeiro ele teria feito uma série de afirmações sobre cognições e, posteriormente, teria
notado que estas se comportam como signos. Na verdade, Peirce, em primeiro lugar,
obtém uma teoria que descreve o comportamento do signo e, ao notar que o mecanismo
responsável por fazer um signo funcionar é capaz de explicar a possibilidade de síntese
(i.e. a ampliação de conhecimento) ao recorrer a um processo de natureza contínua (e é
exatamente disso que ele precisa para construir uma teoria da cognição que não recorra
a ponto originário algum, i.e., sem intuição), então ele deduz o que deveria ser o
comportamento da cognição para que fosse semelhante ao comportamento do signo. A
intenção de Peirce parece ser a de apresentar o processo cognitivo como um "exemplar"
do comportamento geral do signo, pois esta explicação semiótica da atividade cognitiva
não apenas seria capaz de explicar as mesmas faculdades (cognitivas) que as teorias
adversárias explicam como também poderia propor uma resposta plausível para a
validade do raciocínio sintético, uma vez que Peirce não considera plausível a resposta
segundo a qual este tipo de raciocínio seria validado pela natureza benevolente de
Deus206
.
Como vimos ainda no primeiro capítulo (e também revimos neste), a partir de 1865,
Peirce já sabia que inferências (predicações e condicionais) eram casos particulares de
relações sígnicas. Uma teoria inferencial da cognição é, então, uma teoria que explica as
faculdades cognitivas com conceitos semióticos ou, ao menos, que podem ser reduzido
a estes. Afinal, inferências são tipos de signo. Portanto, logicamente, dentro do projeto
filosófico peirceano, o que vem primeiro é o modelo geral de signo. Este modelo é
logicamente anterior, porque é o seu mecanismo de funcionamento que explica porque
não há primeiro elemento no caso das cognições. Dentro do QFCM, Peirce não se
esforça para estabelecer porque, dentro de um processo sígnico, não há primeiro signo,
206
A esse respeito, cf. seção anterior deste capítulo, a primeira seção do terceiro capítulo e também CP
5.264-5 [1868].
293
o que ele de fato faz com considerável empenho é tentar estabelecer porque não há
primeira cognição e, nisso o processo cognitivo é essencialmente igual ao processo
sígnico. Que o processo sígnico não tenha primeiro elemento simplesmente não é
discutido no QFCM. Isto é pressuposto. Neste primeiro artigo da série cognitiva, como
esclarecemos, a definição de signo não é sequer oferecida. Deve-se enfatizar que, no
QFCM, já se parte da ideia de que não haja primeiro signo. O debate é se o processo
cognitivo é de fato semelhante ao processo sígnico. Por este motivo, a tese central do
QFCM é a tese-base da semiótica. Da Q1 até a Q5, Peirce trata de estabelecê-la. Na Q6
e Q7, o filósofo já avalia algumas consequências do estabelecimento da tese-base e trata
de argumentos contrários à sua proposta teórica. Para que a tese-base funcione dentro do
QFCM como "comutador" teórico entre semiótica e epistemologia (cf. seção anterior) e
sustente sua teoria inferencial (portanto, semiótica) da cognição de forma a permitir a
elaboração de uma resposta plausível ao (que considera ser o) problema central da
filosofia, Peirce precisa de já ter estabelecido a ideia de que um processo sígnico ocorra
na ausência de um ponto originário e de um ponto de chegada pré-estabelecido. E o
funcionamento do processo sígnico sob tais condições é justamente o que nos garante as
teses fundamentais: "Não há primeiro signo num processo interpretativo" (Tese_1 da
semiótica) e "Não há último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da semiótica).
O que pretendemos provar (nos capítulos subsequentes) que ocorre com o sistema de
Peirce é que as teses fundamentais são derivadas diretamente da definição de signo
apresentada no texto "Sobre uma nova lista de categorias" e aparentemente a definição
de signo, por sua vez, segue uma orientação geral. Como já afirmamos, esta orientação
não é explicitada na série cognitiva, mas amadureceu ao longo do tempo na forma de
um princípio geral, que Peirce denominou de lei fundamental da razão: "Não bloqueie o
caminho da investigação" (CP 7.135 [1989]). A nossa tese central é que é justamente o
mecanismo recursivo interno ao conceito de representação que está dentro do conceito
signo (conforme definido no texto "Sobre uma nova lista") que nos permite derivar o
que denominamos de teses fundamentais da semiótica peirceana.
A sustentação das duas teses fundamentais depende de uma análise interna do conceito
de signo. Apenas com um exame da estrutura interna do signo (suas três partes básicas)
e um estudo do mecanismo de representação que o faz funcionar como signo é que se
torna possível estabelecer estas duas teses elementares. Para que já sejamos precisos
com relação a este ponto, só podemos lidar com esta questão depois de introduzir o
conceito de interpretante (que é "a terceira parte" do conceito peirceano de signo). Este
conceito será introduzido e devidamente analisado nos próximos capítulos. O que
podemos fazer por enquanto é apresentar um esboço de um argumento dedicado a
sustentar esta segunda tese da semiótica apenas lançando mão das proposições
estabelecidas no QFCM.
Ora, a primeira dessas teses pode ser facilmente enxergada dentro dos argumentos do
QFCM, uma vez que grande parte das três últimas questões deste primeiro artigo da
série cognitiva foi dedicada justamente a provar que não há primeira cognição e, de
forma similar, não deve haver também primeiro signo. Com relação à segunda tese, a
294
ideia por trás da proposição "não há último signo" é a de que não há fim para o processo
sígnico ou interpretativo (e equivalentemente também não deve haver fim para o
processo cognitivo). Vejamos o porquê. O último signo seria aquele que representaria
totalmente o seu objeto. Ele seria o último estágio do processo interpretativo.
Como num processo inferencial só podemos ter garantias com relação à verdade da
conclusão com base na verdade das premissas, o que ocorreria no caso em que não
podemos ter certeza com relação à verdade das premissas? O que ocorreria é que toda e
qualquer conclusão (retirada dessas premissas) teria um caráter hipotético, i.e., nunca
poderíamos ter certeza alguma com relação a tal conclusão. Num processo inferencial o
único modo de se garantir a verdade de um ponto de chegada (a conclusão) é sustentá-la
na verdade do ponto de partida (as premissas). O problema é que na teoria da cognição e
também na semiótica peirceanas, não se pode ter certeza com relação ao ponto de
partida. Não há fundações, não há primeiras premissas. Não há nenhuma proposição da
qual se possa afirmar que seja necessariamente verdadeira e que, por isso, poderia
ocupar a posição de primeira premissa. Se, ao contrário do projeto fundacionalista
cartesiano (brevemente apresentado no terceiro capítulo), na epistemologia que Peirce
propõe na série cognitiva, não é possível encontrar algum ponto de partida privilegiado,
uma intuição da qual se possa se partir (carregando adiante sua certeza inicial), então
não se pode ter certeza com relação ao ponto de chegada. Não há como transferir a
verdade de um ponto inicial para um ponto final, pois simplesmente não há nada que
garanta que o ponto de partida seja efetivamente verdadeiro. Isto significa que o
processo interpretativo não termina e o motivo que justifica a ausência de um ponto
final é o caráter hipotético dos pontos de partida.
Quando Peirce, dentro do QFCM, rejeita qualquer possibilidade de se ter certeza que se
encontrou algum tipo de ponto de partida absolutamente certo para se iniciar um
raciocínio, ele, ao mesmo tempo, rejeita qualquer possibilidade de se poder ter certeza
que se encontrou algum tipo de ponto de chegada absolutamente certo. A verdade, a
certeza com relação ao que afirma alguma proposição, é um ponto de fuga. Para poder
construir uma teoria epistemológica que descreva a atividade cognitiva de forma a
permitir que seja explicada a possibilidade do raciocínio sintético (i.e., a ampliação do
conhecimento), Peirce deve buscar algum processo que funcione na ausência de pontos
originários ou pontos de chegada pré-estabelecidos. É neste momento que podemos
divisar os motivos que levaram Peirce a caracterizar recursivamente a relação de
representação que está dentro do conceito de signo. O primeiro ponto, explicar o que se
entende por definição ou caracterização recursiva.
Recordemo-nos da caracterização recursiva que oferecemos (ainda no texto
introdutório) de um tipo de operação (muito comum em matemática) denominada de
fatorial. Esta operação é representada pelo símbolo " ! ". Por exemplo, o fatorial de um
número n é representado como n! e o resultado desta operação é " n x (n - 1)! ". O valor
resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n é o número n multiplicado
pelo fatorial de seu antecessor e isto significa que o resultado desta operação depende
do resultado desta mesma operação para um caso anterior. A tal recursividade consiste
295
justamente no fato desta operação recorrer à uma referência a ela mesma para poder ser
definida. Não é demais repetir que tal definição não é circular, pois esta recorrência é
feita para um caso anterior da aplicação da operação definida. Como vimos os casos
anteriores são dados numa sequência até que se atinja um caso primeiro cujo resultado é
definido pela chamada cláusula base. O caso base é a operação fatorial para o número 1.
Neste caso (de acordo com a cláusula base), o valor de 1! é 1.
Caracterização recursiva da operação fatorial
Cláusula n°1 (cláusula base) --> Se o número (diante do símbolo que representa a
operação fatorial) for menor ou igual a 1, então o valor da operação fatorial é 1.
Cláusula n°2 (regra geral) --> Caso o número (diante do símbolo que representa a
operação fatorial) tenha outro valor que não seja menor ou igual a 1, então o
valor da operação fatorial é o valor do número multiplicado pelo valor da
operação fatorial aplicada sobre o antecessor deste número.
Como já recordamos da definição ou caracterização recursiva da operação fatorial,
voltemos para o caso da segunda tese elementar da semiótica ("não há último signo"),
pois as semelhanças entre a noção geral de recursividade e o processo sígnico ou
cognitivo (descrito por Peirce no QFCM) já devem saltar às vistas do leitor. A ideia é
simples: se supuséssemos uma situação na qual os processos sígnicos funcionassem de
forma recursiva sem que houvesse, no entanto, alguma cláusula base, notaríamos que,
nesta situação, o tal processo sígnico continuaria indefinidamente. Assim, estaria
estabelecida a tese de que não há um signo último. Vejamos que tanto num processo
sígnico (ou cognitivo) como na operação fatorial (conforme definida acima) há uma
recorrência a elemento anteriores de uma sequência. Cada elemento da sequência (sejam
signo, cognições ou fatoriais) é determinado por um elemento anterior. Comparemos.
No caso do fatorial esta determinação é clara. O valor de 1! determina o valor de 2!. Por
sua vez, o valor de 2! determina o valor de 3!. E assim por diante. Como numa cadeia
sígnica, cada signo é determinado por um signo anterior. Assim o valor de 3! depende,
em última instância, do valor de 1!. Porém, só podemos calcular com precisão e certeza
matemáticas o valor de 3! porque estamos de posse (graças à própria definição da
operação fatorial fornecida acima) do valor de 1!. O cálculo de n! não deixa de ser um
processo inferencial que depende do cálculo de (n - 1)! . As garantias de que estamos
diante de um valor correto para uma operação específica de fatorial estão todas
depositadas nos valores das operações que obtivermos para os casos anteriores e, em
última instância, para o primeiro caso (que é dado na definição).
Considere, então, uma situação em que não há uma cláusula base definida para a
operação fatorial. Apenas com a regra geral (sem a cláusula base), não seria possível
obter algum resultado no cálculo do fatorial para um número qualquer. Seja qual fosse o
296
número, o valor resultante dependeria sempre do caso anterior e, como não haveria (pré-
estabelecido) nenhum "primeiro caso", então este procedimento não teria fim. Notemos,
então, que estamos diante de um processo que é capaz de produzir um número infinito
de elementos dentro de uma sequência na qual um elemento que esteja na posição an
(dentro da sequência) depende do elemento que está posição an-1 (dentro da mesma
sequência). Os elementos são construídos com base no elemento anterior. Numa
operação caracterizada recursivamente, esta dependência é clara. Um número que seja
resultado da operação na posição an é de alguma forma resultante da aplicação da
operação sobre o número que está posição an-1. É exatamente deste tipo de processo que
Peirce precisa para construir uma teoria da cognição dentro da qual o processo do
conhecimento possa ocorrer na ausência de ponto originário e disso depende a
sustentação do projeto filosófico peirceano como um todo.
Portanto, para que o projeto filosófico peirceano atinja seu objetivo de responder como
são possíveis as sínteses, Peirce precisou estabelecer o que denominamos de teses
elementares de sua semiótica: "não há primeiro signo num processo interpretativo"
(Tese_1 da semiótica) e "não há último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da
semiótica). A nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do conceito de
representação que está no coração do conceito de signo (ou processo interpretativo) da
semiótica peirceana é necessariamente recursiva. Sem esta recursividade (ou recurso
semelhante), simplesmente não seria possível derivar essas duas teses elementares.
Como veremos no último capítulo (o décimo terceiro), se tentarmos criar uma teoria
semiótica sem a caracterização recursiva de representação, então, dentro deste corpo
teórico, não seria possível garantir que em todo processo interpretativo não haja ponto
originário ou ponto de chegada preestabelecido. Portanto, enunciemos novamente a
nossa tese central.
TESE de Doutorado - A caracterização do conceito de representação (interno
à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva.
Em resumo, para que funcione a solução teórica encontrada por Peirce para o (que
considera o) problema central da filosofia, as duas teses fundamentais acima referidas
têm que ser verdadeiras e a verdade destas depende da recursividade que é encontrada
dentro da concepção de signo ou de processo representativo. Embora a verdade das
chamadas teses elementares da semiótica peirceana seja condição necessária para que
funcione a referida solução teórica, não se pode afirmar que ela seja uma condição
suficiente. Outros fatores (que não poderemos submeter à análise neste trabalho) entram
em jogo, como a natureza do processo de convergência previsto pela teoria.
Entendido que as duas teses são condições necessárias para a sustentação do projeto
filosófico de Peirce, focalizemos a relação entre as teses elementares e a caracterização
recursiva de representação mobilizada por Peirce para definir o processo representativo
ou interpretativo. Nossa tarefa deste ponto em diante é provar que a caracterização
297
recursiva de representação é uma condição necessária para o estabelecimento das duas
teses. O primeiro passo neste sentido é elaborar uma análise do texto em que Peirce
apresenta uma definição de signo (ou de processo interpretativo) com esta
caracterização recursiva de representação. Este texto é intitulado "Sobre uma nova lista
de categorias" e ele serve de base para as linhas argumentativas desenvolvidas por
Peirce na série cognitiva.
298
CAPÍTULO 10
Análise do texto "Sobre uma nova lista de
categorias" (ONLC)
Na última centena de páginas, esforçamo-nos para produzir uma análise da estrutura
argumentativa do primeiro artigo da série cognitiva: "Questões concernentes a certas
faculdades reivindicadas para o homem" (QFCM). Grande parte deste esforço foi
dedicada à explicitação das linhas argumentativas que sustentam o que foi, nesta
análise, denominado de tese-base da semiótica. De acordo com tal tese: “todo
pensamento é pensamento em signos”.
Como explicamos nos três primeiros capítulos, a semiótica nasce da separação do
pensamento peirceano de sua matriz kantiana. Conforme tese defendida nestes capítulos
iniciais, o distanciamento de Peirce com relação a Kant pode ser explicado como
resultante de algumas descobertas na área da lógica feitas entre os anos 1864 e 1866. A
principal delas é descoberta que a relação sujeito-predicado, a relação antecedente-
consequente e a relação entre premissas e conclusão são casos particulares de uma
relação mais fundamental: a relação sígnica. Estas descobertas levaram Peirce a
desconfiar das bases lógicas sobre as quais estavam assentadas as categorias
apresentadas na “Crítica da Razão Pura” e isto acabou por obrigá-lo a construir seu
próprio sistema de categorias, tarefa que seria concluída apenas em 1867, quando
publica o artigo “Sobre uma nova lista de categorias” (“On a new list of categories”). É
a partir de seu próprio sistema de categorias que Peirce vislumbra a possibilidade de
responder o que considera o problema maior da filosofia: como são possíveis as sínteses
(ou os raciocínios ampliativos)? (cf. CP 5.348 [1868]). A resposta peirceana é que uma
síntese é resultante de um processo de representação, ou seja, o que torna possível a
síntese é um processo interpretativo, é uma ação sígnica. Não é por outro motivo que a
terceira das categorias peirceanas trazidas à luz neste artigo 1867 é denominada
“representação”. É exatamente para este artigo que voltaremos nossas “capacidades
analíticas” neste décimo capítulo. Aliás, a partir desse ponto de nossa exposição em
diante iremos nos referir ao artigo “Sobre uma nova lista de categorias” com a sigla
ONLC (“On a New List of Categories”).
É verdade que, em nossas análises, invertemos a ordem cronológica e também lógica da
exposição do pensamento peirceano. Em primeiro lugar (do capítulo 4 ao 9), analisamos
a teoria da cognição contida na epistemologia peirceana e deixamos para ser analisada
em segundo lugar (capítulo 10) a base sobre a qual foi erigida esta teoria da cognição.
Esta base é obviamente o sistema de categorias, uma vez que, conforme já antecipamos
nos primeiros capítulos (e veremos com mais detalhes neste e nos próximos capítulos),
299
a terceira categoria é aquela responsável por um processo (recursivo) de representação
cuja função, dentro da teoria das categorias, é a de responder como é possível haver
síntese. Antes de seguirmos pra as análises, esclareçamos novamente o que se entende
por síntese dentro do ONLC.
Em geral, o conceito de síntese se refere a uma operação que tem como resultado a
união de elementos diversos. Na filosofia, o conceito se refere principalmente à união
entre (o termo) sujeito e (o termo) predicado dentro de um contexto proposicional.
Nesta acepção, uma proposição é justamente o resultado de uma síntese. Por exemplo, a
proposição "todas as baleias são azuis" pode ser entendida como algo (um enunciado
linguístico) que propõe uma síntese entre a ideia de baleia e a ideia de azul. Por um
lado, pode-se afirmar que a síntese produz uma proposição que é (nalgum sentido da
palavra) mais complexa que suas componentes (que, neste sentido, seriam mais
simples), mas, por outro lado, também se pode afirmar que, numa proposição, ao se
sintetizar sujeito e predicado, obtém-se algo mais "simples" . Esta simplicidade
associada à síntese, nesta segunda acepção, consistiria na ideia de captar de uma só vez
aquilo que, de outra forma, teria que ser captado em dois momentos. Em outras
palavras, a síntese diria respeito à captação (pela mente) de elementos diversos num só
ato do conhecimento. Parece-nos que dentro dos limites desta acepção que o termo
síntese é definido pelo filósofo alemão Immanuel Kant na obra “Crítica da Razão Pura”.
Entendo pois por síntese, na acepção mais geral da palavra, o ato de juntar,
umas às outras, diversas representações e conceber sua diversidade num
conhecimento
(KrV, A77 / B 103).
(...) a síntese de um diverso (seja dado empiricamente ou a priori) produz
primeiro um conhecimento, que pode aliás de início ser grosseiro e confuso e
portanto carecer de análise, no entanto é a síntese que, na verdade, reúne os
elementos para os conhecimentos e os une num determinado conteúdo; é pois
a ela que temos de atender em primeiro lugar, se quisermos julgar sobre a
primeira origem do nosso conhecimento.
(KrV, A77-78 / B 103)
No ONLC, as categorias (qualidade, relação e representação) são conceitos ou
concepções introduzidas para explicar como é possível haver síntese dentro de uma
proposição. Para Peirce, a unidade à qual o entendimento reduz as impressões é a
unidade de uma proposição. "Esta unidade consiste na conexão entre o predicado e o
sujeito" (CP 1.548)207
. Antes de seguirmos para a explicação do modo como este
décimo capítulo foi divido, devemos fazer uma observação com relação ao ponto de
partida da teoria peirceana desenvolvida no ONLC.
Como vimos nos primeiro capítulos, a partir de 1864, antes mesmo daquelas
descobertas no campo da lógica que o impeliriam a elaborar seu próprio sistema de
207
No original: "the unity to which the understanding reduces impressions is the unity of a proposition.
This unity consists in the connection of the predicate with the subject".
300
categorias, Peirce começa a se distanciar da concepção kantiana da lógica expressa na
“Crítica da Razão Pura” graças a estudos que fez da obra de alguns lógicos medievais.
Segundo a análise de Murphey (1993 [1961], p. 56), a esta altura, o entendimento que
Peirce começou a desenvolver a respeito da lógica já estava sob a influência de Scotus e
isto já pode ser apontado como um dos motivos do gradual afastamento do pensamento
peirceano com relação à sua matriz kantiana. Por um lado, para Kant (e este
posicionamento se reflete de forma fundamental na “Crítica da Razão Pura”), o foco
principal da lógica é a proposição e o estudo da proposição deve preceder o estudo da
estrutura maior na qual as proposições estão encaixadas, a saber, o silogismo. Por outro
lado, para Scotus, o foco principal da lógica é o silogismo e o estudo do silogismo deve
preceder o estudo das proposições, uma vez que as únicas distinções logicamente
significativas entre proposições são aquelas que "afetam a função delas dentro de um
silogismo" (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 56).
Feitas estas observações, pode-se perguntar por que Peirce resolve trabalhar no ONLC
dentro de um contexto proposicional (por que ele resolve fechar o foco no processo de
predicação que ocorre na proposição) se, a esta altura, já era do seu entendimento
(seguindo Scotus) que o foco principal da lógica deveria ser a inferência (e não a
proposição)? Ora, um dos prováveis motivos que devem ter levado Peirce a escolher o
contexto proposicional no ONLC é o fato de, nesta época, ele já ter em mente que, no
fundo, a relação entre sujeito e predicado dentro de uma proposição (ou de antecedente
e consequente dentro de um condicional) é exatamente a mesma relação encontrada
entre a premissa e a conclusão de um argumento, pois todas estas relações não passam
de casos particulares de uma relação fundamental: a sígnica208
. Em outras palavras, a
relação de sujeito para predicado e de premissa para conclusão é uma relação de
representação. Como prova de que, para Peirce, no ONLC bem como na série cognitiva
como um todo, o contexto proposicional e o contexto inferencial têm a mesma estrutura
(que é aquela de um signo), apresentaremos na quarta seção deste décimo capítulo uma
análise em que o processo de síntese (para o qual são mobilizadas as categorias) é
explicado a partir de um processo inferencial (e não de predicação209
).
Pretendemos neste décimo capítulo, elaborar uma apresentação geral e uma análise dos
principais pontos e da linha argumentativa desenvolvida por Peirce no ONLC. Para
facilitar a análise, vamos dividir a apresentação de tais pontos e desta linha
argumentativa em quatro partes. Cada um destas partes corresponde a uma seção dentro
deste décimo capítulo. Na primeira parte, dedicaremo-nos à apresentação dos principais
conceitos envolvidos (conceito210
, substância, ser) e das ferramentas teóricas utilizadas
por Peirce (como o método de abstração por ele denominado de prescindência). Na
segunda e terceira partes, explicitaremos os modos de exposição das categorias no
208
Esta é a terceira descoberta acima aludida (e à qual nos referimos, por diversas vezes, nos três
primeiros capítulos, sobretudo, na terceira seção do segundo capítulo). 209
Deve-se recordar que, conforme o entendimento que Peirce desenvolveu a partir de suas pesquisas no
campo da lógica após 1864, tanto a predicação como a inferência dizem respeito a relações
(respectivamente sujeito-predicado e premissa-conclusão) são caso particulares da relação sígnica. 210
Os termos “conceito” e “concepção” serão considerados sinônimos.
301
ONLC. A base destas primeiras partes de nossa apresentação (principalmente a segunda
e terceira) é um artigo de Andre De Tienne (1989) intitulado "O método inicial para
encontrar as Categorias". Neste artigo, este importante comentador da obra peirceana
faz uma leitura minuciosa do ONLC na tentativa de revelar que "o método para
encontrar as Categorias é um tipo de desconstrução de hipótese" (1989, p. 403) e
funciona como uma espécie de "raciocínio reverso".
Enquanto o foco destas três primeiras partes de nossa leitura do ONLC é apresentação
dos argumentos e do método de exposição efetivamente utilizado por Peirce, na quarta
parte, dedicaremo-nos à apresentação a uma visão um pouco mais ampla do problema
central da filosofia peirceana: como são possíveis as sínteses (em geral). Nesta última
parte, passaremos a enxergar a proposição e a síntese dela resultante dentro de uma
estrutura argumentativa, pois, como esperamos tornar claro ao final de nossa leitura do
ONLC, é justamente um estudo do processo inferencial que levou Peirce explicar como
é possível "unificar a variedade da experiência" (Hookway, 1985, p. 19). Em poucas
palavras, a síntese que ocorre numa proposição é, em última análise, a resultante de um
processo inferencial. A base desta quarta parte de nossa apresentação é um texto
seminal de David Savan (1976) sobre semiótica peirceana.
Portanto, a linha geral do roteiro de nossa análise do ONLC funcionará como uma
espécie de zoom out211
: num primeiro momento (as três primeiras partes), fecharemos o
foco na proposição na tentativa de explicar microscopicamente como surge o fenômeno
da síntese (de acordo com Peirce) e, num segundo momento, em plano aberto,
enxergaremos este mesmo fenômeno dentro de uma proposição que, por sua vez, estará
encaixada dentro de um argumento (numa posição que torna claro que a síntese é "algo"
que ocorre na proposição como resultado de um processo inferencial).
211
No cinema, zoom out é o movimento aparente de afastamento (gerado somente pela manipulação do
jogo de lentes da câmara) em relação ao objeto que é filmado.
302
10.1 Primeira parte da análise do ONLC: conceitos-chave
A teoria desenvolvida no ONLC por Peirce pretende descrever quais são as concepções
elementares e universais responsáveis pela redução da variedade das impressões
sensoriais à unidade. No fundo, o que se pretende explicar é como funciona a
predicação. Os dois primeiros parágrafos do ONLC (transcritos a seguir) deixam
evidente este desiderato bem como apresentam a definição do primeiro conceito-chave
da teoria: o conceito de “conceito” ou "concepção").
Este artigo é baseado numa teoria já estabelecida de que a função dos
conceitos é reduzir a variedade das impressões sensoriais à unidade e a
validade de um conceito consiste na impossibilidade de se reduzir o conteúdo
da consciência à unidade sem introduzi-lo.
(CP 1.545)212
Esta teoria dá origem a uma concepção de gradação entre aqueles conceitos
que são universais, pois um conceito desses pode unificar a variedade [das
impressões] dos sentidos e, ainda assim, pode ser que ainda seja necessária
outro conceito para unificar aquele conceito e a variedade à qual ele é
aplicado; e assim por diante.
(CP 1.546)213
A definição apresentada para o termo "conceito" é bem abrangente. Um conceito seria
qualquer elemento indispensável para a tarefa de redução da variedade (das impressões)
a uma unidade. Deve-se enfatizar que um conceito é, neste sentido, da natureza de uma
hipótese, pois ele não é um elemento proveniente das impressões do sentido (ou da
combinação entre elas), mas é um elemento adicionado hipoteticamente com o intuito
de reduzir a variedade (das impressões) a uma unidade (cf. W 1.516).
De acordo com a passagem transcrita acima, pode ser o caso em que mais de um
conceito tenha que ser introduzido (para unificar a variedade). Suponhamos que o
conceito A tenha sido introduzido para reduzir à unidade a tal variedade dos dados
provenientes dos sentidos, porém, pode ser o caso (e é exatamente este o caso descrito
pela teoria, como veremos) que outro conceito B tenha que ser introduzido para unificar
o resultado da introdução do conceito A. Ou seja, o conceito B é introduzido para
unificar a variedade criada pela introdução do próprio conceito A e pela variedade à
qual ele se aplicava. A gradação de que trata Peirce nestes trechos iniciais do ONLC é a
ideia de que, quando há mais de um conceito introduzido (e é exatamente este o caso),
212
This paper is based upon the theory already established, that the function of conceptions is to reduce
the manifold of sensuous impressions to unity and that the validity of a conception consists in the
impossibility of reducing the content of consciousness to unity without the introduction of it. (CP 1.545)
213
This theory gives rise to a conception of gradation among those conceptions which are universal. For
one such conception may unite the manifold of sense and yet another may be required to unite the
conception and the manifold to which it is applied; and so on. (CP 1.546)
303
deve haver uma hierarquia entre tais conceitos. Há uma ordem de entrada em que um
conceito é introduzido para “terminar o serviço” do anterior. Cada novo conceito é
introduzido para reduzir a variedade criada justamente pela introdução do conceito
anterior, pois este, quando introduzido, soma-se ao “material (sensório)” que ele
pretendia reduzir, o que torna necessário que se introduza um novo conceito para
“terminar o serviço” do anterior.
O primeiro passo dado por Peirce para expor sua teoria é estabelecer quais são os
conceitos-limite do processo de predicação, isto é, qual é o primeiro e qual é o último
conceito sem o qual não seria possível reduzir a variedade à unidade. Estes são,
respectivamente, o conceito de substância e o conceito de ser. Paralelo a isto, Peirce
também apresenta qual será o método utilizado para encontrar os demais conceitos
intermediários (que são aqueles que estão entre o primeiro e o último). Este método é
um modo de separação de ideias (um tipo de abstração) denominado pro Peirce de
prescindência. Antes de tratarmos deste método, vejamos as categorias-limite.
Conceitos (ou concepções), como vimos, servem para dar unidade à diversidade de
impressões que nos chegam dos sentidos. O primeiro conceito a ser levantado para
explicar a síntese é relativo "àquilo que está presente, em geral", o que, neste artigo
ONLC, é equivalente ao termo filosófico "substância". Este é o conceito mais próximo
da "porta de entrada", isto é, das impressões dos sentidos.
O conceito universal que está mais próximo dos sentidos é aquele do
presente, em geral. Trata-se de um conceito, porque é universal. Porém, como
o ato de atenção não tem conotação alguma, ele apenas é a pura capacidade
denotativa da mente, isto é, a capacidade que direciona a mente para um
objeto, em contraposição à capacidade de pensar qualquer predicado deste
objeto então, o conceito do que está presente em geral, que nada mais é do
que o reconhecimento geral do que está contido na atenção, não possui
conotação e, assim, não possui unidade própria. Este conceito do presente em
geral, do ISSO em geral, é apresentado em linguagem filosófica sob o nome
de "substância" nalgum dos sentidos do termo. Antes que qualquer
comparação ou discriminação possa ser feita entre o que está presente, o que
está presente deve ser reconhecido como tal, ser reconhecido como isso, e
subsequentemente as partes metafísicas que são reconhecidas por abstração
são atribuídas a ele, mas este isso não pode ser um predicado. Este isso,
304
então, não é predicado de um sujeito, nem está num sujeito. Assim, ele é
idêntico à concepção de substância.
(CP 1.547)214
Se o objetivo da teoria peirceana apresentada no ONLC é explicar como são possíveis
as sínteses (em geral) ou quais são as os conceitos (ou as concepções) fundamentais que
explicam a síntese cujo protótipo é a proposição, então é natural que o primeiro conceito
seja aquele que é tradicionalmente entendido como algo que condiciona as proposições
(e, em particular para Peirce neste artigo, seja o conceito que está mais próximo da
diversidade das impressões). Uma proposição é basicamente um enunciado linguístico
que deve poder ser julgado verdadeiro ou falso. Em poucas palavras, uma proposição é
basicamente uma afirmação. Para que possamos afirmar algo a respeito de algo é
necessário pressupor a subsistência daquilo que é objeto da afirmação (i.e., o segundo
"algo" nesta frase). É natural que, ao se pôr a explicar o funcionamento do processo de
predicação, Peirce comece por nos apresentar o conceito que diz respeito a algo que é
justamente uma espécie de "suporte" ou substrato sobre o qual ocorre a predicação.
Neste sentido, o conceito (ou a concepção) de substância é uma condição elementar para
a predicação. Se, por meio de diferentes proposições, somos capazes de atribuir
diferentes predicados a um mesmo objeto (tal como numa lista descritiva deste objeto) é
porque somos capazes de supor que algo tenha permanecido o mesmo através de cada
uma dessas predicações. Para haver predicação, é necessário que algo subsista.
Tomemos, como exemplo, algumas determinações (ou propriedades) temporais de
algum objeto, ou seja, alguns atributos que um objeto possui durante algum tempo, mas,
depois, deixa de possuí-los. Imagine um abacate que estivesse verde no momento "t" e
tivesse se tornado maduro do momento "t+1". Se somos capazes de notar a mudança
(neste abacate) é porque pressupomos que haja algo que permaneceu sob a mudança de
um estado para outro. Este algo que permaneceu é justamente o substrato que, num
primeiro momento, recebeu o predicado "______ está verde" e, num segundo momento,
recebeu o predicado "______ está maduro".
Ainda que o conceito de substância (que é equivalente, de acordo com Peirce, ao
conceito de "o que está presente [em geral]" apresentado no ONLC) tenha uma papel
específico na economia interna de cada teoria na qual é introduzido e, com isso, ganhe
matizes de significado, parece haver certas ideias nucleares associadas a tal concepção
como as noções de "constância" e "permanência", por exemplo. Estas duas noções, que
214
No original: "That universal conception which is nearest to sense is that of the present, in general. This
is a conception, because it is universal. But as the act of attention has no connotation at all, but is the pure
denotative power of the mind, that is to say, the power which directs the mind to an object, in
contradistinction to the power of thinking any predicate of that object -- so the conception of what is
present in general, which is nothing but the general recognition of what is contained in attention, has no
connotation, and therefore no proper unity. This conception of the present in general, of IT in general, is
rendered in philosophical language by the word "substance" in one of its meanings. Before any
comparison or discrimination can be made between what is present, what is present must have been
recognized as such, as it, and subsequently the metaphysical parts which are recognized by abstraction are
attributed to this it, but the it cannot itself be made a predicate. This it is thus neither predicated of a
subject, nor in a subject, and accordingly is identical with the conception of substance."
305
são bem captadas nesta metáfora do suporte, estão presentes na definição oferecida pelo
filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein na obra "Tractatus Logico-Philosophicus": "a
substância é o que subsiste independente do que seja o caso" (Tractatus, 2.024)215
. Em
alguns contextos teóricos, o termo substância condiciona não apenas a noção geral de
predicação, mas a percepção de mudanças de estado e da própria passagem do tempo. A
tese que geralmente é defendida dentro destas teorias é que só podemos "enxergar" a
noção de mudança (e as noções dela derivadas ou dependentes) contra um pano-de-
fundo de permanência. Vejamos, por exemplo, o modo como Kant entende o termo
substância na "Crítica da Razão Pura".
Nascer e morrer não são mudanças do que nasce e morre. Mudar é um modo
de existir, que se sucede a outro modo de existir de um mesmo objeto. Por
conseguinte, tudo o que muda é permanente e só o seu estado se transforma.
E como essa mudança atinge apenas as determinações que podem cessar ou
começar, é-nos lícito dizer, em expressão que parece um tanto paradoxal, que
só o permanente (substância) muda; o variável não sofre qualquer mudança,
apenas uma transformação, pois que algumas determinações cessam e outras
começam.
Só nas substâncias pode haver percepção de mudança e não há percepção
possível dos nascer e do perecer absolutos, senão enquanto mera
determinação do permanente, porque é essa mesma permanência que torna
possível a representação da passagem de um estado para outro e do não-ser
para o ser e só enquanto determinações mutáveis do que permanece, podem
ser empiricamente conhecidos estes estados.
(...)
As substâncias (no fenômeno) são os substratos de todas as determinações de
tempo.
(KrV, A 187-8 , B 230-1)
Feitas algumas referências às definições para o termo substância presentes nas obras de
outros filósofos, voltemos a focalizar este conceito tal como foi apresentado por Peirce
no ONLC e notemos que, também neste caso, ele é entendida como uma condição para
que haja sínteses. Imagine algo que seja objeto de nossa atenção em determinado
momento. Qualquer atribuição de propriedade ou qualidade que queiramos fazer (a isso
que é objeto de nossa atenção) não pode ser feita de forma imediata, i.e., não pode ser
feita no mesmo instante em que nos tornamos atentos à presença do objeto. Qualquer
propriedade ou qualidade que enxerguemos neste objeto depende de um ato de
comparação entre isso que está presente (diante de nossos sentidos ou nosso
entendimento) e algum outro objeto (percebido ou concebido anteriormente). Isto nos
leva a uma das teses centrais do pensamento peirceano (apresentadas, principalmente,
na chamada série cognitiva e, por nós, analisada no capítulos precedentes): não se pode
ter acesso ao que está imediatamente presente na consciência". Este "algo" (i.e., o objeto
tal como se apresentaria no presente imediato à nossa mente) é o que Peirce chamou de
215
No original: "Die Substanz ist das, was unabhängig von dem, was der Fall ist, besteht".
306
"o que está presente em geral". Este "algo" tal como se apresenta no presente imediato
não possui conotação, ou seja, não possui determinações (predicados) justamente por
ser a estrutura que torna possível haver determinações. O conceito de substância ou, de
acordo com os termo de Peirce no ONLC, "aquilo que está presente à mente (em geral)"
é justamente o tipo de estrutura (sobreposta à diversidade das impressões) que torna
possível formular juízos ou formar proposições.
Supor que haja algo que é objeto de nossa atenção no presente imediato, embora não
saibamos o que é ou quais características tem, é supor que haja algo que funciona como
uma espécie de "suporte abstrato" para posteriores predicações. Isto é o estabelecimento
de uma hipótese. A hipótese da substância é a suposição de que haja um todo cujas
partes permanecem sob um estado de anonimato até que a mente passe a nomeá-las por
meio de proposições sintéticas. Entretanto, note que, para que possamos, por meio de
proposições, nomear as partes deste todo (que é a substância), antes temos que supor
que haja este todo. Por exemplo, imaginemos uma lista que descreva uma caneta
esferográfica: "a caneta é azul", "a caneta é antiga", "a caneta é fina", etc.. A hipótese da
substância é justamente a suposição de que haja algo, algum substrato, por baixo de
todas estas descrições e que este algo seja justamente o que está sendo descrito em todas
estas proposições que compõem tal lista. Neste caso, aquilo que faz o papel de
substância ou substrato é a caneta (que está sendo descrita). A caneta (descrita) é o isso
que está (ou esteve) presente diante da mente daquela pessoa (que descreve) "antes"
mesmo que se começasse a descrevê-la. Esta descrição é uma sequência de proposições
sintéticas e em cada uma delas se atribui uma característica àquilo permanece através
das descrições. Isto que permanece é justamente o que se denomina de substância.
Focalizemos o momento que antecede tais descrições, o instante em que nossa mente
passa a ter como objeto de atenção a caneta. Neste "momento", a caneta (em si mesma)
já possui a capacidade para receber todas aquelas características, entretanto nossa mente
ainda não atribuiu a ela nenhum desses predicados. É como se a substância fosse um
todo cujas partes não foram ainda rotuladas, identificadas. O conceito de substância,
embora não tenha predicados associados, é uma estrutura (uma espécie de suporte) que
serve justamente para receber predicados. Por este exato motivo, de acordo com o
trecho de Peirce transcrito acima (CP 1.547), o conceito de substância não possui
unidade. A substância é a hipótese de que haja algo que possa receber predicados
embora não os tenha no presente imediato. Isto é outra forma de afirmar que, no
presente imediato, não há conotação, não há predicação. Como não há predicação, então
não há síntese. Então, por este motivo, o isso (que está presente) não possui unidade.
O conceito de substância é para Peirce, no ONLC, uma espécie de categoria-limite, pois
é o início do processo de predicação. Substância é o ponto de partida da predicação,
pois é a concepção mais próxima da variedade das impressões (dos sentidos) que é
exigida para haver síntese. Em outras palavras, o conceito de substância é a primeira
suposição a ser feita no caminho entre a variedade e a unidade. A outra ponta do
processo de predicação é o conceito de ser.
307
A suposição ou hipótese que "fecha" o processo de predicação é o conceito de ser, pois
esta concepção tem um papel de unificação dentro da proposição e a unificação (entre
sujeito e predicado) é justamente o alvo perseguido pelos conceitos (que levantamos
dentro dos limites desta teoria). Se lembrarmos que, no ONLC, Peirce buscou
estabelecer quais são os conceitos que servem como hipóteses (indispensáveis) para
explicar como é possível a síntese (dentro de uma proposição), então, como o conceito
de ser perfaz justamente o papel de sintetizador (de cópula, como veremos), não há mais
nenhum outro conceito indispensável a ser levantado. Ele é o último.
Então, se por um lado, o conceito de substância não possui nenhuma unidade, pois ele é
um todo cujas partes não são imediatamente identificáveis, por outro lado, o conceito de
ser possui unidade justamente por não possuir partes. Enquanto, a concepção de
substância é levantada como hipótese para explicar sobre que "suporte" (metafísico) é
realizada uma predicação, a concepção de ser é levantada como hipótese para explicar
como é realizada a síntese (a unificação) entre sujeito e predicado. Por este exato
motivo (como notamos), esta é a última suposição. Ao contrário do conceito de
substância que é definido como uma categoria que é “determinável”, o conceito de ser é
definido como uma categoria que é completamente indeterminada.
O primeiro ponto a ser notado com relação ao conceito de ser é que este é uma categoria
"vazia", pois, ao entrar numa proposição, ele simplesmente não altera, não soma nada à
substância. Estudaremos esta questão de forma mais detida daqui algumas páginas.
Neste ponto, basta que tenhamos em mente que é a "vacuidade" deste conceito que
permite que ele tenha um papel quase puro de síntese, ou seja, é como se a concepção
de ser, pela sua "vacuidade", se tornasse capaz de fazer o papel de soma entre duas
parcelas sem acrescentar nada às parcelas que seriam, por ela, somadas. Na proposição
"a vela é branca", pode-se afirmar que o termo "branco" determina a concepção de vela,
pois tal termo limita a concepção que se tem da vela (em questão). Não fosse tal
determinação, a vela (em questão) poderia ser azul, verde, vermelha, etc. Por exemplo,
suponha que tenhamos uma lista que pretensamente contém todas as características de
uma determinada vela (ou grupo de velas) e, nesta lista, não há referência alguma à cor.
Assim, poderíamos afirmar que, com relação à cor, esta vela em questão (ou o grupo de
velas) estaria indeterminada. Pela lista apenas, não haveria como saber se a vela é azul,
verde, vermelha, etc. Sob este aspecto, tal objeto está indeterminado. Nesta mesma
proposição "A vela é branca", não podemos afirmar que o verbo ser (flexionado na
forma "é", no caso) determina de alguma maneira a concepção da referida vela. Não
podemos afirmar isto porque a função do verbo ser nesta proposição é apenas juntar o
termo sujeito "vela" e termo predicado "branco" sem nada acrescentar (aos termos). Ele
não possui conteúdo algum (CP 1.548). O termo "ser" (nesta acepção) é uma expressão
linguística bem peculiar, pois, por não poder carregar (por definição) conteúdo
conceitual algum, esta palavra funciona como um “veículo vazio”, a representação (na
linguagem) da indeterminação.
Para que entendamos o que é um conceito ou uma concepção completamente
indeterminada, vejamos como funciona o outro extremo, isto é, um conceito ou uma
308
concepção (completamente) determinada. Antes, introduzamos uma distinção clássica
entre dois tipos de valor semântico de um termo (ou de uma expressão linguística)
qualquer: a extensão (ou denotação) e a intensão (ou conotação). A extensão de um
termo é o objeto ao qual (ou os objetos aos quais) ele se refere. Dentro de uma
construção conjuntista, a extensão de um termo é um conjunto com todos os seres que
constituem referência para este termo216
. A intensão de um termo é o "conteúdo
conceitual" envolvido nele. Dentro de uma construção conjuntista, a intensão de um
termo é um conjunto com todas as propriedades associadas a ele. Por exemplo, a
extensão do termo "baleia" é maior do que a extensão do termo "Sousândrade". O
primeiro designa aqueles seres que são considerados os maiores mamíferos (vivos). O
segundo designa apenas o poeta brasileiro do século XIX (cujo nome de batismo era
Joaquim de Sousa Andrade). Entretanto, a intensão do termo "Sousândrade" é maior do
que a intensão do termo "baleia". Suponha que a intensão de cada um destes termos seja
uma lista que apresente (de forma ideal) todas as características atribuídas à referência
de cada um dos termos em questão. Parece-nos óbvio que a lista (a intensão) do termo
"Sousândrade" (por ser este um termo singular217
) deve conter muito mais
características do que a lista correspondente ao termo "baleia" (por ser este um termo
geral). Deve haver muito mais propriedades ou predicados que podemos afirmar acerca
de um indivíduo. Termos singulares são mais determinados ou carregam mais
determinações se comparados a termos gerais.
Suponha que estejamos diante de uma lista de propriedades associadas a um indivíduo.
De acordo com a lista, o indivíduo descrito é "ser humano", "(ser) do sexo masculino",
"(ser) brasileiro", "(ser) mulato", "(ser) escritor", "(ser) autor de 'Memórias póstumas de
Brás Cubas' " etc. . Com esta lista em mãos, a ideia ou a concepção que temos deste
indivíduo é bem "rica", i.e., compreende muitos atributos. Neste caso, o conjunto de
propriedades ou características apresentadas já é suficientemente "rico" para determinar
sua referência: o indivíduo Machado de Assis. Representemos este indivíduo com o
termo "Machado de Assis". A intensão (ou conotação) do termo "Machado de Assis"
seria, neste caso, o conjunto com todas estas características (que acreditamos que
descrevem verdadeiramente este indivíduo). Nesta mesma situação, a extensão (ou
denotação) do termo "Machado de Assis" é mínima. Na verdade, o conjunto que
constitui a extensão deste termo é um conjunto unitário, uma vez que seu único membro
é o indivíduo Machado de Assis. Quando afirmamos que o conjunto que constitui a
216
Há algumas especificidades em se admitir esta construção conjuntista apresentada. Por exemplo, se é
estabelecido que a extensão de um termo é o conjunto formado pelos seres designados por tal termo,
então há que se admitir que tanto o termo "saci" como o termo "fênix" tem a mesma extensão: o conjunto
vazio. Ainda de acordo com esta construção, um termo singular deve ter como extensão um conjunto
unitário (e não o objeto que está contido neste conjunto unitário e é a referência do termo em questão). 217
Um termo singular (ou um designador em terminologia introduzida pelo lógico norte-americano Saul
Kripke) é um termo que reservamos dentro de nossas linguagens para fazer referência a indivíduos, ou
seja, estes são termos com apenas um referente. Um termo geral, por sua vez, é um termo que reservamos
dentro de nossas linguagens para fazer referência a um ou mais objetos (a classes ou conjuntos). Num
contexto proposicional, enquanto um termo singular designa um objeto, um termo geral designa uma
função predicativa, ou seja, um termo geral designa uma condição a ser satisfeita ou não por um objeto
qualquer.
309
extensão deste termo é um conjunto unitário, o que pretendemos estabelecer é que este
termo não se aplica a qualquer outro indivíduo ou entidade (tal termo não se aplica a
Napoleão, Marilyn Monroe, Walter Raleigh, meu sapato, Curupira, o ódio que Hitler
nutria pelos Judeus, etc.).
Considere, então, que tiremos desta lista algumas características e fiquemos apenas com
os seguintes predicados: "ser humano", "(ser) do sexo masculino", "(ser) brasileiro",
"(ser) mulato", " (ser) escritor". É óbvio que, neste caso, estamos diante de um novo
termo, de outro conceito, pois a lista que temos não mais descreve somente Machado de
Assis, mas todos os demais escritores brasileiros mulatos. Assim, o conjunto que
constitui a extensão deste novo termo não é mais unitário, pois passaria a conter, além
de Machado de Assis, também Lima Barreto, por exemplo. Pode-se afirmar que estamos
diante de um termo geral, uma vez que este é um termo cuja referência é constituída por
quaisquer indivíduos que cumprirem as seguintes condições: "ser humano", "(ser) do
sexo masculino", "(ser) brasileiro", "(ser) mulato", " (ser) escritor". Antes de cortarmos
itens da lista, tínhamos um termo ("Machado de Assis") que era reservado para se
referir somente a um indivíduo. Repare que, ao diminuirmos o conjunto que constitui a
intensão (ao criarmos um termo menos preciso), aumentamos o conjunto que constitui a
extensão (se compararmos à extensão do termo anterior).
Se continuarmos com este procedimento de cortar itens da lista, então aumentaria o
conjunto que constitui a extensão dos novos termos que seriam criados. Se gerarmos
uma nova lista a partir de uma antiga ao cortarmos um item desta, então, na nova lista
assim gerada, podemos designar ou descrever mais indivíduos do que a lista anterior.
Na lista que conta apenas com os predicados "ser humano", "(ser) do sexo masculino",
podemos designar Napoleão e Walter Raleigh, o que não podia ser feito com a lista que
contava com os predicados "ser humano", "(ser) do sexo masculino", "(ser) brasileiro".
Embora Napoleão e Walter Raleigh estejam contemplados no conjunto que constitui a
extensão do termo gerado a partir daquela lista – com os predicados "ser humano",
"(ser) do sexo masculino" – ainda há alguns seres que ficariam de fora de tal extensão
(por exemplo, Marilyn Monroe, meu sapato, Curupira, o ódio que Hitler nutria pelos
Judeus, entre outros). Podemos levar este procedimento até que a lista fique com apenas
um item: o predicado "ser humano". O conjunto que constitui a extensão do termo
gerado por esta lista (com apenas um predicado) já inclui o indivíduo Marilyn Monroe
(mas ainda deixa de fora alguns seres como meu sapato, Curupira, o ódio que Hitler
nutria pelos Judeus e outros seres que não cumprem a condicionante de serem
humanos).
Suponha, então, que cortemos o último item da lista e fiquemos com uma lista vazia.
Neste caso, não há mais predicados para que possamos determinar o conjunto que
constitui a extensão do termo em questão. Como não há mais condições a serem
verificadas para que um ser qualquer esteja neste conjunto, então podemos afirmar que
qualquer ser está contido neste conjunto. Este conjunto contém tudo o que é. Basta que
algo seja para que esteja neste conjunto. Este termo ao qual chegamos pode ser
denominado de "ser". Este é o conceito de ser. Nada fica de "fora" do conjunto extensão
310
deste conceito. No diagrama reproduzido a seguir podemos notar que todas aqueles
itens que foram cortados, todos aqueles predicados, são, na verdade, determinações do
ser.
Apresentados os dois conceitos-limites dentro do ONLC (substância e ser), passemos a
tratar dos conceitos intermediários: qualidade, relação e representação. Estas
concepções intermediárias são admitidas dentro da teoria apresentada por Peirce como
suposições necessárias para explicar como é possível se passar da variedade (subjacente
ao conceito de substância) à unidade (subjacente ao conceito de ser). Desde a primeiro
conceito (substância) até o último (ser), notemos que cada um desses conceito é
admitido (na teoria) como hipótese indispensável para explicar o conceito anterior. O
primeiro deles é o conceito de substância, que entra em cena para explicar a síntese (i.e.,
a redução da variedade à unidade). Nesta ordem, o segundo conceito é o de
representação, que é admitido para explicar o conceito de substância. Ainda nesta
ordem, o terceiro conceito é o de relação, que é admitido para explicar o conceito de
representação. Por sua vez, o quarto conceito é o de qualidade, que é admitido para
explicar o conceito de relação. Por último, e esta é a hipótese-base, o quinta conceito é
o de ser, que é admitido para explicar o conceito de qualidade. Como cada uma das
suposições é admitida para explicar uma suposição que já tinha sido admitida antes (até
a primeira delas), então o que Peirce nos apresenta no ONLC é uma cadeia de hipóteses.
O método por Peirce utilizado para derivar as categorias é um método essencialmente
abdutivo218
. Antes que comecemos a descrever, de forma minuciosa, esta cadeia de
218
Para Peirce, a abdução é, ao lado da indução, uma inferência ampliativa. De modo diverso da indução,
o processo abdutivo tem como ponto de chegada não a formulação de uma regra geral, mas a explicação
Ser
ser físico
ser vivo
ser humano
ser brasileiro
ser mulato
ser escritor
...
...
...
ser não humano
ser não vivo
...
ser não físico
...
... ...
311
suposições que constitui a coluna dorsal do ONLC, devemos examinar a estrutura de
tais tipos de encadeamento. Para isso, desenvolveremos um exemplo.
Imagine a seguinte situação (que irá nos servir de exemplo): ao chegarmos a um
escritório, reparamos que quase todos os funcionários têm, em suas mesas, caixinhas de
lenços (descartáveis). Esta cena traz à nossa mente uma ideia que poderia muito bem ser
representada pela seguinte proposição:
Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas
mesas"
Então, antes mesmo que acabássemos de formular de forma exata alguma pergunta a
respeito das razões que lavariam todas aquelas pessoas a terem lenços, vem à nossa
mente uma ideia que se apresenta como provável resposta a este questionamento: "todas
estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas, porque elas estão
resfriadas". A ideia “estas pessoas estão resfriadas” é uma hipótese para a ideia “estas
pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas”. Já temos, então, duas
proposições:
Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas
mesas" (fato a ser explicado)
Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (primeira hipótese)
Estendamos este exemplo supondo que também esta segunda afirmação ("estas pessoas
estão resfriadas") exija uma explicação, afinal também seria curioso o fato de várias
pessoas estarem resfriadas. Talvez a primeira hipótese que serviria para explicar esta
segunda afirmação (que, por sua vez, serve para explicar aquela primeira proposição)
seria que "estas pessoas estão resfriadas, porque estão todas no mesmo ambiente e isto
facilita o contágio". Entretanto, vamos supor que tal hipótese foi descartada, pois
recebemos a informação (adicional) que há pessoas que estavam naquele momento no
escritório e davam sinais de estarem resfriadas (i.e., estavam com caixinhas de lenços
sobre a mesa), mas tinham acabado de retornar de férias ou tinham acabado chegar, pois
foram transferidas de outros setores da empresa. O fato de também estes funcionários
apresentarem sinais do (suposto) resfriado joga contra a hipótese de que estas pessoas
estariam resfriadas, porque todas elas estariam no mesmo ambiente e isto facilitaria o
de um fato ou de um acontecimento. A finalidade é introduzir uma hipótese explicativa (cf. CP 2.263
[1878]). Por este motivo, este tipo de inferência (para a qual Peirce utilizou outros termos ao longo do
tempo [como "retrodução" e "hipótese"]) hoje também é chamado de "inferência para a melhor hipótese".
312
contágio (afinal, há recém-chegados que também ostentam caixinhas de lenços em suas
mesas). Talvez a segunda hipótese que nos viesse à mente fosse alguma ideia relativa ao
sistema de condicionamento de ar do prédio. Entretanto, suponhamos que tal hipótese
tenha sido também descartada, pois nos lembramos que foi feita, em data recente, a
manutenção de tal sistema. Imagine, então, que tenhamos chegado a uma nova hipótese
para aquela segunda afirmação ("estas pessoas estão resfriadas"). A nova hipótese é que
"estas pessoas estão resfriadas, porque houve recentemente diversas mudanças bruscas
de temperatura". Neste caso, notemos que a ideia de que “houve recentemente diversas
mudanças bruscas de temperatura” é uma hipótese para a ideia “estas pessoas estão
resfriadas”. Temos, então, uma terceira proposição que é nossa segunda hipótese .
Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas
mesas" (fato a ser explicado)
Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (primeira hipótese)
Proposição 3 --> "Houve recentemente diversas mudanças bruscas de
temperatura" (segunda hipótese)
Compliquemos ainda mais este exemplo supondo que tenhamos achado que esta última
ideia (apresentada para explicar a anterior) também seja curiosa e, por este motivo,
também exija explicações. Ora, por "sugestão midiática", suponha que seja o
aquecimento global o candidato mais natural à explicação para o fato de ter havido
diversas mudanças bruscas de temperatura naquela região em que nos encontramos. Em
resumo, "houve recentemente diversas mudanças bruscas de temperatura, porque o
aquecimento global tem alterado o regime climático (desta região)". Entra em cena,
então, uma quarta ideia que é a nossa terceira hipótese.
Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas
mesas" (fato a ser explicado)
Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (primeira hipótese)
Proposição 3 --> "Houve recentemente diversas mudanças bruscas de
temperatura" (segunda hipótese)
Proposição 4 --> "O aquecimento global tem alterado o regime
climático desta região" (terceira hipótese)
313
A concepção de aquecimento global (com suas consequências) serve para explicar o
fato de haver um grande número de pessoas presentes naquele escritório com caixas de
lenços (descartáveis) sobre suas mesas.
Proposição 4 explica a Proposição 3
Proposição 3 explica a Proposição 2
Proposição 2 explica a Proposição 1
Há desenvolvida neste exemplo uma linha de raciocínio, uma cadeia de argumentos que
tem como objetivo justificar ou explicar um fato inicial (denominado acima de
proposição 1). Notemos que há basicamente dois métodos de exposição para esta linha
de raciocínio: um que parte do fato a ser explicado e segue até a explicação básica e um
outro que parte da explicação básica ("última" hipótese) e segue até o fato a ser
explicado.
Neste primeiro método (acima referido), o que fazemos é construir uma hipótese para
um fato. Neste caso, partimos da proposição 1 "Estas pessoas têm caixas de lenços
(descartáveis) em suas mesas" (fato a ser explicado) e nos perguntamos o que deveria
acontecer para que o estado de coisas descrito nessa proposição ocorresse. A resposta é
aquilo que chamamos de proposição 2 "Estas pessoas estão resfriadas”. Caso esta
segunda proposição seja efetivamente uma boa hipótese, uma boa explicação, então
deveria ser o caso que não poderíamos conceber aquela primeira ideia (de que as
pessoas possuem caixinhas de lenços) sem recorrer a esta segunda ideia (de que essas
mesmas pessoas estão resfriadas) ainda que pudéssemos conceber a segunda sem
recorrer à primeira. Dessa forma, podemos construir uma cadeia de hipótese em que
cada uma delas explique a anterior. A ideia de que se pode conceber x sem y, mas não
y sem x é o coração do método da prescindência. E, no caso do ONLC, é este método
de prescindência que vai garantir uma hierarquização dos conceitos ou das concepções
introduzidas. Em termos do próprio Peirce no ONLC, o conceito que é introduzido (para
reduzir a variedade da experiência à unidade) pode ser prescindido dos fatores que o
ocasionam (i.e., as impressões), mas estes fatores não podem prescindir do conceito. É
exatamente isto que torna o conceito indispensável. Voltando para o nosso exemplo, a
ocasião de entrada da ideia do resfriado (proposição 2) é a ideia das caixinhas de lenço
(proposição 1), ou seja, a proposição (2) "estas pessoas estão resfriadas” só entrou "em
cena" para explicar a proposição (1) "estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis)
em suas mesas". A proposição 2 pode ser concebida sem a proposição 1, mas o inverso
não ocorre. Podemos pensar na ideia de resfriado sem que nossa mente dirija nossa
atenção para a ideia de lenço (ou caixinhas de lenços). Entretanto (se a hipótese do
exemplo for mesmo uma boa hipótese), não podemos pensar na ideia de lenço (ou
caixinhas de lenços) sem que nossa mente recorra à ideia de resfriado. É esta relação
314
assimétrica de "inseparabilidade" de uma para a outra que tornaria esta última ideia uma
boa hipótese para aquela primeira.
No segundo método apresentado acima, o que fazemos é supor, em primeiro lugar, a
hipótese mais elementar (no exemplo é aquela relativa ao aquecimento global) para
depois "desconstruí-la" (no sentido de tentar enxergar quais são as ideias [componentes]
que nos levaram até tal hipótese). Neste caso, partimos da proposição 4 "o aquecimento
global tem alterado o regime climático desta região" (hipótese mais elementar) e nos
perguntamos que outra ideia (ou hipótese) estaria implicada nesta proposição 4 para
fazer com que ela cumpra seu papel de explicação do fato em questão (isto é, o fato de
que pessoas têm caixas de lenços em suas mesas). A pergunta é: quais são as ideias
implicadas na proposição 4 que nos autorizam afirmar que ela é uma explicação
plausível para o fato (que pretendemos explicar)? Talvez a resposta mais imediata seria
que o aquecimento global (proposição 4) é a suposta causa das mudanças bruscas de
temperatura registradas na região (proposição 3). Por sua vez, as mudanças bruscas de
temperatura registradas na região (proposição 3) são a suposta causa do resfriado de
cada uma daquelas pessoas observadas no escritório (proposição 2). Então, como último
passo deste método de exposição, o resfriado de cada uma daquelas pessoas observadas
no escritório (proposição 2) é a suposta causa que explica o fato destas pessoas terem,
em suas mesas, caixinhas de lenços descartáveis (proposição 1 e fato explicado). Neste
segundo método, óbvio está que operamos por uma espécie de método de prescindência
reverso.
Notemos que nos dois métodos de exposição, o alvo é a apresentação de uma
justificativa ou uma explicação para um fato considerado anômalo (representado, neste
exemplo, pela proposição 1). A linha de raciocínio hipotética que está por trás destes
dois métodos é a mesma: a proposição 1 é justificada pela suposição da proposição 2; a
proposição 2 é justificada pela suposição da proposição 3; a proposição 3 é justificada
pela suposição da proposição 4. O que muda de um método para outro é a ordem em
que são apresentados as proposições bem como o método de abstração, i.e. a ferramenta
teórica utilizada: o método da prescindência num caso e o método da prescindência
reversa noutro. Pode-se também sustentar a ideia de que a ferramenta teórica utilizada
em ambos os métodos de exposição é a mesma, entretanto, no primeiro deles, ela foi
utilizada para construir uma hipótese básica (no caso, a proposição 4) e, no segundo
método de exposição, ela foi utilizada para desconstruir estas mesma hipótese básica.
Também no ONLC, tendo como guia as categorias-limite, podemos entrever dois
métodos de exposição para aqueles conceitos intermediários (que são as categorias
propriamente ditas). No primeiro deles, que chamaremos de método construtivo
conforme sugestão de De Tienne em artigo já referido (1989, p. 402-3), parte-se da
concepção de substância e se segue em direção à concepção de ser. O caminho seguido
neste método é o passo a passo da construção da hipótese básica que explica como é
possível haver síntese dentro de uma proposição. No segundo método, chamado de
desconstrutivo (também por sugestão de De Tienne), parte-se da concepção de ser e se
segue em direção à concepção de substância. O caminho seguido neste outro método é o
315
passo a passo da desconstrução da hipótese básica que explica como é possível haver
síntese dentro de uma proposição.
Ainda que o método de exposição escolhido por Peirce seja este segundo,
apresentaremos primeiro o método construtivo, pois nele a ferramenta teórica da
prescindência é utilizada dentro de uma "ordem natural". Como o objetivo da teoria é
explicar como é possível que a variedade das impressões seja reduzida à unidade do
conceito, deve-se esperar que a exposição da teoria comece pela noção de substância,
que, conforme demonstrado, é aquela concepção mais próxima da referida variedade. A
maneira mais natural de expor tal teoria seria Peirce começar pelo conceito de
substância e passar a apresentar qual seria o próximo conceito a ter que ser suposto para
explicar o conceito de substância (e a redução a que a variedade é submetida). Nesta
ordem "mais natural", o conceito de representação (ou referência a um interpretante)
surgiria como hipótese do conceito de substância. No próximo passo, o conceito de
relação (ou referência a um correlato) seria, então, apresentado como hipótese para
explicar o conceito de representação. E assim se seguiria até o último conceito a ser
levantado como hipótese: conceito de ser. Nesta ordem em que se procura construir a
hipótese básica (o conceito de ser), cada novo conceito que é introduzido (como
hipótese) é prescindível do anterior (que ele explica), mas a anterior (por ele explicado)
não é dele prescindível. Por exemplo, vejamos o primeiro passo quando a concepção de
representação é introduzida para servir de explicação à concepção de substância. Neste
primeiro passo, o conceito de representação pode ser prescindido do conceito de
substância, porém este não pode ser prescindido daquele. Por isto, o conceito de
representação serve de base ou de hipótese ao conceito de substância. Como o leitor já
deve ter começado a notar pelas semelhanças com exemplo fornecido, estes são os
primeiros passos da construção de uma hierarquia de hipóteses e o conceito de ser ficará
alocado na base desta hierarquia.
316
10.2 Segunda parte da análise do ONLC: método de exposição
hipotético-construtivo
Comecemos, então, pelo conceito de substância. De acordo com termos do próprio
Peirce no ONLC, a "ocasião" da substância é a variedade das impressões. Como já
vimos, esta é "sua ocasião", pois este conceito é introduzido para explicar justamente
como a variedade pode ser reduzida à unidade. Porém, ao se introduzir a concepção de
substância, nota-se que esta também exige uma explicação, ou seja, um outro conceito
que lhe sirva de hipótese. Senão, vejamos. Para conceber quaisquer dois elementos
distintos da experiência (diferentes impressões) como unificados é preciso concebê-los
juntos como sendo nossos (CP 1.554), ou seja, concebê-los em relação (um com outro)
para nossa mente. Portanto, é preciso concebê-los em referência a um interpretante (a
um terceiro elemento mediador). Ora, mas concebê-los em referência a um interpretante
é representá-los. Então, para supor que haja algo como uma substância e para que a
variedade (subjacente a ela) possa ser trazida à unidade precisamos supor o conceito (ou
a concepção) de representação.
Representação é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de
substância. Portanto, aquela explica esta.
Então se abstrairmos a concepção de substância, ficamos apenas com uma referência a
um interpretante, ou seja, uma representação.
Uma representação é simplesmente um elemento intermediário que serve para colocar
em relação uma coisa (que representa) com outra coisa (que é representada).
Representar é fazer referência a um interpretante (que é justamente um nome especial
que Peirce cunhou para este terceiro elemento que tem um papel de mediação numa
relação). E para haver representação, i.e., para haver um elemento intermediário (com o
papel de representar) é necessário supor que haja dois elementos (caso contrário, não há
intermediação, pois não haveria nada para estar no meio). Representação supõe,
portanto, uma correlação entre dois outros elementos. Representar é justamente juntar
(por meio de um terceiro elemento) algo com o seu correlato. Então, para supor que haja
algo como uma representação, precisamos supor o conceito de relação.
Porém, deve-se notar que o conceito de relação (entre os dois elementos) pode ser
separado do conceito de representação, embora o conceito de representação não possa
ser separado do conceito de relação. Podemos supor relação sem representação, mas não
podemos supor representação sem relação. Em resumo, a concepção de relação é
prescindível da concepção de representação.
317
Relação é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de
Representação. Portanto, aquela explica esta.
Então se abstrairmos a concepção de referência a um interpretante (representação),
ficamos apenas com uma referência a um correlato, ou seja, uma relação.
Uma relação é simplesmente alguma ligação entre um relato e um correlato com
referência a algum aspecto (ou qualidade). Relacionar é fazer referência a um
correlato. E para ligar dois elementos por uma relação é necessário supor que haja
alguma qualidade (uma abstração pura) que nos permita fazer a relação. Por exemplo,
a abstração "altura" nos permite comparar João e Pedro na proposição "João é mais
alto que Pedro"; a abstração "azul" na proposição "a baleia é azul" nos permite
comparar, de certa forma, a baleia com todos os outros seres que são azuis. Porém,
deve-se notar que conceito ou a concepção de qualidade pode ser separada do conceito
de relação, embora o conceito de relação não possa ser separado do conceito de
qualidade. Podemos supor qualidade sem relação, mas não podemos supor relação
sem qualidade. Em resumo, a concepção de qualidade é prescindível da concepção de
relação.
Qualidade é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de
Relação. Portanto, aquela explica esta.
Então se abstrairmos a concepção de relação, ficamos apenas com uma abstração pura
(a referência a um fundamento): a concepção de qualidade.
Uma qualidade é simplesmente alguma determinação qualquer do ser. Qualificar ou
determinar é fazer referência a um fundamento ( "ser mais alto que _____" ou "ser
azul") . E para fazer referência a um fundamento é necessário supor que haja "algo"
que possa ser determinado por este fundamento e este "algo" que nos permite fazer a
determinação é a concepção de ser. Podemos observar este ponto por outra
perspectiva, pois, como vimos, a concepção de ser é o que "sobraria" caso
eliminássemos todas as determinações (características) associadas a um termo (ou a
uma expressão linguística).
Porém, deve-se notar que o conceito de ser pode ser separado do conceito de
qualidade (ou fundamento), embora conceito de qualidade não possa ser separado do
conceito de ser. Podemos supor ser sem qualidade, mas não podemos supor qualidade
sem ser. Em resumo, a concepção de ser é prescindível da concepção de qualidade.
Ser é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de
Qualidade. Portanto, aquela explica esta.
318
Então se abstrairmos a concepção de referência a um fundamento (qualidade), ficamos
apenas com uma referência a uma categoria (completamente) indeterminada: ser.
Como esta concepção é justamente a responsável pela noção de unidade que era o alvo
de toda esta teoria acerca de categorias, então chegamos ao fim da cadeia de hipóteses.
A última suposição é justamente a responsável pela noção de unidade. O ponto de
chegada foi, então, o conceito ou a concepção de ser. Esta serve para explicar a
concepção de substância.
Repare que, no caminho construtivo (da concepção de substância para concepção de
ser), o primeiro passo é a introdução do conceito de representação ou de referência a
um interpretante. Este é o primeiro passo depois do estabelecimento da suposição da
substância, porque a concepção deste elemento intermediário (o interpretante) é a
responsável pela síntese. Outra forma de afirmar isto é: o conceito de representação
(referência a um interpretante) só foi introduzido para explicar como é possível juntar
diferentes elementos da experiência, ou seja, a ocasião da introdução da concepção de
representação (ou referência a um interpretante) é a diversidade de impressões.
Embora o conceito de representação (referência a um interpretante) seja o responsável
mais direto pela síntese, ele, para cumprir seu papel, envolve, no mínimo, outro
conceito: o de relação (referência a um correlato). Na verdade, quando introduzimos o
conceito de representação (referência a um interpretante), criamos a necessidade de
supor outro conceito que o explique (ou lhe sirva de base). Esta outro conceito é a
relação ou referência a um correlato. A ocasião da introdução do conceito de
referência a um correlato é o conceito de referência a um interpretante. Isto ocorre
porque, como vimos, a referência a um interpretante é imprescindível da referência a
um correlato (i.e., representação subentende relação). O mesmo processo ocorre entre
os dois outros conceitos.
Quando introduzimos o conceito de relação (referência a um correlato), criamos a
necessidade de supor outro conceito que o explique (ou lhe sirva de base). Este outro
conceito é a qualidade ou referência a um fundamento. Em outras palavras, a
referência a um correlato é imprescindível da referência a um fundamento (i.e.,
relação subentende qualidade). Portanto, qualidade é imprescindível para relação e
relação é imprescindível para representação. Por outro lado, representação é
prescindível de relação e relação é prescindível de qualidade.
O conceito de ser (bem como a ideia de unidade que lhe é subjacente) é o último a ser
introduzido. E a ocasião de entrada dele é justamente o conceito de qualidade ou de
referência a um fundamento. Podemos resumir estes pontos da seguinte forma:
319
A ocasião da introdução da concepção de REPRESENTAÇÃO (referência a um
interpretante) é a concepção da (variedade da) SUBSTÂNCIA.
A ocasião da introdução da concepção de RELAÇÃO (referência a um correlato)
é a concepção de REPRESENTAÇÃO (referência a um interpretante).
A ocasião da introdução da concepção de QUALIDADE (referência a um
fundamento) é a concepção de RELAÇÃO (referência a um correlato).
A ocasião da introdução da concepção (da unidade) do SER é a concepção de
QUALIDADE (referência a um fundamento).
Cada novo conceito ou concepção que entra nesta linha argumentativa obviamente tem
uma ocasião (de entrada) diferente daquela primeira (que é a diversidade ou variedade
das impressões). Isto é equivalente a afirmar que apenas a concepção de representação
(embora esta envolva outras) é introduzida com a justificativa de lidar com a variedade
dos elementos da experiência. Todas os outros conceitos entraram no argumento com
justificativas diversas. Todas as outras concepções entraram como exigências de alguma
outra concepção que já teria entrado anteriormente. Por exemplo, a justificativa para
introduzir a concepção de relação (ou referência a um correlato) foi a presença da
concepção de representação (ou referência a um interpretante) e o fato desta última
pressupor a primeira. O mesmo ocorre com as demais concepções. A justificativa para
introduzir a concepção de qualidade (ou referência a um fundamento) foi a presença da
concepção de relação (ou referência a um correlato) e o fato desta última pressupor a
primeira. Por sua vez, a justificativa para introduzir a concepção de ser (e noção de
unidade que a acompanha) foi a presença da concepção de qualidade (ou referência a
um fundamento) e o fato desta última pressupor a primeira.
Esclarecida a ordem de entrada desses conceitos, enfatizemos novamente que é apenas o
primeiro conceito (o de representação) que é capaz de lidar diretamente com a
diversidade dos elementos da experiência (apenas ele surge neste "ambiente imediato").
Nenhum dos outros conceitos introduzidos, caso prescindirem deste conceito de
representação, conseguem explicar ou justificar a síntese (a unidade dada no conceito ou
concepção de ser). Resumamos a linha de argumentação para estabelecer as categorias
de acordo com este método de exposição: partimos da concepção de substância e
notamos que para concebê-la é imprescindível a concepção de referência a um
interpretante (categoria da representação). Além disso, notamos que concepção de
referência a um interpretante (categoria da representação) não pode ser prescindida da
concepção de referência a um correlato (categoria da relação) e esta não pode ser
prescindida da concepção de referência a um fundamento (categoria da qualidade). Esta
última concepção não pode, por sua vez, ser prescindida da concepção de ser. Portanto
para conceber substância é necessário introduzir a concepção de ser e todas as outras
concepções intermediárias: referência a um interpretante, a um correlato e a um
fundamento. Que haja alguma unidade é uma suposição levantada para explicar a
320
concepção de substância. Na verdade, para que sejamos mais precisos, é necessário
especificar que a unidade (representada, dentro de uma proposição, pelo termo "ser") é
uma suposição levantada para explicar como a variedade ou diversidade subjacente à
concepção de substância pode ser reduzida, sintetizada. Em poucas palavras, o conceito
de ser é a hipótese primeira a ser lançada para que procuremos respostas para aquela
pergunta inicial: como são possíveis as sínteses? Nestas últimas páginas, com auxílio de
uma diligente leitura de Andre De Tienne (1989), esforçamo-nos para expor as
categorias da (nova) lista proposta por Peirce. Entretanto, o método por nós utilizado
para expô-las é muito diferente daquele método de exposição escolhido por Peirce no
artigo original (que está sob análise). Na verdade, para que novamente sejamos mais
precisos, o método peirceano é exatamente o inverso.
321
10.3 Terceira parte da análise do ONLC: método de exposição
hipotético-desconstrutivo
No método que Peirce escolheu para expor sua (nova) lista de categorias, o ponto de
partida é o ponto de chegada do caminho recém apresentado: a unidade do ser. Tendo
como norte a variedade (dada no conceito de substância) e partindo da unidade (dada
no conceito de ser), qual seria o primeiro passo? Qual seria o primeiro conceito a ser
introduzido (neste novo caminho)? O primeiro ponto a ser notado é que, neste novo
caminho, é como se estivéssemos utilizando o método da prescindência invertido.
Qual concepção foi negada para que chegássemos à concepção de ser? Qual
concepção foi negada para que chegássemos à noção de unidade subjacente à
concepção de ser? A resposta é o conceito ou a concepção de qualidade (ou referência
a um fundamento). Reparemos que o conceito de qualidade só serve como resposta,
porque este conceito não pode ser mentalmente separado (prescindido) do conceito de
ser (cf. De Tienne, 1989, p. 404). Com a inversão (do método) da prescindência, pode-
se notar que a concepção de ser é "o que sobra" quando abstraímos a concepção de
qualidade, pois o termo ser designa justamente uma categoria sem determinações (sem
conteúdo cf. CP 1.548) . Assim, nesta ordem, o conceito de qualidade se segue do
conceito de ser.
Este raciocínio pode ser aplicado para se "derivar" as outras categorias. Nesta ordem,
da mesma forma que o conceito de qualidade se segue do conceito de ser (pois
somente aquele pode ser abstraído deste), o conceito de relação se segue do conceito
de qualidade. Neste caso, a pergunta é: qual concepção foi negada para que
chegássemos à concepção de qualidade? A resposta é a concepção de relação (ou
referência a um correlato). Notemos que, quando abstraímos (separamos) a noção de
relação (ou referência a um correlato), o que permanece é a concepção de qualidade.
Por exemplo, para que cheguemos à noção geral de vermelho (i.e., a qualidade
vermelho), devemos supor que haja algo como uma "vermelidão" que não se confunde
com o vermelho deste ou daquele objeto concreto. A suposição é que haja algo como
uma qualidade de vermelho, o aspecto do vermelho em si mesmo, sem nenhuma
relação com algo (concreto) que seja efetivamente vermelho. Quando se "desliga" a
cor vermelha de qualquer objeto (que seja atualmente) vermelho, i.e., quando se
"desliga" a cor vermelha de sua relação com os objetos vermelhos, chega-se à
concepção de vermelho como qualidade. Portanto, chega-se ao conceito de qualidade
ao se abstrair a concepção de relação.
E, de acordo com esta mesma lógica, perguntemo-nos: nesta ordem, como se chega ao
conceito de relação? Colocada de outro modo: qual concepção foi negada para que
chegássemos à concepção de relação? A resposta é a concepção de representação (ou
referência a um interpretante). Neste artigo ONLC, a noção de representação é
definida como uma referência a um terceiro elemento mediador (denominado
interpretante). Abstrair uma representação significa, portanto, abstrair a referência a
322
este terceiro elemento. Numa representação, ao se retirar o terceiro elemento, fica-se
apenas com o primeiro elemento (aquele que representava) e o segundo elemento
(aquele que era representado). Com a saída do terceiro elemento, o que permanece é a
relação (entre representante e representado). Portanto, chega-se à concepção de
relação ao se abstrair a concepção de representação. Este ponto ficará mais claro
quando desenvolvermos (no próximo capítulo) uma análise específica do conceito de
interpretante.
Para finalizar, podemos fazer o mesmo tipo de pergunta e notar que a resposta nos
leva ao "último" conceito visto desta perspectiva que ora apresentamos. Qual
concepção foi negada para que chegássemos à concepção de representação? A
resposta é a concepção de substância. Recordemos que o termo "substância" serve
para designar "algo" sobre o qual se podem formular juízos (predicações). Substância
é aquilo que está presente (em geral). Porém, de acordo com o que vimos das teses
peirceanas na chamada série cognitiva, não se tem acesso ao conteúdo de um
pensamento no presente imediato, ou seja, para se conhecer o conteúdo de um
pensamento é necessário produzir outro pensamento que interprete o primeiro. Para
conhecermos isso que está presente diante da mente, é preciso que isso (que está
diante da mente) seja objeto de uma representação. Neste caso, se abstrairmos esse
isso (a substância), então ficamos com a representação (disso). Portanto, se
abstrairmos a concepção de substância, o que resta é a concepção de representação.
Resumamos estes pontos todos no seguinte esquema:
o SER é resultado da abstração da QUALIDADE
QUALIDADE é resultado da abstração da RELAÇÃO
RELAÇÃO é resultado da abstração da REPRESENTAÇÃO
REPRESENTAÇÃO é resultado da abstração da SUBSTÂNCIA.
Porém, estamos tratando deste novo caminho, desta linha argumentativa que parte do
conceito de ser e se dirige para o conceito de substância como se estivéssemos a
observando do ponto de vista do método anterior (cuja linha argumentativa parte da
concepção de substância para a de ser). Para que possamos observar o
desenvolvimento desta linha argumentativa desenvolvida neste sentido de uma forma
mais autônoma (sem tomar como referência aquela que foi exposta anteriormente) é
necessário que, ao invés de nos perguntarmos o que tivemos que abstrair (ou negar)
para chegar a determinado conceito (ou concepção), perguntemo-nos o seguinte: o que
temos que acrescentar para que reestabeleçamos a unidade do ponto de partida? O
método de exposição que Peirce escolheu no ONLC é uma espécie de desconstrução
da hipótese do ser (como explicação para as sínteses). Com a ferramenta de
prescindência, Peirce estabeleceu que, para haver alguma síntese da variedade da
323
experiência, devemos supor, em última instância, a concepção de ser. Então, ele
começa sua exposição no ONLC pela hipótese de que a concepção de ser explica, em
última instância, como são possíveis as sínteses. Estabelecida esta hipótese, Peirce
passa a procurar quais seriam os ingredientes necessários para levantá-la.
No ONLC, a síntese é ponto de partida (e não ponto de chegada), é algo dado na
proposição. No método de exposição do ONLC, Peirce, de saída, afirma que o
conceito de ser é o responsável pela unidade dentro de uma proposição. E, como está
expresso no trecho a seguir, junto com o conceito de ser (que, neste método de
exposição, é dado na proposição) é introduzido o conceito de qualidade (que parece
ser dado na impressão [CP 1.551]).
O conceito de ser surge na formação de uma proposição. Uma proposição
sempre possui, além de um termo para expressar a substância, outro para
expressar a qualidade daquela substância; e a função deste conceito de ser é
unir a qualidade à substância. Qualidade, então, no seu sentido mais amplo,
é o primeiro conceito [introduzido] para que passemos de ser a substância.
(CP 1.551)219
De acordo com as palavras de Peirce, o conceito de ser serve justamente para unir
substância e qualidade dentro de uma proposição. Notemos também que o conceito de
qualidade é uma pura abstração e, por isso, não se confunde de forma alguma com o
conceito de substância. Ora, mas se estes dois conceitos não se confundem, então
“ainda” não há propriamente síntese. Assim, com esta introdução ainda não
conseguimos reestabelecer a unidade primordial, isto é, a unidade do ponto de partida
(o conceito ou concepção de ser). Quando é introduzida alguma concepção que
represente um aumento da variedade e não uma redução à unidade (como ocorreu
neste primeiro passo), isto é sinal de que será preciso supor alguma outra
concepção220
. Podemos entender este ponto imaginando que a linha de
desenvolvimento do argumento exposto por Peirce está seguindo uma regra (ou algo
como um algoritmo):
219
No original: "The conception of being arises upon the formation of a proposition. A proposition
always has, besides a term to express the substance, another to express the quality of that substance; and
the function of the conception of being is to unite the quality to the substance. Quality, therefore, in its
very widest sense, is the first conception in order in passing from being to substance". 220
Em outras palavras, podemos notar que, para trazer a variedade à unidade, a concepção de qualidade
seria necessária, mas não seria de forma alguma suficiente. Que ela não seja suficiente (para trazer a
variedade à unidade) é fácil de notar, pois a qualidade (ou a referência a um fundamento) não se confunde
com a substância. O problema é que, para notar que tal conceito ou concepção é necessária (para trazer a
variedade à unidade), precisamos de pensar no caminho inverso. É apenas por conta da introdução da
concepção de representação (ou referência a um interpretante) que a concepção de qualidade se torna
necessária (porque esta não pode ser prescindida daquela). No sentido em que estamos nos movendo (do
Ser à substância) só conseguimos enxergar a insuficiência das concepções que são introduzidas. No
sentido anterior (da substância ao ser), só conseguíamos enxergar a necessidade de cada uma das
concepções que eram introduzidas.
324
Nesta teoria, a introdução de uma concepção elementar acontece para:
1) reduzir a variedade da substância à unidade
ou
2) adicionar à substância outro conceito que possa reduzir a variedade da
substância à unidade.
Caso tenha ocorrido o segundo caso, a instrução é voltar e introduzir um novo
conceito até que se atinja o caso um ("quando o programa pode parar").
Não é difícil notar que a introdução do primeiro conceito (o de qualidade ou de
referência a um fundamento) falha em reduzir a variedade da substância à unidade. Por
este exato motivo, quando é introduzido este primeiro conceito, Peirce afirma que ele
adiciona um novo conceito ou concepção à substância. Este novo conceito ou
concepção adicionada é a de relação ou de referência a um correlato. De acordo com
Peirce,
A psicologia experimental estabeleceu o fato de que só podemos conhecer
uma qualidade por meio de contraste ou similaridade com outra qualidade.
Por contraste ou conformidade, algo faz referência a um correlato, caso este
termo possa ser utilizado num sentido mais amplo do que o usual.
(CP 1.552)221
Observemos que a ocasião de entrada da concepção de referência ao fundamento (ou
qualidade) é a brecha para a concepção de referência a um correlato (ou relação).
Porém, também esta segunda concepção introduzida falha em reduzir a variedade da
substância à unidade (ou seja, ela se encaixa naquele segundo caso da regra ou
algoritmo que apresentamos). Isto abre espaço para ser adicionada um terceiro conceito
ou concepção: a de representação ou de referência a um interpretante. Novamente, de
acordo com Peirce,
A ocasião de referência a um correlato é obviamente uma comparação. (...)
Toda referência a um correlato, então, adiciona à substância a concepção de
uma referência a um interpretante; e esta é, portanto, a próxima concepção na
passagem de ser a substância.
(CP 1.553)222
221
No original: "Empirical psychology has established the fact that we can know a quality only by means
of its contrast with or similarity to another. By contrast and agreement a thing is referred to a correlate, if
this term may be used in a wider sense than usual" (CP 1.552) 222
No original: "The occasion of reference to a correlate is obviously by comparison. (...)Every reference
to a correlate, then, conjoins to the substance the conception of a reference to an interpretant; and this is,
therefore, the next conception in order in passing from being to substance" (CP 1.553).
325
Observemos que, desta vez, a ocasião de entrada da concepção de referência a um
correlato (ou relação) é a brecha para a concepção de referência a um interpretante (ou
representação).
Já este terceiro conceito ou concepção introduzida não adiciona uma nova (quarta)
concepção à substância como as duas anteriores, pois é justamente a referência ao
interpretante que é responsável por "unir diretamente a variedade da substância" (CP
1.554). De acordo com a regra (ou algoritmo) que apresentamos acima, este terceiro
conceito se encaixa no primeiro caso e, por este motivo, ele nos leva diretamente (i.e.,
sem passar por nenhum outro conceito) ao ponto final: o conceito de substância.
A referência a um interpretante se torna possível e justificada por aquilo que
torna possível e justifica a comparação. Mas esta é claramente a diversidade
de impressões. Se tivéssemos nada mais que uma impressão, não seria
necessário que ela fosse reduzida à unidade e não seria necessário, portanto,
que ela fosse pensada como referida a um interpretante; e [neste caso] a
concepção de referência a um interpretante não surgiria. Entretanto, como há
uma variedade de impressões, temos o sentimento de complicação ou
confusão, que nos leva a diferenciar uma impressão de outra e, uma vez que
foram diferenciadas, é necessário que elas sejam trazidas à unidade. Porém,
elas não são trazidas à unidade até que as concebamos juntas como sendo
nossas, isto é, até que nós as referenciemos a uma concepção que seja o
interpretante delas. Portanto, a referência a um interpretante surge mediante a
unificação de impressões diversas e, assim, ela não acrescenta uma
concepção à substância, como as outras duas referências fazem, mas ela
unifica diretamente a substância em si mesma. É, portanto, a última
concepção na passagem de ser a substância.
(CP 1.554)223
Apresentados os dois métodos de exposição das categorias no ONLC, façamos algumas
últimas observações. Tanto no método construtivo como no desconstrutivo, para se
supor que haja síntese da variedade proveniente das impressões, tem-se que recorrer aos
três conceitos intermediários (qualidade, relação e representação). Estes são as
categorias propriamente ditas que "fazem" a passagem do conceito de ser ao conceito de
substância. A tese defendida por Peirce é que estes são os três conceitos universais.
Comparemos este dois métodos por meio de esquemas (que apresentamos na próxima
página).
223
No original: "Reference to an interpretant is rendered possible and justified by that which renders
possible and justifies comparison. But that is clearly the diversity of impressions. If we had but one
impression, it would not require to be reduced to unity, and would therefore not need to be thought of as
referred to an interpretant, and the conception of reference to an interpretant would not arise. But since
there is a manifold of impressions, we have a feeling of complication or confusion, which leads us to
differentiate this impression from that, and then, having been differentiated, they require to be brought to
unity. Now they are not brought to unity until we conceive them together as being ours, that is, until we
refer them to a conception as their interpretant. Thus, the reference to an interpretant arises upon the
holding together of diverse impressions, and therefore it does not join a conception to the substance, as
the other two references do, but unites directly the manifold of the substance itself. It is, therefore, the last
conception in order in passing from being to substance". (CP 1.554)
326
Método (hipotético) desconstrutivo
SER (Hipótese Inicial)
Introdução da concepção de referência a um fundamento
(QUALIDADE)
Justificativa: esta concepção (referência a um fundamento) seria dada
na própria impressão (cf. CP 1.551)
Introdução da concepção de referência a um correlato (RELAÇÃO)
Justificativa: a concepção anterior (referência ao fundamento) não é
suficiente para reduzir à unidade
Introdução da concepção de referência a um interpretante (REPRESENTAÇÃO)
Justificativa: a concepção anterior (referência ao correlato) não é suficiente para
reduzir à unidade.
SUBSTÂNCIA
Método (hipotético) construtivo
SUBSTÂNCIA
Introdução da concepção de referência a um interpretante (REPRESENTAÇÃO)
Justificativa: esta concepção (referência a um interpretante) é necessária para se
estabelecer a noção de síntese (ou de redução da variedade à unidade).
Introdução da concepção de referência a um correlato (RELAÇÃO)
Justificativa: esta concepção (referência a um correlato) é necessária para se
estabelecer a concepção anterior (referência a um interpretante).
Introdução da concepção de referência a um fundamento
(QUALIDADE)
Justificativa: esta concepção (referência a um fundamento) é
necessária para se estabelecer a concepção anterior (referência a um
correlato).
SER
327
10.4 Quarta parte da análise do ONLC: a síntese no contexto
argumentativo
Até este ponto, concentramo-nos basicamente no problema da síntese tal como foi
apresentado e tratado por Peirce no ONLC, a saber, dentro de um contexto
proposicional. De início, limitamo-nos a seguir a linha de raciocínio peirceana
elaborada para sustentar as três categorias e, posteriormente, com o intuito de explicitar
sentidos latentes no texto sob análise e também passagens e inferências implícitas no
argumento peirceano, procuramos apresentar também métodos alternativos de
exposição (destas categorias). Na quarta parte, pretendemos ampliar o foco da análise
que vem sendo desenvolvida neste capítulo e, assim, nos afastaremos um pouco da
linhas argumentativas do ONLC. A ideia, nesta última seção deste capítulo dedicado ao
ONLC, é acompanhar uma análise desenvolvida por Savan (1976) em sua introdução à
semiótica peirceana. De acordo com esta análise de Savan, a síntese é decorrente de um
processo de inferência, ela é o ponto de chegada de um argumento. Ao apresentar o
problema da síntese dentro de um contexto inferencial (ou argumentativo), esta análise
nos ajudará a enxergar de forma mais clara o motivo pelo qual a terceira concepção
universal introduzida no ONLC, a representação (ou a referência a um interpretante),
está associada à noção de mediação. Então, para que não sejamos acusados de plágio, já
alertamos que, durante as próximas páginas, vamos reproduzir em linhas gerais (com
alguns poucos acréscimos) a análise de Savan sobre o problema da síntese (no
pensamento de Peirce) por um motivo muito simples: julgamo-nos incapazes de fazer
melhor224
.
Há um fenômeno indubitável dentro do qual a síntese pode ser observada e
estudada na sua mais clara e pura forma, desembaraçada de acréscimos
irrelevantes e acidentais, a saber, a inferência lógica. A inferência conecta um
termo com outro, uma proposição com outra, um argumento com outro, e
esta conexão é tal que a passagem do antecedente para o consequente implica
em mudança e crescimento.
(...) Peirce acredita, então, que o estudo da inferência lógica irá resultar num
entendimento dos princípios básicos que estão por baixo de todas as formas
de sínteses e crescimento.
(Savan, 1976, p. 2)
A sugestão peirceana é que a síntese seja compreendida como um resultado de um
processo inferencial. Uma proposição sintética é justamente aquela na qual há uma
224
Deve-se enfatizar que o que torna possível esta abordagem de Savan é o fato de, dentro do pensamento
peirceano (no período posterior ao ano de 1865), podermos considerar que todas as relações relevantes
para a lógica são casos particulares de uma relação mais fundamental: a relação sígnica. Para Peirce, a
relação entre sujeito-predicado (numa proposição), a relação entre antecedente e consequente (num
condicional) e também a relação entre premissa-conclusão (numa inferência) são todas casos particulares
de relações sígnicas. Por este motivo podemos usar a inferência lógica como modelo interpretativo de um
processo sígnico.
328
combinação (união) de elementos (um termo sujeito e um termo predicado) que antes
não estavam combinados225
. Diante disso, uma das perguntas mais imediatas seria:
como chegamos a uma proposição? Em que condições se torna possível uma síntese?
Ora, no caso das proposições, todas as condições para que ocorra uma síntese são
criadas por um processo inferencial, i.e., um argumento. Colocado de outro modo, se
alguém, durante algum tempo, sustenta a crença de que "baleias são azuis", então uma
pergunta a ser feita é: como tal pessoa teria chegado a estabelecer esta crença (de que
baleias seriam seres azuis)? Neste caso, é razoável afirmar que esta síntese é o ponto de
chegada de um processo inferencial. Após uma inferência, juntou-se a ideia que se tinha
de baleia com a ideia que se tinha de seres azuis. Para que enxerguemos como um
processo inferencial perfaz esta tarefa de sintetizar elementos (ideias, representações),
temos que observar a estrutura interna de uma proposição. Tomemos como exemplo a
proposição (a síntese) apresentada por David Savan (1976, p.2) em sua análise:
"Todos os pássaros na plantação de Jonas são pretos".
Numa famigerada análise sugerida pela gramática (ao menos de línguas indo-europeias)
e acatada por Aristóteles na teoria inaugural da ciência da Lógica (a silogística),
podemos notar que há nesta proposição alguns itens que merecem atenção de um lógico:
há um quantificador (universal), "todo"; há um sujeito, "os pássaros na plantação de
Jonas"; e há um predicado, "ser preto" (ou, posto de outra forma, "_____ é preto").
Fiquemos com estes dois últimos itens apenas: o termo sujeito e o termo predicado,
respectivamente, aquilo ao qual se atribui algo e aquilo que é atribuído.
Consideremos inicialmente226
que toda proposição tem uma estrutura de Sujeito e
Predicado, S é P. Quais seriam condições que tornaram possível esta síntese entre S e P?
Em primeiro lugar, deve-se pressupor que deve ter havido alguma situação em que S e P
estavam disponíveis, mas ainda não estavam unidos e, numa segunda situação, S e P
foram unidos (e este é o ponto que queremos enfatizar da análise) graças à presença de
um termo médio. Há, portanto, uma situação em que os dois termos (sujeito e
predicado) estão disponíveis para uma mente, isto é, tem-se em mente uma ideia acerca
225
Este é basicamente a mesma definição oferecida para este conceito quando tratamos da relação entre a
filosofia peirceana e a kantiana na primeira seção do segundo capítulo. 226
Peirce mais tarde reformulou grande parte de suas teses a partir de um novo aparato lógico que
chamava de "lógica dos relativos". De forma resumida, a novidade deste aparato consiste na introdução
do uso de quantificadores e variáveis ligadas na análise lógica, o que desemboca no que hoje entendemos
por lógica de primeira ordem. Estas inovações começaram a ser desenvolvidas num artigo de 1870
intitulado “Description of a Notation for the Logic of Relatives, Resulting from an Amplification of the
Conceptions of Boole's Calculus”. Porém, a lógica de primeira ordem peirceana só ganhou uma forma
definitiva num artigo de 1885 intitulado “On the Algebra of Logic: A Contribution to the Philosophy of
Notations.” Apesar do impacto considerável que estas inovações na análise lógica tiveram no
pensamento peirceano, algumas das linhas mais gerais de raciocínio desenvolvidas por Peirce no artigo
ONLC (do qual estamos nos ocupando) não dependam do aparato lógico utilizado. Em particular, a linha
de raciocínio que queremos focalizar (a saber, aquela que sustenta a necessidade em se reconhecer sempre
um fator de mediação numa síntese ou representação de qualquer tipo) pode ser concebida dentro dos
limites do aparato lógico fornecido pela silogística aristotélica.
329
dos "pássaros na plantação de Jonas" e uma outra ideia de "cor preta" (certa noção de
"pretitude" [blackness]). E há uma segunda situação em que os dois termos são
unificados, isto é, as ideias acerca dos "pássaros na plantação de Jonas" e de "cor preta"
são fundidas dentro de um só molde: a proposição. A passagem da primeira destas
situações para a segunda é exatamente o que chamamos de síntese e esta passagem é
captada pelo que chamamos de inferência. Vejamos então esta operação de síntese que o
termo médio faz dentro de uma inferência. O exemplo a seguir é o mesmo utilizado por
Savan (1976, p. 2):
Premissa Maior --> M é P --> "Todos os corvos são pretos".
Premissa Menor --> S é M --> "Todos os pássaros na plantação de
Jonas são corvos".
Conclusão --> S é P --> "Todos os pássaros na plantação de Jonas são
pretos".
Façamos uma análise do que ocorre dentro desta estrutura argumentativa ou "dentro"
deste processo inferencial. O termo médio (neste caso, "corvos") que ocorre nas duas
premissas é o responsável por unir o termo sujeito da conclusão ("todos os pássaros na
plantação de Jonas") ao termo predicado da conclusão ("ser algo preto"). Esta noção de
mediação fará uma longa carreira dentro do pensamento peirceano. Este termo médio
age como uma ponte. Na metáfora utilizada por Savan (1976, p. 3), é como se o termo
médio M tivesse apresentado o termo S ao termo P. Ainda nos valendo da análise de
Savan, podemos enxergar a síntese como um processo de substituição que pode ser
compreendido sob duas perspectivas. Na primeira delas, podemos considerar que a
conclusão é derivada a partir do momento em que substituímos na premissa maior o M
pelo S e esta substituição é justificada pela premissa menor, pois, de acordo com esta,
todas as entidades que são S também são M. Numa segunda perspectiva, podemos
considerar que a conclusão é derivada a partir do momento em que substituímos na
premissa menor o M pelo P e esta substituição é justificada pela premissa maior, pois,
de acordo com esta, todos os M são P (isto é, P, neste caso, designa um caráter que
pertence a qualquer coisa que esteja subsumida no conjunto representado por M). Deve-
se destacar o porquê de o M ser uma espécie de mediador no estabelecimento da síntese
entre S e P. Note que, se por um lado, todo S é M (e isso seria a justificativa para a
substituição na primeira perspectiva apresentada), por outro lado, todo M é P(e isso
seria a justificativa para a substituição na segunda perspectiva apresentada). O termo
médio pode ser substituído tanto pelo S como pelo P dependendo sob qual perspectiva
pretendemos fazer a substituição. Nas próximas duas páginas, apresentamos de forma
esquemática as análises nas duas perspectivas acima mencionadas.
330
--> Primeira perspectiva (substituição na premissa maior do M pelo S)
- Linha inicial: M é P.
- Regra de substituição: substituir o M pelo S.
- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o
termo M é uma proposição que o termo M pode ser trocado pelo termo S, pois a
premissa menor garante que todo S é M, ou seja, algo que é verdade a respeito de
M também deve ser verdadeiro a respeito de S (mas, o inverso não é
necessariamente verdade).
- Linha final: S é P
--> Exemplo de substituição sob a primeira perspectiva
- Linha inicial: "Todos os corvos são pretos".
- Regra de substituição: substituir o termo "corvos" pelo termo "os pássaros na
plantação de Jonas".
- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o
termo "corvos" é uma proposição que o termo "corvos" pode ser trocado pelo
termo "os pássaros na plantação de Jonas", pois a premissa menor garante que
todos "os pássaros na plantação de Jonas" são "corvos", ou seja, algo que é
verdade a respeito de "corvos" também deve ser verdadeiro a respeito de "os
pássaros na plantação de Jonas" (mas, o inverso não é necessariamente verdade).
Por exemplo, se afirmamos que é verdade que todo "corvo é onívoro", então deve
ser verdade que todos"os pássaros na plantação de Jonas são onívoros". Por outro
lado, se afirmamos que é verdade que todos "os pássaros na plantação de Jonas
são aves que sofreram uma mutação (por conta do agrotóxico utilizado por
Jonas)", disso não se segue necessariamente que todos "corvos são aves que
sofreram uma mutação (por conta do agrotóxico utilizado por Jonas). Pode ser o
caso em que haja corvos (nalgum canto do mundo) que não tenham tido contato
com o agrotóxico (utilizado por Jonas) e, por isso, não seria verdadeiro afirmar
que estes "corvos são aves que sofreram uma mutação (por conta do agrotóxico
utilizado por Jonas)". Ou seja, aquela primeira proposição ("os pássaros na
plantação de Jonas são aves que sofreram uma mutação") pode ser verdadeira sem
que isso acarrete na verdade da segunda proposição ("corvos são aves que
sofreram uma mutação").
- Linha final: "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".
331
--> Segunda perspectiva (substituição na premissa menor o M pelo P)
- Linha inicial: S é M.
- Regra de substituição: substituir o M pelo P.
- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o
termo M é uma proposição que o termo M pode ser trocado pelo termo P, pois a
premissa maior garante que todo M é P ou seja, algo que é verdade a respeito de P
também deve ser verdadeiro a respeito de M (mas, o inverso não é
necessariamente verdade).
- Linha final: S é P
--> Exemplo de substituição sob a segunda perspectiva
- Linha inicial: "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".
- Regra de substituição: substituir o termo "corvos" pelo termo "_____ é algo
preto" .
- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o
termo "corvos" é uma proposição que o termo "corvos" pode ser trocado pelo
termo "_____ é algo preto", pois a premissa maior garante que "todos os corvos
são pretos", ou seja, algo que é verdade a respeito de "seres ou objetos que são
pretos" também deve ser verdadeiro a respeito de "corvos" (mas, o inverso não é
necessariamente verdade). Por exemplo, se afirmamos que é verdade que todos
"os seres ou objetos pretos são temidos pelo povo Peuyahe", então deve ser
verdade que todos os "corvos são temidos pelo povo Peuyahe". Por outro lado, se
afirmamos que é verdade que todos " corvos são passeriformes", disso não se
segue necessariamente que todos os "seres ou objetos pretos são passeriformes".
Pode ser o caso em que haja seres ou objetos que são pretos e, no entanto, não
sejam passeriformes. Por exemplo, buracos negros são pretos e não são
passeriformes. Ou seja, aquela primeira proposição ("os corvos são
passeriformes") pode ser verdadeira sem que isso acarrete na verdade da segunda
proposição ("os seres ou objetos pretos são passeriformes").
- Linha final: "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".
Podemos começar a enxergar neste ponto da análise quais são as condições que tornam
possível uma síntese entre S e P. Chamemos a atenção do leitor, pois irão reaparecer
nesta análise voltada para um contexto inferencial que ora apresentamos aquelas
mesmos conceito ou concepções universais que Peirce "derivou" (dentro de um
contexto proposicional) no ONLC.
332
A primeira das condições (que tornam possível a síntese entre S e P) é que haja algo que
represente uma qualidade ou um caráter (neste caso é o termo P [predicado]: "_____ é
algo preto"). A segunda destas condições é que haja algo que represente uma entidade
ou uma multiplicidade de entidades (neste caso é o termo S [sujeito]: "os pássaros na
plantação de Jonas"). A terceira condição é que haja algo que represente o que P
representa ou o que S representa ou o que ambos representam (neste caso é o termo M
[termo médio]: "corvos"). Este termo médio (que representa o que P representa ou o que
S representa ou o que ambos representam) pode ser entendido como algo que também
representa uma espécie de regra que, como vimos, possa justificar a substituição de M
por S ou P. É esta regra que nos permite substituir "corvos" por "os pássaros na
plantação de Jonas" ou por "_____ é algo preto". Deve-se chamar atenção para um
ponto com relação ao qual muito insistimos, sobretudo, nos primeiros capítulos e que
recebe ênfase especial nesta análise de Savan: o modo como Peirce encontrou dentro do
processo inferencial o modelo para estudar o problema central da (sua) filosofia: a
possibilidade de síntese. Antes de continuarmos, repassemos a análise deste processo
inferencial dentro de uma outra linguagem: a conjuntista.
Peguemos os termos envolvidos nesta inferência (os termos sujeito, predicado e também
o termo médio) e estabeleçamos que cada um deles designa um conjunto. Por exemplo,
o termo (sujeito) "os pássaros na plantação de Jonas" (que ocorre na premissa menor)
pode ser traduzido como o conjunto de todas as coisas (seres ou objetos) que são "os
pássaros na plantação de Jonas". Por motivos óbvios designaremos este conjunto pela
letra S. Outro exemplo, o termo (predicado) "_____ são pretos" (que ocorre na premissa
maior) pode ser traduzido como o conjunto de todas as coisas que "são pretas". Este
conjunto será designado pela letra P. E, por último, o termo (médio) "corvos" (que
ocorre nas duas premissas) pode ser traduzido pelo conjunto de todas as coisas (seres ou
objetos) que são "corvos".
Com os termos traduzidos, vejamos como ficam as proposições em linguagem
conjuntista. Se quisermos afirmar que determinado pássaro que conhecemos (e que se
chama César) é um corvo basta que arranjemos uma letra para designar tal indivíduo,
por exemplo, a letra c. Neste caso, afirmar que "o pássaro chamado César é um corvo"
é o mesmo que afirmar que "o pássaro chamado César pertence ao conjunto de todas as
coisas que são corvos". Nos símbolos usuais para teoria de conjuntos: "c P".
Entretanto, se quisermos expressar uma afirmação acerca de dois conjuntos, por
exemplo, (os conjuntos dos corvos e das coisas pretas), podemos recorrer a um
condicional. Afirmar que todos "os corvos são pretos" é o mesmo que afirmar que "se
uma coisa pertence ao conjunto das coisas que são corvos, então essa mesma coisa
pertence ao conjunto das coisas que são pretas". Com o auxílio de uma variável (que
nos permite dispensar o uso recorrente da palavra "coisa"), esta mesma frase traduzida
em linguagem conjuntista ficaria: se x M, então x P. Outra maneira de afirmar isto
é estabelecer que o conjunto M está contido no conjunto P, ou seja, qualquer coisa que
pertencer ao conjunto M também pertence ao conjunto P. Em símbolos: "M P".
333
Premissa Maior --> M é P --> "Todos os corvos são pretos".
--> "se x M, então x P" ou "M P"
Premissa Menor --> S é M --> "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".
--> "se x S, então x M" ou "S M"
Conclusão --> S é P --> "Todos os pássaros na plantação de Jonas são pretos".
--> "se x S, então x P" ou "S P"
Nota-se ,então, que a relação (de síntese) entre os conjuntos S e P foi mediada pelo
conjunto M. O que Peirce está afirmando é que, para chegarmos à síntese "S P",
temos que "passar" por "S M" e "M P". Para a afirmarmos que o S está dentro do P,
precisaríamos afirmar (antes) que o S está dentro de um M e este M está dentro de um
P. O M torna possível a síntese entre S e P porque o M é um termo (neste modelo com
qual trabalhamos agora, M é um conjunto) que está, por um lado, relacionado ao S e
está, por outro lado, relacionado ao P. Se, por um lado, o conjunto M contém o conjunto
S, por outro lado, o M está contido no conjunto P. O M é um conjunto que tem um
papel mediador porque é justamente ele que (por estar entre S e P) nos permite inferir
que o S está dentro do P.
Entretanto, e este é o ponto essencial (de acordo com nossa tese), notemos que este
procedimento de encontrar um termo médio, encontrar um elemento mediador pode ser
aplicado sobre o resultado obtido anteriormente. Este é um procedimento que pode ser
aplicado sobre si mesmo. E, como veremos durantes as detalhadas análises que vão se
seguir nos próximos capítulos, é exatamente esta aplicação sobre si mesmo que cria a
sequência infinita de signos/interpretantes dentro da semiótica. Visualmente, dentro de
diagramas emprestado de uma linguagem conjuntista, esta sequência infinita de
signos/interpretantes poderia ser representada da seguinte forma:
334
Esta é um dos modos de se apresentar visualmente a caracterização recursiva da relação
de representação que está dentro do conceito peirceano de signo. A produção de novas
representações mediadoras, i.e., novos interpretantes, é infinita.
335
CAPÍTULO 11
Análise da definição de interpretante dentro do
texto "Sobre uma nova lista de categorias"
(ONLC)
No capítulo anterior, apresentamos uma análise da estrutura do artigo "Sobre uma nova
lista de categorias" (que abreviamos pelas iniciais do título no idioma original: ONLC)
com o objetivo de exibir os conceitos básicos (categorias) que vão constituir os tijolos
de construção de todas as teorias elaborados por Peirce ao longo de sua carreira,
inclusive aquelas teorias que compõem a série cognitiva (cuja primeira parte analisamos
do quarto ao nono capítulo). Como vimos, é no ONLC que Peirce constrói o seu
próprio sistema de categorias com o intuito de responder o que considera o problema
maior da filosofia: como são possíveis as sínteses ou os raciocínios ampliativos? A
solução teórica de Peirce é que a síntese resulta de um processo de representação, ou
seja, o que torna possível a síntese é uma ação sígnica. De acordo com a análise
realizada no capítulo anterior, o elemento interno ao conceito peirceano de signo
responsável pela síntese é o interpretante. Assim, o objetivo deste décimo primeiro
capítulo é apresentar uma análise detalhada do conceito de interpretante conforme a
definição oferecida no ONLC para que possamos explicitar a caracterização recursiva
da relação de representação presente dentro do conceito peirceano de signo. Conforme
exposto no nono capítulo, é esta caracterização recursiva que torna possível o
estabelecimento do que denominamos de teses elementares da semiótica peirceana:
"Não há primeiro signo num processo interpretativo" (Tese_1 da semiótica) e "Não há
último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da semiótica). Estas teses
elementares são indispensáveis para que a solução teórica de Peirce funcione, pois elas
garantem que a teoria inferencial ou sígnica da cognição elaborada (sobretudo) no
primeiro artigo da série cognitiva (QFCM) seja estabelecida sem se recorrer ao conceito
de intuição, de uma cognição originária, fundante.
Como vimos no primeiro capítulo, a primeira vez que utiliza o termo "interpretante" é
em março de 1866 (W1; 347), numa anotação a respeito das partes que compõem um
argumento. Junto com esta primeira ocorrência, Peirce não ofereceu definição alguma
do que entendia, à época, por interpretante. Alguns meses mais tarde, na sétima das
palestras do Lowell Institute, em Boston, pode-se notar que Peirce já utiliza o termo
“interpretante” (W1, 465 [1866]) para designar aquele elemento que é resultado de um
processo de representação. A diferença fundamental entre esta definição incipiente do
termo e aquela oferecida no ONLC (e que analisaremos a seguir) é o conceito de
interpretante neste caso está fora da estrutura triádica, típica do pensamento peirceano
336
(principalmente, a partir do ONLC). A semelhança entre estas duas definições é que,
ainda que o conceito de interpretante esteja dentro de uma estrutura diádica, ele já está
definido com a função de substituição ("surrogate"). O trecho em questão é o seguinte:
O processo de seleção de um equivalente para um termo é a identificação de
dois termos anteriormente diversos. De fato, isto é um processo de nutrição
pelo qual esses termos adquirem toda a vida e vigor e graças ao qual esses
mesmos termos exibem uma energia quase criativa. Cada uma dessas da
equivalências é a explicação do que está no fundo do termo primário eles
são substitutos, são intérpretes do primeiro termo. Eles são corpos novos,
animados pela mesma alma. Denomino-os de interpretantes do termo. E a
quantidade desses interpretantes, denomino de informação ou implicação do
termo.
(Lowell Lecture VII ─ W1, 464-5 [1866])227
Neste trecho, o interpretante é entendido como um segundo termo que se apresenta
como equivalente a um primeiro termo. Não é preciso muito esforço para notar que a
estrutura desta definição de interpretante é diádica. Como veremos, dentro do modelo
triádico de signo que encontramos no ONLC, o modo como se desenvolve o processo
de representação é consideravelmente mais complicado. Porém, este aumento de
complexidade é uma exigência interna do projeto filosófico de Peirce. Aliás, nosso
objetivo nestes capítulos finais é demonstrar para o leitor como a introdução do terceiro
elemento da concepção peirceana de signo (o interpretante) é uma condição necessária
para sustentação de todo projeto filosófico desenvolvido no ONLC e na série cognitiva.
A solução teórica de Peirce para o problema das sínteses depende do conceito de
interpretante, para sermos mais precisos, depende, inclusive, do modo como tal conceito
foi definido. Portanto, a ideia deste décimo segundo capítulo é fechar o foco de nossas
análises num parágrafo específico dentro do ONLC: aquele em que pela primeira vez
Peirce define o conceito de interpretante dentro de um modelo triádico de signo.
227
No original: "The process of getting an equivalent for a term, is an identification of two terms
previously diverse. It is, in fact, the process of nutrition of terms by which they get all their life and vigor
and by which they put forth an energy almost creative. Each of these equivalents is the explication of
what there is wrapt in the primary – they are the surrogates, the interpreters of the original term. They are
new bodies, animated by the same soul. I call them the interpretants of the term. And the quantity of these
interpretants, I term the information or implication of the term".
337
11.1 A primeira definição de Interpretante dentro do modelo
triádico de signo
O parágrafo dentro do ONLC ao qual nos referimos no texto introdutório deste capítulo
é o seguinte:
A ocasião de referência a um correlato é obviamente por comparação. Este ato
não tem sido suficientemente estudado pelos psicólogos, e, portanto, será
necessário aduzir alguns exemplos para mostrar no que consiste tal ato.
Suponha que queiramos comparar duas letras p e b. Nós podemos imaginar que
uma delas seja invertida [e rotacionada] tendo como eixo a linha de escrita
e,depois, colocada sobre a outra letra para, finalmente, tornar-se transparente
para que se possa ver através dela. Dessa maneira, formaremos uma nova
imagem que medeia entre as imagens das duas letras, enquanto ela representa
uma delas como sendo (quando invertida) a semelhança da outra. Suponha,
então, que pensemos num assassino como alguém que está em determinada
relação com uma pessoa assassinada. Neste caso, concebemos o ato de
assassinato, e é nesta concepção que é representado que, correspondente a todo
assassino (bem como a todo assassinato), deve haver uma pessoa assassinada.
Dessa maneira, recorremos novamente a uma representação mediadora que
representa o relato como algo que está para um correlato com o qual a própria
representação mediadora está em relação. Novamente, suponha que olhemos a
palavra homme num dicionário da língua francesa. Neste caso, encontraremos
diante desta palavra homme a palavra homem, que, localizada naquele lugar,
representa homme como algo que representa a mesma criatura bípede que a
própria palavra homem representa. Por uma contínua acumulação de exemplos,
pode-se notar que toda comparação, além da coisa relacionada, o fundamento e
o correlato, requer também uma representação mediadora que representa o
relato como uma representação do mesmo correlato que esta representação
mediadora (ela mesma) representa. Esta representação mediadora pode ser
denominada de interpretante, pois ela cumpre o papel de um intérprete, ou seja,
o papel de alguém que diz que um estrangeiro diz a mesma coisa que ele
mesmo (intérprete) diz. O termo representação deve ser entendido aqui num
sentido lato, que pode ser melhor explicado por exemplos do que por definição.
Neste sentido, uma palavra representa alguma coisa para a concepção na mente
do ouvinte, um retrato representa a pessoa retratada para a cognição de
reconhecimento, um catavento representa a direção do vento para a concepção
daquele que o entende, um advogado representa seu cliente para o juiz e o júri
que ele influencia.
(CP 1.553)228
228
No original: "The occasion of reference to a correlate is obviously by comparison. This act has not
been sufficiently studied by the psychologists, and it will, therefore, be necessary to adduce some
examples to show in what it consists. Suppose we wish to compare the letters p and b. We may imagine
one of them to be turned over on the line of writing as an axis, then laid upon the other, and finally to
become transparent so that the other can be seen through it. In this way we shall form a new image which
mediates between the images of the two letters, inasmuch as it represents one of them to be (when turned
over) the likeness of the other. Again, suppose we think of a murderer as being in relation to a murdered
person; in this case we conceive the act of the murder, and in this conception it is represented that
338
Neste longo trecho transcrito acima, o interpretante nos é apresentado como o terceiro
termo de uma relação triádica na qual os outros dois termos são denominados por Peirce
de relato e correlato Peirce denomina de relato o primeiro termo (elemento) dentro do
signo e denomina de correlato o segundo termo (cf. Brunning, 1980, p.118). Assim
localizado, o interpretante é definido em função dos outros termos da relação triádica.
Isolemos, então, esta primeira definição de interpretante (dentro de um modelo triádico
de signo).
Definição n° 1 de Interpretante (CP 1.553) --> o interpretante é uma
representação mediadora que representa o relato como uma representação do
mesmo correlato que esta representação mediadora (ela mesma) representa.
Neste trecho do ONLC, Peirce opera por indução. Ele apresenta uma série de exemplos
de atos de comparação entre dois elementos quaisquer em que, em cada um destes atos,
se faz presente uma espécie de terceiro termo ou terceiro elemento, e este terceiro
elemento é apresentado, então, como aquilo que torna possível a comparação.
Fornecidos alguns os casos, Peirce parte para uma generalização: "por uma contínua
acumulação de exemplos, pode-se notar que toda comparação" requer também uma
representação mediadora, i.e., o interpretante.
Antes de passarmos para a análise de cada um dos três exemplos (fornecidos por
Peirce), refinemos esta concepção de interpretante para que possamos enxergar a
estrutura desta proposição. Para isto, devemos substituir os termos que nela ocorrem por
variáveis. Os termos a serem substituídos são justamente os três elementos envolvidos,
de acordo com a exposição de Peirce, em toda e qualquer comparação: o relato,
correlato e a representação mediadora. No esquema a seguir, substituímos cada um
desses termos pelas variáveis X, Y e Z.
Estrutura da definição n° 1 de Interpretante --> Um interpretante é "um Z que
representa um X como uma representação do mesmo Y que o Z representa"
corresponding to every murderer (as well as to every murder) there is a murdered person; and thus we
resort again to a mediating representation which represents the relate as standing for a correlate with
which the mediating representation is itself in relation. Again, suppose we look up the word homme in a
French dictionary; we shall find opposite to it the word man, which, so placed, represents homme as
representing the same two-legged creature which man itself represents. By a further accumulation of
instances, it would be found that every comparison requires, besides the related thing, the ground, and the
correlate, also a mediating representation which represents the relate to be a representation of the same
correlate which this mediating representation itself represents. Such a mediating representation may be
termed an interpretant, because it fulfills the office of an interpreter, who says that a foreigner says the
same thing which he himself says. The term representation is here to be understood in a very extended
sense, which can be explained by instances better than by a definition. In this sense, a word represents a
thing to the conception in the mind of the hearer, a portrait represents the person for whom it is intended
to the conception of recognition, a weathercock represents the direction of the wind to the conception of
him who understands it, a barrister represents his client to the judge and jury whom he influences".
339
Na próxima seção, ao analisarmos cada um dos exemplos fornecidos neste parágrafo,
pretendemos tornar claro que a estrutura (a forma abstrata) do conceito interpretante
(acima exposta) é a mesma em cada um dos casos.
340
11.2 Análise dos exemplos que acompanham a primeira definição
de Interpretante dentro do modelo triádico de signo
Nas próximas três subseções desta segunda seção do décimo primeiro capítulo,
desenvolveremos uma análise de cada um dos exemplos fornecidos por Peirce no
parágrafo que está sob exame. Ao final de cada análise, apresentaremos um conjunto de
noções gerais que podem ser derivadas de cada um dos exemplos.
341
11.2.1 - O primeiro exemplo
Suponha que queiramos comparar duas letras p e b. Nós podemos imaginar
que uma delas seja invertida [e rotacionada] tendo como eixo a linha de
escrita e,depois, colocada sobre a outra letra para, finalmente, tornar-se
transparente para que se possa ver através dela. Dessa maneira, formaremos
uma nova imagem que medeia entre as imagens das duas letras, enquanto ela
representa uma delas como sendo (quando invertida) a semelhança da outra.
(CP 1.553)229
No primeiro exemplo, suponhamos que uma pessoa esteja comparando a letra p com a
letra b. Para fazer tal comparação, seria necessário, segundo Peirce, que a mente desta
pessoa recorresse a um terceiro elemento, que seria uma espécie de representação
mediadora ou interpretante. A pessoa tem em mente, então, uma imagem da letra p e
uma imagem da letra b. Para comparar estas duas imagens, entraria em cena uma
terceira imagem. No exemplo, esta terceira imagem é justamente o resultado de um
certo procedimento que torna possível, para uma mente, a comparação entre (a imagem
de) uma letra e (a imagem da) outra. Vejamos passo por passo este procedimento.
Em primeiro lugar, devemos escolher uma dentre as duas letras que serão comparadas.
Escolhamos a letra p. Em segundo lugar, devemos inverter esta letra escolhida, ou seja,
é como se observássemos sua imagem no espelho. Em terceiro lugar, seria feita uma
sobreposição desta letra escolhida e invertida com a outra letra. Neste terceiro passo,
devemos pegar a letra p invertida e sobrepô-la a letra b. Em quarto lugar, devemos
tornar transparente a letra escolhida, invertida e sobreposta (à outra). Portanto, neste
quarto passo, devemos tornar transparente o p invertido que tínhamos colocado sobre o
b. Ao tornar a letra p (modificada de acordo com todos os passos anteriores)
transparente poderemos notar que ela é semelhante a letra b. Elas possuem a mesma
"forma". Ora, aquilo que resulta de todo esse procedimento é uma nova imagem e é
justamente esta imagem que torna possível a comparação. O resultado do procedimento
é a imagem do p invertido, sobreposto (ao b) e tornado transparente (para que se
enxergue, através dele, o b).
229
No original: "Suppose we wish to compare the letters p and b. We may imagine one of them to be
turned over on the line of writing as an axis, then laid upon the other, and finally to become transparent so
that the other can be seen through it. In this way we shall form a new image which mediates between the
images of the two letters, inasmuch as it represents one of them to be (when turned over) the likeness of
the other."
342
Neste exemplo, Peirce defende que, para que alguém possa comparar duas imagens,
seria necessário recorrer a uma terceira imagem que serviria à mente desta pessoa como
uma espécie de "ponte" para o ato de comparação. É necessário deixar claro que essa
afirmação é muito diferente de sustentar que duas coisas quaisquer apenas seriam
semelhantes na presença de uma terceira coisa que as tornassem semelhantes. Duas
coisas podem ser efetivamente semelhantes (uma nuvem e um hipopótamo, por
exemplo) sem que ninguém ou nenhuma mente nunca pare para notar tal semelhança.
Neste caso, não haveria a ocasião para que surgisse aquele terceiro elemento, isto é, o
fator mediador entre (a imagem de) a nuvem e (a imagem de) o hipopótamo. Portanto, o
fato de algo ser parecido com alguma outra coisa (ou mesmo a possibilidade de algo ser
parecido com qualquer coisa) é independente230
deste terceiro elemento. Na verdade,
este terceiro elemento só parece emergir quando a semelhança em questão passa a ser
notada por uma mente (responsável pelo ato de comparação). Por este exato motivo,
toda a vez que vai definir este terceiro elemento (o tal interpretante), Peirce se refere a
ele como uma representação. Vejamos este ponto mais detidamente, pois esta é a
primeira noção geral acerca do conceito de interpretante que vamos retirar destes
exemplos. A pergunta que devemos nos fazer é a seguinte: por qual motivo Peirce
denomina este terceiro elemento de representação mediadora?
Ao tentarmos comparar as duas letras, devemos, de acordo com o exemplo, conceber
uma terceira imagem (que seria resultado de todo aquele procedimento descrito). Então,
notamos que esta terceira imagem tem justamente o papel de representar (para a mente
que compara) a imagem de uma letra como semelhante à imagem de outra letra. No
exemplo fornecido, a terceira imagem surge (na mente daquele que se submete à tarefa
de comparar as [imagens das] duas letras) com a função de representar a semelhança de
uma a letra p com relação à letra b. Neste ponto da análise, abrem-se dois caminhos
interpretativos: o terceiro elemento (o interpretante) tem como objeto de sua
230
Esta independência aparece da seguinte forma no texto: "a referência a um interpretante não
prescindida da referência a um correlato; mas a última pode ser prescindida da primeira" (CP 1.554
[1867]). No original: "Reference to an interpretant cannot be prescinded from reference to a correlate; but
the latter can be prescinded from the former".
343
representação a relação de semelhança propriamente dita ou ele teria como objeto de
sua representação o primeiro elemento como algo semelhante ao segundo elemento? A
pergunta neste caso é: o interpretante representa a própria relação entre a (imagem da)
letra p e a (imagem da) letra b ou o interpretante representa a (imagem da) letra p como
algo que é semelhante à (imagem da) letra b. A interpretação que vamos sustentar nesta
tese é a relativa à segunda destas alternativas. Entretanto, não vamos argumentar a favor
deste interpretação neste ponto, pois isto extrapolaria os limites da análise que
pretendemos desenvolver dos três exemplos fornecidos no CP 1.553. Voltemos,
portanto, à análise.
A terceira imagem (deste primeiro exemplo) representa a semelhança de uma com
relação à outra, porque ela, de certa forma, é o resultado de um certo procedimento
(determinada transformação) que tem por intuito justamente mostrar as semelhanças
entre as duas coisas comparadas. Portanto, já notamos que este terceiro elemento é uma
representação, porém por que ele foi classificado como uma representação mediadora?
Pois o terceiro elemento representa (para a mente que compara) o primeiro elemento
como algo que está numa relação de semelhança com o segundo elemento e, ao mesmo
tempo, este terceiro elemento representa (também para mente que compara) o segundo
elemento como algo que está numa relação de semelhança com o primeiro elemento.
Este terceiro elemento é não só uma representação (para uma mente), mas uma
representação cujo papel é de mediação. Reparemos que o papel da terceira imagem
neste exemplo é justamente colocar as outras duas imagens em relação (de semelhança,
no caso).
Desta forma, a terceira imagem (que é, neste exemplo, concebida como uma
representação que medeia entre as imagens das duas outras letras) se encaixa
perfeitamente naquele molde abstrato que estamos considerando como definição (n°1)
de interpretante. Senão, vejamos
.
Os elementos do primeiro exemplo encaixados na estrutura da definição n° 1
de Interpretante --> Neste caso o interpretante seria "uma terceira imagem que
representa a primeira imagem (a do p) como algo que está numa relação (de
semelhança) com a segunda imagem (a do b) que a terceira imagem representa"
Reparemos que a terceira imagem não representa a primeira imagem (a do p) como tal.
Porém, a terceira imagem representa a primeira imagem sob um aspecto. A terceira
imagem representa a primeira imagem apenas enquanto esta é semelhante à segunda
imagem. Simplifiquemos trocando as expressões relativas às imagens pelas constantes
p, b e p' (respectivamente para a imagem da letra p, a imagem da letra b e imagem da
letra p modificada).
344
Neste caso o interpretante seria "um p' que representa o p como algo que está
numa relação (de semelhança) com o b que p' também representa (como algo está
numa relação [de semelhança] com p )"
ou equivalentemente
Neste caso o interpretante seria "um p' que representa o p como algo que está
numa relação (de semelhança) com o b que é também representado pelo p' (como
algo está numa relação [de semelhança] com p )"
Repare que o p' (que é o p modificado por aqueles procedimentos descritos acima) não
representa o p enquanto tal. Mas, o p' representa o p como algo que está numa relação
de semelhança com b. O p' apenas representa o p na medida em que este é algo que está
numa relação de semelhança com b.
Desta análise, podemos derivar, no mínimo, três noções acerca do conceito de
interpretante. Em primeiro lugar, o conceito de interpretante é classificado como uma
representação, ou seja, ele é algo da natureza de uma representação. Em segundo lugar,
o interpretante é um caso particular de representação, pois ele é definido como uma
representação cujo papel numa comparação é o de fazer uma mediação entre as "coisas"
comparadas. Estas duas primeiras noções são apresentadas de forma explícita na própria
definição inaugural de interpretante e não é necessário efetivamente derivá-las. Já a
terceira noção não aparece nominalmente na definição com a qual estamos trabalhando,
mas também não é necessário muito esforço para entrevê-la neste primeiro exemplo.
Além de ser uma representação mediadora, podemos depreender deste primeiro
exemplo que o interpretante entra em cena como resultado de um procedimento, de uma
transformação, da aplicação de uma regra (dada num passo a passo). Portanto, o
conceito de interpretante está também associado à noção de processo. A seguir, as três
noções gerais de que tratamos acima:
Noções gerais obtidas no primeiro exemplo
NG 1.1 - O interpretante é algo da natureza de uma representação.
NG 1.2 - O interpretante é um caso particular de representação.
NG 1.3 - O interpretante é produto de um tipo de regra.
345
11.2.2 - O segundo exemplo
Suponha que pensemos num assassino como alguém que está em
determinada relação com uma pessoa assassinada. Neste caso, concebemos o
ato de assassinato, e é nesta concepção que é representado que,
correspondente a todo assassino (bem como a todo assassinato), deve haver
uma pessoa assassinada. Dessa maneira, recorremos novamente a uma
representação mediadora que representa o relato como algo que está para um
correlato com o qual a própria representação mediadora está em relação.
(CP 1.553)231
No segundo exemplo, Peirce afirma que, quando pensamos num assassino como uma
pessoa que está em determinada relação (de assassínio) com outra pessoa (aquela que
foi assassinada), não podemos deixar de conceber um terceiro elemento (que não se
confundiria com a pessoa que assassina, nem com a pessoa que é assassinada). Este
terceiro elemento cumpre um papel de representação mediadora (ou interpretante) e que,
neste caso, seria justamente a concepção do ato de assassinato. De acordo com Peirce, é
nesta concepção (do ato de assassinato) que está representada a ideia de que para cada
assassino (e também para cada assassinato) há uma pessoa assassinada.
Peirce não está de forma alguma afirmando que para haver uma relação de assassinato
teria que haver uma mente capaz de conceber as pessoas envolvidas no ato como termos
de uma relação abstrata de assassínio. A existência da relação (de assassinato ou
qualquer outra relação diádica) é independente da concepção desta relação (por uma
mente). Por exemplo, o fato de Caim ter matado Abel é independente de alguém
conceber que tenha havido, neste caso, uma relação tal que um deles é um assassino e
outro é a vítima. O que Peirce parece afirmar é que, a partir do momento em que
passamos a pensar numa pessoa como estando numa determinada relação com outra, ou
seja, a partir do instante que passamos a pensar em Caim como alguém que assassinou
outra pessoa (Abel), surge na nossa mente uma concepção que age como terceiro
elemento cuja função é representar para nossa mente aquela relação entre Caim e Abel
ou, entendido de outro modo, a função deste terceiro elemento seria representar para a
nossa mente (não a relação propriamente dita, mas) Caim como uma pessoa que está em
determinada relação com Abel. É esta concepção que "diz" para nossa mente que há um
assassino e uma vítima.
O interessante é notar que Peirce defende que a concepção do ato de assassinato (o
terceiro elemento) está numa posição tal dentro da tríade que seria ele o termo capaz de
"definir" para a mente que teve tal concepção (o terceiro elemento) os papéis dos outros
231
No original: "Again, suppose we think of a murderer as being in relation to a murdered person; in this
case we conceive the act of the murder, and in this conception it is represented that corresponding to
every murderer (as well as to every murder) there is a murdered person; and thus we resort again to a
mediating representation which represents the relate as standing for a correlate with which the mediating
representation is itself in relation".
346
dois termos. A ideia é que o que "faz" de alguém um assassino (ou uma pessoa
assassinada) para a mente é justamente a posição dentro da relação tal como ela foi
representada. Entretanto, podemos colocar a mesma pergunta feita na análise do
exemplo anterior: por qual motivo Peirce denomina este terceiro elemento de
representação mediadora?
O terceiro elemento obviamente cumpre um papel de representação mediadora, pois ele
é uma concepção que surge com o objetivo de representar o primeiro elemento não em
si mesmo, mas de representar o primeiro elemento como algo que está numa relação
com o segundo elemento. Da mesma forma que o terceiro elemento do exemplo anterior
surgia para representar algo que estava numa relação (naquele caso, uma relação de
comparação ou semelhança entre duas [imagens de] letras), neste segundo exemplo, que
ora analisamos, o terceiro elemento também surge para representar algo que está numa
relação (neste caso, uma relação de assassínio entre duas pessoas). Esclarecido que
também neste caso o terceiro elemento tem um papel de representar e mediar,
posicionemos, então, os elementos envolvidos neste segundo exemplo no molde
abstrato que retiramos das definição n°1 de interpretante.
Os elementos do segundo exemplo encaixados na estrutura da definição n° 1
de Interpretante -->Neste caso o interpretante seria "a concepção do ato de
assassinato que representa a primeira pessoa (a que assassina) como algo que está
numa relação (de assassínio) com a segunda pessoa (a que é assassinada) que a
concepção do ato de assassinato também representa (como algo que está numa
relação [de assassínio] com a primeira pessoa [a que assassina])"
Se trocarmos os elementos provenientes deste segundo exemplo por algumas variáveis,
podemos facilitar bastante a visualização da forma deste enunciado e, assim, captar a
semelhança estrutural entre este exemplo e o anterior.
Neste caso o interpretante seria um "C que representa A como algo que está numa
relação (de assassínio) com B que C também representa (como algo está numa
relação [de assassínio] com A)"
ou equivalentemente
Neste caso o interpretante seria um "C que representa A como algo que está numa
relação (de assassínio) com B que também é representado por C (como algo está
numa relação [de assassínio] com A)"
347
Reparemos que o C é o elemento (uma concepção) que representa A como algo
relacionado a B e, ao mesmo tempo, representa B como algo relacionado a A. Por isso,
neste exemplo, para a mente que "teve" tal concepção, esta vai operar como uma
mediação, ou seja, tal concepção será uma representação cujo papel será o de fazer uma
mediação entre os outros dois elementos relacionados (A e B).
Deste segundo exemplo fornecido por Peirce, podemos derivar mais algumas noções
acerca do papel e das propriedades do interpretante ou da representação mediadora.
Neste caso, o terceiro elemento surge em decorrência da concepção de uma relação
diádica qualquer, ou seja, ele surge em decorrência de uma representação que uma
mente faz de uma relação diádica qualquer. Supondo que haja uma relação diádica
qualquer, há de se enfatizar que o terceiro elemento surge como exigência não da
existência da relação entre os dois primeiros elementos, mas ele surge como uma
exigência da concepção ou da representação (da existência) da relação entre os dois
primeiros elementos. De certa forma, é pelo terceiro elemento que a relação entre os
dois primeiros é estabelecida para uma mente. É como se a relação entre A e B só
passasse a existir para uma mente depois da entrada em cena do terceiro elemento232
. A
seguir apresentamos as noções gerais obtidas a partir da análise desses dois primeiros
exemplos. Com relação às noções provenientes da análise do exemplo anterior, a
diferença desta lista de noções gerais está na segunda delas.
Noções gerais obtidas nos dois primeiros exemplos
NG 2.1 = NG 1.1.
NG 2.2 - O interpretante é uma representação mediadora produzida sobre uma
relação diádica (chamada de relação-base).
NG 2.3 - O interpretante é produto de um tipo de regra.
232
Este ponto foi discutido no capítulo anterior quando analisamos a teoria das categorias defendida no
ONLC. O que foi descrito neste parágrafo é justamente a ocasião de introdução da terceira categoria, a
representação, que é também definida como "referência a um interpretante". O trecho no ONLC em que
este ponto fica evidente é o seguinte: "A referência a um interpretante se torna possível e justificada por
aquilo que torna possível e justifica a comparação. Mas esta é claramente a diversidade de impressões. Se
tivéssemos nada mais que uma impressão, não seria necessário que ela fosse reduzida à unidade e não
seria necessário, portanto, que ela fosse pensada como referida a um interpretante; e [neste caso] a
concepção de referência a um interpretante não surgiria"(CP 1.554 [1867]). No original:"Reference to an
interpretant is rendered possible and justified by that which renders possible and justifies comparison. But
that is clearly the diversity of impressions. If we had but one impression, it would not require to be
reduced to unity, and would therefore not need to be thought of as referred to an interpretant, and the
conception of reference to an interpretant would not arise".
348
11.2.3 - O terceiro exemplo
Suponha que olhemos a palavra homme num dicionário da língua francesa.
Neste caso, encontraremos diante desta palavra homme a palavra homem,
que, localizada naquele lugar, representa homme como algo que representa a
mesma criatura bípede que a própria palavra homem representa.
(CP 1.553)233
No terceiro exemplo, Peirce apresenta o terceiro elemento como se fosse o resultado de
um processo de tradução. Suponha que encontremos uma palavra em língua francesa cujo
significado desconheçamos e, por este motivo, tenhamos que recorrer a um dicionário. De
acordo com o descrito no trecho transcrito acima, quando olhamos, por exemplo, a
palavra (em língua francesa) “Homme” em um dicionário de francês-português234
devemos encontrar diante dela a palavra (em língua portuguesa) “homem”. Então, esta
palavra (“homem”) em língua portuguesa, ao estar naquela posição (naquele dicionário),
representa a palavra em língua francesa (“homme”) como algo que representa a mesma
criatura bípede (que a palavra em língua portuguesa representa). Portanto, a palavra
“homem” representa a palavra “homme” como algo que representa o mesmo objeto que
ela (a palavra “homem”) representa.
Nos dois exemplos anteriores, notamos que havia sempre um elemento que estava numa
relação (de semelhança ou de assassínio com outro elemento) e este primeiro elemento
era, então, representado, por um terceiro elemento, como algo que estava naquela relação.
O que pretendemos ressaltar é que, nesses dois primeiros exemplos, existia sempre uma
independência entre o fato de haver uma relação (entre os dois primeiros elementos) e o
terceiro elemento que representa. Repassemos este ponto. Nos exemplos anteriores,
começávamos por estabelecer uma relação entre a e b e, depois, afirmávamos que para se
pensar ou conceber o a como algo que está naquela relação com o b, precisaríamos criar
(conceber) um novo elemento: o c. Entretanto, nos dois casos anteriores, o fato de haver
uma relação entre a e b era independente de qualquer outro fator (inclusive era
independente de haver uma mente para "notar" essa relação). Ou seja, o que queremos
afirmar é que o fato de haver uma semelhança entre duas coisas quaisquer é independente
de uma mente ter de produzir um terceiro elemento que serviria para representar (para
esta mente) a semelhança entre aquelas duas coisas. Também o fato de uma primeira
pessoa ser a assassina de uma segunda pessoa era independente de uma mente ter de
produzir um terceiro elemento que serviria para representar (para esta mente) o fato de a
primeira ter assassinado a segunda. Tanto a relação de semelhança como o fato de ter
havido um assassinato são independentes da introdução de um terceiro elemento.
233
No original: "Again, suppose we look up the word homme in a French dictionary; we shall find
opposite to it the word man, which, so placed, represents homme as representing the same two-legged
creature which man itself represents". 234
Obviamente, no exemplo original desenvolvido por Peirce, a tradução é da língua francesa para a
inglesa.
349
Neste terceiro exemplo, a relação de representação do primeiro elemento ("homme") para
o segundo elemento ("criatura bípede") não é de forma alguma independente da entrada
em cena de um terceiro elemento (que neste exemplo específico foi a palavra "homem").
Ao contrário dos dois anteriores, neste terceiro exemplo, é a própria relação entre o
primeiro e o segundo elementos que parece exigir a presença do terceiro elemento. Este
ponto é central para o entendimento do que vem a ser o signo, pois é neste "momento"
dentro do texto que Peirce começa a caracterizar o que ele entende por representação e,
como esperamos tornar paulatinamente claro, isto está longe da simplicidade exibida pela
noções mais comuns de representação.
A diferença fundamental (entre este terceiro exemplo e os anteriores) está no tipo de
relação com qual começamos, i.e., no tipo de relação entre os dois primeiros elementos.
Chamemos esta relação de relação-base. No primeiro exemplo fornecido por Peirce, a
relação-base era uma relação de semelhança (dada numa comparação) e os elementos
considerados como semelhantes eram duas letras (ou, mais exatamente, suas imagens).
No segundo exemplo, a relação-base era uma relação de assassínio e os elementos entre
os quais se dava tal relação eram duas pessoas, uma que assassinava e a outra que era
assassinada.
É necessário recordar que o terceiro elemento só emerge nos primeiros exemplos porque
Peirce não está se referindo ao fato de haver semelhança entre duas letras ou ao fato de
haver um assassinato, mas está se referindo a operações mentais: uma comparação (de
duas imagens) e uma concepção (de uma pessoa como estando numa determinada relação
com uma segunda pessoa). É a operação mental de comparar (para encontrar semelhanças
ou diferenças) ou de conceber (como um relato entra numa relação com seu correlato) que
traz o terceiro elemento (junto com seu papel de representação mediadora) neste dois
primeiros exemplos. Deve-se notar que, quando quer fazer necessária a recorrência ao
terceiro elemento, o filósofo norte-americano não se refere às relações-base propriamente
ditas, mas ao modo como, no momento em que uma mente vai conceber um elemento
como algo que está na relação (base) com o outro, torna-se necessária a entrada em cena
de um terceiro elemento. Por este exato motivo, Peirce começa estrategicamente cada um
dos dois primeiros exemplos com referências diretas aos tais "atos mentais": no primeiro
exemplo, "suponha que queiramos comparar as letras p e b"235
; e, no segundo exemplo,
"suponha que pensemos num assassino como alguém que está em determinada relação
com uma pessoa assassinada"236
.
Se antes fazia sentido afirmar que a relação-base poderia subsistir sem a referência
necessária ao terceiro elemento, no último exemplo fornecido por Peirce já não faz
sentido, pois, neste caso, a relação-base é (ela mesma) uma relação de representação. Isto
faz toda a diferença, pois é apenas neste terceiro exemplo que o conceito peirceano de
representação passa a ser definido como algo que exibe uma espécie de recorrência ou
recursividade. Apenas quando colocamos uma relação de representação como relação-
base e nos atentamos para o fato de que o terceiro termo estabelece também uma
235
"suppose we wish to compare the letters p and b." 236
"suppose we think of a murderer as being in relation to a murdered person".
350
representação (que tem como papel interpretar a primeira relação) notamos que uma
representação (para ser concebida como tal) depende de um terceiro termo que é também
uma representação, ou seja, uma representação de dois termos quaisquer depende de uma
segunda representação (que representa justamente aquele primeiro termo como uma
representação do segundo termo da mesma forma que ele [terceiro termo] é representação
do segundo). Esta recursão fica clara apenas neste terceiro exemplo fornecido por Peirce,
porque, neste caso, a representação é apresentada justamente como aquela relação que
deve recorrer a uma (outra) representação. O resultado disso é uma concepção, uma
caracterização recursiva da relação de representação. Portanto, no caso da relação de
representação, a referência ao terceiro elemento ou termo é essencial. Uma representação
deve (por definição) exigir um interpretante (que nada mais é que uma outra
representação [mediadora] que serve para interpretá-la).
Se afirmamos que, para a representar b, é necessário um terceiro termo c para representar
a como representação de b (da mesma forma que c representa), então esta proposição está
afirmando que a noção de representação é, de algum modo, recursiva. Embora tenhamos
definido o conceito de recursão (na verdade, de "caracterização recursiva") já no texto
introdutório e também no nono capítulo desta tese, no próximo capítulo esta definição
será reapresentada para que possamos enfatizar algumas peculiaridades (muito relevantes)
da caracterização recursiva que Peirce nos apresenta do conceito de representação dentro
da semiótica (e de sua teoria da cognição). Por ora, é suficiente que notemos que a
recursão neste exemplo da palavra (em língua francesa) "homme" é clara. Apenas neste
terceiro exemplo estamos diante de, no mínimo, duas representações e, para notar a
recursão, basta que reparemos que uma relação de representação está envolvida na outra.
Para que algo represente uma coisa é necessário recorrer a uma representação deste "algo"
como representante daquela "coisa". Ora, mas se esta já é uma segunda representação,
então, para representar, precisamos recorrer a uma outra representação. No fundo, o que
Peirce estabelece com esta definição é que, para se "efetivar", toda representação exige,
de alguma forma, outra representação. Então, já neste artigo ONLC, uma representação
qualquer é apresentada como um certo procedimento que, por definição, deve recorrer a
uma outra representação. O papel da recursão dentro desta definição é criar a noção de
fluxo, a noção de passagem de uma representação à outra. É como se a natureza mesma
da representação fosse ser desenvolvida noutra representação. A recursividade é uma
propriedade que o conceito de representação vai legar para o conceito peirceano de signo.
Esta recursividade, dentro do conceito de representação (que, por sua vez, está alocado
dentro do conceito peirceano de signo), tem um papel fundamental na economia interna
da obra peirceana. O que temos defendido é que esta concepção de "representação como
fluxo" é uma exigência interna aos problemas filosóficos estabelecidos por Peirce no
início de sua carreira. Ao definir a relação de representação recursivamente e colocar esta
concepção no centro da definição de signo, Peirce estava criando um modelo de
funcionamento do signo que respondia à necessidade em se produzir uma teoria da
cognição que seria oferecida como uma alternativa àquelas teorias que recorrem à noção
de intuição (cf. capítulos 4 - 12).
351
Coloquemos, então, os elementos deste terceiro exemplo fornecido por Peirce naquele
molde que já utilizamos nas análises dos exemplos anteriores.
Os elementos do terceiro exemplo encaixados na estrutura da definição n° 1 de
Interpretante --> Neste caso o interpretante seria "a palavra (em língua
portuguesa) 'homem' que representa a palavra (em língua francesa) 'homme' como
uma representação da mesma criatura bípede que a palavra (em língua portuguesa)
'homem' representa"
Quando Peirce define que o interpretante é ele mesmo uma representação (mediadora),
ele estabelece que o terceiro elemento de uma representação qualquer (por exemplo, entre
a palavra "homme" e "criatura bípede") deve ser considerado o primeiro elemento de nova
representação.
Se notarmos que este terceiro elemento "a palavra (em língua portuguesa) 'homem' " é,
por definição, também uma representação, então também ele deve exigir a presença de
um outro termo para fazer mediação, ou seja, esta palavra (exatamente como aquela que
ela interpreta) deve ser interpretada ou "traduzida" noutra palavra (ou qualquer outra coisa
que cumpra um papel de interpretante). Se a representação entre a e b "exige a presença"
do terceiro termo, c, e se este terceiro termo é (ele mesmo) uma representação de a (como
representante daquele b que ele mesmo [c] também representa), então deve haver um
novo termo d (o quarto na sequência) para ser o interpretante do termo c. Neste caso, o
argumento geral parece ser o seguinte: se uma representação entre dois elementos
quaisquer a e b deve necessariamente recorrer a um outro elemento c (o terceiro termo)
que serve para representar o elemento a como uma representação do mesmo elemento b
que c representa, então temos uma outra relação de representação. Se esta outra relação é
uma relação representação, então ela mesma recorrerá a um outro elemento d (um quarto
termo) que serve para representar o elemento c como representante do mesmo a
(relacionado ao b) que o d representa.
De tudo que foi exposto, não é difícil notar que é possível derivar deste terceiro exemplo
uma especificação muito importante da terceira noção geral da lista que viemos
apresentando ao final da análise de cada exemplo. Podemos derivar desta análise acima
apresentada que o terceiro elemento surge por ocasião de um processo recursivo.
Noções gerais obtidas nos três exemplos
NG 3.1 = NG 2.1 e NG 1.1.
NG 3.2 = NG 2.2
NG 3.3 - O interpretante é produto de uma regra recursiva.
352
11.2.4 - Noções gerais obtidas a partir dos três exemplos
O sistema de numeração que utilizamos para nos referir às noções gerais serve para
sabermos de qual exemplo cada uma delas foi retirada. Por exemplo, a noção geral 3.3
("o interpretante é produto de uma regra recursiva") só se torna disponível a partir da
análise do terceiro exemplo. Antes disso, por exemplo, no primeiro exemplo, o que
tínhamos era apenas uma versão mais vaga dela: "o interpretante é produto de um tipo
de regra" (NG 1.3). Obviamente, algumas destas noções gerais são repetidas. Por
exemplo ao final da análise do terceiro exemplo, apresentamos uma lista cujo primeiro
item nos informa que "NG 3.1 = NG 2.1 e NG 1.1". Se deixarmos de lado estas
repetições e isolarmos apenas aquelas noções mais desenvolvidas que foram derivadas
das análises, então teremos uma nova lista com apenas três noções gerais.
Noções gerais obtidas nos três exemplos (versão decantada)
NG I (na numeração anterior: 1.1) - O interpretante é algo da natureza de uma representação.
NG II (na numeração anterior: 2.2) - O interpretante é uma representação mediadora
produzida sobre uma relação diádica (chamada de relação-base).
NG III (na numeração anterior: 3.3) - O interpretante é produto de uma regra recursiva.
353
11.3 Excurso: alguns modelos de interpretação do conceito
peirceano de representação
Já ao final deste trecho que separamos para analisar neste capítulo (CP 1.553 [1867]),
Peirce se refere a um sentido lato de representação. Como vimos nas seções anteriores,
este sentido lato é justamente uma concepção da relação de representação que implique
num terceiro termo além do primeiro termo (representante) e do segundo termo
(representado). A esta altura, fica claro também que, ao se referir à relação de
representação com esta estrutura triádica, já estamos diante do conceito peirceano de
signo ou, ao menos, já temos as condições necessárias e suficientes para definir tal
conceito. A seguir transcrevemos este trecho final do fragmento do texto peirceano que
ora analisamos:
O termo representação deve ser entendido aqui num sentido lato, que pode
ser melhor explicado por exemplos do que por definição. Neste sentido, uma
palavra representa alguma coisa para a concepção na mente do ouvinte, um
retrato representa a pessoa retratada para a cognição de reconhecimento, um
catavento representa a direção do vento para a concepção daquele que o
entende, um advogado representa seu cliente para o juiz e o júri que ele
influencia.
(CP 1.553 [1867])
Como vimos nas análises que apresentamos seções anteriores deste capítulo, o conceito
de interpretante é formal e abstrato. O interpretante pode ser considerado tanto uma
"posição" (de mediação) dentro da tríade como um procedimento ou regra geral
responsável pela geração de novos signos a partir de signos anteriores. Na verdade, de
acordo com a interpretação que viemos defendendo, ainda que o interpretante seja
entendido como uma posição, deve ficar claro que aquele elemento que entra nesta
posição (i.e., um novo signo) é gerado por um procedimento ou regra geral, e esta é uma
espécie de regra de recursão aplicada infinitamente sempre sobre o último signo da
sequência. Desde as linhas imediatamente posteriores à definição inaugural do conceito
de interpretante (que apresentamos acima), Peirce se preocupou em fornecer vários
exemplos. Assim, pretendia tornar mais palpável o que se deve entender por esse
processo interpretativo, que em si mesmo seria apenas uma forma, um complexo de
relações ou um movimento bem abstrato que ocorreria graças à interação de entidades
igualmente abstratas (cujas definições seriam entrecruzadas). É de um desses exemplos
que nasce o que podemos considerar o primeiro modelo interpretativo para esta
estrutura ou processo formal cujo nome técnico na obra peirceana passou a ser (a partir
de 1906) “semiose”. O assim chamado modelo da tradução. Aliás, pelo que se pode
depreender do trecho transcrito a seguir, é justamente devida à noção de tradução
(subjacente a este modelo) a escolha do nome para o conceito de interpretante: a
"representação mediadora pode ser denominada de interpretante, pois ela cumpre o
354
papel de um intérprete, ou seja, o papel de alguém que diz que um estrangeiro diz a
mesma coisa que ele mesmo (intérprete) diz" (CP 1.553).
Dentro deste modelo, podemos imaginar que cada uma das frases que o intérprete vá
enunciando como tradução das frases enunciadas pelo estrangeiro serve para o ouvinte
como um "interpretante".
Modelo da tradução para o conceito de interpretante --> Um interpretante é
"uma frase Z que garante que aquela frase X que foi falada (numa língua
estrangeira) tenha o mesmo significado Y que ela (a frase Z) tem (na língua do
ouvinte)".
Outros modelos para interpretar esta definição abstrata da semiose ou do processo
interpretativo (potencialmente infinito) foram desenvolvidos tanto por Peirce em outros
textos como por comentadores em estudos exegéticos. Um dos modelos mais notáveis é
aquele atribui a geração de interpretantes a uma incompletude e insuficiência inerentes a
qualquer representação. É como se invariavelmente houvesse um intervalo separando o
signo do objeto, o representante do representado. O interpretante seria justamente o
elemento responsável pela incessante tentativa de transposição do espaço que separa o
signo do objeto, que, ao longo do tempo, passaria a ser cada vez menor. No trecho
transposto a seguir, Santaella explica como funciona o signo dentro desse modelo da
impotência-incompletude.
A cadeia triádica ou semiose é a forma lógica de um processo que revela o
modo de ação envolvido na cooperação diferencial de três termos. O modo de
ação típico do signo é o do crescimento através da autogeração. O signo, por
sua própria constituição, está fadado a germinar, crescer, desenvolver-se num
interpretante (outro signo) que se desenvolverá em outro e assim
indefinidamente. Sua ação é a de crescer, desenvolvendo-se num outro signo
para o qual é transferido o facho da representação. Nessa medida, o
interpretante realiza o processo de interpretação, ao mesmo tempo em que
herda do signo o vínculo da representação. Herdando esse vínculo, o
interpretante gerará, por sua vez, um outro signo-interpretante que levará à
frente, numa corrente sem fim, o processo de crescimento.
Porém, cumpre, elucidar por que o signo está fadado a crescer. A
transferência do facho da representação para o interpretante significa que o
signo é sempre inelutavelmente incompleto em relação ao objeto que ele
representa.
(...) o signo está ligado ao objeto não em virtude de todos os aspectos do
objeto, porque, se assim fosse, ele seria o próprio objeto. Pois bem, ele é
signo justamente porque não pode ser o objeto. (...) Daí sua incompletude e
consequente impotência, sua tendência a se desenvolver num interpretante
onde busca se completar. Contudo, sendo o interpretante de natureza sígnica,
ele se manterá também em dívida para com o objeto, que será, em razão
355
disso, aquilo que, por resistir em sua alteridade, determina a causação lógica
do desenrolar dos interpretantes.
Estão aí colocadas, na alteridade do objeto e na incompletude do signo, as
raízes das questões ontológicas e epistemológicas do universo sígnico. Para
Peirce, em última instância, o lugar lógico do objeto é o da "realidade", a qual
se torna manifesta através de signos. Mas ao mesmo tempo, a "realidade" é
aquilo que determina ou impulsiona a produção de signos.
(Santaella, 2000, p. 29 - 30)
Dentro deste modelo descrito por Santaella, o conceito de interpretante pode ser
expresso da seguinte forma:
Modelo da insuficiência-incompletude representativa para o conceito de
interpretante --> Um interpretante é "um Z que procura completar a função
representativa de um X que representa o mesmo Y que o Z representa também de
forma insuficiente.
Ora, como também o Z é insuficiente para completar a função representativa do X com
relação ao Y, então deve ser introduzido um quarto termo para tentar completar o
"serviço" de representação.
Um outro modelo possível para interpretar o conceito de interpretante e também de
processo de representação dentro da semiótica peirceana é proveniente da noção de
substituição237
. Suponha que um embaixador tenha sido convidado para ir a uma festa
cívica representando o seu país, mas, no dia do evento, quebrou a perna e, como não
poderia comparecer, enviou um substituto. Notemos que neste caso, o substituto não vai
à festa representar "a pessoa do embaixador", mas ele vai representar aquilo que o
embaixador representaria caso estivesse presente: o país. Esta é uma substituição
construída sobre outra substituição (anterior).
Modelo da substituição para o conceito de interpretante --> Um interpretante é
"um Z que SUBSTITUI o X como alguém que SUBSTITUI o mesmo Y que o Z
SUBSTITUI"
237
Na verdade, como já fizemos referência na terceira seção do terceiro capítulo, o próprio Peirce recorre
a este modelo numa passagem do segundo artigo da série cognitiva (cf. CP 5.279 [1868]). Nesta
passagem (que está dentro de uma seção sobre "ação mental"), Peirce afirma que, em termos gerais, um
processo inferencial (que é um caso particular de um processo sígnico) pode ser entendido como um
processo de substituição. Neste caso, a conclusão de uma inferência nada mais seria que o resultado de
um processo de substituição. Para Peirce, "a conclusão pode ser considerada como a proposição que
substituiu qualquer das premissas e a substituição é justificada pelo fato afirmado na outra premissa" (CP
5.279 [1868]).
356
Outros modelos interpretativos para o conceito de interpretante e para o processo
interpretativo (ou representacional) têm aparecido na literatura especializada na obra de
Peirce. Alguns deles entrelaçados com conceitos e noções pertencentes a
desenvolvimentos muito recentes do pensamento científico. Por exemplo, modelos
inspirados em processos biológicos (cf. Merrell, 1996); em processos emergenciais (cf.
Queiroz e El-hani, 2007, p. 93-129); em processos cognitivos dentro do variado
quadro das ciências (contemporâneas) da cognição (cf. Queiroz, 2004, p. 180-188).
Outras interpretações, como a do astrofísico e semioticista Jorge Vieira (2007, p. 63)
aproximam os processos interpretativos descritos pela semiótica peirceana do que vem
sendo denominado de processos auto-organizativos.
357
CAPÍTULO 12
Interpretante e recursividade
Esta interpretação que apresentamos do conceito de interpretante como um elemento
que é resultado de uma regra de recursão não é desprovida de lastro. A base para esta
interpretação deste conceito fundamental na semiótica peirceana está tanto nos textos
peirceanos (distribuída por dezenas de definições do conceito de signo) como em
interpretações de alguns dos mais importantes estudiosos da obra de Peirce.
Acreditamos que considerar o interpretante como uma espécie de regra (procedimento)
de recursão é uma ideia sugerida na própria estrutura triádica do signo e no modo como
Peirce define o papel de cada um dos elementos da tríade com relação aos demais.
Óbvio está que não encontraremos jamais evidência textual direta desta interpretação
que fazemos, uma vez que a noção de recursividade ainda não tinha sido desenvolvida
na época em que Peirce estava lançando os fundamentos de sua semiótica. Na verdade,
seria mais preciso afirmar que os lógicos e matemáticos do período tinham alguma
noção (ainda que vaga) do procedimento de recursividade. Prova disso é que o próprio
Peirce foi o responsável pela primeira definição recursiva (que se tem notícia) sem, no
entanto, ter estabelecido formalmente o que vem ser uma definição recursiva (cf.
Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, 1973, p. 299). Portanto, é óbvio que Peirce nunca
apresentou uma definição declaradamente (formalmente) recursiva de signo ou de
interpretante, ele nunca afirmou de forma explícita que o interpretante era o resultado de
uma (regra de) recursão. Mas, se nos faltam evidências, diretas, imediatas, cartesianas,
claras e distintas, por outro lado, sobram sugestões gentilmente oferecidas por uma
perspectiva estrutural, formal da concepção de signo. A sugestão de que há uma
correlação entre interpretante e recursividade é retirada não de uma ou duas definições
de signo, mas de uma forma (ou estrutura) abstraída de diversas definições de signo
elaboradas em diversos momentos do desenvolvimento da semiótica peirceana. Já na
definição "inaugural" de interpretante (que acabamos de analisar) podemos enxergar a
recursividade em operação no interior da noção peirceana de signo. Infelizmente, para
esta tese, não poderemos desenvolver análises minuciosas das demais definições que
Peirce construiu de signo e também de interpretante.
Com relação a esta correlação entre recursividade e interpretante, além do ponto de
apoio interno ao texto peirceano, buscamos também referências externas, ou seja,
interpretações de alguns estudiosos que vão na mesma direção que nossa leitura. Uma
destas interpretações (que convergem com a nossa) é a de David Savan, para quem
interpretante é uma "instância (ou réplica) de uma regra de recursão". Na verdade,
Savan defende a tese de que a concepção de regra de recursão é um dos fatores que
caracterizam quase todas as definições peirceana de interpretante. Então, antes de nos
358
voltarmos para as análises relativas à nossa própria tese a respeito da correlação entre
recursividade e interpretante, examinemos esta interpretação de Savan sobre o conceito
de interpretante, pois esta é uma ótima oportunidade para que esclareçamos alguns
pontos que permaneceram na penumbra238
na análise recém-terminada do texto
peirceano. A análise deste trecho dos escritos de Savan acerca do pensamento semiótico
de Peirce deve nos levar, na segunda seção deste capítulo, a uma definição do conceito
de representação (ou processo de representação) que torne clara a recursividade
implicada, graças à introdução do termo "interpretante" na teoria semiótica, em
qualquer processo de representação. Esta definição (que torne evidente como [para
Peirce] qualquer processo de representação é fruto de uma recursão) deve, na terceira
seção deste capítulo, nos levar de volta à questão das origens do processo cognitivo, o
que, por sua vez, deve nos deixar no ponto exato para que possamos, no próximo e
último capítulo, sustentar nossa tese acerca da correlação entre recursividade e
interpretante. Na verdade, é justamente a caracterização recursiva de representação
(dentro da concepção peirceana de signo) que introduz um terceiro elemento (o
interpretante) no processo de representação que acaba por ser responsável pelas
características peculiares da semiótica desenvolvida por Peirce. Bem no espírito
(recursivo) do conceito de interpretante de Peirce, passemos para uma interpretação da
interpretação de David Savan justamente sobre o conceito de interpretante.
238
Deixamos sem resposta a seguinte pergunta: o interpretante representa a própria relação entre o
primeiro e segundo termos ou o interpretante representa o primeiro termo como algo que está em
determinada relação com o segundo termo?
359
12.1 Análise do trecho de Savan a respeito da relação entre
interpretante e recursividade
O trecho em que David Savan apresenta uma interpretação que converge com a linha
interpretativa que viemos desenvolvendo nesta tese está num artigo intitulado "resposta
a T. L. Short" (Savan, 1986). Como o próprio título sugere, neste artigo, Savan
apresenta algumas respostas a questionamentos levantados (e direcionados diretamente
a ele [Savan]) por um outro importante intérprete da obra peirceana, Thomas Short
(1986). Por sua vez, as questões levantadas por Short estão num artigo intitulado "Os
estudos peirceanos de David Savan" ("David Savan's Peirce Studies"). O pano-de-fundo
contra o qual ocorre este debate entre Short e Savan é a célebre discussão a respeito da
unidade da filosofia peirceana (cf. primeira seção do primeiro capítulo). A seguir
apresentamos três teses defendidas por Savan a respeito da semiótica peirceana às quais
Short se refere em seu texto. Enfatizemos que as duas primeiras são indispensáveis para
se estabelecer aquelas que foram denominadas (no nono capítulo) de teses fundamentais
da semiótica: "não há primeiro signo num processo interpretativo" (Tese_1 da
semiótica) e "não há último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da semiótica).
Teses defendidas por Savan acerca da semiótica peirceana
Tese1 (defendida por Savan) --> "Todo interpretante é um signo" (Savan, 1976, p. 32)
Tese2 (defendida por Savan) --> "Todo signo é um interpretante" (Savan, 1976, p. 32)
Tese3 (defendida por Savan) --> "Sem interpretante não há signo, mas somente um signo
potencial ou virtual" (Savan, 1976, p. 3)
Apresentadas estas três teses que Savan defende acerca do conceito peirceano de
interpretante (e de signo), Short observa (juntamente com outros comentadores) que "a
primeira e a terceira proposições implicam um progressus infinito de signo/interpretantes,
enquanto a segunda proposição" (assumindo que para cada interpretante deve haver um
signo que o interpreta) "implica um regressus infinito de signo/interpretantes" (Short,
1986, p. 103). Short, então, considera que tanto estas teses como suas consequências estão
consonantes com a teoria da cognição que Peirce desenvolveu em dois artigos em 1868:
"de acordo com esta teoria não há primeira cognição e nem última cognição, embora uma
série qualquer de cognições, sendo contínua, pode começar e terminar num tempo finito"
(Short, 1986, p. 103). Neste ponto de seu texto, Short passa a argumentar a favor da tese
de que Peirce, numa fase madura de seu pensamento, teria abandonado estas três teses
que, para Savan, seriam essenciais à noção de signo (bem como a de interpretante). De
acordo com Short, Peirce teria sido obrigado a abandonar as teses que implicam os
processos interpretativos infinitos para escapar da "prisão semiótica na qual cada signo
360
significa apenas aquilo que outro signo o faz significar" (Short, 1986, p. 103).
Infelizmente, nesta tese, não teremos uma oportunidade para apresentar e analisar de
forma mais detida os argumentos apresentados por Short para afirmar que Peirce teria
feito esta reformulação profunda em sua semiótica239
. Entretanto, o que também
pretendemos provar, ao final desta tese, é que as teses da série cognitiva e do ONLC que
implicam nos processos interpretativos infinitos não criam prisão semiótica alguma
(portanto, caso Peirce tenha de fato abandonado teses defendidas no início de sua carreira,
deve ter sido por outro motivo). Short revela nas entrelinhas de seus esmerados e
engenhosos escritos sobre Peirce uma irredutível inconformidade com o que chamou de
progressus e regressus infinito de signo/interpretantes (Short, 1986, p. 103). Há um
inegável tom de incredulidade, em geral, com relação à semiótica proposta ao final da
década de 1860 e, em particular, com relação à noção de processo interpretativo infinito
(cf. Short, 2007, p. 46, p. 51, p. 53 e, sobretudo, p. 57). Não culpamos Short. É natural
que o infinito assuste. Cause vertigem. Aliás, uma teoria que tenha como exigência
interna um progressus ou um regressus infinito parece estar destinada a ser considerada
uma teoria que nada tem a dizer sobre o fenômeno que pretende explicar. É como se ela
estivesse eternamente em vias de dizer, mas nunca dissesse coisa alguma. É, antes, uma
iniciação ao silêncio do que uma explicação. E este é um silêncio eterno. A reação de
Short é natural. Afinal, é mesmo atribuído ao silêncio dos espaços ou tempos infinitos um
certo apavoramento, talvez inescapável. Algumas das linhas de Short fazem eco com uma
das últimas e célebres frases do texto "O homem perante a Natureza" do filósofo Blaise
Pascal: "o silêncio eterno desses espaços me apavora". A diferença é que Pascal estava
inconformado não com a infinitude do cosmos, mas com a esmagadora finitude do
homem ante a vastidão cósmica.
Antes que entremos num debate com Short ou comecemos a "filosofar" sobre o infinito,
voltemos para o texto de Savan para que possamos "fechar" esta seção. Por ora, basta que
atentemos que é neste contexto acima descrito que David Savan apresenta a interpretação
(fundamental para nossa tese) que o terceiro elemento da semiose (o interpretante ou a
representação mediadora [nos termos do ONLC]) é a resultante de uma "regra de
recursão". E, como vimos na seção anterior, é justamente a noção de recursão a
responsável pela infinitude do processo interpretativo. Segundo Savan, "o primeiro e
terceiro correlatos trocam de papéis numa alternação infinita. Cada instância de
interpretante se torna um signo para a próxima instância de interpretante. Esta troca
contínua entre primeiro e terceiro correlatos, e entre signos e interpretantes, é essencial"
(Savan, 1986, p. 134) . Passemos, então, ao trecho específico em que Savan trata da
correlação entre a noção de recursividade e o conceito de interpretante:
No [artigo] "uma nova lista de categorias", já há um reconhecimento de que o
conceito de um terceiro está intimamente ligado ao conceito de interpretante.
"O conceito de terceiro é aquele de um objeto que está de tal forma relacionado
dois outros que estão relacionados ao outro da mesma forma que o terceiro está
239
Os argumentos de Short (a respeito desta suposta reformulação) estão desenvolvidos com muito mais
fôlego e com uma riqueza maior de detalhes numa obra recente sobre a teoria do signos peirceana (Short,
2007).
361
relacionado ao outro" (1.556, 1867). Peirce converteu esta definição de terceiro
na definição de interpretante apenas acrescentando (no fundo) um ponto: ele
especificou que a relação triádica é uma relação de representação. Em escritos
mais tardios, Peirce notou que representação deveria ser definida em termos de
Terceiridade. Representação é, na verdade, um caso exemplar de Terceiridade,
porém Terceiridade é um conceito mais abrangente e básico. Não é nenhuma
surpresa que nalgumas definições de interpretante apresentadas em escritos
mais tardios, Peirce não mencione representação (eg. 1.541, 1903; 2.274, 1902;
2.242, 1903; W 192, 1905). O que é característico de quase todas as definições
de interpretante ou de Terceiridade como categoria elaboradas por Peirce é que
o terceiro relatum é uma instância, ou réplica, de uma regra de recursão.
(Savan, 1986, p. 133)
Como a concepção de "regra de recursão" à qual está se referindo nesta passagem é uma
noção muito comum na matemática e lógica contemporâneas, antes de detalhar sua
interpretação acerca do conceito peirceano de interpretante, Savan recorre a uma
definição de recursividade presente no livro "Mathematical logic" do filósofo e lógico
norte-americano W. Quine (que já apresentamos no texto introdutório): "qualquer noção
geral que é resolvida numa sequência infinita de casos especiais é dita recursivamente
caracterizada quando explicamos o primeiro caso e adicionamos uma regra geral que
descreva (i+1)-ésimo caso, para cada i, em termos dos primeiros i casos240
" (Quine, 1981,
p. 86). Vejamos, então, a explicação de Savan a respeito do interpretante:
(...) Peirce concebeu o terceiro correlato de uma relação triádica como algo que
corporifica uma regra de recursão. Se utilizarmos a notação de Peirce, isto pode
ser apresentado da seguinte forma: uma relação triádica é tal que, dado um
primeiro e um segundo correlato, A e B, eles estão de tal forma relacionados
numa relação diádica r que A r B só ocorre se houver um terceiro correlato C e
C r B. Claramente, se C r B é uma relação correspondendo a A r B, então deve
haver um quarto correlato D tal que D r B e assim por diante para um
sequência teoricamente infinita de casos.
(Savan, 1986, p. 133)
Pela descrição de Savan, Peirce concebeu o terceiro correlato de uma relação triádica
como algo que corporifica ou incorpora (embody) uma regra de recursão. Utilizando os
termos de Peirce, pode-se apresentar este ponto da seguinte forma: uma relação triádica é
tal que, dados o primeiro e segundo correlatos, A e B, eles estão de tal forma relacionados
pela relação diádica, r, que A r B ocorre somente se houver um terceiro correlato, C, tal
que C r B. Evidentemente, se C r B é uma relação que corresponde à relação A r B, então
deve haver um quarto correlato, D, tal que D r B, e assim por diante para uma sequência
teoricamente infinita de casos.
A pergunta a ser colocada é a seguinte: de onde sai o terceiro elemento (o interpretante)?
A resposta de Savan é que ele é produto de uma regra recursiva (Savan, 1986, p. 133).
240
No original: Any general notion which is resoluble into an infinite sequence of special cases is said to
be recursively characterized when we have explained the first case and added a general rule describing
the (i + l)st case, for each i, in terms of the first i cases (Quine, 1981, p. 86).
362
Isso pode ser entendido dentro daquele modelo da incompletude-insuficiência
representativa que apresentamos no capítulo anterior. Neste modelo, a introdução de um
terceiro elemento pode ser entendida como decorrente da incapacidade de dois elementos
sozinhos conseguirem “completar” uma relação de representação. Este tipo de relação
sempre exige a terceira ponta. Vejamos. A tem a relação r com B. Mas, isto só ocorre se
houver um C que tenha essa mesma relação r com B. Repare que, para completar essa
primeira relação (A r B), é necessário que se estabeleça uma outra relação (C r B).
Entretanto, de acordo com a interpretação apresentada por Savan, a segunda relação (C r
B) deve corresponder à primeira relação (A r B)241
. Para que haja esta relação de
correspondência entre as relações “C r B” e “A r B”, deve haver um quarto elemento D.
Neste ponto, podemos notar que há uma bifurcação, há basicamente duas possibilidades
interpretativas para explicar o modo pelo qual o interpretante é introduzido. No primeiro
desses caminhos interpretativos, a forma pela qual o C é introduzido é a mesma pela qual
o D e todos os outros interpretantes são introduzidos. Na segunda interpretação, a forma
pela qual o C é introduzido é "ligeiramente" diferente da forma pela qual o D é
introduzido (e a forma de introdução do D seria, então, diferente da forma de introdução
do E e assim sucessivamente). Esta ligeira diferença estaria no fato de que, nesta segunda
interpretação, o D entra como um termo de uma relação cujo outro termo seria ele mesmo
uma relação. Portanto, neste caso, a produção de interpretantes envolveria relações de
ordem superior. Inicialmente, parece não pairar dúvida sobre o fato de Savan estar
considerando que, numa relação triádica (entre os elementos A, B e C), só ocorre a
relação diádica A r B se ocorrer outra relação diádica C r B (o que acaba por trazer C para
“dentro do jogo”).
Na primeira interpretação que podemos fazer, Savan afirmaria que o D entra em cena da
mesma forma que o C. Assim, o D seria chamado à baila porque a relação “C r B”
sofreria da mesma insuficiência que acomete a relação à qual ela corresponde, a relação
“A r B”. Neste caso, C desenvolve a relação r com B como uma espécie de exigência da
relação diádica (“inicial”) “A r B”. Ora, mas esta outra relação “C r B” (que foi exigida
por “A r B”) é também uma relação diádica. E por ser diádica (exatamente como a relação
à qual ela corresponde), a relação “C r B” exige a entrada em cena de um novo termo, a
saber, o termo D que vai formar uma outra relação “D r B” e que também vai sofrer da
mesma insuficiência daquela relação diádica inicial, “A r B”, exigindo, portanto a entrada
em cena de um quinto termo e assim por diante. Este ponto pode ser vista na seguinte
ilustração (que, aliás, foi retirada de uma outra obra de Savan [1976, p.34]):
241
Já vimos isto anteriormente naquele modelo da tradução. Esta passagem pode ser enxergada naquela
ideia de que o interpretante de um signo tem o papel de traduzi-lo. Naquele exemplo peirceano em que
uma pessoa procura no dicionário o significado (em sua língua natal) da palavra francesa para “homem”,
podemos considerar a palavra em língua francesa “homme” como signo (A), o conjunto ao qual a palavra
francesa faz referência como objeto (B) e, por último, a palavra em língua portuguesa “homme” como
interpretante (C). Neste caso, para que “homme” represente o “conjunto dos homens”, a palavra “homem”
é trazida à baila. Para que A represente B, o termo C é trazido à baila. E o papel de C é afirmar que diz a
respeito de B o mesmo que A (diz a respeito de B).
363
Na segunda interpretação, Savan afirmaria que o D entra em cena de forma ligeiramente
diferente da forma pela qual o C entrou. De acordo com esta segunda interpretação, o D
seria chamado à baila porque a relação (de correspondência) entre a relação “C r B” e a
relação “A r B” sofreria da mesma insuficiência que a relação “A r B”. E isto nos levaria a
tratar de uma relação de segunda ordem, ou seja, uma relação cujos termos relacionados
são eles mesmos relações (na verdade, um dos termos). Chamemos esta relação de
correspondência entre “C r B” e “A r B” de relação r*. Então, podemos reescrevê-la da
seguinte forma: “(A r B) r*(C r B)”. Ora, mas (novamente) esta relação “(A r B) r*(C r
B)” é uma relação diádica. E por ser diádica (exatamente como as relações que são termos
seus, as relações “A r B” e “C r B”), a relação “(A r B) r*(C r B)” exige a entrada em cena
de um novo termo, a saber, o termo D que formaria, então, uma outra terceira relação “ (
D r* (C r B) ) r** ((A r B) r*(C r B)) ”.
364
Repare que o novo termo dessa relação é o termo “D r* C r B” e o segundo termo é a
relação anterior “(A r B) r*(C r B)”.
Dentre as duas interpretações acima expostas, iremos optar pela primeira delas. A
justificativa é que na definição de interpretante que Peirce oferece no ONLC (e com a
qual estamos trabalhando) não há um sinal claro de que há, envolvido no processo
interpretativo, relações de ordem superior (i.e., relações sobre relações, relações cujos
termos são eles mesmos relações). Revisitemos tal definição.
Definição n° 1 de Interpretante (CP 1.553) --> o interpretante é uma
representação mediadora que representa o relato como uma representação do
mesmo correlato que esta representação mediadora (ela mesma) representa.
De acordo com Peirce, o interpretante é uma representação que "incide" sobre o
primeiro elemento (o relato) e esta "incidência" não se dá sobre o primeiro elemento de
forma isolada, mas sobre o primeiro elemento como um representante do segundo
elemento (o correlato). A função deste "como" pode ser melhor entendida se nos
voltarmos para a estrutura por trás desta definição de interpretante com a qual estamos
lidando.
Estrutura da definição n° 1 de Interpretante --> Um interpretante é "um Z que
representa um X como uma representação do mesmo Y que o Z representa"
Note que o terceiro termo (o Z) também representa o segundo (o Y), mas apenas na
medida em que o terceiro termo (o Z) representa o primeiro (o X) como um
representante do segundo (o Y). O interpretante é uma representação constituída sobre
uma representação anterior e é justamente nisto que consiste a recursividade. Porém, o
interpretante não representa a representação anterior, mas ele representa um dos termos
(ou elementos) da representação anterior como o representante do outro termo (da
representação anterior) da mesma forma (aliás) que ele (interpretante) representa.
Se abandonarmos por uns instantes estes formalismos, descermos na escala de
abstração, e lançarmos mão de um exemplo mais prosaico, talvez sejamos mais felizes
na tarefa de fazer com que o leitor entenda esse ponto. O modelo da substituição é uma
ótima maneira para descermos das abstracionices para o cotidiano. De acordo com este
modelo, o interpretante pode ser descrito da seguinte forma (como vimos no capítulo
anterior):
365
Modelo da substituição para o conceito de interpretante --> Um interpretante é
"um Z que SUBSTITUI o X como alguém que SUBSTITUI o mesmo Y que o Z
SUBSTITUI"
Dessa vez, imaginemos um exemplo que exiba uma riqueza de detalhes maior do que
aquele do embaixador da perna quebrada. Suponha que, num universo paralelo (ou num
mundo possível ou quaisquer outra suposição similar), os Beatles tenham sido um
conjunto musical formado no alto sertão do Pernambuco e que tenham começado a
carreira tocando xaxado na gruta de Angico para entreter Lampião e seu bando. Certo
dia, durante um show que os Beatles teriam feito em comemoração as mais recentes
vitórias dos cangaceiros, uma volante da eficiente polícia alagoana (a mesma que, [ao
menos] neste universo paralelo, teria sido contratada pela CIA para matar Che Guevara
e o teria feito numa emboscada em selvas bolivianas) invade a gruta e dá início a uma
intensa troca de tiros com Lampião e seus homens. Paulo, que era o sanfoneiro da
banda, é baleado e falece dois dias depois. Como, nesta época, os Beatles já eram
famosos e movimentavam vultosas quantias de dinheiro, o empresário do grupo e os
donos da gravadora decidiram esconder dos tabloides a morte do sanfoneiro da banda e
arranjar um substituto. Encontraram, então, Billy Shears, um músico muito semelhante
fisicamente ao sanfoneiro morto, mas que tocava zabumba. Por este motivo, para que a
banda voltasse à turnê, o substituto teve que aprender a fingir que tocava sanfona para
poder fazer as vezes do sanfoneiro morto de forma convincente. Entretanto, Billy Shears
conseguiu cumprir a função de substituto de Paulo McCartney por apenas algumas
apresentações. Por conta de uma espécie de maldição, sabotagem da polícia alagoana
(ou qualquer coisa que o valha), durante a passagem de som que antecederia a mais um
show, o substituto pisa numa poça d'água formada no palco, toca num fio desencapado
do microfone e morre eletrocutado. Sempre precavido, Billy deixara uma gravação-
testamento na qual ordena que seu irmão gêmeo (alguns segundos mais novo) assuma o
seu lugar na banda caso algo acontecesse a ele.
Steve Shears, o irmão de Billy, escuta a gravação e aceita o novo emprego, mas pede
um tempo para que possa aprender a tocar zabumba como irmão que iria substituir.
Então, o empresário explica para Steve que ele não deve aprender a tocar zabumba. Ele
deve aprender a tocar (ou, ao menos, fingir que toca) sanfona, pois ele não iria substituir
seu irmão como um tocador de zabumba, mas ele iria substituir seu irmão no papel que
este tinha assumido como substituto do sanfoneiro original da banda (Paulo). Ou seja, o
empresário explicou para Steve que, embora seu irmão (Billy Shears) tocasse zabumba,
não era esse o papel dele na banda e, por este motivo, ele (Steve Shears) deveria tocar
sanfona. Steve não substituiria Billy enquanto tal, mas aquele substituiria este enquanto
este era substituto de Paulo. Quando Steve (o substituto do substituto) subisse no palco,
ele deveria se lembrar de imitar os trejeitos não de seu irmão (que era apenas o
substituto), mas do músico que este irmão estava substituindo (Paulo). Em outras
palavras, Steve Shears substituiria o seu irmão na banda, mas apenas enquanto seu
irmão era substituto de outra pessoa. Se esta cadeia de substituição continuasse,
366
notaríamos que todos, de alguma forma, teriam como objeto de sua imitação a mesma
pessoa: Paulo. Dentro deste modelo, ao ser a pessoa substituída, Paulo assume o papel
do objeto (o segundo elemento ou segunda posição dentro do signo); por sua vez, Billy,
ao ser o (primeiro) substituto, assume o papel de signo (o primeiro elemento ou segunda
posição dentro do signo[com um todo]); e, por último, como substituto do substituto,
Steve entra no papel de interpretante (o terceiro elemento ou terceira posição dentro do
signo).
Modelo da substituição (exemplo dos Beatles do cangaço) --> O interpretante é
"STEVE que substitui BILLY como alguém que substitui a mesma pessoa
(PAULO) que ele (STEVE) substitui"
É claro que neste exemplo escolhemos (de saída) uma primeira substituição: aquela de
Billy com relação a Paulo. No caso do conceito peirceano de signo, não é possível que
seja encontrada uma primeira representação. Este exemplo serve apenas para fornecer
uma imagem (ainda que vaga) de como o processo de substituição poderia ser levado
suficientemente longe sem que se “perdesse” de vista o objeto primeiro da cadeia de
substituições (no caso, Paulo). Todo novo substituto que entra na série, deve se lembrar
que está substituindo o substituto anterior na função que este tinha de substituir Paulo.
Uma distinção relevante é que o processo sígnico, ao contrário deste exemplo da
substituição, tem que ser necessariamente infinito (ainda que, de acordo com Peirce, ele
convirja para algum ponto). Para que pudéssemos enxergar isto neste exemplo, seríamos
obrigados a pensar numa situação em que a substituição de Paulo, por algum motivo,
nunca chegasse a se concretizar e, por este motivo, seria sempre necessário introduzir na
série um novo substituto (para o substituto anterior). Formalmente, o que está ocorrendo
dentro do signo é que conceito de representação foi definido recursivamente sobre o
próprio conceito de representação (i.e., sobre uma representação anterior dada numa
sequência).
De acordo com nossa interpretação sobre a interpretação de Savan (a respeito do
conceito de interpretante), o terceiro elemento do signo entra em cena como uma
representação constituída sobre uma representação anterior (entre o primeiro e o
segundo elemento). É uma relação (de representação) constituída sobre uma relação-
base (que também é de representação). A equivalência ou correspondência de que trata a
definição de Savan parece ocorrer entre essas duas representações: a relação de
representação do primeiro para o segundo termo e a relação de representação do terceiro
para o segundo. Nos próprios termos de Savan, C r B seria uma relação correspondente
à relação A r B (Savan, 1986, p. 133). Mas se observarmos a definição de Peirce no
ONLC, a relação do terceiro elemento para o segundo "passa" pela referência ao
primeiro termo. Por exemplo, dentro do modelo da tradução, quando um intérprete
enuncia uma frase como parte de uma tradução do discurso de alguém, ele garante que
aquela frase que foi falada numa língua estrangeira tenha o mesmo significado que a
frase enunciada por ele (intérprete) tem na língua do ouvinte. Há obviamente uma
367
relação de correspondência neste caso. A frase falada em língua estrangeira tem um
significado (relação A r B [primeiro e segundo elementos]). A frase falada na língua do
ouvinte também tem um significado (relação C r B [terceiro e segundo elementos]). A
correspondência está no fato de o intérprete garantir que o significado dessas duas frases
(dessas duas representações) é o mesmo. Elas se equivalem (com relação a este ponto).
Entretanto, por que afirmamos acima que, no caso, da definição de interpretante do
ONLC, a relação do terceiro elemento para o segundo (C r B) "passa" pela referência ao
primeiro termo ( A )? Porque o terceiro elemento não é uma representação do segundo
elemento por si só. O terceiro elemento é uma representação do segundo elemento que
só pode entrar como terceiro termo porque a relação dele com o segundo é dita
equivalente à relação entre o primeiro e o segundo. Caso contrário este modelo de signo
construído por Peirce não seria triádico, e as duas relações de representação (A r B e C r
B) estariam desligadas uma da outra. O interpretante é justamente a ideia de que as duas
representações estão imbricadas. Uma representação é constituída a partir da outra como
se uma fosse interpretação da outra. No modelo da tradução, notemos que a frase falada
na língua do ouvinte (i.e., a tradução do intérprete) é uma relação de representação
constituída sobre outra relação de representação (uma relação-base): a frase falada em
língua estrangeira (que, no exemplo, solicita por uma tradução para que possa ser
compreendida pelo ouvinte). É da equivalência entre estas duas representações
"imbricadas" dentro conceito peirceano de signo que trata o trecho de Savan acima
apresentado (e nesta seção analisado).
Estas observações todas nos levam a crer que o conceito de signo (ou processo de
significação), o conceito de representação (ou de processo de representação) e, em
geral, os principais conceitos envolvidos na semiótica peirceana, não são o que parecem
à primeira vista. Há algumas peculiaridades que são resultantes do tipo de problema
filosófico (epistemológico) que Peirce pretende responder com suas teorias. Deve ter
ficado claro que, quando Peirce constrói uma teoria (a semiótica) para explicar o
funcionamento de processos de representação ou significação, o filósofo não está
preocupado em descrever especificamente fenômenos linguísticos, mas fenômenos
cognitivos, e seu escopo teórico não é responder, em particular, como é possível que as
palavras (das linguagens naturais) representem algo, mas responder como um tipo de
processo representacional (justamente descrito em sua semiótica) tornam possíveis os
raciocínios sintéticos. Na próxima seção, apresentaremos, para cada um dos conceitos
básicos da semiótica peirceana, definições nas quais a noção de recursividade virá para
primeiro plano. Assim já estaremos a meio caminho de podermos demonstrar de um
modo mais formal que a caracterização recursiva do conceito de representação é uma
exigência interna do projeto filosófico do jovem Peirce. Aliás, comecemos este conjunto
de definições básicas por aquele que pode ser considerado o conceito central da
semiótica: a representação (ou o signo num sentido lato). Como ficará claro na próxima
seção e, sobretudo, no último capítulo, todos os conceitos básicos da semiótica (signo,
objeto e interpretante) fazem referência ao conceito de representação.
368
12.2 A caracterização recursiva do conceito de representação na
semiótica peirceana
A terceira e última categoria apresentada no artigo "Sobre uma nova lista de
categorias" (ONLC) é a "representação" ou "referência a um interpretante". Ao final
do parágrafo (CP 1.553 [1867]) que analisamos no capítulo anterior, Peirce afirma
que, naquele texto, devemos entender o termo representação num sentido lato. Deste
alerta devemos depreender que o termo "representação", neste caso, designa não uma
relação binária simples entre algo que representa e algo que é representado, mas
designe também um terceiro elemento além do representante e do representado. Logo
após nos solicitar que entendamos este termo num sentido lato, Peirce afirma que isto
pode ser melhor explicado por exemplos (do que por definição). Notemos que em
cada um desses exemplos (que reapresentaremos a seguir), a representação é
entendida como algo que envolve três elementos (cada um dos quais "marcaremos"
com um número). O primeiro desses exemplos é o de uma palavra que é algo (1) que
"representa alguma coisa (2) para a concepção na mente do ouvinte (3)"; o segundo
exemplo é o de um retrato que é algo (1) que "representa a pessoa retratada (2) para a
cognição de reconhecimento (3)"; o terceiro exemplo é o de um catavento que é algo
(1) que "representa a direção do vento (2) para a concepção daquele que o entende
(3)"; o quarto e último exemplo é o de um advogado é alguém (1) que "representa seu
cliente (2) para o juiz e o júri que ele influencia (3)" (CP 1.553 [1867]).
O problema a ser enfrentado caso se opte por interpretar o termo "representação" neste
sentido lato é que dentro daquilo que estaríamos chamando de representação haveria
outras representações. Se denominamos representação, em sentido lato, a relação
triádica (a tríada) entre signo, objeto e interpretante, então parece que somos
obrigados a concordar que há uma relação de representação, num sentido estrito, entre
o signo e objeto (bem como há outra relação de representação, também no sentido
estrito, entre o interpretante e o signo e, por último, também há uma terceira relação
de representação [no mesmo sentido dessas anteriores] entre o interpretante e objeto) .
Então, o termo representação num sentido lato designaria, na verdade, um complexo
de relações representacionais (entendidas num sentido estrito). Assim, para evitar
confusão terminológica, deve-se sempre fazer a distinção entre representação no
sentido lato e este mesmo termo no sentido estrito. No primeiro deles o termo
"representação" designa a relação triádica com um todo, no último ele designa apenas
uma relação de representação parcial entre dois elementos dentro da tríada. Como
veremos, o termo "signo" enfrenta problemas terminológicos semelhantes. Por este
motivo, mais adiante, iremos optar, para nos referir à relação triádica como um todo,
pelo termo "processo de representação" ou "processo interpretativo".
Entendido o termo no sentido lato, conforme solicitado pelo próprio autor, há
basicamente duas grandes vias para se interpretar o que é uma representação dentro do
ONLC e da semiótica peirceana em geral. Na primeira dessa vias, podemos interpretar
369
que o conceito de representação diga respeito a uma estrutura, uma entidade composta
de três elementos. Na segunda dessas vias, podemos interpretar que o conceito de
representação se refere a um processo ordenado com três elementos, a algo que se
desenvolve ao longo do tempo. Nossa análise do ONLC (e do parágrafo específico em
que o conceito de interpretante é introduzido) deve ter sido suficiente para convencer
o leitor de que devemos optar por uma "interpretação dinâmica" no lugar de uma
estática. Ao interpretarmos o conceito de representação dentro deste "registro
dinâmico", i.e., ao entendermos que este conceito tenta captar a ideia de um processo,
de algo que se desenvolve no tempo, podemos dar passos largos para evitar algumas
confusões terminológicas que sempre rondam as interpretações e comentários sobre os
escritos peirceanos a respeito de semiótica. Portanto, o conceito de representação
construído por Peirce neste artigo ONLC é aquele que entende uma representação
como "algo" (estrutura ou processo) que é definido como uma relação triádica cujos
elementos são: o signo, o objeto e o interpretante. Como vimos, uma representação
pode ser entendida como "algo" (estrutura ou processo) que pressupõe estes três
elementos.
O primeiro problema a ser enfrentado é definir, com base nos escritos de Peirce, um
termo para designar esta tríada como um todo. Com relação a este ponto, deve-se
enfatizar que há um debate entre os intérpretes da obra peirceana se o termo "signo"
designa a relação triádica inteira, i.e., a tríada como um todo, ou se este termo é
referente a apenas uma posição dentro da tríada: a primeira delas (cf. Nöth, 2011a, p.
453; Liszka, 1996, p. 111; Johansen, 1993, p. 62; Benedict, 1985, p. 266). De acordo
com a terminologia que viemos utilizando, a questão é se o termo "signo" designaria o
conjunto com os três elementos (signo [num sentido restrito], objeto e interpretante)
ou designaria apenas o primeiro elemento do conjunto. Segundo Nöth (2011a, p. 453),
"o termo signo tem [apenas] este sentido mais restrito e nunca serviu, em todos os
escritos de Peirce, como nome para a tríada como um todo". Ora, o termo mais
adequado que encontramos para designar a relação triádica como um todo (a tríada) é
a expressão "processo de representação" ou "processo interpretativo" (embora
variantes sejam possíveis: processo sígnico, por exemplo). Por este motivo, passemos
a utilizar, a partir desse ponto, o termo signo para designar apenas a primeira posição
ou o primeiro elemento dentro do (que passamos a denominar de) processo
interpretativo242
.
242
De fato o termo que Peirce utilizou para designar a primeira posição do processo representativo no
ONLC foi representamen. Entretanto, ao longo do tempo, nem ele mesmo seguiu esta definição e mais
tarde, abandonou este termo.
370
O primeiro e principal ponto a ser percebido é que, dentro dos limites da semiótica
peirceana, não é possível definir o conceito de representação ou de "processo de
representação" sem fazer referência àqueles três elementos: o signo, o objeto e o
interpretante. A marca distintiva do conceito peirceano de representação é a
impossibilidade de se tratá-lo como uma relação diádica. Se insistirmos em entender o
conceito de representação como uma relação diádica, então, ao menos dentro da
semiótica peirceana, somo obrigados a reconhecer que esta é uma representação parcial
(incompleta ou insuficiente de acordo com o modelo apresentado por Santaella [2000, p.
29 - 30] acima citado). Se resolvermos interpretar o termo representação naquele
sentido estrito (conforme explicado no início deste parágrafo), então somos obrigados a
reconhecer que toda representação (assim entendida) pressupõe uma referência a uma
representação anterior. Toda representação (assim entendida) estaria "imbricada" noutra
representação. Nisto consiste exatamente a tal caracterização recursiva que defendemos
ser uma condição necessária dentro corpo teórico da semiótica de Peirce. Por exemplo,
se entendermos que há, de fato, uma relação (diádica) de representação entre o signo (o
primeiro elemento) e o objeto (o segundo elemento), somos obrigados a fazer referência
a um interpretante (um terceiro elemento) que é algo que pertence a uma segunda
relação de representação. Portanto, tentemos captar a noção de representação de Peirce
definindo o que seria uma representação entendida como uma relação binária (ou seja,
entendida naquele sentido restrito) e notemos que isto só pode ser feito caso se faça
371
referência a um terceiro elemento pertencente a outra representação (entendida como
relação binária). A seguir, apresentamos uma primeira tentativa de se definir o que se
entende por representação ou, de forma mais precisa, por "processo de representação"
dentro da semiótica peirceana:
Versão 1 - Noção (ainda muito vaga) de representação dentro da semiótica
peirceana: uma representação é uma relação (entre um elemento denominado
"representante" e um elemento denominado "representado") constituída sobre
uma relação de representação anterior (dada numa sequência).
Nesta definição vaga da relação de representação, já podemos observar o caráter
recursivo que a ação de representar ganha quando definida dentro da teoria semiótica de
Peirce. A caracterização recursiva consiste justamente no fato de, para se definir o que é
uma representação x (que o ocupa a posição n numa sequência dada), ser necessário se
recorrer (fazer referência) a uma representação y (que ocupa a posição n-1 na mesma
sequência dada). Porém, falta especificar o que se deve entender pelo predicado
(diádico) "ser constituído sobre", afinal uma representação foi acima definida como algo
que é constituído sobre uma representação anterior (dentro de uma sequência dada de
representações). Para melhorar esta definição, podemos começar por nomear os
elementos que ocorrem dentro da representação, uma vez que ela foi definida como uma
relação (binária) se presume que possua dois elementos. Ora, dentro de uma noção
muito geral de representação, o primeiro elemento é aquele que tem por função
representar e o segundo elemento é aquele que tem por função ser representado. Na
semiótica peirceana, este primeiro elemento recebe o nome de signo e o segundo
elemento recebe o nome de objeto. Estas noções são fruto de procedimentos de
definição muito elementares, e estes termos são assim definidos em quase todas as
teorias semióticas ou semânticas (na linguística, lógica, computação, etc.). Em alguns
casos, o representante é denominado de "significante", "símbolo", "sinal", "caractere",
etc. O termo exato utilizado dentro de cada um desses corpos teóricos não nos importa
nesse momento, o que importa é notar que, na maioria dessas teorias, o signo é
entendido como algo (geralmente um expediente sensório) que é produzido com a
finalidade de representar alguma outra coisa e o objeto, por sua vez, é entendido como
qualquer coisa que seja representado por um signo. Como estas noções são bem aceitas
(na semiótica peirceana e nas congêneres) podemos apresentá-las como noções gerais
ao lado das outras três que derivamos (no capítulo anterior) do texto peirceano:
NG IV - Um signo é qualquer elemento produzido para representar algo.
NG V - Um objeto é qualquer elemento representado por um signo.
372
Estas duas noções gerais acima apresentadas (ainda que de forma vaga) podem nos
fornecer informação para definir de forma mais precisa os conceitos que estão
envolvidos na semiótica. Assim, por definição, sabemos que o primeiro elemento de
uma representação é chamado de signo (i.e., aquilo que é capaz de representar) e o
segundo elemento é chamado de objeto (i.e., aquilo que é representado). Isto nos
fornece duas definições básicas da semiótica peirceana:
Definição de signo: um signo é o primeiro elemento de uma representação.
Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma representação.
Nisto a semiótica peirceana é muito parecida com as demais teorias construídas para
explicar com funcionam os processos de representação. Entretanto, não é possível
definir (dentro da semiótica peirceana) o que é uma representação apenas recorrendo a
dois elementos (signo e objeto, ou seja, respectivamente, representante e representado).
O terceiro elemento, como temos visto nas últimas centenas de páginas, entra em cena
justamente para interpretar (i.e., produzir uma nova representação sobre) a relação de
representação do signo para o objeto. Por isso, na semiótica peirceana, toda
representação só pode ser constituída a partir de uma outra representação (anterior).
Nisto, como vimos, consiste a recursividade. Se toda representação pressupõe uma
representação anterior, então deve haver uma relação entre essas duas representações.
De acordo com Savan (1986, p. 133), esta é uma relação de equivalência. Porém, para
que sejamos ainda mais precisos, devemos olhar para dentro de cada uma dessas
representações que estão relacionadas e procurar por uma relação entre os elementos
dessas duas representações. É neste ponto da análise que recorremos ao conceito de
interpretante, pois este é o elemento que, por definição, relaciona um elemento de uma
representação com algum elemento de uma representação anterior.
O interpretante é o primeiro elemento de uma representação cujo segundo elemento é o
primeiro elemento da representação anterior (o signo) e o interpretante representa este
primeiro elemento da representação anterior (o signo) como uma representação do
segundo elemento da representação anterior (o objeto) da mesma forma que ele (o
interpretante) representa. Notemos que o interpretante não representa o signo por si só,
mas o representa como um representação de um objeto que ele mesmo (o interpretante)
representa. Não fosse esta condição que acrescentamos depois do termo "mas" na frase
anterior, a concepção peirceana de signo poderia ser reduzida a uma relação diádica
entre um signo e um objeto (um representante e um representado). É exatamente este
nível de detalhamento que pode ser enxergado dentro da definição de interpretante
analisada no capítulo anterior.
373
Definição n° 1 de Interpretante (CP 1.553) --> o interpretante é uma
representação mediadora que representa o relato como uma representação do
mesmo correlato que esta representação mediadora (ela mesma) representa.
Estrutura da definição n° 1 de Interpretante --> Um interpretante é "um Z que
representa um X como uma representação do mesmo Y que o Z representa"
Uma vez que já analisamos a estrutura interna da relação de representação, já podemos
voltar para aquela noção de representação que denominamos de Noção (ainda muito
vaga) de representação dentro da semiótica peirceana. Nesta primeira versão,
definimos uma representação como "uma relação (entre um elemento denominado
'representante' e um elemento denominado 'representado') constituída sobre uma relação
de representação anterior (dada numa sequência)". Ora, nesta primeira versão, os
componentes da relação de representação (signo e objeto) não são nomeados nem há
esclarecimento algum a respeito da relação entre as duas representações de que trata a
definição: a representação que é definida e a representação anterior (àquela que é
definida). Quando introduzimos o terceiro elemento na definição (o interpretante) foi
possível descobrir como é essa relação entre as duas representações de que trata tal
definição. Descobrimos que o primeiro elemento da representação (que é definida) é
produzido para representar o primeiro elemento da representação anterior (àquela que é
definida). Isto nos permite chegar a uma segunda versão da noção de representação na
semiótica peirceana.
Versão 2 - Noção (ainda um pouco vaga) de representação dentro da semiótica
peirceana: uma representação é uma relação cujo primeiro elemento é produzido
para representar o primeiro elemento de uma representação anterior (...).
Ainda que, com esta nova versão, possamos entender melhor o que a versão anterior
pretendia expressar com o predicado uma "representação constituída sobre outra
representação", ainda há um importante ponto de vagueza e ambiguidade nesta noção de
representação. De acordo com o que está expresso nesta segunda versão, tem-se a
impressão de que o primeiro elemento da representação (que é definida) funciona
simplesmente como uma representação do primeiro elemento do representação anterior
(àquela que é definida). Parece que o primeiro elemento de uma representação o primeiro
elemento da outra enquanto tal. Vimos na seção anterior que não bem assim que funciona.
Pela definição de interpretante (CP 1.533 [1867]), sabemos que o primeiro elemento de
uma representação qualquer não é produzido para representar o primeiro elemento da
representação anterior de "forma isolada", mas ele é produzido para representar este
(outro) primeiro elemento como um elemento que representa um objeto que ele mesmo
374
representa243
. Em outras palavras, quando definimos que, numa representação qualquer, o
primeiro elemento é produzido para representar o primeiro elemento de representação
anterior, este primeiro elemento que é assim produzido cumpre uma função de signo e de
interpretante ao mesmo tempo (e, como veremos no próximo capítulo, isso é essencial
para se demonstrar o que foi denominado, no nono capítulo, de teses elementares da
semiótica peirceana). Este primeiro elemento é o signo da representação que está sendo
definida e é o interpretante da representação anterior (àquela que está sendo definida). Se
observarmos este ponto dentro do modelo inferencial, é como se, numa cadeia
argumentativa, atentássemos para o fato de que uma proposição que é premissa num
determinado argumento também é conclusão de um argumento anterior. É a mesma
proposição, mas ela cumpre duas funções distintas em cada um dos argumentos em que
figura. A cadeia de signos/interpretante funciona basicamente da mesma forma. Portanto,
para passarmos de uma noção (vaga) para um conceito de representação (bem definido
internamente na teoria semiótica de Peirce), devemos especificar a forma pela qual o
primeiro elemento da representação (que é definida) é produzido para representar o
primeiro elemento da representação anterior (àquela que é definida). Aquele primeiro
elemento é produzido para representar este primeiro elemento como um representante de
algo (um objeto) que ele mesmo (aquele primeiro elemento) representa. Chegamos,
assim, à definição, dentro da semiótica peirceana, do conceito de representação.
Definição de representação (dentro da semiótica peirceana): uma representação
é uma relação cujo primeiro elemento é produzido para representar o primeiro
elemento de uma representação anterior (como algo que está numa relação [de
representação] com o segundo elemento [dessa representação anterior] da mesma
forma que ele [o primeiro elemento] está numa relação [de representação] com este
segundo elemento [dessa representação anterior]).
É digno de nota que este conceito só faz sentido quando se faz referência a um interpretante.
Como viemos insistindo desde o primeiro capítulo, dentro da teoria semiótica de Peirce, é
justamente o interpretante o elemento responsável pela recursividade que pode ser
observada na definição do conceito representação. Antes de analisarmos esta relação entre
os conceitos de interpretante e de representação (ou de processo de representação), notemos
que, se, por um lado, o primeiro é o responsável pela recursividade propriamente dita,
então, por outro lado, o último é o responsável pela coesão entre todos os conceitos básicos
da semiótica. Consideremos deste ponto em diante que os conceitos básicos da semiótica
são os seguintes: signo, objeto, interpretante e representação.
243
É mesmo caso do exemplo dos "Beatles do Cangaço". Neste exemplo, Steve não iria substituir Billy de
"forma isolada" (i.e., enquanto tal). Steve iria substituir Billy no seu papel de substituto de Paulo (então,
de uma forma indireta Steve iria substituir Paulo). O interpretante não representa a representação anterior
pura e simplesmente, mas ele representa um dos elementos da representação anterior como o
representante do outro elemento (da representação anterior) da mesma forma que ele (interpretante)
representa.
375
Se analisarmos a definição de signo (o primeiro elemento ou primeira posição da relação
triádica), a definição de objeto (o segundo elemento ou segunda posição da relação
triádica) e também a definição de interpretante (o terceiro elemento ou terceira posição
dentro da relação triádica), notaremos que, em cada um desses casos, para que o termo em
questão fosse definido, fez-se referência ao conceito de representação. Na verdade este
conceito age como uma espécie de colágeno ligando os demais conceitos básicos da teoria
semiótica. Todos os outros conceitos são definidos com relação ao conceito de
representação. Portanto, como seria de se esperar244
, representação é a ideia elementar, o
conceito central da semiótica (cf. também Nöth, 2011a, p. 446).
A seguir apresentamos cada um dos conceitos básicos da semiótica com suas respectivas
definições. Notemos as semelhanças estruturais e as diferenças específicas entre o
conceito de representação e o conceito de interpretante.
Definições básicas da semiótica peirceana:
Definição de representação: uma representação é uma relação cujo primeiro
elemento é produzido para representar o primeiro elemento de uma representação
anterior (como algo que está numa relação [de representação] com o segundo
elemento [dessa representação anterior] da mesma forma que ele [o primeiro
elemento] está numa relação [de representação] com este segundo elemento [dessa
representação anterior]).
Definição de signo: Um signo é o primeiro elemento de uma representação.
Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma representação.
Definição de interpretante: o interpretante é o primeiro elemento de uma
representação que é produzido para representar o primeiro elemento da
representação anterior (como algo que está numa relação [de representação] com o
segundo elemento [dessa representação anterior] da mesma forma que ele [o
interpretante] está numa [relação de representação] com este segundo elemento
[dessa representação anterior]).
Embora o conceito de representação caracterizado de forma recursiva ocupe o centro da
teoria semiótica elaborada por Peirce, é necessário enfatizar mais uma vez que é o
conceito de interpretante que nos "explica" como (dentro da teoria) funciona a ideia de
recursividade. Uma vez que já estamos diante de definições bem estabelecidas (após
244
Deve-se recordar que, conforme examinado no primeiro capítulo, a origem mais remota dessa
centralidade do conceito de representação está na proposta peirceana de que a lógica fosse entendida
como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169 [1865]). Para se referir a esta
"ciência das representações em geral", Peirce toma emprestado o termo "semiótica" (cunhado por Locke
ao final do "Ensaio sobre o entendimento humano").
376
centenas de páginas de análises e ponderações), podemos nos dar ao luxo de ser
precisos. Assim, é muito mais preciso afirmarmos que é o interpretante que especifica
esta noção de recursividade dentro da teoria. Isto se torna óbvio se observarmos as
semelhanças entre a definição acima oferecida para o termo "representação" e a
definição para o termo "interpretante". Notemos que são estruturalmente idênticas as
segundas partes de cada uma dessas definições (i.e., aquelas partes que começam em
ambos os casos com "como algo que está numa relação [...]"). Não é difícil notar que o
conceito de representação é mais geral que o conceito de interpretante. Este funciona
dentro da teoria como uma especificação do que aquele afirma de forma geral. Se, na
definição de representação nos é garantido que toda representação depende de uma
representação anterior (dada numa sequência), então, na definição de interpretante, por
sua vez, nos é especificado como ocorre esta dependência, esta recursão dentro da
relação triádica, ou seja, como uma representação, para ser interpretada, recorre a uma
representação anterior.
O resultado geral é que, na teoria semiótica elaborada por Peirce, o conceito de
representação é caracterizado recursivamente e o funcionamento desta recursão é
especificado no papel do conceito de interpretante (definido como um dos elementos do
processo de representação). Portanto, o conjunto dessas definições básicas da semiótica
descreve um certo processo (que por vezes denominamos de "processo interpretativo"
ou "processo de representação") que ocorre sempre na dependência de um estágio
anterior. Ora, se isto for verdade, então, no fundo, o que a teoria semiótica (de Peirce)
nos descreve é um processo que não pode ter ponto originário. Porém, se estamos desde
as primeiras linhas deste prolixo texto defendendo a posição segundo a qual o processo
de representação ou o processo interpretativo (ao qual se refere a teoria semiótica de
Peirce) é caracterizado (e funciona) recursivamente, então se pressupõe que, a exemplo
do que ocorre com a operação fatorial que nos serviu de modelo para explicar o que é
caracterização recursiva, também o processo interpretativo deve possuir um ponto de
origem, um primeiro caso (cf. Quine, 1981, p. 86). Para operação fatorial, o primeiro
caso é estabelecido na chamada cláusula base. Se não há um primeiro caso, não se pode
efetivamente chegar a um valor para uma operação fatorial específica. O problema é
que, das quatro definições básicas acima, não há nada parecido com uma cláusula-base,
nem há referência alguma a ponto originário. Na verdade, sabemos pelas análises dos
escritos peirceanos feitas nos últimos oito capítulos, que a ausência de qualquer ponto
originário no processo interpretativo é uma exigência interna do projeto filosófico de
Peirce. Isto nos leva de volta ao ponto final245
de nossas análises do texto "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" (QFCM). Voltamos,
assim, à questão das origens.
245
Cf. segunda seção do capítulo 8.
377
12.3 Recursividade e a sétima questão do QFCM
Como analisamos no capítulo anterior, no ONLC, Peirce apresenta uma definição ou
caracterização recursiva da relação de representação e, dentro da teoria semiótica que
está nos centro do pensamento peirceano, o responsável pela especificação do modo
como funciona esta recursividade é o conceito de interpretante. De acordo com esta
definição recursiva de representação, uma representação de dois termos quaisquer
depende de uma segunda representação (que representa justamente aquele primeiro
termo como uma representação do segundo termo da mesma forma que ele [terceiro
termo] é representação do segundo). Como vimos, qualquer representação deve (por
definição) exigir um interpretante (que nada mais é que uma outra representação
[mediadora] que serve para interpretá-la). Dentro do campo da matemática, como já
citamos em duas oportunidades, a operação fatorial é um tipo de operação que pode
facilmente se definida recursivamente. E, se for feita uma definição ou caracterização
recursiva, só podemos calcular o valor de um operação fatorial ao recorremos ao que é
geralmente denominado de cláusula base246
.
Se entendermos o conceito peirceano de representação (que está no centro de sua
semiótica) como uma espécie de operação (definida recursivamente), então surge uma
questão de suma importância: qual seria o papel da cláusula base neste modelo, neste
"entendimento" recursivo do conceito de signo? Antes de tentarmos responder tal
pergunta é necessário que revisemos o que se entende por uma caracterização ou
definição recursiva e por cláusula base.
Como nas duas oportunidades anteriores que tratamos de caracterizações recursivas,
utilizamos o exemplo do fatorial, desta vez optamos por recorrer a uma outra operação
(também corriqueira na matemática): a exponenciação. Para caracterizar de forma
recursiva esta operação devemos estabelecer duas cláusulas: a chamada cláusula base e
a regra geral. Nosso domínio é o dos números naturais.
Caracterização recursiva da operação de exponenciação
Cláusula n°1 (cláusula base) --> x0 = 1
Cláusula n°2 (regra geral) --> x n-1
= xn
· x
Vejamos o cálculo da seguinte operação de exponenciação: 23 . De acordo com a
caracterização apresentada acima, este caso é (inicialmente) regido pela segunda
cláusula, pois o expoente é um número natural maior que zero. Assim, 23 = 2
2 · 2 .
246
Ou o que Quine (1981, p. 86) chamou de "primeiro caso" em sua definição de caracterização recursiva
(que foi citada por Savan).
378
Entretanto, para descobrirmos o resultado de 22 · 2 é necessário que saibamos antes o
resultado da exponenciação 22 . E, de acordo com a segunda cláusula novamente, 2
2 = 2
1
· 2. Ora, novamente encontramos um expoente: 21
. Se aplicarmos outra vez a
equivalência que nos foi oferecida pela segunda cláusula, então chegamos a 21 = 2
0 · 2 .
Dessa vez, o expoente a que chegamos é o número zero, o que nos reporta à primeira
cláusula, e assim nos garante um valor fixo (sem nenhuma outra exponenciação para
resolver). O valor de x0 é 1. O diagrama a seguir representa a sequência de operações.
Nesta sequência, uma operação é sempre realizada sobre o resultado da anterior (exceto
a primeira delas).
Portanto, o resultado final pode ser expresso pela seguinte proposição: 23 = 8.
No horizonte teórico do pensamento peirceano, não haveria espaço para se admitir que a
cadeia de representações (a sequência signo-interpretante) tivesse uma base pré-definida
como ocorre com as operações fatorial e de exponenciação (nos exemplos fornecidos ao
longo de nossa tese). Nestes exemplos, é óbvio que há uma última operação ou, sob
outra perspectiva, há o primeiro caso. Porém, dentro de uma cadeia sígnica, como
vimos, não pode haver primeiro elemento. Não um que seja definitivo. Então, a cláusula
base deve necessariamente possuir um caráter hipotético. Vejamos com paciência este
ponto. Em primeiro lugar, analisemos o funcionamento desta cláusula base dentro da
operação de exponenciação.
No caso da operação de exponenciação, podemos imaginar que haja uma sequência cujo
primeiro elemento nos apresente justamente o resultado da aplicação desta operação
para primeiro caso, o expoente zero: 20 = 1. Todos os casos seguintes são determinados
por este valor prefixado da operação de exponenciação para o primeiro caso. Todos os
casos posteriores dependem desta operação base.
379
Sequência da operação de exponenciação (para os naturais):
Caso_1 (ou Posição_nº1 da sequência) --> 20 = 1
Caso_2 (ou Posição_nº2 da sequência) --> 21 = 2
Caso_3 (ou Posição_nº3 da sequência) --> 22 = 4
Caso_4 (ou Posição_nº4 da sequência) --> 23 = 8
O procedimento de cálculo do valor da operação de exponenciação 23
, por exemplo,
segue um "roteiro" que pode ser dividido nos seguintes quatro passos:
Passo a passo do cálculo da operação 23
Passo_1) 23 = 2
2 · 2 (este resultado exige os desenvolvimentos do Passo_2,
Passo_3 e Passo_4)
Passo_2) 22 = 2
1 · 2 (este resultado depende dos desenvolvimentos do Passo_3 e
Passo_4)
Passo_3) 21 = 2
0 · 2 (este resultado depende dos desenvolvimentos do Passo_4)
Passo_4) 2o = 1 (este resultado é preestabelecido)
Note que só paramos no quarto passo, pois chegamos diante de uma operação cujo valor
está preestabelecido pela própria definição ou caracterização do que é a operação de
exponenciação.
Podemos comparar a execução da operação de exponenciação a um processo
inferencial. Nessa inferência cada passo intermediário rumo ao resultado final depende
do passo imediatamente anterior. O resultado de um passo está condicionado pelo
resultado do próximo passo. Em outras palavras, o resultado de um passo depende do
desenvolvimento do passo seguinte. Se observarmos o procedimento do cálculo dentro
do esquema apresentado anteriormente (a sequência), notaremos que cada passo é
condicionado pelo resultado do caso anterior. Por exemplo, no primeiro passo
utilizamos uma operação cujo resultado nos é apresentado, dentro da sequência, no
quarto caso. O resultado deste quarto caso depende do resultado dos outros três casos
anteriores. É por isso que no segundo passo utilizamos uma operação cujo resultado nos
é apresentado no terceiro caso, e o resultado deste terceiro caso, por sua vez, depende do
resultado dos outros três casos anteriores. E assim sucessivamente até o último passo (o
quarto) no qual utilizamos uma operação cujo resultado no primeiro caso. O resultado
380
deste primeiro caso nos é dado de antemão. Este resultado é preestabelecido pela
cláusula base. Não é por outro motivo, este quarto passo é o último.
Se nos fosse solicitado que colocássemos, passo a passo, o raciocínio desenvolvido para
encontrar o resultado da operação de exponenciação 23
na forma de um argumento,
talvez a primeira ideia que nos viesse à mente seria a de que uma das maneiras mais
simples de expressá-lo (embora não seja a única) seria construir uma cadeia de
condicionais.
Raciocínio para operação de exponenciação 23
Condicional_1) Se o resultado da operação de exponenciação 20 é 1, então o
resultado da operação de exponenciação 21
é 2.
Condicional_2) Se o resultado da operação de exponenciação 21
é 2, então o
resultado da operação de exponenciação 22
é 4.
Condicional_3) Se o resultado da operação de exponenciação 22
é 2, então o
resultado da operação de exponenciação 23
é 8.
Apresentada esta cadeia de condicionais, devemos, então, analisá-la. Como é de
conhecimento geral, todo condicional é uma proposição complexa constituída de duas
componentes: uma proposição denominada antecedente e outra proposição denominada
consequente. Cada um dos condicionais acima apresentados é constituído de
proposições que, para nossos objetivos de análise, serão consideradas atômicas (i.e.,
proposições cujas partes que a compõem não são elas mesmas proposições).
Proposições atômicas que compõem o raciocínio para operação de
exponenciação 23
Proposição P) o resultado da operação de exponenciação 20 é 1
Proposição Q) o resultado da operação de exponenciação 21 é 2
Proposição R) o resultado da operação de exponenciação 22 é 2
Proposição S) o resultado da operação de exponenciação 23 é 8
Com estas quatro proposições (P, Q, R e S), já podemos construir um argumento que
expresse o processo inferencial que nos levou ao resultado para a referida operação de
exponenciação. Toda a nossa atenção deve estar voltada para a proposição P (“o
resultado da operação de exponenciação 20 é 1”). A verdade desta proposição é
381
garantida pela cláusula base da própria definição. Assim, é como se todo o nosso
raciocínio partisse de uma base preestabelecida. Graças ao que afirma a cláusula base da
definição, partimos (em termos lógicos) de um resultado preestabelecido. Se
acreditamos que o "conteúdo" do que a proposição P afirma está assegurado pela
definição, então a proposição P pode ser afirmada como uma das premissas (a quarta
delas no esquema a seguir) e o argumento pode ser apresentado da seguinte forma:
Argumento sobre exponenciação - caso I: “base preestabelecida”
Premissa1: Se o resultado da operação de exponenciação 20 é 1, então o resultado
da operação de exponenciação 21
é 2.
Premissa2: Se o resultado da operação de exponenciação 21
é 2, então o
resultado da operação de exponenciação 22
é 4.
Premissa3: Se o resultado da operação de exponenciação 22
é 2, então o
resultado da operação de exponenciação 23
é 8.
Premissa4: O resultado da operação de exponenciação 20 é 1.
Conclusão: O resultado da operação de exponenciação 23
é 8
Reparemos que todas as premissas são condicionais. Exceto uma, a quarta. Todas as três
primeiras premissas são proposições (complexas) que afirmam ligações entre outras
proposições. Estas três primeiras apenas nos garantem que se algo ocorrer (se o
antecedente for verdadeiro), então outra coisa deve necessariamente ocorrer também (o
consequente tem que ser verdadeiro). Apenas a quarta premissa nos garante que algo
efetivamente ocorre. De acordo com a quarta premissa, é efetivamente o caso em que "
O resultado da operação de exponenciação 20 é 1". E por que neste argumento podemos
afirmar assim de forma tão categórica a ideia expressa nesta quarta premissa (i.e., na
proposição P)? A garantia está obviamente na cláusula base. Dessa forma, como
partimos de uma certeza inicial e nossa inferência é (dedutivamente) válida (o que
significa que este procedimento inferencial é capaz de conservar a verdade das
premissas das quais se partiu), também podemos ter certeza com relação o ponto de
chegada. Dada que a proposição P é verdadeira (graças à cláusula base), então também
dever ser verdadeira a conclusão do argumento: "o resultado da operação de
exponenciação 23
é 8" (que é a proposição S). A inferência é certeira. A conclusão é
certa. O importante é notar que o resultado final só pôde ser afirmado de forma
categórica por conta da cláusula base, que nos garante a verdade daquela proposição P
(“o resultado da operação de exponenciação 20 é 1”).
E o que ocorreria se, por algum motivo, não pudéssemos ter estabelecida de antemão
aquela proposição P, ou seja, o que ocorreria se, por algum motivo, a cláusula base não
382
nos fornecesse uma garantia do resultado da operação de exponenciação para o primeiro
caso (x0), mas apenas nos apresentasse um resultado hipotético. É exatamente isto que
ocorre com a epistemologia peirceana. Dentro de terreno matemático, não faria sentido
algum caracterizar recursivamente uma operação sem a cláusula base ou cuja cláusula
base fosse hipotética, uma vez que isso faria com que nunca fosse possível se chegar
efetivamente a um resultado ou só se chegaria a um resultado hipotético (tal como o
ponto de partida). Ainda que dentro destes exemplos corriqueiros da matemática (aos
quais recorremos) seja difícil imaginar quais seriam os motivos que nos levariam a
tornar ou considerar a cláusula base uma hipótese, dentro do terreno da epistemologia,
Peirce construiu uma teoria composta de diversos motivos que nos levam a acreditar
que a atividade cognitiva ocorra sem que haja efetivamente uma base preestabelecida ou
que toda e qualquer base (i.e., ponto de partida numa perspectiva lógica) sobre a qual se
desenvolva um processo cognitivo seja, em última análise, de natureza hipotética. Após
trezentas páginas, o leitor já deve reconhecer do que estamos tratando. Esta questão já é
velha conhecida nossa: o problema da primeira cognição (ou signo). É a última das
questões do primeiro artigo da série cognitiva, a Q7 do QFCM. Se, dentro do argumento
sobre exponenciação (que apresentamos acima), introduzimos a proposição P como
hipótese, teremos uma alteração considerável no ponto de chegada.
Argumento sobre exponenciação - caso II: “base hipotética”
Premissa1: Se o resultado da operação de exponenciação 20 é 1, então o resultado
da operação de exponenciação 21
é 2.
Premissa2: Se o resultado da operação de exponenciação 21
é 2, então o
resultado da operação de exponenciação 22
é 4.
Premissa3: Se o resultado da operação de exponenciação 22
é 2, então o
resultado da operação de exponenciação 23
é 8.
(HIPÓTESE) Premissa4: (Hipoteticamente) o resultado da operação de
exponenciação 20 é 1.
Conclusão: Se o resultado da operação de exponenciação 20 for 1, então o
resultado da operação de exponenciação 23
é 8
A seguir oferecemos duas formalizações dos dois últimos argumentos apresentados
acima. Nestas duas formalizações, podemos enxergar de maneira mais clara a distinção
essencial entre uma inferência que tem como base (lógica) uma afirmação e uma
inferência que tem como base (lógica) uma hipótese.
383
Argumento (formalizado) sobre exponenciação - caso I: “base categórica”
1. P--> Q Pr.
2. Q --> R Pr.
3. R --> S Pr.
4. P Pr.
5. Q MP 1,4
6. R MP 2,5
7. S MP 3,7
Na formalização a seguir, a linha pontilhada que acompanha (na vertical) os passos 4, 5,
6 e 7 significa que cada um desses passos é dado na dependência de uma hipótese
introduzida no passo 4.
Argumento (formalizado) sobre exponenciação - caso II: “base hipotética”
1. P--> Q Pr.
2. Q --> R Pr.
3. R --> S Pr.
4. | P Hip. P
5. | Q MP 1,4
6. | R MP 2,5
7. | S MP 3,7
8. P --> S Hip. P 4,7
O resultado deste argumento construído sobre uma base hipotética é também uma
hipótese, um condicional. No caso, este condicional é o seguinte: "se o resultado da
operação de exponenciação 20 for 1, então o resultado da operação de exponenciação 2
3
é 8". A natureza hipotética dessa proposição que está na posição de conclusão fica bem
evidente se observarmos que, dentro de um condicional, a afirmação do consequente (no
caso, "o resultado da operação de exponenciação 23
é 8") depende da afirmação do
antecedente (no caso, "o resultado da operação de exponenciação 20 for 1").
384
Assim, a semiótica peirceana é uma teoria sobre o funcionamento dos signos, sobre o
que podemos denominar de atividade sígnica. Esta teoria apresenta este funcionamento
ou esta atividade como um processo interpretativo que, além de ser gerado
recursivamente (i.e., no qual cada passo é sempre constituído a partir de passos
anteriores), não admite pontos de referência absolutos, i.e., não admite o
estabelecimento de pontos de partida ou de chegada. A atividade sígnica, conforme
descrita na semiótica peirceana, se dá num fluxo.
Como vimos no nono capítulo, dentro de seu projeto filosófico (cujo objetivo último é
responder como são possíveis os raciocínios sintéticos pergunta que considerou
central na filosofia), Peirce tentou estabelecer a equivalência entre a atividade sígnica
(descrita por sua teoria semiótica) e a atividade cognitiva (descrita por sua teoria da
cognição). Este movimento argumentativo muito geral (realizado dentro da série
cognitiva) tem como principal resultado colocar a semiótica no centro da epistemologia
desenvolvida no pensamento peirceano. Como a semiótica foi originalmente proposta
como uma espécie de ciência geral das representações e ela ocupa uma posição central
no projeto filosófico peirceano, este movimento argumentativo de Peirce acaba por
levar o debate, o jogo epistemológico para um novo tabuleiro: a semântica. Dentro da
semiótica peirceana, podemos observar uma teoria da representação, uma teoria
semântica. Óbvio está que, nesta passagem, entendemos o termo "semântica" de forma
"generosa". Entendemos que este termo designe um campo teórico que tem como objeto
de estudo a relação entre representante e representado (e questões adjacentes) da mesma
forma que, no campo da epistemologia, o objeto de estudo é a relação sujeito
cognoscenteobjeto. Nesta acepção (ampla), a semiótica peirceana é algo como uma
"semântica abstrata". E esta é, por força do projeto filosófico (ou do tipo de resposta que
Peirce está disposto a fornecer para a pergunta central da filosofia), uma semântica
necessariamente de fluxo.
385
CAPÍTULO 13
Recursividade e a concepção de represtação como fluxo
A teoria da representação que pode ser encontrada dentro da semiótica peirceana foi
elaborada por Peirce para explicar como é possível haver algum tipo de síntese, ou seja,
(de um ponto de vista epistemológico) como é possível que haja algum acréscimo de
informação dentro de um sistema de crenças. Por exemplo, supondo que alguém tenha
adquirido a informação de que baleias são seres azuis, deveríamos nos perguntar como o
predicado " ____ser azul" foi unido ao sujeito lógico "as baleias" na proposição "as
baleias são azuis" dentro de um estado informação em que se desconhecia o fato de
baleias serem azuis. Como funciona o processo que tem como resultado a síntese desse
sujeito (lógico) com este predicado?
Como vimos no último capítulo, o conjunto dos principais conceitos da semiótica
peirceana (conceito de signo, objeto, interpretante e representação) descrevem exatamente
o processo interpretativo que (dentro do projeto filosófico peirceano) é o responsável por
responder como se tornam possíveis as sínteses. A resposta encontrada por Peirce é que a
síntese é a resultante de um processo interpretativo, uma sequência de representações, em
que estão envolvidos três elementos: signo, objeto e interpretante. Nossa tese central é que
o ponto de distinção da semiótica peirceana com relação a outras propostas teóricas
projetadas para explicar fenômenos de ordem semântica não é o fato de Peirce ter
definido o processo interpretativo a partir da referência a três elementos (signo, objeto e
interpretante), mas o fato de ter definido recursivamente o papel do terceiro elemento (o
interpretante) dentro da relação triádica. O interpretante instala no interior da relação
triádica uma regra de recursão. Assim, a diferença elementar da semiótica para propostas
teóricas semelhantes (i.e., outras semióticas ou teorias semânticas) definitivamente não é
o número de elementos que entram em seu conceito central: a ideia de representação (ou
de signo, num sentido lato). A diferença elementar é justamente a caracterização recursiva
do conceito de representação que está presente na semiótica peirceana (graças à
introdução do terceiro elemento, o interpretante) e (aparentemente) ausente das demais
propostas teóricas. Como temos nos esforçado para demonstrar, a recursividade possui
um papel central na economia interna do projeto filosófico peirceano: garantir que sejam
verdadeiras as teses elementares ("não há primeiro signo num processo interpretativo"
Tese_1 da semiótica e "não há último signo num processo interpretativo" Tese_2 da
semiótica). Sob esta perspectiva, a relação (como veremos, irredutivelmente) triádica só
serve para instalar um processo que é caracterizado recursivamente. Não é o "número
três" que importa diretamente, mas sim como o terceiro elemento é caracterizado.
386
Para corroborar esta proposição segundo a qual o que é central na semiótica peirceana
(para que ela cumpra seu papel dentro do projeto filosófico como um todo) é a
caracterização recursiva do conceito de representação (e, na verdade, os três elementos da
relação triádica apenas servem para estabelecer tal recursividade), apresentaremos neste
capítulo, de um modo mais formal, argumentos para sustentar que é a recursividade que
nos permite estabelecer o que denominamos de teses elementares. O modo mais formal
que utilizaremos é deduzir as teses elementares das definições centrais que foram isoladas
nos capítulos precedentes. Assim, a ideia central nas duas primeiras seções deste décimo
terceiro capítulo é mostrar como as teses elementares podem ser deduzidas das definições
básicas fornecidas por Peirce em seus escritos e, uma vez estabelecidas (internamente)
tais teses, a semiótica seria capaz de descrever um processo interpretativo que pode, no
interior do projeto filosófico peirceano, ser oferecido como resposta para a questão da
"validade" dos raciocínios sintéticos. Durante as demonstrações das duas primeiras seções
deste capítulo voltaremos a esbarrar em dois dos maiores problemas dentro do sistema
filosófico peirceano: a noção de continuum (da qual já tratamos ao final do nono capítulo)
e a irredutibilidade da relação triádica.
Na última seção deste último capítulo, trataremos daquela que consideramos a única
interpretação dos escritos peirceanos do final da década de 1860 para a qual, ainda que
sejam estabelecidas (dentro da semiótica) as teses elementares, a semiótica não serviria
para descrever um processo interpretativo capaz de explicar a "validade" dos raciocínios
sintéticos. De acordo com esta interpretação, o processo interpretativo (descrito pela
semiótica peirceana) seria inevitavelmente circular, portanto, neste caso, como não
haveria convergência para um ponto-limite (conforme pretende Peirce), a solução teórica
peirceana falharia. Na verdade, o que pretendemos mostrar de um modo mais formal
neste último capítulo é que, para que funcione a solução teórica para o que Peirce
considera o problema central da filosofia, as duas teses fundamentais acima referidas têm
que ser verdadeiras dentro da semiótica (i.e., a partir das definições básicas da semiótica)
e a verdade destas depende da recursividade que é encontrada dentro da concepção de
signo (num sentido lato) ou de processo interpretativo. Entretanto, ainda que a verdade
destas teses elementares seja condição necessária para que funcione a referida solução
teórica, não se pode afirmar que ela seja uma condição suficiente. Para que pudéssemos
apresentar (além da caracterização recursiva, que é uma condição necessária) quais seriam
as condições que seriam suficientes para fazer com que a solução teórica peirceana
funcionasse, teríamos que ampliar o corpus desta pesquisa. Seria preciso analisar os
outros textos que compõem a série cognitiva, o que obviamente não pode ser feito (por
carência de espaço-tempo). Ainda que estejamos impossibilitados de especificar quais
seriam estas condições suficientes e, assim, desenvolver uma argumentação mais precisa,
pretendemos nesta última seção apresentar algumas razões para se descartar esta
interpretação que entende o processo interpretativo como circular.
387
13.1 As teses elementares da semiótica
Nesta primeira seção deste décimo terceiro capítulo, dedicaremo-nos à tarefa de provar
o que viemos denominando desde o nono capítulo de teses elementares da semiótica
peirceana. O primeiro passo é apresentar de um modo mais formal de onde partiremos
para estabelecer cada uma dessas teses. Nossos pontos de partida (nossos "axiomas")
são as definições básicas e também as "noções gerais" que coseguimos isolar a partir da
análise (realizado no décimo capítulo) do artigo "Sobre uma nova lista de categorias"
(On a New List of Categories, ONLC, CP 1.545 - 59). Além das definições básicas e
das noções gerais da semiótica, apresentaremos no quadro abaixo um princípio geral.
Elementos da semiótica peirceana
Definições Básicas Abreviatura
Definição de representação: uma representação é uma relação cujo
primeiro elemento é produzido para representar o primeiro elemento
de uma representação anterior (como algo que está numa relação [de
representação] com o segundo elemento [dessa representação
anterior] da mesma forma que ele [o primeiro elemento] está numa
relação [de representação] com este segundo elemento [dessa
representação anterior]).
(df_1)
Definição de signo: um signo é o primeiro elemento de uma
representação. (df_2)
Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma
representação. (df_3)
Definição de interpretante: um interpretante é o primeiro elemento de
uma representação que é produzido para representar o primeiro
elemento da representação anterior (como algo que está numa relação
[de representação] com o segundo elemento [dessa representação
anterior] da mesma forma que ele [o interpretante] está numa [relação
de representação] com este segundo elemento [dessa representação
anterior]).
(df_4)
Noções Gerais Abreviatura
Noção Geral I: O interpretante é algo da natureza de uma representação. (NG I)
Noção Geral II: O interpretante é uma representação mediadora
produzida sobre uma relação diádica (chamada de relação-base). (NG II)
Noção Geral III: O interpretante é produto de uma regra recursiva. (NG III)
Noção Geral IV: Um signo é qualquer elemento produzido para
representar algo. (NG IV)
Noção Geral V: Um objeto é qualquer elemento representado por um
signo. (NG V)
Princípio Geral Abreviatura
Lei fundamental da razão: Não bloqueie o caminho da investigação. (LFR)
388
Portanto, o objetivo desta primeira seção é estabelecer as duas teses a seguir:
Teses elementares da semiótica peirceana
Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo interpretativo).
Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo interpretativo).
Para cumprir este objetivo, iremos recorrer a duas proposições que foram denominadas
ainda no capítulo 12 (cf. primeira seção) de teses de Savan.
Teses defendidas por Savan acerca da semiótica peirceana
Tese1 (defendida por Savan) --> "Todo interpretante é um signo" (Savan, 1976, p. 32)
Tese2 (defendida por Savan) --> "Todo signo é um interpretante" (Savan, 1976, p. 32)
Tese3 (defendida por Savan) --> "Sem interpretante não há signo, mas somente um signo
potencial ou virtual" (Savan, 1976, p. 3)
Na verdade, para estabelecer as duas teses elementares da semiótica, devemos, de forma
direta, recorrer às duas primeiras das teses apresentadas acima. Entretanto, como
explicaremos de forma mais detalhada adiante, para se estabelecer a segunda tese
elementar da semiótica, será necessário pressupor uma espécie de princípio geral que
pode ser considerado equivalente à proposição que foi acima denominada de terceira
tese de Savan. Nesta seção, portanto, apresentaremos quatro argumentos:
Argumento 1) para o estabelecimento da primeira tese de Savan
Argumento 2) para o estabelecimento da segunda tese de Savan
Argumento 3) para o estabelecimento da primeira tese elementar da semiótica
peirceana
Argumento 4) para o estabelecimento da segunda tese elementar da semiótica
peirceana
Cada um desses argumentos, quando necessário, foi dividido em trechos. O passo a
passo destes argumentos foi apresentado dentro de uma tabela com duas colunas: na
primeira delas dispõem-se as proposições (premissas e conclusões) e, na segunda
coluna, apresentam-se as abreviaturas para cada uma das proposições que aparece numa
linha específica da argumentação, pois, deste modo, facilita-se a justificativa para cada
passo dentro do argumento.
389
O primeiro de nossos argumentos é relativamente simples. A conclusão intencionada,
que é a primeira tese de Savan ("todo interpretante é um signo"), se segue de forma bem
direta da definição de interpretante e da quarta noção geral.
Argumento 1 - para o estabelecimento da primeira tese de Savan
Premissa1:Todo elemento produzido para representar algo é um
signo. (NG IV)
Premissa2: Todo interpretante é um elemento produzido para
representar algo (a saber, o relato como uma representação do
mesmo correlato que ele [interpretante] mesmo representa).
(df_4)
Conclusão: Todo interpretante é um signo. (prp_1)
Já o segundo de nossos argumentos, que apresentaremos na próxima página, é um
pouco mais longo, uma vez que se fez necessário explicitar alguns de seus passos
intermediários.
Argumento 2 - para o estabelecimento da segunda tese de Savan
Trecho 2.1 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan
Premissa1: uma representação é uma relação cujo primeiro
elemento é produzido para representar o primeiro elemento de
uma representação anterior (como algo que está numa relação
[de representação] com o segundo elemento...)
(df_1)
Conclusão: Toda representação tem como primeiro elemento um
elemento produzido para representar o primeiro elemento de
uma representação anterior (como algo que está numa relação
[de representação] com o segundo elemento...).
(prp_2.1)
Trecho 2.2 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan
Premissa1: Toda representação tem como primeiro elemento um
elemento produzido para representar o primeiro elemento de
uma representação anterior (como algo que está numa relação
[de representação] com o segundo elemento...).
(prp_2.1)
Conclusão: Todo primeiro elemento de uma representação é
produzido para representar o primeiro elemento da
representação anterior (como algo que está numa relação [de
representação] com o segundo elemento...).
(prp_2.2)
390
Trecho 2.3 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan
Premissa1: Todo primeiro elemento de uma representação é
produzido para representar o primeiro elemento da
representação anterior (como algo que está numa relação [de
representação] com o segundo elemento...).
(prp_2.2)
Premissa2: Todo elemento produzido para representar o
primeiro elemento da representação anterior (como algo que está
numa relação [de representação] com o segundo elemento...) é
um interpretante.
(df_4)
Conclusão: Todo primeiro elemento de uma representação é um
interpretante. (prp_2.3)
Trecho 2.4 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan
Premissa1: Todo signo é um primeiro elemento de uma
representação. (df_2)
Premissa2: Todo primeiro elemento de uma representação é um
interpretante. (prp_2.3)
Conclusão: Todo signo é um interpretante. (prp_2)
Dos raciocínios (acima apresentados) que nos levam às duas primeiras teses de Savan,
podemos chegar às duas teses elementares da semiótica. Comecemos por provar a
Tese_1 da semiótica ("não há primeiro signo [num processo interpretativo]") a partir da
segunda tese de Savan ("todo signo é um interpretante").
Argumento 3 - para o estabelecimento da primeira tese elementar da semiótica
peirceana
Trecho 3.1 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Todo signo é um interpretante. (prp_2)
Premissa2: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma
representação que é produzido para representar o primeiro
elemento da representação anterior (como algo que está numa
relação [de representação] com o segundo elemento...)
(df_4)
Conclusão: Todo signo é produzido para representar o primeiro
elemento da representação anterior (como algo que está numa
relação [de representação] com o segundo elemento...)
(prp_3.1)
391
Trecho 3.2 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa: Todo signo é produzido para representar o primeiro
elemento da representação anterior (como algo que está numa
relação [de representação] com o segundo elemento...)
(prp_3.1)
Conclusão: Todo signo é resultado de uma representação
anterior. (prp_3.2)
Trecho 3.3 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Toda representação é uma relação cujo primeiro
elemento é produzido para representar o primeiro elemento de
uma representação anterior (como algo que está numa relação
[de representação] com o segundo elemento...)
(df_1)
Conclusão: Toda representação tem um primeiro elemento. (prp_3.3)
Trecho 3.4 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Toda representação tem um primeiro elemento. (prp_3.3)
Premissa2: O primeiro elemento de uma representação é o signo. (df_2)
Conclusão: Toda representação tem (como primeiro elemento)
um signo. (prp_3.4)
Trecho 3.5 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Toda representação tem (como primeiro elemento)
um signo. (prp_3.4)
Premissa2: Todo signo é resultado de uma representação
anterior. (prp_3.2)
Conclusão: Não há primeira representação. (prp_3.5)
Trecho 3.6 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Não há primeira representação.. (prp_3.5)
Premissa2: Toda representação tem (como primeiro elemento)
um signo. (prp_3.4)
Conclusão: Não há primeiro signo. Tese_1
392
Estabelecida a primeira tese, passemos à prova da Tese_2 da semiótica ("não há último
signo [num processo interpretativo]").
Argumento 4 - para o estabelecimento da segunda tese elementar da semiótica
peirceana
Trecho 4.1 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Todo interpretante é um signo. (prp_1)
Premissa2: Todo signo é o primeiro elemento de uma
representação. (df_2)
Conclusão: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma
representação. (prp_4.1)
Trecho 4.2 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma
representação que é produzido para representar o primeiro
elemento da representação anterior (como algo que está numa
relação [de representação] com o segundo elemento...)
(df_4)
Conclusão: Todo interpretante é produzido para representar o
primeiro elemento da representação anterior (como algo que está
numa relação [de representação] com o segundo elemento...)
(prp_4.2)
Trecho 4.3 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa: Todo interpretante é produzido para representar o
primeiro elemento da representação anterior (como algo que está
numa relação [de representação] com o segundo elemento...)
(prp_4.2)
Conclusão: Todo interpretante é resultado de uma representação
anterior. (prp_4.3)
Trecho 4.4 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Todo interpretante é resultado de uma representação
anterior. (prp_4.3)
Premissa2: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma
representação. (prp_4.1)
Conclusão: Todo interpretante é resultado de uma representação
anterior e é o primeiro elemento de uma representação (distinta
da anterior).
(prp_4.4)
393
Trecho 4.5 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa: Todo interpretante é resultado de uma representação
anterior e é o primeiro elemento de uma representação (distinta da
anterior).
(prp_4.4)
Conclusão: Toda representação resulta num interpretante (que é
o primeiro elemento de uma segunda representação). (prp_4.5)
Trecho 4.6 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa: Toda representação resulta num interpretante (que é o
primeiro elemento de uma segunda representação). (prp_4.5)
Conclusão: Não há última representação. (prp_4.6)
Trecho 4.7 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa1: Não há última representação. (prp_4.6)
Premissa2: Toda representação tem (como primeiro elemento)
um signo. (prp_3.4)
Conclusão: Não há último signo Tese_2
A prova de que não há primeiro signo se segue de forma muito natural das definições (e
também das noções gerais) que Peirce nos fornece no ONLC. Por sua vez, a prova de
que não há último signo acima apresentada possui uma passagem que poderia muito
bem ser questionada num exame mais minucioso. Isto obviamente nos obriga a
explicitar os passos intermediários subentendidos nesta passagem. O trecho em questão
é a seguinte:
Trecho 4.5 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar
da semiótica peirceana
Premissa: Todo interpretante é resultado de uma representação anterior e é o
primeiro elemento de uma representação (distinta da anterior).
Conclusão: Toda representação resulta num interpretante (que é o primeiro
elemento de uma segunda representação).
394
Se observarmos que o que está afirmado na premissa deste argumento é que todo
interpretante é resultante de uma representação anterior à representação da qual ele é o
primeiro elemento, notaremos que disso não podemos derivar, sem fazer algumas
pressuposições, que toda e qualquer representação deve necessariamente ser
representada por um interpretante que estará "localizado" numa segunda representação
(i.e., numa representação que, dentro de uma sequência, vem logo depois desta
representação que foi chamada de representação anterior). Da afirmação que todo
interpretante é resultado de uma representação anterior (àquela da qual ele é o primeiro
elemento) não podemos deduzir que toda representação resulta num novo interpretante,
portanto, numa nova representação. O problema é justamente que tipo de suposição
devemos fazer.
O que nos permite derivar a proposição "não há primeira representação" (prp_3.5) é
justamente o fato de a relação de representação (dentro da teoria) ter sido definida de
forma recursiva. Esta definição nos garante de forma explícita que, dada uma
representação específica, há sempre uma representação anterior. Porém, nesta mesma
definição, não há nada que nos garanta explicitamente que, dada uma representação
específica, haja sempre uma representação seguinte. Acreditamos que para que este
argumento funcione deve-se pressupor a ação de uma espécie de princípio.
O simples fato de não haver entre as definições dos conceitos básicos da semiótica
nenhuma cláusula base (ou condição semelhante) já faz com que a recursividade
internalizada no conceito de representação crie um regressus infinito ao impedir que
haja algum ponto originário (exatamente como exige o projeto filosófico peirceano).
Portanto, a ausência da cláusula base pode nos ajudar, de forma explícita, somente em
uma das direções do processo interpretativo, aquela que segue rumo às origens (que
nunca podem ser encontradas). Na outra direção, a (ausência de) cláusula base e a
recursividade não podem nos ajudar. Para provar que toda representação resulta num
interpretante, não podemos depender de uma "ausência", mas precisamos recorrer a uma
"presença". Para provar que não há última representação é necessário que seja
introduzido no sistema o seguinte princípio: "toda representação requer um
interpretante" ou, expresso de forma mais precisa, "toda representação deve ser
representada por um interpretante (que faz parte da próxima representação na
sequência)".
Princípio de sequência
"toda representação requer um interpretante"
Esta ideia está subtendida na teoria da representação que Peirce nos apresenta no
ONLC. Este princípio de sequência está latente na insistência com a qual Peirce sempre
afirma que a tríada (a relação triádica entre signo, objeto e interpretante) é
395
irredutivelmente triádica. Na verdade, o que está expresso neste princípio é uma das
ideias mais caras a todo o pensamento peirceano: a irredutibilidade da relação triádica.
A partir deste princípio, é estabelecida uma garantia de que, por definição, não pode
haver uma representação entre um signo e um objeto sem pressupor o interpretante, ou
seja, toda representação deve ser representada por um interpretante. A ideia por trás
deste princípio é exatamente a mesma por trás da terceira tese de Savan: "Sem
interpretante não há signo, mas somente um signo potencial ou virtual" (Savan, 1976, p.
3). O que Savan chama de "signo", denominamos de representação ou processo de
representação (ou ainda processo interpretativo). O que estamos enxergando de um
modo mais formal neste décimo terceiro capítulo foi, num certo sentido, antecipado por
Short (1986, p. 103) quando notou que a primeira tese de Savan ("todo interpretante é
um signo") não é suficiente para implicar no progressus infinito de
signos/interpretantes, pois é necessário recorrer à terceira tese de Savan ("sem
interpretante não há signo, mas somente um signo potencial ou virtual"). Portanto, para
provar que não há último signo, devemos recorrer a este princípio.
Deve-se chamar atenção para o motivo pelo qual não denominamos este princípio de
sequência de "terceira tese de Savan". A ideia de que toda representação deve
necessariamente resultar num interpretante não pode ser derivada das definições dos
conceitos básicos (e noções gerais) que Peirce nos forneceu nos escritos analisados. A
proposição "toda representação requer um interpretante" não pode ser considerada uma
tese, pois ela não pode ser deduzida das definições básicas. Então, só nos resta
introduzi-la como um princípio geral. Não nos surpreenderia (e nem ficaríamos
ofendidos) se nossos leitores torcessem o nariz para esta "solução" de introduzir como
princípio o que talvez devesse ser provado. Esta solução (por nós) apresentada pode ser
considerada uma solução ad hoc. Ela segue, de fato, a seguinte orientação: quando não
for possível provar uma proposição (para que ela passe de conjectura a teorema), então
coloque-a no conjunto dos axiomas (e ela não "precisará" de ser provada). Parte
considerável do tempo da pesquisa realizada para esta (nossa) tese foi gasto na tentativa
de encontrar algum caminho para derivar a tese da irredutibilidade da relação triádica
(utilizada para descrever o processo interpretativo) a partir das definições básicas da
semiótica. Falhamos miseravelmente em todas tentativas. O fato é que o próprio Peirce
tentou por diversas vezes provar a irredutibilidade da relação triádica. Se ele foi ou não
bem-sucedido nas provas que apresentou é algo debatido entre os comentadores (cf.
Burch, 1997; Brunning, 1997). A irredutibilidade da relação triádica pode ser
considerada, ao lado do conceito de continuum, um dos maiores "problemas em aberto"
em todo o sistema filosófico peirceano.
Portanto, este princípio acima anunciado é indispensável, pois é ele que garante que não
pode haver uma representação (entre um signo e um objeto) que não vá recorrer a um
interpretante (que, por sua vez, será um novo signo [como afirma a primeira tese de
Savan, a prp_1). Em resumo, este princípio estabelece que o processo interpretativo,
i.e., a relação triádica, que está no centro da semiótica peirceana, é irredutivelmente
triádica.
396
Pelo resto desta seção, dedicaremo-nos a mostrar que a teoria peirceana da
representação foi elaborada dentro da semiótica justamente para descrever um processo
contínuo, pois é exatamente de um processo contínuo que Peirce precisa para descrever,
dentro da epistemologia, como é possível haver síntese. A teoria da cognição peirceana
(apresentada na série cognitiva) recorre justamente ao processo (interpretativo) contínuo
descrito pela teoria peirceana da representação.
Com a entrada em cena do que denominamos princípio de sequência, o processo
interpretativo passa a ser irredutivelmente triádico e, assim fica estabelecido que ele não
pode ter fim. É como se a teoria da representação elaborada por Peirce estivesse
tentando descrever um processo que não apenas é recursivo "de frente para trás", mas
também o é de "trás para frente". Este princípio de sequência opera dentro da teoria
como um princípio de simetria. É como se ele afirmasse que o que vale para uma
direção do processo interpretativo também valesse para a outra: se não há ponto inicial
(ou final) numa direção também não há na outra. Assim, uma representação é algo que
não só depende de uma representação anterior (como está claro na definição de
interpretante), mas também depende da produção de uma representação posterior (como
está implícito nalgumas passagens). É isto que cria a noção de continuidade dentro do
processo interpretativo descrito pela semiótica. O que a teoria descreve é uma peça que
tem sua parte anterior feita para se encaixar na parte posterior de uma peça (do mesmo
tipo) que deve vir antes daquela primeira peça dentro de uma sequência. O mesmo pode
ser dito da parte posterior de qualquer peça. A parte posterior é feita para se encaixar na
parte posterior de uma peça (do mesmo tipo) que deve vir depois daquela peça (dentro
de uma sequência). Os limites dessas peças coincidem. Isto permite que, por menor que
sejam duas peças que estejam encaixadas uma na outra, sempre é possível encontrar
uma terceira peça que possa ser encaixada entre as duas. Esta metáfora das peças é, de
fato, "perigosa" (ainda que seja sugestiva), pois se as entendermos como coisas físicas,
então elas seriam entidades discretas. E este não é apenas um problema da metáfora que,
por ora, escolhemos como recurso explicativo, mas é um problema que diz respeito a
uma tensão que atravessa todo o projeto filosófico do jovem Peirce (e provavelmente
todo o pensamento peirceano): a tensão entre contínuo e discreto. Quando decidiu
explicar um processo que se supõe contínuo (o processo interpretativo) por meio de
unidades que supõe serem discretas, tais como signos e interpretantes, Peirce passou a
correr o risco de cair em contradição. Se considerarmos que o processo interpretativo é
feito de peças (cada uma delas encaixada numa outra), então, para que ele seja contínuo,
temos que admitir que não há alguma peça que seja a menor possível. Isto pode ser
entendido de forma mais clara se recordarmos que os argumentos apresentados por
Peirce para tratar do problema da primeira cognição ou do primeiro signo (no QFCM)
correm em paralelo com o tratamento dado por ele (na série cognitiva) ao paradoxo de
Zenão (CP 5.333-5 [1869]).
Para Peirce, o paradoxo de Zenão surge apenas se assumirmos que há partes últimas no
espaço . Entretanto, de acordo com a definição de continuum de Peirce (em 1868-9 ou
mesmo depois desse período), ao assumirmos isto estaríamos afirmando que o espaço
397
não é contínuo. Se admitíssemos que o espaço é contínuo, então isto significa que ele é
feito de partes que têm partes do mesmo tipo e, assim, não possui partes últimas. O
resultado deste raciocínio é que se seguimos dividindo o espaço, nunca vamos chegar a
um momento em que a próxima divisão resultaria em partes que não mais seriam do
mesmo tipo que ele, ou seja, não seriam mais espaços. As partes do espaço são sempre
espaço. E também as partes das partes dele. O fato de o espaço ser contínuo faz com que
suas partes (e as partes de suas partes [e as partes dessas partes...]) sejam sempre
classificadas como espaço. A ideia por trás dessa solução é afirmar que não existe um
"intervalo" mínimo (finito) que possa ser denominado de espaço. Formalmente, o
processo interpretativo descrito por Peirce em sua semiótica funciona do mesmo modo.
Toda representação é resultante e tem como resultado algo do mesmo tipo que ela: uma
representação. Afirmar que, na solução proposta por Peirce do paradoxo de Zenão (CP
5.333-5 [1869]), não há partes últimas no espaço é equivalente a afirmar que não há
primeira representação e não há última representação (ou não há primeiro signo e não há
último signo) no processo interpretativo.
Se prestarmos atenção às características básicas da noção peirceana de continuum,
notaremos que esta noção é a base da correlação que Peirce pretende fazer entre
semiótica e epistemologia. Na definição oferecida na séria cognitiva, Peirce define o
continuum apenas como "aquilo cuja cada uma de suas partes tem partes do mesmo
tipo" (CP 5.335 [1869]). Porém, já fase madura de seu pensamento, ele passou a afirmar
que um continuum é "algo infinitamente divisível cujas partes têm um limite em
comum” (cf. CP 6.120 - 6 [1891]). Não é difícil notar que em qualquer uma dessas duas
formulações, a noção de continuum é o foco da semiótica peirceana. É como se os
conceitos básicos da semiótica peirceana fossem construídos para descrever um
processo que deve ser necessariamente contínuo. Como neste último capítulo, estamos
dentro da semiótica peirceana (examinando como suas teses estão sustentadas
internamente em suas definições básicas), podemos observar de forma clara como este
corpo teórico foi projetado especificamente para "captar" (modelar) um processo
contínuo.
Com as duas primeiras teses de Savan ("todo signo é interpretante" e "todo interpretante
é signo"), sabemos que, dentro da teoria, os conceitos de signo e interpretante são
construídos para estarem conectados (todo signo é um interpretante de alguma
representação e todo interpretante é um signo de alguma representação). E esta é uma
das características da noção de continuum que Peirce desenvolveu ao longo de sua
carreira filosófica: o processo interpretativo é algo cujas partes têm limites em comum.
Sabemos pelas demonstrações acima que podemos derivar as duas primeiras teses de
Savan do conjunto de conceitos básicos da semiótica peirceana. Isto significa que, a
partir da caracterização recursiva do conceito de representação e dos conceitos de signo,
objeto e interpretante, podemos afirmar que o processo interpretativo (ou de
representação descrito pela semiótica) é um processo cujas partes têm limites em
comum. Já temos uma das partes (uma das condições) da noção peirceana de
continuum. Então para provar que o processo interpretativo (descrito pela semiótica) é
398
contínuo, basta que seja estabelecido que ele pode ser dividido infinitamente. Em outras
palavras, basta que seja provado que não há último signo e não há primeiro signo no
processo interpretativo (tal como a inexistência de partes últimas no espaço, no caso do
tratamento peirceano do paradoxo de Zenão). Entretanto, afirmar que não há primeiro
nem último signo é afirmar as duas teses elementares da semiótica peirceana e, como
vimos acima, para prová-las não é suficiente o conjunto de conceitos básicos da
semiótica peirceana. É preciso acrescentar o que foi denominado de princípio de
sequência.
Então já sabemos o que a recursividade (junto com sua contraparte simétrica: o
princípio de sequência) pretende construir dentro da teoria da representação: a noção de
continuidade. No caso da semiótica, a continuidade do processo interpretativo consiste
justamente na infinita divisibilidade (o que é garantido pela recursividade) e na
indistinção entre os limites de cada uma das partes que compõem o contínuo (o que é
garantido pelas definições dos conceitos de signo e interpretante [que são
intercambiáveis]). Que o processo de representação descrito pela semiótica seja
contínuo não é nenhuma surpresa, uma vez que esta teoria foi projetada justamente para
descrever um processo com esta característica. O problema é a pretensão (clara no
projeto filosófico peirceano) de que também seja contínuo o processo cognitivo (tal
como o processo descrito pela semiótica).
Em primeiro lugar, notemos que a semiótica (como a lógica ou a matemática) é uma
ciência formal. Ela não descreve nada na realidade. A semiótica simplesmente descreve
um processo cujo mecanismo interno é dado por uma relação triádica. O objeto da
semiótica é abstrato: são relações e estruturas, processos abstratos. Isto obviamente não
impede que a semiótica (a exemplo da matemática e também da lógica) seja utilizada
para explicar o "funcionamento", o "mecanismo" de processos concretos. O que Peirce
parece ter feito na série cognitiva é ter usado a semiótica para explicar (como) a
atividade cognitiva (pode produzir sínteses). Um dos principais movimentos
argumentativos247
de toda a série cognitiva pretende justamente estabelecer que a
atividade cognitiva pode ser descrita pela semiótica, ou seja, pode ser descrita como um
processo de representação (ou um processo interpretativo). Em termos gerais, este
movimento argumentativo é o responsável por colocar a semiótica no coração da
epistemologia peirceana.
Na última oportunidade que teve dentro do QFCM para provar que sua teoria da
cognição seria superior às teorias adversárias (que recorrem a pontos originários,
intuições no papel de fundações), Peirce confia numa analogia e acaba por pressupor o
que deveria provar. Recordemos esta passagem. Naquele ponto do QFCM, Peirce
precisaria provar que a atividade cognitiva é um processo contínuo e, por este motivo
poderia ser representada como um processo sígnico ou interpretativo (descrito pela
semiótica). Ao longo de todo o QFCM, Peirce procurou construir diversas linhas
argumentativas com o intuito de ir nos convencendo ao poucos que a atividade
247
Cf. primeira seção do nono capítulo.
399
cognitiva funcionava na dependência de signos. Ele foi, linha a linha, questão a questão,
convencendo-nos de que a atividade cognitiva era, no fundo, uma atividade que poderia
muito bem ser descrita pela semiótica (i.e., pela "ciência geral das representações").
Quase convencidos, fomos tomados por um espírito de desconfiança quando notamos
que se a atividade cognitiva funcionasse do modo como Peirce a descrevia (i.e., tal
como um processo sígnico, interpretativo), então não haveria ponto originário. Ora, isto
coloca nossa confiança na teoria peirceana em xeque, porque a teoria adversária
consegue explicar a atividade cognitiva com muito mais simplicidade. Como as teorias
alternativas àquela que Peirce advoga no QFCM são mais simples, então é justo que
solicitemos ao filósofo norte-americano uma justificativa, uma razão para que possamos
escolher a teoria dele como a mais adequada para explicar os fenômenos em questão. O
que é solicitado então é que se apresente um motivo que nos leve a acreditar que o
processo cognitivo é semelhante ao processo sígnico. A expectativa era que, sabendo
que o processo sígnico é contínuo, Peirce nos apresentasse um argumento que
estabelecesse que (também) o processo cognitivo é contínuo. Ora, como vimos, não foi
isto que foi feito. Peirce apresentou um argumento (por analogia) que pressupôs que
ambos os processos seriam contínuos. Porém, é justamente isto que esperávamos ver
provado. Petitio principii.
Caso nossas análises estejam minimamente corretas, é uma ironia que Peirce termine o
QFCM com uma petitio principii, pois este mesmo texto começa com uma acusação de
que a reivindicação de uma faculdade intuitiva de reconhecimento de intuições cai
necessariamente numa argumentação circular. O primeiro passo de Peirce dentro do
QFCM (ainda na primeira questão) é justamente afirmar que não há como justificar a
capacidade de se distinguir intuitivamente cognições intuitivas de cognições que não o
sejam (i.e., cognições derivadas), pois esta pressuposição de que o homem tenha esta
capacidade está na base não só do projeto fundacionalista de Descartes como daqueles
sistemas filosóficos que (de acordo com Peirce) seriam animados pelo "espírito do
cartesianismo". É este movimento argumentativo que está na base da solicitação
peirceana para que se desconfie do conceito de intuição (no papel de fundação) e
também está na base da solicitação do voto de confiança que se deveria depositar na
teoria sígnica da cognição (a alternativa peirceana às teorias de teor cartesiano).
No pior dos cenários, na mais "pessimista" das leituras, podemos entender que esta
argumentação derradeira de Peirce no QFCM é representativa de todo o
desenvolvimento argumentativo deste texto. Dessa perspectiva, o que jovem Peirce teria
feito dentro de seu projeto filosófico seria, em primeiro lugar, construir uma teoria
formal para descrever um processo que seria necessariamente contínuo e, em segundo
lugar, teria pressuposto que também a atividade cognitiva seria contínua e, por este
exato motivo, poderia ser descrita por aquela teoria formal, a teoria peirceana da
representação.
Para resgatar o projeto filosófico do jovem Peirce desta leitura acima apresentada,
podemos enunciar o seguinte caminho interpretativo: o escopo da teoria peirceana da
400
representação não é efetivamente descrever processos concretos. Geralmente, a
resistência à teoria peirceana da cognição começa quando notamos que toda a vez que
pensamos ou raciocinamos temos a impressão de que o pensamento começa em algum
ponto definido do tempo e, de qualquer forma, não poderíamos pensar antes de termos
nascido. Dessas impressões e constatações óbvias, deduzimos que uma teoria que nos
afirme que não há ponto originário em tais processos só pode estar equivocada.
Entretanto, até que ponto Peirce pretende descrever um processo mental efetivo, algo
que ocorra na cabeça de indivíduos? E se o escopo de sua teoria (e da ciência semiótica
em geral) fosse construir um modelo lógico da mente? O que, de fato, Peirce estava
tentando descrever, modelar com a semiótica? Qualquer interpretação que pretenda
apresentar algum caminho, alguma resposta para esta pergunta deve passar pelo
problema da tensão entre continuum e discreto.
É exatamente neste ponto da discussão que entra em cena a solução interpretativa
oferecida por Ransdell, da qual já tratamos em três oportunidades anteriores248
. A
solução de Ransdell é propor que se opere uma distinção entre um ponto de vista
psicológico (de acordo com o qual a atividade cognitiva deve ser entendida como um
processo contínuo) e um ponto de vista lógico (de acordo com o qual a atividade
cognitiva deve ser entendida como um processo que pode ser "quebrado" em unidades
discretas [tais signos e interpretantes ou premissas e conclusões]). Operada esta
distinção, Ransdell (1966, p. 91) passa a defender que o que Peirce procurou fazer nos
textos de 1867 e 1868 seria a construção de um modelo lógico da mente (e não a
descrição da atividade cognitiva do ponto de vista psicológico). De fato, com esta
distinção podemos esclarecer muitos pontos do posicionamento peirceano: por exemplo,
na série cognitiva, Peirce pretende apresentar o processo inferencial sob um ponto de
vista anti-psicologista (o que se encaixa perfeitamente na visão anti-psicologista da
lógica a favor da qual Peirce vinha advogando desde as Palestras em Harvard [1865]). O
único problema é que a proposta de Ransdell não consegue esclarecer o que, dentro do
texto, Peirce entende por continuum e o que entende por discreto. Esta interpretação de
Ransdell não esclarece por qual motivo Peirce recorre diversas vezes (sobretudo, na
última questão) ao conceito de continuum para descrever um processo que, do ponto de
vista lógico (de acordo com a distinção introduzida), é discreto. Assim, pode-se
facilmente verificar que dois dos principais problemas enfrentados por Peirce ao longo
de toda a sua carreira filosófica estão intimamente relacionados no cerne de sua teoria
da representação: a irredutibilidade da relação triádica e o conceito de continuum.
Afinal, o processo (interpretativo) contínuo de que trata a semiótica só pode, por ela ser
descrito, ao se estabelecer que a relação triádica (a tríada) entre signo, objeto e
interpretante é irredutivelmente triádica.
Entretanto, ainda que deixemos em suspenso este problema relativo ao
continuum/discreto, podemos afirma que o argumento geral de Peirce no QFCM não
seria circular (apenas o argumento particular apresentado ao final da sétima questão).
248
Na terceira seção do terceiro capítulo, na segunda seção do sétimo capítulo e também na segunda
seção (ao final) do nono capítulo.
401
Nossa interpretação é que, em geral, dentro do QFCM, Peirce não pressupôs que o
processo de cognição seria contínuo, mas, na verdade, apresentou diversas linhas
argumentativas com intuito de comprovar este ponto. Ao longo do texto, Peirce
apresentou argumentos que (juntos) sustentam a ideia de que a atividade cognitiva é
contínua (e assim poderia ser descrita pela semiótica).
Portanto, sabemos que a recursividade e também sua contraparte simétrica (o princípio
de sequência) são introduzidas na teoria peirceana da representação para garantir que o
objeto por ela descrito seja contínuo. Por sua vez, esta teoria semiótica da representação,
para cumprir seu papel dentro do projeto filosófico peirceano, requer que sejam
estabelecidas o que foi denominado de "teses elementares da semiótica". Antes de
passarmos para a próxima seção, em que pretendemos provar que estes teses
elementares, na verdade, são condições necessárias dentro do projeto filosófico do
jovem Peirce, reapresentemos (na próxima página) o quadro com as definições básicas
(e noções gerais) da semiótica peirceana com o acréscimo do princípio acima discutido.
402
Definições Básicas abreviatura
Definição de representação: uma representação é uma relação
cujo primeiro elemento é produzido para representar o primeiro
elemento de uma representação anterior (como algo que está
numa relação [de representação] com o segundo elemento [dessa
representação anterior] da mesma forma que ele [o primeiro
elemento] está numa relação [de representação] com este
segundo elemento [dessa representação anterior]).
(df_1)
Definição de signo: um signo é o primeiro elemento de uma
representação. (df_2)
Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma
representação. (df_3)
Definição de interpretante: um interpretante é o primeiro
elemento de uma representação que é produzido para representar
o primeiro elemento da representação anterior (como algo que
está numa relação [de representação] com o segundo elemento
[dessa representação anterior] da mesma forma que ele [o
interpretante] está numa [relação de representação] com este
segundo elemento [dessa representação anterior]).
(df_4)
Noções Gerais abreviatura
Noção Geral I: O interpretante é algo da natureza de uma
representação. (NG I)
Noção Geral II: O interpretante é uma representação mediadora
produzida sobre uma relação diádica (chamada de relação-base). (NG II)
Noção Geral III: O interpretante é produto de uma regra
recursiva. (NG III)
Noção Geral IV: Um signo é qualquer elemento produzido para
representar algo. (NG IV)
Noção Geral V: Um objeto é qualquer elemento representado
por um signo. (NG V)
Princípios Gerais abreviatura
Lei fundamental da razão: Não bloqueie o caminho da
investigação. (LFR)
Princípio de sequência: Toda representação requer um
interpretante. (PRS)
403
13.2 A recursividade como condição necessária
Passemos, então, nesta segunda seção, à tarefa de provar que a recursividade é condição
necessária para a sustentação das teses elementares da semiótica peirceana (e, por
extensão, para o projeto filosófico peirceano). Modificar o conceito de representação
(que é a parte essencial da semiótica) ou, ao menos, o modo como ele é caracterizado
dentro da teoria, é obviamente o primeiro passo para verificarmos que a recursividade é
uma condição necessária para a sustentação daquelas duas teses. A ideia é criar uma
teoria semiótica cujo conceito de representação não seja recursivo e verificar se, dentro
desta semiótica, é possível estabelecer as duas teses fundamentais. A definição de
representação a seguir é claramente não-recursiva: uma representação é uma relação
binária entre um signo e um objeto (i.e., um conjunto de pares ordenados cujo primeiro
elemento é o signo e o segundo elemento é o objeto).
De acordo com a definição acima apresentada, uma representação é simplesmente uma
relação binária. Para que sejamos mais precisos, a representação, neste caso, é entendida
como um par ordenado cujo primeiro elemento é o signo e o segundo elemento é o
objeto. Podemos afirmar que este é um conceito tradicional de representação em
oposição ao conceito peirceano de representação (que é não-tão-tradicional-assim).
Se, por um lado, dentro da semiótica peirceana, a concepção de processo interpretativo é
inseparável do conceito de representação, no caso desta semiótica não-peirceana que
recorre a uma definição tradicional de representação, o conceito de processo
interpretativo (que passaremos a distinguir com o símbolo ' da seguinte forma: processo
interpretativo') precisa ser construído de forma independente.
Elementos de uma semiótica baseada no conceito tradicional de
representação: semiótica não-peirceana (i.e., "não-recursiva")
Definições Básicas Abreviatura
Definição tradicional de representação (dft_1): uma
representação é um par ordenado constituído por um signo (como
primeiro elemento) e um objeto (como segundo elemento).
(dft_1)
Definição tradicional de signo (dft_2): Um signo é o primeiro
elemento de uma representação. (dft_2)
Definição tradicional de objeto (dft_3): um objeto é o segundo
elemento de uma representação. (dft_3)
Definição tradicional de processo interpretativo (dft_4): um
processo interpretativo' é uma sequência de representações
encadeadas (e este encadeamento consiste em arranjar os pares
ordenados [as representações] de modo que o segundo elemento de
um par na sequência seja o primeiro do próximo par na sequência).
(dft_4)
404
Notemos que, neste caso, representações são simplesmente pares ordenados cujo
primeiro elemento é o signo (i.e., aquilo que representa) e o segundo elemento é o
objeto (aquilo que é representado). O ponto que pretendemos estabelecer, então, é que,
com esta definição, ainda que possamos lidar com algum tipo de processo interpretativo'
(encadeando as representações, i.e., encadeando os pares ordenados, como veremos a
seguir), jamais poderíamos provar que os processos interpretativos (descritos por esta
teoria) não podem ter origem ou fim. Dentro desta teoria semiótica da representação,
sempre é possível construir um encadeamento de representações (i.e., um processo
interpretativo') que tem um ponto de origem ou um ponto final. Na semiótica peirceana,
isto simplesmente não é possível. Dado um processo interpretativo, é impossível afirmar
que há uma origem ou um ponto final. Como vimos na seção anterior.
Pelas definições básicas (acima apresentadas), dentro desta semiótica com o conceito
tradicional de representação, podemos construir a noção de processo interpretativo'
lançando mão de uma concepção de cadeia de pares ordenados. Neste caso, podemos
definir uma cadeia de pares ordenados como uma sequência de pares ordenados dentro
da qual o segundo elemento do par ordenado que está na posição a1 dentro da sequência
é o primeiro elemento do par ordenado que está na posição a2 (i.e., a posição seguinte).
Uma cadeia seria uma sequência em que uma representação termina onde a próxima (da
sequência) começa. Assim, o objeto (de um signo) é um novo signo. Este novo signo,
por sua vez, deve ter um outro objeto. Então, se imaginarmos que também este outro
objeto pode ser considerado um outro signo, então notaríamos que estamos diante de
uma cadeia. Suponha uma situação em que um elemento A seja um signo que represente
um elemento B, que, por isso, é denominado objeto (de A). Então na sequência;
encontramos na posição de signo o elemento B (que é o antigo objeto do signo A na
representação anterior) e na posição de objeto (deste signo B) um elemento C. Em
seguida, encontramos, numa terceira representação (i.e., num terceiro par ordenado) o
elemento C como signo e o elemento D como objeto. Chamemos esta cadeia de
representações de sequência S:
Esquema da sequência S (construída dentro de uma semiótica não-peirceana)
[ A - B ] ; [ B - C ] ; [ C - D ]
[Signo1 - Objeto1] ; [Signo2 = Objeto1 - Objeto2] ; [Signo3 = Objeto2 - Objeto3]
Ainda que, com esta definição, pareçamos estar próximos ao conceito de processo
interpretativo que encontramos dentro da semiótica peirceana, devemos chamar atenção
para algumas diferenças essenciais. A sequência apresentada acima tem obviamente um
ponto de origem: o elemento A (o signo1). E também há um ponto de chegada: o
elemento D (objeto 3). Esta possibilidade não está "disponível" na semiótica peirceana.
O principal ponto a ser notado é que este conceito tradicional de representação nos
permite afirmar que é possível haver uma primeira representação dentro de uma
sequência. Se tentássemos proceder dessa forma na semiótica peirceana, seríamos
405
obrigados a reconhecer que o que chamamos de primeira representação não pode ser de
fato classificada como uma representação, pois toda representação, para ser definida,
requer uma referência a uma representação anterior numa sequência.
Como o processo interpretativo' é definido como um encadeamento de representações e
cada uma das representações é um par (com um signo e um objeto), então, pelas
definições (de processo interpretativo' e de representação), não é necessário que uma
cadeia construída de acordo com tais definições seja infinita. Isto é outra forma de
afirmar que este corpo teórico admite a existência de uma cadeia de representações que
seja finita. Como as definições básicas desta semiótica não-peirceana nos permitem
construir uma cadeia que seja finita, i.e., que tenha um primeiro e um último par, então
a construção de uma cadeia com estas características deve ser o primeiro passo de cada
uma das provas que apresentaremos a seguir. Portanto, o primeiro passo em cada um
dos argumentos que apresentaremos a seguir é justamente a hipótese relativa a
existência de uma certa sequência de representações (que cumpre a propriedade de ter
um primeiro e um último elemento). A partir da existência desta sequência (que é
permitida dentro desta teoria não-peirceana), provaremos, dentro dos argumentos 5 e 6,
respectivamente a proposição que "há (ao menos) um signo que não é objeto" e a
proposição que "há (ao menos) um objeto que não é signo"249
. A partir dessas
proposições, estamos aptos a provar, ainda nestes mesmos argumentos 5 e 6, a negação
das teses elementares da semiótica peirceana. O objetivo geral dessas provas
(apresentadas nos argumentos 5 e 6) é mostrar que, dentro desta teoria semiótica não-
peirceana ("não-recursiva"), podemos derivar as negações das teses elementares (da
semiótica peirceana). Denominemos novamente de sequência S esta cadeia de pares
ordenados (representações) que possui o primeiro e o último elemento.
Argumento 5 - para o estabelecimento da negação da primeira tese elementar da
semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da representação
Hipótese: suponha a existência de uma sequência S cujo
primeiro termo seja o par ordenado [a,b], o segundo termo da
sequência seja o par ordenado [b,c] e o último termo da
sequência seja o par ordenado [c,d] e, além disso, todos os
termos da sequência S são pares ordenados em que o primeiro
elemento é um signo e o segundo elemento é um objeto.
(hip)
249
Estas proposições são as equivalentes, dentro desta semiótica não-peirceana, às teses de Savan dentro
da semiótica peirceana.
406
Trecho 5.1 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Toda representação é um par ordenado constituído
por um signo como primeiro elemento e um objeto como
segundo elemento.
(dft_1)
Premissa2: Todos os termos da sequência S são pares ordenados
em que o primeiro elemento é um signo e o segundo elemento é
um objeto.
(hip)
Conclusão: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma
representação. (prp_5.1)
Trecho 5.2 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Todo processo interpretativo' é uma sequência de
representações encadeadas (e este encadeamento consiste em
arranjar os pares ordenados [as representações] de modo que o
segundo elemento de um par na sequência seja o primeiro do
próximo par na sequência)
(dft_4)
Premissa2: A sequência S é uma sequência de representações
encadeadas. (hip)
Conclusão: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)
Trecho 5.3 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: O primeiro termo da sequência S é a representação
(par ordenado) [a,b]. (hip)
Conclusão: A sequência S possui uma primeira representação. (prp_5.3)
Trecho 5.4 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)
Premissa2: A sequência S possui uma primeira representação. (prp_5.3)
Conclusão: Algum processo interpretativo' possui uma primeira
representação. (prp_5.4)
407
Trecho 5.5 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Algum processo interpretativo' possui uma primeira
representação. (prp_5.4)
Conclusão:Algum primeiro elemento de uma representação não
é um segundo elemento de uma representação (anterior) (prp_5.5)
Trecho 5.6 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Todo primeiro elemento de uma representação é um
signo. (dft_2)
Premissa2: Algum primeiro elemento de uma representação não
é um segundo elemento de uma representação (anterior). (prp_5.5)
Conclusão: Algum signo não é um segundo elemento de uma
representação (anterior). (prp_5.6)
Trecho 5.7 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Todo segundo elemento de uma representação é um
objeto. (dft_3)
Premissa2: Algum signo não é um segundo elemento de uma
representação (anterior). (prp_5.6)
Conclusão: Algum signo não é um objeto (de uma representação
anterior). (prp_5.7)
Trecho 5.8 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Algum signo não é um objeto (de uma representação
anterior). (prp_5.7)
Conclusão: Há (ao menos) um signo que não é objeto. (prp_5.8)
408
Trecho 5.9 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Há (ao menos) um signo que não é objeto. (prp_5.8)
Conclusão: Não é o caso em que 'não há primeiro signo' (prp_5)
Estabelecida, então, a negação da primeira tese da semiótica peirceana ("não há
primeiro signo") dentro desta semiótica não-peirceana, passemos para negação da
segunda tese (da semiótica peirceana).
Argumento 6 - para o estabelecimento da negação da segunda tese elementar da
semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da representação
Hipótese: suponha a existência de uma sequência S cujo
primeiro termo seja o par ordenado [a,b], o segundo termo da
sequência seja o par ordenado [b,c] e o último termo da
sequência seja o par ordenado [c,d] e, além disso, todos os
termos da sequência S são pares ordenados em que o primeiro
elemento é um signo e o segundo elemento é um objeto.
(hip)
Os dois primeiros trechos da argumentação que segue são iguais ao da argumentação
anterior (por este motivo, mantivemos a numeração das abreviaturas, pois tratam-se das
mesmas proposições mobilizadas nos raciocínio anterior).
Trecho 6.1 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Toda representação é um par ordenado constituído
por um signo como primeiro elemento e um objeto como
segundo elemento.
(dft_1)
Premissa2: Todos os termos da sequência S são pares ordenados
em que o primeiro elemento é um signo e o segundo elemento é
um objeto.
(hip)
Conclusão: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma
representação. (prp_5.1)
409
Trecho 6.2 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Todo processo interpretativo' é uma sequência de
representações encadeadas (e este encadeamento consiste em
arranjar os pares ordenados [as representações] de modo que o
segundo elemento de um par na sequência seja o primeiro do
próximo par na sequência)
(dft_4)
Premissa2: A sequência S é uma sequência de representações
encadeadas. (hip)
Conclusão: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)
Trecho 6.3 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: O último termo da sequência S é a representação (par
ordenado) [c,d]. (hip)
Conclusão: A sequência S possui uma última representação. (prp_6.3)
Trecho 6.4 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)
Premissa2: A sequência S possui uma última representação. (prp_6.3)
Conclusão: Algum processo interpretativo' possui uma última
representação. (prp_6.4)
Trecho 6.5 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Algum processo interpretativo' possui uma última
representação. (prp_6.4)
Conclusão:Algum segundo elemento de uma representação não
é um primeiro elemento de uma representação (subsequente) (prp_6.5)
410
Trecho 6.6 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Todo segundo elemento de uma representação é um
objeto. (dft_3)
Premissa2: Algum segundo elemento de uma representação não
seja um primeiro elemento de uma representação (subsequente). (prp_6.5)
Conclusão: Algum objeto não é um primeiro elemento de uma
representação (subsequente). (prp_6.6)
Trecho 6.7 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Todo primeiro elemento de uma representação é um
signo. (dft_2)
Premissa2: Algum objeto não é um primeiro elemento de uma
representação (subsequente). (prp_6.6)
Conclusão: Algum objeto não é um signo (de uma representação
subsequente). (prp_6.7)
Trecho 6.8 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Algum objeto não é um signo (de uma representação
subsequente). (prp_6.7)
Conclusão: Há (ao menos) um objeto que não é signo. (prp_6.8)
Trecho 6.9 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese
elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da
representação
Premissa: Há (ao menos) um objeto que não é signo. (prp_6.8)
Conclusão: Não é o caso em que 'não há último signo' (prp_6)
O único ponto que alteramos na base desta semiótica não-peirceana é a definição de
representação. E isto já foi suficiente para tornar possível a construção de certos objetos
dentro da teoria: por exemplo, processos interpretativos' (i.e., sequências de
representações) que possuem um primeiro ou um último elementos (ou ambos). Este
tipo de objeto não pode ser construído dentro da semiótica peirceana. Esta teoria não
permite. Como a partir desta caracterização não-recursiva do conceito de representação,
411
conseguimos derivar a negação das teses elementares, então a caracterização recursiva
do conceito de representação é uma condição necessária para o estabelecimento das
teses elementares.
Por sua vez, o estabelecimento das teses elementares é uma condição necessária para
que o processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) consiga cumprir seu
papel dentro do projeto filosófico: explicar como se tornam possíveis os raciocínios
sintéticos. Se nos recordarmos que nesta explicação Peirce recorre à ideia de que o
processo interpretativo se direciona para um ponto-limite e como para seguir
(eternamente) em direção a este ponto-limite o processo deve passar por uma
quantidade infinita de signos/interpretantes, então notaremos que não há como afirmar
que há um número finito de signos/interpretantes (no processo interpretativo conforme
descrito pela semiótica peirceana).
O problema é que há, ao menos, uma interpretação que pode ser feita a partir do
estabelecimento das duas teses elementares que não segue na direção intencionada por
Peirce em seu projeto filosófico. É possível se apresentar uma interpretação segundo a
qual, embora não haja primeiro, nem último signo dentro do processo interpretativo, há
um número finito de elementos disponíveis para ocuparem estas posições (dentro do
processo). Ora, neste caso, seriam verdadeiras as duas teses elementares, mas o processo
interpretativo funcionaria com um número finito de elementos. Esta interpretação é
aquela segundo a qual o processo interpretativo é circular. É óbvio que, neste caso, o
processo interpretativo jamais poderia se dirigir para um ponto-limite (externo à série),
mas ele retornaria sempre para algum ponto anterior na sequência. No lugar da
convergência, a teoria descreveria uma espécie de prisão.
Esta interpretação arruinaria todo o projeto filosófico elaborado pelo jovem Peirce, pois,
sob esta perspectiva, o processo interpretativo (descrito pela semiótica) seria circular e,
por este motivo, não poderia convergir para o ponto-limite que, dentro da teoria,
explicaria a possibilidade da síntese. Para tornar impossível, seria necessário estabelecer
uma terceira tese dentro da semiótica peirceana (além das duas elementares). No nono
capítulo, denominamo-la de tese adicional.
Tese adicional
Tese_3 da semiótica --> Todo processo interpretativo tem um número infinito de
elementos.
Aparentemente, esta tese poderia ser derivada das duas teses elementares. Entretanto, o
que, de fato, pode ser destas derivado é a proposição segundo a qual "todo processo
interpretativo tem um número infinito de signos/interpretantes", o que é diferente de
uma proposição que afirme haver (em todo processo interpretativo) um número infinito
de elementos que ocupam a posição de signo e interpretante. O número de
412
signos/interpretantes (num processo interpretativo) pode ser obviamente diferente do
número de elementos disponíveis para ocuparem as posições de signos e interpretantes
(neste mesmo processo). Se for estabelecido que o primeiro desses números é infinito (e
foi o que fizemos nesta seção), isto não implica que o segundo desses números também
tenha que ser infinito. Para barrar esta interpretação que entende o processo
interpretativo como circular precisamos da tese segundo a qual "todo processo
interpretativo tem um número infinito de elementos". Neste ponto, aproximamo-nos dos
limites de nossa exposição. Intuitivamente sabemos que esta tese é verdadeira dentro da
semiótica, mas não podemos demonstrá-la a partir do "material" que temos disponível.
Isto significa que estamos próximos dos limites do que podemos sustentar com
segurança a partir das análises que apresentamos nas últimas centenas de páginas. Para
estabelecer esta tese_3 da semiótica ("todo processo interpretativo tem um número
infinito de elementos"), seria preciso desenvolver uma análise muito detalhada do
segundo e terceiro artigos da série cognitiva e examinar mais de perto a natureza deste
processo de convergência previsto pela semiótica de Peirce.
Ainda que estejamos impedidos de apresentar uma demonstração mais formal desta tese
que é capaz de impedir esta interpretação catastrófica do funcionamento circular da
semiótica peirceana250
, optamos por dedicar a última seção deste último capítulo à tarefa
de aduzir razões para não se aderir a esta interpretação. Ao contrário de grande parte
das semióticas do século XX, não é justo que se diga que semiótica peirceana é um
corpo teórico projetado para permanecer eternamente de costas para o mundo.
250
Não seria nenhuma surpresa caso se descubra que, "por baixo" desta interpretação (inclusive,
possibilitando-a), esteja um problema muito elementar (de todo o pensamento peirceano) que é a
distinção discreto/continuum.
413
13.3 A Hipótese da prisão linguística
Não são raros os artigos ou livros que nos oferecem estudos comparativos entre a
semiótica peirceana e aquela que deve ser considerada a semiótica do século XX: a
estruturalista. Num primoroso livro, Jorgen Dines Johansen (1993) escolheu, como título
da parte que trata especificamente de semiótica estruturalista, a seguinte expressão:
"signos sem mundos". Esta expressão é bastante feliz, pois o ponto de distinção é mesmo
o fato de a semiótica peirceana descrever formalmente um processo (interpretativo) que
foi mobilizado dentro do projeto filosófico do jovem Peirce para explicar como o sujeito
cognoscente (entendido como uma espécie de comunidade indefinida de investigadores)
consegue obter conhecimento sobre o mundo. A semiótica peirceana está, dentro do
referido projeto filosófico, voltada para o mundo. Como o modelo sígnico (diádico)
mobilizado por Saussure em sua obra "Curso de Linguística Geral" (e também em seu
projeto semiológico) exclui o objeto de referência, não é nenhuma surpresa que as
reflexões dos representantes mais filosofantes da corrente estruturalista que atravessou o
século tenham desaguado na concepção de "prisão linguística". O que não é natural, nem
pode ser admitido pelos estudiosos dos escritos de Peirce é que algumas interpretações
levem a semiótica peirceana para o mesmo destino.
Ao longo do século XX, o termo "semiótica" (bem como seus congêneres) esteve
associado com mais frequência ao nome de Ferdinand de Saussure do que ao nome de
Peirce. A semiótica saussureana parece ter agido no século XX como uma espécie de guia
interpretativo, algo como uma interpretação dominante. De acordo com os lamentos de
alguns peirceanos mais ciosos, durante quase todo este século, mesmo aqueles que
optaram por estudar a obra de Peirce tomaram como norte a concepção de semiótica
elaborada por Saussure e passaram, aos poucos, a projetar intenções próprias do projeto
semiológico saussuriano (ou a ele atribuídas por seguidores) no projeto filosófico
peirceano. Em seu livro sobre a teoria geral dos signos de Peirce, Thomas Short se queixa,
já na primeira linha, deste problema.
A teoria peirceana dos signos, ou semeiótica [semeiotics], mal interpretada
por tantos, caiu nas mãos das pessoas erradas. Esta teoria foi tomada por um
exército interdisciplinar de semioticistas cujas visões e intenções são
antagônicas às do próprio Peirce e, enquanto isso, ela tem sido evitada por
aqueles filósofos que, mais próximos aos propósitos de Peirce, estão
trabalhando exatamente nos problemas para os quais a semiótica foi
desenvolvida para solucionar.
(Short, 2007, prefácio, p. XI)
É possível que concordemos com o que Short afirma na primeira parte da primeira frase
do trecho acima transcrito. Em geral, parece-nos que Peirce tem sido mal interpretado,
porém não acreditamos que o problema esteja na natureza interdisciplinar do exército de
intérpretes ao qual Short se refere. Aliás, quem não corre o risco de ser mal interpretado?
Por este motivo, geralmente, filósofos são sepultados em valas de dimensões maiores do
414
que aquelas reservadas aos demais mortais. Isto faz com que haja margem de manobra
dentro do túmulo para que se possa falar bastante besteira acerca de sua obra pelos
séculos que se seguirem à sua morte. Numa vala generosa, o filósofo pode revirar-se,
debater, espernear à vontade e sua inquietação não irá atrapalhar o descanso dos vizinhos.
Para isto, não parece haver remédio. Em geral, falar besteira é uma propriedade associada
ao fenômeno antropológico. A internet vem paulatinamente conseguindo provar esta tese.
Em particular, no ambiente acadêmico, interpretações estapafúrdias de obras filosóficas (e
mesmo de teorias científicas) têm aparecido com cada vez mais frequência, o que parece
ser resultado da industrialização da academia: implementação de sistemas de pontuação
puramente quantificacionais, índices de produtividade, "quadrilhas citacionais" (este é um
tipo de crime de lesa-humanidade que consiste em produzir artigos acadêmicos de
baixíssima qualidade somente com a finalidade de citar outro artigo do mesmo tipo
produzido por outro membro da mesma quadrilha), etc.. O desalento é que esta "era do
paper"251
está apenas em seus primeiros dias e a expectativa é que ela nos reserve ainda
muitas surpresas desagradáveis no futuro.
Ainda que concordemos com a afirmação de que Peirce tem sido, em geral, mal
interpretado, não podemos concordar com a ideia de que sua obra tenha "caído nas mãos
das pessoas erradas". Um livro tão respeitável não poderia ter começado de forma tão
desrespeitosa. Dificilmente, pode ser afirmado de forma categórica que um grupo de
pessoas detém ou deveria deter o "monopólio interpretativo" de alguma obra. Exceção
deve ser feita para algumas seitas. Acreditamos que esta frase inicial do livro de Short (até
por sua localização dentro do texto) não deve ser entendida literalmente. É um recurso
retórico. O tom agressivo destas primeiras linhas não combina com o comportamento que
esperamos de um intérprete do porte de Thomas Short. Entendido literalmente, esta frase
seria fruto de uma supersimplificação de uma realidade que está longe de ser simples. A
expressão "cair nas mãos das pessoas erradas" é o tipo de frase que esperamos ouvir
naquelas histórias infantis sobre super-heróis em que exageramos os traços
comportamentais das "pessoas certas" e os das "pessoas erradas" justamente para que a
criança possa distinguir comportamento canônico de comportamento desviante. Por
exemplo, é comum neste tipo de narrativa ouvirmos da boca de um personagem a frase
"este artefato pode cair nas mãos das pessoas erradas" logo que se descobre que os
cientistas desenvolveram um novo armamento que possui um poder de destruição muito
maior ao das armas disponíveis até então.
O exército interdisciplinar (cujo auxílio Short despreza) foi recrutado nas mais distantes
áreas das ciências e humanidades e é natural que cada um de seus membros carregue, de
sua "terra natal", de sua unidade, algumas projeções, intenções, estratagemas específicos
para o campo de batalha. Se, por um lado, concordamos com a ideia de que devemos nos
esforçar para distinguir o pensamento peirceano de outras abordagens com as quais ele
tem sido "confundido sistematicamente", por outro lado, não é possível menosprezar
certas interpretações ou desenvolvimentos (da obra peirceana) provenientes de áreas
muito distantes da filosofia. Não podemos, a priori, depreciar o auxílio deste exército
251
ou "civilização do paper" (Cf. Prado Jr., 2004, p. 24)
415
interdisciplinar. Comecemos pelas distinções e passemos (ao final desta seção) para as
justificativas que nos levam a acreditar que a semiótica é, por natureza, interdisciplinar.
Se focalizarmos apenas a relação entre Saussure e Peirce, notaremos que a distância entre
os dois é abissal.
De fato, o projeto filosófico peirceano cujo escopo é construir um modelo lógico da
mente para explicar a possibilidade de validação dos raciocínios sintéticos está muito
distante do projeto (que veio a público em 1916 e foi) sugerido por Ferdinand de
Saussure. Ainda que enxerguemos uma afinidade entre ambos os projetos pelo fato de
Peirce ter proposto uma espécie de teoria social da lógica (cf. CP 5.341[1869]) e de
Saussure ter preestabelecido que a semiologia deveria ser tratada como uma ciência que
estudaria "a vida dos signos no seio da vida social" (Saussure, 2006 [1916], p. 24), pode-
se argumentar que tal coincidência não pode nos impedir de notar que o projeto peirceano
pretende responder a um problema constituído a partir dos debates filosóficos acerca de
questões epistemológicas realizados dentro do período moderno e o mesmo não pode ser
dito do projeto saussuriano. A preocupação central de Peirce é arranjar suas próprias
peças para colocá-las no tabuleiro da epistemologia252
. Na verdade, o que não é incomum
em filosofia, Peirce pretende utilizar certas peças e alguns deslocamentos de perspectiva
para redesenhar o próprio jogo. Em seu sistema filosófico, a semiótica passa a ocupar uma
posicão central253
.
Por sua vez, como já afirmamos, a preocupação teórica de Saussure é explicar um
fenômeno linguístico a partir de um modelo diádico de signo (cujos elementos são:
significante e significado). A teoria da representação que está por trás da abordagem
saussuriana é uma espécie de “semântica de listagem”: a cada significante corresponde
um significado (a cada representante corresponde um representado). Significado, segundo
esta perspectiva, é uma entidade, algo como um conteúdo mental ou, nos termos de
Saussure (2006 [1916], p.80), um conceito. Ao contrário das teorias da representação que
"deixam" o significado se entificar, a semiótica peirceana nos apresenta uma concepção
de significado como um fluxo. Na teoria peirceana da representação, não podemos nos
referir ao significado como se fosse algo, como se fosse uma entidade mental ou um
estado interno, por exemplo. Aliás, levadas às últimas consequências, dentro das teorias
peirceanas, não há conteúdos mentais, estados internos, etc. Por este motivo, a teoria da
representação mobilizada dentro da semiótica peirceana é inseparável da ideia fluxo.
Começamos nosso texto (há mais de quatrocentas páginas) tentando explicar o "sucesso"
da semiótica saussureana e de teorias semânticas assemelhadas. Nossa hipótese inicial é
que tais propostas teóricas são simples. Ainda que alguns dos seguidores de Saussure
tenham prestado inestimáveis contribuições no sentido de torná-la cada vez mais
complexa, no fundo, o objetivo do projeto semiológico de Saussure (comparado ao do
252
Ainda que Peirce tenha travado suas principais batalhas no campo da epistemologia, como já nos
referimos (também em nota), para Hookway (1992 [1985], p. 18), as intenções de Peirce na série
cognitiva eram, na verdade, metafísicas. 253
Deely denominou a concepção de semiótica que Peirce desenvolveu de "a grande visão" (Delly, 1996,
p. 46).
416
projeto peirceano) continuou humilde: explicar fenômenos semânticos não-linguísticos a
partir de um modelo desenvolvido para explicar fenômenos linguísticos. E ainda que
derrubem nossa hipótese inicial de que estas propostas teóricas eram, em si mesmas,
simples, podemos continuar argumentando que elas o eram relativamente, pois algumas
das teorias mobilizadas por Peirce em seu projeto filosófico dependem de deslocamentos
de perspectivas suficientemente complexos (como a passagem do sujeito cognoscente
individual para o coletivo ou a construção de uma concepção pragmática de realidade [ou
de verdade]). No primeiro capítulo, defendemos a tese de que a semiótica peirceana é algo
mais que complexa. Ela é essencialmente "estranha". A ideia de fluxo que reside no
coração da semiótica peirceana é difícil de ser aceita. Esta ideia parece ter um efeito
atordoante. De fato, nas outras semióticas e outras teorias mais tradicionais da
representação, não se lida com um conceito que vem desde os gregos dando forma aos
mais embaraçantes paradoxos: o conceito de infinito. Como já nos referimos no capítulo
anterior (em sua primeira seção), é provável que a fonte desta interpretação de Short que
pretendemos criticar nesta seção seja justamente uma aversão com relação a este conceito.
Short se queixa do exército de semioticistas que levaram Peirce para terras distantes para
lutar numa guerra que não era sua, mas o próprio Short parece ter problemas em seguir
Peirce nalgumas batalhas que o filósofo norte-americano resolveu entrar (por força de seu
projeto filosófico). Aparentemente, Short está impossibilitado de aceitar que, nos escritos
do final da década de 1860, Peirce decide travar alguns combates para conquista de
determinados territórios específicos cujo domínio julgava estratégico para todo o seu
projeto. Um desses territórios é o conceito de continuum que Peirce mobilizou na série
cognitiva (e em momentos posteriores) para lidar com problemas relativos ao conceito de
infinito. Acreditamos que Peirce tomou esta decisão, pois entendeu, desde muito cedo,
que o conceito de infinito não poderia ser eliminado do horizonte teórico de seu sistema
filosófico. Short reluta em aceitar que o progressus e também regressus infinitos são
constitutivos da semiótica peirceana.
O problema com o posicionamento de Short é que o seu entendimento do projeto filosófico
do jovem Peirce está muito mais próximo de teses que são mais facilmente encontradas em
abordagens estruturalistas do que parece à primeira vista. Mais de vinte anos antes desta
obra da qual retiramos o trecho acima citado, Short já tinha desenvolvido a tese de que o
fato de o processo interpretativo descrito pela semiótica (proposta pelo jovem Peirce) ser
necessariamente infinito criaria uma espécie de "prisão semiótica na qual cada signo
significa apenas aquilo que outro signo o faz significar" (Short, 1986, p. 103).
Nesta seção, pretendemos argumentar, por diversas vias, que este entendimento do
processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) como algo que deve funcionar
como um aprisionamento semiótico segue na direção contrária àquela intencionada por
Peirce em seu projeto filosófico. Como a semiótica peirceana é justamente a tentativa de
descrição de um processo constituído por uma série infinita de representações cujo limite
está fora da própria série, a expressão "prisão semiótica" se aproxima perigosamente do
que geralmente é denominado de uma "contradição em termos", vamos nos referir a esta
417
ideia que está presente na interpretação de Short com um nome que consideramos mais
apropriado: prisão linguística254
.
A interpretação de Short a respeito da prisão linguística (o que denominou de "prisão
semiótica") parece estar relacionada a uma leitura do texto peirceano que atribui duas
características básicas ao processo interpretativo.
Características do processo interpretativo de acordo com a hipótese da prisão linguística
C1) o processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) possui um número
finito de elementos disponíveis para ocuparem a posição de signos/interpretantes.
C2) o processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) é puramente
mecânico.
A atribuição ao processo interpretativo da segunda dessas características é uma espécie de
"leitura behaviorista" do texto peirceano. De acordo com esta leitura, um signo específico
seria completamente determinado por um signo anterior que ele interpreta. Esta
interpretação seria puramente mecânica, pois uma regra interpretativa agiria sempre para
fazer com que o signo x tivesse como interpretante o signo y, ou seja, a regra
interpretativa sempre faria com que o signo x fosse seguido (dentro da sequência) pelo
signo y.
Já a atribuição ao processo interpretativo da primeira dessas característica é uma espécie
de "leitura linguística" do texto peirceano. Se entendermos que a semiótica estuda signos
que estão dentro de uma língua ou de um código específico, teremos que concluir que a
semiótica estuda signos que funcionam dentro de sistemas cujo elementos significantes
são finitos (por exemplo, dentro da língua portuguesa, há um número finito de vocábulos).
Assim, caso tentemos utilizar este conjunto finito de elementos para construir um
processo interpretativo sem último signo (o que é uma exigência teórica do projeto
filosófico peirceano), então, teríamos, a partir de determinado momento, que começar a
repetir signos.
Quando alguém resolve defender a hipótese de que o processo interpretativo (descrito
pela semiótica peirceana) é uma espécie de prisão linguística (ou, nos termos de Short,
"prisão semiótica") é possível que o faça de dois modos: sustentando uma versão forte ou
uma versão fraca desta hipótese. Na versão forte desta hipótese, entende-se que o
processo interpretativo possui a primeira característica acima apresentada ("possuir um
número finito de elementos que possam ser utilizados como signo") e também,
adicionalmente, a segunda delas ("ser um procedimento puramente mecânico"). Neste
caso, o processo interpretativo, se for levado suficientemente longe, começará a utilizar
signos repetidos (i.e., signos que já ocorreram antes no processo), que terão como
interpretantes também signos que já ocorreram antes. Esta é a versão forte da hipótese,
254
cf. uso dessa expressão por Frederic Jameson (1972)
418
pois, neste caso, o processo interpretativo necessariamente deve começar a se repetir, a
"andar em círculos" (pois, esgotaram-se os signos) e seria justamente esta repetição que
caracterizaria a prisão (referida pelo nome da hipótese). Em sua versão fraca, entende-se
que o processo interpretativo não possui a primeira característica (C1), mas possui apenas
a segunda delas (C2). Assim, mesmo que haja um número infinito de elementos
disponíveis para serem signos/interpretantes (o que é exigido pela semiótica peirceana),
por algum motivo particular, um processo interpretativo específico pode começar a se
repetir e isto caracterizaria a tal prisão linguística. Esta é a versão fraca da hipótese, pois,
ao contrário da anterior, o processo interpretativo não deve necessariamente começar a se
repetir. Se ele o fizer, isto ocorrerá por motivos particulares, por acidente e não por
necessidade.
Nosso objetivo nas próximas páginas é argumentar que o processo interpretativo
conforme descrito pela semiótica peirceana elaborada ao final da década de 1860 só pode
ser considerado uma prisão linguística sob esta segunda versão da hipótese, a versão
fraca. O problema é que, como veremos, esta versão fraca é contraditória. Para captar de
modo mais formal a ideia de prisão (referida nas duas versões dessa hipótese), vamos
utilizar a noção de looping255
.
Em primeiro lugar, vejamos o caso em que o processo interpretativo é entendido como
algo que possui simultaneamente as duas características acima mencionadas. Se
interpretarmos que os signos funcionam como palavras e, mais especificamente, se
entendermos que os signos são vocábulos estabelecidos dentro de um código
(característica C1 acima mencionada), então temos que aceitar a seguinte proposição: há
um número finito de signos. Se há um número finito de signos e se levarmos
suficientemente longe um processo interpretativo, então, cedo ou tarde, precisaríamos
recorrer a signos que já foram utilizados em passos anteriores (desse processo
interpretativo). Neste caso, se um signo específico sempre tiver como sucessor, dentro da
sequência, o mesmo signo (característica C2 acima mencionada), então entraríamos num
looping e o processo interpretativo nunca teria fim. Notemos que, se existe um número
finito de signos, então, para que haja um processo interpretativo infinito, é necessário
pressupor que tal processo seja circular.
Nas semióticas não-peirceanas (i.e., aquelas cujo conceito de representação não é
caracterizado recursivamente), não é difícil de se "enxergar" um processo interpretativo'
circular como o descrito acima. Suponhamos que existem apenas quatro signos numa
linguagem (ou num código): A, B, C e D. Podemos construir o seguinte processo
interpretativo' que, embora possua um número finito de elementos, continua eternamente.
Esquema da sequência S2 (construída dentro de uma semiótica não-peirceana)
[ A - B ] ; [ B - C ] ; [ C - D ] ; [ D - A ] ...
[Signo1 - Objeto1] ; [Signo2 = Objeto1 - Objeto2] ; [Signo3 = Objeto2 - Objeto3 ]; [Signo4 = Objeto3 - Objeto4] ...
255
Em computação, denomina-se loop ou looping uma sequência de instruções que se repete
continuamente até que determinada condição seja cumprida.
419
Notemos que há quatro representações (quatro pares ordenados) neste processo
interpretativo, pois, a partir da quarta representação, entramos num looping e voltamos
para a primeira representação (o par A-B). Este looping pode ser representado
esquematicamente da seguinte forma:
A-B; B-C; C-D; D-A; A-B; B-C; C-D; D-A; A-B; B-C; C-D; D-A; A-B; B-C; C-D; D-A; ...
A ideia de uma prisão linguística parece consistir justamente no fato de se entrar num
looping. De acordo com esta ideia, a linguagem funcionaria como uma prisão, pois
qualquer signo estaria destinado a nos remeter a outro signo sem que jamais
chegássemos a qualquer outra coisa que não fosse um signo (que deveria nos remeter a
outro signo...). Também na semiótica peirceana, sabemos que todo signo remete a um
outro signo (aliás, todo signo é determinado por um signo anterior e determina um
signo posterior). Entretanto, o que passaremos a tentar mostrar é que nada está mais
distante da semiótica peirceana do que esta ideia de prisão linguística, pois a teoria
desenvolvida por Peirce afirma que há um ponto de fuga no processo interpretativo.
Como vimos, a solução teórica que Peirce pretende apresentar nos escritos do final da
década de 1860 é que há um processo de convergência, a série de signos converge para
um limite externo à própria série. No processo de aproximação deste limite, passa-se
por uma quantidade infinita de signos/interpretantes. De acordo com as linhas gerais da
semiótica peirceana, deve haver necessariamente um número infinito de elementos num
processo interpretativo256
.
Ora, a ideia de prisão linguística vai na direção contrária. Quando afirmamos que
estamos presos nalgum local, pressupomos que haja algo (tal como paredes, muros,
grades, etc.) que, de alguma forma, limite nossos movimentos. Neste caso, estamos
condenados a ter que repetir nossos passos. Dentro de uma cela, por exemplo, podemos
passar o resto da vida andando. Entretanto, se andarmos o suficiente notaremos que, em
algum momento, começamos a repetir passos e caminhos anteriores e, na verdade, nossa
"andança" não nos leva a lugar nenhum (que seja externo à prisão).
Aquele que interpreta dessa forma o processo interpretativo (descrito pela semiótica
peirceana) está implicitamente comparando o conceito de signo com a noção de palavra
ou vocábulo (pertencente a um código). Na segunda seção do sétimo capítulo, utilizamos
o exemplo do dicionário para nos referirmos à tese peirceana de que um signo remete
sempre a outro signo (i.e., um signo tem como interpretante outro signo). Este exemplo
serve somente para nos referirmos a esta característica específica do processo
interpretativo (esta noção de que há um primeiro elemento que, para representar um
segundo elemento, sempre deve se remeter a outro elemento numa sequência [i.e., um
terceiro]), entretanto, sob outras perspectivas, a palavra e o dicionário são péssimos
256
Como afirmamos ao final da seção anterior, disso sabemos intuitivamente, porém para demonstrar de
modo mais formal seria necessário aguardar uma análise minuciosa dos dois últimos textos da série
cognitiva.
420
modelos para se interpretar o conceito peirceano de processo interpretativo. O motivo é
simples: este modelo pode nos dar a impressão de que os signos, como palavras, são
unidades discretas e, além disso, existem num número finito. Note que, no caso do
dicionário, sabemos de antemão que o número de elementos (vocábulos) é finito (embora
seja numeroso).
Tanto no dicionário, em particular, como no sistema linguístico, em geral, teríamos um
número finito de elementos, então, nestes casos, o fato de um signo só remeter a outro
signo nos colocaria numa espécie de prisão que, por ser vasta, nos daria a impressão de
estarmos livres. Porém, para que pudéssemos aplicar esta noção de prisão linguística à
semiótica peirceana seria necessário, como veremos adiante, pressupor que se trataria de
uma prisão infinita. Uma espécie de prisão sem grades ou muros. Seria um
"aprisionamento" que nos permitiria movimentarmos como bem entendermos, irmos para
onde quisermos. Isto é contraditório, pois este sistema prisional não cumpriria sua função
básica, que seria privar o indivíduo de sua liberdade (de ir e vir). Não acreditamos que
uma prisão dessas seja concebível, exceto metaforicamente. Longe de apresentar uma
leitura cientificista do texto peirceano, se observarmos que alguns dos maiores entusiastas
deste modelo da prisão linguística são pensadores contemporâneos com uma forte
inclinação para produzir textos repletos de metáforas e oximoros desconcertantes,
notaremos que este tipo de interpretação talvez não seja tão adequada à obra de um
filósofo que pretendia "resgatar o bom navio da Filosofia para o serviço da ciência das
mãos dos piratas sem lei da literatura" (CP 5.449 [1905])257
. Analisemos mais de perto a
relação entre esta ideia da prisão linguística e a semiótica peirceana.
Se observarmos na teoria peirceana da representação, qual seria o papel específico da
recursividade dentro desta teoria? A recursividade cria a necessidade de que qualquer
representação (entre dois elementos) recorra a um terceiro elemento. É indispensável a
introdução de um terceiro elemento C para que um primeiro elemento A represente um
segundo elemento B. Mas, este C é ele mesmo uma representação (ele é um interpretante
da representação anterior, porém é também um signo de uma representação posterior). Por
este motivo, ele vai exigir a entrada em cena de um quarto elemento D. E este elemento
D, por sua vez, vai exigir a entrada em cena de um quinto elemento E. Para fazermos com
que a semiótica peirceana caiba nesta hipótese da prisão linguística, teremos que fazer a
seguinte suposição: "há sempre um número finito de elementos disponíveis para um
processo interpretativo qualquer".
Se houver um número finito de elementos disponíveis para um processo interpretativo
específico, então, a partir de determinado momento, teremos que começar a repetir os
elementos (caso contrário teríamos que admitir que há um último elemento, há um último
signo [que não produz interpretante algum] e a teoria peirceana não permite que se admita
isto). Assim, se houver um número finito de elementos à disposição, algum elemento em
posição bem adiantada na sequência vai ter como interpretante um elemento que já tinha
257
No original: "(...) rescue the good ship Philosophy for the service of Science from the hands of lawless
rovers of the sea of literature (...)".
421
ocorrido antes na sequência. Neste caso, os elementos que se seguirão a este elemento
repetido também já vão ter aparecido antes. Neste caso, entraríamos num looping.
Esquema da sequência S3 (construída dentro da semiótica peirceana)
A representa B - produz como interpretante C
C representa A (como representante de B) - produz como interpretante D
D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E
E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F
F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D
E a partir desse ponto, como o interpretante do elemento F é um elemento que já tinha
ocorrido na sequência ( D ), então entra-se num looping. Este looping pode ser
enxergado mais facilmente nos dois seguintes esquemas.
Esquema II da sequência S3 (construída dentro da semiótica peirceana)
A representa B - produz como interpretante C
C representa A (como representante de B) - produz como interpretante D
D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E
E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F
F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D
| D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E
| E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F
| F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D
| D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E
| E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F
| F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D
Esquema III da sequência S3 (construída dentro da semiótica peirceana)
A - C - D - E -F
A - C - D - E -F - D - E -F - D - E -F - D - E -F - D - E -F ...
422
O problema com raciocínio acima desenvolvido é que partirmos da seguinte suposição:
"se houver um número finito de elementos disponíveis para este processo interpretativo
(...)". Esta suposição é justamente o que afirma aquela proposição relativa à característica
C1 acima mencionada. Não podemos aceitar esta suposição, pois, como afirmamos no
final da seção anterior, é possível provar a tese segundo a qual, "num processo
interpretativo, há um número infinito de elementos" a partir das duas teses elementares e
de um exame do que Peirce afirma acerca da convergência (para o limite) nos dois
últimos artigos da série cognitiva.
Entretanto, antes de descartarmos esta hipótese, podemos testá-la em sua versão mais
fraca: o processo interpretativo pode entrar em looping. Neste cenário, vamos supor que
há um número infinito de elementos disponíveis para um processo interpretativo (o que é
compatível com a semiótica peirceana) e, ainda assim, por motivos particulares, tal
processo específico cai num looping. A diferença é que, neste caso, como há um número
infinito de elementos disponíveis (para entrarem na posição de signo), não mais podemos
afirmar que o processo interpretativo (se fosse levado suficientemente longe)
necessariamente cairia num looping. Neste caso, supondo que um processo interpretativo
específico (como a sequência S3) tenha de fato caído num looping, esta ocorrência não foi
fruto de uma necessidade, mas de um fator acidental (uma mera possibilidade). Ainda que
consideremos estranha esta versão fraca da hipótese segundo a qual o "aprisionamento"
não ocorre de forma necessária (mas simplesmente consiste numa possibilidade),
devemos testá-la.
Suponha que, num novo cenário, existam infinitos elementos disponíveis na "linguagem"
(no "código"), mas, por algum motivo, o interpretante de um signo seja um outro signo
que já tenha ocorrido na sequência. Então, como sabemos se este processo interpretativo
entrou ou não num looping? Primeiro, notemos que, quando afirmamos que um
determinado procedimento entrou num looping, afirmamos que há um trecho deste
procedimento que vai se repetir para sempre. É o caso do trecho "D - E -F" acima
apresentado (em qualquer dos cenários, tanto naquele em que todo processo interpretativo
deve necessariamente desembocar num looping, porque há um número finito de
elementos, como naquele outro cenário em que, apesar de haver um número infinito de
elementos, o processo interpretativo desemboca, por motivos particulares, num looping).
A favor da interpretação de Short, poderíamos notar que, neste segundo cenário, não
haveria um último signo (a Tese_2 seria verdadeira) e, se supuséssemos que o signo A foi
determinado por algum signo anterior, então também não haveria primeiro signo (o que
faria a Tese_1 ser verdadeira também). Só podemos saber que este processo interpretativo
entrou num looping, porque notamos que os passos começaram a se repetir. Entretanto, só
podemos ter certeza de que estamos, de fato, diante de um looping (i.e., um procedimento
que vai se repetir eternamente) se pressupormos que jamais pode ser alterada a regra que
determina que o interpretante de um signo x é sempre um signo y.
No caso da sequência S3, só podemos afirmar que o processo interpretativo em questão
de fato cai num looping a partir do momento que, por exemplo, pressupormos que jamais
423
será alterada a regra (interpretativa) que estabelece que o signo F tem como interpretante
o signo D. Esta pressuposição é aquela referente à segunda característica (C2) apresentada
no início desta seção. Se os signos da sequência sempre tiverem como seus interpretantes
os mesmos signos, então, de fato, não há como escapar do looping. Neste caso, esta
interpretação nos afirmaria que o processo interpretativo, no fundo, é mecânico. Embora
intuitivamente saibamos que esta interpretação esteja em descordo com o projeto
filosófico de Peirce, nos escritos do final da década 1860, é mais difícil isolar uma tese
peirceana que bloqueie esta leitura. Ao contrário da versão forte da hipótese, esta versão
fraca não tem uma incompatibilidade tão explícita com relação a semiótica desenvolvida
ao final da década de 1860 por Peirce. Entretanto, não é difícil provar que os
desenvolvimentos posteriores da semiótica peirceana acabaram por levantar teses que nos
permitem impedir esta leitura "behaviorista", mecanicista do processo interpretativo.
Em geral, o modo como Short entende o processo interpretativo não parece se encaixar
bem com as principais características do processo que Peirce procurou descrever na série
cognitiva. De acordo com o que analisamos, aquilo que a semiótica tenta descrever mais
se aproxima de um processo de convergência para um limite do que um processo circular.
Como afirmamos, em diversas oportunidades, a solução teórica de Peirce para o problema
das sínteses é a ideia de que o processo interpretativo é composto por uma cadeia de
representações que tende a um limite, a um ponto de fuga. É uma série infinita de
elementos (cada um deles interpretando o anterior dentro de uma sequência) que tende
para um limite que é exterior à própria série.
Infelizmente, não podemos estabelecer nosso ponto de forma mais rigorosa, pois nossas
análises não nos forneceram dados suficientes acerca do pensamento peirceano. Para que
pudéssemos tratar de forma adequada esta questão, precisaríamos ampliar o corpus desta
pesquisa. Seria necessário examinar não apenas os demais artigos da série cognitiva (nos
quais Peirce desenvolve sua concepção de processo de convergência), mas também
estudar detalhadamente os desenvolvimentos posteriores da semiótica peirceana. Sabe-se
que, em período posterior do desenvolvimento de sua filosofia, Peirce passou a elaborar
sistemas de classificação de signos cada vez mais complexos. Não foram raras as vezes
em que mudanças propostas dentro da teoria dos signos vieram de descobertas na área da
lógica. Por exemplo, entre o período de 1870 - 1885, Peirce desenvolveu um novo aparato
para análise lógica que passou a chamar de "lógica dos relativos"258
(e também
reorganizou seu sistema de categorias). A partir de então, Peirce introduz a distinção entre
signos degenerados e signos genuínos. Enquanto estes últimos determinam
especificamente um interpretante (criando a noção de continuidade expressa no que
denominamos de princípio de sequência na seção anterior), os primeiros não especificam
seu interpretante (cf. CP 1.365-6 [1890] e CP 2.304 [1891]). Sob esta nova abordagem,
ícones são entendidos como um tipo (degenerado) de signo que não determina de forma
específica o seu interpretante (como o símbolo o faz), mas apenas o sugere. Estes signos
258
Como já nos referimos anteriormente (em nota), a novidade deste aparato consiste justamente na
introdução do uso de quantificadores e variáveis ligadas na análise lógica, o que desemboca no que hoje
entendemos por lógica de primeira ordem.
424
obviamente não têm um funcionamento puramente mecânico, completamente
determinado por passos anteriores. A introdução destas distinções na teoria pode
esclarecer que, para a semiótica peirceana, o processo interpretativo não é
necessariamente um procedimento puramente mecânico. Esta especificação na teoria
desmonta, então, aquela proposição C2 ("o processo interpretativo [descrito pela
semiótica peirceana] é puramente mecânico").
No tratamento mais recente que deu a esta questão, Thomas Short (2007, p. 57) afirma
que a falha relativa à "prisão semiótica" foi resolvida pelo próprio Peirce quando a partir
de 1907 (MS 318) passa a admitir dentro de sua teoria signos cujos interpretantes não
seriam mais eles mesmos (novos) signos. De acordo com Short, estes seriam os casos em
que o processo interpretativo desemboca numa mudança de hábito. Ainda que Peirce
tenha, de fato, realizado esta alteração, isto não significa que havia a referida falha na
teoria proposta ao final da década de 1860. Longe de corrigir uma falha, acreditamos que
esta alteração foi realizada com intuito de especificar ou esclarecer uma ideia que já
estava presente na proposta teórica original. Na série cognitiva, Peirce afirmou que a
"validade" dos raciocínios sintéticos só pode ser obtida pela aplicação deste tipo de
raciocínio por um tempo indefinido por uma comunidade indefinida de investigadores.
Ora, esta solução teórica pressupõe que haja algum tipo de autocorreção envolvida no
processo, caso contrário a teoria não poderia afirmar haver uma convergência para um
ponto-limite (ou esta seria devida a algum tipo de milagre). É possível que, com o
conceito de "mudança de hábito", Peirce pretendesse introduzir em sua teoria semiótica
uma ferramenta para tratar do modo como o processo interpretativo pode corrigir a si
mesmo. Afinal, a mudança de hábito pode ser entendida como uma alteração de um
hábito interpretativo, i.e., a substituição de uma regra interpretativa por outra (que se
julgue mais adequada aos propósitos do processo interpretativo).
Este ponto é muito relevante para entendermos o modelo lógico da mente que Peirce
procurou construir na série cognitiva. Na verdade, estes eram apenas os primeiros passos
da construção. Embora a forma que a semiótica tomou nos escritos do final da década de
1860 esteja longe de poder ser considerada definitiva, algumas linhas mestres já tinham
sido fixadas e muito do traçado original se manteria através das alterações. Acreditamos
que o que foi aqui denominado de teses elementares da semiótica peirceana são um claro
exemplo de pontos que nunca foram alterados por Peirce. No lugar da interpretação que
sustenta que Peirce teria negado, por exemplo, a última dessas teses, podemos apontar
para um caminho interpretativo diferente. É possível que, a partir dessa alteração proposta
em 1907, Peirce tenha tentado descrever um modelo de mente que pudesse desenvolver
processos interpretativos em diversos níveis. Por exemplo, de acordo com esta
modificação ou especificação no modelo, a mente poderia desenvolver um processo
interpretativo cujo objeto fosse um outro processo interpretativo justamente com o intuito
de modificar as regras (interpretativas) deste último. Esta interpretação do texto peirceano
tem a intenção de compatibilizar esta solução teórica da "mudança de hábito" (proposta
em 1907) com algumas ideias que já estavam associadas à versão da semiótica elaborada
na década de 1860, como a noção de convergência e de autocorreção. Com isso
425
pretendemos evitar uma interpretação que afirme haver no interior do sistema filosófico
(que começou a ser desenvolvido no final da década de 1860) uma gravíssima
contradição. Embora o conceito de recursividade tenha um papel central na semiótica
peirceana (ao menos de acordo com nossa tese) e tal conceito esteja fortemente
relacionado ao conceito de computabilidade (captado teoricamente por Alan Turing ainda
na década de 1930) e ao modo como funcionam os computadores, não podemos reduzir o
funcionamento do processo interpretativo descrito pela semiótica ao modus operandi de
uma máquina. Mesmo na década de 1860, o modelo lógico da mente estava longe de ser
puramente mecânico, maquínico. Expliquemos mais detalhadamente este ponto.
No início de seu célebre livro "Gödel, Escher e Bach", um dos mais importantes teóricos
contemporâneos no campo das ciências cognitivas, Douglas Hofstadter (1999 [1979]),
apresenta um critério interessante para distinguir atividade mental inteligente da atividade
(puramente) mecânica realizada pelas máquinas. Por exemplo, uma máquina executa
cegamente as regras ou diretrizes que estão escritas em seu programa. Enquanto uma
máquina está destinada a agir somente "dentro do tabuleiro" a partir das "regras do jogo",
a mente humana é capaz de se retirar ("pular fora") do "jogo" e, ao observá-lo de fora,
torna-se capaz de entender o funcionamento das regras para, eventualmente, modificá-las.
Para explicar como funciona esta distinção, Hofstadter (1999 [1979], p. 34) nos apresenta
um sistema formal, denominado de Sistema-MIU, que nos permite, com algumas poucas
regras, construir certas cadeias de símbolos259
a partir de uma cadeia de símbolos dada.
Este sistema, que lida apenas com cadeias formadas por três símbolos (M, I e U) apenas,
funciona como um jogo cujo objetivo é produzir determinadas cadeias (que funcionam
dentro do sistema como se fossem teoremas) a partir de uma cadeia inicial (que faz o
papel de axioma). Quando conseguimos provar que é possível, seguindo as regras,
construir uma segunda cadeia a partir da cadeia inicial, então isto significa que temos duas
cadeias de símbolos em nossa coleção: a primeira delas (que é dada de saída) e a segunda
cadeia, que foi obtida a partir da primeira (por meio das regras). Esta cadeia inicial é a MI
e as regras para transformação de uma cadeia em outra são as seguintes:
Regras do Sistema-MIU
Regra 1: Se você possui uma cadeia cuja última letra seja I, então você pode adicionar um
U ao final (da cadeia).
Regra 2: Suponha que você tenha Mx. Então, neste caso, você pode adicionar à sua coleção
Mxx.
Regra 3: Se III ocorre em alguma das cadeias de sua coleção, você pode fazer (a partir
dela) uma nova cadeia com o U no lugar do III.
Regra 4: Se UU ocorre dentro de alguma cadeia, você pode eliminar esta parte da cadeia.
259
Em linguagens formais, cadeias de símbolos são sequências (justaposições) de um número finito de
símbolos (cf. Ramos, Neto e Vega, 2009, p. 77). No caso do sistema-MIU, os únicos símbolos
disponíveis para formação de cadeias são as letras M, I e U.
426
Como afirmamos, inicialmente temos apenas a cadeia MI (este é o nosso ponto de
partida pré-estabelecido, nosso axioma). Esta é nossa única cadeia. A partir dela, pela
regra 1 podemos derivar, i.e., construir uma segunda cadeia para aumentar nossa
coleção: a cadeia MIU. Passamos a ter, então duas cadeias na nossa coleção: MI e
MIU. A partir dessa segunda cadeia, podemos, graças à regra 2, criar a cadeia MIUIU.
Então já seriam três cadeias em nossa coleção: MI, MIU e MIUIU. Como já foi
esclarecida a maneira pela qual podermos expandir nossa coleção, então já temos
condições de levantar uma questão pouco mais complexa a respeito do sistema-MIU.
Podemos nos perguntar se, dentro desse sistema, seria possível construir algumas
cadeias específicas. Por exemplo, é possível, a partir da cadeia inicial MI, derivarmos a
cadeia MUIIU? A demonstração a seguir nos responde que sim, é possível (Hofstadter,
1999 [1979], p. 35-6).
(1) MI Axioma
(2) MII Derivado de (1)
pela regra 2
(3) MIIII Derivado de (2)
pela regra 2
(4) MIIIIU Derivado de (3)
pela regra 1
(5) MUIU Derivado de (4)
pela regra 3
(6) MUIUUIU Derivado de (5)
pela regra 2
(7) MUIIU Derivado de (6)
pela regra 4
O sucesso em se derivar MUIIU da cadeia inicial MI não significa que toda e
qualquer outra cadeia pode ser obtida a partir desta primeira. Não nos foi cedido junto
com as regras uma lista completa de quais cadeias podem ser construídas a partir da
cadeia iniciais e quais não podem. Diante deste sistema formal, não sabemos quais
cadeias podem ser teoremas, i.e., podem ser demonstradas a partir de nosso único
axioma. Por exemplo, partindo da cadeia MI, é possível chegar na cadeia U? É
possível derivar a segunda cadeia de símbolos da primeira delas? Se dirigirmos este
pergunta a uma pessoa, ela provavelmente se submeteria à tarefa de procurar, por
tentativa e erro, um caminho possível para sair de MI e chegar em U respeitando as
regras. O mesmo ocorreria se dirigíssemos esta mesma pergunta para uma máquina
programada para gerar todas cadeias [os teoremas] que podem ser obtidas a partir da
cadeia inicial MI (o nosso axioma) e para apenas parar quando encontrar a cadeia
solicitada (no caso, U). A diferença fundamental, de acordo Hofstadter, é que,
enquanto a máquina jamais pararia de procurar um caminho possível, o ser humano,
mais cedo ou mais tarde, acabaria percebendo que há um padrão por trás das regras
que não permite que se derive a cadeia U.
427
A diferença está na capacidade exibida pela inteligência humana de "sair" do sistema,
observá-lo de fora e perceber que todas as quatro regras têm o seguinte ponto em
comum: todas elas mantêm intacta a primeira letra da cadeia (que elas modificam).
Ora, se a primeira letra de nossa primeira cadeia é a letra M e todas elas mantêm
intacta a primeira letra da cadeia (que elas modificam), então as cadeias possíveis que
pudermos construir a partir de MI deverão manter intacta sua primeira letra. Em
outras palavras, nunca (com estas regras) podemos nos livrar deste M inicial. Por mais
óbvio que isto nos pareça, uma máquina jamais pode compreender este ponto, pois ela
está condenada a sempre olhar para o "jogo" a partir de dentro260
. Portanto, de acordo
com Hofstadter o ponto que nos permite distinguir a capacidade humana de agir
inteligentemente dentro (e a partir de fora) de um sistema (como o que foi apresentado
acima) das capacidades das máquinas é que é "uma propriedade inerente da
inteligência a capacidade de 'pular fora' da tarefa que ela está executando para que
observe o que está sendo feito; ela está sempre procurando, e quase sempre
encontrando, padrões" (Hofstadter, 1999 [1979], p. 37).
Se voltarmos para nossa discussão acerca da hipótese da prisão linguística dentro da
semiótica peirceana, notaremos que a concepção de "mudança de hábito" introduzida
por Peirce em 1907 pode ser entendida como uma alteração de uma regra
interpretativa realizada a partir de fora do processo interpretativo propriamente dito tal
como se fosse o "pulo para fora do sistema" descrito por Hofstadter. Obviamente, ao
sair de um processo interpretativo para observá-lo de fora, cairíamos noutro processo
interpretativo (um nível acima daquele primeiro) cujo objeto seria justamente o
primeiro processo interpretativo.
Não temos espaço para desenvolver esta (nossa) interpretação (que correlaciona uma
reformulação conceitual no pensamento peirceano com a abordagem de Hofstadter a
respeito da mente humana), mas este é um modo de afirmar que a teoria semiótica
apresentada por Peirce no final da década de 1860 não consistia numa prisão
linguística e a alteração de 1907 é apenas uma especificação de uma ideia que já
260
Na verdade, neste ponto de sua exposição, Hofstadter lança um desafio ao leitor: partindo da cadeia
MI, é possível chegar na cadeia MU? É possível derivar a segunda cadeia de símbolos da primeira delas?
No livro, Hofstadter adia por alguns capítulos a resposta para que o leitor tente encontrá-la sozinho. Para
que não estraguemos a "surpresa" ou, ao menos, a emoção de procurar pela resposta certa, vamos tratar
deste problema nesta nota de rodapé. O primeiro ponto a ser notado é que, para criar uma cadeia em que,
além do M inicial, tenhamos apenas um U, seria necessário que obtivéssemos antes uma cadeia com três
Is, como a que segue: MIII. Neste caso, poderíamos a partir da regra 3, derivar a cadeia MU da cadeia
MIII. O problema é nunca chegamos a uma cadeia com estas três Is a partir de nossa cadeia inicial (MI).
Na verdade, depois de algum tempo tentando, a mente humana poderia pular fora do sistema e perceber
que não é possível que qualquer cadeia à qual se possa chegar a partir da cadeia inicial MI tenha um
número de Is que seja divisível por três. Esta é a propriedade de que "o número de Is de uma cadeia (de
um teorema) nunca é divisível por três". Esta é uma propriedade do sistema-MIU. Chega-se à conclusão
de que não é possível encontrar uma cadeia com três Is (ou com um número de Is que seja divisível por 3)
ao se perceber que tanto a regra 1 como a regra 2 preservam esta propriedade. Não há nenhuma regra de
transformação dentro do sistema que nos permita chegar aos três Is, o que, por sua vez, nos impede de
chegar ao destino intencionado: MU. O ponto da exposição de Hofstadter é que uma máquina ficaria para
sempre tentando encontrar um caminho (neste sistema) para MU sem jamais se dar conta da
impossibilidade dessa empresa.
428
estava presente desde as primeiras formulações da semiótica peirceana: o conceito de
autocorreção. Portanto, em termos gerais não concordamos com a interpretação de
Short (2007, p. 42 e 43) segundo a qual o progressus e regressus infinitos do processo
interpretativo descrito pela semiótica elaborada por Peirce ao final da década de 1860
são falhas que teria sido corrigidas em 1907 (com a introdução do conceito de
"mudança de hábito"). Também, em termos gerais, embora não concordemos com sua
missão de tirar Peirce das mãos das "pessoas erradas" (Short, 2007, prefácio, p. XI), é
louvável a intenção de Short em trazer Peirce para alguns debates contemporâneos na
filosofia. É verdade que existem muitas afinidades entre algumas teses peirceanas
desenvolvidas no interior de sua semiótica e algumas teses desenvolvidas no
pensamento contemporâneo.
Por exemplo, a tese peirceana de que até mesmo a percepção é determinada por
cognições anteriores pode ser comparada à tese contemporânea no campo de filosofia
da ciência segundo a qual toda observação é "carregada de teoria" (conforme teses de
Norwood Hanson e também Thomas Kuhn [cf. Suppe, 1997, 95-102]). A tese
peirceana de que não há fundação última (indubitável) para um sistema de crenças
pode aproximar o pensamento de Peirce da visão coerentista segundo a qual o
conhecimento é conjunto coerente de crenças que se "apoiam" mutuamente tal com se
fossem nódulos de uma rede (comparar, por exemplo, metáforas epistemológicas
como o "barco de Neurath" [cf. Quine, 1960, p.2], a "rede de crença" de Quine [cf.
Quine e Ullian, 1978] e a "argumentação como um cabo" de Peirce [CP 5.264-5
{1868}] ). Por sua vez, a tese peirceana de que o sujeito cognoscente é a comunidade
indefinida de investigadores (intimamente relacionada à tese de que atividade
cognitiva é externa à mente entendida individualmente) pode ser aproximada da tese
de Wittgenstein a respeito do critério para se seguir uma regra (cf. Investigações
filosóficas, §143 - 242). De acordo com (o segundo) Wittgenstein, o único critério
possível para se saber se estamos ou não seguindo corretamente uma regra
(gramatical) é público, é um critério externo. De acordo com esta abordagem, a
linguagem é necessariamente uma atividade pública e não faria sentido algum afirmar
que há uma linguagem própria de um indivíduo, uma espécie de linguagem privada.
Se levarmos às últimas consequências as teses de Wittgenstein, não existe algo como
uma experiência interior, uma experiência de uma esfera interior. Não existem estados
internos.
Em paralelo, se levarmos às últimas consequências a tese peirceana de que só temos
acesso indireto aos nossos próprios estados internos (pensamentos, sensações,
emoções, etc.), então notaremos que, de acordo com as teorias peirceanas, a atividade
cognitiva se estrutura como uma espécie de sistema "linguístico" (na verdade, um
sistema semiótico) e, assim, até mesmo a atividade mental deixa de ser um fenômeno
privado e passa a ser um fenômeno público. Dentro desta interpretação das teses
peirceanas, para Peirce, até mesmo o raciocínio é uma atividade essencialmente
pública, pois os critérios de uso e as regras de validação são públicas e não privadas.
Na verdade, e isto já deve estar claro para o leitor, este é o cerne do projeto filosófico
429
peirceano. Não é outro o motivo que leva Peirce a propor, ao final, do último artigo da
série cognitiva, uma espécie de teoria social da lógica. Para Peirce, os raciocínios
sintéticos (i.e., ampliativos) só podem ser "validados a longo prazo" dentro de uma
espécie de teoria social da lógica. Para que vejamos este ponto com clareza é
suficiente que recordemos que a resposta que Peirce formulou para o que considerou o
problema central da filosofia é que a ampliação de um sistema de crenças só pode ter
seu critério de validade estabelecido por um processo de interpretação levado adiante
por uma comunidade indefinida de investigadores por um tempo indefinido (e com um
método que seja autocorrigível). Ora, para que a solução teórica peirceana funcione,
i.e., para que haja algum processo interpretativo supra-individual de convergência
para um ponto-limite, devemos pressupor não apenas que o processo possa ser
autocorrigível, mas também devemos pressupor a existência de um sistema com
critérios públicos que permita que o próprio processo seja corrigível. Este sistema se
chama linguagem. As reflexões filosóficas realizadas em campo epistemológico
deságuam em reflexões a respeito e linguagem. A teoria social da lógica proposta por
Peirce exige uma teoria da linguagem. Senão, vejamos.
Se o estado real do objeto só pode ser aproximado por um processo de investigação
efetivado por uma comunidade indefinida, então se deve pressupor que haja algum
tipo de troca de informação entre os indivíduos que são membros desta comunidade.
Caso não haja modo possível de se externalizar informações, cada processo
interpretativo (relativo a algum objeto) parcial que ocorre numa consciência
individual não poderia tornar público seus resultados e assim o processo interpretativo
geral (relativo a esse mesmo objeto) esbarraria na finitude dos indivíduos, o que, por
sua vez, impediria que uma investigação supra-individual fosse levada a cabo por uma
comunidade indefinida por um tempo indefinido. Qualquer pessoa que se dispusesse a
pensar ou investigar qualquer "assunto" estaria sempre começando do zero. A
continuidade do processo interpretativo descrito in abstrato pela semiótica depende,
na prática, da existência de uma linguagem que permita a comunicação entre os
membros da comunidade (indefinida de investigadores). A constituição de sujeito
cognoscente coletivo depende da linguagem. Assim, o pensamento semiótico que
emerge dos escritos peirceanos deságua em reflexões sobre linguagem e também
comunicação. E, de fato, não é difícil encontrar nos textos peirceanos reflexões sobre
as condições práticas que tornam exequível aquele processo de convergência para
verdade. Por exemplo, reflexões sobre economia da pesquisa científica (CP 1.85; CP
1.122-125), sobre o que denominou de "ética da terminologia" (CP 2.219-226[1903]),
etc.. Entretanto, muito além desses exemplos, o que pretendemos enfatizar é que a
semiótica, a ciência geral das representações, exige (e apresenta novas perspectivas
para) teorizações a respeito da linguagem e comunicação. E acreditamos que é a
própria natureza do pensamento peirceano que exige que estas teorizações devam ir
além do terreno da filosofia e passem a germinar também nas frações mais férteis do
solo científico. Para Peirce, o pensamento semiótico é naturalmente interdisciplinar.
430
Ao longo de nosso interminável texto, optamos por não fazê-lo, mas é possível traçar
fortes correlações entre teses peirceanas e teses presentes na filosofia do século XX.
Como é o caso (acima aludido) da tese segundo a qual a atividade cognitiva é externa
à mente entendida individualmente, que, ao que tudo indica, corre em paralelo a teses
do segundo Wittgenstein. Algumas afinidades são sugestivas e a convergência de
algumas teses pode apontar para existência de alguns pontos que, ao longo do tempo,
serão considerados fundamentais para a filosofia deste período. Entretanto, não é certo
que devemos investir todas nossas fichas em comparações entre Peirce e os demais
filósofos sem antes examinarmos como cada uma destas teses (que serão postas como
termos de comparação) são sustentadas internamente no pensamento peirceano. Se
optarmos por, primeiro, estudar internamente um sistema filosófico, para depois de
isolada sua estrutura, compararmos este sistema com aquele desenvolvido por outro
filósofo, então vamos baixar consideravelmente a probabilidade de interpretarmos
uma especificidade (que às vezes é uma exigência interna de uma teoria, de uma
abordagem) como uma falha261
. É óbvio que tais estudos comparativos são parte
essencial da exegese de uma obra filosófica. Só devemos fazê-los com parcimônia.
Ora, se não é certo que insistamos compulsivamente na comparação com outros
filósofos (ainda que tenhamos ocupado quase 1/4 desta tese com o diálogo entre
Peirce e outros filósofos), também não é certo que, por uma espécie de princípio de
autossuficiência, tranquemos a obra peirceana dentro de si mesma ou, como parece
sugerir Short, dentro do campo da filosofia. O pensamento peirceano, por sua
natureza, deve transcender os limites do campo da filosofia. Por este motivo, não
podemos concordar com a sugestão de Short de que deveríamos deixar de apostar
nossas fichas em correlações interdisciplinares. Aliás, citamos há pouco um trecho em
que Peirce defende que “o bom navio da Filosofia” deve ser colocado a serviço da
ciência (CP 5.449 [1905]) e a própria filosofia deve tomar emprestados métodos das
ciências (CP 5.265 [1868])262
. Peirce foi “tomado” por um exército interdisciplinar em
decorrência de uma exigência interna de seu pensamento pragmaticista e, sobretudo,
do modo como entendia o papel da ciência e da filosofia. Enquanto o fato de sua obra
ter sido mal interpretada é um acidente histórico263
, o fato de sua obra de sido
distribuída interdisciplinarmente é parte da essência de seu pensamento.
261
Caso se escolha o caminho inverso sempre corremos o risco de achar que um filósofo específico
deveria ter sustentado em sua obra alguma uma tese específica de uma determinada forma apenas porque
assim o fizeram outros filósofos que desenvolvem investigações relacionadas ao mesmo problema ou
dentro do mesmo tema. Neste caso, é como se lêssemos, num primeiro plano, o que o filósofo deveria ter
escrito e legássemos para um segundo plano o que ele de fato escreveu. 262
Devemos recordar que Peirce, dentro da série cognitiva, não apenas afirma que a filosofia deveria
tomar emprestado os métodos das ciências que obtiveram êxitos em seus propósitos de produção de
conhecimento como afirma que ela deveria ser reconstruída sobre uma nova base e esta reconstrução era
uma exigência, de acordo com a visão peirceana, da própria ciência moderna e da lógica moderna. 263
Por exemplo, é um acidente ocasionado por condições históricas do século XX o fato de a semiótica
peirceana ter sido confundida com propostas homônimas e o fato de o ambiente acadêmico ter ficado
progressivamente mais suscetível a modismos que só tendem a produzir abordagens, comentários e
interpretações de baixa qualidade e com pouco “fôlego”. Tudo isso é externo à obra peirceana.
431
Antes de seguirmos para as considerações finais, devemos fazer uma última
correlação do pensamento semiótico peirceano com alguma teoria ou reflexão
pertencente ao cenário contemporâneo. Na verdade, neste último caso, escolhemos
uma teoria que não apenas tem suas bases lançadas sobre o solo da filosofia peirceana
como foi desenvolvida sob inegável influência do que mesmo Short não hesitaria em
classificar como "espírito peirceano". Este caso exemplifica muito bem a "natureza
interdisciplinar" da semiótica da qual viemos tratando nos últimos parágrafos, pois
esta teoria pode ser entendida não apenas como um produto do pensamento de Peirce,
mas também como um notável desenvolvimento teórico de teses peirceanas que
passam a germinar em terrenos cada vez mais distantes da fonte primordial: a
filosofia. Referimo-nos à "teoria das matrizes da linguagem e pensamento" proposta
por Lucia Santaella. Infelizmente, não teremos espaço-tempo para desenvolver este
tópico, mas acreditamos que esta teoria pode esclarecer uma das teses mais relevantes
e incômodas de todo projeto filosófico do jovem Peirce (e que acabamos de
correlacionar com teses wittgensteinianas): a ideia de que a atividade cognitiva é
externa à mente entendida individualmente. Como afirmamos esta ideia reside no
cerne de tal projeto filosófico e é parte essencial do modelo lógico da mente
construído pela semiótica peirceana.
Em linhas gerais, o mecanismo recursivo que Peirce utilizou para descrever o
funcionamento das representações é basicamente o mesmo mecanismo que Santaella
utilizou para descrever o surgimento, desenvolvimento e reprodução das linguagens
(i.e., sistemas de representação) dentro de uma teoria que batizou com o nome de
"teoria das matrizes da linguagem e pensamento". De acordo com Santaella (2005
[2001]), todo o conjunto das linguagens concebíveis pode ser explicado a partir de três
matrizes, que são uma espécie de "molde semiótico" dentro qual se forja uma
linguagem lhe emprestando determinadas propriedades. A tese central da teoria de
Santaella (2005 [2001], p. 20 e 21) é que por baixo da multiplicidade e diversidade
das linguagens existentes há três matrizes lógicas a partir das quais, por processos de
combinação e mistura, originam-se todas as formas (concebíveis) de linguagem.
Acreditamos que esta teoria pode ser apresentada como um desenvolvimento direto da
teoria peirceana do interpretante e, ao que tudo indica, ela pode ser mobilizada para o
esclarecimento de uma das teses que mais provocam estranheza nos que leem os
escritos peirceanos e se esforçam para deles ter alguma compreensão: aquela segundo
a qual não temos capacidade de introspecção e que só podemos conhecer nossos
pensamentos de forma indireta. Esta tese, levada às últimas consequências na forma
como foi defendida por Peirce em seus escritos (CP 5.244 - 449 [1868]), nos obrigaria
a considerar o ato de pensamento ou a atividade cognitiva, em geral, como um
fenômeno social, algo muito distante de algumas crenças há muito tempo
sedimentadas no solo do senso-comum.
Como foi examinado em detalhes no sexto capítulo, dentro da semiótica peirceana,
ocupa um importante lugar a tese que o acesso que temos aos nossos próprios
pensamentos é indireto, ou seja, tal acesso é mediado por signos. E há uma tese
432
adicional que pode ser entrevista nos trechos264
em que Peirce estabelece esta tese
acima referida: este acesso indireto só pode ser realizado por um signo entendido
como algo externo ou, ao menos, como algo que se supõe externalizável. Isto nos leva
a crer que, de acordo com a semiótica peirceana, só podemos ter acesso aos nossos
pensamentos porque nossa atividade cognitiva funciona pressupondo a possibilidade
de externalização de nossos pensamentos. É por este motivo que os modos possíveis
pelos quais os homens se tornam capazes de pensar estão inscritos nos modos
possíveis pelos quais os homens se tornam capazes de externalizar pensamentos. A
possibilidade de comunicação com o mundo externo está pressuposta no modo como
um indivíduo organiza seus "conteúdos mentais" e não o inverso. Na verdade, é como
se aquilo que acostumamo-nos a denominar de conteúdo interno (estado interno) só
pode ser identificado e acessado a partir de elementos externos, públicos. É
exatamente neste ponto que acreditamos que a teoria das matrizes é capaz de intervir,
pois as linguagens (provenientes de cada uma das matrizes ou do cruzamento entre
elas) acabam por funcionar como uma espécie de plataforma de estabilização do fluxo
de signos que corre não apenas do "lado de fora" da mente, mas, sobretudo, do "lado
de dentro". Uma linguagem, conforme concebida dentro da teoria das matrizes, é um
conceito que se refere a um modo de estruturar o fluxo de signos externos (i.e., signo
entendido como um expediente sensível externo, tal como a palavra) e também o fluxo
de signos internos (i.e., signo entendido como um expediente sensível interno,
pensamento). Não é por outro motivo que o nome completo da teoria é "teoria das
matrizes da linguagem e pensamento".
Desta forma, como já vimos incontáveis vezes, a semiótica surge como um dos
principais elementos mobilizados por Peirce para responder à pergunta que
considerava central à filosofia: como é possível haver raciocínio sintético, como é
possível haver ganho, ampliação, crescimento do conhecimento? A resposta peirceana
é que as sínteses se tornam possíveis graças a um processo interpretativo no qual uma
representação se desenvolve numa representação posterior em direção ao objeto real
apresentado. O mecanismo recursivo de representação que descrevemos (por diversas
vezes ao longo desta tese) foi elaborado por Peirce no coração de sua semiótica
justamente para explicar como é possível haver síntese, haver crescimento do
conhecimento. Se, por um lado, a semiótica surge para explicar como é possível haver
produção de representações que signifiquem um aumento do conhecimento, por outro
lado, a teoria das matrizes é proposta para explicar como é possível haver sistemas de
representação (i.e., linguagens) que sejam capazes de crescer, se desenvolver e se
reproduzir justamente para poder cumprir o destino da atividade cognitiva: a
ampliação de um conhecimento que paulatinamente se aprofunda numa realidade cada
vez mais complexa. O real em permanente mudança (até mesmo devido à própria
264 Segundo Peirce, "não podemos admitir nenhuma afirmação sobre o que se passa dentro de nós exceto
como uma hipótese necessária para explicar o que ocorre no que chamamos comumente de mundo
externo" (CP 5.266 [1868]). Cf. também CP 5.245 [1868].
433
atividade cognitiva) é o ponto de fuga da atividade cognitiva. Que as linguagens, os
sistemas de representação, se desenvolvam é uma exigência da própria finalidade do
pensamento, que, para Peirce, é se desenvolver em outro pensamento. O metabolismo
das linguagens é posto à disposição do pensamento e isto explica o motivo pelo qual
linguagens tendem a perdurar através do fluxo incessante de informações que correm
em suas veias e também através da evolução ininterrupta dos suportes materiais que as
sustentam.
As palavras são mais eternas do que os mármores e os metais, já dizia
Shakespeare. Por isso, o que mudam são os suportes que se tornam mais
sofisticados, mais reprodutíveis, mais multiplicadores, mas a linguagem não
morre, permanece. (...) as tecnologias vão mudando, as linguagens sonham
com a eternidade.
(Santaella, 2007, p.209)
Esclarecidos o surgimento e o mecanismo de uma representação, parece-nos natural que
uma teoria semiótica se mova na direção de explicar uma segunda questão: como se
tornam possíveis e como funcionam os sistemas de representação ao quais,
habitualmente, damos o nome de linguagem. A teoria social da lógica, anunciada por
Peirce no interior de sua semiótica, parece afluir naturalmente para reflexões a respeito
de linguagem e também comunicação.
434
Considerações finais
O foco de toda a pesquisa cujo resultado apresentamos neste longo volume é o que
denominamos ainda no texto introdutório de elemento lógico do sistema filosófico de
Charles S. Peirce. Conforme explicado, por elemento lógico entendemos a estruturação
argumentativa desenvolvida pelo filósofo para validar as teorias que são oferecidas
como respostas a problemas filosóficos estabelecidos internamente (dentro de seu
próprio sistema filosófico) ou externamente (pela tradição). O centro de gravitação de
toda nossa exposição do pensamento peirceano bem como de nossas análises e
interpretações é aquilo que o próprio Peirce considerou como problema central da
filosofia: como são possíveis as sínteses? A solução encontrada por Peirce durante a
fase de construção de seu sistema filosófico (segunda metade da década de 1860) foi
estabelecer, dentro de uma ciência geral das representações (que denominou de
semiótica), que toda e qualquer síntese é resultante de um processo de representação ou
de um processo interpretativo cujo funcionamento é descrito pela interrelação de três
elementos: o signo, o objeto e o interpretante.
Nosso objetivo central foi mostrar que a solução teórica encontrada pelo jovem Peirce
tem como componente essencial a recursividade. Para que sejamos precisos, o que de
fato possui um caráter essencialmente recursivo é a definição (ou caracterização) do
conceito de representação apresentada por Peirce dentro do âmbito da semiótica. Ao
introduzir o conceito de interpretante em sua explicação do modo como funciona um
processo de representação e exigir que toda e qualquer representação recorra a uma
representação anterior (e seja remetida para uma representação posterior), então a
definição de representação torna-se necessariamente recursiva. Como demonstramos,
este tipo de definição ou caracterização recursiva é uma exigência interna da teoria que
Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou ser o problema central da
filosofia.
Ao contrário da epistemologia cartesiana que inaugura a filosofia moderna ao garantir a
possibilidade de se encontrar uma fundação segura para o processo de conhecimento, a
epistemologia peirceana começa no antípoda do projeto de Descartes. Para Peirce, não
há fundação complemente segura, pois, conforme argumentação apresentada já no início
do primeiro artigo da série cognitiva (cf. capítulo 4) não é possível encontrar alguma
garantia infalível que um ponto de partida (de um raciocínio, por exemplo) seja uma
proposição necessariamente verdadeira (i.e., nunca é possível se ter certeza sobre a
verdade de um ponto de partida). Assim, dentro dos limites da epistemologia peirceana,
todo ponto de partida seria necessariamente hipotético e a verdade passa a ser uma
espécie de projeção, de ponto de fuga do processo de conhecimento. De acordo com
esta perspectiva, a verdade só pode ser aproximada ao longo do processo de
conhecimento se garantirmos que ele seja, de alguma forma, autocorrígivel, o que, por
sua vez, exige que tal processo seja aplicável sobre si mesmo, ou seja, que o resultado
435
de um estágio dependa do resultado do estágio anterior. Em linhas gerais, como vimos
de modo mais detalhado no nono capítulo, esta parece ser a origem da recursividade
dentro do horizonte teórico do projeto filosófico peirceano. A descrição geral do
processo de obtenção do conhecimento é que este é um processo de natureza sígnica que
não pode possuir ponto de originário e nem pode possuir um ponto final pré-
estabelecido.
A argumentação para sustentação de nossa tese foi apresentada de um modo mais
formal no último capítulo. Para provar que a solução teórica encontrada pelo jovem
Peirce tem como componente essencial a recursividade, isolamos duas teses elementares
dentro da semiótica ("não há primeiro signo [num processo interpretativo] e "não há
último signo [num processo interpretativo]") e demonstramos que elas dependem da
caracterização recursiva do conceito de representação. Também mostramos que, graças
às argumentações internas à teoria da cognição elaborada por Peirce (sobretudo, no
primeiro artigo da série cognitiva, "Questões concernentes a certas faculdades
reivindicadas para o homem"), as teses elementares da semiótica podem ser convertidas
em teses epistemológicas: "não há primeira cognição [num processo de aquisição de
conhecimento] e "não há última cognição [num processo de aquisição de
conhecimento]". Este papel de conversão de teses pertencentes ao campo da semiótica
em teses pertencentes ao campo da epistemologia é realizado dentro do primeiro artigo
da série cognitiva pelo que foi denominado de tese-base ("todo pensamento é
pensamento em signos"). É esta conversão que permite que Peirce utilize um aparato
conceitual desenvolvido inicialmente no artigo "Sobre uma nova lista de categorias"
para explicar como são possíveis as sínteses para também explicar no artigo "Questões
concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" como funciona a "vida
cognitiva" na ausência de pontos originários e como funciona o processo de
conhecimento na ausência de cognições intuitivas, pontos fundantes. Dessa forma,
como as teses elementares da semiótica são essenciais ao projeto filosófico concebido
ao final da década de 1860 e a recursividade é uma condição necessária para a
sustentação destas teses, então a recursividade é um elemento essencial de tal projeto
filosófico. Em resumo, o estabelecimento das chamadas teses elementares da semiótica
é condição necessária para que funcione a solução teórica oferecida por Peirce para o
problema das sínteses e a recursividade é condição necessária para o estabelecimento
destas teses. Por este motivo, enunciamos (ainda nas primeiras linhas deste longo texto)
nossa tese da seguinte forma: "a caracterização do conceito de representação (interno à
teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva".
Reapresentados os principais movimentos argumentativos para a sustentação de nossa
tese, devemos fazer alguns apontamentos críticos. Da forma como concebemos e
apresentamos esta tese, pode-se notar que argumentação geral possui três pontos fracos:
o primeiro deles (I) é que não foi feita uma análise mais detalhada das descobertas na
área da lógica que permitiram que Peirce passasse a sustentar (a partir de meados da
década de 1860) que todas as relações elementares da lógica seriam casos particulares
da relação sígnica. O segundo ponto fraco (II) é que, embora tenhamos realizado
436
análises pormenorizadas do artigo "Sobre uma nova lista de categorias" e, sobretudo, do
artigo "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem", não
foram feitas análises dos dois últimos artigos que compõem a série cognitiva ("Algumas
consequências das quatro incapacidades" e "Fundamentos da validade das leis da lógica:
outras consequências das quatro incapacidades"). As limitações impostas por este corte
no corpus ficaram claras no último capítulo (em que concentramos as demonstrações de
modo mais formal). Embora acreditemos que tenhamos conseguido demonstrar que o
estabelecimento das teses elementares da semiótica peirceana seja condição necessária
para que funcione a solução teórica oferecida por Peirce para o problema (filosófico)
das sínteses, é certo que não apresentamos (em todo este longo texto) garantia alguma
que ela seja uma condição suficiente. Para que apresentássemos alguma garantia desse
tipo seria necessário avaliar a natureza do processo de convergência previsto pela teoria
peirceana, ou seja, precisaríamos subter à minuciosa análise os dois últimos artigos que
compõem a série cognitiva (como fizemos com o primeiro deles).
O terceiro ponto fraco (III) é que (acreditamos que) o papel da tese-base dentro do
artigo "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" exige
uma análise mais detalhada, pois sua sustentação envolve um dos mais espinhosos
problemas em todo o pensamento peirceano: a relação continuum/discreto. O que
fizemos nesta tese é aplicar uma espécie de "princípio de caridade". Deixamos de lado
esta questão, confiando na possibilidade de que esta tese pudesse ser considerada
"estabelecida" (a partir das argumentações desenvolvidas por Peirce no primeiro artigo
da série cognitiva), pois tínhamos plena consciência de sua centralidade para o projeto
filosófico peirceano. Como já reconhecemos nas análises apresentadas no nono capítulo,
o problema é que este é um ponto altamente vulnerável na argumentação geral da série
cognitiva. Entretanto, a justificativa que temos para esta omissão é irresistível: nossa
incompetência técnica para lidar com a questão continuum/discreto no nível de
detalhamento que ela merece dentro do pensamento peirceano.
Embora o objetivo desta tese tenha sido demonstrar que"a caracterização do conceito de
representação (interno à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva",
podemos enunciar neste espaço dedicado às considerações finais que há uma intenção
não-declarada sob o nosso texto: oferecer o conceito de recursividade como uma chave
de leitura da semiótica peirceana (sobretudo, do surgimento de um pensamento
propriamente semiótico na obra peirceana no final da década de 1860) com o intuito de
dissipar uma atmosfera de estranhamento que envolve algumas teses peirceanas,
principalmente aquelas mais distantes do senso-comum. Um claro exemplo é a tese
segundo a qual o pensamento é um fenômeno essencialmente social e dependente de
critérios externos, públicos (e não um processo individual, "privado"). Obviamente esta
intenção não pode ser declarada nem mesmo como objetivo específico de um trabalho
acadêmico, porque acreditamos que ela lida com questões demasiadamente vagas. O
que não significa que não seja importante ou que não tenha animado a pesquisa. De
fato, acreditamos que o conceito de recursividade pode contribuir para dissolver o
estranhamento que parece sempre acompanhar a leitura de textos peirceanos. Se
437
considerarmos a caracterização recursiva do conceito de representação como a origem
ou a causa da noção de fluxo dentro do pensamento peirceano e consequentemente a
causa do estranhamento, então notaremos que o próprio Peirce oferece dentro de seu
projeto filosófico um caminho teórico que tende a superar este estranhamento. O
contraponto à noção de fluxo é a própria concepção de linguagem que emerge dos
escritos peirceanos do final da década de 1860, sobretudo dentro do âmbito daquilo que
Peirce denominou "teoria social da lógica" (que engloba tanto o conceito de
comunidade indefinida de investigadores como a ideia de um processo de convergência
para a realidade). Finalizemos nossa exposição com algumas poucas palavras a respeito
dessa intenção não-declarada e dessa estranheza provocada pelos escritos peirceanos.
Afinal, começamos o primeiro capítulo (há mais de quatrocentas páginas) tratando
justamente dessa estranheza.
Suponha que se tenha solicitado a alguém (que não fosse perito no assunto ou que nunca
tivesse refletido muito sobre tais questões) que desenvolvesse uma teoria para explicar
como funcionam as representações. O mais provável é que tal pessoa explicasse que a
relação entre aquilo que representa e aquilo que é representado (entre significante e
significado, por exemplo) é isto mesmo que nos aparece à primeira vista, a saber, uma
relação diádica (i.e., uma relação com dois elementos). A explicação, neste caso,
consistiria em afirmar que a palavra "árvore" representa a "ideia de árvore", porque
simplesmente associamos uma "coisa" a outra. Uma teoria que explique assim o
fenômeno semântico é tão natural, intuitiva e direta como a ideia da construção de
pirâmides tida, de forma independente, por diferentes pessoas de várias civilizações ao
longo da história. Ora, neste passado distante, parece-nos que, se um agrupamento de
homens resolve construir uma edificação gigantesca, seja qual for o motivo, é muito
provável que o primeiro projeto exequível que lhes tenha ocorrido (por conta da
tecnologia e material disponível, pelo custo em recursos naturais e "humanos") seja o de
construir uma pirâmide, um dos mais simples dentre os poliedros. Acreditamos que a
simplicidade da ideia (de edificar pirâmides) já seja suficiente para explicar o fato
histórico de diversas pessoas terem tido (mais ou menos) a mesma ideia de forma
independente. Seria uma extravagância do intelecto levantar e alimentar hipóteses que
tenham havido arquitetos-astronautas, urbanistas-extraterrenos, gigantes gentis, deuses-
visitantes, etc.
Com o conceito de representação, parece ocorrer o mesmo. A simplicidade da ideia de
afirmar que a representa b por conta somente de uma associação entre a e b já é
suficiente para explicar o sucesso ou, ao menos, a difusão de teorias que definem o
conceito de representação diadicamente e de semióticas que recorram a tais teorias.
Algo muito distinto ocorre com a semiótica peirceana. Nela não é possível explicar a
relação entre representante e representado sem recorrer a um terceiro elemento.
Dificilmente se consegue explicar com poucas palavras como é o funcionamento desse
terceiro elemento e o porquê de sua introdução numa teoria que aparentemente passaria
bem com apenas dois elementos. Prova desta dificuldade está no fato de termos levado
duas centenas de páginas para explicar (o que acreditamos serem) os principais motivos
438
que levaram Peirce a construir uma concepção de representação com este terceiro
elemento. E o importante não é exatamente o número de elementos, se são dois, três ou
quatro, mas como este terceiro elemento foi definido e como esta definição foi
mobilizada por Peirce dentro de um projeto teórico maior: responder aquela que
considerava a questão fundamental da filosofia (como é possível o raciocínio sintético
ou ampliativo). É justamente pelo modo específico como foi definido e também pelo
papel central dentro de toda a filosofia peirceana que se torna inexequível a tarefa de
explicar em poucas palavras (como o leitor deve ter percebido) o que é este tal terceiro
elemento. É este terceiro elemento um dos principais responsáveis pela sensação de
estranhamento provocada pela leitura de algumas teses e teorias defendidas por Peirce.
Como esperamos ter demonstrado, este terceiro elemento instala no coração da filosofia
peirceana uma noção de fluxo. Esta noção de fluxo, de movimento incessante, coloca
Peirce numa tradição de pensamento que parece estar destinada às margens. Se
considerarmos que as ideias de fundação, origem, ancoragem, enraizamento têm uma
relevância considerável na história da cultura ocidental, pois estão associadas dentro de
um campo semântico ao qual sempre nos voltamos para explicarmos o que geralmente
entendemos por civilização, devemos notar que a noção de fluxo (peculiar ao
pensamento peirceano) parece se comportar como uma espécie de dispositivo anti-
civilizacional. Mesmo o mais idôneo e bem-intencionado dos multi-culturalistas
contemporâneos não conseguiria esconder certo desconforto que uma cultura nômade
causa em espíritos criados no seio de alguma civilização. Desconfiamos que este seja o
motivo mais primitivo que nos leve a estranhar as propostas teóricas peirceanas. Se
ajustarmos o foco e aproximarmos nossa atenção de temas dos quais Peirce tratou de
forma mais direta em seus escritos, como questões epistemológicas, notaremos que esta
noção geral de fluxo (à qual viemos nos referindo) está associada dentro do pensamento
peirceano à noção de incerteza e à doutrina do falibilismo. Por este mesmo motivo, as
concepções de conhecimento, cognição e ciência que emergem dos escritos peirceanos
também parecem se desenvolver à margem daquelas teorias e reflexões epistemológicas
produzidas pela maioria dos filósofos modernos. O posicionamento filosófico de Peirce,
sobretudo, em questões epistemológicas, lembra muito a decisão de um personagem de
um conto do escritor brasileiro Guimarães Rosa. Neste conto, intitulado "A terceira
margem do rio", Guimarães Rosa nos relata a história de um pescador que, após ter
decidido morar numa canoa, posta a flutuar sobre as águas de um rio, nunca mais voltou
a por o pé em terra firme. O motivo que nos leva a considerar (no mínimo) inusitada a
decisão deste pescador parece ser o mesmo que nos leva a ficar incomodado com a
proposta teórica Peirce. É uma espécie de "terceira margem" que cria dentro da
semiótica peirceana e da semântica que lhe é peculiar uma noção de fluxo da qual não
parece haver um traço sequer nas demais teorias que tentam explicar os mesmos
fenômenos. Ao introduzir este terceiro elemento, a solução teórica peirceana torna-se
não somente estranha ou anti-natural, mas parece essencialmente falha, pois é uma
teoria semântica que, para explicar a relação de representação, recorre à noção de
processo inacabado, incompleto, sem um norte pré-definido. Como no conto, a terceira
margem não pode ser vista. É uma solução que parece não solucionar.
439
Entretanto, há na filosofia peirceana um contraponto à noção de fluxo instalado no
coração da semiótica pela caracterização recursiva de representação e esperamos que
nossa tese tenha contribuído para explicitá-lo. Este contraponto é a ideia que a verdade
ou a realidade é um ponto de fuga de um processo interpretativo que só pode ser levado
adiante por um sujeito cognoscente supra-individual, a comunidade indefinida de
investigadores ou, na feliz expressão de Haack (1982, p. 156), a "comunidade
cognitiva". Se levarmos às últimas consequências as teses elementares da semiótica (e
nossa tese a respeito da recursividade na semiótica peirceana tentou ir nesta exata
direção), notaremos que o conceito de comunidade cognitiva e este processo de
convergência previsto pela teoria peirceana da cognição tendem a construir um conceito
de linguagem (uma espécie de sistema [de signos] compartilhado por uma comunidade)
como um ponto de estabilidade em contraposição ao caráter inacabado, incessante,
incompleto dos processos cognitivos entendidos como processos individuais, privados.
A estabilidade da linguagem é o anverso do fluxo sígnico.
Se, por um lado, Peirce, para cortar a incognoscibilidade pela raiz (uma vez que ela
tornaria irremediavelmente inexplicável a possibilidade dos raciocínios sintéticos),
precisou eliminar as intuições como pontos fundantes do processo de conhecimento
(para tornar assim explicáveis os raciocínios sintéticos), por outro lado, ao descartar as
intuições nestes papéis fundantes, ele acabou por criar sobre sua epistemologia uma
atmosfera de incerteza, probabilidades, flutuações. A saída teórica peirceana para
contrabalancear esta atmosfera de incerteza é propor a existência de critérios externos
de validação para o processo de conhecimento. É como se os pensamentos "ocorressem"
fora da cabeça dos indivíduos. De acordo com a semiótica peirceana, o acesso que
temos a nossos próprios pensamentos é indireto, i.e., este acesso é mediado por signos.
Como Peirce insinua em mais de uma ocasião (cf. CP 5.266 [1868] e também 5.245
[1868]) que este acesso indireto só pode ser realizado por um signo entendido como
algo externo ou, ao menos, como algo que se supõe externalizável, então só podemos ter
acesso aos nossos pensamentos porque nossa atividade cognitiva funciona pressupondo
a possibilidade de externalização de nossos pensamentos. Se esta interpretação estiver
correta, então os chamados estados internos de nossa mente só podem ser identificados
e acessados a partir de elementos externos, públicos. Os critérios que nos permitem
identificar um pensamento e, em última análise, validar um raciocínio são externos.
Então, o conceito de linguagem pode emergir como uma espécie de plataforma cuja
função é criar alguma estabilidade no fluxo de signos. Neste caso, entendem-se por
signos tanto aqueles expedientes sensíveis externos, as palavras, por exemplo, como
aqueles internos, as ideias. A linguagem funciona como uma base compartilhada que
permite o desenvolvimento do pensamento dirigido à representação da realidade.
Nossa tese (a respeito do tipo de caracterização do conceito de representação na
semiótica peirceana) se encaminha para a demonstração de que, dentro do sistema
filosófico peirceano, o conceito de linguagem (entendido como uma espécie de sistema
[de signos] compartilhado por uma comunidade) tem a função de contrabalancear o
efeito perturbador do estabelecimento de uma epistemologia sem fundações. A
440
estabilidade da linguagem (que é garantida por um conjunto de normas de uso, regras
gramaticais, hábitos interpretativos e estruturas relativamente duráveis) é o contraponto
da instabilidade e fluidez de um sistema de crenças para o qual não pode ser encontrada
fundação completamente segura, inabalável. De acordo com nossas análises dos
movimentos argumentativos mais gerais do pensamento peirceano desenvolvido ao final
da década de 1860, o sujeito do conhecimento é necessariamente coletivo, ao menos
daquele conhecimento do qual se espera um dia poder afirmar ser válido, verdadeiro,
genuíno. Na epistemologia apresentada por Peirce, a possibilidade (ou esperança) de
validação lógica do pensamento foi depositada nas mãos da comunidade. A semiótica é
a lógica observada de uma perspectiva social. Para Peirce, esta é a única perspectiva que
nos permite explicar como são possíveis os raciocínios sintéticos ou ampliativos,
explicar como é possível haver crescimento do conhecimento. Em poucas palavras,
semiótica é a lógica no seio da vida social.
441
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