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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gustavo Rick Amaral Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem Peirce DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL sob a orientação do Professor Doutor Winfried Nöth. SÃO PAULO 2014

Os conceitos de representação e recursividade na obra do

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Page 1: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gustavo Rick Amaral

Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem Peirce

DOUTORADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor em

TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL

sob a orientação do Professor Doutor Winfried Nöth.

SÃO PAULO

2014

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BANCA EXAMINADORA

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Este trabalho é dedicado a Paula Salazar,

exemplo de força e vida

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Agradecimentos

Ao professor e orientador Winfried Nöth,

pelo rigor germânico e por ser um orientador "padrão Fifa"

(no"país da CBF")

À professora Lucia Santaella,

por ter me apresentado e me guiado pela densa selva dos

escritos peirceanos e especificamente por ter elaborado, ao

longo de trinta anos, uma abordagem à semiótica de Peirce

que criou um norte para esta pesquisa

Ao professor Edélcio Gonçalves de Souza,

cujas aulas e seminários a respeito de lógica e teoria de

conjuntos tornaram possível parte considerável das análises

desenvolvidas nesta pesquisa

Ao professor Jorge de Albuquerque Vieira,

pela magnificência com a qual consegue formar pontes sobre

o abismo que separa a mentalidade reinante na área "das

exatas" daquela que reina na área "das humanas"

A Paula Salazar,

pela paciência, companhia e apoio ao longo desses quatro

anos de pesquisa e, sobretudo, pelo exemplo de superação e

coragem oferecido a todos que testemunharam sua vitória

contra uma das maiores adversidades que um ser humano pode

encontrar nesta vida.

À família que deixei em Brasília,

minha mãe, meu pai e meu irmão,

sempre presentes mesmo estando longe.

À família que me acolheu quando cheguei na “cidade grande”

Tia Rosa, Manu e Maurício,

Aos amigos de Brasília,

que sempre nos obrigam a pensar diversas vezes em

retornar à cidade natal.

Aos amigos de São Paulo,

principalmente, Marcelo Santos e Tarcísio Cardoso,

por ainda terem, depois de alguns anos, paciência

para ouvir minhas divagações teóricas.

E também à Poliana e ao Caio.

Aos Gatos,

Chico Legi, Branquinha, Amelie, Zuzu, Toninho,

Lechuga e Maria Eduarda,

pela inseparável companhia.

Devo agradecer ainda ao corpo docente do TIDD

Um agradecimento especial a Edna, pela infinita paciência e presteza, e à CAPES, pela concessão da

bolsa de estudos.

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Palavras-chave: representação, recursividade, interpretante, cognição, semiótica, Peirce.

Resumo: Esta tese versa sobre o tipo de definição ou caracterização que Peirce utilizou

para construir um conceito central dentro de sua semiótica: o conceito de representação.

As análises que foram desenvolvidas para sustentar esta tese se limitam aos escritos

peirceanos do final da década de 1860, época em que o pensamento de Peirce começa a

se afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos próprios. O foco de toda a pesquisa

realizada para a sustentação desta tese é o elemento lógico do sistema filosófico de

Charles S. Peirce, i.e., a estruturação argumentativa desenvolvida pelo filósofo para

validar as teorias que são oferecidas como respostas a problemas filosóficos.

De modo diverso das abordagens diádicas desenvolvidas para explicar o funcionamento

de um processo de representação, a concepção de representação elaborada por Peirce

dentro da semiótica é triádica e esta diferença está longe de ser meramente numérica.

Nossa tese é que, com a introdução desse terceiro elemento (o interpretante), a

caracterização do conceito de representação (elaborado dentro da semiótica peirceana)

torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterização é uma exigência interna

da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou ser o problema

central da filosofia: como são possíveis os raciocínios sintéticos (i.e., ampliativos) ou,

sob outro ângulo, como é possível haver crescimento do conhecimento?

Com intuito de provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade deste tipo de

caracterização conceitual dentro do projeto filosófico peirceano, dedicamos parte

considerável deste texto à tarefa de estabelecer não apenas que a semiótica é central

para tal projeto, mas também estabelecer que algumas teses centrais dentro da semiótica

são decorrência direta do fato do conceito de representação ter sido definido ou

caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais foram denominadas de teses

elementares da semiótica: "não há primeiro signo (num processo interpretativo)" e

"não há último signo (num processo interpretativo)". Então, para que seja sustentável a

solução teórica encontrada por Peirce para o (que considera o) problema central da

filosofia, estas duas teses elementares acima referidas têm que ser estabelecidas dentro

da teoria semiótica (desenvolvida pelo próprio Peirce), e o estabelecimento destas teses

depende da recursividade que é encontrada dentro da concepção de signo ou de

processo representativo (e é introduzida pelo conceito de interpretante). Portanto, a

nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do conceito de representação

que está no coração do conceito de signo da semiótica peirceana é necessariamente

recursiva, pois sem esta recursividade, simplesmente não seria possível derivar as duas

teses elementares da semiótica.

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Key words: Representation, recursion, interpretant, cognition, semiotics, Peirce.

Abstract: This thesis addresses the type of definition or characterisation used by Peirce

to formulate a central concept within his semiotics: the concept of representation.

Analyses carried out to support this thesis are limited to Peirce's texts from the end of

the 1860s, an era in which Peirce's thinking begins to detach itself from his Kantian

matrix and take on its own features. The focus of all research conducted in support of

this thesis is the logical element of Charles S. Peirce’s philosophical system, i.e. the

argumentative structuring developed by the philosopher to validate the theories offered

as responses to philosophical problems.

Differently from dyadic approaches developed to explain the workings of a

representation process, the conception of representation elaborated by Peirce within

semiotics is triadic and such difference is far from merely numerical. Our thesis is that,

with the introduction of this third element (the interpretant), characterisation of the

concept of representation (elaborated within Peircean semiotics) becomes recursive by

necessity and such characterisation is an in-built requirement of the theory that Peirce

intends to offer as an answer to what he considered to be the central issue of

philosophy: how is synthetic (i.e. ampliative) reasoning possible or, from another angle,

how is it possible for knowledge to grow?

With a view to proving our thesis in respect of the necessity for this type of conceptual

characterisation within the Peircean philosophical project, we have dedicated a

significant part of this text to the task of establishing not only that semiotics is central to

such a project, but also to demonstrating that some central semiotic theses are a direct

result of the fact that the concept of representation has been defined or characterised in a

recursive manner. These central theses were termed elementary theses (of semiotics):

"there is no first sign (in an interpretative process)" and “there is no last sign (in an

interpretative process)". Therefore, to render the theoretical solution found by Peirce

sustainable for the (what he considered to be) central issue of philosophy, the two

elementary theses referred to above must be established within semiotic theory

(developed by Peirce himself), and their establishment depends on the recursion found

within the concept of a sign or of a representative process (and introduced by the

concept of interpretant). Our thesis is, therefore, precisely that the characterisation or

definition of the concept of representation at the heart of the Peircean semiotics sign

concept is necessarily recursive, because without such recursion it would simply be

impossible to derive the two elementary theses of semiotics.

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SUMÁRIO

Introdução Geral......................................................................................................................................... 2

CAPÍTULO 1 - Semiótica: a respeito das origens................................................................................. 11

CAPÍTULO 2 - Lógica e as raízes da semiótica..................................................................................... 23

2.1 - Síntese: de Hume a Kant............................................................................ ............................. 27

2.2 - Sinai: de Kant a Peirce............................................................................................................ 42

2.3 - Síntese: a distância entre Kant e Peirce................................................................................... 52

CAPÍTULO 3 - O problema das fundações............................................................................................ 58

3.1 - O projeto cartesiano da fundação última do conhecimento físico-matemático....................... 61

3.2 - A impossibilidade do projeto das fundações seguras.............................................................. 80

3.3 - Um modelo lógico da mente.................................................................................... ............... 87

CAPÍTULO 4 - Introdução à análise do texto "Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem" (QFCM) e análise da primeira questão............................................ 97

4.1 Análise (da primeira parte) da Q1: Sobre a capacidade intuitiva de distinguir intuições........ 104

4.2 Análise (da segunda parte) da Q1: sobre a capacidade intuitiva de distinguir intuições......... 129

CAPÍTULO 5 - Análise da segunda e da terceira questões do texto "Questões concernentes a certas

faculdades reivindicadas para o homem"............................................................................................. 147

5.1 Análise da Q2: sobre a autoconsciência intuitiva................................................................. ... 148

5.2 Análise da Q3: sobre elementos subjetivos de diferentes tipos de cognições......................... 168

CAPÍTULO 6 - Análise da quarta questão do texto "Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 180

6.1 Análise da Q4: sobre a capacidade de introspecção................................................................ 181

6.2 Excurso: o problema do segundo tipo de intuição.................................................................. 194

CAPÍTULO 7 - Análise da quinta questão do texto "Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 208

7.1 Análise (da primeira parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar sem signos........................ 209

7.2 Análise (da segunda parte) da Q5: sobre a capacidade de pensar sem signos......................... 225

CAPÍTULO 8 - Análise da sexta e da sétima questões do texto "Questões concernentes a certas

faculdades reivindicadas para o homem"............................................................................................. 236

8.1 Análise da Q6: sobre o significado do incognoscível.............................................................. 237

8.2 Análise da Q7: sobre as origens.................................................................. ............................ 247

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CAPÍTULO 9 - Resultados da análise do texto "Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"................................................................................................................ 273

9.1 Primeiro movimento argumentativo geral do QFCM: o estabelecimento da tese-base da

semiótica......................................................................................................................................276

9.2 Segundo movimento argumentativo geral do QFCM: o estabelecimento da tese a respeito das

origens do processo cognitivo......................................................................................................290

CAPÍTULO 10 - Análise do texto "Sobre uma nova lista de categorias" (ONLC).......................... 298

10.1 Primeira parte da análise do ONLC: conceitos-chave........................................................... 302

10.2 Segunda parte da análise do ONLC: método de exposição hipotético-construtivo.............. 316

10.3 Terceira parte da análise do ONLC: método de exposição hipotético-desconstrutivo.......... 320

10.4 Quarta parte da análise do ONLC: a síntese no contexto argumentativo.............................. 327

CAPÍTULO 11 - Análise da definição de interpretante dentro do texto "Sobre uma nova lista de

categorias" (ONLC).................................................................................................................. .............. 335

11.1 A primeira definição de Interpretante dentro do modelo triádico de signo........................... 337

11.2 Análise dos exemplos que acompanham a primeira definição de Interpretante dentro do

modelo triádico de signo................................................................................................................ 340

11.3 Excurso: alguns modelos de interpretação do conceito peirceano de representação............. 353

CAPÍTULO 12 - Interpretante e recursividade................................................................................... 357

12.1 Análise do trecho de Savan a respeito da relação entre interpretante e recursividade...........359

12.2 A caracterização recursiva do conceito de representação na semiótica peirceana.................368

12.3 Recursividade e a sétima questão do QFCM..........................................................................377

CAPÍTULO 13 - Recursividade e a concepção de representação como fluxo................................... 385

13.1 As teses elementares da semiótica..........................................................................................387

13.2 A recursividade como condição necessária............................................................................403

13.3 A Hipótese da prisão linguística.............................................................................................413

Considerações finais ............................................................................................................................... 434

Referências............................................................................................................................................... 441

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2

Introdução Geral

A ideia de representação na semiótica peirceana

Precisamente, esta tese de doutorado trata do tipo de definição ou caracterização que

Peirce utilizou para construir um conceito central na sua teoria semiótica: o conceito de

representação. Nossa tese é que, com a introdução do terceiro elemento (denominado

interpretante) na definição peirceana de signo, a caracterização do conceito de

representação torna-se necessariamente recursiva e este tipo de caracterização é uma

exigência interna da teoria que Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou

ser o problema central da filosofia: como são possíveis os raciocínios sintéticos (i.e.,

ampliativos) ou, sob outro ângulo, como é possível haver crescimento do conhecimento?

O que pretendemos provar nas próximas centenas de páginas é que esta caracterização

recursiva é uma condição necessária para a sustentação do projeto filosófico elaborado

pelo jovem Peirce na década de 1860, época em que o pensamento peirceano começa a se

afastar de sua matriz kantiana e ganhar contornos próprios. Portanto, as análises e

argumentos que desenvolveremos a seguir recobrem apenas a fase inicial da construção

do sistema filosófico peirceano, embora acreditemos que as principais teses defendidas no

interior da semiótica bem como esta caracterização recursiva da representação são

elementos essenciais ao pensamento semiótico de Peirce, o que nos leva a acreditar (sem

obviamente poder estabelecer [nesta tese] este ponto) que tais elementos permaneceram

sob todas as reformulações às quais o próprio Peirce submeteu seu sistema filosófico ao

longo do tempo1. A estrutura geral e os principais componentes deste projeto filosófico

elaborado pelo jovem Peirce na década de 1860 serão apresentados no primeiro capítulo.

Nossa tese central pode ser expressa da seguinte forma:

TESE de Doutorado - A caracterização do conceito de representação (interno

à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva.

As descrições de Peirce sobre processos de significação e as definições de signo2

invariavelmente incluem três elementos: o signo (propriamente dito), o objeto e o

1 Esta tese à qual aludimos (sem querer alimentar a esperança no leitor de que teremos a oportunidade de

defendê-la) afirma apenas que algumas teses e algumas características da teoria semiótica elaborada ao final

da década de 1860 não foram alteradas em versões posteriores. Isto é muito diferente de afirmar que não

houve mudança alguma na semiótica e mesmo na filosofia peirceana (ao longo da carreira de Peirce). Por

exemplo, é de conhecimento até do reino mineral que, entre o período de 1870 - 1885, Peirce desenvolveu

um novo aparato para análise lógica que passou a chamar de "lógica dos relativos" (que consiste justamente

na introdução do uso de quantificadores e variáveis ligadas na análise lógica e seria equivalente ao que hoje

entendemos por lógica de primeira ordem). Este novo aparato teve um impacto considerável, pois é a partir

dele que Peirce reorganiza seu sistema de categorias (que está na base de seu sistema filosófico). 2 Como veremos no décimo segundo capítulo, há um interminável debate entre os estudiosos da obra

peirceana se, de fato, Peirce denominou de signo a relação triádica como um todo (i.e., a relação entre

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interpretante. Em termos gerais, o signo é um conceito que Peirce utiliza para descrever

um processo representacional em que um primeiro elemento (o signo propriamente

dito), para representar um segundo elemento (o objeto da representação), deve

necessariamente produzir um terceiro elemento (denominado de interpretante) que

possui função mediadora. A recursividade essencial a este modo de explicar o

funcionamento de um processo de representação está no modo como este terceiro

elemento é definido. Como, para haver representação entre os dois primeiros elementos,

é necessário que o terceiro elemento entre em cena e este terceiro elemento é ele mesmo

uma representação (um novo primeiro elemento, ou seja, um novo signo), então ele

deve necessariamente produzir um quarto elemento (i.e., um novo terceiro elemento, ou

seja, um novo interpretante) e assim por diante. O modo recursivo como foi definido o

terceiro elemento do signo cria, dentro da semiótica, uma noção de sequência ou

processo. Como veremos, uma sequência de interpretantes ou um processo

interpretativo. O conceito de representação, dentro da semiótica peirceana, é captado

por esta noção de sequência ou processo interpretativo (introduzida na teoria pelo

terceiro elemento acima mencionado). A nossa tese central é que a noção geral de

recursividade é fundamental não apenas para os campos da matemática, da lógica e,

mais recentemente, da computação, mas também para a semiótica (no caso, peirceana).

A ideia de correlacionar este conceito peirceano de interpretante com o conceito de

recursividade nos foi sugerida por uma breve passagem de um texto de David Savan3.

Nesta passagem, Savan afirma que o "o que há de característico de quase todas

definições peirceanas de interpretante (...) é que o terceiro relatum é uma instância ou

uma réplica de uma regra de recursão" (Savan, 1986, p. 133). A definição de

recursividade da qual Savan lança mão para esclarecer o que Peirce entende por

interpretante está presente no livro "Mathematical logic" do filósofo e lógico norte-

americano W. Quine. Na verdade, no trecho do livro de Quine, citado por Savan,

encontramos uma definição do que é uma definição recursiva ou uma caracterização

recursiva de um conceito. De acordo com a definição fornecida por Quine,

"qualquer noção geral que é resolvida numa sequência infinita de casos especiais é dita

recursivamente caracterizada quando explicamos o primeiro caso e adicionamos uma

regra geral que descreva (i+1)-ésimo caso, para cada i, em termos dos primeiros i casos"

(Quine, 1981, p. 86). Vejamos um exemplo para que esta noção de recursividade se

torne mais palpável.

Na verdade, não tão palpável assim, uma vez que escolhemos um exemplo proveniente

do campo da matemática mesmo sabendo que, com isso, devemos perder nas próximas

signo, objeto e interpretante) ou ele apenas reservou o termo "signo" para se referir à primeira posição

dentro dessa relação triádica. 3 Como veremos com mais detalhes no caítulo 12, na época em que Peirce estava lançando os

fundamentos de sua semiótica (ao final da década de 1860), o conceito de recurisividade ainda não havia

sido plenamente desenvolvido e definido de forma precisa, embora os lógicos e matemáticos deste

período já tivessem alguma noção (ainda que vaga) do procedimento de recursividade. De acordo com

Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, o próprio Peirce parece ter sido o responsável pela primeira definição

recursiva que se tem notícia sem, no entanto, ter estabelecido formalmente o que vem ser uma definição

recursiva (cf. Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, 1973, p. 299)

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linhas parte de nossos leitores. Na matemática, o fatorial de um número qualquer é uma

certa operação definida como o produto de todos os números que sejam iguais ou

menores que o número em questão. Esta operação é representada pelo símbolo " ! ".

Assim, o fatorial de um número n é representado como n! e o resultado desta operação é

" n x (n - 1)! ", ou seja, o valor resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n

é o número n multiplicado pelo fatorial de seu antecessor. Por exemplo, para que

saibamos o resultado do fatorial do número 3 é necessário que calculemos o seguinte

produto: 3 x 2 x 1. Obviamente, o resultado da operação 3! é 6.

Como acreditamos que esta operação já esteja minimamente esclarecida, passemos a fazer

algumas observações sobre o modo como ela foi definida, que é o ponto que efetivamente

nos interessa neste texto introdutório. No parágrafo anterior, afirmamos que o valor

resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n é o número n multiplicado pelo

fatorial de seu antecessor, ou seja, o resultado da operação n! é n x (n - 1)! . Isto significa

que o resultado desta operação depende do resultado desta mesma operação para um caso

anterior. A ideia de recursividade está presente justamente no fato desta operação recorrer

à uma referência a ela mesma para poder ser definida. A definição não é circular, como

veremos, pois esta recorrência é sempre efetuada para um caso anterior da aplicação da

operação definida. Este caso anterior é dado por uma sequência.

Podemos apresentar esta definição ou caracterização recursiva da operação fatorial com

apenas duas cláusulas. As duas cláusulas ou regras que compõem esta definição

recursiva funcionam como um algoritmo que serve para que encontremos o resultado da

operação fatorial aplicada sobre algum número específico.

Caracterização recursiva da operação fatorial

Cláusula n°1 (cláusula base) --> Se o número (diante do símbolo que representa a

operação fatorial) for menor ou igual a 1, então o valor da operação fatorial é 1.

Cláusula n°2 (regra geral) --> Caso o número (diante do símbolo que representa a

operação fatorial) tenha outro valor que não seja menor ou igual a 1, então o

valor da operação fatorial é o valor do número multiplicado pelo valor da

operação fatorial aplicada sobre o antecessor deste número.

Por exemplo, calculemos a operação 4! . O primeiro passo é olhar para o número que

está na frente símbolo que representa a operação fatorial. Neste caso é o número 4.

Vejamos se devemos aplicar a este número a primeira ou segunda cláusula. Não é difícil

perceber que não podemos aplicar a primeira delas, pois a condicionante desta cláusula

nos diz que ela só deve ser aplicada a números que forem menores ou iguais a 1.

Obviamente o 4 não cumpre esta condicionante. Assim, temos que nos encaminhar para

a segunda cláusula (uma vez que o número tem um valor que não igual nem menor que

1). De acordo com a segunda cláusula, devemos pegar o número 4 e multiplicá-lo pelo

resultado da operação fatorial aplicada sobre aquele número que antecede o número 4.

Page 20: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

5

Ora, o número que antecede ao número 4 é o número 3. Logo, o que a segunda cláusula

nos pede para fazer é multiplicar o número 4 pelo resultado da operação fatorial

aplicada sobre o número 3. Em símbolos, o que a segunda cláusula nos solicita fazer é

encontrar o valor de 4 x 3! . Isto significa que, para encontrarmos o valor de 4!, é

preciso, antes, encontrar o valor de 3!. E de onde vamos tirar o resultado da operação

fatorial 3! ? Simples, basta que apliquemos a esta operação a segunda cláusula (uma vez

que, como o número 3 não é menor ou igual a 1, então ele também não cumpre a

condicionante da primeira cláusula). Aplicar a segunda cláusula significa isolar o

número 3 e multiplicá-lo pelo resultado da operação fatorial aplicada sobre o seu

antecessor, que é o número 2. Então, o que temos é que o valor de 3! é dado pela

operação 3 x 2! . E, assim, estamos diante de outro fatorial: a operação 2! . Mais uma

vez, perguntemo-nos o que pode ser feito para encontrar o valor de 2! ? Claro está que

devemos aplicar a segunda cláusula novamente, pois o número 2, como o 3 e o 4,

também não cumpre a condicionante expressa na primeira cláusula. Ao aplicar a

segunda cláusula ao número 2, descobrimos que o valor de 2! é 2 x 1! (pois o número q

é o antecessor de 2). E isto nos põe novamente diante de outro fatorial: a operação 1!.

Entretanto, esta é a última delas, pois, pela primeira vez, estamos diante de uma

operação fatorial feita sobre um número que é igual ou menor que 1. Isto significa que

está cumprida a condição para aplicarmos a primeira cláusula. Logo, o valor de 1! é 1.

Note que, ao contrário de todos os outros passos anteriores esta operação ( 1! ) não nos

apresentou como resultado outro fatorial.

Revisemos nossos passos. Começamos nos perguntando pelo valor de 4! . Descobrimos

que 4! = 4 x 3! . Então nos perguntamos pelo valor de 3! e descobrimos que 3! = 3 x 2! .

Com isso, sabemos que o valor de 4! é, na verdade, 4 x 3 x 2! . Porém, o valor de 2! é 2

x 1! . Logo, o valor de 4! é 4 x 3 x 2 x 1! . Mas, deve-se recordar que o valor de 1! (pela

primeira cláusula) é 1. Assim, o que temos é que 4! tem como valor o resultado da

seguinte multiplicação: 4 x 3 x 2 x 1 . Logo, o valor de 4! é 24.

Por qual motivo esta definição apresentada da operação fatorial é denominada

recursiva? A recursividade está justamente no fato de que, segundo esta definição, para

saber o resultado da aplicação desta operação sobre um número n temos que recorrer ao

resultado desta mesma operação aplicada sobre o antecessor do número n (i.e., o número

n - 1) e esta recorrência é feita até que se atinja um ponto de parada. Da mesma forma,

as definições que Peirce oferece de signo também possuem tal noção geral de

recursividade. Na semiótica, conforme a sugestão de Savan (que citamos acima), a

recursividade fica patente na definição do terceiro elemento do signo, o interpretante. O

terceiro elemento possui um papel de mediação essencial em qualquer processo de

representação. Para haver representação, deve sempre haver produção de interpretante.

Dentro dos limites da semiótica peirceana, uma coisa não pode representar outra sem

produzir um interpretante, i.e., sem recorrer a um terceiro elemento mediador. Um signo

A apenas pode representar um objeto B caso seja produzido um interpretante C, que, por

sua vez, é um novo signo do mesmo objeto B. Porém, se afirmamos que C é um novo

signo, então ele deve produzir um novo interpretante D (que, por sua vez, será um novo

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6

signo para o mesmo objeto B) e, assim, ele também deve produzir (por ele mesmo)

outro interpretante E. Tal processo de representação continua indefinidamente. Porém,

deve-se chamar atenção para uma importante característica (das definições de signo de

Peirce), o resultado de uma representação específica também depende de uma

representação anterior. Claro está que, neste exemplo, começamos pelo signo A.

Entretanto, este signo deve ser entendido como resultado de uma representação anterior

ainda que não tenhamos nos referido a ela diretamente.

Na semiótica peirceana, a relação de representação entre o signo e objeto

necessariamente produz um interpretante e esta relação é ela mesma necessariamente

resultado de algum interpretante anterior. Assim, toda representação entre um signo e

um objeto deve desencadear um processo interpretativo e deve ela mesma ser resultado

de um processo interpretativo anterior. Isto significa que não há um ponto de origem

para o processo de representação. É como se estivéssemos diante de um processo

definido recursivamente para o qual não há cláusula base. Não há um ponto de partida,

nem um ponto de chegada pré-estabelecido. O que há é fluxo. Isto nos leva a uma

estranha teoria que entende a representação como um processo que necessariamente

ocorre numa espécie de fluxo.

Estrutura da tese

Para que possamos provar esta (nossa) tese a respeito da necessidade do tipo de

caracterização conceitual mobilizada dentro do projeto filosófico peirceano, seremos

obrigados a estabelecer, em primeiro lugar, que a semiótica é uma teoria central neste

projeto e, em segundo lugar, que algumas teses centrais dentro da semiótica são

decorrência direta do fato de o conceito de representação ter sido definido ou

caracterizado de forma recursiva. Estas teses centrais serão denominadas de teses

elementares da semiótica (e serão explicadas de forma mais detalhada no nono

capítulo).

Teses elementares da semiótica peirceana

Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo interpretativo).

Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo interpretativo).

Assim, podemos resumir da seguinte forma a ligação entre todas estas ideias (i.e., entre

as teses defendidas pelo próprio Peirce em seus escritos e a nossa tese acerca da

semiótica peirceana): para que seja sustentável a solução teórica encontrada por Peirce

para o (que considera o) problema central da filosofia, estas duas teses elementares

Page 22: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

7

acima apresentadas têm que ser estabelecidas dentro da teoria semiótica (desenvolvida

pelo próprio Peirce), e o estabelecimento destas teses depende da recursividade que é

encontrada dentro da concepção de signo ou de processo representativo (e é introduzida

pelo conceito de interpretante). Se, por um lado, como pretendemos provar, estas duas

teses são condições necessárias para a sustentação do projeto filosófico peirceano, por

outro lado, como também pretendemos provar, a caracterização recursiva de

representação (mobilizada por Peirce para definir a relação entre signo, objeto e

interpretante) é uma condição necessária para o estabelecimento das duas teses

elementares. Portanto, a nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do

conceito de representação que está no coração do conceito de signo da semiótica

peirceana é necessariamente recursiva. Sem esta recursividade, simplesmente não seria

possível derivar as duas teses elementares da semiótica: "não há primeiro signo num

processo interpretativo" (Tese_1 da semiótica) e "não há último signo num processo

interpretativo" (Tese_2 da semiótica). Como veremos no último capítulo, se

concebermos uma teoria semiótica alternativa àquela proposta por Peirce, i.e., sem a

caracterização recursiva de representação, não seria possível garantir que, em todo

processo interpretativo, não haja ponto originário ou ponto de chegada preestabelecido.

Isto significa que a teoria da representação que está subentendida no projeto filosófico

peirceano necessariamente mobiliza um conceito de "representação como fluxo". Como

teremos a oportunidade de explicar detalhadamente, o conceito de interpretante

(proveniente da semiótica) deve ser entendido como uma espécie de princípio que

instaura um processo representacional (uma cadeia de interpretantes) que ocorre num

fluxo, sem ancoragem alguma, sem ponto de partida ou chegada absoluto.

Como nossa tarefa consiste em mostrar que a recursividade é uma condição necessária

para o projeto filosófico peirceano, ou seja, para as soluções teóricas propostas por

Peirce em seu sistema filosófico, então teremos que começar pela explicação e

contextualização deste projeto. Por este motivo, antes mesmo de nos voltarmos para as

análises dos argumentos elaborados por Peirce e para a argumentação de nossa tese

(propriamente dita), parte considerável de nosso texto é dedicada a apresentar o

surgimento da semiótica nos escritos peirceanos da década de 1860. Assim, optamos

por dividir nosso texto em três grandes partes: I) o panorama histórico do surgimento da

semiótica no pensamento peirceano e a relação da filosofia de Peirce com outros

sistemas filosóficos, como o de Kant e de Descartes (capítulos 1,2 e 3); II) as análises

do texto peirceano (capítulos 4 - 11)4; III) as argumentações para sustentação da tese

propriamente dita (capítulo 12 e, sobretudo, 13): "a caracterização do conceito de

representação (interno à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva".

4 Aproveitemos este texto introdutório para esclarecer o significado de algumas abreviações de títulos ou

coletâneas de textos elaborados por Peirce que deverão aparecer ao longo desta tese: CP – Collected

Papers; NEM – The New Elements of Mathematics; EP – Essential Peirce; MS – Manuscritos da

Houghton Library. As referências aos “Collected Papers” serão feitas pela numeração relativa ao volume

e ao parágrafo (e não às páginas). Por exemplo, uma citação cuja referência bibliográfica esteja CP 2.101

quer dizer que tal trecho pertence ao parágrafo de número 101 do segundo volume dos “Collected

Papers”. As referências ao "Essential Peirce" serão feitas pela numeração relativa ao volume seguida de

uma numeração para as páginas. Por exemplo, "EP2, p.44" significa que o trecho em questão está na

página 44 do segundo volume do "Essential Peirce".

Page 23: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

8

Algumas observações sobre metodologia

O foco deste trabalho é o elemento lógico do sistema filosófico de Charles S. Peirce. E

por elemento lógico entendemos a estruturação argumentativa da obra que constitui e

valida as teorias apresentadas pelo filósofo como respostas a problemas (filosóficos)

estabelecidos internamente, i.e., dentro de seu próprio sistema filosófico, ou

externamente, i.e., pela tradição. Assim, procuramos organizar toda a exposição a ser

feita do pensamento peirceano (e também das análises e interpretações acerca dele) em

torno do que pode ser considerado o problema central da filosofia de Peirce: a

possibilidade das sínteses (ou, em outros termos, a possibilidade da ampliação do

conhecimento, de um sistema de crenças). De acordo com Martial Gueroult (2007

[1957]), considerar que também a atividade filosófica (como a científica) procura

resolver problemas por meio de teorias é entender a filosofia a partir da noção de

problemática.

Sendo, como a ciência, um esforço para conhecer e compreender o real, a

filosofia institui, como ela, uma problemática. Todas as grandes doutrinas

podem se caracterizar a partir de problemas: problema do uno e do múltiplo

entre os pré-socráticos; problema da possibilidade da ciência e da predicação

em Platão; problema das causas primeiras, da demonstração, do método

geral das ciências da natureza em Aristóteles; problema do fundamento da

física matemática em Descartes; problema do fundamento da possibilidade

das ciências e da metafísica como ciência em Kant; problema dos vínculos

entre a história e o racional em Hegel, etc.

Como a ciência, a filosofia deve, ao instituir problemas, respondê-los através

de teorias. Ora, toda teoria só é válida na medida em que é demonstrada. A

demonstração não visa simplesmente que a teoria seja imposta a outrem,

mas que faça nascer em toda inteligência, incluindo na de seu protagonista,

a intelecção do problema e de sua solução.

É por isso que o elemento lógico deve assumir em toda filosofia, não uma

função de tradução (de uma paisagem mental ou de uma intuição), mas uma

função de validação e até de constituição.

(Gueroult, 2007 [1957], p. 235)

Ao longo de nossa exposição do pensamento peirceano daremos pouca atenção a fatores

externos ao sistema filosófico como as (denominadas) condicionantes históricas ainda

que saibamos serem elas relevantes para determinados tipos (bem habituais) de

abordagem da obra de um filósofo. Da mesma forma, pouca atenção será dada a outros

tipos de fatores externos como condicionantes pessoais, psicológicas, culturais, sociais,

etc. . Fortemente inspirados por uma abordagem estruturalista, consideraremos o texto

peirceano um objeto autônomo, como um conjunto de teses e movimentos

argumentativos que devem ser subtraídos do tempo histórico e entendidos dentro de um

tempo lógico (cf. Goldschmidt, 1970 [1949], p. 139). Com isso, não pretendemos, de

forma alguma, depreciar análises que também levem em conta estes fatores (que aqui

Page 24: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

9

denominamos de) externos. Porém, três motivos podem ser arrolados para justificar a

desconsideração desses fatores externos na presente tese. Os dois primeiros motivos são

carências: de espaço e de competência. Em primeiro lugar, como o leitor notará, a

análise somente de "fatores internos" ao texto peirceano nos tomou tantas páginas

(centenas delas) que nos falta espaço para desenvolver análises de qualquer outro tipo.

Em segundo lugar, falta-nos competência para elaborar análises mais rigorosas (que

valeriam a pena serem publicadas) acerca desses fatores externos citados. Deixemos

esta tarefa para especialistas (historiadores, psicólogos, sociólogos, antropólogos, etc.).

O terceiro e mais importante dos motivos é que esta desconsideração decorre de uma

opção metodológica. Para esclarecer este posicionamento metodológico é preciso

observar que a sustentação da tese que pretendemos defender depende de uma

interpretação global do sistema filosófico peirceano (ao menos dos seus primeiros

desenvolvimentos). Não só a sustentação de nossa tese propriamente dita, mas também

o estabelecimento de grande parte dos passos intermediários (que nela desembocam) só

faz sentido a partir de uma interpretação global do sistema filosófico peirceano. A

afirmação de que "a caracterização do conceito de representação (interno à teoria

semiótica peirceana) é necessariamente recursiva" só pode ser justificada na

dependência de algum quadro interpretativo. O que pretendemos, com esta tese, é

simplesmente oferecer uma interpretação de um conceito central ao pensamento

peirceano com o objetivo de enxergar o seu papel dentro do sistema como um todo, ou

seja, sua função na resolução do problema maior da filosofia peirceana (aquele relativo

às possibilidades das sínteses).

A última observação a ser é feita diz respeito ao modo de expressão que utilizamos ao

longo da tese. Como o enfoque de nossas análises é o movimento argumentativo dentro

de textos peirceanos e nossa preocupação está voltada única e exclusivamente para o

que chamamos de elemento lógico destes textos, os valores que nortearam a escrita

desta tese são clareza e precisão. Por diversas vezes sacrificamos o "estilo" e certa

elegância da escrita em nome da clareza e precisão. Por exemplo, praticamente

abolimos o uso de pronomes (principalmente os pessoais e, nalguns casos, também os

demonstrativos). Optamos por repetir palavras ou expressões algumas vezes dentro de

um curto espaço de texto somente para evitar a possibilidade de ambiguidade que

sempre acompanha o uso de pronomes. Não confiamos ao contexto a tarefa de fixar

referências (de termos substituídos). Com intuito de garantir que o sentido captado pelo

leitor seja efetivamente aquele que intencionamos, optamos também por apresentar

algumas ideias, que julgamos mais relevantes, sob mais de um aspecto ou sob mais de

uma forma ainda que isso tenha tornado o texto redundante nalguns trechos. Em nossas

exposições, não faltaram pares de frases que guardam entre si uma relação de sinonímia

que é marcada pelo uso das seguintes expressões: "ou seja", "i.e.", "em outras palavras",

"em resumo", etc. Isto aumenta consideravelmente o nível de redundância de um texto,

mas também cria vias mais seguras para que se possa interpretá-lo. Todas estas medidas

são desaconselháveis para qualquer pessoa que queira elaborar um texto que possa ser

lido de forma minimamente agradável. Na verdade, neste texto, comportamo-nos menos

como escritores e mais como escreventes, escriturários ou escrivães. Assim, para que

Page 25: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

10

não nos alonguemos, o resultado geral é um texto repetitivo e burocrático. Uma clara

exceção à regra (além deste texto introdutório) são as primeiras páginas do primeiro

capítulo (e, em menor medida, a última seção do último capítulo).

Page 26: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

11

CAPÍTULO 1

Semiótica: a respeito das origens

Não é sem a companhia de alguma perturbação que surgem, aos mortais, questões e

reflexões relativas a origens. A fonte desta perturbação parece ser o fato de que, quando

se busca um ponto originário corre-se o risco de encontrar a prova da finitude daquilo

cuja origem foi encontrada. O ponto de fuga da busca pela origem da espécie humana é

estabelecer, de uma vez por todas, a prova da finitude do homem e a atribuição de um

caráter histórico a tudo que lhe disser respeito. Entretanto, e isto soa paradoxal, embora

o questionamento a respeito das origens seja fonte de perturbação, mais perturbador

ainda é o estado de total desconhecimento das origens. E, seguindo uma gradação, mais

perturbador do que essa situação de total desconhecimento é o estado no qual tomamos

conhecimento da impossibilidade de se perguntar sobre as origens com esperança de

obter alguma resposta minimamente aceitável. Por um lado, se a busca pelas origens nos

perturba por evidenciar nossos limites, também devemos reconhecer que ela nos

conforta ao oferecer a possibilidade de algum espaço originário ao qual podemos

pertencer. Por outro lado, a impossibilidade de se fixar uma origem não parece ter

nenhuma contraparte confortante, pois ela provoca um sentimento eterna e

constantemente renovado de desenraizamento. No campo da epistemologia, um dos

resultados mais notáveis dos argumentos peirceanos (que estão envolvidos no

estabelecimento de um pensamento propriamente semiótico) é nos levar a crer que não

é possível se fixar uma origem para os nossos processos de conhecimento. Não há

fundação possível para nosso sistema de crenças.

É inegável que haja algo de perturbador nos escritos de Peirce. A filosofia peirceana

possui um componente fortemente aversivo aos brios da civilização, ao culto da

estabilidade e, no campo da epistemologia, ao enaltecimento da razão como provedora

de repostas definitivas. Este componente, ao qual nos referimos com a metáfora um

tanto vaga do fluxo, pode ser responsabilizado por este sentimento de incômodo. Este

componente seria a marca da impressão de que há algo fora do lugar. Não pretendemos

nesta tese traçar correlações da filosofia peirceana com processos da história humana

contados em larga escala de tempo (como a marcha civilizatória que torna nosso

passado nômade cada vez mais remoto) ou com processos evolutivos cuja ocorrência se

distribui por um intervalo maior ainda de tempo (como a história evolutiva que levou

nossos cérebros ao vício da busca por padrões, regularidades, estabilidade, etc.). Nem

pretendemos, por meio de comparações quase sempre inusitadas, encaixar Peirce dentro

do clima pós-moderno de fins de século XX: a era do pensamento mole. Nossas

intenções são bem mais humildes e precisas. Como deve ter ficado claro já no nosso

texto introdutório, nesta tese, pretendemos apresentar um panorama do surgimento da

Page 27: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

12

semiótica peirceana para dentro dela localizar o conceito de interpretante, que, de

acordo com nossa interpretação, deve ser correlacionado à noção de recursividade ou

regra recursiva.

Como veremos, a semiótica e também a epistemologia em torno da qual ela é construída

têm como um dos principais objetivos sustentar a seguinte tese: todo processo de

conhecimento que termina por estabelecer alguma crença é sempre falível e este estado

de crença resultante é sempre provisório. De acordo com as linhas argumentativas

desenvolvidas por Peirce (e que analisaremos nas próximas centenas de páginas), o

motivo deste falibilismo é a tese também peirceana de que sempre há um resíduo de

incerteza contido em qualquer crença que possamos obter. Em linhas gerais, a semiótica

está inserida num corpo teórico que funciona (dentro do sistema filosófico peirceano)

como uma retumbante lição de humildade epistemológica. O problema é que, a partir de

algumas perspectivas mais habituais, esta lição só parece poder ser assimilada como

uma derrota da razão. Se partirmos do pressuposto que o conjunto de nossas faculdades

cognitivas deveria nos permitir, em determinadas condições, obter conhecimento

absoluto acerca do mundo, é óbvio que uma teoria que estabeleça que, na prática, nosso

conhecimento é provisório e falível deve ser interpretada como uma derrota da razão.

Os resultados de uma teoria falibilista, neste contexto, são claramente decepcionantes.

Por isso, não é incomum que sintamos certo incômodo na leitura de passagens da obra

peirceana. Nos escritos que vamos analisar, notaremos que Peirce investe grande parte

de sua energia para desmontar estes pressupostos que nos impedem de aceitar o

falibilismo exceto como um fracasso da razão5.

Como estamos numa região introdutória deste texto, esta localização nos permite um

pouco de liberdade com relação ao modo de expressão. Tentemos algumas comparações

mais metafóricas para que comecemos a esclarecer por qual motivo os escritos

peirceanos, ainda que levem a noção de incerteza para dentro da teoria do

conhecimento, não devem ser lidos como um elogio à incerteza, ao erro, ou seja, uma

apologética da irracionalidade. Que a espécie humana tenha pavor do estado de

incerteza nos parece fora de discussão. Prova disso é que nos últimos tempos, para

cercar o acaso, acuá-lo, dominá-lo, temos inventado enormes sistemas de previdência

social (que os estados nacionais mal conseguem sustentar) e os mais incríveis sistemas

privados de seguro e contrasseguro projetados para nos proteger contra doenças, pestes,

epidemias, roubos, assaltos, sequestros, atentados, acidentes de trânsito, terremotos,

tsunamis, erupções vulcânicas e qualquer outro evento que pareça estar nas mãos do

acaso. O combate contra o acaso é permanente e a vitória definitiva contra a fonte

geradora de incertezas parece ser uma questão de honra para uma espécie que ostenta

um cérebro tão grande, pesado e caro do ponto de vista evolutivo. Aprendemos a

5 De acordo com interpretação de Santaella, a concepção de razão que emerge dos escritos de Peirce é

muito distinta daquela que pode ser encontrada noutros sistemas propostos por filósofos modernos. Para

Santaella, a concepção peirceana de razão é muito distante daquela elaborada, por exemplo, no

pensamento hegeliano, uma vez que, para Peirce, não há um ponto de fuga pré-estabelecido na forma do

Absoluto, mas a mudança é a essência inalienável própria da "razão, que, sem perder nunca a interação com

os fatos brutos do mundo, está sempre em estado de incompletude, num processo cujo fim está

permanentemente em aberto" (Santaella, 1994, p. 195).

Page 28: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

13

acreditar piamente que foi por isso mesmo que fizemos uma revolução científica há

algum tempo atrás. As concepções mais instrumentais de ciência (essas, mais fáceis e

palatáveis, que ensinamos para as crianças nas escolas) nos dizem que conhecimento

serve para que nos emancipemos da tirania de uma natureza que só é capaz de evoluir

(aparentemente) de forma lenta e cega, como se caminhasse lentamente para prolongar

seu deleite dos sabores do acaso. Ao contrário da natureza, temos pressa e sabemos

onde queremos chegar (ao menos esta é a imagem que temos feito de nós mesmos).

Como estamos em combate permanente com o estado de incerteza, entrar num estado no

qual a incerteza é a única constante, ainda que residual, é perturbador. Para exemplificar

como a constância de um estado de incerteza é perturbadora para seres humanos,

podemos apresentar um caso proveniente da psicologia. É altamente desaconselhável

começar com um exemplo de psicologia a sustentação de uma tese que pretende se

concentrar no elemento lógico da obra de um filósofo que se definia como lógico (e que

pode ser considerado um dos primeiros a defender uma visão anti-psicologista da

lógica). Entretanto, as vaguezas contidas nas metáforas, às vezes, sugerem com

facilidade o que a precisão dos argumentos só parece conseguir expressar mediante

esforço colossal do intelecto. Além do mais, como afirmamos, a região do texto em que

nos encontramos nos concede margem para manobras (puramente) retóricas.

Que se observe ou ao menos que se imagine o espírito em permanente estado de

perturbação de pais cujos filhos desapareceram nalgumas tragédias históricas (das quais,

aliás, o século XX esteve repleto) como guerras, ditaduras, genocídios, etc. Há uma

distância considerável entre constatarmos que uma pessoa está morta e imaginarmos

que ela o esteja por causa de sua ausência, de seu desaparecimento em condições que

nos levam a crer que ela esteja morta. É possível que parte da importância de nossos

ritos fúnebres esteja justamente neste ato de constatação. Ao contrário da morte

confirmada por alguns de nossos ritos fúnebres, como o enterro ou a cremação, quando

uma pessoa desaparece em condições que nos levam a crer que ela esteja morta,

aparentemente nossa imaginação se sente mais à vontade para alimentar a esperança de

que o desaparecido retorne algum dia. As ditaduras instaladas na América Latina na

segunda metade do século XX (dentro do contexto da Guerra Fria) utilizaram o

desaparecimento como estratégia política para controlar setores mais revoltosos da

população. Por estes dias, sistemática e institucionalmente torturava-se, matava-se e

privavam-se famílias do direito ancestral de enterrar seus mortos. Imagine os

pensamentos que "percorrem" de tempos em tempos as circunvoluções do cérebro de

uma mãe cujo filho desapareceu nestas condições. É de se supor que, se a esta mãe fosse

dada a oportunidade de ver e enterrar o corpo de seu filho, ela poderia ter certeza de que

nunca mais voltaria a vê-lo. Porém, sem a materialidade do corpo, é como se a morte

não se concretizasse para a mente daqueles que conheciam a pessoa e, assim, o coração,

na contramão da razão, envia para o cérebro mensagens para que este inclua em seus

cálculos (que projetam cenários e futuros possíveis) a possibilidade de que aquela

pessoa desaparecida retorne. Por menor que seja (de um ponto de vista racional), esta

probabilidade parece muito grande toda vez que nela se pensa. Isto mantém a mente

inquieta. Não há estado de repouso. A fonte de perturbação é justamente o fato de que

Page 29: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

14

esta possibilidade permanece eternamente aberta. O mecanismo que faz funcionar esta

espécie de tortura continuada está justamente no fato de que esta porta não parece poder

ser fechada nunca.

Embora seja moralmente execrável, deve-se reconhecer que esta "estratégia do

desaparecimento" é altamente eficiente para os fins para os quais foi desenvolvida, a

saber, perpetuar o sofrimento (que é inicialmente apenas) de um indivíduo para além de

sua morte, atingindo pessoas que lhe são próximas com o intuito de disseminar o medo

dentro (de alguns setores) de uma sociedade. O princípio maquiavélico por trás desta

estratégia não é nenhuma novidade: planta-se medo para colher obediência. De

atrocidades a história humana não carece. O que foi novidade no século XX foi a escala

em que as atrocidades foram cometidas e o maquinário institucional, calculadamente

construído pela engenhosa razão humana, para cometê-las, o que explica a eficiência.

Ainda que tenhamos introduzido este exemplo como um caso de psicologia, é provável

que a eficiência desta "tortura do desaparecimento" não possa ser explicada somente por

algumas especificidades, algumas fraquezas da estrutura psíquica humana, mas este

lamentável sucesso parece residir no fato de tal violência ser capaz de atingir

coletivamente seres humanos e feri-los numa região muito sensível do "corpo social":

um direito adquirido tão logo nos tornamos isso que somos. Se levarmos em

consideração que ritos fúnebres são um dos primeiros traços comportamentais a nos

distinguir de outros animais e também considerarmos a incontável quantidade de

camadas simbólicas que viemos sobrepondo durante todos esses milênios a estes ritos,

notaremos sem muita dificuldade que negar ao homem a oportunidade de enterrar seus

mortos é um crime cometido contra a espécie (e não somente contra indivíduos espaço-

temporalmente situados). Esta tortura continuada, esta perturbação constantemente

renovada é um dos efeitos de longo prazo mais nocivos dessas ditaduras, espécie de

efeito letal da radiação que vai atravessar gerações. Antes de abandonarmos este

exemplo, notemos que o que tortura aquela mãe cujo filho desapareceu (naquelas

condições descritas) é o pensamento renitente acerca da possibilidade de seu retorno. O

mecanismo responsável pela tortura funciona justamente porque esta possibilidade é

mantida aberta. É como se a porta da casa dessa família não pudesse ser fechada. Ela

permanece sempre aberta ou, que seja, entreaberta. Nunca totalmente fechada.

A perturbação no espírito provocada pela aceitação de algumas teses peirceanas parece

funcionar segundo este mesmo mecanismo da "porta eternamente entreaberta". O

incômodo em aceitar a tese de que não há fundação completamente segura para o

conhecimento humano está no pressuposto de que deveria haver alguma fundação desse

tipo. Aceitar a tese de que a incerteza é uma espécie de resíduo irredutível de qualquer

crença só parece desconfortável para aqueles que pressupõem a possibilidade do

conhecimento certo e seguro. Bem no início de sua carreira filosófica, uma das

primeiras tarefas às quais Peirce se dedicou (como veremos) foi questionar estes

pressupostos e provar que era possível estabelecer teorias que explicassem as faculdades

cognitivas do homem sem recorrer nem sequer à possibilidade de conhecimento

absolutamente certo e seguro. Um dos primeiros movimentos da filosofia peirceana é

Page 30: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

15

fechar esta porta. Da perspectiva peirceana, enquanto nos movermos nos interiores de

teorias que nos permitem sistematicamente alimentar a esperança de alcançar um ponto

originário, uma fundação inabalavelmente segura para o conhecimento humano, sempre

teremos nosso espírito invadido por um mal-estar toda vez que percebemos que ainda

não atingimos este ponto. É como se todas as nossas crenças fossem ilegítimas.

Sentiremo-nos mal toda vez em que percebemos que nossos edifícios (por mais

imponentes e complexos que sejam) não possuem fundações seguras. Observada do

ponto de vista de um projeto fundacionalista como aquele defendido por Descartes nos

primeiros dias da modernidade, a filosofia peirceana é uma vertigem.

Demos este volteio retórico só para informar que, durante os primeiros três capítulos

desta primeira parte da tese, vamos tratar das origens da semiótica no desenvolvimento

do pensamento peirceano. E, como o leitor deve ter percebido, origem é um tema caro a

Peirce. Pode-se estabelecer como data oficial para o nascimento da semiótica peirceana

a publicação do artigo "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o

homem". A tese central deste artigo é uma proposição que equaciona o conceito de

pensamento ao conceito de signo: "todo pensamento é pensamento em signos" (CP

5.253 [1868])6. Este artigo é o primeiro de uma série de três textos que compõem o que

os estudiosos da obra peirceana passaram a chamar de "série sobre a cognição" ou

simplesmente "série cognitiva". Este conjunto de textos constitui uma estrutura

argumentativa única cujo propósito último é fornecer uma resposta à pergunta que

Peirce formulou como problema filosófico maior: como são possíveis as sínteses, como

é possível o raciocínio sintético? Transcrevemos a seguir a formulação deste problema7

pelas próprias palavras do filósofo:

De acordo com Kant, a questão central na filosofia é "como são possíveis os

juízos sintéticos a priori ?" Porém, antes desta pergunta, vem a questão como

são possíveis os juízos sintéticos, em geral, e de forma mais geral ainda,

como o raciocínio sintético é possível? Quando a resposta a este problema

geral tiver sido obtida, aquele problema particular será comparativamente

mais simples. Este é a fechadura na porta da filosofia.

(CP 5.348 [1868])8

Dez anos mais tarde, Peirce volta a tratar este problema como central.

Ao final do último século, Immanuel Kant levantou a questão "como são

possíveis os juízos sintéticos a priori ?" Por juízos sintéticos, ele se referia A

juízos que afirmam fatos positivos e não são questão de mero arranjo; em

resumo, estes são os juízos do tipo produzido por raciocínio sintético e que os

raciocínios analíticos não podem produzir. Por juízo a priori, ele se refere

6 No original: "all thought is in signs". A tradução para o português que Santaella oferece em suas obras

sobre semiótica peirceana é a seguinte: "todo pensamento se dá em signos" (cf. Santaella, 1994, p. 44). 7 Este trecho foi retirado do segundo artigo da série cognitiva.

8 No original: " According to Kant, the central question of philosophy is "How are synthetical judgments

a priori possible?" But antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general, and

still more generally, how synthetical reasoning is possible at all. When the answer to the general problem

has been obtained, the particular one will be comparatively simple. This is the lock upon the door of

philosophy".

Page 31: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

16

àqueles juízos que afirmam, por exemplo, que todos os objetos externos estão

no espaço, todo evento tem uma causa, etc., proposições que, de acordo com

ele, não podem ser inferidas da experiência. Não tanto por sua resposta, mas

simplesmente por ter levantado tal questão, toda a filosofia de seu tempo foi

estilhaçada, destruída e uma nova época na história da filosofia nasceu.

Entretanto, antes de ter feito tal pergunta, ele deveria ter feito uma pergunta

mais geral: "Como são possíveis os juízos sintéticos, em geral?" Como é

possível que um homem possa observar um fato e, em seguida, pronunciar

um juízo a respeito de outro (distinto) fato que não esteja envolvido no

primeiro? Este é um paradoxo estranho. O abade Gratry afirma ser um

milagre; e que toda indução verdadeira é uma inspiração imediata das alturas.

Respeito esta explicação muito mais que outras tentativas pedantes de

resolver a questão a partir de malabarismos com probabilidades, com formas

de silogismos, o que deixa de ser. Respeito porque esta explicação demonstra

uma apreciação da profundidade do problema, porque ela atribui uma causa

adequada e também porque ela está intimamente concectada como uma

verdadeira explicação deve estar com uma filosofia geral do universo. Ao

mesmo tempo, não aceito este tipo de explicação, pois uma explicação deve

nos revelar como algo é feito, e afirmar a existência de um milagre perpétuo

parece ser um abandono de toda esperança de fazer isso [revelar como algo é

feito], sem justificativas que sejam suficientes.

(CP 1.690 [1878])9

A semiótica nasce associada a uma teoria da cognição que foi apresentada por Peirce

como uma alternativa às teorias epistemológicas que, ao recorrerem ao conceito de

intuição, tornam-se incapazes de fornecer uma explicação aceitável a respeito do

funcionamento e da possibilidade do raciocínio sintético. Construir um corpo teórico

livre (ou quase livre) do conceito de intuição custou a Peirce algumas dezenas de

páginas de paciente análise e minuciosa desconstrução dos posicionamentos

epistemológicos dominantes na filosofia moderna, aos quais se referia com a rubrica

"cartesianismo" ou "espírito do cartesianismo", e custou-lhe também um esforço

descomunal para operar um deslocamento de perspectiva que o permitisse explicar

9 No original: Late in the last century, Immanuel Kant asked the question, "How are synthetical

judgments a priori possible?" By synthetical judgments he meant such as assert positive fact and are not

mere affairs of arrangement; in short, judgments of the kind which synthetical reasoning produces, and

which analytic reasoning cannot yield. By a priori judgments he meant such as that all outward objects

are in space, every event has a cause, etc., propositions which according to him can never be inferred

from experience. Not so much by his answer to this question as by the mere asking of it, the current

philosophy of that time was shattered and destroyed, and a new epoch in its history was begun. But before

asking that question he ought to have asked the more general one, "How are any synthetical judgments at

all possible?" How is it that a man can observe one fact and straightway pronounce judgment concerning

another different fact not involved in the first? Such reasoning, as we have seen, has, at least in the usual

sense of the phrase, no definite probability; how, then, can it add to our knowledge? This is a strange

paradox; the Abbe Gratry says it is a miracle, and that every true induction is an immediate inspiration

from on high. I respect this explanation far more than many a pedantic attempt to solve the question by

some juggle with probabilities, with the forms of syllogism, or what not. I respect it because it shows an

appreciation of the depth of the problem, because it assigns an adequate cause, and because it is

intimately connected--as the true account should be--with a general philosophy of the universe. At the

same time, I do not accept this explanation, because an explanation should tell how a thing is done, and to

assert a perpetual miracle seems to be an abandonment of all hope of doing that, without sufficient

justification" (trecho retirado de um capítulo do Lógica crítica [critical logic]; sétimo capítulo, intitulado a

probabildiade da indução [the probability of induction]).

Page 32: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

17

todas as faculdades cognoscitivas que as teorias adversárias explicavam e ainda explicar

aquilo que, de acordo com sua crítica, os recursos conceituais das teorias adversárias

tornavam inexplicável: a possibilidade de síntese10

.

De forma bem geral, a semiótica pode ser entendida como um aparato conceitual que

tornou possível esse deslocamento de perspectiva. Uma teoria da cognição baseada no

conceito de signo (e não no conceito de intuição) é uma teoria que explica a ligação

entre (a abstração na mente de) o sujeito cognoscente e o objeto como uma relação

sígnica, uma relação de representação, portanto uma relação indireta. Como

pretendemos demonstrar nas próximas centenas de páginas, é justamente esta teoria

semiótica da cognição (cuja tese central é o equacionamento entre o conceito de

pensamento e o conceito de signo) que permite a Peirce encontrar uma solução para o

problema do raciocínio sintético. Entretanto, para poder enunciar sua solução para tal

problema, Peirce reorganizou as posições das peças do jogo epistemológico redefinindo

algumas das funções de cada uma delas. Quase nenhum conceito relevante do campo

epistemológico passou incólume a decisão peirceana de se lançar numa cruzada contra

as epistemologias de base intuicionista e de se propor a erigir uma teoria sobre base

diversa. Dentro deste quadro teórico e em consequência de sua tese central, Peirce

precisou propor alterações (às vezes, drásticas e profundas) em conceitos como o de

sujeito cognoscente, objeto, verdade, realidade, pensamento, consciência, etc. As

consequências do estabelecimento de uma teoria semiótica da cognição são

apresentadas nos dois outros artigos que compõem a série cognitiva: "Algumas

consequências das quatro incapacidades" ("Some Consequences of Four Incapacities"),

publicado em 1868; e "Fundamentos da validade das leis da lógica: outras

consequências das quatro incapacidades" ("Grounds of Validity of the Laws of Logic:

Further Consequences of Four Incapacities"), publicado em 1869.

Neste terceiro artigo ("Fundamentos da validade das leis da lógica: outras

consequências das quatro incapacidades"), Peirce defende uma teoria acerca dos

raciocínios ampliativos (o que inclui, para a filosofia peirceana, uma teoria da indução e

10

Esta versão da história do desenvolvimento da semiótica no pensamento peirceano que apresentamos

neste capítulo ignora uma espécie de "pré-história" da semiótica (na filosofia antiga e medieval). Na

verdade, de acordo com alguns historiadores, a semiótica nasce,de fato, como doutrina dos signos, no

pensamento escolástico. Com relação a este período de gestação da doutrina dos signos no ventre do

pensamento escolástico, podemos indicar dois livros do semioticista norte-americano John Deely:

“Introdução à semiótica – História e Doutrina” (1995) e “Semiótica básica” (1990). Deely tem realizado

há décadas um admirável esforço para trazer à luz uma época, por ele e por outros (cf. Randall apud

Deely, 1995, p.59), considerada como o “período menos conhecido da história da filosofia ocidental”.

Esta “terra incognita” vai de 1350 (ano da morte de Guilherme de Ockham – que representa um dos

pontos culminantes da filosofia escolástica [latina] e é um dos últimos pensadores considerados pela

historiografia oficial como filosoficamente relevante) até 1650 (ano da morte de Descartes – pensador

pós-latino e “pai” da filosofia moderna). São nestas terras que são plantadas, de acordo com as pesquisas

e os levantamentos históricos realizados por Deely, as primeiras sementes de um pensamento

propriamente semiótico. Em outros textos (1986, p.5), o semioticista trata este período como aquele que

favoreceu um lento processo de coalescência da consciência semiótica embora tenha sido apenas na

passagem entre os séculos XIX e XX que Peirce obteve uma visão geral e sistêmica do território da

semiótica (em toda a sua extensão e capacidade revolucionária de constituir-se num novo início para toda

a empresa da filosofia [1995, p.79 e 1986, p.16]). Não lhe faltaram motivos, como veremos, para

denominar a compreensão peirceana da semiótica de “A Grande Visão” (Deely, 1996, p. 45).

Page 33: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

18

da hipótese) segundo a qual o raciocínio indutivo pode ter sua validade fundamentada se

for observada uma condicionante básica: tal raciocínio deve ser aplicado por um tempo

indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Esta solução

oferecida ao que considera ser o problema maior da filosofia, só se torna disponível a

partir de duas reformulações conceituais efetuadas no segundo dos artigos da série

("Algumas consequências das quatro incapacidades"). A primeira dessas reformulações

conceituais é aquela que torna o sujeito cognoscente uma espécie de sujeito coletivo ao

substituir a noção de indivíduo por uma noção de comunidade indefinida de

pesquisadores e a segunda delas é a reformulação do conceito de realidade, que passa a

ser um ser in futuro, i.e., um ponto de convergência ao qual tendem todas as linhas de

investigação levadas a cabo por aquela comunidade indefinida de pesquisadores. Como

todas essas teorias estão encaixadas dentro de uma estrutura única de argumentação que

tem o objetivo de fornecer uma resposta para o problema dos raciocínios ampliativos ou

sintéticos, estas reformulações (do conceito de sujeito cognoscente e de realidade) são

consequências diretas da teoria da cognição defendida no primeiro artigo da série

("Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem"). Assim,

podemos resumir da seguinte forma esta estrutura única de argumentação por trás dos

artigos que compõem a série cognitiva: a teoria peirceana sobre a fundamentação das

leis da lógica e, em particular, sua teoria acerca dos raciocínios ampliativos (i.e.

sintéticos), apresentadas no terceiro artigo da série, são uma consequência da teoria

peirceana da realidade, apresentada no segundo artigo; esta última, por sua vez, é uma

consequência da teoria peirceana da cognição, elaborada, principalmente, no primeiro

artigo da série (mas que também foi desenvolvida no segundo artigo).

Portanto, a semiótica surge dentro do quadro teórico da série cognitiva como uma

espécie de teoria generalizada das representações elaborada com o intuito de explicar

como são possíveis as sínteses (como é possível o raciocínio sintético em geral). O

cerne da explicação fornecida por Peirce nestes três textos é que a síntese depende de

um processo de representação que possui uma estrutura na qual entra certo número de

elementos indispensáveis para que o mecanismo de síntese funcione adequadamente.

Tanto a estrutura desse processo de representação (o mecanismo que lhe é subjacente)

como quantos e quais eram seus elementos tinham sido descritos por Peirce num artigo

intitulado "Sobre uma nova lista de categorias" ("On a New List of Categories"),

publicado no ano de 1867 no Proceedings of the American Academy of Arts and

Sciences. Neste artigo, Peirce apresenta sua teoria de categorias (que são conceitos

universais presentes em toda experiência) e, a partir destas, consegue estabelecer a

estrutura triádica do signo (ou do processo representativo) e, assim, fixar o papel de

cada um de seus elementos durante o processo de representação. É justamente neste

artigo que Peirce consegue atingir uma definição formal e precisa do terceiro elemento

do signo, o interpretante, o que o permite descrever o mecanismo de representação que,

de sua perspectiva teórica, é capaz de explicar o funcionamento das sínteses (do

raciocínio sintético). Portanto, a partir da teoria exposta neste artigo, Peirce tem à sua

disposição aquele maquinário conceitual (os princípios básicos ou, ao menos, o

mecanismo do conceito básico de sua semiótica [que é a ideia de representação]) que

Page 34: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

19

será mobilizado durante a série cognitiva para fornecer uma resposta ao problema

filosófico das sínteses. Ainda que consideremos que o nascimento oficial da semiótica

peirceana seja a enunciação da tese central do primeiro artigo da série cognitiva, não se

pode deixar de notar que já estava presente em escritos muito anteriores e acabou por

tomar forma (praticamente definitiva11

) na teoria das categorias o mecanismo sígnico ou

representacional pelo qual a semiótica, em geral, e o conceito de signo, em particular,

viriam a se tornar ferramentas teóricas indispensáveis para se explicar as faculdades

cognoscitivas e, ao mesmo tempo e em última instância, tornar possível a validação do

raciocínio ampliativo ou sintético.

Já no ano de 1865, quando é convidado para uma série de palestras em Harvard (W1;

165-301), Peirce, em meio a reflexões sobre Kant, Boole, Mill e também sobre os

fundamentos da indução, dedica um considerável espaço para marcar enfaticamente

posição contra uma visão psicologista da lógica e propor que a lógica fosse entendida

como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169 [1865]). É neste

contexto que Peirce toma emprestado o termo "semiótica", cunhado por Locke no

"Ensaio sobre o entendimento humano" (obra publicada 1690)12

. Nestas palestras, já

aparecem as primeiras classificações sígnicas (cf., por exemplo, W1; 237 [1865]) e

alguns temas fundamentais para o pensamento peirceano que posteriormente seriam

englobados pela semiótica, como a tese a respeito do crescimento dos símbolos (que é o

modo como Peirce trata o problema da ampliação de um sistema de conhecimento). Por

exemplo, ainda nestas palestras ministradas em Harvard em 1865, Peirce apresenta uma

"lógica da informação" justamente para abrigar uma teoria a respeito do crescimento

dos símbolos (W1; 272).

No ano seguinte, quando é convidado para uma série de palestras no Lowell Institute,

em Boston (W1; 358-504 [1866]), Peirce continua a desenvolver muitas destas ideias e

já começa a se aproximar da definição de signo desenvolvida no “Sobre uma nova lista

de categorias” (em 1867). Na sétima destas palestras (outubro-novembro de 1866),

pode-se notar que Peirce já utiliza o termo “interpretante” (W1, 465 [1866]) para

designar aquele elemento que é resultado de um processo de representação13

. Este termo

já tinha sido introduzido alguns meses antes, em março de 1866 (W1; 347), numa

11

A estrutura triádica dentro da qual o signo é definido neste artigo e também as funções de cada um de

seus elementos seguiram praticamente inalteradas durante todo o desenvolvimento do pensamento de

Peirce. Acreditamos que as mudanças que o conceito de signo e também o conceito de representação (que

é mobilizado pela definição peirceana signo) sofreram ao longo do tempo não alteraram a essência dessas

concepções. Estas mudanças funcionaram como uma evolução direcionada, como um aprofundamento.

Para um ótimo histórico da evolução do conceito de representação em Peirce, consultar o artigo de

Winfried Nöth (2011b) intitulado "Da representação à Terceiridade e do Representamen ao Medium: a

evolução de termos-chave e tópicos-chave peirceanos ("From Representation to Thirdness and

Representamen to Medium: Evolution of Peircean Key Terms and Topics"). 12

cf. capítulo XXI ("sobre a divisão das ciências") do quarto livro ("sobre conhecimento e

probabilidade") do Ensaio de Locke. 13

Nesta palestra, o conceito de interpretante, embora ainda esteja fora da estrutura triádica (na qual será

encaixado posteriormente) já é definido com a função de substituição ("surrogate"). Neste contexto, o

interpretante é entendido como um segundo termo que se apresenta como equivalente a um primeiro

termo. O trecho em questão (Lowell Lecture VII ─ W1, 464-5 [1866]) será apresentado e analisado no

texto introdutório ao décimo segundo capítulo.

Page 35: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

20

anotação sobre as partes que compõem um argumento, embora neste trecho Peirce não

ofereça definição do que entende por interpretante. De acordo com um levantamento

feito por Max Fisch (texto introdutório do W1,1982, p. xxxiii), se observamos os

escritos de Peirce à época, notaremos que ele experimenta, por algum tempo, alguns

termos como "sujeito" ("subject") ou "correspondente" ("correspondent") e, ao se

aproximar do fim do ano de 1866, quando provavelmente nota que a novidade

subjacente ao conceito que pretendia nomear exigia um nome novo, acaba por cunhar o

termo "interpretante".

Acreditamos que a história da origem da semiótica dentro pensamento peirceano ou a

história de como a semiótica passou a ser central para toda a sua filosofia pode ser

contada como uma narrativa a respeito do modo como Peirce, ao longo da década de

1860, vai gradualmente se afastando da matriz kantiana na qual seu pensamento foi

(inicialmente) moldado. Esta afirmação acerca deste afastamento pertence a um tema

muito debatido entre os estudiosos da obra peirceana, pois há uma corrente de

intérpretes que sustentam a tese de que existem "dois Peirces", há uma tensão não-

resolvida entre transcendentalismo e naturalismo. A formulação clássica desse problema

relativo a esta tensão no pensamento peirceano pode ser encontrada no livro "O

empirismo de Charles Peirce" ("Charles Peirce's empiricism") de Justus Buchler (1939)

e também no livro "O pensamento de C. S. Peirce" ("The Thought of C. S. Peirce) de

Thomas Goudge (1969 [1950]). Não pretendemos entrar neste debate mais amplo por

dois motivos: primeiro, porque a intenção desta parte inicial de nossa exposição é

simplesmente apresentar o cenário (do pensamento peirceano) para que localizemos

nossa tese central; segundo, ainda que quiséssemos, não teríamos "munição" suficiente.

Embora o artigo seminal "Sobre uma nova lista de categorias" tenha sido produzido sob

uma inegável influência kantiana, nossa tese (com relação a este ponto) é que a teoria

peirceana das categorias já não se encaixa dentro dos limites do que geralmente se

entende por filosofia kantiana14

não apenas pelo fato das listas de categorias destes dois

filósofos serem bastante distintas, mas pelo fato de a própria derivação (peirceana) das

categorias já ser fruto de uma concepção semiótica da lógica que inviabiliza um dos

principais recursos conceituais utilizados por Kant na "Crítica da Razão Pura": o

conceito de intuição. É verdade que alguns termos emprestados da "Crítica da Razão

Pura" ainda são empregados na exposição que Peirce fez de sua lista de categorias.

Também é verdade que o ponto de partida deste artigo é uma teoria kantiana (aquela, "já

estabelecida", segundo a qual a função dos conceitos é reduzir a multiplicidade das

impressões dos sentidos à unidade cf. CP 5.545 [1867]) e também não deixa de ser

verdade que a própria formulação do problema a ser resolvido tem um teor kantiano

("como são possíveis as sínteses?"). Entretanto, o artigo "Sobre um nova lista de

categorias" pode até ser considerado kantiano na letra, mas já é peirceano no espírito.

14

Alguns autores consideram o afastamento de Peirce com relação a Kant uma condição para o

estabelecimento da "nova lista de categorias". Por exemplo, Andre De Tienne (1989, p. 389-90) entende

que a busca peirceana pelas categorias é levada a cabo sobre uma teoria da cognição que, por sua vez, só

pôde ser construída a partir da rejeição de algumas doutrinas tradicionais dentro da epistemologia. Dentre

estas doutrinas rejeitas por Peirce, de acordo com De Tienne, está o transcendentalismo.

Page 36: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

21

O que pretendemos mostrar com este breve panorama (acompanhado de algumas

poucas análises) é que a semiótica peirceana pode ter suas origens esclarecidas quando

passamos a elencar os motivos que levaram Peirce a abandonar o projeto kantiano

enunciado na Crítica. Nossa tese é que estes motivos são essencialmente lógicos. Estes

motivos foram se acumulando graças a descobertas realizadas no único "laboratório" do

qual se pode dizer que Peirce trabalhou durante toda sua vida, o campo da lógica. Como

se sabe, por trás do sistema de categorias de Kant está um sistema de funções lógicas.

Cada categoria pertencente à lista de categorias kantianas é derivada de alguma função

lógica pertencente à lista de funções lógicas (do juízo). O progressivo afastamento de

Peirce com relação a Kant parece ter sido motivado por descobertas no campo da lógica

que resultaram de algumas pesquisas que se estendem do ano de 1864 até 1866.

Acreditamos que este afastamento começa quando, em 1864 (cf. MS 477), Peirce

descobre o primeiro problema numa das tríades das funções lógicas (mobilizada por

Kant para derivar suas categorias) e se prova irreversível quando, já ao final de 1866,

publica um artigo sobre silogismo aristotélico15

em que fica claro que sua concepção de

lógica não pode ser conciliada com aquela que Kant mobilizou para derivar as

categorias. São estas descobertas no campo da lógica que o leva a propor sua própria

lista de categorias.

Quando afirmamos que a semiótica nasce da separação do pensamento peirceano da

matriz kantiana não significa que Peirce tenha resolvido se exilar em "terras pré-

críticas". Não parece haver uma linha nos escritos que nos permita afirmar que o projeto

filosófico de Peirce a partir 1867 seja reverter a Revolução Copernicana operada por

Kant no campo da epistemologia. Como tal afastamento se dá por conta daquilo que

Peirce denominou de "avanços mais recentes nas pesquisas no campo da lógica" (cf.

W1, p. 352 [1866]) e é a lógica que está por trás das categorias que permitiram o

movimento de inversão copernicana, pode-se afirmar que o conflito (entre o pensamento

peirceano e kantiano) que origina a semiótica peirceana ocorre nos bastidores da

revolução copernicana da "Crítica da Razão Pura". Não é por outro motivo que, em seu

estudo clássico sobre o desenvolvimento do sistema filosófico de Peirce, Murray

Murphey denomina o pensamento peirceano de "fenomenalismo semiótico" (1993

[1961], p. 90).

Antes de passarmos ao panorama histórico e filosófico acima anunciado, devemos

apresentar de forma esquemática um resumo do desenvolvimento do pensamento

peirceano. Como nestes capítulos nosso intuito é reconstruir a estrutura lógica do

pensamento peirceano nesta fase de surgimento semiótica, óbvio está que a ordem

preconizada neste esquema é uma ordem lógica (e que não precisa coincidir com a

ordem cronológica). Outro ponto que deve ser enfatizado (do qual já tratamos no texto

introdutório) é que, por opção metodológica, organizamos toda a exposição a ser feita

do desenvolvimento do pensamento peirceano a partir do que o próprio Peirce

considerou como problema central à filosofia.

15

"Notas sobre o silogismo aristotélico" ("Memoranda concerning the Aristotelian Syllogism") - ( W1,

505-14 [1866])

Page 37: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

22

Passos lógicos – construção inicial do sistema filosófico peirceano

I) Descobertas no campo da lógica (entre 1864 e 1866) levam ao questionamento

das categorias kantianas.

II) Elaboração de uma nova lista de categorias.

III) A terceira categoria proveniente da nova lista de categorias leva ao

questionamento de todas as teorias epistemológicas que posicionam a intuição

como conceito responsável por explicar as fundações do conhecimento.

IV) O questionamento de todas as teorias epistemológicas que colocam o conceito

de intuição naquela "posição fundacional" leva à elaboração de uma nova teoria

da cognição.

V) A elaboração de uma teoria da cognição (condizente com a teoria das

categorias e alternativa àquelas teorias que recorrem à intuição) leva a uma

reformulação do conceito de realidade e o estabelecimento de uma teoria da

realidade que é considerada compatível com as descobertas na área da lógica e

com a epistemologia de base semiótica (inaugurada por Peirce).

VI) A reformulação do conceito de realidade torna possível a proposição de uma

teoria que funciona como uma validação (à prazo) para o raciocínio sintético (ou

ampliativo).

Apresentados de forma esquemática os primeiros passos do desenvolvimento do

pensamento peirceano, passemos a expor nosso roteiro para o estabelecimento de nossa

tese. O movimento geral de nossa exposição é partir do macro para o micro.

Começamos (nos capítulos 2 e 3) por pintar um quadro geral da filosofia peirceana para

nela localizar o surgimento da semiótica. Dentro desse quadro geral, pretendemos

colocar em evidência a relação de Peirce com outros filósofos dos quais teve maior

influência ou com os quais entrou em debate mais direto. O passo seguinte é analisar os

próprios textos peirceanos. Iniciamos estas análises (nos capítulos 4 - 9) pelo primeiro

artigo da série cognitiva, texto no qual Peirce começa a expor sua teoria semiótica ou

inferencial da cognição. Este é o nascimento "oficial" de um pensamento propriamente

semiótico dentro do sistema filosófico peirceano. Depois de examinado cuidadosamente

este primeiro artigo, voltaremos (no capítulo 10) nossa atenção ao texto imediatamente

anterior à série cognitiva e que, inclusive, lhe serve de base: "Sobre uma nova lista de

categorias" (1867). A análise da estrutura deste texto como um todo será seguida (no

capítulo 11) de um estudo pormenorizado de uma de suas partes: o parágrafo específico

no qual Peirce define (pela primeira vez dentro de uma estrutura triádica) o conceito de

interpretante. O restante de nossa exposição (capítulo 12 e 13) é dedicado à análise do

conceito de recursividade e sua correlação com o conceito de interpretante.

Page 38: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

23

CAPÍTULO 2

Lógica e as raízes da semiótica

Como antecipamos no texto introdutório, o berço da semiótica é aquela disciplina

filosófica que passou a ser central na modernidade: a epistemologia. O assunto ao redor

do qual gravitam as teorias epistemológicas é a relação (de conhecimento que se supõe

haver) entre o sujeito cognoscente e o objeto (a ser conhecido). Não é difícil notar que

aquela pergunta que Peirce escolheu como norte para suas investigações filosóficas (cf.

CP 5.348 [1868]) pode ser entendida como uma instância da seguinte questão: como é

possível ao sujeito cognoscente obter conhecimento acerca do objeto? Esta pode ser

entendida como a questão nuclear da epistemologia e, ao redor dela, muitas outras são

cabíveis: qual a origem do conhecimento? Qual o fundamento do conhecimento? Qual a

natureza do conhecimento (humano)? etc. . A história das respostas que os filósofos

encontraram ao longo do séculos para cada uma dessas perguntas (e que estavam

implicadas em suas teorias) é rica o suficiente para nos desencorajar em resumi-la em

pouquíssimas linhas. Limitaremo-nos a tratar daquele ciclo de debates epistemológicos

mais próximo de Peirce e que acabou por influenciá-lo de forma mais direta. O cenário

que estava montado no palco quando Peirce entra em cena na segunda metade do século

XIX é constituído basicamente pelos notáveis resultados dos esforços da síntese

operada por Kant16

.

Deve-se recordar que já no nascedouro da modernidade filosófica, a maioria dos debates

teóricos no campo da epistemologia passa a se organizar em torno de duas grandes

correntes: racionalismo e empirismo. Por um lado, para os racionalistas, a fonte de todo

ato de conhecimento é a razão, ou seja, a razão é faculdade humana que deve presidir o

ato de conhecimento, pois somente ela pode fornecer um conhecimento seguro das

coisas (em contraste com os enganos dos sentidos). Por outro lado, para os empiristas, a

fonte de todo ato de conhecimento é a experiência, tudo o que se conhece é, de alguma

forma, derivado dos sentidos. A síntese entre essas duas correntes só foi possível a

partir de uma espécie de versão epistemológica da revolução copernicana. O

16

Deve-se enfatizar o uso daquele termo "basicamente", pois nos parece óbvio que, na segunda metade do

século XVIII, quando Kant produz a Crítica da Razão Pura, eram praticamente impensáveis alguns dos

elementos que, ao entrarem em cena no século XIX, estariam destinados a causar um grande impacto na

história do pensamento ocidental. Dentre estes elementos podemos citar a teoria da evolução e os avanços

representados pela lógica moderna. Com relação ao primeiro deles, sabe-se que a teoria da evolução

proposta pelo naturalista inglês Charles Darwin na obra "A origem das espécies" (publicada em 1859,

quando Peirce tinha 20 anos) exerceria uma influência notável em todos os aspectos do pensamento

peirceano. Por sua vez, outro elemento que distancia, de alguma forma, os pensadores do final do século

XIX daqueles do final do século anterior é o advento da lógica moderna (cujos primeiros

desenvolvimentos já podem ser vistos em obras de contemporâneos de Peirce ou em suas próprias

pesquisas no campo da lógica).

Page 39: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

24

responsável por essa reviravolta foi o filósofo alemão Immanuel Kant. Em sua teoria do

conhecimento apresentada na "Crítica da Razão Pura" (1781), Kant encontrou uma

maneira de rearranjar as peças do tabuleiro do jogo epistemológico para que não apenas

a experiência e a razão passassem a ter papéis complementares, mas para que se

tornasse possível explicar como o conhecimento obtido a partir da experiência poderia

ser considerado racionalmente necessário. Esta obra de Kant é um ponto de inflexão

dentro da filosofia moderna, e é inegável a influência kantiana no pensamento do jovem

Peirce.

Em 1863, num texto intitulado de "O lugar de nossa época na história da civilização"

("The place of our age in the history of civilization"), Peirce se refere à "Crítica da

Razão Pura" como "a maior obra do intelecto humano" (W1; 104). De acordo com o

jovem Peirce, toda a fecundidade do pensamento do século XIX, "que é muito maior do

que a de todas as outras épocas juntas", é o resultado direto desta obra monumental de

Kant e "todas as filosofias posteriores devem ser julgadas de acordo com as ideias nela

contidas, uma vez que todas elas são resultado direto desta produção" (W1; 104 [1863]).

Nos anos que se seguiram, Peirce passa a aprofundar seus estudos no campo da lógica, o

que o leva a um conjunto de descobertas que acreditamos estar na raiz de seu

afastamento com relação a Kant. Como veremos, a devoção de Peirce por Kant começa

a diminuir na medida em que começa a crescer sua desconfiança com relação às bases

lógicas sobre as quais foi erigida a "Crítica da Razão Pura". A tese que defendemos

neste segundo capítulo é que as raízes mais evidentes do pensamento semiótico estão

nas descobertas lógicas que datam de 1864-1866. São estas descobertas que marcam o

afastamento do pensamento peirceano com relação à "matriz kantiana" e que preparam

o terreno para que Peirce possa estabelecer sua própria lista de categorias, apresentada

no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (1867). Ainda que seja de incontestável

inspiração kantiana a investigação que Peirce leva a cabo neste artigo (bem como o

ponto de partida dele), insistiremos, ao longo de todo este segundo capítulo, na

afirmação de que, à essa altura, o pensamento peirceano já tem um projeto filosófico

autônomo com relação à sua matriz kantiana.

A própria formulação do que considerava o problema filosófico maior (i.e., a pergunta

sobre a possibilidade das sínteses, em geral) já demonstra que o pensamento peirceano,

a partir da proposição da nova lista de categorias, já não se move dentro dos limites do

projeto kantiano. Como deixou claro no segundo artigo da série cognitiva (CP 5.348

[1868]), Peirce generalizou a pergunta kantiana para isolar um problema filosófico que

acredita ser logicamente anterior àquele da "Crítica da Razão Pura". Por ser mais geral,

Peirce acredita que a teoria elaborada para responder a sua pergunta também

responderia, em particular, a pergunta kantiana e, por ser logicamente anterior, qualquer

resposta para a pergunta de Kant seria condicionada pela resposta à sua própria

pergunta. Assim, a pergunta central de Kant, "como são possíveis os juízos sintéticos a

priori?" é generalizada para se formular a pergunta central de Peirce, "como são

possíveis os juízos sintéticos (em geral)?". A resposta peirceana é que um juízo sintético

se torna possível a partir de um processo inferencial que se desenvolve nos moldes de

Page 40: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

25

um processo de representação, o que o leva imediatamente à tarefa de conceber uma

“ciência geral das representações” e, a partir disso, se perguntar se poderia haver algum

fundamento para tais processos representacionais, ou seja, o que, em última análise,

pode tornar tais representações válidas. Como examinaremos com algum detalhe nos

capítulos desta tese dedicados à análise de textos peirceanos, a resposta que Peirce

fornece no primeiro artigo de série cognitiva é que todo o conhecimento que podemos

obter, toda e qualquer síntese ou representação que podemos obter é resultado de

processos inferenciais (ampliativos) e esta resposta, por sua vez, o leva a formular a

pergunta a respeito da validade desses processos inferenciais. A resposta peirceana a

este segundo questionamento é desenvolvida em sua teoria da realidade e em sua teoria

acerca dos fundamentos da validade das leis da lógica (apresentadas cada uma delas

respectivamente nos dois últimos artigos da série cognitiva).

A pergunta pelo modo como o conhecimento humano pode ser ampliado é muito cara à

filosofia moderna. Pode-se afirmar que foi com uma teoria justamente a respeito das

fundações de nossos raciocínios ampliativos que o empirista escocês David Hume

acabou por perturbar o sono (dogmático) de um certo filósofo que, uma vez desperto,

passou a dedicar longos quinze anos de sua carreira filosófica à tarefa de reorganizar as

peças do tabuleiro epistemológico de forma a tornar possível o que o argumento

humeano teria provado impossível. Não é por outro motivo que começaremos este

segundo capítulo com o ceticismo humeano e o modo como Kant o mobilizou para o

seu próprio projeto epistemológico, o que influenciaria, em particular, o jovem Peirce.

A carreira filosófica de Peirce começa numa oficina nos fundos da revolução

copernicana operada por Kant.

Na primeira seção deste segundo capítulo apresentaremos o argumento humeano sobre a

impossibilidade da fundação lógico-formal da indução e a reviravolta operada por Kant

para solucionar o que entendia ser um grave problema astutamente levantando pelo

ceticismo de Hume. Na segunda seção deste segundo capítulo, passamos então a tratar

da relação de Peirce com a "Crítica da Razão Pura", sobretudo, com a tábua de

categorias, uma vez que foi tentando encontrar sólidas bases lógicas para as categorias

kantianas que o filósofo norte-americano se deparou com os primeiros elementos que o

permitiram levantar os alicerces de sua concepção semiótica da lógica e sua teoria

semiótica da cognição. Estes elementos ganharam forma na teoria das categorias de

Peirce. Na terceira e última seção deste segundo capítulo, apresentaremos algumas

razões para afirmar que o pensamento peirceano que emerge do artigo "Sobre uma nova

lista de categorias" (1867) e se desenvolve na série cognitiva (1868-9) já não pode ser

entendido dentro do projeto kantiano. A principal razão que apresentaremos é que, ao

final da década de 1860, Peirce já teria formulado um problema filosófico distinto

daquele de Kant (e que ele mesmo já entendia como mais geral do que aquele do

filósofo de Königsberg) e já teria uma resposta para este problema que exigiria o

estabelecimento de uma teoria do conhecimento muito distinta de todas aquelas que

foram elaboradas dentro da filosofia moderna (por Kant, pelos empiristas e pelos

racionalistas). Como veremos no terceiro capítulo, esta distinção está no fato de que a

Page 41: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

26

resposta que Peirce pretende oferecer ao problema filosófico das sínteses exige que sua

epistemologia não recorra ao conceito de intuição como ponto de fundação do

conhecimento. Este segundo capítulo nos deixará no ponto em que Peirce termina seu

diálogo mais direto com Kant, lança as bases de sua semiótica (as categorias) e passa a

debater com Descartes, o fundador da modernidade filosófica.

Page 42: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

27

2.1 - Síntese: de Hume a Kant

Um dos principais fatores impulsionadores do projeto crítico kantiano é a prova

estabelecida por Hume de que não há fundamentação lógico-formal para indução, ou

seja, que os raciocínios ampliativos (que estão na base do conhecimento produzido pela

ciência) não podem ter sua validade garantida de forma puramente racional. Se houver

alguma necessidade envolvida nas conclusões de nossos raciocínios ampliativos, esta

necessidade não pode ser de base racional.

Por exemplo, de um ponto de vista lógico, o juízo "um triângulo tem três lados" é

necessário. Esta necessidade lógica decorre do fato da negação deste juízo implicar

numa contradição, uma vez que o predicado "ser algo que tem três lados" é a própria

definição ou o próprio significado de triângulo. Como este predicado "________ tem

três lados" é a própria definição do que é triângulo, então, no fundo, o que o juízo

afirma é que "algo que tem três lados tem três lados". Sendo assim, caso este juízo fosse

negado, estaríamos diante da seguinte contradição: "algo que tem três lados não tem três

lados". Ora, este juízo é da forma A é não-A e está em flagrante contradição com um

princípio da lógica que se chama justamente "princípio da não-contradição"17

. Então, se,

por um lado, pode-se afirmar que há uma necessidade envolvida no juízo "um triângulo

tem três lados", porque sua negação implica numa impossibilidade, então, por outro

lado, também se pode afirmar que esta necessidade é lógica, porque a impossibilidade

(de sua negação) é devida a uma lei suprema da razão (ao menos de acordo com teorias

tradicionais), o princípio da não-contradição.

Para Hume (THN 1.3.14 SB 166)18

, a necessidade envolvida nos juízos "a soma

interna dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos (i.e. 180°)" e

"2x2=4" é baseada somente no entendimento que se possui acerca das ideias envolvidas.

A relação entre "os três ângulos de um triângulo" e "dois ângulos retos" é invariável

"enquanto a nossa ideia permanecer a mesma" (THN 1.3.1 SB 69) a respeito destas

17

É o princípio que afirma que a conjunção de uma proposição com sua negação (ou seja, em linguagem

formal, "p e não-p") necessariamente é falso. Fora deste quadro formal, este princípio possui outras

formulações (como "um enunciado não pode ser verdadeiro e falso") e vem desde os gregos sendo

entendido como um dos princípios fundamentais dentro da lógica capazes de explicitar as leis da razão

(cf. Gonzáles Porta, 2002, p. 115). 18

Paras citações das obras de Hume, utilizaremos um duplo sistema de referência: no primeiro sistema, a

referência é feita recorrendo-se a uma divisão (de capítulos e seções) interna à própria obra e, no segundo

sistema, a referência é feita recorrendo-se à paginação de uma edição padrão (no caso de Hume, esta

edição é aquela organizada por L. A. Selby-Bigge). Para citarmos a obra "Tratado da natureza humana"

(Treatise of Human Nature), utilizaremos a abreviatura THN seguida de três números, relativos (cada um

deles) ao livro, parte e seção onde se encontra a passagem citada (por exemplo, THN 1.3.14 se refere à

décima quarta seção da terceira parte do primeiro livro do Tratado). Ao lado dessa primeira abreviatura (e

dessa primeira numeração), colocamos uma segunda abreviatura (que é relativa à edição) SB seguida do

número da página (por exemplo, SB 166 se refere à página 166 da edição organizada por L. A. Selby-

Bigge). Para as citações da obra "Investigação sobre o entendimento humano" ("Enquiries concerning

human understanding"), o sistema de referência é muito semelhante. A grande diferença é que, neste

caso, a abreviatura da obra é EHU (e numeração que segue esta abreviatura é relativa somente à seção e à

parte em que se encontra o trecho citado).

Page 43: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

28

expressões ou termos, ou seja, exceto no caso em que mudemos nossa concepção de

triângulo, esta relação será sempre verdadeira.

Notemos que a verdade destes juízos não é retirada do confronto com dados da

experiência. Estes juízos são entendidos como independentes de qualquer informação

que nos chegue pelos sentidos. Por este motivo, não seria possível que, algum dia,

alguns pesquisadores descobrissem em laboratório um triângulo que não tivesse três

lados. No dia em que se descobrisse um triângulo que não teria três lados, pode-se ter

certeza que neste dia o termo "triângulo" não teria mais o mesmo significado que hoje

lhe atribuímos. Mesmo no mais relativístico dos tempos, pode-se encher o peito para

afirmar que estes juízos carregam necessidade (lógica), porque podemos jogar esta

necessidade "na conta" do princípio da não-contradição, ou seja, as fundações desta

necessidade são lógico-formais. Entretanto, óbvio está que nem todos os juízos com os

quais lidamos (mesmo no dia a dia) são desse tipo.

Por exemplo, se nos perguntássemos qual é a cor do sofá que temos em casa e

respondêssemos "o sofá é vermelho", note que este juízo é feito com base na

experiência, com base na observação do objeto em questão. Se afirmamos saber que o

sofá é vermelho, este conhecimento não depende da definição do termo "sofá", mas é

um "conhecimento factual". Caso este juízo fosse negado ("o sofá não é vermelho"), isto

não implicaria, de forma alguma, numa impossibilidade ou numa contradição. Podemos

muito bem conceber uma situação (possível) em que o sofá (do qual tratamos) não seja

vermelho e note que isto não desrespeitaria o princípio da não-contradição. O juízo "o

sofá é vermelho" é uma contingência (o que ele afirma é verdadeiro, mas não é

necessariamente verdadeiro, uma vez que sua negação seria possível, i.e., logicamente

concebível). Esta contingência não nos parece perturbadora. Ninguém ficaria muito

chateado caso descobrisse que, embora o sofá que ostenta em sua sala de estar seja

atualmente vermelho (e isso o faz combinar com as demais mobílias de tal recinto), ele

poderia muito bem ser de qualquer outra cor. Notar que esta é uma verdade contingente

simplesmente não alteraria drasticamente a vida de ninguém. O problema é quando nos

voltamos para juízos que carregam pretensão de validade universal, juízos que

pretendemos que sejam necessariamente verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, notamos

que o único motivo que nos levaria a acreditar que tais juízos sejam necessariamente

verdadeiros é que até o momento a experiência teria nos garantido que eles têm sido

sempre verdadeiros. O que é problemático é que a experiência só é capaz de nos ensinar

como são ou foram as coisas (até o presente momento), mas não como elas devem ser

(do presente momento em diante). O problema são aqueles juízos que, apesar de suas

origens estarem fincadas no chão da experiência, pretendem alçar voo rumo ao céu das

verdades eternas, invariáveis. É exatamente este o caso de alguns juízos que residem no

coração das ciências empíricas. Antes de entrarmos nesta seara (de afirmações

científicas), comecemos "por baixo". Vejamos exemplos mais prosaicos.

No dia a dia, não é incomum que nos expressemos com frases nas quais escondemos

pretensões de verdade necessária. Quando afirmamos que "o sol nascerá amanhã" ou

que "todos os homens são mortais" (cf. THN 1.3.11 SB 124), estamos diante de

Page 44: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

29

contingências. A base que temos para afirmar que amanhã o sol há de nascer e que todo

homem, algum dia, há de morrer é a experiência passada que nos informa que até hoje

não houve um dia sequer que o sol não tenha nascido e também não foi encontrado

nenhum homem que exibisse a propriedade da imortalidade. Entretanto, notemos que,

ainda que consideremos o conhecimento expresso por estes juízos como algo certo e

ainda que ajamos como se estas fossem verdades necessárias, estes juízos não

expressam um conhecimento que seja decorrente das definições das ideias envolvidas.

A negação destes juízos ("o sol não nascerá amanhã" ou "algum homem não é mortal")

não implica numa contradição. Da mesma forma (e quase com a mesma facilidade) que

podemos conceber que um sofá que atualmente é vermelho fosse de outra cor, podemos

imaginar que o sol (que até hoje nasceu a cada dia) não nasça no dia de amanhã e

também podemos imaginar que homens (que atualmente são mortais) sejam, dentro de

um cenário possível, imortais. Ao contrário daquele caso do "triângulo" que não

possuiria três lados, a negação destes juízos não implica numa contradição. Isto

significa que, se há alguma necessidade envolvida neles, esta não poderia ser uma

necessidade de ordem lógica.

Se acreditamos que tais juízos devem ser sempre verdadeiros, i.e., necessariamente

verdadeiros, é porque supomos haver algum motivo, razão, princípio, lei natural, em

resumo, uma espécie de força que seja eternamente operante e, assim, torne impossível,

na prática, que este juízo seja falso (ainda que, em teoria, possamos conceber a

possibilidade do caso contrário). Se acreditamos que é sempre verdadeiro o juízo "o sol

nascerá amanhã" é porque supomos haver algo que seja capaz de agir a cada dia fazendo

com que o sol nasça. Este algo, esta força eternamente operante pode receber o nome de

causa. Como todos os dias que começaram foram acompanhados do nascimento do sol,

nossa mente se acostumou a juntar estas duas ideias "o começo do dia" e "o nascimento

do sol" estabelecendo que a primeira delas é uma causa cujo efeito é a segunda dessas

ideias. A cada 24 horas, a cada "começo de dia", o sol deve surgir. O mecanismo de

associação que está por trás desta crença é a causação (ou causalidade).

Voltemo-nos para o tratamento que Hume deu à noção de causação, pois análise

humeana desta noção e a teoria dela resultante estariam destinadas a impulsionar Kant a

produzir sua inversão copernicana (na epistemologia). De acordo com análise levada a

cabo por Hume na obra "Tratado da natureza humana", diante da ideia de causação, o

primeiro ponto as ser notado é que ela deve ser derivada da relação entre dois objetos

(THN 1.3.2 SB 75), um deles deve entrar na relação como causa e o outro como

efeito. Nesta relação de causa e efeito, há, de acordo com Hume (THN 1.3.2 SB 76-7),

três componentes essenciais: I) contiguidade; II) sucessão; e III) conexão necessária.

Partindo do princípio que toda ideia deve ter origem nos sentidos, se isolarmos a ideia

de causação e nos indagarmos a respeito de sua origem na experiência, ou seja, se nos

perguntarmos quais são as exatas impressões dos sentidos que correspondem à ideia de

causação ou às suas partes, notaremos, que apenas as duas primeiras componentes

(contiguidade e sucessão) têm como fonte as impressões dos sentidos. Por exemplo,

suponha que estejamos observando a perplexidade de uma criança diante do fato de uma

Page 45: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

30

bola de bilhar poder "transmitir" (não sem alguma considerável "contraparte" sonora)

seu movimento para outra bola e tentemos explicar para ela como essas "coisas"

ocorrem. Nossa tentativa consiste em afirmar que "toda vez que uma bola que está se

movimentando encosta numa bola que está parada, esta passa a se movimentar". A

explicação que fornecemos à criança (e esta é o coração das teorias científicas) é que

um certo fenômeno é apontado como efeito para o qual algum outro fenômeno é

apontado como causa. O movimento da bola branca causa o movimento da bola

vermelha. Nesta relação de causa e efeito, o que efetivamente vemos é que os dois

fenômenos (os dois movimentos de ambas as bolas de bilhar) são contíguos e

sucessivos, ou seja, o que nossos sentidos nos informam é que estes fenômenos

ocorreram em proximidade espaço-temporal e que um deles é anterior ao outro (o

movimento apresentado como causa é anterior ao movimento apresentado como efeito).

Se analisarmos as ideias (complexas) que temos desses movimentos, de acordo com a

teoria humeana, poderíamos chegar a ideias simples (componentes) que devem

corresponder biunivocamente a determinadas impressões dos sentidos. O mesmo não

pode ser feito com o terceiro componente essencial da relação de causa e efeito: a

conexão necessária. Para esta ideia, não há correspondência direta com a experiência.

Esta ideia simplesmente não está baseada na experiência do momento presente (quando

estamos diante daquela mesa de bilhar ao lado da criança), ela é inferida de experiências

anteriores. Portanto, a parte "problemática" da explicação fornecida para criança é

aquela expressão com a qual iniciamos o enunciado explicativo: "toda vez que..." .

Como veremos, a resposta (que tanto perturbou Kant) fornecida por Hume no Tratado,

era que a origem da necessidade envolvida na causalidade estava no hábito. Embora aos

olhos da criança tudo seja novo, já vimos diversas vezes que fenômenos de certo tipo

(como o movimento da primeira bola) eram sempre seguidos de fenômenos de outro

tipo (como o movimento da outra bola). A inferência que fazemos é a seguinte: se em

diversas situações anteriores os objetos que estavam em repouso começaram a se mover

depois que foram tocados por outros objetos que estavam em movimento, então, no

presente caso, em que estou diante de bolas de bilhar que são objetos muito semelhantes

aos objetos envolvidos nas situações anteriores, devo esperar que uma bola que esteja

em repouso vá começar a se mover logo que for tocada por uma bola que esteja em

movimento.

De acordo com a exposição de Hume (TNH 1.3.6 SB 87), é justamente a conjunção

constante em todas as situações anteriores que faz com que, "sem muita cerimônia",

chamemos um desses fenômenos de causa e o outro de efeito. E é esta mesma

conjunção que nos faz, de forma muito natural, inferir a existência de um a partir da

existência do outro. Tal inferência é a marca de um hábito adquirido pela mente graças à

repetição de experiências nas quais um objeto é entendido como causa de outro.

Tornada habitual esta associação de causa e efeito, logo que a impressão relativa ao

primeiro desses objetos nos atinge os sentidos, imediatamente nos vem à mente a ideia

relativa ao segundo objeto. É isto que nos permite antecipar que, por exemplo, a bola

vermelha (que inicialmente está em estado de repouso) passará a se mover se for

Page 46: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

31

atingida pela bola branca (que já está em movimento). Logo que vemos a bola branca se

mover, já nos vem à mente a ideia do movimento da bola vermelha (o que ainda está por

ocorrer). É este hábito que nos permite "descolarmos" do presente imediato da

experiência e visar o futuro. É a partir de uma associação habitual da mente que é

gerada a crença de que o futuro deve ser similar ao passado. A fonte da necessidade que

"enxergamos" na ideia que temos de causalidade é o hábito.

Na obra "Investigação sobre o entendimento humano" (1777), Hume nos apresenta a

estrutura básica das inferências que nos levam da causa ao efeito lançando mão de duas

proposições: "Descobri que tal objeto tem sido sempre acompanhado de tal efeito e

prevejo que outros objetos que, por serem similares na aparência, serão acompanhados

de efeito similar" (EHU sec. VI, parte 2 SB 34). Denominemos esta inferência de

inferência causal.

Inferência causal

proposição_1 --> Objetos do tipo a tem sido sempre acompanhados do efeito b.

proposição_2 --> Todos os objetos do tipo a são (sempre) acompanhados do efeito b.

A passagem da primeira para a segunda destas proposições não é, de forma alguma,

necessária de um ponto de vista lógico. Apenas com o que a lógica nos oferece de

princípios reguladores (como aquele da não-contradição acima referido), não podemos

garantir a verdade da conclusão a partir da verdade da premissa. Se esta inferência

causal fosse necessária, válida universalmente, então deveria ser impossível que a

natureza mudasse seu curso, ou seja, se tal inferência causal fosse necessária, então seria

válido aquilo que é geralmente denominado de princípio da uniformidade: "Todas as

situações, das quais não tivemos experiência, se parecem com aquelas situações com as

tivemos experiência e o curso da natureza continua sempre o mesmo" (THN, 1.3.6 SB

89). Se insistirmos que esta inferência causal é necessária do ponto de vista lógico,

seremos obrigados a encontrar algum argumento que possa justificar logicamente o tal

princípio da uniformidade. Justificar logicamente uma proposição significa encontrar

um argumento cuja conclusão seja proposição em questão.

Notemos que o que estamos testando é a hipótese de que a inferência causal seja

necessária de um ponto de vista lógico, ou seja, a hipótese a ser testada é de que a

necessidade (a conexão necessária) envolvida dentro da noção de causalidade tenha

fundações racionais.

Hipótese: "Toda inferência causal é necessária de um ponto de vista lógico".

Para testá-la, vamos, primeiro, supor a situação em que ela é verdadeira para que

observemos suas consequências. Como já antecipamos, se esta proposição for

Page 47: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

32

verdadeira, então deve ser possível encontrar algum argumento que sustente o tal

princípio da uniformidade.

Teste para hipótese: Se a proposição "toda inferência causal é necessária de um

ponto de vista lógico" for verdadeira, então há um argumento para sustentar o

princípio da uniformidade.

Ora, se a proposição de que a inferência causal é necessária logicamente (ou,

alternativamente, que a necessidade envolvida é de "origem racional") implica a

proposição de que há algum argumento que seja capaz de sustentar o princípio da

uniformidade, então o próximo passo é procurar por este argumento. Assim,

observemos que, para justificarmos logicamente o princípio, temos duas opções: ou

recorrermos a um argumento demonstrativo (uma dedução) ou recorremos a um

argumento provável (uma indução).

Vejamos, em primeiro lugar, o caso do argumento demonstrativo. Não podemos

construir um argumento demonstrativo para sustentar este princípio, porque, como

aquela inferência causal trata de uma questão de fato, é sempre concebível uma situação

em que a proposição_1 seja verdadeira e a proposição proposição_2 seja falsa. Ao

contrário daquelas situações em que examinamos uma proposição cuja negação é

inconcebível (como o caso do "triângulo" que não tem três lados), quando lidamos com

proposições baseadas na experiência (i.e., com questões de fato), é sempre possível

imaginarmos que a natureza sempre poderia seguir um curso distinto daquele observado

no passado.

Estabelecido que um argumento demonstrativo (uma dedução) não é capaz de sustentar

o princípio, voltemos para o outro caminho possível: o argumento provável (a indução).

Se tentássemos estabelecer o princípio da uniformidade a partir de uma coleção de

observações particulares coletadas na experiência, notaríamos que, no momento em que

fôssemos saltar das premissas (particulares) para a conclusão (universal), recorreríamos

sub-repticiamente ao próprio princípio que pretendemos provar. Isto significa que

estaríamos supondo o que deveríamos provar. Como os próprios raciocínios prováveis

(as induções) recorrem ao princípio da uniformidade, não podemos utilizá-los para

provar um princípio do qual o próprio funcionamento deles dependeria. O mesmo

princípio não pode ser causa e efeito de si mesmo (THN, 1.3.6 SB 89). Um argumento

desses seria circular e, por isso, incapaz de sustentar a proposição que exibe como

conclusão. Ora, se não pode haver nenhum argumento demonstrativo e também não

pode haver nenhum argumento provável que sustente o tal princípio de uniformidade e

estes são os únicos tipos de argumentos que a razão nos disponibiliza para apresentar

justificativas racionais, então o resultado é que não pode haver justificativa racional

para nossa hipótese de que toda inferência causal carrega uma necessidade lógica. Se há

alguma necessidade envolvida, a razão simplesmente não pode nos ajudar.

Page 48: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

33

Raciocínio acerca da justificativa racional para a hipótese de que toda inferência

causal carrega uma necessidade lógica

Premissa_1: Se a proposição "toda inferência causal é necessária de um ponto de

vista lógico" for verdadeira, então há um argumento para sustentar o princípio da

uniformidade.

Premissa_2: Não há um argumento para sustentar o princípio da uniformidade.

Conclusão: A proposição "toda inferência causal é necessária de um ponto de

vista lógico" é falsa.

O resultado, portanto, é que a necessidade envolvida neste tipo de inferência (causal)

simplesmente não pode ser fundamentada em qualquer tipo de raciocínio. O que está em

jogo (e isto é central para que entendamos os desígnios do projeto epistemológico

peirceano) é o modo como validamos nossos raciocínios ampliativos (que Peirce

denominará de sintéticos). Qual a origem de nossa confiança em nossas induções? Para

Hume, em última análise, nossas induções são baseadas em hábitos e nossa confiança

nelas é uma espécie de instinto.

Notemos que, ao aceitarmos o ponto de partida do empirismo e seguirmos as linhas

argumentativas elaboradas por Hume, devemos nos limitar a apenas reconhecer como

universal (ou necessário) aquele conhecimento que decorre da relação entre ideias. O

conhecimento baseado nos fatos, na experiência não pode carregar essa universalidade.

Pode-se colocar este problema da seguinte forma: a experiência nos ensina como as

coisas são (ou foram), mas ela não pode nos ensinar como as coisas necessariamente

devem ser. Observando apenas a metade vazia do copo19

, a lição a ser tirada é que todo

19

É inegável que haja uma tendência em se interpretar o argumento de Hume sobre a inferência causal de

uma perspectiva puramente negativa. Como se a intenção última do "mais engenhoso de todos os céticos"

fosse, de uma vez por todas, solapar as bases das ciências com um argumento destinado a provar que

qualquer raciocínio indutivo seria um despautério. Geralmente, este tipo de leitura de Hume está

estrategicamente encaixada em narrativas que o apresentam como um problema cuja solução é Kant. De

acordo com estas narrativas que apresentam Hume como uma espécie de filósofo-escada, "a possibilidade

das ciências da natureza, diabolicamente minada em Edimburgo, fora salva in extremis em Königsberg,

poucos anos depois" (LEBRUN, 1993 p. 11-2). Infelizmente parece fazer coro a essa leitura negativista

nossa brevíssima exposição das argumentações e análises de Hume, que, aliás, também será seguida da

solução kantiana. Entretanto, para isto não há remédio, pois nosso intuito neste capítulo é apresentar ao

leitor uma visão ampla das origens da semiótica dentro do cenário dos debates epistemológicos da

filosofia moderna. Para amenizar, podemos enfatizar que, embora a visão negativista do argumento

humeano tenha sido muito bem mobilizada por Kant em seu próprio projeto epistemológico, não há nada

que nos obrigue a pensar que a impossibilidade de se fundar a causalidade na razão (ao menos, numa

concepção tradicional de razão) seja um problema não-resolvido no horizonte do projeto filosófico de

Hume. Não estamos negando que não haja tensão alguma no pensamento humeano. Aliás, para alguns

estudiosos da obra de Hume, a questão mais importante na interpretação de toda a filosofia humeana é

compatibilização entre o ceticismo e o projeto de desenvolver uma ciência da natureza humana (Garrat,

1997, p. 206). Só o que pretendemos ressaltar (nesta longa nota-de-roda-pé) é que o argumento acerca da

Page 49: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

34

conhecimento que depende da experiência não pode ser considerado necessário a partir

de critério lógico-formal ou, dito de outro modo, somente o conhecimento que for

independente da experiência pode ser considerado necessário a partir de critério lógico-

formal. A validade universal ou necessidade que atribuímos ao conhecimento

dependente da experiência não tem fundações racionais.

Com Hume, a polarização entre empirismo e racionalismo dentro da filosofia moderna

parece ter atingido seus limites. Seja qual fosse o próximo passo, sabemos que seria um

movimento radical. Tentemos reconstruir nalgumas poucas linhas este cenário. Por um

lado, sabemos que, em pleno desmoronamento do saber tradicional e reavivamento de

certo ânimo cético, a aventura moderna começa com o projeto cartesiano de encontrar

fundações absolutamente seguras para o conhecimento físico-matemático e, assim,

garantir a sustentação de todo o edifício do conhecimento humano. Se o racionalismo

"dogmático"20

de Descartes consegue estabelecer fundações absolutamente seguras para

edificação do conhecimento físico-matemático, o preço a ser pago pelo projeto

cartesiano seria a obrigação de ter que justificar a construção de toda uma infraestrutura

metafísica capaz de conceder validade às faculdades cognoscitivas humanas. Por outro

lado, sabemos que, um século depois de Descartes, o objetivo de Hume é levar o

método experimental (que tanto sucesso obteve na mecânica newtoniana) até "assuntos"

humanos. Um dos resultados mais evidentes deste projeto humeano de construir uma

ciência da natureza humana com base na experiência é a constatação da

incompatibilidade entre as bases empíricas que (segundo os empiristas) garantem o

progresso das ciências e as fundações metafísicas que (de acordo com racionalistas)

garantem a validade universal e o caráter necessário do conhecimento obtido pelos

empreendimentos científicos. Se o empirismo cético de Hume consegue inviabilizar a

metafísica, o preço a ser pago pelo projeto humeano seria a obrigação de ter que

justificar como seria possível a ciência newtoniana ter obtido um conhecimento

universalmente válido e necessário a partir da experiência. Esta simplesmente não

parece ser uma preocupação que tenha lugar no horizonte da filosofia de Hume. De sua

célebre análise da conexão necessária envolvida na noção de causalidade, Hume não

apenas deriva consequências seminais para suas reflexões sobre necessidade e liberdade

(cf. THN 2.3.1 SB 399), o que acaba por ter impacto direto no seu tratamento de

"assuntos" humanos (moralidade e religião), como já parece acenar para uma concepção

indução só se torna efetivamente o "problema de Hume" a partir de uma perspectiva kantiana ou, ao

menos, de uma perspectiva muito conveniente ao projeto filosófico de Kant (na Crítica). 20

O termo "dogmático", neste trecho, deve ser entendido no sentido mais estrito dado por Kant no

prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura. Para Kant (KrV B XXVI), o dogmatismo pode ser

definido como a "presunção de seguir por diante apenas com um conhecimento puro por conceitos

(conhecimento filosófico), apoiado em princípios, como os que a razão desde muito aplica, sem se

informar como e com que direitos os alcançou". Assim, arremata Kant, "o dogmatismo é, pois, o

procedimento dogmático da Razão sem uma crítica prévia de sua de usa própria capacidade". Exemplos

de "dogmatismos", de acordo com esta definição de Kant na Crítica, seriam os sistemas metafísicos de

Descartes e Leibniz, por exemplo.

Page 50: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

35

de ciência muito distante daquela visão tradicional cujo centro gravitacional é a

necessidade ou a validade universal21

.

Hume não parece constrangido em afirmar que a razão (longe de ser exclusividade

humana) não passa de um "maravilhoso e ininteligível instinto em nossos espíritos que

nos leva de uma ponta a outra de um certo trem de ideias [train of ideias]" (THC 1.4.16

SB 179). A razão, aos olhos de Hume, em nada lembra aquela centelha furtada dos

deuses para ser entregue aos homens. Óbvio está que, se nem mesmo a própria noção de

racionalidade sai incólume do projeto humeano de levar o método experimental a

"assuntos humanos", a ciência não poderia permanecer em seu posto de atividade

humana com características divinas (ou, na versão cartesiana, atividade humana

assegurada por Deus). Kant simplesmente não está disposto a abrir mão da concepção

de ciência como conhecimento universalmente válido e necessário embora também não

esteja disposto a ter que recorrer, para fundamentar tal conhecimento, a ferramentas

metafísicas sem antes avaliar se a metafísica pode mesmo ser considerada uma ciência.

Kant não pretende recorrer à razão pura sem antes, dela, fazer uma crítica. Comecemos

a ajustar o foco para nos aproximarmos de um enquadramento propriamente kantiano

destas questões. É neste enquadramento que poderemos reconstituir os primeiros passos

da filosofia peirceana.

Todo o conhecimento que é independente da experiência é denominado por Kant de

conhecimento a priori. Ora, estabelecido que a experiência, por si só, é incapaz de

fundar algum conhecimento que seja válido universalmente, torna-se imediato o

seguinte raciocínio: se admitirmos que haja algum conhecimento válido universalmente,

então, alternativamente, este conhecimento só pode ser a priori. Admitido que tal

conhecimento seja, ao menos possível, então a próxima pergunta deve ser a seguinte:

existe algum conhecimento a priori (o único capaz de carregar validade universal e

necessidade) que seja ampliativo, ou seja, será que há algum o conhecimento a priori

que não dependa somente de uma análise do significado dos conceitos nele envolvidos

(como ocorre no caso da proposição "o triângulo tem três lados")? A resposta kantiana

é positiva.

Na "Crítica da Razão Pura"22

, Kant procura captar esta problemática sob outro

enquadramento terminológico. Nesta obra, Kant cunha o termo "juízos analíticos" para

se referir àqueles juízos cuja compreensão do significado (dos termos envolvidos) é

suficiente para se determinar o valor-de-verdade. De acordo com a exposição de Kant

(KrV B 11), neste tipo de juízo o predicado estaria contido no sujeito. Aliás, a

21

Para Owen (1999, p. 154), o que torna tão distinto o tratamento que Hume fornece para o problema do

raciocínio provável é que, para o filósofo escocês, este tipo de raciocínio não é baseado na razão, mas, em

última análise, tem suas bases lançadas em terreno movediço, em processos instintivos. 22

O sistema de referência à Crítica da Razão Pura ("Kritik der reinen Vernunft") é o padrão. A

abreviatura KrV é seguida de uma letra, relativa à edição, e um número, relativo ao parágrafo (dentro

daquela edição). A letra A é relativa à primeira edição da obra publicada em 1781 e a letra B é relativa à

segunda edição que foi publicada em 1787 (e que contém alterações consideráveis nalgumas seções). Para

citações da obra "Prolegômenos a toda metafísica futura" ("Prolegomena zu einer jeden künftigen

Metaphysik" [1783]), utilizaremos a abreviatura Pr. seguida de uma número relativo ao parágrafo.

Page 51: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

36

denominação "analítico" decorre do fato de que o valor-de-verdade de tal juízo pode ser

determinado a partir de uma análise do conceito relativo ao termo que ocupa a posição

de sujeito (no juízo). Por exemplo, o juízo "todos os corpos são extensos" é analítico,

pois basta que analisemos o conceito de corpo (que é sujeito neste juízo) para que

descubramos dentre os seus componentes a ideia de extensão (que é predicado neste

juízo). Dentro deste mesmo quadro, Kant utiliza o termo "juízo sintético" para se referir

a juízos cuja compreensão do significado não é suficiente para se determinar o valor-de-

verdade. Novamente, de acordo com o exposto na "Crítica da razão pura" (KrV B 11),

ocorre síntese quando o conceito relativo ao predicado representa um acréscimo ao

conceito relativo ao sujeito, uma vez que aquele não está contido neste. Por exemplo, o

juízo "todos os corpos são pesados" é sintético, pois o predicado é algo completamente

distinto daquilo que pensamos no conceito de corpo em geral. Apresentada parte da

terminologia kantiana, reformulemos o problema filosófico kantiano em seus próprios

termos: como são possíveis juízos sintéticos a priori?

Formulada a pergunta por trás da "Crítica da Razão Pura", comecemos por focalizar a

resposta, a solução kantiana. O ponto de partida de Kant é a percepção de que, se

considerarmos que a realidade que acessamos pela experiência nos é dada enquanto tal e

que, por isso, o nosso conhecimento é um processo de captação de uma realidade que é

absolutamente independente do sujeito, então torna-se inexplicável como pode haver

algum conhecimento universalmente válido a respeito dos fatos. Está na origem da

virada copernicana de Kant esta percepção de que à mente não pode caber somente o

papel de "registradora epistemológica".

Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos;

porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo

que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto.

Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas

da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso

conhecimento, o que assim já concorda com o que desejamos, a saber, a

possibilidade de um conhecimento a priori desses objetos, que estabeleça

algo sobre eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança

com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação

dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se

movia e torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes

girar o espectador e deixar os astros imóveis.

(KrV, B XVI)

O ponto a ser notado é justamente que, se entendermos o conhecimento como uma

relação na qual o sujeito cognoscente tem um papel passivo (que consistiria apenas em

ser afetado) e objeto tem um papel ativo (que consistiria apenas em afetar), logo torna-

se inexplicável qualquer conhecimento que seja a priori e ao mesmo tempo sintético. A

razão pode inscrever a marca de sua validade universal e necessidade apenas naquele

conhecimento que ela produz ou que ajudou a produzir. Então, para que haja

possibilidade de conhecimento a priori, a razão teria que interferir na própria

constituição do objeto a ser conhecido (antes mesmo que ele possa ser conhecido e até

Page 52: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

37

mesmo para que ele possa ser conhecido). A inversão copernicana à qual se refere Kant

é justamente o estabelecimento de uma posição a partir da qual o nosso aparato

sensório-cognitivo seja entendido como algo que molda a realidade que a experiência

nos apresenta. A partir desta perspectiva, embora, por um lado, tenhamos que

reconhecer que a realidade em si mesma nos é incognoscível, por outro lado, podemos

afirmar que, a respeito da realidade moldada (pelo nosso modo de captar e entender),

podemos ter conhecimento universalmente válido.

Anunciada a virada copernicana, a tarefa kantiana é, então, descrever a partir de uma

análise a estrutura a priori da experiência, que é uma espécie de molde universal e

necessário com o qual o homem está condicionado a enxergar e compreender o mundo.

O "aparato" responsável pelo conhecimento é divido em duas faculdades: aquela

relativa à sensibilidade (pela qual o sujeito recebe as impressões dos sentidos) e aquela

relativa ao entendimento (pela qual o sujeito produz conceitos). A primeira dessas

faculdades nos fornece intuições sensíveis do objeto e a segunda delas nos fornece

conceitos que nos tornam capazes de pensar o objeto. Portanto, o objeto que nos é dado

(à faculdade da sensibilidade) pelas intuições sensíveis pode ser pensado (pela

faculdade do entendimento) graças a conceitos. Para Kant, o conhecimento é obtido ao

se submeter a multiplicidade dos dados provenientes dos sentidos à unidade do

conceito.

Pelas condições de nossa natureza a intuição nunca pode ser senão sensível,

isto é, contém apenas a maneira pela qual somos afetados pelos objetos, ao

passo que o entendimento é a capacidade de pensar o objeto da intuição

sensível. Nenhuma dessas qualidades tem primazia sobre a outra. Sem a

sensibilidade nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum

seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem

conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos

(isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as

intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). Estas duas capacidades ou

faculdades não podem permutar as suas funções. O entendimento nada pode

intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém

conhecimento.

(KrV, A 51/B75-6)

Apresentada esta divisão, Kant passa a descrever as formas puras, estruturas que se

"localizam" antes da experiência e a condicionam. Como esta forma ou estrutura é a

priori (i.e., anterior e independente de qualquer conteúdo da experiência), torna-se

possível explicar a validade universal e a necessidade requerida pelo conhecimento.

Como são duas as faculdades envolvidas, também existem duas formas puras

envolvidas na relação do sujeito com objeto: as formas puras da intuição e também as

formas puras do entendimento (i.e., os conceitos puros ou as categorias). Por intuição

pura Kant entende uma espécie de moldura dentro da qual percebemos o mundo. São

reconhecidas duas formas puras da intuição: o espaço e o tempo. Seja o que for

percebido (texturas, odores, cores, sabores, sons, sentimentos, etc.), deve ser

condicionado por este molde a priori, por esta moldura espaço-temporal. Assim, em sua

Page 53: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

38

teoria do conhecimento, Kant nos apresenta o espaço e o tempo como condições de

possibilidade de toda e qualquer experiência. Em outras palavras, isto significa que aos

humanos não é permitido perceber nada fora de uma moldura espaço-temporal. Kant

encontra nestas formas puras da intuição sensível a fonte da necessidade do

conhecimento obtido pela matemática. Deve-se recordar que o problema central de Kant

era justamente o de responder como é possível um conhecimento ser necessário sem que

tal necessidade seja lógico-formal (i.e., uma necessidade derivada do princípio da não-

contradição). Tomemos como exemplo aquela ciência que (dentro da matemática) é

responsável pelo estudo do espaço e de suas propriedades: a geometria. Como o espaço

é uma forma pura da intuição, então os objetos (pontos, linhas, planos, triângulos, etc.)

da geometria nos são dados na intuição pura e, por este motivo, o conhecimento que

obtemos a partir do estudo de suas propriedades é sintético sem deixar de ser a priori 23

.

Movamo-nos para o segundo andar do "aparato" responsável pelo conhecimento: o

entendimento. Se, por um lado, o espaço e o tempo são formas puras (a priori) que

condicionam nossa percepção do mundo, por outro lado, devem existir formas puras (a

priori) que condicionam nosso entendimento do mundo. Estas formas puras ou a priori

do entendimento são o que Kant denomina categorias. As categorias são formas puras

do entendimento que funcionam como regras sem as quais não podemos conceber, não

podemos produzir conceitos. Portanto, uma categoria do entendimento pode ser

considerada algo como um conceito puro, i.e., sem conteúdo empírico algum. Ao

contrário da maioria de nossos conceitos, que têm origem na experiência, tais conceitos

puros não partem da experiência e nem podem ser nela encontrados de forma direta,

pois eles estruturam toda a experiência possível, ou seja, estes conceitos puros, ao lado

das formas puras de intuição, entram na teoria do conhecimento (de Kant) como

condições de possibilidade da experiência. Se, no caso da faculdade de sensibilidade,

para explicar como as formas puras da intuição (espaço e tempo) condicionam nossa

experiência, utilizamos a metáfora da moldura, neste caso da faculdade do

entendimento, para explicar como as formas puras dos entendimentos (as categorias)

condicionam nossa experiência, lancemos mão da metáfora da gramática (cf. Pr., 39).

As categorias funcionam como regras que fornecem uma estrutura interna aos

fenômenos ligando, conectando seus elementos. Por este motivo, a faculdade do

23

Aliás, é justamente pela intuição (em questão, no caso da geometria) ser pura que a síntese pode ser a

priori. Esta combinação torna-se possível no interior da teoria exposta por Kant devido a seu

entendimento do que vem a ser geometria. Para Kant, a geometria é a ciência que tem por objetivo

estudar as propriedades do espaço (KrV B 40-1) e a validade universal e necessidade de seus axiomas

(postulados, noções gerais, princípios, etc.) decorre justamente de o espaço ser entendido como uma

forma pura (a priori) da intuição. Por um lado, o espaço não pode ser entendido como um conceito, pois,

se fosse, então todas as proposições da geometria seriam analíticas. E, por outro lado, a geometria

também não poderia derivar a validade de suas proposições de intuições que não fossem puras (a priori),

pois se tal validade estivesse baseada em intuições empíricas, então ela só poderia produzir conhecimento

dependente da experiência (a posteriori), o que nos impediria, como vimos com o empirismo, de declarar

tal conhecimento universal e necessário. Fosse baseado em intuição empírica (i.e., que não é pura, que

não é a priori), seríamos obrigados a afirmar que o Teorema de Tales vale apenas para aqueles triângulos

empíricos, concretos que ele desenhou na areia quando se dispôs a apresentar a prova para os colegas. A

solução kantiana depende que o espaço seja entendido como uma forma pura da intuição e as proposições

da geometria sejam, então, sintéticas e a priori.

Page 54: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

39

entendimento é a “parte” mais propriamente ativa do ato de conhecimento e é nela que

podemos enxergar com maior nitidez o cerne da virada copernicana operada por Kant.

O entendimento humano é constitutivo da experiência. As categorias dizem respeito ao

modo próprio que o sujeito tem de estruturar toda a multiplicidade que lhe é dada na

intuição. Então, como as categorias estruturam a priori todo e qualquer fenômeno, elas

são a fonte da validade e universalidade do entendimento que podemos ter dos

fenômenos. São as categorias que permitem a Kant explicar como são possíveis os

juízos sintéticos a priori na física, por exemplo.

Dentro deste quadro teórico, diversos conceitos (como substância e causalidade) dos

quais o empirista exigia uma fundamentação adequada na experiência passaram a ser

considerados como condições da experiência em geral. Quando tais conceitos passam a

ser entendidos como categorias, eles passam a ocupar uma "posição anterior" à

experiência justamente para poder condicioná-la, para poder submetê-la às suas regras.

A causalidade, por exemplo, é uma regra que estabelece uma conexão necessária entre

fenômenos. É uma regra que nos garante que, dado um fenômeno qualquer, ele tem uma

relação necessária com algum outro fenômeno, que é sua causa. Sabe-se, assim, a priori

que qualquer fenômeno tem uma causa, pois, pela própria constituição do aparato

cognitivo humano, não podemos conceber nada que não esteja submetido à regra ou

categoria da causalidade. É uma espécie de sintaxe da nossa experiência. Em outras

palavras, devido à natureza de nosso entendimento, não podemos conceber nenhum

fenômeno que não tenha causa. Neste quadro teórico, a validade universal e a

necessidade do princípio "todo fenômeno tem uma causa" não devem ser buscadas na

experiência, mas na própria estrutura do aparato cognitivo que condiciona a nossa

experiência. Se, por um lado, no "Tratado da natureza humana", Hume estabeleceu que

não é possível encontrar correspondência alguma entre os elementos da experiência e a

necessidade envolvida dentro da noção de causalidade; então, por outro lado, na "Crítica

da Razão Pura", Kant afirma que necessidade envolvida dentro da noção de causalidade

é, no fundo, condição de possibilidade da experiência.

Porém, uma pergunta que qualquer empirista teria o direito de dirigir a Kant é a

seguinte: como foram obtidas categorias? Como dentro do quadro teórico kantiano, a

atividade do entendimento pode ser reduzida a capacidade de produzir juízos24

, pois é

através destes que aquela faculdade estabelece conexões entre diversas representações

para trazê-las à unidade, então o entendimento pode ter suas funções deduzidas das

funções do juízo. Em outras palavras, todas aquelas funções que, no entendimento, são

responsáveis pela redução da multiplicidade (provenientes dos sentidos) à unidade (do

conceito) podem ser deduzidas das funções lógicas que, no juízo, são responsáveis por

sua unidade. Todo o sistema de categorias é deduzido a partir das chamadas funções

lógicas do juízo. A cada categoria corresponde uma função lógica do juízo. São dois

sistemas (um de funções e o outro de categorias), cada um deles com doze elementos

divididos em quatro tríades. Em primeiro lugar, descrevamos a composição de cada um

24

De acordo com Kant, "Podemos (...) reduzir a juízos todas as ações do entendimento, de tal modo que o

entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar" (KrV, B94).

Page 55: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

40

desses sistemas e, em seguida, remetamos o nosso leitor a uma ilustração (reproduzida

na próxima página) relativa aos dois sistemas25

emparelhados (para que nos seja

facilitada a percepção da correspondência entre os seus elementos).

As doze categorias kantianas estão dividas em quatro tríades: as categorias da

quantidade: Unidade, Pluralidade e Totalidade; as categorias da qualidade: Realidade,

Limitação e Negação; as categorias da relação: Inerência/Subsistência,

Causalidade/Dependência e Comunidade (ação recíproca); e, por último, as categorias

da modalidade: Possibilidade/Impossibilidade, Existência/Não-existência e

Necessidade/Contingência. Já as doze formas lógicas do juízo estão divididas também

em quatro tríades: a primeira delas é relativa à Qualidade: Universais, Particulares e

Singulares; a segunda delas é relativa à Quantidade: Afirmativos, Negativos e

Indefinidos; a terceira dessas tríades é relativa à Relação: Categóricos, Hipotéticos e

Disjuntivos; e, por último, a tríade relativa à Modalidade: Problemáticos, Assertóricos e

Apodícticos.

Apresentado este humilde panorama do projeto filosófico kantiano, já podemos voltar

nossa atenção para o desenvolvimento do pensamento peirceano, pois os primeiros

passos que Peirce dará na direção da construção de uma filosofia propriamente

semiótica guardam uma relação direta com as categorias de Kant (acima apresentadas),

sobretudo, com o modo pelo qual cada uma delas foi encontrada na obra "Crítica da

Razão Pura".

25

Nesta ilustração, “desrespeitamos” a distribuição espacial “losangular” utilizada por Kant destes dois

sistemas (tanto o de funções lógicas dos juízos [cf. KrV B95] como o de categorias [cf. KrV B106]).

Page 56: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

41

Page 57: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

42

2.2 - Sinai: de Kant a Peirce

Neste ponto de nossa exposição já podemos reencontrar Peirce. Inicialmente a crítica

peirceana (que desembocaria em sua semiótica), é direcionada somente contra o sistema

(as tábuas) de funções lógicas a partir do qual Kant deduziu seu sistema (suas tábuas) de

categorias. Na verdade, para que sejamos precisos, a crítica inicial parte da percepção de

que não há fundamentação para o sistema de funções lógicas.

Kant, em primeiro lugar, formou uma tábua com as diversas divisões lógicas

dos juízos, e depois deduziu suas categorias diretamente destas. Por exemplo,

correspondendo à forma categórica do juízo esta a relação de substância e

acidente, e correspondendo à forma hipotética está a relação de causa e

efeito. As correspondências entre as funções dos juízos e as categorias são

óbvias e certas. Com relação a este ponto o método é perfeito. O defeito é

que o método não oferece nenhuma garantia para a corretude da primeira

tábua, e não exibe aquela referência direta à unidade da consistência que,

sozinha, concede validade às categorias.

(W1; 351 [1866])26

Como entendia que o problema era a lógica formal que Kant mobilizara para estabelecer

seu sistema de categorias, Peirce tomou para si a tarefa de encontrar um modo de

validá-la (arranjar uma "garantia para sua correção") ou, se fosse necessário, reformá-la.

Embora, à época, por devoção ao projeto anunciado na Crítica, Peirce efetivamente

acreditasse que os defeitos que fossem encontrados nesta lógica formal poderiam ser

corrigidos, hoje, observando em retrospectiva, sabemos que os esforços que seriam

feitos pelo próprio Peirce para efetuar esta correção estavam gradualmente convergindo

para a revolução que, ao final do século XIX, daria origem à lógica moderna, à lógica

simbólica (ou matemática), muito distante da concepção aristotélica de lógica

mobilizada por Kant em seu projeto. É uma situação curiosa (ao menos para os que a

olham em retrospectiva), pois aparentemente a cada passo que Peirce dava para

reformar a lógica formal mobilizada por Kant mais do projeto original kantiano se

afastava. Afinal, aqueles eram os últimos dias da lógica conforme Aristóteles tinha a

concebido quase 25 séculos antes.

O estágio do desenvolvimento do pensamento peirceano ao qual voltaremos nossa

atenção a partir deste ponto constituem os momentos imediatamente anteriores à

elaboração do artigo “Sobre uma nova lista de categorias”, que seria publicado 1867.

Neste artigo, Peirce traz à luz o seu próprio sistema de categorias, o que nos permite

26

No original: Kant first formed a table of the various logical divisions of judgments, and then deduced

his categories directly from these. For example, corresponding to a categorical form of judgment is the

relation of substance and accident, and corresponding to the hypothetical form is the relation of cause and

effect. The correspondences between the functions of judgment and the categories are obvious and

certain. So far the method is perfect. Its defect is that it affords no warrant for the correctness of the

preliminary table, and does not display that direct reference to the unity of consistency which alone gives

validity to the categories.

Page 58: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

43

considerá-lo como ponto onde se torna "oficial" o rompimento com o projeto kantiano.

De acordo com palavras do próprio Peirce, numa carta ao filósofo italiano Mario

Calderoni (1879-1914) 38 anos mais tarde, esta "nova lista de categorias" teria sido

fruto de uma pesquisa de três anos: "No dia 14 de Maio de 1867, após três anos de um

trabalho quase insano de concentração, que não fora interrompido nem mesmo pelo

sono, produzi minha grande contribuição para a filosofia no texto 'Nova lista de

categorias', publicado no Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences"

(CP 8.213 [1905])27

. Se confiarmos na memória do autor, então podemos deduzir que o

gradual processo de distanciamento do pensamento peirceano com relação ao de Kant

deve ter começado por volta de 1864, quando Peirce começa a concentrar seus estudos

no campo da lógica com o intuito de encontrar uma garantia para a correção da tabela

kantiana de funções lógicas dos juízos e, aos poucos, ao longo dos três anos seguintes,

vai percebendo que nenhuma garantia desse tipo poderia ser encontrada, uma vez que

suas descobertas indicam que a tabela simplesmente não poderia ser considerada correta

e as alterações que teriam que ser feitas inviabilizariam a sustentação das categorias

conforme o pretendido por Kant na "Crítica da Razão Pura".

Para expor esta etapa do desenvolvimento do pensamento peirceano seguiremos de perto

a análise e interpretação elaboradas por Murray Murphey (1993 [1961], p. 55-63). Um

dos motivos que nos levou a segui-lo é que o desenvolvimento do pensamento peirceano

em direção à elaboração de um sistema próprio de categorias passa por diversas etapas de

maturação e aquela que julgamos mais relevante para examinar a separação de Peirce da

"matriz kantiana" está quase totalmente concentrada num único manuscrito do 1864 que

foi muito bem analisado por Murphey na obra "O desenvolvimento da Filosofia de

Peirce" ("The development of Peirce's philosophy", 1993 [1961])28

. Neste manuscrito

(MS 744 [s.d.]) cujo título é "Distinção entre a priori e a posteriori" ("Distinction

between a priori and a posteriori"), Peirce chegou a uma teoria da proposição que pode

ser considerada um ponto intermediário entre uma concepção clássica da lógica (i.e.,

aquela de base aristotélica que fora utilizada por Kant na Crítica) e uma concepção

semiótica da lógica (cujos primeiros desenvolvimentos já podem ser vistos tanto na série

de palestras apresentadas em Harvard [as "Harvard Lectures", W1; 165-301] em 1865

como também naquelas apresentadas no Lowell Institute [as "Lowell Lectures", W1; 358-

504] em 1866, ainda que tal concepção de lógica só comece a ganhar contornos mais

claros a partir do artigo "Sobre uma nova lista" [1867]). Como veremos, Peirce chegou a

esta teoria da proposição a partir da descoberta de um problema dentro de uma das tríades

do sistema de funções lógicas de Kant.

27

No original: "on May 14, 1867, after three years of almost insanely concentrated thought, hardly

interrupted even by sleep, I produced my one contribution to philosophy in the "New List of Categories"

in the Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences". 28

Em 1961, quando publicou sua obra, Murphey afirmou que este texto ("Distinção entre a priori e a

posteriori") não estava datado e estimou que Peirce o teria escrito em meados de 1865. No catálogo dos

escritos peirceanos, organizado por Richard Robin (em 1967), este texto (cuja referência é MS 744)

também não está datado (cf. Robin, 1967, p. 94). Já no primeiro volume dos "Writings of Charles S.

Peirce" (publicado em 1982), o MS 744 é datado como "outono-inverno de 1864" (cf. W1, p. 574).

Tomaremos por base esta última data.

Page 59: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

44

Durante suas pesquisas no campo da lógica, realizadas com o intuito de encontrar

alguma garantia para o sistema das funções lógicas do juízo (que estava na base das

categorias), Peirce identifica o primeiro grande problema dentro da terceira tríade do

sistema de funções lógicas (do juízo), a saber, a tríade "da relação" na qual se distinguia

os juízos categóricos, hipotéticos e disjuntivos. Este primeiro ponto de conflito entre as

tábuas kantianas relativas às funções lógicas e as descobertas peirceanas consistia no

fato de Peirce ter conseguido estabelecer que todos os silogismos podem ser colocados

dentro de uma forma hipotética. Um estudo mais detalhado dos escritos deste período (o

que, infelizmente, não podemos fazer aqui) poderia nos indicar que esta descoberta pode

muito bem ter sido influenciada pelos estudos que Peirce fez da obra de diversos lógicos

na primeira metade da década de 1860. De acordo com análise de Murphey (1993

[1961], p. 56), a esta altura, Peirce já estava sob influência do filósofo medieval Duns

Scotus, que o levou, no que diz respeito à lógica, a uma perspectiva inversa a de Kant.

Para Scotus, o verdadeiro objeto da lógica é o silogismo e o estudo do silogismo deve

preceder o estudo das proposições, uma vez que as únicas distinções logicamente

significativas entre proposições são aquelas que "afetam a função delas dentro de um

silogismo" (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 56). Ora, o pensamento kantiano segue um

princípio que vai na direção inversa. De acordo com Kant, as diversas formas de

inferência devem ser deduzidas das diversas formas de juízo29

. Então, como há juízos

categóricos, hipotéticos e disjuntivos, também deve haver silogismos categóricos,

hipotéticos e disjuntivos.

Vejamos mais de perto, então, o trecho do manuscrito (MS 744 [1864]) em que Peirce

consegue estabelecer que "todos os silogismos podem ser colocados numa forma

hipotética". O diagrama apresentado no manuscrito pode ser resumido da seguinte

forma (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 59):

Y é X Se Y, então X

Z é Y Mas, Y (sob Z)

Z é X Então, X (sob Z)

Uma interpretação possível para este esquema apresentado por Peirce neste manuscrito

(MS 744 [1864]) é o seguinte:

Todos os mamíferos são mortais Se algum ser é um mamífero, então este ser é mortal.

Todas as baleias são mamíferos Porém, se tomarmos seres, que são mamíferos, "sob a hipótese de" serem baleias.

------------------------------------------- ------------------------------------------------------------------------- Todas as baleias são mortais Então, teremos tomado seres que são mortais, sob a hipótese de serem baleias.

29

"Há (...) precisamente três espécies de inferências de razão ou de raciocínio, tantas como as dos juízos

em geral, segundo a maneira como exprimem a relação do conhecimento com o entendimento, ou seja,

raciocínios categóricos, hipotéticos e disjuntivos" (KrV A304, B361).

Page 60: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

45

Como podemos perceber, a redução do silogismo categórico a um silogismo hipotético

pressupõe que Peirce já soubesse que toda proposição categórica pudesse ser convertida

numa proposição hipotética30

. Embora, na forma, esta proposição que Peirce denomina

hipotética ("Se Y, então X") seja a mesma que hoje, sem problema algum,

denominaríamos hipotética ou condicional, a interpretação que ele ofereceu neste

manuscrito é muito distinta. Para Peirce, em meados de 1864 (quando foi escrito o

manuscrito 744), converter uma proposição para um formato hipotético seria colocá-la

dentro de uma relação de causa e efeito. Por estranho que nos possa parecer hoje, Peirce

entendia, durante este período, que a proposição "se A, então B" era equivalente à

proposição "A é a causa de B". Parte desta estranheza pode ser "removida" se prestarmos

atenção às tábuas de Kant e nos recordarmos que Peirce estava tentando reformar a lógica

formal subjacente às categorias sem que estas tivessem que ser alteradas.

Para Kant, a categoria da causalidade era derivada justamente da função lógica

correspondente ao juízo hipotético. Dentro do sistema de funções lógicas do juízo (a tábua

da direita na nossa ilustração apresentada ao final da seção anterior), pode-se encontrar o

juízo hipotético (como segundo tipo de juízo do ponto de vista da relação, que é a terceira

tríade) que corresponde, no sistema de categorias (a tábua da esquerda), à categoria da

causalidade (que é a segunda categoria do ponto de vista da relação [i.e., dentro da

terceira tríade]). Em resumo, como, no sistema kantiano, ao juízo hipotético corresponde

a categoria da causalidade e como, de acordo com suas descobertas, todos os tipos juízos

poderiam ser convertidos em juízos hipotéticos, Peirce foi levado a construir uma teoria

causal da proposição. Graças a esta interpretação do juízo hipotético, Peirce, neste

período, entendia que "em toda proposição (...) o sujeito é representado como a causa do

predicado" (MS 744 [1864])31

. Como acreditamos que esta primeira descoberta peirceana

no campo da lógica já esteja suficientemente esclarecida para os fins pretendidos neste

capítulo, passemos, então, à segunda delas.

A segunda descoberta feita no campo da lógica a ter uma influência no desenvolvimento

da semiótica peirceana é relativa à correspondência entre as três figuras do silogismo32

e

30

Devemos recordar que, dentro da terceira tríade (a da relação) da tábua de funções lógicas dos juízos,

há também os juízos disjuntivos. Entretanto, neste trecho Peirce se preocupa apenas em demonstrar a

redutibilidade dos juízos categóricos aos hipotéticos. Segundo Murphey (1993 [1961], p. 59), isto pode

indicar que Peirce, à época, talvez já conhecesse algo a respeito da "implicação material e, assim, já

soubesse que os disjuntivos eram [também] redutíveis" a partir de seus estudo da obra do filósofo e lógico

alemão Carl von Prantl (1820-1888) ou mesmo de outra fonte. 31

No original: "In every proposition (...) the subject is represented as the cause of the predicate". 32

Em silogística, são denominadas figuras os diferentes padrões de combinação entre o termo maior,

menor e médio dentro da estrutura do argumento (que, no caso, deve necessariamente possuir duas

premissas [nas quais ocorre, em cada uma delas, o termo médio] e a conclusão [na qual o termo médio

não aparece]). Na verdade, existem quatro figuras, uma vez que, numa primeira combinação, o termo

médio pode ser sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor; numa segunda combinação, o

termo médio pode ser predicado nas duas premissas; numa terceira combinação, o termo médio pode ser

sujeito nas duas premissas; e, numa quarta combinação, o termo médio pode ser predicado na premissa

maior e sujeito na premissa menor. A "polêmica" envolvendo a quarta figura é que ela não foi definida

nem tratada por Aristóteles (nos Analíticos Posteriores). Embora Aristóteles tenha tratado apenas dos

silogismos das três primeiras figuras, depois se descobriu que alguns modos aos quais ele faz referência

(nesta obra) pertenciam ao que os lógicos mais tarde chamariam de quarta figura (cf. verbete 'quarta

figura', Mora, 2000, tomo IV, p. 2431).

Page 61: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

46

três tipos distintos de inferência: dedução, indução e hipótese (cf. Savan, 1976, p. 3-5).

Embora Peirce já conseguisse tratar os silogismos de segunda, terceira e quarta figuras

como silogismos hipotéticos e isto o levou a estar muito próximo de descobrir aquela

correlação, é apenas com a leitura das "Leis do Pensamento" de Boole que Peirce

efetivamente se dá conta da correlação (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 60).

Esta segunda descoberta o coloca em rota de colisão com argumento de Kant no artigo "A

sutileza equivocada das quatro figuras silogísticas"33

(1762). De acordo com o argumento

de Kant, a segunda, terceira e quarta figuras envolvem apenas uma inferência da primeira

figura combinada com algum tipo de inferência mais imediata (como conversão e

contraposição). Assim, em certo sentido, todas as figuras são "redutíveis" ao Barbara ou

ao Barbara combinado com alguma inferência mais imediata.

Antes de especificarmos as consequências desta segunda descoberta e apresentarmos a

terceira, deve-se notar que a aceitação destes novos entendimentos vai aos poucos

colocando em cheque toda a confiança que Peirce tinha nas bases lógicas sobre as quais

estavam as categorias kantianas. Por um lado, Peirce descobre que distinções que

estavam presentes dentro da lógica formal de Kant não eram essenciais, pois poderiam ser

eliminadas (por exemplo, a distinção entre proposições categóricas e hipotéticas); e, por

outro lado, ele descobre que distinções que estavam ausentes na lógica formal de Kant

deveriam estar presentes ou, ao menos, deveriam ter alguma influência sobre a

composição das tabelas (das funções lógicas dos juízos), pois eram distinções essenciais

i.e., não poderiam ser eliminadas (como os três tipos de inferências correspondendo a

cada uma das três primeiras figuras silogísticas). Se Peirce conseguisse mesmo

demonstrar que as três primeiras figuras silogísticas são irredutíveis e que cada uma delas

envolve um princípio de inferência distinto, então tal demonstração o obrigaria a

encontrar um modo de derivar desses novos e distintos princípios todas as tábuas de

funções lógicas (das quais as categorias foram deduzidas). Ainda que fosse possível, para

continuar sustentando que as tábuas de juízos estavam corretas, encontrar algum modo de

fazer com que elas "saíssem" daqueles princípios, restaria ainda um problema: a terceira

dessas tábuas (a da relação) não parecia estar correta de forma alguma.

Entretanto, Peirce, ao menos até o final do ano de 1864 (quando escreve o texto

"Distinção entre a priori e a posteriori"), estava obstinado em sua missão de encontrar

garantias para a correção da lógica formal que Kant tinha mobilizado para derivar seu

sistema de categorias. Mesmo que a cada passo dado estas garantias parecessem sonhos

cada vez mais distantes, Peirce ainda tentou, pela última vez (ao que parece) no texto

"Distinção entre a priori e a posteriori" em 1864, fazer com que suas descobertas fossem

compatibilizadas com as tábuas kantianas. De acordo com a interpretação de Murphey

(transcrita a seguir), foi o fracasso retumbante desta tentativa de compatibilização que fez

com que Peirce enxergasse o caminho que deveria trilhar (ainda que tivesse seguir de

forma independente do projeto kantiano).

33

Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren erwiesen" / "The mistaken subtlety of the

four syllogistic figures"

Page 62: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

47

Quanto mais Peirce lutava para realizar o sonho de Kant de construir uma

filosofia arquitetônica abrangente, mais as fundações lógicas deste sonho

pareciam ruir.

De frente com estas dificuldades, Peirce recorreu a um caminho altamente

duvidoso: ele tentou distinguir o real do lógico de tal maneira a fazer com

que sua lógica produzisse as tábuas kantianas. As três figuras são formas

autônomas, ele afirmou, porque a redução delas é efetuada apenas por

limitação e negação (conversão e contraposição) e estas são operações

puramente lógicas que não têm contrapartes reais. Por argumento baseado

numa divisão similar, ele procurou mostrar que as três figuras podem

fornecer a garantia necessária das funções do juízo. (...)

Como cumprimento da arquitetônica kantiana, este argumento [acima

referido] deve ser considerado como um fracasso. (...) o princípio geral que

divide o lógico do real, na verdade, mina o objetivo de todo o

empreendimento. Se a formas lógicas sem análogos reais, então parece que

seria impossível de erigir uma tábua de categorias sobre tais formas. Não

obstante, (...) Peirce enxergou a direção na qual sua resposta deveria seguir.

As três figuras devem envolver três regras de inferências distintas e o artigo

de Kant "A sutileza equivocada das quatro figuras silogísticas" deve estar, ele

mesmo, equivocado.

(Murphey, 1993 [1961], p. 61-3)

O resultado desta percepção de que Kant havia se equivocado no artigo acima

mencionado e que as três figuras poderiam ser correlacionadas a princípios de

inferências distintos apenas seria publicado ao final do ano de 1866, num artigo

intitulado "Notas sobre o silogismo aristotélico" ("Memoranda concerning the

Aristotelian Syllogism"). Neste artigo, Peirce apresenta uma prova que qualquer redução

da segunda e da terceira figuras só pode ser efetuada quando se recorre a uma inferência

que só pode ser expressa silogisticamente por aquela figura que está justamente sendo

"objeto da redução". Isto significa que as três primeiras figuras são realmente

irredutíveis e o argumento de Kant no artigo "A sutileza equivocada das quatro figuras

silogísticas" está, ele mesmo, equivocado. A seguir, o último trecho do artigo de Peirce.

Assim, parece que nenhum silogismo da segunda ou da terceira figuras pode

ser reduzido à primeira figura sem recorrer a uma inferência que somente

pode ser expressa silogisticamente naquela figura a partir da qual ela foi

reduzida. Estas inferências não são estritamente silogísticas, porque uma das

proposições tomada como premissa na expressão silogística é um fato lógico.

Porém, o fato de cada uma só pode ser expressa na segunda ou terceira figura

do silogismo, como parece ser o caso, mostra que estas figuras, de forma

isolada, envolvem os respectivos princípios de inferência. Dessa forma, está

provado que toda figura envolve um princípio da primeira figura, mas a

segunda e a terceira figuras contém, além disso, outros princípios.

(W1, 514; CP 2.807 [1866])34

34

No original: Hence, it appears that no syllogism of the second or third figure can be reduced to the first,

without taking for granted an inference which can only be expressed syllogistically in that figure from

which it has been reduced. These inferences are not strictly syllogistic, because one of the propositions

Page 63: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

48

Entre a última tentativa de compatibilização dos "avanços mais recentes da lógica"35

com as tábuas kantianas que podemos encontrar no texto "Distinção entre a priori e a

posteriori" (MS 477 [1864]) e o "ponto-final" (nas tentativas de compatibilização)

representado pela prova exibida no texto "Notas sobre o silogismo aristotélico" (W1,

505 - 514 [1866]), há uma terceira descoberta feita por Peirce que é digna de nota nesta

(nossa) breve investigação das origens da semiótica no pensamento peirceano. Aliás,

não apenas é digna de nota, mas seria impossível não mencioná-la, uma vez que a ideia

por trás dessa terceira descoberta pode ser entendida como o próprio substrato da

semiótica. No dia 14 de novembro de 1865, Peirce escreve em seu caderno de anotações

as seguintes linhas: "Não há logicamente diferença alguma entre [juízos] hipotéticos e

categóricos. O sujeito é um signo do predicado; o antecedente, do consequente, e isto é

o único ponto que interessa à lógica" (W1, 337)36

.

Ora, que não haja diferença (do ponto de vista lógico) entre juízos categóricos e

hipotéticos é uma ideia com a qual Peirce já vinha trabalhando ao menos desde 1864,

como demonstra o exposto no texto "Distinção entre a priori e a posteriori" (MS 477

[1864]). Porém, esta anotação de novembro de 1865 nos demonstra que Peirce, a esta

altura, já abandonou aquela "teoria causal da proposição" (exposta naquele texto de

1864) segundo a qual o sujeito é entendido como causa do predicado e adotou uma

"teoria sígnica (ou semiótica) da proposição" segundo a qual o sujeito é entendido como

um signo do predicado. Entretanto, a observação mais relevante a ser feita com relação

a este diminuto trecho é que é justamente nele que, aparentemente pela primeira vez, a

relação sígnica é isolada como relação fundamental da lógica. Vejamos este assunto

com mais cuidado. Como, neste trecho, Peirce afirma haver a mesma relação sígnica

entre sujeito e predicado e entre antecedente e consequente e, logo em seguida, afirma

que este é "o único ponto que interessa à lógica", então podemos interpretar que, à

época, Peirce já entende que a relação sígnica também poderia ser encontrada entre as

premissas e a conclusão de qualquer processo inferencial, caso contrário ele não teria

declarado, de forma tão peremptória, que esta relação seria o único ponto que

interessaria à lógica, o que é equivalente a afirmar que a relação sígnica é a relação

fundamental da lógica.

Esta (nossa) interpretação desta descoberta da redução tanto da relação sujeito-

predicado como da relação antecedente-consequente à relação sígnica é sancionada por

taken as a premiss in the syllogistic expression is a logical fact. But the fact that each can only be

expressed in the second or third figure of syllogism, as the case may be, shows that those figures alone

involve the respective principles of those inferences. Hence, it is proved that every figure involves the

principle of the first figure, but the second and third figures contain other principles, besides. 35

No final do ano de 1866, no manuscrito 115, Peirce afirma que "a grande finalidade da lógica" é formar

uma tábuas de categorias e, com esta finalidade em mente, nem a lógica formal de Kant nem mesmo as

tentativas de Hegel de remediar os defeitos da lógica formal de Kant estariam de acordo os avanços mais

recentes nas pesquisas no campo da lógica (cf. W1, p. 351-2 [1866]). No parágrafo seguinte a estas

observações, Peirce passa a descrever o que seria, de acordo com sua visão, o método correto para se

forma um sistema de categorias. Já podemos notar que este método é basicamente aquele utilizado no

"Sobre uma nova lista de categorias" (em 1867). 36

No original: "There is no difference logically between hypotheticals and categoricals. The subject is a

sign of the predicate, the antecedent of the consequent; and this is the only point that concerns logic".

Page 64: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

49

uma feita pelo próprio Peirce 33 anos depois ao olhar em retrospectiva para o início de

sua carreira. Num texto, de 1898, em que resume suas conquistas no campo da lógica e

seu progressivo afastamento do projeto kantiano até o ponto em que pôde estabelecer

sua própria lista de categorias, Peirce afirma que tais descobertas o levaram a

reconhecer que "relação entre sujeito e predicado, ou entre antecedente e consequente, é

essencialmente aquela entre premissa e conclusão" (CP 4.3 [1898])37

. Isto significa que

esta anotação datada de novembro de 1865 marca a descoberta que todas as relações

relevantes para a lógica (como aquela entre sujeito-predicado numa proposição [ou num

juízo], antecedente-consequente num condicional e premissa-conclusão numa

inferência) são casos particulares de uma relação mais fundamental: a relação sígnica. O

conceito de signo passa a ocupar o centro do sistema. É esta descoberta que permite a

Peirce estabelecer o conceito de representação (ou, em outros termos, o conceito de

"referência a um interpretante") como sua terceira categoria, que é justamente aquele

elemento que (por causa de sua função essencialmente sígnica dentro do sistema de

categorias elaborado em 1867) "abre caminho para tornar a Teoria Geral dos Signos

fundamental para a lógica, epistemologia e metafísica" (cf. Max Fisch - texto

introdutório ao primeiro volume dos Writings of Charles S. Peirce: W1,1982, p. xxvi)38

.

Embora saibamos dos efeitos, das extraordinárias consequências que esta descoberta

teria no desenvolvimento do pensamento peirceano, infelizmente não sabemos

exatamente como Peirce chegou a estabelecê-la. O que temos é apenas esta anotação de

pouco menos de três linhas. Porém, como este é um "momento" solene para semiótica

peirceana e para compensar a exiguidade deste trecho, fiquemos com um fragmento

pouco mais generoso daquele texto (citado acima) no qual Peirce, em retrospectiva,

expõe a importância de sua(s) descoberta(s)39

. Peirce começa esta retrospectiva (cujos

principais trechos transcrevemos a seguir) confessando que, no início dos anos 60 (do

século XIX), era um apaixonado devoto da obra kantiana e acreditava nas duas tábuas

das funções do juízo e das categorias tal como se elas tivessem sido trazidas do Sinai40

.

Vejamos pelas próprias palavras do filósofo o que o levou a se afastar de sua "matriz".

Achei que havia também um modo de raciocínio provável na segunda figura

essencialmente diferente tanto da indução como da dedução provável. Este é

claramente o que é chamado de raciocínio do consequente para o

37

No original: "(...) the relation between subject and predicate, or antecedent and consequent, is

essentially the same as that between premiss and conclusion". 38

Neste texto de abertura, Max Fisch afirma que a única categoria realmente nova na lista de Peirce é a

terceira, uma vez que as duas primeiras (Qualidade e Relação), de algum modo, já faziam parte das listas

aristotélica das categorias e também já estavam presentes na lista kantiana (neste caso, deve-se salientar

que Qualidade e Relação não eram exatamente categorias, mas eram os nomes de duas das tríades

apresentadas por Kant em sua lista de categorias). Para Fisch, é justamente esta novidade a responsável

por fazer com que a Teoria Geral dos Signos se torne fundamental para a lógica, epistemologia e

metafísica. 39

Com relação a centralidade deste descoberta, cf. também: Murphey, 1993 [1961], p. 63-4; Goudge,

1969 [1950], p. 149; Liszka,1996, p. 30. 40

Cf. trecho original: "In the early sixties I was a passionate devotee of Kant, at least as regarded the

Transcendental Analytic in the Critic of the Pure Reason. I believed more implicitly in the two tables of

the Functions of Judgment and the Categories than if they had been brought down from Sinai" (CP 4.3

[1898]).

Page 65: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

50

antecedente, e, em muitos livros, é denominado de adoção de uma hipótese

que forneça uma explicação a partir dos fatos conhecidos. Seria tedioso

mostrar como esta descoberta levou à meticulosa refutação da terceira e mais

importante das tríades de Kant e à confirmação da doutrina segundo a qual,

para os propósitos dos silogismos ordinários, as proposições categóricas e as

proposições condicionais, que Kant e seus seguidores ignorantes chamam de

[proposições] hipotéticas, são um único tipo de proposição. Isto me levou a

ver que a relação entre sujeito e predicado, ou antecedente e consequente, é

essencialmente a mesma relação encontrada entre premissa e conclusão. Foi

interessante notar como o resultado combinado de todas estas melhorias e

algumas outras às quais não aludi foram decisivas para consolidar aquela

unidade sistemática ou sintética no sistema de lógica formal que ocupava um

espaço tão grande no pensamento kantiano. Porém, embora houvesse mais

unidade do que no sistema kantiano, ainda assim não havia tanta unidade

como o desejado. Por que deveria haver três princípios de raciocínio e o que

cada um deles tem a ver com os outros? Esta questão, que estava conectada

com outras partes de meu programa de investigação filosófica das quais não

preciso entrar em detalhes aqui, veio para primeiro plano. Mesmo sem as

categorias kantianas, a recorrência de tríades na lógica era digna de nota e

devem indicar o surgimento de concepções fundamentais. Então, assumi a

tarefa de averiguar quais eram estas concepções. Esta busca resultou no que

chamei de minhas categorias. Depois, dei-lhes os nomes de Qualidade,

Relação e Representação.

(CP 4.3 [1898])41

Assim, as descobertas realizadas no campo da lógica a partir de 1864 acabam por levar

Peirce a elaborar sua própria lista de categorias. A terceira categoria apresentada por

Peirce no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (1867) tem um papel essencial na

resposta que ele fornece àquela pergunta que considera central a toda filosofia: como

são possíveis os juízos sintéticos (o raciocínio ampliativo, em geral)? Dentro do

argumento defendido por Peirce, neste artigo seminal de 1867, a categoria da

Representação tem justamente a função de "fechar", de fazer a síntese, de trazer à

unidade a multiplicidade referente às impressões de sentido (come veremos no décimo

41

No origninal: "I found that there was also a mode of probable reasoning in the second figure essentially

different both from induction and from probable deduction. This was plainly what is called reasoning

from consequent to antecedent, and in many books is called adopting a hypothesis for the sake of the

explanation it affords of known facts. It would be tedious to show how this discovery led to the thorough

refutation of the third and most important of Kant's triads, and the confirmation of the doctrine that for the

purposes of ordinary syllogism categorical propositions and conditional propositions, which Kant and his

ignorant adherents call hypotheticals, are all one. This led me to see that the relation between subject and

predicate, or antecedent and consequent, is essentially the same as that between premiss and conclusion.

It was interesting to see how the combined result of all these improvements and some others to which I

have not alluded was decidedly to consolidate that systematic or synthetic unity in the system of formal

logic which occupied so large a place in Kant's thought. But though there was more unity than in Kant's

system, still, as the subject stood, there was not as much as might be desired. Why should there be three

principles of reasoning, and what have they to do with one another? This question, which was connected

with other parts of my schedule of philosophical inquiry that need not be detailed, now came to the front.

Even without Kant's categories, the recurrence of triads in logic was quite marked, and must be the

croppings out of some fundamental conceptions. I now undertook to ascertain what the conceptions were.

This search resulted in what I call my categories. I then named them Quality, Relation, and

Representation".

Page 66: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

51

capítulo). Como já antecipamos, de forma bem esquemática, no primeiro capítulo e

como ainda veremos com detalhes nos capítulos que seguem, o conceito de signo bem

como o mecanismo que tal concepção introduz na epistemologia elaborada por Peirce

(sobretudo, dentro da série cognitiva) são elementos teóricos indispensáveis para o seu

projeto filosófico mais geral.

Page 67: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

52

2.3 - Síntese: a distância entre Kant e Peirce

Antes de finalizarmos este breve panorama da separação do pensamento do jovem

Peirce de sua matriz kantiana e da emergência de um pensamento peirceano

propriamente semiótico, devemos fazer uma última observação, que, inclusive, nos

servirá de ponte para o próximo capítulo. A terceira categoria, a Representação, tem

uma função dentro do argumento que parece correr em paralelo à função ocupada pela

(tripla) noção de síntese dentro da "Crítica da Razão Pura". Para sermos mais exatos, o

que Peirce entende por síntese neste artigo é muito semelhante ao terceiro tipo de

síntese apresentado por Kant na "Crítica da Razão Pura": a denominada síntese de

recognição (KrV A 97-110). Na teoria de Peirce, o conceito de síntese cumpre o mesmo

papel de "unificação sob um conceito" cumprido pela "síntese de recognição".

Tomemos como exemplo o seguinte juízo:

Isto é uma cadeira.

Dentro do quadro teórico kantiano, podemos afirmar que há um objeto externo que é, na

síntese, representado diretamente. O que Kant entende por objeto? O objeto é algo que

supomos estar fora da consciência e que é o responsável pelas impressões de sentido

cuja variedade foi unificada graças à introdução do conceito. O objeto é a referência de

toda aquela miríade de impressões que obrigaram a mente a recorrer ao conceito de

cadeira para explicar o que está diante dos sentidos. É óbvio que quando nos vem à

mente a cognição "isto é uma cadeira", o termo sujeito "isto" não se refere às

impressões de sentido. Entende-se que não são as impressões de sentido que são

cadeira, mas aquilo que originou as impressões de sentido que é uma cadeira. O "isto"

se refere a algo externo à consciência. Como está presente na própria definição de

intuição este contato direto entre o objeto externo e as impressões de sentido, então

entende-se que a síntese traz à mente uma cognição (o juízo "isto é uma cadeira") que

representa diretamente algo externo. Nas próprias palavras do filósofo de Königsberg, o

"objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada" (KrV

B137). A síntese, no quadro teórico da "Crítica da Razão Pura", é uma representação

unificadora que age sobre uma base: a intuição.

No quadro teórico delineado por Peirce no artigo "Sobre uma nova lista de categorias",

não há esta base. Não pode haver intuição. Não se pressupõe que uma síntese possa ter

como resultado uma referência direta a um objeto externo (ainda que, neste artigo,

Peirce mantenha o uso da expressão "impressões de sentido"). O resultado de uma

síntese só pode ser obtido ao se recorrer ao resultado de uma síntese anterior.

Dentro da teoria das categorias exposta por Peirce no referido artigo, a síntese, realizada

("completada") pela figura do interpretante, é definida como uma operação que só pode

Page 68: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

53

ser aplicada a um objeto na dependência de uma operação semelhante já ter sido

aplicada a este mesmo objeto anteriormente. A síntese requer uma síntese anterior do

mesmo objeto. Toda e qualquer representação requer uma representação anterior. Sem

esta dependência de uma representação anterior, uma representação qualquer não é

capaz de cumprir seu papel sintetizador. Neste artigo Peirce explica o papel do

interpretante (que é o elemento relativo à terceira categoria) no processo de síntese da

seguinte forma: para que possamos conceber dois elementos distintos da experiência

(diferentes impressões) como unificados é preciso concebê-los juntos como sendo

nossos (CP 1.554 [1867]), o que é equivalente a afirmar que, para unificá-los num

procedimento de síntese, é preciso concebê-los em relação (um com outro) para nossa

mente. Na terminologia apresentada em sua teoria de categorias, para haver síntese, é

preciso conceber quaisquer dois elementos (distintos provenientes da experiência) em

referência a um interpretante (a um terceiro elemento mediador).

Conforme já foi antecipado no texto introdutório, dentro da teoria das categorias, o

conceito de interpretante é definido como algo (uma representação) cujo intuito é

produzir outro interpretante (outra representação) e isto significa que, do modo como foi

introduzido na teoria das categorias, o conceito de interpretante só pode operar de forma

recursiva. O resultado é que, assim definido, um interpretante só pode ser definido ao se

fazer menção à produção de outro interpretante. A teoria do conhecimento que começa a

ser construída tendo como tijolos fundamentais as três categorias (Qualidade, Relação e

Representação) não pode admitir que haja algum início para este processo de

interpretação ou de representação. Não pode haver uma primeira representação, uma

síntese inaugural, não pode haver um interpretante que, para cumprir sua função de

síntese, não recorra a outro interpretante (ou não seja ele mesmo resultado de um

interpretante anterior).

Como veremos de forma mais detalhada, afirmar que não pode haver uma representação

originária é afirmar que não pode haver intuição. Por este motivo, após derivar sua

própria lista de categorias, a primeira grande tarefa de Peirce para estabelecer sua

filosofia de caráter semiótico (que decorre de sua teoria das categorias e de suas

descobertas no campo da lógica) é argumentar contra a intuição e provar que uma teoria

do conhecimento que não recorra ao conceito de intuição é plenamente capaz de

explicar todas as faculdades humanas envolvidas no ato de conhecimento (que seriam

explicadas por aquelas teorias [adversárias] que recorressem a tal conceito) e também é

plenamente capaz fornecer uma explicação para o problema do raciocínio ampliativo ou

sintético, o que é para Peirce o problema central da filosofia e que não pode ser jamais

explicado por qualquer teoria que utilize a intuição como ponto de origem (do ato de

conhecimento). Esta tarefa de erigir uma teoria do conhecimento de caráter semiótico é

realizada nos três artigos que compõem a chamada série cognitiva.

Especifiquemos melhor, então, esta incompatibilidade entre a epistemologia (de base

semiótica) elaborada por Peirce e o conceito de intuição. Se introduzimos na teoria o

conceito de intuição para ocupar o papel de fundação do conhecimento, então esta teoria

passa a admitir a existência de um ponto originário, ou seja, uma cognição (ideia,

Page 69: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

54

pensamento ou proposição) que, por princípio, não pode ter suas origens conhecidas.

Um resíduo de realidade que não pode ser investigado. Isto nos leva a outra pergunta:

qual seria problema em se admitir o incognoscível? Ora, se a teoria admite a existência

do incognoscível, então permanece eternamente aberta a possibilidade de um raciocínio

indutivo ser "inválido" (i.e., ter sua conclusão falsa ainda que todas as suas premissas

sejam verdadeiras), o que inviabiliza, de saída, a consecução do objetivo último que

Peirce estabeleceu para sua teoria das categorias e para todo o argumento construído ao

longo dos três artigos da série cognitiva. Recordemos que este objetivo último é

justamente responder aquilo que considera o problema maior da filosofia: como são

possíveis as sínteses, como são possíveis os raciocínios ampliativos, sintéticos?

Recordemos também que a resposta peirceana é que o raciocínio indutivo pode ter sua

validade fundamentada desde que seja observada uma condicionante básica: tal

raciocínio deve ser aplicado por um tempo indefinidamente longo por uma comunidade

indefinida de pesquisadores. Neste caso, afirma Peirce, todas as linhas de investigação,

todos os processos interpretativos, convergiriam para um ponto (que, como veremos na

segunda seção do próximo capítulo, é aquilo que Peirce entende por realidade).

Admitida a intuição, deve-se reconhecer a existência de algo incognoscível.

Reconhecida a existência de algo incognoscível, a resposta que Peirce pretende oferecer

(no terceiro e último artigo da série cognitiva) ao que considera o problema maior da

filosofia deixaria de funcionar. Vejamos, com um simples exemplo, o porquê.

Suponha que exista uma caixa que contenha um número muito grande de bolinhas de

diversas cores e que queiramos descobrir quantas delas são da cor vermelha. Como a

quantidade de bolinhas nos impede de fazer uma inspeção elemento a elemento,

devemos trabalhar com amostragens. Para cada amostra que tirarmos da caixa, deve

haver certo número de bolinhas vermelhas, deve haver certa proporção de bolinhas

vermelhas para aquelas que forem de outra cor. Assim, sempre retirando amostras de

forma aleatória, a média dos resultados obtidos a partir de um número considerável de

amostras vai se aproximando, pouco a pouco, do valor que acreditamos ser a real

proporção de bolinhas vermelhas na caixa inteira. É claro que cada amostra deve trazer

um número diferente de bolinhas da cor vermelha. Entretanto, a ideia é que cada

amostra funcione como uma indução, um raciocínio feito da parte para o todo, e que

cada indução nos forneça um resultado: por exemplo, "a proporção de bolinhas

vermelhas nesta caixa é x %, porque nesta amostra específica a proporção foi de x %".

De posse dos resultados de diversas induções, podemos obter uma média, que será um

valor que se acredita estar mais próximo da proporção real de bolinhas vermelhas na

caixa inteira do que os valores de cada indução (de cada amostra) tomada

individualmente. Isto é possível porque dentro de cada amostra podemos contar o

número de bolinhas vermelhas, o que não pode ser feito com relação a todas as bolinhas

vermelhas da caixa. O raciocínio indutivo realizado com base nas amostragens pode ser

expresso da seguinte forma:

Page 70: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

55

Raciocínio indutivo realizado sobre amostragem

Argumento 2

Premissa_1: A primeira bolinha desta amostra é de cor azul.

Premissa_2: A segunda bolinha desta amostra é de cor vermelha.

Premissa_3: A terceira bolinha desta amostra é de cor verde.

Premissa_4: A quarta bolinha desta amostra é de cor vermelha.

Premissa_5: A quinta bolinha desta amostra é de cor amarela.

-----------------------------------------------------------------------------------

Conclusão: 20% das bolinhas desta amostra são de cor vermelha.

Argumento 2

Premissa implícita: as características que observamos nas amostras são

efetivamente representativas das características da população da qual as

amostras foram retiradas.

Premissa_6: 20% das bolinhas desta amostra são de cor vermelha.

-----------------------------------------------------------------------------------

Conclusão (da indução): 20% das bolinhas desta caixa são de cor vermelha.

A esperança depositada neste método é que as características que observamos nas

amostras sejam efetivamente representativas das características da população da qual as

amostras foram retiradas, ou seja, a proporção de bolinhas vermelhas que observamos,

em média, nas amostras deve ser a mesma proporção dessas bolinhas na caixa inteira.

Neste exemplo, embora não se consiga, num instante qualquer do tempo, estabelecer

com certeza absoluta uma resposta para a questão proposta, pode-se ao menos notar que

há um processo de convergência que vai aproximando os investigadores, pouco a

pouco, de uma resposta definida (ainda que não se saiba, de antemão, qual é). É como se

houvesse um ponto para o qual seriam atraídas todas as linhas de investigação nas quais

estão cientistas que se impuseram, algum dia, a tarefa de encontrar uma resposta para

aquela pergunta. Não importa quão distante tenham sido os pontos de partida, a

tendência é que todas as linhas convirjam para um valor, para uma resposta

determinada. É "apenas" uma questão de tempo.

Page 71: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

56

O ponto para o qual Peirce pretende chamar nossa atenção é que a validade deste tipo de

raciocínio depende que haja tal processo de convergência. Por sua vez, só podemos

admitir que haja tal processo de convergência se as amostras tiverem sido tiradas de

forma aleatória. É esta aleatoriedade que, no longo prazo, cria a tendência de que

qualquer elemento da caixa tenha a mesma probabilidade de sair (numa amostra) que

qualquer outro elemento. No longo prazo e com amostras aleatórias, todas as bolinhas

seriam, com a mesma frequência, retiradas para compor alguma amostra e, assim,

entrariam como termo sujeito de alguma premissa de alguma indução.

Pois, como todos os membros de qualquer classe são os mesmos membros

que existem para serem conhecidos; e como de qualquer parte daqueles que

ainda estão para serem conhecidos espera-se que uma indução cubra o resto,

então no longo prazo qualquer membro de uma classe vai ocorrer como

sujeito de uma premissa de uma possível indução com a mesma frequência de

qualquer outro membro e, assim, a validade da indução depende

simplesmente do fato de que as partes constituam o todo.

(CP 5.349 [1869])42

Dentro do quadro geral da epistemologia peirceana apresentada na série cognitiva, o

efeito do longo prazo e também o papel da comunidade indefinida de investigadores é

criar um ponto de fuga no qual o uso do raciocínio indutivo esteja justificado. Neste

ponto de fuga, neste ponto para o qual as investigações devem convergir, a

generalização feita das partes para o todo é justificada, pois todas as possíveis partes

que compõem o todo já teriam sido "varridas" pelos investigadores.

Neste cenário, construído por esta epistemologia peirceana, no longo prazo, as

características que observamos nas amostras têm que ser efetivamente representativas

das características da população da qual as amostras foram retiradas. De acordo com a

argumentação peirceana, o único modo de se afirmar que, no longo prazo, este processo

de amostragem não seria representativo é admitir que haja (na população investigada)

alguma característica desconhecida e que devesse, assim, permanecer. Em outras

palavras, de acordo com Peirce, para negar que dadas estas condições (tempo

indefinidamente longo e uma comunidade indefinida de pesquisadores), ainda assim não

haveria a tal convergência, seria preciso supor que há algo de incognoscível.

Voltemos para o exemplo das investigações acerca da proporção de bolinhas vermelhas

na caixa. Suponha que, ao longo de todo o tempo em que foram realizadas tais

investigações, havia um número muito grande de bolinhas vermelhas escondidas num

compartimento interno da caixa. Suponha também que este compartimento nunca tenha

sido descoberto. Então, neste caso, por mais longo que fosse o tempo de investigação e

por maior que fosse o número de pesquisadores, todas as linhas investigativas iriam

42

No original: For since all the members of any class are the same as all that are to be known; and since

from any part of those which are to be known an induction is competent to the rest, in the long run any

one member of a class will occur as the subject of a premiss of a possible induction as often as any other,

and, therefore, the validity of induction depends simply upon the fact that the parts make up and

constitute the whole.

Page 72: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

57

convergir para um valor definido que estaria em desacordo com a realidade. Neste caso,

mesmo a longo prazo, a resposta à qual chegaria a comunidade indefinida de

pesquisadores estaria errada, pois aquelas bolinhas ocultas iriam tornar tal resposta falsa

(ainda que as premissas do raciocínio indutivo, como um todo, fossem todas

verdadeiras). Neste caso, a investigação não teria chegado à verdade, uma vez que

haveria um "bolsão" de realidade que permaneceria imperscrutável a qualquer investida

do conhecimento humano43

. Entretanto, notemos que, para os pesquisadores, para os

cientistas de nosso exemplo, a existência deste compartimento seria fruto de uma

hipótese, uma vez que eles não têm acesso nenhum a todas aquelas bolinhas vermelhas

eternamente ocultas. Notemos que, no fundo, o que uma hipótese como esta solicita a

estes pesquisadores ou cientistas é que acreditem na existência de um pedaço da

realidade ainda que não haja atualmente e nem nunca haverá nenhum sinal de sua

existência. Peirce insistirá que a mentalidade científica não pode levantar uma hipótese

como essas. Não se pode admitir a existência de algo incognoscível. Toda a realidade

deve poder ser conhecida.

43

Desenvolvamos outro exemplo para que esclareçamos esta relação entre incognoscibilidade e indução.

Suponha que, numa determinada cidade, vá ocorrer um pleito eleitoral entre os candidatos A e B e que o

candidato B tenha a maioria das intenções de votos. Imagine, então, a situação em que um número grande

de eleitores que vão votar no candidato B se escondesse nos dias exatos em que as pesquisas eleitorais

estivessem sendo feitas. Para os pesquisadores, estes eleitores simplesmente não são "realidades"

acessíveis, conhecíveis. A intenção de voto deles não é computada simplesmente, porque eles estão numa

espécie de "ponto cego" da pesquisa. Assim, os resultados das pesquisas, por maiores que sejam suas

amostras, por melhores que sejam suas metodologias (e melhor qualificados que sejam os

entrevistadores), estarão destinados a não convergir para a realidade (para o resultado "real" que sairá das

urnas no dia da votação [supondo que, neste dia, os eleitores do candidato B sairiam de seus esconderijos

para votar]).

Page 73: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

58

CAPÍTULO 3

O problema das fundações

A partir de descobertas no campo da lógica (no período pós-64), o conceito de signo

passa a ser central para toda a filosofia peirceana. Em termos gerais, o signo é um

conceito que descreve um processo representacional em que um primeiro elemento (o

signo propriamente dito), para representar um segundo elemento (o objeto da

representação), deve necessariamente produzir um terceiro elemento (denominado de

interpretante) e, como este terceiro elemento é ele mesmo uma representação (um novo

primeiro elemento, ou seja, um novo signo), então ele deve necessariamente produzir

um quarto elemento (i.e., um novo terceiro elemento, ou seja, um novo interpretante) e

assim por diante. O modo recursivo como foi definido o terceiro elemento do signo

(aquele que, dentro da teoria, é o responsável direto pela possibilidade de síntese) e a

"ausência"44

de uma cláusula-base para tal recursão impede que possa ser estabelecido

algum ponto originário para o processo de representação (i.e., processo de produção de

interpretantes).

Se observarmos o quadro geral da epistemologia peirceana e recordarmos que o objetivo

último é responder (com a teoria das categorias) como são possíveis as sínteses e

também estabelecer (com as teorias defendidas na série cognitiva, que decorrem

diretamente das categorias) como é possível encontrar bases para validar o raciocínio

sintético, então não seria difícil notar por quais motivos Peirce não estaria "disposto" a

introduzir, em sua teoria do conhecimento, o conceito de intuição ou qualquer outro que

tenha alguma função epistemologicamente fundante. Como vimos, a intuição é a porta

de entrada para o incognoscível. E a admissão de incognoscibilidade torna impossível

que se encontre algum tipo de validade lógica para os raciocínios ampliativos ou

sintéticos (ao menos, torna impossível encontrar o único tipo de validade que Peirce

imagina que este tipo de raciocínio possa ter). Erigido o seu próprio sistema de

categorias, a próxima tarefa foi estabelecer uma teoria do conhecimento condizente com

tais categorias e, para isso, ele se viu obrigado a desmontar todas aquelas teorias que

explicam o conhecimento como um ato (ou processo) que tem início numa cognição

originária, numa intuição. Por trás de uma variedade muito grande de teorias

epistemológicas, Peirce identificou aquilo que chamou de "espírito do cartesianismo"

como a fonte geradora desta tendência em buscar e estabelecer uma origem (uma

fundação) para o processo de conhecimento. Assim, seus esforços foram concentrados

no ataque a tal fonte.

44

Desta "ausência" trataremos detalhadamente na segunda seção do décimo segundo capítulo.

Page 74: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

59

Da mesma forma que, no capítulo anterior, defendemos a tese que o nascimento da

semiótica peirceana só pôde ocorrer na medida em que Peirce passou a se afastar da

matriz kantiana (na qual o seu pensamento fora inicialmente moldado), neste capítulo

pretendemos sustentar a tese que o estabelecimento da semiótica como núcleo de toda a

filosofia peirceana só pôde ocorrer na medida em que Peirce, depois de ter declarado

guerra ao "espírito do cartesianismo" distribuído pelas teorias epistemológicas

modernas, passou a conquistar o território inimigo seguindo pacientemente de trincheira

a trincheira. Uma teoria da cognição propriamente semiótica só foi alcançada depois de

Peirce ter examinado pacientemente ponto por ponto cada um dos conceitos-chave e das

bem sucedidas explicações fornecidas pelas teorias construídas dentro desse espírito do

cartesianismo. A concepção semiótica do funcionamento da cognição ganha relevância

(dentro da filosofia peirceana) na medida em que obtém sucesso em explicar o

funcionamento de todas as faculdades cognoscitivas que as teorias que combatia

explicavam sem abrir mão de sua posição inicial anti-fundacionalista. Peirce defende a

todo custo esta posição inicial por um motivo estratégico que já identificamos diversas

vezes. Em seu entendimento, apenas uma teoria do conhecimento que não recorresse ao

conceito de intuição (ou a pontos originários equivalentes) seria capaz de explicar a

validade (lógica) dos raciocínios ampliativos ou sintéticos.

Assim, a relevância da semiótica no projeto filosófico peirceano foi conquistada graças

a avanços realizados sobre um território antes dominado por explicações cuja fonte

primeira (ao menos aos olhos de Peirce) era Descartes. Não é por outro motivo que

dedicaremos parte considerável deste terceiro capítulo a uma exposição dos principais

conceitos e movimentos dentro do projeto cartesiano de fundações para o conhecimento

humano. Com isso, esperamos isolar algumas daquelas características que acreditamos

compor aquilo que Peirce denomina de "espírito do cartesianismo" e que foi combatido

no primeiro artigo da série cognitiva ("Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"). Interessa-nos, nesta exposição sobre Descartes, mostrar,

por exemplo, a centralidade do conceito de intuição para o projeto filosófico cartesiano,

o método de pesquisa filosófica baseado na introspecção, o método de organização

teórica baseado na geometria (conforme axiomatizada por Euclides), o enfoque no papel

da consciência individual na construção do conhecimento, etc. Cada uma dessas

características e tendências da filosofia cartesiana é objeto de crítica por parte de Peirce

e é, dentro de seu sistema, contraposta a características e tendências propriamente

semióticas. Como veremos com algum detalhe (nos capítulos desta tese dedicados às

análises de textos peirceanos), todas aquelas faculdades cognoscitivas que são

explicadas, dentro da epistemologia cartesiana, com base no conceito de intuição

passam a ser explicadas, na epistemologia peirceana, com base no conceito de

inferência.

Todo conhecimento, para Peirce, é indireto, depende de signos, ou seja, em seus termos,

todo conhecimento é inferencial. Isto o leva a introduzir um conceito propriamente

semiótico de mente para o qual é inevitável que olhemos com alguma estranheza. A

concepção de mente que emerge dos textos que compõem a série cognitiva está muito

Page 75: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

60

distante daquela elaborada por Descartes nos primeiros dias da modernidade filosófica e

que já tem seus aspectos mais gerais simplesmente assentados no senso comum. Não

deve ter sido outro motivo que levou Santaella (2004, p. 34) a afirmar que "a

dificuldade de se entender Peirce é inversamente proporcional ao poder e à força da

herança cartesiana".

Enquanto no segundo capítulo o foco foi a relação entre Peirce e Kant (observada a

partir de dentro do período que se estende de 1864 até a elaboração do artigo "Sobre

uma nova lista de categorias" em 1867), neste terceiro capítulo passamos a focalizar a

relação entre Peirce e Descartes (observada a partir de dentro da série cognitiva,

elaborada nos anos de 1868 e 1869). A estrutura destes dois capítulos é praticamente a

mesma: na primeira seção introduz-se o filósofo com o qual Peirce dialoga (de forma

mais direta no período ou texto focalizado pelo capítulo) e, na segunda seção, examina-

se a relação entre os dois. Assim, na primeira (e maior) seção deste terceiro capítulo,

apresentaremos as principais características e tendências desenvolvidas dentro do

projeto cartesiano de fundações seguras para o conhecimento humano. Na segunda

seção, passamos a tratar do modo como Peirce se contrapõe a este projeto filosófico

cartesiano e também a todo um conjunto de teorias epistemológicas nas quais

identificou elementos do que chamava de "espírito do cartesianismo". A terceira e

última seção deste terceiro capítulo é dedicada à tarefa de fornecer um breve panorama

da concepção semiótica ou lógica de mente que resulta da teoria peirceana da cognição.

É partir desta concepção de mente que Peirce opera uma dupla reformulação conceitual

destinada a ter forte impacto, em particular, na sua epistemologia e, em geral, na sua

filosofia: o termo "sujeito cognoscente" passa a se referir a uma espécie de sujeito

coletivo do processo de conhecimento e o termo "realidade" passa a se referir a uma

espécie de ponto de fuga do processo de conhecimento. Neste panorama, teremos a

oportunidade de estabelecer um quadro geral dentro do qual podemos enxergar a

distância da epistemologia peirceana (apresentada na série cognitiva) com relação a

outros projetos epistemológicos construídos pelos filósofos modernos. As observações

feitas sobre este quadro geral nos servem de transição ao quarto capítulo, a partir do

qual começam as análises dos textos peirceanos.

Page 76: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

61

3.1 - O projeto cartesiano da fundação última do conhecimento

físico-matemático

Descartes é um filósofo que não apenas viveu num tempo de transição, mas suas teorias

acabaram por também promovê-la, acelerá-la, enfim, moldá-la. O sistema filosófico

cartesiano é, ao mesmo tempo, causa e efeito da atmosfera desta época de transição à

qual nos referimos hoje sob o nome de Revolução Científica: o período que estende de

1543, ano da publicação da obra "De revolutionibus" de Nicolau Copérnico, até 1687,

ano de publicação da obra "Philosophiae naturalis principia mathematica" de Isaac

Newton.

Nesta passagem dos séculos XVI e XVII, num período que se estende por pouco mais

de cem anos, os pais fundadores da ciência moderna demoliram um conjunto de teorias

que estiveram na base da "visão de mundo" do homem europeu por mais de um milênio.

O que foi demolido não era, de forma alguma, um amontoado qualquer de teorias

esparsas, mas um sistema complexo que tinha em sua base teses provenientes da física e

cosmologia elaboradas por Aristóteles (filósofo grego do século IV a. C.) e do sistema

geocêntrico elaborado por Ptolomeu (astrônomo grego [que viveu em Alexandria] no

século I d. C.). Este conjunto de teorias, denominado cosmologia aristotélico-

ptolomaica, fora utilizado ao longo de toda a Idade Média para fornecer explicações

sobre a estrutura do universo, os processos que nele ocorrem bem como a composição

(essencial) dos seres que nele existem e, o que talvez seja o mais relevante do ponto de

vista cultural, também servia para localizar o homem no cosmos.

Este desmantelamento abriu espaço para o ceticismo. Se, num intervalo relativamente

curto de tempo, alguns poucos homens de posse de alguns poucos dados empíricos

foram capazes de questionar teorias nas quais muitos homens acreditaram por muitas

gerações com base no saber tradicional, é sinal, acreditam os céticos, que talvez o

homem não seja capaz de conhecer o que julga conhecer. Se foram provadas que eram

falsas algumas teorias que, durante mais de um milênio, eram consideradas

indubitáveis, talvez nossa capacidade de obter conhecimento devesse ser seriamente

questionada. É possível que tal capacidade que julgamos ter seja uma ilusão ou, ao

menos, seja muito limitada. É possível que nosso aparato sensório e cognitivo tenha em

si mesmo problemas insolúveis. O resultado do raciocínio cético é que ou não podemos

conhecer nada (afirmariam os mais radicais) ou, na melhor das hipóteses

(contemporizariam os mais moderados), ainda que pudéssemos conhecer algo, tal

conhecimento jamais poderia ser considerado certo, absoluto.

Se, por um lado, o desmantelamento da visão de mundo baseada no saber tradicional

abre espaço para o ceticismo, por outro lado, este mesmo processo provoca uma reação

conservadora na instituição dominante (a Igreja), uma vez que seu poder de se fazer

ouvir e obedecer dependia do conjunto de crenças que estava sob questionamento. O

projeto filosófico cartesiano pode ser entendido como uma busca de uma resposta

Page 77: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

62

definitiva para o desafio cético que contemple tantos os avanços da nova ciência como a

possibilidade (e necessidade) da existência de Deus num universo que passaria a ser

minuciosamente examinado e explicado pelo discurso científico.

Esta atividade mental que chamamos de raciocínio parece intimamente ligada a uma

busca por razões. Raciocinar sobre algo é, num certo sentido, procurar razões que nos

levem a acreditar neste "algo". Diante de uma afirmação, a razão nos solicita que

indaguemos quais são as bases desta afirmação. Se a considero verdadeira, com que

direito o faço? Quais são as minhas justificativas para nesta afirmação acreditar?

Suponha que acreditemos na seguinte afirmação: "Sócrates é mortal". A pergunta a ser

feita é a seguinte: com base em que acredito que "Sócrates seja mortal"? A resposta que

todos temos sob a língua é: "ora, Sócrates é mortal, porque Sócrates é humano". Assim,

justificamos a primeira proposição "Sócrates é mortal" com a segunda proposição

"Sócrates é humano" (supondo que todo ser humano seja um ser mortal). Estamos

diante de um argumento cuja premissa é esta segunda proposição e a conclusão é aquela

primeira. Entretanto, o que, neste raciocínio, pudemos justificar foi apenas a proposição

"Sócrates é mortal" (nossa primeira afirmação).

Notemos que a proposição "Sócrates é humano" (que introduzimos como justificativa

daquela primeira afirmação) não é justificada, ou seja, com este argumento, apenas

apresentamos motivos, razões, justificativas que devem levar nosso interlocutor a

acreditar na primeira proposição. A segunda delas permanece sem justificativas. Por

este exato motivo, diante desta nova afirmação, a razão nos solicita que indaguemos

quais são as bases dela. Quais são as minhas justificativas para acreditar que "Sócrates

seja humano"? Suponha que entre em cena, então, uma terceira afirmação: "Sócrates é

um ser capaz de falar". Assim, justificamos a segunda proposição "Sócrates é humano"

com a terceira proposição "Sócrates é um ser capaz de falar" (supondo que todo ser

capaz de falar seja um ser humano). Isto é um novo argumento e temos estruturalmente

a mesma situação do raciocínio anterior: uma conclusão justificada por uma premissa

que não é, por sua vez, justificada. Isto torna possível recolocarmos a indagação a

respeito dos fundamentos: qual é a justificativa para se acreditar nesta terceira

proposição (que foi apresentada como justificativa da segunda, que, por sua vez, foi

apresentada como justificativa da primeira)?

Se admitimos esta apresentação bem esquemática da racionalidade como uma busca de

razões, fundamentos, justificativas, etc. e também aceitarmos uma análise muito

tradicional segundo a qual conhecimento é crença verdadeira justificada, então pode-se

formular um problema muito geral: quais são os fundamentos daquilo que conhecemos

(ou julgamos conhecer); quais são os fundamentos últimos de todas aquelas afirmações

que julgamos verdadeiras?

O problema cartesiano não é apenas encontrar uma fundação para o conhecimento

humano, especificamente aquele conhecimento-base, i.e., a física e matemática, mas

uma fundação que seja completamente segura, inabalável. Descartes acreditava que não

apenas era possível se encontrar tal fundação segura, como esta busca poderia, em

Page 78: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

63

princípio, ser feita por todo e qualquer homem com iguais chances de sucesso. Esta

crença se manifesta na primeira linha da obra o "Discurso do Método" (1637): "o bom

senso é a coisa melhor compartilhada no mundo". O bom senso ou razão é o primeiro

passo, o primeiro requisito necessário para se buscar a verdade. Ainda que seja

necessário, não é suficiente, pois, além de possuirmos o bom senso, devemos aplicá-lo

bem, i.e., utilizá-lo de forma adequada. É por conta deste segundo requisito (a adequada

aplicação da razão ou do bom senso) que entra em cena a necessidade de se desenvolver

um método.

Com esta linha inicial da obra que geralmente é considerada a inauguração da

modernidade filosófica, Descartes põe em marcha o movimento que traria para dentro

do sujeito cognoscente o princípio de fundamentação do conhecimento (que antes

estivera fora dele, ou em Deus [no caso dos medievais] ou na Natureza [no caso dos

antigos]). Este movimento (que só se completaria em Kant) começa a projetar na

nascente mentalidade moderna algumas de suas principais características: as noções de

individualidade, autonomia e, sobretudo, (de forma conjuntiva) a noção de indivíduo

autônomo. Não é por outro motivo que Descartes escreve o seu o "Discurso do Método"

em língua vernácula (francês). A intenção geral desta obra já estava presente numa obra

anterior, mas que não fora publicada durante a vida do filósofo: "Regras para a direção

do espírito". Vejamos dela um trecho45

.

Por método, entendo regras confiáveis que sejam de fácil aplicação e que,

caso sejam observadas com exatidão por quem quer que seja, deverão

impedir que se tome o falso por verdadeiro ou se desperdice esforço mental,

mas deverão fazer com que cresça constante e gradualmente o conhecimento

até que o indivíduo chegue a um verdadeiro entendimento de tudo que esteja

dentro de suas capacidades.

(AT X 371-2; CSM I 16)

No Discurso do Método, Descartes expõe quatro regras: I) dúvida metódica, II) análise,

III) síntese e IV) enumeração. A primeira delas, a denominada dúvida metódica, pode

ser enunciada da seguinte forma: "jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu

não conhecesse evidentemente como tal" e, mais adiante, continua Descartes, "não

incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e tão

distintamente a meu espírito que eu não tivesse ocasião alguma de pô-lo em dúvida"

(AT VI 18; CSM I 120; cf. Descartes, 1973 [1637], p. 45). Na apresentação desta

primeira regra, recorre-se àquilo que é reconhecido como o critério de evidência do

sistema cartesiano: a clareza e a distinção. Clareza e distinção são as marcas de uma

"captação ou percepção" direta (realizada pela mente) de uma verdade indubitável. Esta

45

Para as citações das obras de Descartes, recorremos a um sistema bastante utilizado por comentadores.

A abreviatura AT é referente à edição francesa completa das obras de Descartes organizada por C. Adam

e P. Tannery intitulada "Ouevres de Descartes" (11 vols.) e a abreviatura CSM é referente à tradução

inglesa realizada por J. Cottingham, R. Stoothoff e D. Murdoch intitulada "The philosophical Writings of

Descartes". Cada uma dessas abreviaturas é seguida de um número (em algarismos romanos) relativo ao

volume e um número (em algarismos arábicos) relativo à página em que se encontra o trecho citado. Em

alguns casos, também é feita referência à edição em língua portuguesa.

Page 79: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

64

"captação ou percepção" direta é também denominada intuição e este é um conceito

central para a filosofia cartesiana.

Por "intuição", entendo não o testemunho flutuante dos sentidos ou o juízo

enganador da imaginação ao compor um remendo de coisas, mas um conceito

formado por uma mente clara e atenta, que é tão fácil e distinto que não pode

haver espaço para dúvida sobre o que compreendemos. Ou, então, o que é a

mesma coisa, uma intuição é um conceito indubitável formado por uma

mente clara e atenta, o qual procede unicamente da luz da razão.

(AT X 368; CSM I 14).

Por trás da noção de intuição no sistema cartesiano, parecem residir duas condições: a

primeira delas é a simplicidade, que é o caráter elementar, i.e., não-composto de um

conceito (ou de uma representação); a segunda dessas condições é a distinguibilidade

(ou separabilidade), que é a possibilidade de uma total distinção ou separação entre os

conceitos (ou as representações). Se, para haver intuição, as ideias (ou representações

ou ainda conceitos) com os quais se lida devem poder ser simples e distintos, então o

método deve prescrever alguma maneira pela qual podemos encontrar ideias que

tenham estas características. Isto nos leva à segunda regra enunciada por Descartes no

Discurso do método.

A segunda regra é a da análise. De acordo com a segunda regra, devemos, diante de um

problema, dividi-lo em tantas partes menores, quantas for possível e necessário para

melhor resolvê-lo (AT VI 18; CSM 120; cf. Descartes, 1973 [1637], p. 45-6). Como o

critério de evidência assumido dentro do sistema de Descartes é a clareza e a distinção,

para que se possa aplicá-lo a determinado conceito, é necessário que este seja simples

ou, ao menos, seja entendido como algo que possa ser decomposto em partes que sejam

elas mesmas simples. O objetivo desta segunda regra é fornecer um modo de se chegar a

elementos simples para que se possa deles ter um conhecimento seguro, indubitável, ou

seja, ter uma "percepção" direta de sua verdade. No fundo, o papel da regra de análise

(dentro do método) é fornecer as condições para que se possa aplicar a intuição. A

terceira regra, a síntese, segue no sentido oposto da anterior. Deve-se, de acordo com

esta terceira regra, recompor aquilo que foi objeto de análise (exigida pela regra

anterior) e esta recomposição deve seguir um determinado princípio de ordenação que

parte do mais simples em direção ao mais complexo criando, assim, uma cadeia em que

cada passo depende do passo anterior. A quarta regra é a da enumeração, que pode ser

enunciada da seguinte forma: deve-se fazer ao longo de toda a cadeia de raciocínio (que

foi construída para resolver um problema) enumerações tão completas e revisões tão

gerais que se possa ter certeza de que nada foi omitido (AT VI 19; CSM 120; cf.

Descartes, 1973 [1637], p. 46). O objetivo desta quarta regra parece ser o de criar um

dispositivo de segurança que faça uma espécie de confirmação última da eficiência do

método e, assim, garanta a verdade das proposições às quais se chega ao final de uma

cadeia de raciocínio (feita sob orientação das regras do método). Como a verdade das

ideias iniciais é garantida pela intuição (o critério de clareza e distinção) e a verdade das

ideias derivadas daquelas iniciais é garantida pelo procedimento dedutivo (que é, por

Page 80: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

65

definição, aquele tipo de inferência capaz de preservar a verdade das premissas [AT X

369; CSM I 15])46

, então, como último recurso para afastar os erros, deve-se enumerar

cada passo da inferência, o que deve facilitar a revisão de todo o processo.

Após ter apresentado as quatro regras, Descartes passa aplicá-las ao seu próprio sistema

de crenças (i.e., o conjunto de todas as proposições nas quais ele acredita)47

. Em linhas

gerais, a estratégia da dúvida metódica cartesiana é separar toda e qualquer crença que

carregue a mínima possibilidade de ser posta em dúvida com o intuito de isolar aquelas

crenças das quais seja impossível duvidar. Ao se separar aquelas crenças que sejam

duvidáveis, deve-se, ainda que provisoriamente, rejeitá-las como se fossem todas

absolutamente falsas (AT VI 31-2; CSM 127; cf. Descartes, 1973, p. 54). Assim, o que

restar, deve ser indubitável e, por este motivo, considerado uma fundação segura a partir

da qual pode-se edificar o conhecimento. Podemos, portanto, dividir o projeto

cartesiano em dois grandes estágios: o primeiro deles é o da "desconstrução" do sistema

de crenças a partir do uso da dúvida metódica, o que deve permitir o isolamento de

verdades fundamentais que sejam auto-evidentes (ou intuitivas); o segundo desses

estágios é o da "reconstrução" do sistema de crenças a partir do encadeamento de

verdades que sejam garantidas pela verdade inicial, indubitável.

Ao longo de todo o "Discurso do método", Descartes, para se referir ao sistema de

crenças como um todo (e que deve ser construído sobre bases seguras), recorre à

metáfora da casa. A relação de analogia por trás desta metáfora é que, da mesma forma

que um sistema de crenças deve cair por terra caso esteja baseado em falsas proposições

(que geralmente são fruto de conclusões apressadas ou de "preconceitos" trazidos da

infância do pensamento), uma casa deve ruir caso suas fundações não estejam firmes,

seguras. Dentro desta metáfora, a dúvida metódica funcionaria como uma espécie de

marreta. Claro está que Descartes não pretende exigir que se passe a percorrer todas as

crenças para que se possa duvidar de cada uma delas individualmente, pois esta seria

uma tarefa infindável. Basta que sejam minadas as fundações de uma edificação para

que tudo que estiver construído sobre elas desabe. Assim, afirma Descartes na obra em

que está exposto de forma mais detalhada o seu projeto fundacionalista, as "Meditações

de Filosofia Primeira" (publicado em 1641), para cumprir este estágio de

"desconstrução" (capitaneado pela dúvida metódica) devo me concentrar "nos princípios

básicos sobre os quais repousavam todas as minhas antigas crenças" (AT VII 18; CSM

12, Descartes, 1973[1637]), p.93)48

.

46

Descartes, portanto, reconhece apenas dois "atos do intelecto mediante os quais somos capazes de

alcançar um conhecimentos das coisas sem medo de nos enganarmos": a intuição e a dedução (AT X 368:

CSM I 14). 47

Entre os comentadores de Descartes (cf. Skirry, 2010 p. 41) , há um reconhecimento geral de que,

enquanto o narrador em primeira pessoa da obra "Discurso do método" tem como referência seu próprio

autor (uma vez que este é um discurso reconhecidamente autobiográfico), o narrador em primeira pessoa

da obra "Meditações sobre Filosofia Primeira" tem como referência um personagem que não se confunde

com próprio autor. Este personagem é referido na literatura secundária com o nome de "o Meditador".

Adotaremos nesta seção (que trata especificamente da obra cartesiana) esta convenção. 48

Aliás, justamente por esta obra ("Meditações de Filosofia Primeira") ser considerada aquela em que

Descartes apresenta de forma mais completa seu sistema de fundação de todo o conhecimento físico-

Page 81: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

66

Para cumprir este primeiro estágio de seu projeto fundação do conhecimento, a

demolição do sistema de crenças por meio da dúvida metódica, o filósofo francês divide

este sistema em dois grandes conjuntos. No primeiro deles estão todas aquelas crenças

que estão baseadas nos sentidos. No segundo desses conjuntos, estão todas aquelas

crenças baseadas em noções matemáticas. Vejamos, em primeiro lugar, o que se quer

dizer com crenças que sejam baseadas nos sentidos (ou em dados sensórios). No

exemplo que demos há pouco, a afirmação de que "Sócrates é mortal" foi baseada na

afirmação de que "Sócrates é humano", que por sua vez foi baseada na afirmação de que

"Sócrates é um ser capaz de falar". Para que não continuemos indefinidamente,

podemos supor que esta última afirmação seja baseada no fato de a pessoa que nela

acredita ter visto Sócrates falando. Neste caso, esta afirmação (bem como todas aquelas

outras feitas anteriormente) depende, em última análise, de dados provenientes do

aparato sensório, ou seja, esta é uma crença baseada nos sentidos.

O primeiro passo para que entendamos o critério que presidiu esta divisão é notarmos

que existem certas crenças das quais é mais fácil (ou, ao menos, natural) se duvidar do

que outras49

. Dentre estas crenças das quais podemos duvidar com maior facilidade (ou

naturalidade), estão todas aquelas que são baseadas na sensação, ou seja, o primeiro

conjunto acima referido. Certa desconfiança com relação aos sentidos estaria justificada,

pois, de acordo com Descartes, "é prudente nunca confiar completamente no que já foi

capaz de nos enganar alguma vez" (AT VII 18; CSM II 12, Descartes, 1973, p. 94).

Entretanto, existem gradações. Mesmo dentre as crenças baseadas nos sentidos, existem

algumas das quais nos parece ser mais difícil duvidar, como as experiências sensoriais

mais imediatas. Por exemplo, a crença de que "eu estou aqui sentado diante de um

computador" que é baseada na sensação tátil que as teclas imprimem na ponta de meus

dedos. Esta nos parece uma experiência sensorial tão imediata que se torna difícil dela

duvidar.

Para colocar, de uma só vez, todas as crenças baseadas nos sentidos sob dúvida,

Descartes introduz a hipótese do sonho. Num sonho, minha mente pode ser posta diante

de imagens que acredito ter como causa um objeto externo percebido, mas, na verdade,

tudo é fruto de minha imaginação, as imagens são "produções internas" à mente e não

correspondem a nenhum objeto externo. Por exemplo, posso estar neste momento

deitado, dormindo numa rede e sonhando que "eu estou aqui sentado diante de um

computador". Neste sonho, acredito estar sentado diante do computador, pois tenho, por

exemplo, a mesma sensação tátil (das teclas na ponta de meus dedos) que teria se

estivesse realmente neste lugar. De "dentro" do sonho não posso diferenciá-lo da

realidade. Noto que, diante de uma experiência sensorial, uma percepção qualquer, não

sou capaz de saber com certeza absoluta se esta experiência (ou percepção) é real ou

matemático (e, assim, por extensão de todo o conhecimento que podemos ter do mundo), deste ponto em

diante, a nossa breve exposição do pensamento de Descartes vai se basear nos argumentos e exemplos

nesta obra apresentados (e colocaremos em segundo plano a "versão" dessas ideias apresentada no

"Discurso do método"). 49

Pode-se considerar que esta divisão em crenças baseadas nos sentidos e crenças baseadas na

matemática também espelha uma distinção presente já no problema filosófico cartesiano que é o

estabelecimento de uma fundação completamente segura para o conhecimento físico-matemático.

Page 82: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

67

sonhada. Em outras palavras, noto que sempre posso estar enganado com relação ao fato

de achar que estou acordado quando, na verdade, estou sonhando. Ainda que, de dentro

de um sonho, eu não possa saber se estou ou não sonhando, posso, ao menos, tomar a

atitude cautelosa de sempre levar em conta a possibilidade de estar sonhando. Dentro de

sua teoria, o que Descartes pretende fazer com a introdução da hipótese do sonho é

focalizar esta irremovível possibilidade de se estar sonhando quando se julga estar

acordado. Esta possibilidade (por menor que seja) sempre existe, o que nos leva a

colocar sob dúvida toda e qualquer crença que esteja baseada em dados provenientes

dos sentidos.

Se nos perguntarmos de onde vem tal possibilidade de se estar sonhando mesmo quando

se julga estar em estado de vigília, observaremos que os sonhos só podem ser falsos,

imaginários porque são "complexos", i.e., são compostos de elementos mais simples. É

o fato da experiência sensória ser composta (ou complexa) que torna possível o engano.

Repare que mesmo no sonho mais absurdo, i.e., numa cena ou imagem sonhada em que

nada parece poder corresponder à realidade, ainda temos que pressupor que haja

algumas partes desta cena ou imagem que devem ser reais. Embora a composição como

um todo seja irreal, alguma de suas partes devem poder ser consideradas reais. O que se

pode depreender da exposição de Descartes é que, caso contrário, tal sonho seria

impossível. Neste mesmo trecho da primeira meditação (citado acima), Descartes

apresenta o exemplo dos pintores de "imagens ficcionais": "mesmo quando os pintores

tentam criar sereias e sátiros com os corpos mais extraordinários, eles não podem dar

eles naturezas que sejam novas em todos os aspectos; o que os pintores fazem é

simplesmente juntar membros de diferentes animais" (AT VII 20, CSM II 13). Mesmo

na situação em que o pintor consiga produzir algo realmente novo, ainda assim teríamos

que pressupor que, ao menos, as cores utilizadas são reais (ibid). A condição de

possibilidade da dúvida instaurada pela hipótese do sonho neste caso é a

composicionalidade da experiência sensória.

Portanto, com a introdução desta hipótese do sonho, Descartes é capaz de colocar sob o

manto da dúvida e, assim, suspender (considerando como se fosse falsa) grande parte do

conjunto de crenças. Grade parte da casa já está no chão. A partir de tal hipótese, não

temos base para acreditar em muito do que geralmente acreditamos. Por exemplo, todas

as ciências que dependem, em última instância de dados observacionais, estão sob

dúvida, pois todas as observações que nos levaram a construir teorias em cada uma

dessas ciências podiam ser, de acordo com a hipótese, simplesmente sonhos. Entretanto,

deve-se observar que há um número considerável de crenças que são plenamente

capazes de resistir à hipótese do sonho. Todas aquelas crenças que dependem de noções

matemáticas escapam à hipótese do sonho. O argumento que Descartes traz desde a obra

"Regras para direção do espírito" é que a matemática "lida com objetos tão puros e

simples que ela não faz asserções que a experiência poderia tornar incertas" (AT X 365;

CSM I 12). O que está presente na experiência sensorial (e, por isso, a torna capaz de

ser falsa, i.e., ser sonhada), mas está ausente no caso das noções matemáticas é

justamente a composicionalidade. Por não serem compostas, não há condições de

Page 83: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

68

possibilidade das noções matemática não corresponderem a algo externo. As

proposições da matemática são, então, noções simples cuja verdade pode ser captada de

forma clara e distinta de uma só vez. É a simplicidade ou a não-composicionalidade que

faz com que as chamadas "verdades matemáticas" não possam ser enganadoras (como

as crenças que dependem dos sentidos). Sabemos da verdade delas pela luz natural, ou

seja, por intuição. No seguinte trecho da primeira meditação, Descartes conclui,

partindo da hipótese acima apresentada, que uma série de crenças de base científica

devem ser suspensas por estarem todas baseadas (em última instância) em dados

sensórios. Entretanto, notemos que há ainda algumas crenças que escapam à dúvida

introduzida pela hipótese do sonho.

Então, uma conclusão razoável disso pode ser que a física, astronomia,

medicina e todas as outras disciplinas que dependem do estudo das coisas

compostas são duvidáveis; enquanto a aritmética e a geometria e outras

disciplinas deste tipo, que lidam apenas com as coisas mais simples e gerais e

desconsideram se tais coisas existem na natureza ou não, possuem algo certo

e indubitável. Pois quando estou acordado ou adormecido, dois mais três é

igual a cinco e um quadrado não tem mais que quatro lados. Parece

impossível que sob tais verdades tão transparentes pudesse pairar qualquer

suspeita de que elas sejam falsas.

(AT VII 20; CSM 14; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 27)

A natureza simples (não-composicional) das verdades matemáticas, então, se interpõe

como um obstáculo à tarefa de demolir o restante do sistema de crenças (a casa). Se

considerarmos a hipótese do sonho como uma ferramenta (à disposição do meditador

que utiliza o método da dúvida para buscar a verdade), então o raciocínio matemático

poderia ser considerado um tipo de "concreto" utilizado nalgumas paredes da casa que

as tornaria resistentes ao uso desta ferramenta específica. Como o objetivo de Descartes

é isolar uma certeza completa, algum ponto que seja indubitável para lhe servir de

fundação última, então é necessário encontrar um modo de prosseguir com o método da

dúvida e colocar sob suspeita também o conhecimento matemático. Isto significa que é

necessário se recorrer a uma ferramenta mais forte, é preciso elaborar uma hipótese

mais forte do que aquela primeira.

Como veremos, esta segunda hipótese deve, para ter um alcance muito maior do que a

primeira, necessariamente possuir um caráter metafísico, pois a intenção é que sua

introdução na teoria nos permita duvidar daquilo que, pela própria natureza da mente,

não podemos duvidar: as chamadas verdades matemáticas. Para isto, Descartes precisa

construir um novo cenário hipotético dentro do qual seja possível se enganar também a

respeito das noções matemáticas. Para tornar possível que seja falsa uma asserção de

caráter matemático que naturalmente consideramos verdadeira, Descartes constrói um

cenário em que existe um ser infinitamente poderoso que é plenamente capaz de nos

enganar com relação até mesmo ao conhecimento matemático que julgamos certo e

indubitável. Este recurso metafísico ficou conhecido na literatura especializada com o

nome de hipótese do gênio maligno (ou também deus enganador ou ainda diabo

embusteiro).

Page 84: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

69

Com a introdução da hipótese do gênio maligno, torna-se possível duvidar até mesmo

do que não é da natureza de nossa mente duvidar. Não é por outro motivo que se afirma

que esta última hipótese instaura uma dúvida metafísica enquanto a hipótese do sonho

instaura uma dúvida natural. De acordo com a leitura de Martial Gueroult, um dos

maiores intérpretes da obra cartesiana no século XX, Descartes, para estabelecer dentro

de seu sistema a possibilidade desta dúvida de caráter metafísico, recorre à noção de

"livre vontade" ou livre arbítrio do homem. A possibilidade de considerar como se fosse

falso mesmo aquilo que a natureza da mente nos apresenta como evidentemente (i.e.

clara e distintamente) verdadeiro é proveniente da vontade humana entendida como

infinitamente livre e da onipotência divina (i.e., um deus infinitamente poderoso). Para

Gueroult (1984 [1952], p. 18), é este duplo aspecto do infinitude presente no livre

arbítrio (do homem) e também presente na onipotência (divina) que torna possível a

passagem da dúvida natural para a dúvida metafísica. Então, se por um lado, a ideia de

composicionalidade da experiência sensória é apresentada como condição de

possibilidade da dúvida natural, por outro lado, a ideia de infinita liberdade da vontade

humana e a ideia de infinito poder de deus são apresentadas como condição de

possibilidade da dúvida metafísica.

Este processo de radicalização, esta insistência em levar o procedimento da dúvida até

os limites últimos é absolutamente essencial para uma filosofia que busca encontrar os

fundamentos últimos do conhecimento. Afinal, situações extremas exigem medidas

extremas. A radicalidade do projeto cartesiano permite a Gueroult compará-lo ao

projeto kantiano (apresentado na "Crítica da Razão Pura"), do qual tratamos no capítulo

anterior.

Descartes deseja colocar o problema da certeza em sua máxima extensão.

Neste ponto, ele se assemelha a Kant, que julgaria necessário, para se

reformar a razão, instituir uma crítica que envolve toda a faculdade do

conhecimento, em vez de apenas censurar algumas doutrinas particulares.

Entretanto, ele difere de Kant na medida em que, para ele, uma hipótese

metafísica o permite colocar o problema, e um conhecimento metafísico o

permite solucioná-lo; ele também difere de Kant na medida em que a

fundação da validade do meu conhecimento não pode ser descoberta a partir

de dentro de minha mente, mas a partir de fora.

(Gueroult, 1984 [1952], p. 19)

Se, sob a hipótese do gênio maligno, a dúvida metódica alcança até mesmo a

matemática, então não deve ter restado nada de nosso sistema de crenças. A casa deve

ter sido completamente demolida. Na verdade, mesmo introduzida a hipótese do gênio

maligno, deve restar algo. Sob os escombros do sistema de crenças, resta algo que

escapa mesmo à dúvida metafísica, o que sobra se apresenta como condição interna ao

ato de duvidar: a existência do pensamento (daquele que duvida). Como não pode ser

posta dúvida nem pela mais corrosiva das dúvidas (que é aquela de natureza metafísica,

i.e., a hipótese do gênio maligno), então este pensamento de que existo (porque penso

[ou duvido]) é a certeza fundamental. Dele não se pode duvidar simplesmente, porque

não só não há condições que me permitam dele duvidar como ele próprio é condição

Page 85: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

70

para duvidar de qualquer outra coisa. A enunciação desta certeza fundamental é

provavelmente a frase mais conhecida da filosofia: "penso, logo existo" (ou, em latim,

"Cogito, ergo sum").

A indubitabilidade do Cogito reside, portanto, numa condição interna ao ato de duvidar

(ou pensar). A existência daquele que duvida é uma condição para a dúvida. A

existência daquele que pensa é uma espécie de plataforma que torna possível o

pensamento. O gênio maligno pode me enganar com relação a tudo que conheço ou

julgo conhecer, exceto com relação ao conhecimento que tenho de minha existência

(como algo que pensa). E ele não pode me enganar com relação a isso justamente pelo

fato de meu pensamento ser real. Não posso duvidar da realidade do meu pensamento,

porque ainda que seja um pensamento enganoso, ilusório, (ainda que tal pensamento

seja uma falsa representação da realidade exterior), ele não deixa de ser um pensamento.

E um pensamento, de qualquer tipo (verdadeiro ou falso), pressupõe algo que pensa.

Esta é a intuição fundamental. É a pedra sobre a qual será erguido o edifício do

conhecimento.

Após a radicalização do procedimento de dúvida realizada durante a primeira meditação

(e na quarta parte do "Discurso do método"), Descartes passa admitir como indubitável

somente a existência daquele que duvida. Na verdade, o que é admitido é apenas que há

algo que pensa, uma substância que pensa. A existência de um corpo e de qualquer

realidade externa à mente (daquele que duvida) continua sob dúvida. A certeza

encontrada diz respeito somente à existência do sujeito (enquanto substância pensante) e

não do objeto, que permanece sob o manto da dúvida metódica. Por este motivo,

Descartes passa, na segunda meditação, a argumentar a favor da tese de que a mente

(daquele que está duvidando) é mais facilmente conhecida do que o corpo (que este

indivíduo que duvida supõe ser seu).

Há, no pensamento cartesiano, uma prioridade do conhecimento da mente (ou da alma)

sobre o do corpo. Na verdade, mente e corpo são definidos (dentro do sistema) por

propriedades fundamentais distintas. Mente e corpo são entendidos como substâncias

completamente desligadas uma da outra. É este dualismo que está por trás do célebre

exemplo do pedaço de cera, apresentado na terceira meditação.

Suponha que observemos um pedaço de cera que acabou de ser retirado de um favo de

mel e que façamos uma lista de suas propriedades que sejam perceptíveis pelos cinco

sentidos. Notaríamos que este pedaço de cera guarda algo do gosto do mel; tem ainda o

aroma das flores das quais foi tirado e também a cor, o formato e o tamanho são bem

específicos. Pode-se notar também que este pedaço de cera é duro e podemos produzir

som caso batamos em sua superfície com a junta dos dedos. De acordo com Descartes,

este pedaço de cera, assim descrito, possui todas as propriedades que parecem

"necessárias para que uma coisa corpórea seja conhecida da forma mais distinta

possível" (AT VII 30; CSM 20; Descartes, 2004 [1641], p. 55). Entretanto, continua

Descartes, se aproximarmos este pedaço de cera do fogo, notaríamos que todas aquelas

propriedades se perderiam: aquele sabor residual de mel e também aquele afável cheiro

Page 86: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

71

das flores desapareceriam. Poderia se observar que a cor, formato e tamanho já não

seriam mais os mesmos. A cera, que antes era dura e fria, torna-se quente e mole. Com

sua consistência alterada dessa maneira, já não poderíamos, como antes, produzir som

ao "tamborilarmos" na superfície deste pedaço (agora derretido) de cera. Se basearmos

o conhecimento que temos deste pedaço de cera naquela lista de propriedades sensíveis,

seríamos obrigados a reconhecer que, depois de termos o levado ao fogo, estaríamos

diante de outro objeto, completamente distinto. Porém, isto não ocorre. De alguma

forma, sabemos que aquele é exatamente o mesmo pedaço de cera.

A explicação de Descartes é que a identidade de um objeto é independente de quaisquer

alterações de propriedades que possam ser captadas pelos sentidos. Aliás, e é este o

cerne deste exemplo, aquilo que faz da cera o que ela é não pode ser percebido pelos

sentidos. Mas pode somente ser percebido pela mente.

Porém, o que é esta cera que é percebida apenas pela mente? É claro que é a

mesma cera que vejo, toco e que retrato na minha imaginação, em resumo, a

mesma cera que pensei ser desde o início. E ainda, e aqui está o ponto

principal, a percepção que tenho dela não é um caso de visão, tato ou

imaginação nem nunca foi, apesar das aparências mas um caso de puro

escrutínio mental; e isto pode ser imperfeito e confuso, como era antes, ou

claro e distinto como é agora, dependendo de quão cuidadosa for minha

concentração para saber no que consiste esta cera.

(AT VII 31; CSM II 21, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 57)

Portanto, o conhecimento (verdadeiro) daquilo que um objeto é (no que ele consiste)

não pode ser baseado em características cambiantes. O conhecimento não pode se

basear no que é acidental ou inessencial no objeto, mas naquilo que deve permanecer

através das mudanças. E, de acordo com Descartes, apenas a extensão é uma

propriedade que permanece sob todas as mudanças possíveis e pode, assim, ser

considerada a propriedade essencial das coisas corpóreas. O que é, nos objetos,

percebido de forma clara e distinta é apenas a extensão. Qualquer outra propriedade que

possamos atribuir a um objeto pressupõe a ideia de extensão. Ser redondo, ser quadrado,

ser alto, ser magro, ser azul, ser árido, ser espesso, etc. Todos esses modos de ser são

apenas modos de ser extenso, i.e., modos particulares pelos quais uma coisa é extensa.

Como veremos mais adiante, esta definição de tudo o que pode existir de matérico a

partir de uma propriedade essencial (a extensão) é uma condição para as fundações

seguras do conhecimento sobre o mundo externo. Um mundo (externo) que é feito

essencialmente de coisas extensas pode, ainda que não saibamos se ele existe ou não,

ser descrito matematicamente.

O mais importante neste ponto da exposição é que enxerguemos como dentro deste

cenário teórico em que há a primazia da mente sobre o corpo, o conhecimento da mente

e das ideias que nela se apresentam é mais certo e mais seguro do que o conhecimento

do mundo externo (cuja existência, aliás, ainda está para ser provada). Até mesmo a

visão ou imaginação da cera atesta, antes, a existência daquele que a vê ou imagina.

Page 87: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

72

Com certeza minha consciência do meu próprio eu não é apenas muito mais

verdadeira e certa que a minha consciência da cera, mas também muito mais

distinta e evidente. Pois, se julgo que a cera existe do fato que a vejo,

claramente este mesmo fato implica de forma muito mais evidente que eu

mesmo existo. É possível que o que vejo não seja exatamente a cera, é

possível que eu não tenha olhos com os quais possa ver alguma coisa. Porém,

quando eu vejo ou penso ver (não estou aqui distinguindo os dois),

simplesmente não é possível que eu, que estou pensando agora, não seja

alguma coisa.

(AT VII 33; CSM 22, Descartes, 1974 [1641], p. 61).

Antes que continuemos, é necessário que chamemos atenção para uma relevante

consequência do princípio metafísico de total separação entre substância pensante e

substância extensa. Dentro dos limites da teoria cartesiana, ainda que se possa afirmar

que sinais, símbolos, palavras, em resumo, a linguagem facilite o raciocínio, não

podemos afirmar que estes expedientes sensíveis dos quais o homem lança mão sejam

essenciais à atividade do pensamento50

. O motivo é que obviamente o lugar teórico da

linguagem no pensamento cartesiano é do lado das coisas corpóreas, o que a faz ser

definida em radical oposição ao pensamento ou ao que lhe é próprio. Se Descartes

admitisse que os sinais que utilizamos, por exemplo, durante um raciocínio, para

representar o conteúdo do que pensamos fossem essenciais ao próprio ato de pensar,

então teria que admitir que o pensamento (numa atividade que lhe é própria, o

raciocínio) teria que necessariamente recorrer a algo corpóreo, o que entraria em

conflito com o princípio de independência entre a substância pensante e substância

extensa. Portanto, uma tese que podemos derivar naturalmente deste princípio da

filosofia cartesiana é que o emprego de expedientes sensíveis para simbolizar os

conteúdos mentais não é essencial ao pensamento. Este é um posicionamento

diametralmente oposto, por exemplo, ao do filósofo e matemático alemão Gottfried

Wilhelm Leibniz (1646-1716): o uso de expedientes sensíveis é uma condição sine qua

non da própria atividade de pensar. O pensamento é essencialmente simbólico. Para

Leibniz, a linguagem "constitui o melhor espelho do espírito humano e que uma análise

exata da significação das palavras ajudaria, melhor que qualquer outra coisa, a conhecer

as operações do entendimento" (Novos ensaios, livro III, cap. 7, sec. 6; Leibniz, 1974

[1710], p. 219). Conforme já antecipamos, o espelhamento entre linguagem e

pensamento é uma das ideias mais gerais e profícuas de toda a filosofia peirceana. A

correlação entre os conceitos de pensamento e linguagem atravessa toda a obra de

Peirce.

A partir da terceira meditação, Descartes começa a preparar o terreno para, da primeira

certeza (o cogito), derivar outras verdades. Como a única "coisa" a respeito da qual se

tem certeza é a existência da mente (ou alma), o único movimento possível, a esta

altura, é um movimento de introspecção. Como a única "coisa" que se provou existir é a

mente (do meditador), então o único material que está disponível para se trabalhar é 50

Se, por um lado, Descartes reconhece, por exemplo, no Discurso do Método (parte V), que linguagem

seja um indício de racionalidade (AT VI 57-8; CSM 141; cf. DESCARTES, 1973, p. 69), por outro, numa

obra intitulada "Princípios de Filosofia", ela é considerada como fonte de erro (AT IXB 37; CSM 220).

Page 88: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

73

aquele apresentado na consciência individual: as ideias que o meditador tem em mente.

Terminado o estágio de demolição, encontrada a primeira certeza e estabelecido o

princípio de separação entre mente e corpo (i.e. esclarecido que a mente é melhor

conhecida que o corpo), o meditador deve se voltar para sua consciência individual.

Neste movimento de introspecção, de acordo com Descartes, o meditador deve perceber

que possui em mente uma diversidade de ideias. Contemplando este panorama interno,

pode-se notar que tais ideias podem ser agrupadas de acordo com a sua origem ou, na

terminologia utilizada no "Meditações", de acordo com a causa. Assim Descartes nos

afirma que dentre suas ideias algumas lhe parecem inatas, outras lhe parecem

adventícias (i.e., provenientes do exterior) e outras ainda lhe parecem inventadas pela

própria mente; estas últimas são as chamadas ideias factícias (cf. AT VII 35; CSM II

26; Descartes, 2004 [1641], p. 76-7). Como veremos, o problema é que, como todas as

faculdades cognoscitivas tiveram suas credenciais cassadas em virtude da dúvida

metódica, não há nada que nos garanta que aquelas ideias chamadas de adventícias

sejam representações de alguma coisa externa à mente. A esta altura, não podemos

saber se a mente que duvida está só num universo de representações criadas por ela

mesma e que não têm correspondência alguma com algum objeto exterior. O que temos

até este momento da exposição é apenas o estabelecimento da ideia de que a mente (que

duvida, pensa) existe e nada mais.

Como este terceiro grupo de ideias diz respeito a uma criação da própria mente, então

nos parece óbvio que tais ideias não têm muito a nos revelar sobre existência de algo

"do lado de fora" da mente e a validade das representações que esta produz. Por

definição, podemos considerar que tais ideias têm como causa última a própria mente ou

o funcionamento desta.

O segundo grupo de ideias, as chamadas adventícias, também não pode nos ajudar

muito, pois ainda que julguemos que elas são causadas por objetos (supostamente)

exteriores, não há nada que nos garanta que tais objetos existam e tenham efetivamente

as causado. Aliás, deve-se recordar (e isto é muito relevante para argumentação

cartesiana) que, graças à ação da dúvida metódica, é sempre possível que estejamos

enganados com relação a uma ideia que julgamos representar algo externo à mente. Isto

é só outra maneira de afirmar que as ideias adventícias podem ser, sob a hipótese do

sonho, por exemplo, produzidas internamente. Deve-se observar ainda que entre todas

estas ideias adventícias não há nenhuma com relação à qual seja problemática a

afirmação de que tal ideia pode ter sido criada pela mente, ou seja, tenha como causa a

própria mente. Por exemplo, separemos algumas destas ideias que consideramos

adventícias: a ideia que tenho de corpo, ideia de outra pessoa, ideia de lua. Todas estas

ideias que geralmente temos em mente podem ter como causa a própria mente. E de

acordo com que se pode depreender da exposição de Descartes, não há nenhum

problema em se admitir que tais ideias possam ter como causa a mente, porque

nenhuma destas ideias envolve uma realidade mais "alta", mais perfeita do que a própria

mente que as possui.

Page 89: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

74

Outras ideias, que, por isto, foram classificadas por Descartes como ideias inatas, não

podem ter como origem ou causa a própria mente que as possui (nisto, elas se

distinguem das ideias factícias), mas também não podem ter sido adquiridas pela mente

graças ao aparato sensório como ocorre, por exemplo, com a ideia de mesa (nisto, essas

ideias inatas se distinguem, então, das ideias adventícias). Como não é adquirida, nem

tem causa interna, as ideias inatas não se confundem com aquelas pertencentes aos dois

outros grupos acima referidos. O estabelecimento da existência de ideias inatas é um

ponto fulcral para todo o sistema cartesiano. Para estabelecer a existência desse terceiro

tipo de ideia Descartes lançou mão do que pode ser chamado de "princípio de

causalidade", que foi enunciado da seguinte forma:

Agora é, em verdade, manifesto pela luz natural que na causa eficiente e total

deve haver pelo menos tanto quanto há em seu efeito. Pois, pergunto, de onde

o efeito poderia receber sua realidade senão da causa? E como esta poderia

dá-la, se não a possuísse também? De onde se segue, porém, não ser possível

que algo resulte do nada e nem também que o mais perfeito, isto é, o que

contém em si mais realidade resulte do menos perfeito.

(AT VII 40-1; CSM II 28; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 81-2)

Aceito tal princípio51

(que, para Descartes, é intuitivo), chega-se a conclusão que existe

pelo menos uma ideia que não pode ter como causa a própria mente: a ideia de "uma

substância infinita, independente, eterna, imutável, sumamente inteligente, sumamente

poderosa e pela qual eu mesmo fui criado e tudo o mais existente, se existe alguma

outra coisa" (AT VII 45; CSM II 31; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 91). Como esta ideia

envolve atributos que tornam o ente (esta substância infinita...) nela representado um

ente mais perfeito que aquele ente que possui esta ideia (que é o meditador, i.e., a

substância que duvida, que pensa), logo, pelo princípio de causalidade acima anunciado,

esta substância infinita não pode ter como causa (como origem) a própria mente. Então,

deve-se necessariamente pressupor que esta ideia corresponde a um ente (com todos

aqueles atributos) que existe de forma independente da mente. Óbvio está que este ente

é aquele ao qual nos referimos com nome de "Deus". O argumento cartesiano é o

seguinte: é necessário se reconhecer a existência de Deus como um ente independente

da mente, pois, caso contrário, tornaríamos inexplicável a posse pela mente da ideia de

Deus. Como o efeito é infinito, a causa também deve ser infinita. Já contamos com duas

certezas: a existência da mente (ou alma) e a existência de Deus.

51

A ideia por trás deste princípio é afirmar que não pode haver mais realidade no efeito do que na causa.

Não pode haver mais realidade no ponto de chegada do que há no ponto de partida. Para que possamos

esclarecer este ponto, desenvolvamos um exemplo. Suponha que uma pessoa tenha que percorrer alguns

quilômetros todos os dias para buscar água num poço e que, para trazer água e encher o reservatório de

sua casa, esta pessoa sempre utilize um balde com capacidade de 5 litros. Ora, neste caso, se ela foi ao

poço e colocou no balde 4 litros, não é possível que, ao chegar em casa para despejar a água no

reservatório, note que havia no balde 5 litros d'água. Isto é impossível, mesmo que saibamos que cabem 5

litros no balde. O que torna isto impossível não é a capacidade do balde, mas o fato de não poder haver

mais água no momento da chegada do que havia no momento da partida (supondo que não tenha "caído

água do céu"). Este 1 litro de diferença não pode ter sido criado "no meio do caminho". A ideia do

princípio utilizado por Descartes é estruturalmente semelhante: não pode ser criada mais realidade no

meio do caminho entre a causa e o efeito.

Page 90: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

75

Por uma prudência típica, logo depois de apresentar tal prova, Descartes passou a

investigar a possibilidade de se construir um segundo argumento que, a partir do mesmo

princípio, fosse além daquilo que foi provado neste primeiro argumento (acima

apresentado). Neste trecho, Descartes se põe investigar se a própria existência daquele

que possui a ideia de Deus não é devida à existência de Deus (AT VII 48; CSM II 33;

cf. Descartes, 2004 [1641], p. 97).

Assim tratou de apresentar um segundo argumento, desta vez destinado a provar algo

mais forte do que a afirmação de que "a ideia (que o meditador possui) de uma

substância infinita requer a existência desta substância infinita". Este segundo

argumento pretende estabelecer a afirmação de que a própria existência da mente (i.e., a

substância que pensa) requer a existência de Deus. Em primeiro lugar, comecemos pelo

ente cuja existência já tinha sido provada: o meditador (i.e., a substância que pensa).

Supondo que aquele que medita não tenha sido criado por Deus, resta-nos dois

caminhos a considerar: que ele tenha sido criado por si mesmo (que ele seja a causa de

sua própria existência) ou que ele tenha sido criado por outros seres que são menos

perfeitos que Deus. Neste primeiro caminho, notamos que se o meditador fosse a causa

de sua própria existência, então ele não deveria duvidar, desejar ou ter carência alguma,

pois ele deveria ter dado a si mesmo todas as perfeições das quais tivesse ideia e, neste

caso, seria ele mesmo Deus (AT VII 48; CSM II 33, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 97 ).

Se fosse Deus, então não poderia se reconhecer como um ser imperfeito (uma

substância finita que duvida, deseja ou tem carências). Como a dúvida é a prova de que

aquele que duvida é, nalguma medida, finito e imperfeito, pois possui alguma carência

de conhecimento que o leva a duvidar, então aquele que duvida não pode ter "colocado"

em sua própria mente a ideia de um ente infinito e perfeito, pois, para que isso fosse

possível, aquele que duvida teria que ser infinito e perfeito, o que contraria o fato de ele

estar em dúvida. Portanto, este primeiro caminho nos leva a uma contradição e, por tal

motivo, não pode ser admitido.

O segundo caminho é que a existência daquele que medita tenha sido derivada de outros

seres menos perfeitos que Deus, por exemplo, os pais dele. Porém, neste caso, como

também os pais (do meditador) são substâncias finitas que contém a ideia de uma

substância infinita, a pergunta é recolocada: qual é a origem desta ideia de uma

substância infinita na mente dos pais do meditador? Tem-se um regresso infinito. Se

considerarmos, então, que uma cadeia causal infinita é ininteligível, então devemos

buscar outra explicação para o fato de uma criatura finita ter em mente uma ideia acerca

de uma substância infinita. A única explicação que restou é aceitar a ideia de que deve

necessariamente existir de forma independente uma substância infinita, Deus, que seja

responsável pela existência da mente que duvida (e de todas as outras coisas, se elas

existirem).

Deve-se enfatizar que a ideia de Deus não pode ser nem adventícia (não pode ser

proveniente dos sentidos), nem pode ser uma ideia construída pela própria mente (uma

vez que devido a sua objetividade não é possível que a mente, desta ideia, tire ou

coloque qualquer elemento). Descartes conclui, então, ao final da terceira meditação,

Page 91: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

76

que a ideia de Deus só pode pertencer ao grupo das ideias inatas (AT VII 51; CSM II

35, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 103). A ideia de Deus é a marca do artífice impressa

em sua obra. Portanto, dentro do sistema, já contamos com duas existências provadas: a

da mente (que pensa, que duvida) e de Deus. A existência deste é provada com base na

existência do primeiro. Por isso, já temos uma segunda certeza estabelecida na cadeia de

raciocínio: "I) penso, logo existo; II) existo, logo Deus existe.", (ou em latim, "I)

Cogito, ergo sum; II) Sum, ergo Deus est"52

).

Estabelecida a tese da existência de Deus, Descartes se volta para a tarefa de "resgatar"

as faculdades cognitivas que estavam desde o início das meditações sob ação da dúvida

metafísica (a hipótese do gênio maligno). Para isso, já na passagem da terceira para a

quarta meditação, ele começa a apresentar a tese de que Deus não pode enganá-lo. O

trecho que segue é retirado do início da quarta meditação.

Em primeiro lugar, reconheço ser impossível que Deus jamais me engane, já

que em toda falácia ou engano há algo imperfeito. E, embora o poder enganar

pareça ser um sinal de esperteza e poderio, é indubitável, porém, que o querer

enganar atesta fraqueza e malícia e, desta forma, não pode ocorrer em Deus.

Em seguida, experimento que há em mim uma certa faculdade de julgar que,

a exemplo de tudo o mais em mim, recebi de Deus. E, como Deus não quer

me enganar, seguramente não me deu esta faculdade para que viesse a errar

caso a usasse corretamente.

(AT VII 53-4; CSM II 37-8, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 112-3)

Dentro do sistema cartesiano, o estabelecimento da existência de Deus (a partir da

existência daquele que duvida) significa a derrota do gênio maligno, pois a partir do

momento que se prova a existência de Deus, a hipótese do gênio maligno torna-se

insustentável. De forma muito semelhante ao que ocorre na matemática (sob uma

perspectiva formalista), a hipótese do gênio maligno só pôde ser levantada, porque ela

não era (antes da prova da existência de Deus) inconsistente com nada que se admitia

como verdadeiro. Naquele ponto das meditações, o gênio maligno era um objeto

possível. A partir do momento que a existência de Deus é provada, a hipótese da

existência de um gênio maligno deve ser abandonada, pois ela se torna inconsistente

com a existência de Deus. Estes dois entes, Deus e o gênio maligno, não podem

coexistir.

Deve-se recordar que, de acordo com a hipótese do gênio maligno, não deveríamos

confiar nem mesmo naquilo que nos aparecesse de forma clara e distinta, ou seja, não

deveríamos confiar nem mesmo naquilo que nossas faculdades cognoscitivas nos

garantem ser verdadeiro. A hipótese do gênio maligno só possui este alcance radical,

porque ela coloca sob suspeita até mesmo o critério de clareza e distinção que a mente

possui para saber se está ou não diante de uma verdade. Ela, como vimos, é uma

hipótese de caráter metafísico justamente porque vai contra a natureza da mente.

52

Esta último proposição "existo, logo Deus existe" já está presente na décima segunda das "Regras para

a direção do espírito" (AT X 422; CSM I 46).

Page 92: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

77

Portanto, quando prova a existência de Deus e anula a hipótese do gênio maligno,

Descartes passa a resgatar a validade do conhecimento obtido pelas faculdades

cognoscitivas humanas. Em última instância, Deus é a garantia de que tais faculdades

funcionam. Aquilo que nos aparecer clara e distintamente como verdadeiro é

efetivamente verdadeiro, uma vez que (como Deus existe) não há mais a possibilidade

de existir um ente maligno que nos enganasse a esse respeito. Devido à natureza

confiável de Deus, podemos afirmar que, na base, nossa capacidade para produzir

conhecimento é também confiável. O critério de evidência (clareza e distinção) é, assim,

recuperado.

Dentro do sistema, a prova de que as faculdades cognoscitivas humanas estão aptas a

cumprir suas funções é o fato de todas elas serem obras divinas. E esta prova depende

da ideia de que não seria condizente com a natureza confiável de Deus criar em nós uma

faculdade projetada para nos enganar, i.e., produzir "conhecimento enganoso".

Estabelecido que nossa capacidade para produzir conhecimento está em perfeita ordem

e não pode por si mesma nos enganar, a pergunta mais imediata que podemos dirigir a

Descartes é a seguinte: como explicar o erro e a ignorância do homem? A resposta

cartesiana é que o erro é proveniente do uso incorreto de tais faculdades. Portanto, de

acordo com Descartes, Deus garante que as faculdades cognoscitivas humanas estão

aptas a cumprir suas funções se forem usadas corretamente. O erro surge do manuseio

impreciso de um instrumento de máxima qualidade que foi projetado para tornar o erro

impossível caso seja manuseado adequadamente. Para continuar no terreno das

metáforas explicativas, é como se a máxima qualidade de nossas faculdades

cognoscitivas fosse garantida pelo fabricante, no caso, Deus. Entretanto, deve-se

observar que o fabricante garante que o produto desenvolva de forma perfeita as

funções para as quais ele foi projetado para desenvolver desde que seja utilizado de

forma adequada. E, como todos sabemos, a forma adequada é aquela descrita no manual

de instruções. No caso do conhecimento humano, o manual de instruções é o método. E

a primeira regra do método para obtenção da verdade é, de acordo com Descartes,

aceitar como verdade somente aquilo que nos parece clara e distintamente verdadeiro.

Este é o critério de evidência e sua validade é garantida pela existência de Deus.

Já contamos, então, com duas certezas inabaláveis: a existência de Deus e a existência

da alma (ou da mente). Entretanto, até esta altura da exposição, ainda permanecem sob

o manto da dúvida tanto a existência do próprio corpo (daquele que duvida) e também a

existência de todo o mundo externo. Ora, se as faculdades cognoscitivas do homem

estão em "ordem", isto é, estão aptas para cumprir suas funções, então também devemos

acreditar nas informações que nos chegam pelo aparato sensório. O argumento que

pretende provar a existência do mundo externo (inclusive do corpo) a partir das ideias

que se tem das coisas corpóreas é muito semelhante ao que foi desenvolvido para provar

a existência de Deus (a partir da ideia de Deus). As argumentações relativas à existência

do mundo externo estão na sexta meditação.

De acordo com a exposição de Descartes, mais uma vez, num movimento de

introspecção (até porque não parece haver outra paisagem possível para se contemplar),

Page 93: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

78

o meditador passa a observar algumas ideias que estão em sua mente e passa a se

perguntar qual a causa daquelas ideias relativas a corpos. Tais ideias não podem ter

como causa a própria mente do meditador, pois ideias relativas a dados sensoriais estão

fora do controle da mente. A mente não pode mudar a seu bel prazer uma sensação

desagradável por uma que lhe seja aprazível. De acordo com Descartes, tais ideias

simplesmente "são produzidas sem minha cooperação e mesmo contra a minha vontade"

(AT VII 79; CSM II 55, cf. Descartes, 2004 [1641], p. 171). Portanto, a origem das

ideias de coisas corpóreas que temos deve estar "fora" da mente. Estas ideias, de acordo

com Descartes, devem ser causadas por coisas que efetivamente sejam externas e

independentes da mente. Se forem observadas as regras do método e se for seguido o

critério de clareza e distinção, deve-se, então, confiar naquilo que o aparato sensório

humano capta. A base dessa argumentação é, novamente, a natureza confiável de Deus e

das faculdades cognoscitivas por Ele ao homem concedidas (e, em consequência disso,

também a inexistência de um gênio maligno que pudesse nos enganar com relação aos

nossos dados sensórios).

[Deus] me concedeu uma grande inclinação a acreditar que estas ideias são

produzidas por coisas corpóreas. Portanto, não vejo como Deus poderia ser

entendido senão como um enganador caso estas ideias fossem transmitidas de

uma fonte outra que não as próprias coisas corpóreas. Segue-se, então, que as

coisas corpóreas existem. Pode ser que nem todas existam de forma a

corresponder exatamente à maneira como as capto sensoriamente, pois em

muitos casos a captação pelos sentidos é muito obscura e confusa. Entretanto,

ao menos elas possuem todas aquelas propriedades que compreendo de forma

clara e distinta, ou seja, todas aquelas propriedades que, consideradas de

forma generalizada, compõem o objeto de estudo da Matemática pura.

(AT VII 79-80; CSM II 55; cf. Descartes, 2004 [1641], p. 171-3)

Estabelecidas estas três provas, a relativa à existência da alma (mente), de Deus e do

mundo externo, já podemos voltar nossa atenção a Peirce, uma vez que o que já

apresentamos do sistema filosófico cartesiano já é mais do que suficiente para que

possamos traçar, mais adiante, algumas contraposições com relação ao projeto

epistemológico peirceano. Antes de passarmos à próxima seção, fechemos este

panorama com a transcrição de um longo trecho retirado do segundo volume da obra "A

filosofia de Descartes interpretada de acordo com a ordem das razões". Neste trecho,

conclusivo de sua obra, Martial Gueroult apresenta as seis meditações cartesianas como

se fossem, em sua totalidade, uma esfera dentro da qual as três primeiras e as três

últimas meditações se opõem como dois hemisférios separados pela "veracidade

divina".

O primeiro hemisfério está sob a regra do princípio do engano universal. Este

princípio impõe o propósito estabelecido de duvidar de tudo, mesmo daquilo

que nossa mente, por natureza, considera, inelutavelmente indubitável. a

saber, ideias claras e distintas. Neste campo onde reinam absolutos o erro e a

dúvida, o Cogito registra uma tênue, porém perfurante exceção de fato. Uma

batalha, então, começa entre o princípio da regra e a exceção do fato. E esta

batalha termina com a derrota do princípio e a vitória da exceção. Primeiro

Page 94: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

79

reduzida a um ponto em meio à escuridão da dúvida, a luz do Cogito,

aumentando, de alguma forma, sobre si mesma finalmente encontra o Deus

infinito, que é outro além de mim mesmo e que, ao destruir a sombria ficção

do engano universal, ilumina todo o céu, de um horizonte a outro, através do

supremo esplendor da veracidade absoluta.

Entramos então num novo mundo. A lei do segundo hemisfério é a negação

daquela que rege o primeiro. Ela impõe, contra o propósito estabelecido de

duvidar de tudo, um propósito inverso de afirmar a verdade de tudo, mesmo

daquilo que, para o meu entendimento, é por natureza a coisa mais duvidosa

possível a saber, os sentidos.

Entretanto, mantendo a simetria com relação ao Cogito no hemisfério do

falso, é registrada também no hemisfério do verdadeiro, neste campo onde

reinam absolutas a certeza e a verdade, uma tênue, porém inquebrável

exceção de fato: o erro humano. Ela perfura a luz da veracidade com um

ponto escuro exatamente como o Cogito perfurou a escuridão do engano

universal com um ponto de luz.

Aqui como lá, uma batalha começa entre o princípio da regra e a exceção do

fato. Porém, a batalha termina desta vez com a vitória do princípio. A

veracidade divina, sobrepujando a exceção introduzida pelo erro, obtém êxito

em salvaguardar sua imaculada integridade, enquanto que restaura aos

sentidos uma verdade que corresponda exatamente à quantidade de realidade

objetiva deles.

(Gueroult, vol. 2 - 1985 [1952], p. 216)

Conforme já antecipamos nos capítulos anteriores, depois de abandonada a matriz

kantiana na qual seu pensamento foi inicialmente formado, Peirce passou a travar um

diálogo mais direto com a filosofia cartesiana. A semiótica (como uma ciência geral das

representações) é construída como uma alternativa às teorias defendidas por Descartes

em seu projeto de fundação do conhecimento físico-matemático.

Page 95: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

80

3.2 - A impossibilidade do projeto das fundações seguras

Como vamos passar a próxima centena de páginas somente em análises de teorias

peirceanas e como elas estão distantes daquelas elaboradas por Descartes, acreditamos

que seria de bom tom começar esta seção com algumas poucas observações a respeito

de alguns poucos pontos de contato entre as filosofias cartesiana e peirceana.

Por mais que nos afastemos de Descartes (e parece que no século XX este filósofo foi

muito mais combatido do que lido ou apenas lido para ser melhor combatido), ainda

temos a impressão de que estamos pisando em terreno por ele conquistado. Entre os

estudiosos da filosofia peirceana, acostumamo-nos a chamar a série cognitiva de textos

anti-cartesianos de Peirce. É bem verdade que Peirce tenha declarado abertamente suas

intenções em apresentar uma epistemologia construída sob os escombros daquela

erigida por Descartes. Esta epistemologia comporia uma nova plataforma exigida, de

acordo com a visão peirceana, pela ciência moderna e pela lógica moderna a partir da

qual a filosofia poderia se desenvolver ao tomar emprestado os métodos das ciências

que obtiveram êxitos em seus propósitos de produção de conhecimento (CP 5.265

[1868]). No trecho a seguir (presente no segundo artigo da série cognitiva), Peirce faz

um desenho de seu adversário.

Descartes é o pai da filosofia moderna, e o espírito do cartesianismo aquele

que se distingue, sobretudo, da escolástica que acabou por substituir pode

ser resumido como segue:

1. Ele ensina que a filosofia deve começar pela dúvida universal; enquanto a

escolástica nunca questionou os fundamentos.

2. Ele ensina que o teste último para se estabelecer a certeza deve ser

encontrado na consciência individual; enquanto a escolástica se baseava no

testemunho dos sábios e da Igreja Católica.

3. A argumentação multiforme da idade média foi substituída por uma linha

única de inferência que, geralmente, depende de premissas que não são

facilmente perceptíveis.

4. A escolástica tinha seus mistérios de fé, porém tentava explicar todas as

coisas criadas. Por sua vez, existem muitos fatos que o cartesianismo não

apenas não explica como torna absolutamente inexplicáveis, a menos que

afirmar que "Deus os fez assim" deva ser considerado uma explicação.

Sob alguns desses aspectos, ou sob todos, a maioria dos filósofos modernos

tem sido cartesiana. Agora, ainda que não pretenda retornar à escolástica,

parece-me que a ciência e a lógica modernas requerem que sejamos capazes

de nos colocarmos sob uma plataforma muito diferente desta [apresentada].

(CP 5.264-5 [1868])53

53

No original: Descartes is the father of modern philosophy, and the spirit of Cartesianism -- that which

principally distinguishes it from the scholasticism which it displaced -- may be compendiously stated as

follows: 1. It teaches that philosophy must begin with universal doubt; whereas scholasticism had never

questioned fundamentals. / 2. It teaches that the ultimate test of certainty is to be found in the individual

Page 96: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

81

É evidente que Peirce busca, sob diversos aspectos, inspiração no pensamento medieval

que antecedeu a entrada em cena de Descartes. Por exemplo, o primeiro artigo da série

cognitiva ("Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem") foi

escrito de acordo com uma estrutura muito próxima a uma forma literária (típica do

período medieval) denominada quaestio. Entretanto, neste trecho acima referido, Peirce

deixa claro que não pretende propor um retorno à escolástica, não pretende reconstituir

um espaço pré-moderno perdido. Peirce não propõe, de forma alguma, uma "filosofia da

saudade" como algumas lamúrias contemporâneas feitas em honra a tempos idos.

Entretanto, se Descartes contribuiu para constituir o espírito da modernidade, há de se

presumir que, para combater o espírito cartesiano, sem abandonar as terras da

modernidade, deve-se dele guardar algo (ao menos, é o que nos dizem certas

concepções "dialéticas" da história). Esta é uma situação paradoxal que parece emergir

toda vez que se lida diretamente com fundações. E o problema de Peirce com relação à

epistemologia cartesiana, como veremos, é justamente a noção de fundação.

A prova elementar de que Peirce não pretende voltar à escolástica e que manteve alguns

dos avanços mais gerais e importantes conquistados pelo espírito cartesiano é que sua

própria epistemologia (semiótica) é construída dentro do chamado "primado das

representações". De forma muito geral, a marca deste primado é constatação de que

qualquer discurso filosófico que se possa fazer sobre as coisas existentes é condicionado

pelo modo particular como estas coisas (que julgamos existentes) nos aparecem, nos são

representadas. É a partir de Descartes que começa a emergir na filosofia a consciência

desta anterioridade (de caráter lógico). Esta é a constatação de que tudo o que sabemos

do mundo, só o sabemos a partir de nossas ideias sobre o mundo. Temos acesso ao

objeto somente por uma representação dele. A estratégia de Descartes é partir da ideia

em direção ao que a ideia representa54

. É partir do representante em direção ao

representado. O passaporte para modernidade filosófica parece ser este reconhecimento

de que apenas estudando a consciência e seus elementos, i.e., as ideias, as

representações (mentais), podemos verificar se há por trás delas os objetos que elas

professam representar. Assim a filosofia passa de um cenário em que produz

basicamente teorias sobre objetos (sobre "o que há", sobre o que existe) para um cenário

em que produz teorias sobre o (nosso) conhecimento de objetos (sobre o nosso acesso

ao que há ou o que deve haver).

consciousness; whereas scholasticism had rested on the testimony of sages and of the Catholic Church. /

3. The multiform argumentation of the middle ages is replaced by a single thread of inference depending

often upon inconspicuous premisses. / 4. Scholasticism had its mysteries of faith, but undertook to explain

all created things. But there are many facts which Cartesianism not only does not explain but renders

absolutely inexplicable, unless to say that "God makes them so" is to be regarded as an explanation. In

some, or all of these respects, most modern philosophers have been, in effect, Cartesians. Now without

wishing to return to scholasticism, it seems to me that modern science and modern logic require us to

stand upon a very different platform from this. 54

Nota-se que, nas meditações, por exemplo, Descartes (ou o meditador) chega à prova da existência

(objetiva) de Deus partindo da ideia que Dele se tem na consciência. Outro exemplo é que Descartes (ou o

meditador) descobre que a propriedade essencial de todas as coisas corpóreas é a extensão partindo de

uma análise da ideia que se tem das coisas corpóreas (ainda que não se saiba, à essa altura das

meditações, se tal ideia corresponde a algo objetivo).

Page 97: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

82

Longe de ter abandonado Descartes por completo, o projeto de Peirce acaba por

aprofundar uma das principais conquistas da filosofia cartesiana. A teoria da cognição

desenvolvida por Peirce em paralelo à sua crítica ao espírito cartesiano tem como ponto

nevrálgico a descoberta de que a relação de representação (que está dentro do conceito

de signo) é central para explicar as nossas faculdades cognoscitivas. Como já

antecipamos no primeiro capítulo (e veremos com mais detalhes adiante), esta teoria da

cognição (alternativa ao sistema cartesiano) teve como ponto de partida uma teoria de

categorias (de inspiração kantiana [ao menos na forma]) que tinha por objetivo

descobrir quais são concepções mais gerais presentes em todo e qualquer fenômeno, ou

seja, as investigações filosóficas de Peirce estão ainda dentro do chamado "primado das

representações", uma vez que partem de uma análise não das coisas existentes

(consideradas em si mesmas), mas do modo como elas aparecem à mente. A

investigação parte dos fenômenos.

Com estas observações pretendemos apenas relativizar (e melhor situar) o

anticartesianismo das reflexões peirceanas desenvolvidas na série cognitiva. É óbvio

que há uma distância enorme entre Descartes e Peirce. Esta distância pode, inclusive,

ser medida pela grandeza de uma terceira filosofia que os separa: o criticismo kantiano.

Também é óbvio que o entendimento da relação entre filosofia e ciência no pensamento

de Peirce e no de Descartes é completamente distinto. Aliás, pode-se dizer que os

posicionamentos dos dois são diametralmente opostos. Enquanto Peirce pretende tomar

os métodos das ciências exitosas como modelo para a filosofia (e, principalmente, para

a metafísica), Descartes, ao contrário, utiliza-se da filosofia para ter acesso ao que

considera os fundamentos últimos do conhecimento científico. O filósofo francês, para

fundamentar o método científico, lança mão de expedientes teóricos provenientes de

uma disciplina tipicamente filosófica, a metafísica. Como vimos na seção anterior, se

não fosse uma dúvida de caráter metafísico (a hipótese do gênio maligno), não seria

possível a Descartes demolir todo o sistema de crenças para isolar o cogito como único

ponto indubitável (e, assim, declará-lo fundação completamente segura a partir da qual

deveria ser reconstruído todo o sistema de crenças). A metafísica, para Peirce, só é

possível guiada pela lógica55

.

Num livro sobre Descartes e a metafísica da modernidade, Franklin Leopoldo e Silva,

introduz, da seguinte forma, um texto sobre a herança cartesiana:

Todos os grandes filósofos modernos e contemporâneos consideram que o

primado da representação deve ser visto como um progresso decisivo na

marcha do espírito filosófico. O fato de a filosofia tomar como ponto de

partida a consciência abriu perspectivas de largo alcance para a ciência, a

ética e, de forma geral, para a compreensão do homem e de suas realizações.

A relação entre liberdade e responsabilidade, configurada na noção cartesiana

de sabedoria, veio conferir à consciência o lugar de centro do universo, ponto

ao qual devem ser referidos o conhecimento e a ação.

55

De acordo com um dos principais comentadores da obra peirceana, Cristopher Hookway (1992 [1985],

p. 18), as intenções de Peirce em seu projeto anti-cartesiano eram, na verdade, metafísicas.

Page 98: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

83

Mas a consciência assumia em Descartes essa função e essa importância na

exata medida em que se punha solitariamente no caminho da construção do

saber. A coesão do sistema exigia que a ordenação de tudo o que se pode

saber, bem como a sua fundamentação, fosse obra de um único sujeito. O

progresso da ciência suas redefinições, ampliações e especializações v

mostrou a inviabilidade dessa perspectiva. Ao tempo de Descartes ainda era

possível a um único homem, em certa medida, todo o saber de sua época. A

diversificação do conhecimento trouxe a necessidade de uma separação:

nesse sentido, o próprio progresso da racionalidade, em que Descartes tanto

acreditava, motivou a correção desse individualismo, levando-nos a aceitar a

maior eficácia de uma divisão de trabalho e de ima interrelação daquilo que

coletivamente é produzido em termos de conhecimento.

(Leopoldo e Silva, 2005, p. 88-9)

Para avaliar um projeto filosófico que se apresenta como alternativo a algum outro

produzido em período histórico anterior deve-se levar em conta também tal

distanciamento temporal. De acordo com a exposição de Leopoldo e Silva, fatores

históricos podem ser utilizados para explicar os motivos que nos levaram a abandonar

certos elementos presentes na filosofia cartesiana, sobretudo, o individualismo, que é

muito criticado por Peirce, manifesto na ideia de apresentar a consciência individual

como locus da certeza última.

A ciência e uma explicação científica do mundo, à época, de Descartes era ainda um

projeto. Os séculos que o separam de Peirce testemunharam o triunfo do discurso

científico. Em seus primeiros dias, a ciência moderna se restringia ao trabalho de alguns

poucos homens, sempre em comunicação uns com os outros, espalhados pele Europa.

Não só era plenamente possível como era necessário que um só homem tivesse

conhecimento em várias frentes, matemática, física, astronomia, biologia, medicina (e

também em áreas hoje consideradas extra-científicas como astrologia, alquimia, etc.).

Não só era comum, mas, neste período incipiente, era necessário que o cientista

detivesse não apenas o saber teórico, mas também algum conhecimento prático, pois ele

deveria encontrar os meios para comprovar por experimentos aquilo que afirmava

dentro de suas teorias. Aliás, pode-se afirmar que uma das condições que permitiram o

nascimento da ciência moderna na forma como a conhecemos é o abandono de certa

indisposição para com o trabalho manual em favor do trabalho puramente especulativo,

traço marcante do gênio helênico. Por exemplo, sabe-se que o telescópio tinha sido

inventado e já circulava pela Holanda ao menos desde o início do século XVII.

Entretanto, apenas depois de estudar detalhadamente seu funcionamento e produzir um

telescópio muito superior aos já existentes em sua época, Galileu se tornou capaz de

observar com alguma nitidez manchas solares e crateras na Lua (o que contrariava a tese

[de teor, aliás, altamente especulativo] defendida por Aristóteles a respeito da

incorruptibilidade dos corpos celestes). No início, todos estes traços distintivos da

ciência moderna estavam concentrados nalguns poucos indivíduos ou mesmo em apenas

um deles.

Page 99: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

84

Com o avanço da ciência, esta concentração de funções nas mãos e mente de um só

homem não apenas se tornou desnecessária, como acabou por se mostrar impossível. A

divisão do trabalho científico e a especialização parecem ter sido uma exigência do

próprio avanço da racionalidade (cf. Leopoldo e Silva, 2005, p. 88). Na segunda metade

do século XIX, época que Peirce viveu, já se pode falar em uma comunidade científica

internacional plenamente estabelecida. Neste período, os cientistas desta comunidade

contavam, então, com avanços outrora inimagináveis nas ciências formais (lógica e

matemática) que constituem uma espécie de infraestrutura de toda produção científica

de conhecimento. É óbvio que, até pela complexidade de suas produções teóricas, o

modo coletivo como a ciência funcionava à época de Peirce deve ter, ao menos, lhe

servido de inspiração para dirigir suas críticas à epistemologia cartesiana.

O risco destas observações é que elas podem ser entendidas como uma explicação

puramente historicista das críticas peirceanas a Descartes. O problema é que as palavras

de Peirce (ao menos da forma como foram colocadas) podem nos levar a crer que a

necessidade em se construir uma nova plataforma para as investigações filosóficas tenha

vindo de fatores puramente históricos. Se fosse assim, seríamos obrigados a reconhecer

que, no entendimento de Peirce, o grande problema do projeto cartesiano de encontrar

fundações seguras é que ele ficou desatualizado, ou seja, é como se, inicialmente, tal

projeto fundacional tivesse sido possível, mas, ao longo do tempo, tornou-se, por algum

motivo, inviável. A crítica que Peirce dirigiu a Descartes não depende essencialmente

de fatores históricos. Da perspectiva peirceana, a cruzada fundacionalista de Descartes

estava, desde sempre, fadada ao fracasso. Pode-se vasculhar a consciência individual, o

graal já mais poderia ser encontrado. O argumento peirceano, como veremos, é que o

homem não possui a faculdade que o permitiria distinguir o graal de um cálice

ordinário.

Mesmo que a crítica peirceana não dependa de condicionantes históricas, antes de

continuarmos, deve-se enfatizar que é possível se desenvolver uma interpretação de

acordo com a qual parte essencial do projeto fundacionalista de Descartes seja entendida

como independente de fatores históricos. Pode-se afirmar que o projeto cartesiano de

fundação completamente segura da ciência não tinha como exigência básica esta

concentração de todo conhecimento num indivíduo apenas. O que parece estar

implicado no projeto cartesiano é que seja ao menos possível teoricamente (ainda que

não o seja na prática) que o conjunto das crenças seja justificado recorrendo-se a

fundamentos últimos, inabaláveis. Assim, de acordo com o sistema cartesiano, seria

sempre possível retroceder a cadeia de justificações até se chegar a um ponto

indubitável, a uma primeira premissa da qual não se pode duvidar56

. Para Peirce, tal

56

O mesmo parece ocorrer com outra grandiosa e admirável cruzada fundacionalista: o projeto de

fundação de toda matemática na lógica desenvolvido por Bertrand Russell e Alfred Whitehead no início

do século XX. Este projeto (que foi apresentado ao mundo nos três longuíssimos volumes de uma obra

denominada Principia Mathematica) também não tinha como exigência básica que todo e qualquer

matemático tivesse em mente, ao estabelecer uma proposição matemática, toda a cadeia de raciocínios

que fundamentaria aquela proposição específica nalgum princípio lógico. O que parece estar implicado no

projeto de Russell e Whitehead é que seja ao menos possível teoricamente (ainda que ninguém o faça na

prática) retroceder a cadeia de raciocínios até se atingir um princípio lógico fundante.

Page 100: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

85

concentração não é impossível somente pela quantidade de informação que um único

cientista deveria ter posse, mas porque há um problema com a própria ideia de

fundação. Ainda que fosse possível retroceder esta cadeia de justificativas, o que é

problemático, para Peirce, é a chegada (prevista na teoria cartesiana) a este ponto de

partida indubitável.

Para fazer esta crítica, Peirce ataca o conceito responsável pela função de fundação

dentro da teoria cartesiana: a intuição. Na verdade, como veremos, Peirce não lança um

ataque direto à intuição, mas investe grande parte de suas forças numa crítica a algo que

está pressuposto em toda teoria epistemológica que recorra à intuição: a capacidade de

se reconhecer uma cognição como intuitiva (e diferenciá-la de uma que não o seja). Não

é por outro motivo que o primeiro artigo da chamada série cognitiva é uma exposição de

uma teoria epistemológica que sistematicamente constrói caminhos explicativos que se

apresentam como alternativos àqueles que seriam percorridos dentro de teorias que

utilizam a concepção de intuição. Neste artigo (que será analisado no próximo capítulo),

Peirce tenta estabelecer que é plenamente possível construir uma teoria que explique os

fenômenos básicos envolvidos no ato de conhecimento apenas recorrendo a faculdades

cuja existência não são questionadas (como a capacidade de fazer inferências), o que

tornaria desnecessário qualquer recurso a faculdades cuja existência fosse questionável

(como a intuição ou a capacidade para se reconhecer intuições).

De acordo com esta teoria da cognição desenvolvida por Peirce, todo o pensamento tem

uma natureza inferencial. E, como para Peirce, a relação de inferência (estabelecida

entre premissas e conclusão) pode ser entendida como um caso particular de relação

sígnica, então todo o pensamento pode ser entendido como um signo.

Como afirmamos nos dois primeiros capítulos, a raiz desta correlação (entre signo e

pensamento) está na descoberta realizada por Peirce em 1865 de que tanto a relação

entre sujeito e predicado (numa proposição), a relação entre antecedente e consequente

(numa proposição hipotética) e também a relação entre premissa e conclusão (num

argumento) podem ser todas entendidas como casos particulares de uma relação mais

básica que é a relação sígnica. Como já foi tratado no capítulo anterior, esta descoberta

aparece com toda a força na teoria peirceana das categorias, apresentada em 1867 num

artigo intitulado "Sobre uma nova lista de categorias". Nele, Peirce se pergunta quais

são as concepções básicas (as categorias) que qualquer mente deve possuir para ser

capaz de produzir juízos. Tanto o ponto de partida da investigação como a formulação

do problema a ser tratado neste artigo tem um teor kantiano. Entretanto, como revela um

ano mais tarde, no segundo artigo da chamada série cognitiva ("Algumas consequências

das quatro incapacidades"), Peirce entende que seu problema filosófico é anterior (ou

mais geral) ao formulado por Kant na "Crítica da Razão Pura". Para Kant, deve-se

perguntar "como são possíveis os juízos sintéticos a priori?" Para Peirce, antes deve-se

perguntar "como são possíveis juízos sintéticos, em geral, ou, o que é mais geral ainda,

como é possível o raciocínio sintético,em geral?" (CP 5.348 [1868]).

Page 101: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

86

A resposta encontrada neste artigo pode ser formulada da seguinte maneira: para que se

torne possível algum processo de síntese é necessário que sejam introduzidas na

atividade cognitiva certas "figuras de mediação", denominadas tecnicamente de

interpretantes. Como também dedicaremos um capítulo inteiro57

à análise desta teoria

das categorias elaborada por Peirce, justamente para acompanhar o nascimento deste

conceito de interpretante58

, neste ponto do texto nos limitaremos a explicar de forma

abreviada a função deste conceito seminal na semiótica e filosofia peirceanas. Para que

possamos conceber dois elementos distintos da experiência (diferentes impressões)

como unificados é preciso concebê-los juntos como sendo nossos (CP 1.554 [1867]), o

que significa que, para unificá-los num procedimento de síntese, é preciso concebê-los

em relação (um com outro) para nossa mente. Na terminologia apresentada em sua

teoria de categorias, para haver síntese, é preciso conceber quaisquer dois elementos

(distintos provenientes da experiência) em referência a um interpretante (a um terceiro

elemento mediador).

Com relação à teoria das categorias (da qual já tratamos no segundo capítulo), o ponto

principal a ser focalizado neste capítulo é que o conceito de interpretante é definido

como algo (uma representação) cujo intuito é produzir outro interpretante (outra

representação). Nossa tese central é que, do modo como foi introduzido na teoria das

categorias, o conceito de interpretante só pode ser definido de forma recursiva. Assim,

um interpretante só pode ser definido ao se fazer menção à produção de outro

interpretante. É justamente isto que cria dentro semiótica peirceana a noção de fluxo

incessante, a impressão de se estar num processo inferencial que recua infinitamente na

impossibilidade de se ancorar nalgum ponto originário. Esta noção de fluxo é estranha

às teorias fundacionalistas.

Para Peirce até mesmo o mais simples ato de perceber um objeto recorre a cognições

anteriores. Para que haja um julgamento de percepção "isto é um sofá", deve-se

pressupor que a mente tenha realizado uma inferência hipotética que recorreu a uma

correlação (uma comparação) entre as características daquele objeto e as características

de objetos que foram anteriormente classificados como sofá. De acordo com a teoria

peirceana, até mesmo para vermos algo levamos em conta o que não vemos (ou o que já

vimos). Há sempre que se recorrer a cognições anteriores. A última questão levantada

no primeiro dos artigos da série cognitiva é a seguinte: "se existe alguma cognição que

não seja determinada por uma cognição anterior"? A resposta de Peirce é negativa.

Lógica ou semioticamente, não pode haver um primeiro pensamento. A concepção de

mente que emerge deste quadro pintado por Peirce é muito distante daquela que

podemos encontrar numa das metades do dualismo cartesiano.

57

Capítulo 10. 58

Capítulo 11.

Page 102: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

87

3.3 - Um modelo lógico da mente

O modo como a cognição é entendida por Peirce simplesmente não harmoniza bem com

que o senso comum entende por pensamento. É como se os pensamentos "ocorressem"

fora da cabeça daqueles que os "tem". O leitor terá diversas oportunidades de "conferir"

tal estranheza com os próprios olhos durante os próximos capítulos, que serão

inteiramente dedicados à análise de textos peirceanos. Parte de nossa tarefa nestas

análises será dissipar este estranhamento aos explicitarmos que os argumentos

peirceanos na série cognitiva têm na retaguarda um posicionamento anti-psicologista.

Como já esclarecemos no primeiro capítulo, ainda que não o faça neste primeiro artigo

da série cognitiva, Peirce sustenta de forma bastante enfática uma visão anti-

psicologista da lógica, ao menos, desde a série de palestras em Harvard (W1; 165-301)

no ano 1865. Aliás, foi nessa ocasião que passou a propor que a lógica fosse entendida

como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169 [1865]). Esta é

uma das raízes da semiótica.

Se observarmos o quadro geral do pensamento peirceano ao final da década de 1860 (e

mantivermos em mente aquela questão a respeito das sínteses, que Peirce considerava,

então, o problema maior da filosofia), notaremos que nem a semiótica e nem uma teoria

da cognição que tenha em seu centro a tese que afirma que todo pensamento é signo (CP

5.253 [1868]) fariam muito sentido se não fossem construídas com um pano-de-fundo

anti-psicologista. É justamente contra este fundo que toma forma uma concepção de

mente sui generis. Isto deve levá-lo a duas imensas reformulações conceituais com forte

impacto dentro do campo da epistemologia: em primeiro lugar, o sujeito cognoscente

passa a ser entendido como uma entidade coletiva (a comunidade indefinida de

intérpretes) e, em segundo lugar, o termo "realidade" passa a ser entendido como um

ponto de fuga para o qual tendem as interpretações (e, assim, o conceito de "verdade"

começa a ganhar certas feições que, mais tardes, poderiam ser identificadas com o

pragmatismo).

Como a semiótica nasce sob uma forte tendência anti-psicologista, o foco da teoria

peirceana da cognição não pode ser os pensamentos entendidos como processos

concretos que ocorrem no cérebro de indivíduos. Por isso, a concepção de mente

desenhada pela filosofia peirceana não diz respeito a um centro imaterial de comando e

controle de pensamentos sediado na consciência do indivíduo, mas parece se referir a

um processo lógico. Mente, para Peirce, é um processo de natureza lógica. Óbvio está

que quando afirmamos acima que a teoria peirceana da cognição não pode ser entendida

de forma "psicologizante", mas deve ser entendida a partir de uma visão anti-

psicologista da lógica, isto já envolve interpretação do texto de Peirce, pois

infelizmente, embora em 1865 anti-psicologismo de Peirce seja evidente, ao longo da

série cognitiva (sobretudo, no primeiro desses textos), não há um posicionamento muito

claro. Se entendermos o termo cognição numa acepção "psicologizante", i.e., num

sentido de ideia ou pensamento como algo espaço-temporalmente localizado que ocorre

Page 103: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

88

concretamente no cérebro de indivíduos, parece inevitável que se considere paradoxal a

tese peirceana de que "não há nenhuma cognição que não seja determinada por uma

cognição anterior" (ou seja, da forma como colocamos ao final da seção anterior, não há

um "primeiro pensamento"). Não faltaram comentadores que considerassem este ponto

da teoria peirceana da cognição como um erro, para alguns, insolúvel. Há mais de

cinquenta anos atrás, Murphey (1993 [1961], p. 121) tratou este paradoxo como uma

decorrência direta de um problema não-resolvido que atravessa toda a filosofia

peirceana (a distinção entre continuum e discreto)59

. Recentemente, num livro sobre a

teoria peirceana dos signos, Thomas Short (2007, p. 42 e 43) chegou a considerar este

ponto uma falha grave o suficiente para exigir revisões na teoria (o que Peirce teria

feito, de acordo com Short, a partir do final da década de 1870). Não pretendemos

antecipar esta discussão, que, a rigor, só pode ser feita depois que analisarmos o próprio

texto peirceano. Entretanto, separemos algumas poucas linhas para apresentar, ainda

que sucintamente, a interpretação de Ransdell (1966, p. 42), pois, além de contrária a de

Murphey e também a de Short, ela nos servirá para começar desde já apresentar a

concepção peirceana de mente que permite aquela dupla reformulação conceitual à qual

nos referimos acima.

Para Ransdell (1966, p. 42), aquele (aparente) paradoxo pode ser dissolvido caso seja

feita uma distinção entre um ponto de vista psicológico (a partir do qual o pensamento

seria entendido como um processo contínuo) e um ponto de vista lógico (a partir do qual

o pensamento seria entendido como um processo que pode ser "quebrado" em unidades

discretas [tais como premissas e conclusões]). De acordo com Ransdell (1966, p. 91), a

preocupação de Peirce nos textos de 1867 e 1868 é de natureza lógica (e não

psicológica)60

. Como já deve ter ficado claro desde o início do parágrafo anterior, nesta

tese, em geral, seguiremos a interpretação de Ransdell (ou, ao menos, algo muito

próximo disso). Então, quando dentro de sua teoria da cognição, Peirce afirma que todo

pensamento é inferencial (i.e., é sígnico), ele se refere a um processo de ordem lógica e

esta expressão, "ordem lógica", deve ser entendida numa visão anti-psicologista da

lógica (nos moldes daquela que foi, por ele mesmo, defendida nas Palestras em Harvard

[1865]). Porém, o que seria este processo inferencial entendido sob tal perspectiva (anti-

psicologista)? Há uma passagem esclarecedora no segundo artigo da série cognitiva

(justamente numa seção sobre "ação mental") na qual Peirce afirma que, em termos

gerais, um processo inferencial pode ser entendido como um processo de substituição.

Assim, a conclusão de uma inferência nada mais seria que o resultado de um processo

de substituição. Segundo Peirce, "a conclusão pode ser considerada como a proposição

que substituiu qualquer das premissas e a substituição é justificada pelo fato afirmado

na outra premissa" (CP 5.279 [1868])61

.

59

Voltaremos a este ponto na análise da quinta questão do primeiro texto da série cognitiva e, sobretudo,

ao final da análise da sétima dessas questões. 60

Ransdell, em seu próprio texto, capta esta distinção com as expressões ordem lógica e ordem temporal. 61

No original: The conclusion may be regarded as a proposition substituted in place of either premiss, the

substitution being justified by the fact stated in the other premiss".

Page 104: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

89

Vejamos um exemplo, deste modelo de processo inferencial como uma troca, uma

substituição de proposições. Suponha que nos venha à mente o pensamento "Sócrates é

mortal" logo depois de ter vindo o pensamento "Sócrates é humano". Óbvio está que

esta passagem só foi possível (logicamente) graças a um terceiro pensamento, que neste

caso permaneceu implícito: "Todos os humanos são mortais". Este "acontecimento

mental" pode ser expresso no seguinte argumento: o primeiro pensamento "Sócrates é

humano" junto com um segundo pensamento, "Todos os humanos são mortais", nos

serviram de premissas (a primeira, explícita e a segunda, implícita) para concluir o

pensamento "Sócrates é mortal". Neste caso, denominamos de inferência exatamente a

passagem de "Sócrates é humano" para "Sócrates é mortal" (passando por "Todos os

humanos são mortais"). E o que Peirce afirma no trecho transcrito acima é que podemos

entender esta passagem como um processo de substituição de uma premissa pela

conclusão. Além disso, pode-se asseverar que o processo de substituição de uma

premissa pela conclusão é justificado pelo que é afirmado pela outra premissa. Por

exemplo, se entendermos tal inferência como uma substituição do pensamento "Sócrates

é humano" pelo pensamento "Sócrates é mortal" então esta substituição foi justificada

pelo que é afirmado na outra premissa, a saber, o pensamento "Todo humano é

mortal"62

.

É a partir desta passagem do texto peirceano, citada acima, que Ransdell nos oferece

uma explicação esclarecedora do que Peirce, dentro da série cognitiva, entende por

mente.

Para propósitos lógicos, a mente deve ser considerada como uma sucessão de

elementos puramente formais, a natureza dessa sucessão constitui a natureza

da mente enquanto tal. Em outras palavras, a mente não é uma coisa, mas um

certo processo ordenado um processamento logicamente ordenado de

pura forma (...). Assim (...), podemos entender porque Peirce trata o processo

inferencial em termos de substituição. No processamento lógico, uma forma

toma o lugar, substitui (logicamente) alguma outra como o único conteúdo

positivo da mente no dado instante (lógico). De modo mais prosaico, a

inferência é a substituição de um termo no lugar ocupado por outro termo.

(Ransdell, 1966, p. 93)

Portanto, a teoria da cognição defendida na série cognitiva traz à luz um modelo lógico

da mente. Se Descartes é o responsável pela introdução do termo "mente" no

vocabulário filosófico, Peirce é provavelmente o responsável pela primeira explicação

estritamente lógica do que é uma mente e de como ela funciona. E este modelo

estritamente lógico tem algo de perturbador. Em termos estritamente lógicos, não há

nada que nos leve a crer que uma proposição específica que esteja na posição de

premissa (de algum argumento) devesse necessariamente ser considerada como

originária ou indemonstrável. Se afirmamos que uma proposição assim o é devemos

fazê-lo com base em critérios que escapam à lógica. Este é um tipo de consideração que

62

Há outra situação possível: se entendermos tal inferência como uma substituição do pensamento "Todo

humano é mortal" pelo pensamento "Sócrates é mortal" então esta substituição foi justificada pelo que é

afirmado na outra premissa, a saber, o pensamento "Sócrates é humano".

Page 105: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

90

só pode ser realizada a partir de fora da lógica. Suponha que estamos diante da

afirmação que uma proposição p deve ser considerada originária, indemonstrável, deve

ser entendida como um ponto de partida (nunca chegada) de nossos raciocínios. Os

critérios que justificariam a consideração desta proposição como originária podem

provir de diversas fontes teóricas. Imaginemos alguns deles e notemos que são sempre

"extra-lógicos".

Pode ser que a proposição p seja considerada originária, porque ela é relativa a um

julgamento da percepção e, de acordo com uma teoria epistemológica P, aquilo que for

dado na percepção deve ser considerado como premissa primeira para o conhecimento.

Pode ser que a proposição p seja considerada originária, porque ela é relativa a uma

verdade fornecida diretamente por uma divindade (ou por um sábio ou uma autoridade

que aja em nome dela) e, de acordo com uma teoria epistemológica (provavelmente

imbricada numa teoria metafísica), esta verdade diretamente fornecida deve ser

considerada premissa primeira para o conhecimento. Pode ser que a proposição p seja

considerada originária, porque ela integra o conjunto de axiomas de uma teoria

específica e, de acordo com o proponente desta teoria, esta proposição deve constar

neste conjunto porque é uma verdade autoevidente ou porque a inclusão dela neste

conjunto segue critérios práticos. O importante é notar que a consideração de que uma

proposição específica é originária (i.e., não pode ser jamais demonstrada) simplesmente

não pertence à lógica.

De um ponto de vista formal, premissas são simplesmente proposições que cumprem

um papel de justificativa para alguma outra proposição que, dentro de um argumento,

denominamos conclusão. Dentro dos limites de um argumento, apenas a conclusão é

proposição justificada. Restando às premissas sempre o papel de proposições que

permanecem (naquele argumento) injustificadas. Ora, se permanecem injustificadas,

não há nada que nos impeça de perguntar pelas suas possíveis justificativas. Nada nos

impede de perguntar por um possível argumento anterior cujo ponto de chegada

(conclusão) seja justamente aquela premissa que, antes, estava injustificada. Pode-se

sempre se indagar a respeito das cognições anteriores que nos levaram até aquele ponto.

Na verdade, a razão nos impulsiona a sempre colocar esta pergunta sobre as origens,

sobre as bases, sobre as premissas de uma afirmação. Óbvio está que uma concepção

puramente lógica de mente deveria emergir contra um pano de fundo epistemológico

que não admitisse fundações últimas para quaisquer crenças.

Solicitar a alguém que entenda determinada proposição, determinada ideia, determinada

cognição como um ponto de partida, (jamais como ponto de chegada) de um raciocínio

é no fundo fazer um pedido velado para que não pense no assunto. Estabelecer, de uma

vez por todas (por meio de uma teoria), que determinado ponto deve ser considerado

(necessariamente) um ponto de partida dos raciocínios (e jamais como ponto de

chegada) é, no fundo, desestimular o impulso da racionalidade. Afirmar, por princípio,

que não há raciocínio possível que possa chegar a este ponto (só dele partir) é, no fundo,

afirmar que não adianta perscrutar, não importa quão longe forem as investigações, este

ponto permanecerá mudo, desconhecido, inexplicável, incompreensível. Por mais que o

Page 106: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

91

conhecimento avance, tal ponto restará incognoscível. Este parece ser, para Peirce, o

maior pecado que uma teoria epistemológica pode cometer: o de "criar" um ponto cego

com relação às faculdades cognoscitivas. Se uma teoria é um discurso elaborado para

explicar algo, então não faz sentido uma teoria que estabeleça que a explicação de algo

é que não há explicação alguma. Estas teorias estão em flagrante conflito com aquela

que, de acordo com Peirce (CP 7.135 [1989] ou EP2, p.48), é a lei fundamental da razão

(que deveria ser gravada em todo e qualquer muro da cidade da filosofia): "Não

bloqueie o caminho da investigação".

Entretanto, como a teoria da cognição não pode admitir a existência de um ponto

originário para os processos inferenciais (que constituem a atividade cognitiva), então

cria-se o problema de como explicar a obtenção de informação pela mente. Se não se

admite intuição, se não se admitem primeiras premissas, como explicar a percepção?

Como uma mente pode ter contato com a realidade? Como pode haver crescimento do

conhecimento?

Em decorrência desta teoria lógica (ou semiótica) da cognição e da completa ausência

de fundações, de origens ou qualquer sistema definitivo de ancoragem, Peirce se vê

obrigado a elaborar uma teoria da realidade que seja consistente com o seu modelo

lógico da mente63

.

Dentro do projeto fundacionalista de Descartes, o conhecimento é validado pelo fato de

nosso aparato sensório e cognitivo ser uma criação de um ser infinitamente poderoso,

perfeito e de natureza confiável cuja existência é provada a partir de nossa própria

consciência. Claro que Peirce não aceita este tipo de validação, uma vez que ela se

baseia, em última análise, na consciência individual. Se, por um lado, sua teoria de

categorias estabelece que atividade de síntese pode ser explicada como um processo

contínuo de interpretação sígnica, por outro lado, sua teoria da cognição estabelece que

toda a atividade cognitiva pode ser explicada também recorrendo-se a noção de signo (e

ao processo contínuo de interpretação sígnica).

A tese central da teoria peirceana da cognição é que "todo pensamento é pensamento em

signos" (CP 5.251-3 [1868]). Assim, dentro dos limites desta teoria, deve-se a um

processo sígnico tanto a atividade cognitiva que gera a autoconsciência como aquela

que nos torna capaz de distinguir cognições e classificá-las em diversos tipos (por

exemplo, distinguir uma cognição sonhada de uma efetivamente "experienciada" ou

uma que seja simplesmente concebida de uma na qual se efetivamente acredita). Até

mesmo o conhecimento que se tem do "ambiente interior" (que no sistema cartesiano é

obtido de forma direta, por introspecção), na teoria peirceana da cognição é devido a um

processo inferencial, i.e., é devido a um pensamento no qual se recorre necessariamente

a elementos externos (signos). Portanto, o resultado da teoria das categorias

(apresentado no artigo "Sobre uma nova lista de categorias") e o resultado da teoria da

cognição (apresentado no artigo "Questões concernentes a certas faculdades

63

Dentro do "roteiro" de passos lógicos para a construção do sistema filosófico peirceano (que

apresentamos no primeiro capítulo), esta é a passagem para o sexto passo.

Page 107: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

92

reivindicadas para o homem") é que tanto o processo de síntese como qualquer

atividade cognitiva deveriam ser explicados a partir da ideia de um processo contínuo

de interpretação sígnica.

Num processo (válido) de inferência lógica, a verdade da conclusão é garantida pela

verdade das premissas, i.e., a verdade daquilo que é afirmado no ponto de chegada é

garantida pela verdade do que tiver sido afirmado no ponto de partida. Impossibilitado

de admitir uma primeira premissa que seja necessariamente verdadeira, Peirce

estabelece que este processo contínuo de interpretação sígnica deve, se forem cumpridas

algumas condicionantes, convergir para a verdade. A teoria peirceana da cognição retira

o conceito de verdade de sua posição habitual, o ponto de partida do processo de

conhecimento, e o projeta numa espécie de ponto de fuga do processo de conhecimento.

A verdade deixa de estar localizada num ponto cego da visão do sujeito cognoscente e

passa a ser projetada à sua frente, transformando-se numa espécie de ser in futuro. As

teorias peirceanas desenvolvidas neste período (1867-8) não propõem apenas um

deslocamento do que se deve entender pelo termo "verdade" (note que este é o

nascimento de concepções que mais tarde amadureceriam para constituir o pragmatismo

peirceano), mas também estabelecem um deslocamento "do foco de atenção

epistemológica do indivíduo para uma comunidade cognitiva" (Haack, 1982, p. 156).

De fato, de acordo com a exposição de Peirce, a principal condicionante para que um

processo contínuo de interpretação sígnica possa convergir para a verdade é que tal

processo seja levado adiante por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Ao final

do segundo artigo da série cognitiva ("Algumas consequências das quatro

incapacidades"), Peirce apresenta a concepção de realidade que emerge de sua

epistemologia.

E que o significamos com o termo "real"? É uma concepção que devemos ter

tido pela primeira vez quando descobrimos que existia algo irreal, uma

ilusão; ou seja, na primeira vez em que nos corrigimos. Agora, a distinção

para qual este fato foi exclusivamente convocado [a explicar] logicamente era

entre um ens relativo às determinações internas e privadas [de um ego], às

negações pertencentes à idiossincrasia, e um ens tal qual como seria no longo

prazo. O real, então, é algo ao qual se finalmente chega, cedo ou tarde, como

resultante de informação e raciocínio e que é, portanto, independente de

movimentos erráticos meus ou seus . Então, a origem da concepção de

realidade nos mostra que ela envolve a noção de uma COMUNIDADE, sem

limites definidos, e capaz de um crescimento definido do conhecimento.

Então, aquelas duas séries de cognição a real e a irreal consistem naquela

que, num tempo suficientemente afastado do presente, a comunidade irá

continuar a reafirmar e naquela que, sob as mesmas condições, deverá

continuar a ser negada.

(CP 5.311 [1868])64

64

No original: And what do we mean by the real? It is a conception which we must first have had when

we discovered that there was an unreal, an illusion; that is, when we first corrected ourselves. Now the

distinction for which alone this fact logically called, was between an ens relative to private inward

Page 108: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

93

Para Peirce, todo o nosso conhecimento é necessariamente falível. Não importa o quão

seguros nos sentimos com relação a ele. Tampouco importa quão antigo ou evidente ou

simples tal conhecimento seja. Desde uma simples percepção até a mais poderosa e

eficiente de nossas teorias, o que temos são hipóteses. Desde o que percebemos de

forma confusa, sem muita atenção no olhar, até mesmo o que afirmamos com base no

melhor de nossos métodos e na mais confiável de nossas teorias, o que temos ainda são

hipóteses. Na epistemologia peirceana, toda esperança de se atingir alguma verdade

com relação a alguma crença está depositada nas mãos de um sujeito coletivo, a

comunidade indefinida de pesquisadores ou, na feliz expressão de Haack (1982, p. 156),

a comunidade cognitiva.

Esta concepção de realidade (acima apresentada) é uma decorrência direta da teoria da

cognição defendida por Peirce no primeiro artigo da série cognitiva. Dependem desta

concepção de realidade tanto a teoria peirceana sobre a fundamentação das leis da

lógica como também a teoria acerca dos raciocínios ampliativos (i.e. sintéticos),

apresentadas no terceiro artigo desta mesma série. Para Peirce, as filosofias que afirmam

que a realidade é somente aquilo que é dado na intuição devem ser classificadas como

nominalistas. Embora a adesão "oficial" à doutrina do realismo escolástico ocorra

apenas em 1871 numa longa resenha sobre a edição de Alexander Campbell Fraser da

obra de George Berkeley, já podemos notar um posicionamento marcadamente realista

nos três artigos da série cognitiva (cf. "Algumas consequências das quatro

incapacidades", trecho W2, 239-242 [1868] e cf. também "Fundamentos da validade das

leis da lógica: outras consequências das quatro incapacidades", trecho W2, 269-270

[1869]). Ao lado de uma visão anti-psicologista da lógica (da qual já tratamos no início

desta seção), o realismo parece ser outro ingrediente indispensável dentro da teoria

semiótica da cognição que Peirce apresenta na série cognitiva. Tratemos deste ponto

pelo resto desta seção, uma vez que compreender o que Peirce entendia por

nominalismo é um ótimo modo de enxergar a distância entre suas teorias e

posicionamentos filosóficos e as teorias e posicionamentos dos demais filósofos que

eram, por ele, classificados de nominalistas.

Christopher Hookway apresenta, no primeiro capítulo de seu livro sobre a filosofia

peirceana, uma excelente sinopse do que Peirce entendia por nominalismo, sobretudo,

quando utiliza tal termo dentro de um texto para identificar (com relação à disputa dos

universais) o posicionamento do seu adversário como oposto ao seu (o realismo). De

acordo com Hookway (1992 [1985], p. 20 e 21), Peirce critica sob o rótulo de

nominalismo "um quadro que se manifesta numa variedade muito grande de teorias

filosóficas" e, desse modo, "quase nenhum grande filósofo escapa de ser chamado por

Peirce de nominalista em alguma fase de sua carreira". No caso dos textos que

determinations, to the negations belonging to idiosyncrasy, and an ens such as would stand in the long

run. The real, then, is that which, sooner or later, information and reasoning would finally result in, and

which is therefore independent of the vagaries of me and you. Thus, the very origin of the conception of

reality shows that this conception essentially involves the notion of a COMMUNITY, without definite

limits, and capable of a definite increase of knowledge. And so those two series of cognition -- the real

and the unreal -- consist of those which, at a time sufficiently future, the community will always continue

to re-affirm; and of those which, under the same conditions, will ever after be denied.

Page 109: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

94

compõem a série cognitiva, continua Hookway, este quadro é "capturado na

reivindicação que o homem possui intuições" e pelo conceito de intuição deve-se

entender "uma cognição (um juízo ou uma sensação) cujo conteúdo não reflete

nenhuma outra cognição que a produziu, mas reflete a ação direta da 'coisa tal como ela

é em si mesma' " (Hookway, 1992 [1985], p.21). Não é por outro motivo que reflexões a

respeito do papel do objeto externo à consciência (dentro do processo de conhecimento)

ocupam um lugar de destaque dentro do primeiro artigo da série cognitiva. Para Peirce,

o problema do estabelecimento da hipótese que algumas de nossas cognições (as

chamadas intuitivas) "são determinadas por algo absolutamente externo" à consciência

(CP 5.260 [1868]) representa a instalação do incognoscível dentro da teoria. No trecho

transcrito a seguir, Hookway capta, com uma pergunta, a contraposição peirceana ao

conceito de intuição e passa a mencionar aqueles filósofos que Peirce classificava como

nominalistas.

Se a intuição é somente determinada pela ação (sobre ela) de objetos

externos, então como podemos justificar a suposição que ela reproduz com

acurácia as características da realidade. Peirce observa em diversas ocasiões

que o nominalismo leva diretamente a um quadro da realidade retratado

como um reino de incognoscíveis coisas em si65

.

Peirce traçou o desenvolvimento desse quadro nominalista dos nominalistas

medievais como Ockham passando por Hobbes, Berkeley, Locke e Hume e

chegando até epistemólogos do século XIX como James Mill e John Stuart

Mill; subsequentemente, (...), chegou a enxergar até mesmo Kant como um

herdeiro desta tradição.

(Hookway, 1992 [1985], p.21)

Embora, ao longo deste terceiro capítulo, tenhamos insistido que a construção de uma

teoria peirceana da cognição de base semiótica tenha se dado através de um debate mais

direto com Descartes, as críticas de Peirce não têm como alvo apenas o projeto

cartesiano de fundação do conhecimento (expresso nas "Meditações" ou no "Discurso

do método"), mas elas pretendem atingir também as epistemologias de base empirista e

mesmo a solução epistemológica kantiana oferecida na "Crítica da Razão Pura" (de

onde partira com suas primeiras pesquisas no campo da lógica). Conforme já

argumentamos no segundo capítulo, ao final da década de 1860, Peirce já não apenas

teria formulado um problema filosófico distinto daquele de Kant (e que ele mesmo

passou a entender como uma questão mais geral do que aquela que está no centro da

"Crítica da Razão Pura") como já teria uma resposta para tal problema que exigiria o

estabelecimento de uma teoria do conhecimento muito distinta de todas aquelas que

foram elaboradas dentro da filosofia moderna. Um ótimo modo para se "medir" esta

distância é observar o tratamento que se despende "ao problema do objeto externo à

consciência" (ou o objeto transcendental) nas teorias epistemológicas sob comparação66

.

65

Em seu texto, Hookway faz referência às seguintes passagens: CP 5.312 [1868] e CP 6.492 [1896]. 66

Aliás, este seria o método mais adequado para uma análise dos textos de 1867-1869, pois, apenas em

1871, passa a ser efetivamente feita (pelo próprio Peirce) a distinção do seu próprio posicionamento como

realista (de tipo escolástico) com relação ao posicionamento de seus adversários, que seriam todos

Page 110: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

95

Com relação a Kant, já nos referimos (na última seção do segundo capítulo) à diferença

fundamental entre o que Peirce entende por síntese no artigo "Sobre uma nova lista de

categorias" e o que Kant entende por síntese (da recognição) na Crítica. A distinção

reside justamente no fato de Peirce não admitir a tese de que exista um contato direto

entre o objeto externo e as impressões de sentido que fornecem o "material sensório"

sobre o qual opera a síntese67

. Com relação aos empiristas britânicos, não deve haver

muita dificuldade para se enxergar a distância da teoria semiótica da cognição elaborada

por Peirce (sobretudo, na série cognitiva) e aquelas teorias que encontramos nas obras

de Locke, Berkeley e também Hume. Por exemplo, no seguinte trecho, transcrito do

"Ensaio sobre o entendimento humano", pode-se notar o papel central que possui o

conceito de intuição para a teoria do conhecimento elaborada por Locke.

A diferente clareza de nosso conhecimento me parece repousar na maneira

diferente que a mente tem de perceber o acordo ou desacordo de qualquer

uma de suas ideias. Pois, se nos colocarmos a refletir a respeito de nossas

próprias maneiras de pensar, notaremos que, às vezes, a mente percebe um

acordo ou desacordo entre duas ideias imediatamente a partir delas mesmas,

sem a intervenção de nenhuma outra ideia: e acredito que podemos chamar

isto de conhecimento intuitivo, uma vez que, neste caso, a mente não sofre

para provar ou examinar, mas percebe a verdade como o olho faz a luz,

apenas estando diretamente voltado para ela. Então, a mente percebe que o

branco não é preto, que o círculo não é triângulo, que três é mais do que dois

e igual a um mais dois. Estes tipos de verdade são percebidas pela mente na

primeira vista das duas ideias juntas, por intuição; sem intervenção de

qualquer outra ideia: e este tipo de conhecimento é o mais claro e o mais

certo que a fragilidade humana pode atingir. Esta parte do conhecimento é

irresistível e, como o brilho de um raio do sol, ela se força imediatamente

para ser percebida e, logo que a mente se volta para ela, não há espaço para

hesitação, dúvida, ou exame, mas a mente é, naquele momento, preenchida

pela clara luz desse tipo de conhecimento. É desta intuição que depende toda

a certeza e evidência de nosso conhecimento.

(ECHU, Livro 4, capítulo 2, sec. 2)

O longo trecho transcrito a seguir, retirado da obra "O desenvolvimento do pensamento

peirceano" de Murphey, trata exatamente da distância entre Peirce e a "escola britânica".

É essencial entender que Peirce quase literalmente considera que a existência

da intuição envolve a existência do objeto transcendental e, portanto,

[envolve] uma falácia que leva ao nominalismo. É por esta razão que ele

considera fundamentalmente nominalistas os empiristas britânicos. Pois a

teoria lockeana da cognição afirma que todo o conhecimento se origina na

forma de ideias simples ou percepções imediatas. Estas ideias simples são

tanto sensações que se referem a coisas externas ou reflexões que se referem

a operações de nossas próprias mentes. Sensações, de acordo como Locke,

incorrigivelmente nominalistas. Na letra do texto, no artigo "Sobre uma nova lista de Categorias" (1867) e

na série cognitiva (1868-9), Peirce não identifica o posicionamento contrário ao seu como nominalista.

Neste caso, as teorias adversárias são todas aquelas que admitem a intuição ou algum tipo de elemento

fundante. O que pode ser afirmado, para estes textos, é que os filósofos que defendem tais teorias seriam

aqueles, que mais tarde, Peirce rotularia de nominalistas. 67

Para Kant, "objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição dada" (KrV B137).

Page 111: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

96

são causadas por ações diretas de realidades exteriores sobre nossos sentidos.

Algumas dessas ideias assim produzidas podem ser consideradas cópias das

qualidades da realidade estas são as qualidades primárias , porém, outras

as qualidades secundárias não se parecem com nada na realidade, mas

tem uma correspondência com ela, pois são seus efeitos constantes. Assim,

em ambos os casos, percebemos o real em nossas primeiras impressões. Deve

ser considerada como a contribuição de Berkeley ter provado que o real

nunca é percebido, mas deve ser inferido pelo princípio da causalidade; e

deve ser considerada como a contribuição de Hume ter demonstrado que esta

inferência é inválida. Deste modo, a existência do real não pode ser provada.

Peirce acreditava que até mesmo Kant caiu nesta armadilha quando postulou

o objeto transcendental como o objeto da intuição (CP 5.213). Qualquer

sistema, afirma Peirce, que comece por estabelecer que perceptos estejam

relacionados diretamente ao objeto real enfrentam o mesmo destino, pois a

acurácia destas percepções não pode ser provada e inevitavelmente se é

levado ao solipsismo (CP 8.12).

A negação da intuição é o golpe mais forte contra a escola britânica, pois

Locke, Berkeley e Hume requerem como axioma a existência da intuição.

Hume baseou todo o seu argumento sobre "nosso princípio fundamental de

que todas as nossas ideias são copiadas de impressões" [Tratado da natureza

humana, Livro 1, parte 3, sec. XIV], onde por "impressões" deve-se entender

"todas as nossas sensações, paixões e emoções quando aparecem pela

primeira vez em nosso espírito"[Tratado da natureza humana, Livro 1, parte

1, sec. I]. Negar este princípio mina todo o Tratado.

(Murphey, 1993 [1961], p. 108-9)

Traçadas estas correlações entre o posicionamento realista de Peirce e o (que entendia

por um) posicionamento fundamentalmente nominalista daqueles filósofos modernos

que se submeteram à tarefa de elaborar teorias do conhecimento, acreditamos que já

fechamos esta parte da tese dedicada à oferecer uma visão panorâmica deste período

inicial do pensamento peirceano em que nasce a semiótica e já podemos, então, passar à

parte de análise dos textos peirceanos propriamente ditos.

Page 112: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

97

CAPÍTULO 4

Introdução à análise do texto "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas para

o homem" (QFCM) e análise da primeira questão

Durante os três primeiro capítulos, o que fizemos foi apresentar uma visão panorâmica de

uma fase do pensamento de Charles S. Peirce, a saber, aquele período que viu nascer a

semiótica como uma teoria central dentro do quadro geral da filosofia peirceana e, em

particular, central também à epistemologia peirceana. Nesses capítulos, procuramos

também oferecer uma visão ampla da relação entre o pensamento peirceano e o de Kant e

também o de Descartes. Nesta fase de surgimento de um pensamento propriamente

semiótico, Peirce formulou o que considerava ser a pergunta fundamental da filosofia e

passou a traçar uma estratégia para respondê-la. A pergunta fundamental peirceana era a

respeito da possibilidade das sínteses ou do raciocínio sintético em geral e a resposta por

ele encontrada passaria pela construção de uma espécie de "teoria geral das

representações", o que seria denominado de semiótica. Por sua vez, a semiótica teve suas

bases lançadas no artigo “Sobre uma nova lista de categorias” (1867) e foi,

posteriormente, desenvolvida na forma de uma teoria sígnica (ou inferencial) da cognição.

Esta teoria da cognição, que Peirce apresentou como alternativa às teorias

epistemológicas animadas pelo que chamava de “espírito do cartesisanismo”, foi

elaborada ao longo da série cognitiva, sobretudo, no primeiro desses textos: "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem".

A partir deste quarto capítulo, entramos na parte de nossa tese dedicada às análises do

texto peirceano propriamente dito. Analisaremos, em primeiro lugar, o texto que abre a

série cognitiva, "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem",

e deixaremos para analisar, em segundo lugar, o texto em que Peirce apresenta sua teoria

das categorias, "Sobre uma nova lista de categorias". Com isso, invertemos tanto a ordem

cronológica (uma vez que este texto foi publicado antes daquele) como também a ordem

lógica de exposição (uma vez que a base da teoria da cognição apresentada na série

cognitiva se encontra na teoria das categorias). Obviamente, temos um motivo para tal

inversão. Conforme explicado na introdução geral e também no primeiro capítulo, nosso

objetivo geral é sustentar a afirmação de que, dentro da definição de signo, o conceito de

interpretante opera como uma espécie de "regra de recursão" e demonstrar que é esta

recursividade no coração da definição de signo que acaba por criar uma noção de

representação que só faz sentido caso seja entendida como um processo (de representação

que sempre recorre a alguma representação anterior e sempre remete a alguma

Page 113: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

98

representação posterior). É esta recursividade que cria a noção de fluxo sígnico, a cadeia

de interpretantes, peculiar à semiótica peirceana. Para cumprir este objetivo, optamos por

partir dos efeitos em direção à causa. Antes de analisarmos a definição (de interpretante

dentro da definição de signo) que é responsável por tal recursividade, decidimos analisar a

teoria da cognição criada a partir desta definição e o modo como tal teoria foi mobilizada

para o combate à epistemologia cartesiana, o que Peirce entendia como um confronto

essencial para o estabelecimento de seu próprio projeto filosófico.

Como vimos, Peirce entendia que a introdução do conceito de intuição dentro de uma

teoria epistemológica cria "pontos cegos", "resíduos incognoscíveis", o que, por sua vez,

torna inexplicável o raciocínio ampliativo ou sintético. Acreditamos que a recursividade é

justamente o mecanismo encontrado por Peirce para explicar atividade cognitiva (que é

capaz de ampliar o conhecimento) sem recorrer à intuição como ponto originário do

processo. Optamos por expor, em primeiro lugar, os efeitos de se definir recursivamente a

noção de representação dentro do signo, para depois expor a própria definição em

questão. Portanto, durante os próximos cinco capítulos, dedicaremo-nos a analisar o texto

em que Peirce apresenta sua teoria (semiótica) da cognição como uma alternativa às

teorias que têm em sua base o conceito de intuição. Este texto é o "Questões concernentes

a certas faculdades reivindicadas para o homem". A partir do décimo capítulo, voltamos

nossa atenção para o artigo "Sobre uma nova lista de categorias", que é o texto no qual o

termo interpretante é, pela primeira vez, definido de forma recursiva dentro da definição

geral de signo. Portanto, a ideia desta inversão na ordem de exposição é criar um certo

movimento de aproximação. Pretendemos partir de um quadro geral (a teoria da cognição

e seu lugar no projeto filosófico peirceano) e nos aproximarmos aos poucos do que

consideramos ser o centro nevrálgico da semiótica, a ideia de representação (que é

definida recursivamente dentro o conceito de signo).

Antes de passarmos à análise do primeiro artigo da série cognitiva, "Algumas questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" devemos fazer algumas

observações gerais de caráter introdutório sobre tal texto e também sobre o que já foi

produzido na literatura secundária a respeito dele. Comecemos com uma observação feita

por Thomas Prendergast num artigo intitulado "A estrutura do argumento de Peirce no

texto 'Algumas questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem' ".

Este artigo de Prendergast pode ser considerado um dos comentários mais completos e

sistemáticos já elaborados até hoje a respeito deste que é primeiro texto da séria cognitiva

de Peirce.

Uma das primeiras publicações de Peirce, "Questões concernentes a certas

faculdades reivindicadas para o homem", é um ataque à doutrina do

conhecimento imediato que Peirce identifica como central ao "espírito do

cartesianismo" na filosofia moderna. O caráter revolucionário da ataque

peirceano é evidente quando se reconhece que tal doutrina tem estado

incrustada no pensamento filosófico por mais de duzentos anos.

Embora certo número de autores tenham analisado este artigo, nenhum deles

elaborou um comentário questão-a-questão no qual pudesse ser exibida tanto a

Page 114: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

99

estrutura dos argumentos em cada questão bem como a estrutura do artigo

como um todo.

(Prendergast, 1977, p. 288)

De acordo com Prendergast (1977, p. 288), o comentário que mais se aproximou de

oferecer uma visão integral (questão a questão) da estrutura deste primeiro texto da série

cognitiva foi elaborado por C. F. Delaney num artigo intitulado "A crítica peirceana do

Fundacionalismo" (Delaney, 1973, p. 240 - 251) embora não trate nem da quinta nem

sexta questões. É óbvio que, quase trinta anos depois, a lista de autores que analisaram e

comentaram o primeiro artigo da série cognitiva aumentou. A seguir, apresentamos

alguns deles. Deste ponto em diante passamos a nos referir ao texto "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" pela seguinte sigla:

QFCM68

.

Carl Hausman tem toda uma seção de seu livro "A filosofia evolucionária de Charles S.

Peirce" dedicada à análise do que chamou de "base anti-cartesiana do pragmatismo e da

semiótica" (1993, p. 60 - 67). Também Cornelis De Waal, ao tratar das origens do

pragmatismo peirceano em seu livro "Sobre o pragmatismo", faz uma breve análise dos

argumentos presentes no QFCM (cf. De Waal, 2007, p. 20 -16). Hookway separou parte

considerável do capítulo de abertura de seu livro intitulado "Peirce" para examinar o

ataque peirceano ao "espírito do cartesianismo" (Hookway, 1992 [1985], p. 19 - 30) Já

Gallie, no livro "Peirce e o pragmatismo", elabora uma análise um pouco mais completa

do que denominou de "Assalto ao cartesianismo" (Gallie, 1966, p. 59 - 84). Também

muito mais completo é o estudo realizado por Murphey em sua obra "O

desenvolvimento do pensamento de Peirce". Neste livro, as análises de Murphey sobre a

série cognitiva estão no terceiro capítulo, que trata do que o autor chama de "segundo

sistema" do pensamento peirceano (1993 [1961], p. 55 - 97), e no quinto capítulo (1993

[1961], p. 106 - 123), que trata da nova teoria da cognição. Alguns comentários que não

poderíamos deixar de mencionar é o de Maneley Thompson (1953, p. 37 - 44) no livro

"A filosofia pragmática de C. S. Peirce" e o ensaio introdutório de Joseph Chenu à

publicação de uma tradução francesa de alguns textos peirceanos, dentre eles, os três

que compõem a série cognitiva69

. Outro comentário relativo à série cognitiva,

sobretudo, ao primeiro artigo é aquele elaborado por Buchler (1966, p. 3 - 18) no início

de seu livro (hoje, clássico) sobre "O empirismo de Charles Peirce".

Entretanto, com relação à série cognitiva, as análises mais completas já produzidas a

respeito do QFCM (além daquela, já citada, de Prendergast) são aquelas elaboradas por

Lucia Santaella no livro "O método cartesiano de C. S. Peirce" e por Royce Paul Jones

numa tese de doutorado (não-publicada até os dias de hoje) intitulada "Peirce: sobre

intuição e instinto" (cf. Jones apud Santaella, 2004, p. 34). No primeiro capítulo de seu

livro, Santaella (2004, p. 29 - 46) comenta questão por questão todo o artigo "Questões

68

A justificativa para esta sigla é obviamente as iniciais de algumas das palavras que compõem o título

do artigo no idioma original: "Question concerning certain Faculties Claimed for Men". 69

Este ensaio pode ser encontrado em na seguinte publicação: PEIRCE, C. S. (1984) Textes

anticartésiens. Paris, Aubier.

Page 115: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

100

concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" e passa a analisar

também individualmente todas as consequências que Peirce, no segundo artigo da série

("Algumas consequências das quatro incapacidades"), deriva das conclusões dos

argumentos elaborados no primeiro artigo da série. Embora os comentários sobre a série

cognitiva estejam concentrados no primeiro capítulo, pode-se afirmar que todo o livro

de Santaella diz respeito ao assunto ao qual dedicamos os próximos capítulos de nossa

tese: o surgimento da semiótica dentro de um confronto com o que o Peirce chamava de

"espírito do cartesianismo".

Nosso objetivo nestes próximos cinco capítulos é apresentar uma análise que não

apenas siga o texto peirceano questão a questão (o que já foi feito por alguns

comentadores), mas linha a linha. A intenção é isolar e avaliar as principais linhas

argumentativas que sustentam o que viemos denominando de tese central ou tese-base

da semiótica ("todo pensamento é pensamento em signos"). Ao contrário do que podem

sugerir as primeiras impressões, no QFCM, Peirce não está pura e simplesmente

combatendo o chamado "espírito do cartesianismo", mas, paralelamente, construindo

uma teoria da cognição que compõe uma epistemologia alternativa àquela que é

criticada. Observada desta "perspectiva positiva", não é difícil notar por qual motivo as

teses expostas no QFCM são centrais para defesa de nossa própria tese acerca da

correlação entre interpretante e recursividade. Acreditamos que o QFCM é um "lugar"

privilegiado na obra peirceana para observar como a teoria do interpretante (que nasce

com a nova lista de categorias) está intimamente relacionada ao conceito de

recursividade, uma vez que, conforme nossas análises, é justamente o papel da recursão

(dentro da definição de signo) impedir que surja qualquer possibilidade de ser

estabelecido um ponto originário para o processo de conhecimento. Ao impedir

qualquer possibilidade de fundação (do conhecimento), a ideia de recursão

(internalizada, por definição, no conceito peirceano de signo) impede que surja, no

horizonte da teoria da cognição exposta no QFCM, quaisquer resíduos de

incognoscibilidade. E, assim, são criadas as condições de possibilidade de se estabelecer

uma resposta para a pergunta central da filosofia: como são possíveis os raciocínios

ampliativos?

Como já antecipamos no terceiro capítulo, a forma literária que Peirce escolheu para

expor os seus argumentos contrários ao "espírito do cartesianismo" (e, assim,

estabelecer sua concepção semiótica da cognição e da produção de conhecimento) é a

quaestio. Na verdade, é mais preciso afirmar que a estrutura do QFCM é inspirada pela

organização interna de uma quaestio, embora nem sempre o texto peirceano siga

conforme manda o figurino, como lembra Prendergast (1977) por diversas vezes em

seus comentários. Antes que passemos a tratar diretamente da estrutura geral do QFCM,

é de bom tom que expliquemos no que consiste esta forma literária na qual Peirce se

inspirou, uma vez que a própria opção de apresentar seus argumentos contrários à

epistemologia cartesiana dentro de uma forma típica do período medieval faz parte da

estratégia argumentativa peirceana. No seguinte trecho, retirado do livro "Filosofia

Medieval: uma introdução histórica e filosófica", John Marenbon explica o que se

Page 116: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

101

entendia por quaestio e nos fornece um exemplo de filosofia produzida dentro desta

forma literária.

Numa quaestio, coloca-se um problema para que ele seja respondido com um

"sim" ou "não". Por exemplo, no seu De veritae, uma disputa escrita, Tomás

de Aquino questiona (q.1, a.5) se "alguma verdade além da primeira verdade

é eterna" (a "primeira verdade" obviamente é Deus). O autor, então, apresenta

(1) os argumentos para a resposta que ele não quer propor, precedida pela

frase Et videtur quod sic/non ("E parece que é assim/que não é assim").

Neste caso, Tomás de Aquino , pretende argumentar que nenhuma verdade é

eterna exceto na medida em que está na mente de Deus e é idêntica a Deus.

Assim, ele começa com o caso contrário a esta posição dizendo Et videtur

quod sic. Tomás de Aquino, então, passa a citar nada menos do que vinte e

dois argumentos para mostrar que as verdades distintas de Deus, a primeira

verdade, são eternas. Muitas quaestiones teriam menos destes argumentos

(em sua Summa, Tomás de Aquino utiliza quatro ou cinco), mas, como neste

exemplo, tais argumentos iriam misturar referências à autoridade - Tomás de

Aquino cita Aristóteles, Agostinho e Anselmo - com argumentos baseados

em puro raciocínio. (...) A próxima seção (2) de uma quaestio é precedida

pela frase sed contra ("mas, contra [isso]") e, então, apresenta-se um ou dois

breves argumentos a favor da posição que o autor deseja tomar. Neste caso,

Tomás de Aquino oferece dois curtos argumentos racionais, mas o mais

esperado é que [nestas situações] seja apresentada uma afirmação baseada em

autoridade (por exemplo, no Summa Theologiae - I, q. 2,a.3 - (...), o sed

contra consiste simplesmente na asserção de Deus no Exodus iii,14; Ego

sum qui sum [eu sou quem sou]). Então, depois disso, se segue (3) o corpus

da quaestio, no qual o autor estabelece sua posição a respeito do problema

junto com explanações de apoio e argumentos necessários para justificar tal

posicionamento. Finalmente, o autor (4) apresenta suas repostas para cada um

dos argumentos contrários ao posicionamento por ele preferido com o qual a

quaestio começou.

(Marebon, 2007, p. 216)

Como veremos nas análises de cada uma das questões das quais trata Peirce no QFCM,

nem sempre este "roteiro" (acima apresentado) é seguido. O que Peirce de fato segue à

risca no QFCM é o modelo de argumentação multiforme observado neste exemplo

retirado da obra de Tomás de Aquino. Uma das principiais críticas de Peirce dirigidas

contra o que chama de "espírito cartesiano" é o fato de Descartes, por meio de seu

projeto fundacionalista (exposto, sobretudo, nas "Meditações" e no "Discurso do

Método" cf. primeira seção do segundo capítulo), ter promovido uma substituição da

argumentação multiforme da Idade Média por uma linha única de inferência que parte

de um ponto que se supõe indubitável (cf. CP 5.264 [1868]). Portanto, a escolha de uma

forma literária que permite uma argumentação multiforme é parte da estratégia

argumentativa que pretende desmontar uma filosofia projetada para encontrar fundações

completamente seguras para edificar todo o conhecimento humano. Afinal, é a

suposição de Descartes de que sua filosofia foi efetivamente capaz de isolar um ponto

fundacional completamente seguro (o cogito) que o permite confiar numa linha única e

infalível de argumentação. No QFCM, o ponto de partida da crítica peirceana é

justamente esta suposição cartesiana. Esta capacidade humana de distinguir uma

Page 117: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

102

intuição e, em particular, encontrar a intuição fundamental ("cogito, ergo sum") é

reivindicada por Descartes para o homem. É justamente esta capacidade que é

questionada por Peirce na abertura do QFCM.

A seguir apresentamos as sete questões do QFCM e passamos a fazer algumas

observações com relação à estrutura geral deste texto:

Questão 1: Se pela simples contemplação de uma cognição, independente de

qualquer conhecimento anterior e independente de qualquer raciocínio por signos,

somos capazes de julgar corretamente se uma cognição foi determinada por uma

cognição anterior ou se tal cognição se refere imediatamente ao seu objeto70

.

Questão 2: Se temos uma autoconsciência intuitiva71

.

Questão 3: Se temos uma capacidade intuitiva de distinguir entre os elementos

subjetivos dos diferentes tipos de cognição72

.

Questão 4: Se temos alguma capacidade de introspecção ou se nosso

conhecimento do mundo interior é derivado de observação de fatos externos73

.

Questão 5: Se somos capazes de pensar sem signos74

.

Questão 6: Se um signo pode ter qualquer significado, se por sua definição ele for

um signo de algo absolutamente incognoscível75

.

Questão 7: Se há alguma cognição que não seja determinada por uma cognição

anterior76

.

No caso do QFCM, praticamente todas as questões têm a seguinte estrutura. Começa-se

por apresentar a questão (o que é feito no primeiro parágrafo) simplesmente

enunciando-a. O passo seguinte é apresentação de uma definição para o conceito-chave

da questão. Por exemplo, na primeira, segunda e quarta questões, os conceitos-chave

são "intuição", "autoconsciência" e "introspecção". Estas definições geralmente são

70

No original: Question 1: Whether by the simple contemplation of a cognition, independently of any

previous knowledge and without reasoning from signs, we are enabled rightly to judge whether that

cognition has been determined by a previous cognition or whether it refers immediately to its object. 71

No original: Question 2: Whether we have an intuitive self-consciousness. 72

No original: Question 3: Whether we have an intuitive power of distinguishing between the subjective

elements of different kinds of cognitions. 73

No original: Question 4: Whether we have any power of introspection, or whether our whole

knowledge of the internal world is derived from the observation of external facts. 74

No original: Question 5: Whether we can think without signs. 75

No original: Question 6: Whether a sign can have any meaning, if by its definition it is the sign of

something absolutely incognizable. 76

No original: Question 7: Whether there is any cognition not determined by a previous cognition.

Page 118: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

103

oferecidas ainda no primeiro parágrafo (logo depois da enunciação da questão

propriamente dita). Então, o terceiro passo é (quase sempre) a apresentação de um

argumento para desmontar a tese que considera auto-evidente a posse da faculdade que

é objeto da questão. Descartada a auto-evidência, deve-se buscar alguma evidência,

algum argumento que sustente esta existência ou posse e, por este motivo, o passo

seguinte é a exposição dos argumentos favoráveis à existência ou posse da faculdade

que está sob questionamento. Como vimos na estrutura típica da quaestio medieval, a

primeira posição apresentada não é a resposta que o autor (no caso, Peirce) pretende dar

para questão. Então, depois de contra-argumentar a resposta positiva à questão, Peirce

expõe o seu posicionamento, que é uma resposta negativa à questão, e passa argumentar

para sustentá-la. Das sete questões, talvez, a única que escape à regra seja a quinta. Mas

isto pode ser explicado pelo "local" que ela ocupa no argumento geral do QFCM. A

quinta questão é uma espécie de centro nervoso do argumento do QFCM. Todas as

linhas argumentativas das quatro primeiras questões convergem para a seguinte tese

enunciada na quinta questão: "todo pensamento é pensamento em signos" (CP 5.253

[1868]). Esta tese já foi, por nós, denominada ainda nas primeiras linhas deste texto, de

tese central da semiótica.

Passemos então para as análises de cada uma das questões levantadas por Peirce no

QFCM. A abreviação que será utilizada para designar cada uma dessas questões será a

letra (maiúscula) "Q" seguida do número da pergunta. Por exemplo, "Q3" é a abreviação

de “terceira questão do QFCM”.

Page 119: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

104

4.1 Análise (da primeira parte) da Q1: Sobre a capacidade

intuitiva de distinguir intuições

Questão 1: Se pela simples contemplação de uma cognição,

independente de qualquer conhecimento anterior e

independente de qualquer raciocínio por signos, somos capazes

de julgar corretamente se uma cognição foi determinada por

uma cognição anterior ou se tal cognição se refere

imediatamente ao seu objeto.

Na primeira questão, Peirce se pergunta acerca da capacidade do homem de distinguir

entre uma cognição intuitiva e uma cognição não-intuitiva, i.e., derivada. De forma mais

exata, a pergunta é se tal capacidade de distinção é ela mesma intuitiva ou não. O

problema levantado nesta primeira questão não é se temos ou não intuição, mas se,

diante de uma cognição qualquer, temos ou não uma capacidade direta, certeira de

"julgar se estamos diante de uma cognição intuitiva". Outra forma de apresentar esta

primeira questão é a seguinte: diante de uma cognição específica, teríamos ou não a

capacidade de, a partir de uma mera contemplação dela, distinguir se a cognição é

produto de uma intuição ou de uma inferência? Já no primeiro parágrafo da Q1, define-

se o que se entende por intuição.

Ao longo deste artigo, o termo intuição será entendido como significando

uma cognição não determinada por uma cognição anterior do mesmo objeto

e, assim, sendo determinado por algo fora da consciência. Permita-me

solicitar ao leitor que note o seguinte. Intuição será aqui entendido como algo

quase idêntico a uma "premissa que não é (ela mesma) uma conclusão"; a

única diferença é que premissas e conclusões são julgamentos, enquanto uma

intuição pode, na medida em que sua definição permite, ser qualquer tipo de

cognição. Porém, exatamente como uma conclusão (boa ou má) é, na mente

daquele que raciocina, determinada por suas premissas, então as cognições

que não são julgamentos podem ser determinadas por cognições anteriores.

Uma cognição que não for assim determinada e for determinada diretamente

por um objeto transcendental deve ser chamada de intuição.

(CP 5.213 [1868])77

Então, pela definição apresentada acima, o termo intuição pode ser entendido como um

conceito que é "complementar" ao conceito de cognição derivada (inferência) se os

77

No original: Throughout this paper, the term intuition will be taken as signifying a cognition not

determined by a previous cognition of the same object, and therefore so determined by something out of

the consciousness.^P1 Let me request the reader to note this. Intuition here will be nearly the same as

"premiss not itself a conclusion"; the only difference being that premisses and conclusions are judgments,

whereas an intuition may, as far as its definition states, be any kind of cognition whatever. But just as a

conclusion (good or bad) is determined in the mind of the reasoner by its premiss, so cognitions not

judgments may be determined by previous cognitions; and a cognition not so determined, and therefore

determined directly by the transcendental object, is to be termed an intuition.

Page 120: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

105

considerarmos como tipos (subconjuntos) de cognições. Declarar que estes dois

conceitos designam conjuntos complementares significa que não há intersecção entre

eles, ou seja, não há cognições que sejam ao mesmo tempo intuitivas e derivadas.

Ilustremos esta situação. Suponha a existência de um conjunto C que contenha todas as

cognições. Existem diversas maneiras de classificarmos cognições, o que quer dizer que

existem diversas maneiras de dividirmos este conjunto C em subconjuntos, i.e., em tipos

de cognição. A divisão com a qual estaremos preocupados é aquela que separa o

conjunto C num primeiro subconjunto onde estariam todas as cognições intuitivas e

num segundo subconjunto onde estariam todas as cognições derivadas.

O importante é notar que esta classificação das cognições entre aquelas que são

intuitivas e as que são derivadas acaba por "particionar" o conjunto C. Na ilustração a

seguir, dividimos o conjunto de todas as cognições (C) entre o subconjunto D de todas

as cognições que são determinadas por outra cognição do mesmo objeto (i.e., as

cognições derivadas) e o subconjunto I de todas as cognições que não são determinadas

por outra cognição do mesmo objeto (i.e., as cognições intuitivas). Assim, podemos

facilmente notar que não há intersecção alguma entre o conjunto I e o conjunto D.

Como veremos, a existência de algum elemento neste conjunto I é uma hipótese, ou

seja, é apenas uma suposição que exista alguma cognição que não seja determinada por

nenhuma outra cognição anterior. Uma pergunta que atravessa todo o QFCM é se, para

explicar as capacidades cognitivas humanas, seria mesmo necessário recorrer a esta

hipótese. Antes de passarmos para as análises que Peirce elaborou na Q1 sobre o

argumento favorável e contrário à existência de tal capacidade, devemos abrir um par de

parênteses para fazer um último comentário sobre a definição do conceito-chave da Q1:

intuição. Acreditamos (junto com Hausman [1993, p.61] e Prendergast [1977, p. 289])

que Peirce tenha operado uma distinção entre dois tipos de intuição.

A definição (para o termo "intuição") apresentada no trecho acima transcrito é

diferenciada por Peirce de uma segunda definição de acordo com a qual intuição seria o

"conhecimento do presente como presente". Tal distinção é feita numa nota de rodapé

(CP 5.213 [1868]) sobre a origem histórica do termo. De acordo com Peirce, a palavra

Page 121: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

106

intuitus ocorre como termo técnico pela primeira vez na obra Monologium (1076) de

Santo Anselmo. Nesta obra, Anselmo opõe o conhecimento que se pode obter acerca

das coisas finitas, o que seria por ele denominado de intuição, ao conhecimento que se

pode obter de Deus, o que seria denominado de speculation. Ao longo da Idade Média,

continua Peirce, o termo "cognição intuitiva" tinha dois significados principais

referentes a dois "tipos" de intuição: no primeiro deles, a intuição é entendida como

uma cognição não-determinada por nenhuma cognição anterior; no segundo tipo, a

intuição é entendida como o conhecimento do presente enquanto presente (o que, para

Peirce, está acordo com a definição original do termo dada por Anselmo). Ao longo do

QFCM, Peirce se dedica a construir uma teoria da cognição que esteja livre apenas do

primeiro tipo de intuição acima referido. Os argumentos desenvolvidos por Peirce neste

artigo se preocupam em rejeitar o conceito de intuição somente neste sentido de

cognição não-determinada por cognição anterior. O segundo tipo de intuição

definitivamente não é o alvo das críticas do filósofo no QFCM. Segundo interpretação

de Hausman (1993, p.61), o conceito de intuição deste segundo tipo teria sido

mencionado no corpo do texto do QFCM, mas não teria sido rejeitado por Peirce.

Vejamos o trecho em que Hausman desenvolve sua análise a respeito deste ponto.

Numa nota de rodapé, ele [Peirce] distingue dois tipos de intuição. Um tipo

de intuição ocorre quando temos conhecimento do presente como presente.

Este tipo é mencionado tanto na nota como no corpo do texto; e não é

rejeitado (5.213, nota 1, e 5.214). Se Peirce tivesse refletido a respeito do que

identifica neste ponto, acredito que o termo conhecimento, que é utilizado

para identificar a intuição do presente como presente, teria sido substituído

pela expressão consciência de. Acredito que é este o seu significado; caso

contrário, uma intuição consistindo do conhecimento do presente como

presente seria uma inferência.

(Hausman, 1993, p.61)

Em seu texto Hausman apenas faz uma referência genérica ao parágrafo (CP 5.214

[1868]) em que Peirce teria mencionado este segundo tipo de intuição. É muito provável

que o comentador esteja se referindo à seguinte passagem: "Toda cognição, como algo

presente, é, claro, uma intuição de si mesma (CP 5.214 [1868])78

.

Devemos nos deter neste comentário de Hausman, pois este ponto é muito importante

para as análises que serão (por nós) desenvolvidas. Caso interpretássemos a expressão

"conhecimento do presente como presente" como uma espécie de acesso ao "conteúdo"

ou ao significado do que está sendo pensado no momento presente, então este

conhecimento só poderia ocorrer por inferência e, por este motivo, não poderia ser uma

intuição. Se esta expressão for assim interpretada, seriamos levados a uma

inconsistência grave na teoria da cognição desenvolvida por Peirce no QFCM. Como

veremos, uma das teses centrais do QFCM é que não podemos ter conhecimento de

nada (nem mesmo de nossos pensamentos) de forma direta, intuitiva (ou, ao menos, não

há evidência nenhuma que sustente a ideia de que temos tal capacidade de conhecer por

78

No original: "Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself".

Page 122: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

107

intuição). Todo conhecimento que obtemos, tudo que afirmamos conhecer pode ser

explicado como um produto de inferências e, como a capacidade de produzir inferências

é uma faculdade cuja existência é dada como certa (i.e., não se duvida que o ser humano

a tenha) e (de acordo com Peirce) esta capacidade é suficiente para explicar todas as

capacidades cognitivas humanas, então não haveria necessidade, para explicá-las, de se

recorrer a uma faculdade (a intuição) cuja existência não é dada como certa.

Analisaremos pela próxima centena de páginas toda a argumentação peirceana dirigida

contra a hipótese de que tenhamos faculdades cognitivas diretas (i.e., que dependam de

intuições) e favorável à hipótese de que apenas tenhamos faculdades cognitivas

indiretas (i.e., que dependam de inferências). O que importa notar neste ponto é que, por

ser sempre inferencial, todo o nosso conhecimento, de acordo com o argumento geral de

Peirce no QFCM, é de natureza hipotética. Se é assim então como Peirce admite a

existência de algum conhecimento intuitivo (e, por isso, não-hipotético) já no segundo

parágrafo (CP 5.214 [1868]) de um artigo dedicado a construir uma teoria da cognição

que não recorra ao conceito de intuição? Ou esta teoria peirceana é inconsistente ou este

conhecimento intuitivo (de uma cognição como algo presente) admitido deve ser

entendido como pertencente a um segundo tipo de intuição. Por enquanto, vamos acatar

esta sugestão de Hausman e supor que a intuição da qual trata Peirce no trecho referido

é uma intuição de segundo tipo até que possamos analisar de forma mais detalhada este

ponto. Na verdade, este problema só será tratado de forma direta ao final de nossas

análises da quarta questão, pois, a esta altura, já teremos condições plenas de enxergar

as teses que se chocam com esta admissão de intuição dentro da teoria da cognição

desenvolvida na QFCM. Esta questão é tão relevante para as análises que pretendemos

elaborar que devemos batizá-la com um nome: problema do segundo tipo de intuição. A

seguir, apenas apresentaremos alguns aspectos gerais deste problema, uma vez que esta

apresentação pode esclarecer as afirmações presentes neste segundo parágrafo do

QFCM. Esta é uma imperdível oportunidade de explicitação deste parágrafo (CP 5.214

[1868]) que pode, aliás, ser considerado um dos mais obscuros em todo o artigo.

Como esta intuição cuja existência foi admitida pertenceria a um segundo tipo, a

sugestão de Hausman é que o termo "conhecimento" da expressão "conhecimento do

presente como presente" seja substituído por "consciência". Assim, esta cognição que é

uma intuição de si mesma seria "a consciência do presente como presente". Entretanto,

se quiséssemos manter inalteradas as palavras de Peirce neste trecho do QFCM, o termo

"conhecimento" poderia ser interpretado como sinônimo de "identificação", ou seja, a

expressão "conhecimento do presente como presente" significaria "identificação de uma

cognição como algo presente" (o que seria o mesmo de se ter consciência de uma

cognição como algo presente à mente [que, afinal, é a sugestão de Hausman]). Neste

caso, quando Peirce afirma que "toda cognição, como algo presente, é, claro, uma

intuição de si mesma (CP 5.214 [1868])" entenderíamos que a identificação do que

estamos pensando em determinado momento é imediata. Seria este, então, o único tipo

de intuição admitida no QFCM. Este seria, então, o único tipo de "conhecimento" direto

admitido dentro da teoria da cognição de Peirce (apresentada no QFCM).

Page 123: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

108

Embora Hausman dê a entender que o único trecho do QFCM em que Peirce admite

haver uma possibilidade de "conhecimento" direto é este segundo parágrafo da Q1 (CP

5.214 [1868]), há também uma passagem na Q3 (CP 5.238 [1868]) em que Peirce

parece tratar deste mesmo tipo de "conhecimento". Nesta passagem da Q3, o filósofo

norte-americano apresenta uma espécie de anatomia da cognição. De acordo com esta

"anatomia", toda cognição tem duas partes elementares: a chamada parte objetiva (ou

elemento objetivo) é aquilo a que a cognição se refere, é o que a cognição representa, é

seu objeto; a chamada parte subjetiva (ou elemento subjetivo) é algum modo (ativo ou

passivo) pelo qual o ego representa o objeto (a parte objetiva) da cognição. Esta divisão

da cognição é introduzida apenas na Q3 para estabelecer os termos da seguinte

pergunta: mesmo admitido que a parte objetiva de uma cognição seja conhecida

diretamente, poderia se afirmar o mesmo da outra parte, ou seja, a parte subjetiva seria

também conhecida diretamente? Esta pergunta é a que está por trás da terceira questão

do QFCM. A passagem em que esta divisão da cognição é apresentada é a seguinte: "a

cognição é em si mesma uma intuição de seu elemento objetivo, que pode ser, então,

chamado de objeto imediato. O elemento subjetivo não é necessariamente conhecido

imediatamente (...)" (CP 5.238 [1868])79

.

Notemos que, neste pequeno trecho da Q3, Peirce já considera a parte objetiva da

cognição como algo que se conheça imediatamente. E esta afirmação, neste trecho, está,

portanto, fora de discussão. O que é efetivamente discutido na Q3 é se a outra parte da

cognição é também conhecida desta forma. Se a esta altura do QFCM, já se admite (sem

a necessidade de se argumentar ou explicar) a existência de um "conhecimento" direto

(i.e., de um caso de intuição), então supomos que, neste trecho específico (CP 5.238

[1868]) transcrito acima Peirce esteja novamente se referindo àquele segundo tipo de

intuição definido numa nota-de-rodapé ainda no segundo parágrafo da primeira questão

do QFCM. Quando, na Q3, Peirce afirma que uma "cognição é em si mesma uma

intuição de seu elemento objetivo", ele está retomando, com outras palavras, a

proposição de que "toda cognição, como algo presente, é uma intuição de si mesma"

(CP 5.214 [1868]).

Ao final da Q4, quando apresentarmos nossa proposta de resolução (na verdade,

dissolução) deste problema do segundo tipo de intuição, explicaremos de forma muito

mais detalhada esta interpretação que conecta o segundo parágrafo da Q1 com o

primeiro parágrafo da Q3. Por enquanto, podemos apenas fazer algumas observações

para justificar esta conexão. Esta interpretação que fazemos é baseada na leitura e

análise do resto do parágrafo da Q1 em que Peirce admite pela primeira vez haver um

"conhecimento" direto, imediato ou intuitivo (CP 5.214 [1868]). Se prestarmos atenção

nos termos que Peirce utiliza neste mesmo parágrafo em que afirma que "toda cognição,

como algo presente, é uma intuição de si mesma" (CP 5.214 [1868]), notaremos que ele

está pressupondo aquela divisão (que chamamos de "anatomia") de uma cognição.

Integralmente, o parágrafo em questão é o seguinte:

79

No original: "The cognition itself is an intuition of its objective element, which may therefore be called,

also, the immediate object. The subjective element is not necessarily immediately known (...)".

Page 124: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

109

Uma coisa é ter uma intuição e outra é saber intuitivamente que se está diante

de uma intuição, e a questão é se estas duas coisas, distinguíveis em

pensamento, são de fato invariavelmente conectadas de forma a fazer com

que sempre possamos distinguir intuitivamente entre uma intuição e uma

cognição determinada por outra. Toda cognição, como algo presente, é

obviamente uma intuição de si mesma.

Porém, a determinação de uma cognição por outra cognição ou por um objeto

transcendental não é, ao menos na medida em que parece óbvio à primeira

vista, uma parte do conteúdo imediato daquela cognição, embora pareça que

ela [a determinação de uma cognição por outra cognição ou por um objeto

transcendental] seja um elemento da ação e da paixão do ego transcendental

e que não esteja, talvez, na consciência imediatamente; e ainda esta ação ou

paixão transcendental pode invariavelmente determinar uma cognição de si

mesma, então, de fato, a determinação ou não-determinação da cognição por

outra cognição pode ser parte da cognição. Neste caso, devo dizer que

teríamos uma capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de outra

cognição.

(CP 5.214 [1868])80

Notemos que, por exemplo, ao fazer referência ao que denominou na Q1 de "conteúdo

imediato" (CP 5.214 [1868]) de uma cognição, é muito provável que Peirce esteja se

referindo ao que chama, na Q3, de parte objetiva ou "elemento objetivo" (CP 5.238

[1868]) de uma cognição. Outro exemplo é o trecho em que afirma que a determinação

de uma cognição (por outra cognição ou por um objeto transcendental) "parece ser um

elemento da ação e da paixão do ego transcendental"(CP 5.214 [1868]). Isto que na Q1

Peirce denomina de "elemento da ação e da paixão do ego transcendental" é o que é, por

ele mesmo, denominado, na Q3, de parte subjetiva ou "elemento subjetivo" (CP 5.238

[1868]) de uma cognição. O problema é que neste trecho da Q1, Peirce se refere a

conceitos que só serão definidos e aclarados na Q3. Assim, como lida com matéria que

ainda será tratada em pormenor noutro ponto do QFCM, algumas questões deste trecho

são contemporizadas com uso de expressões que exprimem incerteza: "ao menos na

medida em que parece óbvio à primeira vista"81

, "talvez" e o verbo "parecer"82

. Isto faz

80

No original: "Now, it is plainly one thing to have an intuition and another to know intuitively that it is

an intuition, and the question is whether these two things, distinguishable in thought, are, in fact,

invariably connected, so that we can always intuitively distinguish between an intuition and a cognition

determined by another. Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself. But the

determination of a cognition by another cognition or by a transcendental object is not, at least so far as

appears obviously at first, a part of the immediate content of that cognition, although it would appear to

be an element of the action or passion of the transcendental ego, which is not, perhaps, in consciousness

immediately; and yet this transcendental action or passion may invariably determine a cognition of itself,

so that, in fact, the determination or non-determination of the cognition by another may be a part of the

cognition. In this case, I should say that we had an intuitive power of distinguishing an intuition from

another cognition". 81

O trecho em que aparece esta expressão é o seguinte: "Porém, a determinação de uma cognição por

outra cognição ou por um objeto transcendental não é, ao menos na medida em que parece óbvio à

primeira vista, uma parte do conteúdo imediato daquela cognição (...)"(CP 5.214 [1868]).

No original: "But the determination of a cognition by another cognition or by a transcendental object is

not, at least so far as appears obviously at first, a part of the immediate content of that cognition" 82

O trecho em que aparece a expressão "talvez" e também o verbo "parecer" é o seguinte: "Embora

pareça que ela [a determinação de uma cognição por outra cognição ou por um objeto transcendental]

Page 125: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

110

deste parágrafo acima transcrito uma das passagens mais difíceis para se ler e interpretar

em todo o QFCM, principalmente o trecho em que Peirce admite haver um tipo de

"conhecimento" que é direto, intuitivo. Nossa interpretação é que tanto este trecho

específico como aquele outro trecho da Q3 (CP 5.238 [1868]) acima referido tratam do

mesmo tipo de "conhecimento", do mesmo tipo de intuição. Este tipo de intuição não

pode ser confundido com aquele primeiro tipo que Peirce define no primeiro parágrafo

da Q1 (também acima transcrito) e que constitui o alvo de suas críticas ao longo de todo

o QFCM. Vejamos a argumentação encaminhada ao final deste trecho da Q1. Feitas

estas observações, voltemos às análises.

Comecemos pela análise justamente deste parágrafo (CP 5.214 [1868]) que

transcrevemos acima. No fundo, o problema com qual Peirce lida neste parágrafo é a

distinção entre ter uma intuição e saber intuitivamente que se está diante de uma

intuição. A pergunta é se temos ou não a capacidade de (sempre) poder distinguir

intuitivamente entre uma intuição e uma cognição determinada por outra (cognição).

Neste trecho, Peirce admite que há uma "parte" da cognição (i.e., uma espécie de

"conteúdo imediato") que é apresentada na própria cognição de forma imediata, direta.

Neste trecho, Peirce parece encarar uma cognição (enquanto algo que está presente à

mente) como uma intuição de seu próprio conteúdo (imediato). Portanto, o acesso a este

conteúdo seria imediato.

Tudo que for parte do conteúdo imediato de uma cognição é acessado de forma direta,

intuitiva. Entretanto, de acordo com a exposição do autor, a determinação de uma

cognição não parece poder ser entendida como algo que pertença ao conteúdo imediato

de tal cognição. Ou seja, o fato de uma cognição específica ter sido determinada por

outra cognição ou por um objeto transcendental (i.e. um objeto externo à consciência)

não parece poder ser conhecido diretamente junto com a cognição. Como este fato (a

determinação da cognição por algo) não faria parte do conteúdo imediato da cognição,

então não poderíamos saber de tal fato diretamente. Assim, só nos restaria a

possibilidade de vir a conhecê-lo por inferência. Entretanto, Peirce considera outra

possibilidade. Pode ser que esta determinação da cognição (por outra cognição ou por

um objeto externo) fosse um elemento da parte subjetiva da cognição83

. Se podemos

acessar de forma direta, intuitiva esta parte subjetiva de uma cognição (como podemos

fazer com a parte objetiva) é um ponto que será discutido apenas na Q3. Por este

motivo, neste trecho da Q1 transcrito acima, logo após ter levantado a hipótese de que a

determinação da cognição (por outra cognição ou por um objeto externo) seria um

elemento da parte subjetiva da cognição, Peirce afirma que "talvez" esta parte da

cognição não esteja imediatamente presente à consciência, ou seja, isto significaria que,

neste caso, apenas poderíamos ter acesso a esta parte subjetiva da cognição a partir de

seja um elemento da ação e da paixão do ego transcendental e que não esteja, talvez, na consciência

imediatamente"(CP 5.214 [1868]).

No original: "although it would appear to be an element of the action or passion of the transcendental ego,

which is not, perhaps, in consciousness immediately". 83

No texto, Peirce não utiliza a expressão "parte subjetiva da cognição", que só será definida, aliás, na

Q3. Neste trecho da Q1, Peirce afirma que talvez a determinação da cognição seja um elemento da ação

ou paixão do ego transcendental.

Page 126: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

111

uma inferência (e nunca de forma direta). Entretanto, como não foi ainda estabelecido

como é o acesso a tal parte subjetiva de uma cognição (se é direto [intuitivo] ou indireto

[inferencial]), o que Peirce parece tentar explorar a seguir neste trecho da Q1 é

justamente o que ocorreria caso tivéssemos um acesso direto a tal parte da cognição. Se

este acesso fosse direto, então poderíamos saber de forma direta, intuitiva se uma

cognição é ou não determinada por outra (cognição). O raciocínio de Peirce parece ter

sido o seguinte: suponha que a determinação ou a não-determinação de uma cognição

(por outra cognição) seja um elemento da parte subjetiva desta cognição. Então,

considere que esta parte subjetiva possa sempre determinar uma cognição de si mesma a

ponto de fazer com que, de fato, a determinação ou a não-determinação da cognição

(por outra cognição) possa ser uma parte dela, i.e, parte da cognição.

O raciocínio neste trecho é o seguinte: se (o conhecimento sobre) a determinação ou

não-determinação de uma cognição X (por uma outra cognição) é um elemento da parte

subjetiva desta cognição X e temos acesso direto a todos os elementos da parte subjetiva

de uma cognição (o que será chamado a seguir de suposição_2), então, neste caso,

teríamos acesso direto ao conhecimento sobre a determinação ou não-determinação de

uma cognição X (por uma outra cognição).

Argumento a respeito o conhecimento direto sobre a determinação ou não-

determinação de uma cognição

Premissa1 (suposição_1): (o conhecimento sobre) A determinação ou não-

determinação de uma cognição X (por uma outra cognição) é um elemento da

parte subjetiva desta cognição X.

Premissa2 (suposição_2): Se algo é um elemento da parte subjetiva de uma

cognição, então temos acesso direto a este elemento.

Conclusão: Temos acesso direto a (o conhecimento sobre) a determinação ou não-

determinação de uma cognição X (por uma outra cognição).

Peirce não volta para argumentar contra esta possibilidade de haver uma capacidade

intuitiva de se saber se uma cognição é determinada por outra ou não por um motivo

muito simples. Esta possibilidade foi admitida dentro de um cenário hipotético. Neste

cenário hipotético, supomos que teríamos acesso direto a todos os elementos da parte

subjetiva de uma cognição (que é o que denominamos acima de suposição_2).

Entretanto, esta suposição é descartada graças à argumentação desenvolvida durante a

terceira questão. Como a possibilidade apresentada acima de haver tal capacidade

intuitiva (de se saber se uma cognição é determinada por outra) deve ser descartada,

Peirce no terceiro parágrafo da Q1 (CP 5.215 [1868]) passa a considerar outra evidência

que geralmente é considerada favorável à suposição de que exista tal capacidade

intuitiva.

Page 127: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

112

Antes de seguirmos com as análises, cabe fazer uma observação de caráter geral. Deve-

se notar, que o primeiro grande movimento de Peirce neste artigo (QFCM) é

problematizar aquele ponto que não é encarado como problema no (que entende por)

cartesianismo, uma vez que é pressuposto: a capacidade do homem de distinguir entre

uma cognição intuitiva e uma cognição não-intuitiva, i.e., derivada. É por este motivo

que, ao longo de toda Q1, Peirce vai argumentar que não há evidência alguma de que

temos a capacidade sob questionamento. Para Peirce, a única "evidência" seria que nós

sentimos que temos esta capacidade. Devemos dar detalhada atenção a esta solitária

evidência (de que temos tal capacidade), pois, como veremos, todas as outras evidências

apresentadas ao longo desta primeira questão tratada no artigo de Peirce corroboram

com a tese contrária (a saber, de que não temos a tal capacidade colocada em questão).

A ideia de que "temos a capacidade (sob questionamento), porque sentimos que a

temos" deve ser considerada o argumento favorável à capacidade (sob questionamento)

dentro da Q1. A pergunta aqui é se temos ou não temos a capacidade intuitiva de fazer

distinção entre cognições intuitivas e cognições derivadas. Há de se enfatizar novamente

que nesta primeira questão, Peirce não está tentando estabelecer de forma direta a tese

de que não há intuições. Em linha alguma deste trecho do texto, o filósofo afirma que

não há intuição. O que é posto em dúvida é (e este é o problema de fundo) se temos ou

não a capacidade intuitiva de distinguir uma cognição intuitiva de uma que não o seja.

Vejamos, então, como Peirce argumenta contra a consideração deste sentimento como

uma evidência favorável à hipótese de que temos tal capacidade.

Não há evidência que tenhamos tal faculdade, exceto que sentimos que

parecemos tê-la. Porém, o peso deste testemunho depende inteiramente da

suposição de que temos a capacidade de distinguir neste sentimento se ele [o

sentimento] é resultado de educação, de associações antigas, etc. ou se ele é

uma cognição intuitiva; assim, em outras palavras, ele depende da

pressuposição justamente daquele ponto para o qual ele pretende servir de

testemunha. Este sentimento é infalível? E este julgamento que o considera

infalível e assim por diante, ad infinitum? Ao supor que um homem pudesse

se trancar dentro de uma crença desta, ele estaria, claro, "impermeável" com

relação a qualquer verdade, qualquer "prova por evidência".

(CP 5.214 [1868])84

De acordo com esta evidência, diante de alguma cognição, haveria um sentimento que

nos "diria" se esta cognição é intuitiva ou derivada85

. Porém, o que tornaria este

84

No original: There is no evidence that we have this faculty, except that we seem to feel that we have it.

But the weight of that testimony depends entirely on our being supposed to have the power of

distinguishing in this feeling whether the feeling be the result of education, old associations, etc., or

whether it is an intuitive cognition; or, in other words, it depends on presupposing the very matter

testified to. Is this feeling infallible? And is this judgment concerning it infallible, and so on, ad

infinitum? Supposing that a man really could shut himself up in such a faith, he would be, of course,

impervious to the truth, "evidence-proof."

85 Além dessa metáfora sonora relativa à "voz" que nos "diria" se uma cognição específica é ou não uma

intuição, pode-se fazer referência a uma metáfora visual, que, aliás, é muito mais recorrente na obra dos

filósofos que estabeleceram a intuição como elemento de fundação ou, ao menos, como ponto de partida

para o conhecimento: a metáfora da intuição como uma luz. Descartes, em suas "Meditações", trata, por

Page 128: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

113

sentimento confiável em sua função de julgar se uma cognição específica é ou não

intuitiva? Por exemplo, imagine que estejamos diante de uma cognição c e que um certo

sentimento s nos garanta que c é uma cognição intuitiva. Há dois caminhos possíveis

que chamaremos respectivamente de caso I e caso II: ou este sentimento (de que c é

uma intuição) é (em si mesmo) uma intuição ou este sentimento (de que c é uma

intuição) é derivado (de cognições anteriores). Por exemplo, para este caso II,

imaginemos uma situação em que o sentimento s tenha sido resultante de um processo

de aprendizagem ou de associações anteriores. Nesta situação, o grau de confiança que

temos em s depende do grau de confiança que temos em tal processo ou conjunto de

associações. Não é difícil notar que, como, neste caso II, o sentimento s (que nos diz

que c é uma cognição intuitiva) é derivado de fatores externos (o processo de

aprendizagem e as associações anteriores), então, além de nossa capacidade de

distinguir intuições não ser intuitiva (sendo, ao contrário, derivada, inferida, indireta),

tal capacidade não poderia ser julgada infalível e seus resultados não poderiam ser, de

forma alguma, indubitáveis. Como a análise deste caso II resulta obviamente numa

resposta negativa à pergunta Q1, analisemos o outro caminho que nos resta, o caso I. O

outro caminho consiste em afirmar que este sentimento s (de que c é uma intuição) é

(em si mesmo) uma intuição. De forma mais simples, no caso I, supomos que s é

intuitivo. Porém, se somos capazes de fazer este julgamento (de que s é intuitivo) de

forma direta (i.e., sem derivá-lo de nada mais) é porque já pressupomos que temos a

capacidade intuitiva de distinguir entre uma cognição intuitiva e uma cognição derivada.

O problema é que, neste caso I, somos obrigados a pressupor o que deveríamos provar.

O caso I, que seria o argumento favorável à existência da faculdade intuitiva de

distinguir intuições, é, na verdade, uma falácia denominada petitio principii (ou "petição

de princípio"). Vejamos este ponto de forma detalhada.

O argumento de Peirce é que há uma circularidade incontornável quando estabelecemos

nossa suposta capacidade intuitiva de distinguir intuições num sentimento

(supostamente) de caráter intuitivo. Tal circularidade pode ser apresentada da seguinte

forma: para apresentar um sentimento como prova de que somos capazes de identificar

algo como uma intuição, já temos que identificar ou classificar este sentimento como

uma intuição, ou seja, para provar que somos capazes de distinguir intuitivamente

intuições, já temos que ser capazes de distinguir intuitivamente intuições.

Como nos dois (únicos) casos analisados, a resposta é negativa, a conclusão é que não

temos a capacidade intuitiva de distinguir entre intuições e não-intuições. Mas, antes de

voltarmos nossa atenção para esta conclusão negativa (que é a tese que Peirce vai

"levar" desta Q1), notemos que todo este raciocínio acerca da capacidade intuitiva de

distinguir intuições pode ser visto sob diversos ângulos e isto nos auxilia a reconstruir a

estrutura lógica e o contexto desta teoria apresentada na QFCM. Podemos, por exemplo,

vezes, a intuição como uma espécie de luz natural (cf. o trecho que citamos na primeira seção do capítulo

3 desta tese AT VII 40-1; CSM II 28; cf. DESCARTES, 2004 [1641], p. 81-2). Locke, por exemplo, em

seu "Ensaio sobre o entendimento humano" trata a intuição como "um raio de sol" que se impõe de forma

imediata e irresistível (cf. trecho que citamos na terceira seção do capítulo 3 ECHU, Livro 4, capítulo

2, sec. 2).

Page 129: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

114

enxergar esta primeira questão como se fosse uma pergunta acerca do critério de

identidade das intuições. Imaginemos que exista um critério que nos permita saber se

uma cognição é ou não intuitiva. A questão então é a seguinte: este critério (que

supomos existir) é (ele mesmo) válido intuitivamente?

Colocar esta (primeira) questão sob esta forma pode nos ajudar a enxergar o pano de

fundo contra o qual vão se mover os argumentos peirceanos no QFCM. É ponto pacífico

entre os comentadores que Peirce neste artigo tem como alvo o conceito de intuição. É

este o conceito “combatido”. Porém, se tentarmos observar o papel que este conceito

tem na economia interna das teorias epistemológicas em que ocorre, notaremos que sua

função primordial (na maioria delas) é de estabelecer pontos de partida seguros (para o

conhecimento). E se também observamos que Peirce admite algum tipo de intuição

dentro de sua teoria, então notaremos que o que Peirce parece estar perseguindo neste

artigo QFCM não é exatamente a intuição, mas o conceito de infalibilidade que está a

ela associado.

Uma intuição é uma espécie de garantia de infalibilidade com relação à verdade de

determinadas proposições ou ideias. Quando afirmamos que determinada ideia é

intuitiva é porque sabemos de forma direta que esta ideia é verdadeira, ou seja, sabemos

que ela é verdadeira sem a necessidade de alguma prova ou justificativa. É uma

verdade, diz-se, auto-evidente. Ela não depende da verdade de nenhuma outra ideia. É,

por isso, dita também independente. Entretanto, por meio do argumento apresentado

nesta segunda parte do segundo parágrafo de seu artigo (CP 5.214 [1868]), Peirce

afirma não haver evidência de que podemos julgar de forma certeira, direta e infalível se

estamos ou não diante de uma intuição. A única forma certeira, direta e infalível de

julgar se estamos ou não diante de uma intuição é considerar este julgamento (de que

estamos diante de uma intuição) algo certeiro, direto e infalível. Mas, se fizermos isso,

se julgarmos infalível o julgamento (de que estamos diante de uma intuição), estaremos

apenas andando em círculos, pois estaríamos afirmando que a única maneira de

identificarmos uma intuição seria termos uma intuição que tivemos uma intuição. A

pergunta, então, é recolocada: como sabemos que esta segunda cognição é mesmo uma

intuição?

Diante destas observações, só nos restaria concluir que a intuição não consegue

efetivamente cumprir seu papel de "garantidor de infalibilidade". Ainda que existam

intuições e elas, por serem sempre inabalavelmente verdadeiras, sejam os melhores

"lugares" possíveis a partir dos quais se pode começar uma linha de raciocínio, os

humanos simplesmente não conseguem encontrá-las ou, se, por acaso, acontecesse de

encontrá-las, não poderiam saber, com certeza, que as encontraram. De acordo com

Peirce, ainda que cognições intuitivas existam e sejam efetivamente infalíveis, não há

nada que nos garanta que seja infalível a nossa capacidade de encontrá-las ou identificá-

las. Como não podemos ter certeza se estamos ou não diante de uma intuição, toda a

infalibilidade prometida por este conceito deixa de ter importância. De que adianta

estabelecermos teoricamente que existem pedras preciosas especiais que, por definição,

nunca poderão ser encontradas ou identificadas com absoluta certeza?

Page 130: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

115

Antes que sigamos com as análises dos parágrafos subsequentes da Q1, desenvolvamos

dois exemplos com o intuito de esclarecer o problema que Peirce enxergou envolto no

conceito de intuição. Na verdade, o problema reside na reivindicada capacidade de

distinguir intuições (de cognições derivadas) e consiste numa incontornável

circularidade. É fundamental que seja entendido por qual motivo Peirce, a partir das

argumentações da Q1, passa a considerar problemática qualquer explicação que recorra

ao conceito de intuição. Deste ponto em diante no QFCM, todo e qualquer caminho

teórico que recorra a tal conceito deve ser preterido em prol de um percurso alternativo.

Vejamos o primeiro de nossos exemplos que nos serve de expediente para esclarecer a

referida circularidade.

Imaginemos a seguinte situação: as monotitiledôneas86

formam o grupo de árvores cuja

semente possui um risco. Dititiledôneas formam o grupo de árvores cuja semente possui

somente dois riscos. Durante muito tempo, os botânicos acordaram serem estes os

únicos tipos de classificação das árvores com relação ao tipo de semente, pois os

cientistas espalhados pelo planeta haviam encontrado apenas sementes com um ou dois

riscos. Então, um botânico propôs um terceiro termo que diria respeito a um terceiro

grupo de árvores que não se confundiria nem com as monotitiledôneas, nem com as

dititiledôneas, embora suas sementes tivessem um ou dois riscos. Ele chamou este

terceiro grupo de xongotitiledôneas. Como a diferenciação não poderia ser feita pelo

número de riscos que a semente possuiria, a comunidade científica perguntou ao

proponente do novo termo qual seria o critério para se distinguir as xongotitiledôneas

das demais. A resposta foi que as xongotitiledôneas formariam o grupo de árvores cuja

semente seria classificada como uma xonguerma. É obvio que a próxima pergunta é

como poderia se diferenciar uma semente que é uma xonguerma de uma que não o seja.

Então, o cientista respondeu que, apenas observando a semente, não há como classificá-

la como uma xonguerma. A única forma, continuou o proponente, de saber se uma

semente específica é uma xonguerma ou não é verificando de que árvore ela saiu. Se tal

semente tiver saído de uma xongotitiledônea, então necessariamente ela (a semente) é

uma xonguerma.

Ora, claro está que, com esta definição de “xongotitiledônea”, jamais poderíamos saber

se estamos diante de uma xongotitiledônea ou não. Simplesmente o critério que temos

(a partir da definição fornecida) não pode ser aplicado a uma situação real porque ele é

circular. Para sabermos, por exemplo, se um espécime diante do qual estamos é ou não

xongotitiledônea já teríamos que saber identificar se este mesmo espécime é ou não uma

xongotitiledônea. Algo muito semelhante ocorre com a reivindicada capacidade de

distinguir intuições (de cognições derivadas). De acordo com a crítica de Peirce, para

identificar uma intuição com certeza, o único critério disponível seria recorrer a uma

"intuição anterior".

86

Caro leitor, não consultes dicionários nem a literatura especializada (em biologia). Não é nem o caso

destas palavras não estarem aqui no sentido que eles lhes dão, pois esta terminologia é puramente fictícia,

não deve constar em livro algum, mas qualquer semelhança com os termos utilizados em botânica não

terá sido obviamente mera casualidade.

Page 131: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

116

Esta circularidade, uma vez descoberta, passa obviamente a ser considerada nociva para

qualquer teoria epistemológica que se preze. Por este motivo, no QFCM, Peirce parece

estabelecer que tal circularidade (que surge quando nos pomos a pensar sobre nossa

capacidade de distinção de intuições) é uma espécie de "vício de origem" de qualquer

teoria epistemológica que recorra à intuição como fundamento do conhecimento.

Assumir que há intuição nos termos da definição apresentada no início do QFCM (i.e.,

uma cognição que não tenha sido determinada por nenhuma outra cognição anterior do

mesmo objeto) é estabelecer que existe algo que não pode ser conhecido, nem

explicado. Como veremos no tratamento que Peirce dá às últimas questões deste artigo,

admitir que haja intuição (naquele sentido) é bloquear o caminho da investigação, uma

vez que é, de uma vez por todas, estabelecido que as origens de todo e qualquer

conhecimento são inexplicáveis.

Esta circularidade fica evidente somente quando se deixa de considerar a nossa

capacidade de distinguir uma intuição como um pressuposto, como uma ideia não

problemática. A partir do momento que colocamos em dúvida tal capacidade e

passamos a investigá-la mais a fundo, notamos que há uma circularidade oculta. A

crítica peirceana se dirige para a afirmação de que o conceito de intuição só parece

funcionar para finalidade fundacional para a qual foi concebido quando ocultamos esta

circularidade sob a capa da pressuposição.

Esta situação deve nos levar a questionar a infalibilidade associada ao conceito de

intuição. A ideia é que apenas conseguimos ter plena confiança em determinada ideia

que julgamos intuitiva porque pressupomos que somos capazes intuitivamente de

distinguir cognições intuitivas. Esta segurança desaparece quando investigamos mais a

fundo esta questão, pois notamos que não sabemos exatamente o que queremos dizer

quando afirmamos que estamos diante de uma intuição. A ideia é que toda a nossa

confiança na verdade inabalável de uma ideia intuitiva seria devida à nossa ignorância

disfarçada de certeza. É como se a intuição fosse a garantia de certeza sobre a qual não

se pode ter certeza. A fonte de luz que nunca pode ser iluminada. A fonte de certeza que

é (ela mesma) misteriosa. As metáforas pululam. O importante, neste ponto de nossas

análises, é notar que Peirce apresenta a intuição como uma hipótese problemática por

conta daquela circularidade acima referida e pelas inúmeras evidências contrárias à

ideia de que teríamos a capacidade intuitiva de distinguir intuições (de cognições

derivadas). Para Peirce, o notório desacordo entre os homens a respeito do que é ou do

que deixa de ser uma cognição intuitiva é um claro sinal de que os seres humanos não

possuem a alegada faculdade de distinguir intuições. A inexistência de tal faculdade

parece ficar mais evidente naqueles casos espetaculares em que se prova ser falsa uma

afirmação que inicialmente julgamos ser uma verdade universal, absoluta, eterna e,

sobretudo, uma verdade auto-evidente, ou seja, uma intuição. Vejamos um caso desses.

Um exemplo muito interessante de uma intuição que passou, ao longo do curso das

investigações, de verdade eterna para falsidade comprovada é fornecido por Cornelis De

Waal (2007, p. 28) em suas explicações acerca da desconfiança de Peirce no QFCM

com relação ao conhecimento intuitivo. O exemplo é a respeito da célebre proposição "o

Page 132: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

117

todo é sempre maior que quaisquer de suas partes" e ainda que esteja apenas na análise

de De Waal (e não no próprio texto peirceano) é um ótimo expediente para

explicitarmos a argumentação de Peirce neste trecho da Q1 que ora analisamos. Por este

motivo, tomemos emprestado o exemplo de De Waal e desenvolvamos uma reflexão

pouco mais demorada.

A afirmação "o todo é sempre maior que quaisquer de suas partes" é geralmente

entendida como um excelente exemplar de conhecimento intuitivo, i.e., ela é geralmente

considerada uma proposição que sabemos ser verdade sem a necessidade de qualquer

demonstração. Sem quaisquer inferências, "vemos" imediatamente sua verdade. Não é

por outro motivo que esta afirmação figura como uma das noções gerais dos Elementos

de Euclides87

. A impressão que temos é que é absolutamente impossível encontrar

algum exemplo em que esta afirmação seja falsa.

Entretanto, apenas lançando mão de algumas noções muito básicas de teoria de

conjuntos, não é difícil encontrar um exemplo em que não valha a afirmação de que "o

todo é maior do que quaisquer de suas partes". Como o exemplo que se segue é a

respeito de conjuntos numéricos, antes de apresentá-lo, convém fazer uma breve

observação sobre a maneira como contamos e como comparamos os tamanhos de

conjuntos. Por exemplo, quando contamos quantos pães estão dentro de um cesto o que

fazemos, de certa forma, é correlacionar cada unidade de pão com uma unidade de um

sistema de contagem. É por meio deste processo de emparelhamento (abstrato) entre

elementos de um conjunto (o cesto de pães) e os elementos do outro conjunto (o sistema

de contagem [por exemplo, os números naturais]) que sabemos que estes dois conjuntos

têm o mesmo número de elementos.

Poderíamos selecionar qualquer outro conjunto que contenha três elementos e fazer este

procedimento de ligar cada elemento de um conjunto (cada pão) a algum elemento do

outro conjunto que escolhemos. Suponha que tenhamos feito tal procedimento

correlacionando cada pão do nosso conjunto de três pães com uma pedra retirada de um

saquinho. Óbvio que teríamos que retirar três pedras deste saquinho, uma para cada pão

(de nosso cesto). Ao emparelharmos estes dois conjuntos (um pão para cada pedra),

87

Oitava noção comum, Livro I.

Page 133: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

118

estaríamos aptos a "controlar" a quantidade de pães de nosso cesto. Caso, em algum

momento posterior à contagem inicial, sobrasse alguma pedra ao emparelharmos

novamente o conjunto de pães com o conjunto de pedras (correspondentes), saberíamos

que alguma quantidade de pão foi subtraída do cesto. Ainda que fosse um número muito

grande de pães, teoricamente este procedimento seria sempre possível (desde que não

nos faltem pedras).

Feitas estas observações sobre procedimento de contagem e comparação entre

conjuntos, desenvolvamos um exemplo em que o todo não é maior que quaisquer de

suas partes. Suponha que estejamos diante do célebre conjunto dos Números Naturais:

N.=.{0,1,2,3,4,5,6,7,...} e decidamos dividi-lo em duas partes: de um lado, o

subconjunto de todos os números pares, que é, então, denominado de conjunto P; e, de

outro lado, o subconjunto de todos os números ímpares, que é denominado de conjunto

E. Como todos sabemos, este conjunto N contém um número infinito de elementos. E

isto significa que não pode haver último elemento neste conjunto, uma vez que é sempre

possível adicionar mais um elemento a qualquer número que se candidate ao posto de

último elemento. Porém, o conjunto dos números pares (e também o dos números

ímpares) possui esta mesma propriedade de "sempre ser possível somar mais um

elemento", o que significa que também este conjunto é infinito. Não existe um último

número par. O mais notável é que pode ser feito um emparelhamento entre os elementos

do conjunto N e os elementos do conjunto P. Para isso, basta que, em primeiro lugar,

correlacionemos o primeiro elemento de N (o número 1) ao primeiro elemento de P (o

número 2); em segundo lugar, correlacionemos o segundo elemento de N (o número 2)

ao segundo elemento de P (o número 4); em terceiro lugar, correlacionemos o terceiro

elemento de N (o número 3) ao terceiro elemento de P (o número 6) e, assim, por diante.

Page 134: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

119

Como estamos diante de dois conjuntos infinitos, então nunca vai faltar nenhum

elemento do conjunto P para ser emparelhado com algum elemento do conjunto N. Isto

significa que estes dois conjuntos têm exatamente o mesmo tamanho. Esta conclusão é

"contra-intuitiva", pois, como o conjunto P é uma parte do conjunto N, o que seria de se

esperar é que a parte fosse menor que o todo. E este é um caso em que a parte não é

menor que o todo (pois, neste caso, parte e todo são do mesmo tamanho). Logo, a

proposição "o todo é sempre maior que quaisquer de suas partes" é falsa. E este é

também o caso de uma proposição que era considerada uma intuição, uma verdade auto-

evidente (ao menos assim o foi até que surgisse, no final do século XIX, novas

definições de infinito [como a do matemático alemão Dedekind] ou até mesmo teorias

matemáticas que lidassem diretamente com o infinito [como a chamada "teoria dos

conjuntos", que nasce dos trabalhos do também matemático alemão Georg Cantor]).

Ora, se uma proposição era considerada intuitivamente verdadeira e, ao se obter uma

prova em contrário, ela deixa de ser uma intuição, então não se pode dizer que, algum

dia, esta proposição foi verdadeiramente uma intuição. "Intuições de validade

temporária" são um contrassenso. A descoberta de que o que se julgava intuição, na

verdade, não o era acaba por nos levar a desconfiar (não só de intuições em geral, mas)

de nossa capacidade de julgar o que é e o que não é efetivamente uma intuição.

Se temos diversos casos em que nos enganamos ao julgarmos que estávamos diante de

uma intuição, então se abrem duas possibilidades: ou isto significa que não existem

intuições (e este tipo de cognição seria apenas uma criação de nossas teorias

epistemológicas) ou isto significa que não é infalível nossa capacidade de julgar se

estamos ou não diante de uma intuição (e, neste caso, tal capacidade não poderia ser

intuitiva). Como já foi dito, Peirce não afirma que não existem intuições. Seus

argumentos se dirigem contra a capacidade de distingui-las, i.e., a segunda das

possibilidades acima descrita. Como passa a argumentar a partir do terceiro parágrafo

da Q1 (CP 5.215 [1868]), as evidências sugerem que não é intuitiva nossa capacidade

de fazer distinção entre as cognições intuitivas e derivadas. A ideia por trás deste

argumento é que, se chegamos ao ponto de poder afirmar que nossas distinções (entre o

que é e o que deixa de ser uma intuição) não são infalíveis, isto é um sinal de que nossa

Page 135: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

120

capacidade de distinguir intuições não é ela mesma intuitiva. Se fosse não poderíamos

falhar. Enfatizamos este ponto porque esta ideia constitui a primeira premissa daquilo

que (mais adiante em nossas análises) chamaremos de argumento geral da Q1. Esta

(primeira) premissa pode ser expressa da seguinte forma: “se houvesse uma capacidade

intuitiva de distinguir intuições, então não deveria haver desacordo a respeito do que é

intuição e do que é derivado”. Assim, além de negar haver evidências favoráveis à

hipótese de que tenhamos a capacidade intuitiva de distinguir intuições de outras

cognições que não o sejam, Peirce, a partir deste terceiro parágrafo da Q1 (CP 5.215

[1868]), passa a elencar uma série de evidências que apontam para a tese contrária (i.e.,

de que não temos tal faculdade). Para que sejamos precisos, neste quarto parágrafo (que

transcrevemos a seguir), é apresentada uma visão panorâmica das reflexões

epistemológicas na filosofia medieval e moderna. Este trecho da Q1 serve para localizar

o problema enfrentado por Peirce na QFCM dentro de um contexto histórico. Apenas

depois desta contextualização, é que o filósofo norte-americano passa a apresentar

aquelas referidas evidências.

Porém, comparemos a teoria com os fatos históricos. A capacidade de

distinguir intuitivamente intuições de outras cognições não tem impedido os

homens de disputar calorosamente a respeito de quais cognições são

intuitivas. Na idade média, a razão e a autoridade externa eram consideradas

duas fontes coordenadas do conhecimento exatamente como a razão e a

autoridade da intuição são consideradas agora; a diferença é que ainda não

tinha se chegado ao feliz dispositivo de considerar as enunciações da

autoridade como essencialmente indemonstráveis. Todas as autoridades não

eram consideradas infalíveis, não mais do que todas as razões; Entretanto,

quando Berengarius afirmou que a autoritatividade [o caráter de autoridade]

de qualquer autoridade deve estar baseada na razão, sua proposição foi

considerada duvidosa, irreverente e absurda. Então, a credibilidade da

autoridade era considerada pelos homens daquele tempo simplesmente como

uma premissa última, como uma cognição não determinada por uma

cognição anterior do mesmo objeto, ou, nos nossos termos, uma intuição. É

estranho que eles tivessem considerado esta questão dessa forma, pois, como

supõe a teoria que está aqui sob discussão, por mera contemplação a

credibilidade da autoridade, tal como um Faquir faz com relação ao seu Deus,

eles poderiam ter visto que isto não era uma premissa última. Agora, e se

nossa autoridade interna tivesse o mesmo destino, na história das ideias, que

aquela autoridade externa teve? Pode ser considerado absolutamente certo

aquilo a respeito do que muitos homens sãos, bem-informados e pensativos

têm dúvida?

(CP 5.215 [1868])88

88

No original: "But let us compare the theory with the historic facts. The power of intuitively

distinguishing intuitions from other cognitions has not prevented men from disputing very warmly as to

which cognitions are intuitive. In the middle ages, reason and external authority were regarded as two

coordinate sources of knowledge, just as reason and the authority of intuition are now; only the happy

device of considering the enunciations of authority to be essentially indemonstrable had not yet been hit

upon. All authorities were not considered as infallible, any more than all reasons; but when Berengarius

said that the authoritativeness of any particular authority must rest upon reason, the proposition was

scouted as opinionated, impious, and absurd. Thus, the credibility of authority was regarded by men of

Page 136: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

121

Neste quarto parágrafo após afirmar aquela proposição que mais adiante

denominaremos primeira premissa do argumento geral da Q1 ("a capacidade de

distinguir intuitivamente intuições de outras cognições não tem impedido os homens de

disputar calorosamente a respeito de quais cognições são intuitivas"), Peirce faz

referência a fatos históricos com o objetivo de localizar o problema filosófico do QFCM

num quadro geral de reflexões epistemológicas. Uma das principais diferenças entre as

teorias epistemológicas construídas na Idade Moderna e as reflexões epistemológicas

desenvolvidas nos períodos anteriores é que, enquanto a filosofia moderna, em geral,

funda o conhecimento humano num princípio interno (a Razão)89

, os filósofos da

Antiguidade e da Idade Média fundam o conhecimento humano em princípios externos:

na ordem da Natureza (no caso dos primeiros) e em Deus (no caso dos últimos). Esta

passagem de um estado de "heteronomia" a um estado de "autonomia" (que pode ser

vista não só no campo da Epistemologia, mas também na Ética) pode ser entendida

como decorrente de um movimento interno aos próprios debates filosóficos (aos

embates entre as distintas soluções para o mesmo problema filosófico ou formulação de

um problema noutro nível [logicamente anterior]) e não uma substituição fortuita de

temas ou uma mudança arbitrária de interesses (cf. Gonzáles Porta, 2002, p. 161). É a

este movimento muito geral de "internalização" do princípio que funda o conhecimento

humano que parece se referir Peirce no trecho que está sob análise. De acordo com as

palavras do próprio autor (CP 5.215 [1868]), da mesma forma que, durante o período

medieval, a razão e alguma autoridade externa eram consideradas como duas fontes

coordenadas do conhecimento; na modernidade, quem assumiu estes "papéis de

fundação" do conhecimento foram a razão e a intuição como uma espécie de autoridade

interna.

No caso dos filósofos medievais, a autoridade externa era considerada uma "premissa

última". Isto significa que ela é uma espécie de cognição que não é determinada por

nenhuma outra cognição anterior (do mesmo objeto), o que a coloca, portanto, no

conjunto das cognições intuitivas. Neste ponto do texto, Peirce estabelece uma relação

de semelhança entre aquilo que os medievais encaravam como uma "premissa última" e

o que, no QFCM, foi definido como intuição. Esta semelhança está baseada no fato de

que, ao se estabelecer que há algo que não se reporta a nenhuma instância superior ou

anterior, tanto a função da autoridade externa (a premissa última dos medievais) como a

da autoridade interna (a intuição dos modernos) é servir de fundamento último para o

conhecimento (ainda que, para os filósofos medievais, as autoridades externas não

fossem todas elas, lembra Peirce, consideradas infalíveis). Estabelecida esta

that time simply as an ultimate premiss, as a cognition not determined by a previous cognition of the same

object, or, in our terms, as an intuition. It is strange that they should have thought so, if, as the theory now

under discussion supposes, by merely contemplating the credibility of the authority, as a Fakir does his

God, they could have seen that it was not an ultimate premiss! Now, what if our internal authority should

meet the same fate, in the history of opinions, as that external authority has met? Can that be said to be

absolutely certain which many sane, well-informed, and thoughtful men already doubt?". 89

É bem verdade que, no caso de Descartes, embora a fundação do conhecimento seja lançada dentro dos

"limites do sujeito", ainda se recorre a uma instância externa (Deus) para se "garantir" a verdade do

conhecimento. Entretanto, o ápice deste movimento da filosofia moderna rumo à "autonomia" é

obviamente Kant. Na crítica da Razão Pura, não se recorre mais a instâncias externas.

Page 137: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

122

semelhança, Peirce afirma que os filósofos medievais poderiam ter notado que uma

autoridade externa não poderia ser uma "premissa última" se simplesmente resolvessem

"contemplar a credibilidade da autoridade" tal como, compara Peirce, um faquir faz com

seu Deus. Se compreendemos bem esta comparação, ao se desafiar a autoridade externa,

ao se questionar a respeito de sua credibilidade, estes filósofos deveriam perceber que o

que chamam de premissa última era, de alguma forma, determinada por uma premissa

ulterior. E foi exatamente o que ocorreu ao longo do tempo, quando a tradição e as

autoridades externas passaram a ser questionadas já nos primeiros movimentos do que

hoje chamamos de filosofia moderna. A pergunta que Peirce se coloca ao se aproximar

do final deste trecho (CP 5.215 [1868]) é se a autoridade interna (a intuição) não deve

ter, no longo curso do tempo, o mesmo destino que sua antecessora?

Esta pergunta só faz sentido uma vez estabelecida aquela relação de semelhança (acima

referida) entre o que os medievais consideravam premissa última e o que os modernos

consideram intuições (seja o "cogito, ergo sum" [no caso de Descartes] ou as ideias

simples [no caso de Locke] ou as impressões das quais nossas ideias são cópias [no caso

de Hume], por exemplo). Para Peirce, em ambos os casos estamos diante de intuições

conforme a definição geral apresentada no QFCM, a saber, uma intuição é uma

cognição que não é determinada por nenhuma outra cognição anterior do mesmo objeto.

Por este exato motivo, no texto, Peirce chama tanto as premissas últimas (dos

medievais) como as intuições (dos modernos) de "autoridades" (uma, externa e a outra,

interna). O que Peirce, por uma analogia, parece insistir neste trecho é que as

semelhanças entre autoridades externa e interna deveria nos levar desconfiar da

possibilidade de que ambas compartilhem também o mesmo destino. Embora, durante a

passagem do período medieval para o moderno, a autoridade ou o fundamento do

conhecimento tenha sido transferido para dentro do sujeito cognoscente, a pergunta

formulada pelo filósofo norte-americano é se os mesmo motivos que nos levaram a

questionar as fundações externas não deveriam nos levar também a levantar dúvidas a

respeito dessa fundação interna? A principal evidência que aponta para a urgência em se

duvidar da autoridade interna é o desacordo entre o que é e o que não é uma verdade

chancelada por esta autoridade interna. A evidência que deveria nos levar a questionar a

autoridade da intuição é o desacordo entre o que é e o que deixa de ser uma cognição

intuitiva. Na verdade, o que Peirce faz no QFCM é questionar a nossa capacidade em

identificar, com alguma autoridade (i.e., com certeza), cognições intuitivas. Ou,

colocado de outra forma, o que é questionado é justamente nossa autoridade em

distinguir intuições. A partir do quarto parágrafo da Q1 (na verdade, do CP 5.216 até

CP 5.218), Peirce se dedica a apresentar alguns exemplos desses desacordos com

relação ao que é intuitivo.

Os primeiros exemplos arrolados no quarto parágrafo (CP 5.216 [1868]) são relativos a

testemunhos proferidos em juízo ou testemunhos de observadores de truques realizados

por prestidigitadores ou mesmo de participantes de rituais. "Todo advogado sabe o quão

difícil é para as testemunhas distinguirem entre o que viram e o que inferiram. Isto é

particularmente notável nos casos de pessoas que descrevem as performances de

Page 138: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

123

médiuns espirituais e de prestidigitadores hábeis" (CP 5.216 [1868])90

. Estas evidências

mostram que nem "sempre é muito fácil distinguir entre uma premissa e uma

conclusão", o que nos leva a acreditar (seguindo o argumento peirceano) que "não

temos uma capacidade infalível" de fazer tal distinção (ibid). Se possuíssemos tal

capacidade intuitiva, as distinções seriam infalíveis e, se fossem infalíveis, deveria então

ser fácil distinguir entre premissas (pontos de partida, por exemplo, aquilo que vemos) e

conclusões (pontos de chegada, i.e., aquilo que inferimos).

Peirce estende esta análise para os sonhos, pois não é "infrequente que um sonho seja

tão vívido que a memória que dele temos seja confundida com a memória de uma

ocorrência real" (CP 5.217 [1868])91

. Um dado momento (ou uma imagem proveniente)

do sonho não pode ser diferenciado da realidade por uma simples contemplação. De

acordo com Peirce, somos capazes de tal distinção por meio de inferências que fazemos

a partir de alguns sinais que observamos nos sonhos quando estamos sonhando. A

distinção não é feita de forma direta (intuitiva), i.e., por uma simples contemplação.

Nesta mesma leva de exemplos, Peirce afirma que, se perguntarmos a uma criança

como ela aprendeu algo que ela atualmente sabe, as respostas, na maioria dos casos,

sugeririam que também os infantes não possuem a tal capacidade intuitiva de, por uma

simples contemplação, distinguir entre uma intuição e uma cognição determinada por

outras anteriores (CP 5.218 [1868]). Se questionadas, crianças muitas vezes afirmam

que nunca aprenderam sua língua materna, que sempre souberam (ou souberam "desde

que se dão por gente").

Em cada um desses casos apresentados, Peirce procura apontar para o fato de que há

sempre uma fronteira difusa entre aquilo que é apontado como conhecimento intuitivo e

o que é apontado como conhecimento derivado ou mediado. Podemos começar a

esboçar a argumentação peirceana apresentada, sobretudo, durante este primeiro trecho

(do CP 5.216 até CP 5.218) da Q1 num típico modus tollens. O argumento de Peirce

parece ser o seguinte: se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições,

então não deveria haver desacordo entre o que é intuição e o que deixa de sê-lo. Porém,

há desacordo (e sabemos disso pelas evidências apresentadas). Logo, não há (evidências

que sustentem a existência da) capacidade intuitiva de distinguir intuições. Embora esta

linha de argumentação esteja presente nesta primeira questão e seja relevante, ela ainda

não é o argumento geral de Peirce na Q1, uma vez que a conclusão de que não há

(evidência que sustentem a existência de) uma capacidade intuitiva de distinguir

intuições é estabelecida sobre uma base mais forte do que a proposição acerca de um

desacordo entre o que seria e o que deixaria de ser uma cognição intuitiva. Este

desacordo pode servir de indício de que não haja a capacidade sob questionamento, mas

não pode provar esta inexistência. Para podermos enunciar o que seria este argumento

90

No original: "Every lawyer knows how difficult it is for witnesses to distinguish between what they

have seen and what they have inferred. This is particularly noticeable in the case of a person who is

describing the performances of a spiritual medium or of a professed juggler" 91

No original: "Not unfrequently a dream is so vivid that the memory of it is mistaken for the memory of

an actual occurrence"

Page 139: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

124

geral da Q1 é necessário que analisemos uma segunda leva de casos (do CP 5.219 até

CP 5.224) apresentados por Peirce.

Nos outros casos analisados por Peirce no resto da Q1 (do CP 5.219 até CP 5.224),

Peirce concentra sua atenção em situações que envolvam a percepção. Em geral, estes

casos dizem respeito a algumas situações concretas em que a hipótese de que os dados

sensórios seriam intuídos (seriam captados imediatamente, ou seja, não seriam

inferidos) é negada e tal negação, em cada um desses casos, Peirce insiste, depende

sempre de um processo de inferência (o que nos leva a desconfiar que sejamos, então,

capazes de distinguir intuitivamente intuições). Com esta segunda leva de exemplos,

Peirce pretende apresentar casos em que se julga (sem sombras de dúvida) que se está

diante de uma cognição intuitiva e, depois, descobre-se que o que parecia uma

intuição era, na verdade, uma cognição derivada. Como estas descobertas, em todos os

casos avaliados, seriam resultado, de acordo com Peirce, de um processo inferencial (e

não de uma intuição), então o resultado avaliação de todos esses casos (em conjunto)

poderia ser oferecido como evidência de que não temos a capacidade intuitiva de

distinguir intuições.

Como veremos, todos os argumentos apresentados para esta segunda leva de casos (do

CP 5.219 até CP 5.224) pretendem, de forma mais direta, sustentar a seguinte

afirmação: "todos os casos em que é possível distinguir se uma cognição é produto de

uma intuição ou de uma inferência são casos em que esta distinção é resultado de uma

inferência" (e não de uma intuição). Esta tese é fundamental para a sustentação do

próprio argumento geral da Q1, que apresentamos a seguir de forma esquemática.

argumento geral da Q1

Premissa1: Se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições, então

deveria haver alguma evidência dessa capacidade, ou seja, deveria haver ao

menos um caso em que tenha sido possível, sem recorrer a quaisquer

inferências, distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma

inferência.

Premissa2: Não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem

recorrer a quaisquer inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou

de uma inferência.

Conclusão: Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições.

Com relação a este segundo grupo de casos para os quais Peirce elaborou argumentos,

há ainda uma observação a ser feita. Acreditamos que há uma mudança na estratégia

argumentativa a partir deste ponto da Q1, pois embora os argumentos de Peirce

relativos a estes outros casos (do CP 5.219 até CP 5.224) contribuam para sustentar a

Page 140: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

125

proposição de que "Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições" (que é a

resposta peirceana à Q1), este segundo grupo de argumentos já parece ter um papel

mais amplo dentro do QFCM e mesmo de toda a série cognitiva (e não apenas na Q1).

Acreditamos que este segundo grupo de argumentos já funciona como um apoio

(construído desde a Q1) para o argumento geral que, na sétima questão, pretende

estabelecer que não há cognição que não tenha sido determinada por uma cognição

anterior, i.e., não há primeira cognição. Este segundo grupo de argumentos já lida com

uma questão fundamental dentro da série cognitiva: o problema relativo à "porta de

entrada de informação" ou o problema da relação do sujeito cognoscente com o objeto

externo à consciência (que é também chamado de objeto transcendental). Ainda que

Peirce deixe para afirmar a tese que até mesmo "o conhecimento obtido a partir dos

sentidos é derivado (i.e., não é direto ou intuitivo)" apenas no segundo artigo da série

cognitiva (cf. CP 5.291 [1868]), acreditamos que as bases de sustentação dessa tese

começam a ser construídas neste segundo grupo de casos dentro da Q1. A seguir

listamos todos estes casos (para os quais Peirce apresenta um argumento). O que

identificamos como primeiro grupo de casos envolve os casos I, II, III e IV (do CP

5.216 até CP 5.218) e o segundo grupo envolve os casos V, VI, VII, VIII e IX (do CP

5.219 até CP 5.224).

Casos apresentados e analisados por Peirce na Q1

I) Caso advogado

II) Caso do prestidigitador (ou do

médium)

III) Caso do sonho

IV) Caso da criança (CP 5.218)

V) Caso da crença de que a terceira

dimensão do espaço é intuída

(referência a Berkeley)

VI) Caso do ponto do cego na retina

VII) Caso da textura (do tecido)

VIII) Caso da altura de um som

IX) Caso da percepção de duas

dimensões no espaço

Os argumentos aduzidos para os casos V, VI, VII, VIII e IX nos garantem o seguinte:

sempre que descobrimos que uma cognição que julgávamos ser uma intuição é, na

verdade, uma cognição derivada, esta descoberta não é realizada por uma mera

contemplação, ou seja, sempre que descobrimos que uma cognição é derivada (e não

intuitiva), esta descoberta não é intuitiva, mas derivada de uma intuição. Reparemos

que todos estes 5 casos são apresentados por Peirce como situações em que, graças a

algum processo inferencial, passamos de um estado A no qual se acredita (às vezes,

ingenuamente) que determinado tipo de cognição é intuitivo a um estado B no qual

este tipo de cognição é (ou passa a ser) considerado não-intuitivo, i.e., derivado ou

produto de inferência. Em nenhum dos casos relatados e analisados por Peirce ocorre

Page 141: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

126

o movimento em sentido contrário. Em nenhum desses casos, passa-se do estado (B)

em que se acredita que uma cognição seja derivada para o estado (A) em se acredita

que tal cognição seja intuitiva. De acordo com a nossa análise, esta nova estratégia

dentro da Q1 está muito bem sintetizada no primeiro caso disto que identificamos

como segundo grupo ou no quinto caso (na contagem geral desta primeira questão):

"Caso da crença de que a terceira dimensão do espaço é intuída (referência a

Berkeley)".

Não pode haver dúvida alguma que antes da publicação do livro de

Berkeley sobre visão, acreditava-se geralmente que a terceira dimensão do

espaço era imediatamente intuída, embora, atualmente, quase todos

admitem que ela é conhecida por inferência. Temos contemplado o objeto

desde a criação do homem, mas esta descoberta não foi feita antes que nos

puséssemos a raciocinar sobre isso.

(CP 5.219 [1868])92

Enquanto apenas contemplávamos tal questão, acreditávamos que se tratava de um

caso de conhecimento por intuição (i.e. conhecimento imediato), entretanto, depois

que nos pusemos a raciocinar a respeito, descobrimos que, na verdade, tratava-se de

um caso de "conhecimento por inferência". Todos os últimos cinco casos relatos e

analisados no Q1 tem essa estrutura. Isto obviamente tem um papel direto dentro do

argumento geral da Q1, mas, de acordo com nossa leitura, também tem um papel

relevante na economia interna da teoria da cognição defendida na QFCM e na série

cognitiva como um todo.

Como veremos nas análises deste segundo grupo, o que Peirce pretende estabelecer

com os argumentos apresentados para cada um dos casos é que "todos os casos em

que é possível distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma

inferência são casos em que esta distinção é resultado de uma inferência". Esta tese

tem que ser sustentada dentro da Q1, pois ela constitui a segunda premissa do

argumento geral da primeira questão. Como ficará claro com a análise de cada um dos

casos (e de seus respectivos argumentos) que faremos na próxima seção, Peirce

estabelece esta tese a partir de uma avaliação de uma coleção de casos particulares. O

argumento que a sustenta, portanto, é indutivo. Entretanto, ao avaliar cada um desses

casos para concluir essa tese, Peirce constrói uma base que o permite estabelecer uma

segunda tese (ainda que ele não o faça durante a Q1), que estaria implicada na

primeira e no fato de, neste segundo grupo, todos os casos analisados serem relativos

à percepção. Esta segunda tese é que não há evidências que apoiem a hipótese de que

a percepção seja direta, intuitiva. Chamemos esta segunda linha argumentativa que

corre em paralelo dentro da Q1 de argumento secundário da Q1.

92

No original: There can be no doubt that before the publication of Berkeley's book on Vision, it had

generally been believed that the third dimension of space was immediately intuited, although, at present,

nearly all admit that it is known by inference. We had been contemplating the object since the very

creation of man, but this discovery was not made until we began to reason about it.

Page 142: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

127

argumento secundário da Q1

Premissa1: Todos os casos analisados (no segundo grupo) são relativos à

percepção.

Premissa2: Em todos os casos analisados, descobriu-se que o que era considerado

intuitivo era, na verdade, derivado.

Conclusão: Todos os casos relativos à percepção que foram analisados são casos

em que o conhecimento obtido é derivado (e não intuitivo).

Embora, a intenção de Peirce na Q1 seja apenas afirmar que todas estas descobertas,

estas distinções foram resultados de processos inferenciais (o que significa que não há

evidência que apoie a existência de uma faculdade intuitiva de distinguir intuições), há

uma resultado secundário: como todas as descobertas (distinções) relatadas nos dizem

que algo percebido como produto de uma intuição, na verdade, é produto de uma

inferência, então, se tomarmos como base apenas estas descobertas (que dizem respeito

a "casos perceptivos"), o podemos afirmar que só há evidências de que as percepções

são produto de inferência e não de intuição. Assim, temos (apenas) evidências de casos

relativos à percepção que eram considerados "conhecimento intuitivo" e passaram a ser

considerados "conhecimento derivado", ou seja, (inversamente) não temos evidência de

algum caso relativo à percepção que era considerado "conhecimento derivado" e passou

a ser considerado "conhecimento intuitivo". Esta tese secundária só se torna possível a

partir de uma mudança de estratégia que pode ser observada a partir do exemplo da

criança (CP 5.218 o quarto caso na numeração apresentada acima). A partir deste

exemplo, Peirce passa a lidar somente com casos relativos à percepção.

Esta mudança parece-nos plenamente justificável, pois poucos duvidariam que o

candidato mais natural ao posto de conhecimento intuitivo, direto seja o conhecimento

obtido pela percepção93

. Isto ocorre porque a percepção é candidata natural a ocupar a

posição de primeira premissa. A intuição, como vimos, é uma espécie de elemento

originário do raciocínio. Suponha que nos perguntemos como chegamos a determinada

conclusão c e que a resposta seja "a partir da premissa p1". Suponha, então, que

refaçamos esta pergunta para esta premissa p1 e a resposta seja a seguinte: "chegamos à

conclusão p1 a partir da premissa p2". Note que o que era premissa no argumento

anterior (p1) passa a ser conclusão neste novo argumento e repare também que tal busca

pode continuar, pois o próximo passo seria afirmar que "chegamos à conclusão p2 a

partir da premissa p3". Se quisermos evitar que fiquemos para sempre refazendo este

procedimento, devemos supor que haja uma premissa que seja a primeira de todas: a

premissa pn. O conhecimento proveniente dos sentidos se apresenta, então, como o

responsável por uma premissa que não é ela mesma uma conclusão. Os dados sensórios

93

Ainda que isto não queira dizer muito numa análise de argumentos e de fundamentação (de teses),

etimologicamente o termo intuição e o verbo correspondente "intuir" são originados na palavra latina

intueris cujo significado é ver, observar atentamente ou mesmo contemplar.

Page 143: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

128

constituem o ponto de partida absoluto, um "lugar" do qual se parte sem nunca se saber

exatamente como se chega.

De acordo com a análise elaborada por Gallie (1966, p. 67) a respeito dos artigos que

compõem a chamada série cognitiva (o que inclui o QFCM), Peirce não dedica muito

espaço à análise da crença de que o conhecimento que obtemos a partir da percepção

seria direto e intuitivo.

Nos seus artigos de 1868, Peirce trata de forma muito breve de (...) nosso

conhecimento dos mais simples "dados da consciência", ou "dados sensórios"

como muitos filósofos contemporâneos o descrevem. Em geral e estamos

preenchendo seu tratamento inicial94

desta questão à luz de seus escritos de

maturidade ele rejeita a tese de que temos conhecimento direto intuitivo

destes dados elementares com base na ideia de que toda vez que temos

conhecimento de algo temos o conhecimento disso como algo como tendo

esta ou aquela característica ou como estando nesta ou naquela relação. Em

outras palavras, para saber algo, devemos classificá-lo ou relacioná-lo.

(Gallie, 1966, p. 67)

Talvez o problema não seja especificamente o espaço que Peirce dedicou à questão, pois

são cinco parágrafos (do CP 5.219 até CP 5.224) inteiramente dedicados a fenômenos

(perceptivos) geralmente considerados, por excelência, conhecimento intuitivo, direto

(indubitável). Como veremos, nestes cinco parágrafos, Peirce apresenta quatro casos (da

suposta intuição do espaço tridimensional; da suposta intuição da textura de objetos; da

suposta intuição da altura de um som; da suposta intuição de superfícies [o último caso

é acompanhada de uma breve exposição da teoria peirceana do espaço e do tempo]) e

desenvolve uma análise e uma argumentação para cada um deles. Talvez o problema

seja o fato de Peirce não ter tratado deste ponto numa questão específica e ter optado

por colocá-lo dentro do espaço dedicado à análise e argumentação relativas à primeira

questão. Outros fenômenos também geralmente associados a conhecimentos intuitivos

como a autoconsciência e a introspecção foram tratados dentro de questões específicas

no QFCM (respectivamente a segunda e a quarta questões). Uma explicação plausível

seria o fato de Peirce, à época, ainda não ter desenvolvido uma teoria da percepção (que

julgasse) satisfatória 95

.

94

Nota de tradução - Gallie se refere ao tratamento que Peirce dá a esta questão neste artigos de 1868

(entre eles, o QCFM) 95

De acordo com Theresa Calvet de Magalhães (2006, p.67), o que podemos denominar de teoria

peirceana da percepção "é o resultado de um longo processo de desenvolvimento que se inicia, em 1868,

com uma teoria 'semiótica' do conhecimento. Tal teoria é introduzida em 1902 num livro cujo título

pretendido era Minute Logic. Este livro, como outros que Peirce tentou escrever, permaneceu incompleto

e seus trechos foram esparramados pelos Collected Papers (cf. CP 2.1 - 2.117; CP 2.119-2; e também cf.

CP 1.203-283). Entretanto há outros trechos dos Collected Papers em que Peirce volta a tratar desta

teoria: cf., por exemplo, CP 7.619-622 [1903]; CP 7.643 [1903]; CP 5.54 [1903]. Deve-se observar

também que esta teoria da percepção foi analisada por diversos estudiosos da obra peirceana. Dentre os

quais, podemos citar os seguintes: cf. Bernstein, 1964; Almender, 1970; Rosenthal, 1969; Hausman,

1990; Santaella, 2012.

Page 144: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

129

4.2 Análise (da segunda parte) da Q1: sobre a capacidade intuitiva

de distinguir intuições

Na análise dos casos sobre percepção que compõem o que, na seção anterior,

identificamos como segundo grupo de casos da Q1 (do CP 5.219 até CP 5.224), Peirce

começa pelo sentido dominante na espécie humana: a visão. Depois de fazer uma

breve referência à contribuição da teoria de Berkeley para derrubar a crença de que a

terceira dimensão do espaço seria imediatamente intuída (CP 5.219 [1868]), Peirce

passa a tratar do que denominamos de "caso do ponto cego da retina" (que é o sexto

caso na listagem apresentada na seção anterior). De acordo com argumento

apresentado, experimentos que provam haver um ponto-cego na retina apontam para a

impossibilidade de se distinguir, por mera contemplação, entre aquilo que é resultante

(de operações do) intelecto e o que é dado intuitivo. Segundo o relato de Peirce, ao

contrário do que se imagina, o experimento (descrito com algum grau de detalhamento

no QFCM) revela que o espaço não possui uma contínua forma oval, mas possui uma

forma de anel, i.e., há um vazio no meio (que seria o tal ponto cego). O preenchimento

desta parte vazia, afirma Peirce, deve ser obra do intelecto. A dificuldade que temos

de notar que o espaço conforme o enxergamos é fruto de uma inferência e a hesitação

que temos em fazer tais distinções são apresentadas, então, como evidências de que

não há capacidade intuitiva de se saber o que uma intuição ou não. Por este motivo,

Peirce termina a análise deste caso com a seguinte frase: o espaço que "vemos

(quando um de nossos olhos está fechado) não é, como imaginávamos, continuamente

ovulado, mas é um anel e o preenchimento deve ser obra do intelecto". Então, ele

arremata este caso com a seguinte pergunta retórica: "haveria exemplo mais forte da

impossibilidade de distinguir, por mera contemplação, resultados do intelecto de

informação intuitiva do que esse?" (CP 5.220 [1868])96

.

No parágrafo subsequente (CP 5.221 [1868]), Peirce considera um caso de dado

sensório tátil (o sétimo caso). Ele admite que uma pessoa é capaz de distinguir

texturas de tecidos obviamente graças a dados provenientes dos sentidos, entretanto,

esta distinção não pode ser feita de forma imediata (ou intuitiva). É necessário (para

fazer tal distinção) que a pessoa "mova os dedos sobre o tecido, o que demonstra que

ela é obrigada a comparar as sensações de um instante com as sensações de outro

instante" (CP 5.221 [1868])97

. A afirmação é que apenas "observando" um desses

dados sensórios de forma isolada não somos capazes de distinguir nada a respeito da

textura. Para que saibamos algo a respeito da textura do tecido em questão,

96

No original: (...) see (when one eye is closed) is not, as we had imagined, a continuous oval, but is a

ring, the filling up of which must be the work of the intellect. What more striking example could be

desired of the impossibility of distinguishing intellectual results from intuitional data, by mere

contemplation? 97

No original: "(...) he requires to move his fingers over the cloth, which shows that he is obliged to

compare the sensations of one instant with those of another".

Page 145: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

130

precisamos de mais de um dado sensório. A percepção da textura emerge, portanto, de

uma sequência de dados sensórios. Um dado apenas não é suficiente.

Deve-se notar que, ainda que Peirce não tenha sido explícito com relação a isto neste

sétimo caso, fica implícito que a descoberta de que a distinção de textura não é

intuitiva não foi obtida por "mera contemplação" da questão. Esta descoberta foi

resultado de inferência, o que contribui para sustentar a tese de que não temos a

capacidade intuitiva de distinguir intuições. Neste sétimo caso, ele deixou de fazer tal

observação. O problema é que, nos caso em que Peirce não finaliza a análise com esta

observação como fez no quinto e, sobretudo, no sexto caso, a aparência é que, nestas

situações, ele pretende sustentar apenas a tese de que a percepção (neste sétimo caso,

de texturas) não é intuitiva, enquanto sabemos que seu objetivo geral dentro desta

primeira questão não é esse. A solução de leitura que encontramos para esses "lapsos"

é que Peirce teria desenvolvido uma estratégia argumentativa na qual todos estes

argumentos (relativos ao segundo grupo de casos) teriam uma dupla função: apoiar

diretamente a segunda premissa do argumento geral da Q1 ("não há nenhum caso em

que tenha sido possível distinguir, sem recorrer a quaisquer inferências, se uma

cognição é produto de uma intuição ou de uma inferência") e apoiar indiretamente o

que denominamos argumento secundário da Q1 (cuja conclusão é "todos os casos

relativos à percepção que foram analisados são casos em que o conhecimento obtido é

derivado [e não intuitivo]"). O detalhe é que, quando não é feita aquela observação

(acima mencionada), a impressão é que o objetivo da análise elaborada por Peirce para

o caso em questão é sustentar o argumento secundário e não o argumento geral da Q1.

Notemos que, no próximo caso analisado, ele volta a fazer a tal observação (como foi

feito ao final da análise dos dois últimos casos).

No parágrafo seguinte (CP 5.222 [1868]), Peirce passa a examinar um caso relativo a

dados sensórios auditivos: a percepção de altura de determinado som. De acordo com

a exposição do autor, um som é formado por uma série de vibrações e estas produzem

impulsos que, por sua vez, são percebidos pelo ouvido humano. A percepção da altura

de um som depende, então, da velocidade com que certas impressões são levadas até a

mente. Como estas impressões devem existir antes do som propriamente dito (pois

este é justamente formado por aquelas), então, conclui Peirce, "a sensação de altura é

determinada por cognições anteriores" (CP 5.222 [1868]). Esta é mesma situação do

exemplo da textura, um dado (relativo às impressões) somente não é suficiente. A

diferença é que, neste oitavo caso, Peirce, logo após concluir que "a sensação de altura

[de um som] é determinada por cognições anteriores", faz a seguinte observação sobre

tal conclusão: "Não obstante, isto nunca poderia ter sido descoberto pela mera

contemplação daquele sentimento"(CP 5.222 [1868])98

.

O último e mais longo dos casos (CP 5.223 [1868]) tratados por Peirce nesta

(segunda) parte da primeira questão do QFCM é (como o quinto e sexto casos)

relativo à percepção espacial. A diferença é que neste caso o fenômeno que é objeto

98

No original: "(...) the sensation of pitch is determined by previous cognitions. Nevertheless, this would

never have been discovered by the mere contemplation of that feeling."

Page 146: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

131

da investigação é (ao menos inicialmente) a percepção do espaço bidimensional. O

argumento geral neste ponto do texto é construído da mesma forma que aquele

apresentado para casos anteriores (aquele da suposta intuição do espaço tridimensional

e aquele do ponto-cego da retina) desta seção sobre casos relativos à percepção dentro

da Q1. A ideia é afirmar que, quando percebemos uma superfície, entra em cena

alguma operação da mente, i.e., a superfície conforme percebida é resultante de um

processo inferencial e não de um conhecimento direto e intuitivo. Neste último caso,

Peirce apresenta elementos mais gerais do que chamou de teoria do espaço.

Nossa retina, de acordo com o relato de Peirce, é formada por "inúmeras agulhas

apontando na direção a luz e a distância entre cada uma é definitivamente maior do

que a distância do mínimo visível" (CP 5.223 [1868]). A ideia desta teoria peirceana

do espaço, como veremos com algum detalhamento a seguir, é afirmar que é a mente a

responsável por cobrir estes espaços e, como isto só poderia ser descoberto por um

processo de inferência, então este seria mais um ponto de apoio para a tese que nega a

existência de uma faculdade intuitiva de distinguir intuições. Neste ponto do texto,

Peirce pede ao leitor que suponha uma situação perceptiva normal em que estes

pontos nervosos (estas "agulhas") carreguem a sensação a respeito de uma pequena

superfície colorida. Nesta situação, o que deveríamos ver imediatamente é uma

coleção de pontos e não uma superfície contínua. O trecho em questão é o seguinte.

(...) todas as analogias do sistema nervoso são contrárias à suposição de que a

excitação de um único nervo possa produzir uma ideia tão complexa como a

de espaço, por menor que seja. Se a excitação de algum desses pontos

nervosos pode imediatamente veicular a impressão de espaço, então a

excitação de todos não pode fazê-lo também. Pois a excitação de cada um

produz alguma impressão (de acordo com as analogias do sistema nervoso),

então, a soma de todas estas impressões é uma condição necessária para

qualquer percepção produzida pela excitação de todos; ou, em outros termos,

a percepção produzida pela excitação de todos é determinada pelas

impressões mentais produzidas pela excitação de todo e cada um deles.

(CP 5.223 [1868])99

O argumento sobre a origem da ideia de espaço desenvolvido por Peirce neste trecho

pode ser explicitado da forma que se segue:

99

No original: "(...) all the analogies of the nervous system are against the supposition that the excitation

of a single nerve can produce an idea as complicated as that of a space, however small. If the excitation of

no one of these nerve points can immediately convey the impression of space, the excitation of all cannot

do so. For, the excitation of each produces some impression (according to the analogies of the nervous

system), hence, the sum of these impressions is a necessary condition of any perception produced by the

excitation of all; or, in other terms, a perception produced by the excitation of all is determined by the

mental impressions produced by the excitation of every one".

Page 147: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

132

Argumento sobre a origem da ideia de espaço

Premissa1: Se a excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão

complexa como a de espaço, então a excitação de todos os nervos também não

pode.

Premissa2: A excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão

complexa como a de espaço.

Conclusão: A excitação de todos os nervos não pode produzir uma ideia tão

complexa como a de espaço.

Que esta conclusão se segue destas premissas não é algo muito difícil de enxergar. A

dificuldade está em tentar perceber de onde Peirce tirou estas premissas. A segunda

delas foi retirada de observações empíricas, i.e., "de analogias do sistema nervoso". Já a

primeira delas é uma regra geral que afirma que uma propriedade100

que não é

encontrada nas impressões que resultam da excitação de cada um dos nervos

separadamente também não pode ser encontrada na percepção que resulta da excitação

de todos os nervos. Esta regra afirma que esta percepção é determinada por aquelas

impressões. Levando em conta que "a excitação de cada nervo produz alguma

impressão" (o que pode ser considerado uma terceira premissa deste argumento),

notemos que Peirce apresenta no texto QFCM duas versões disto que (em nossa análise)

chamamos de premissa1.

Primeira versão apresentada por Peirce da premissa1 do argumento sobre a

origem da ideia de espaço: A soma das impressões geradas pela excitação de cada

nervo é uma condição necessária para qualquer percepção produzida pela

excitação de todos os nervos.

Segunda versão apresentada por Peirce da premissa1 do argumento sobre a

origem da ideia de espaço: A percepção produzida pela excitação de todos os

nervos é determinada por impressões mentais produzidas pela excitação de cada

um desses nervos.

Podemos considerar esta regra como uma instância da seguinte regra (mais) geral: algo

que não está em cada uma das partes não pode estar no todo. A seguir, vamos apresentar

algumas versões que não estão no texto, porém são logicamente equivalentes àquelas

100

A propriedade em questão é a capacidade de produzir a ideia de espaço.

Page 148: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

133

apresentada por Peirce. Nestas versões fica explícito esta ideia de que uma propriedade

encontrada no todo deve ser encontrada também nas partes101

.

Versão1 da premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço: Se há

uma percepção produzida pela excitação de todos os nervos, então esta percepção

é condicionada por impressões produzidas pela excitação de cada um desses

nervos.

Versão2 da premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço: Não

pode haver nada na percepção produzida pela excitação de todos os nervos que já

não estivesse presente nas impressões produzidas por cada um dos nervos.

Versão original da premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço:

Se a excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão complexa

como a de espaço, então a excitação de todos os nervos também não pode.

Revisemos, então, a linha de raciocínio desenvolvida até este ponto. O argumento de

Peirce parte da seguinte proposição: a excitação de cada um dos nervos é condição para

a excitação do conjunto deles. Se cada um deles isoladamente não é capaz de "carregar"

de forma imediata a noção que temos de espaço, então o conjunto deles também não

poderá veiculá-la (de forma imediata). Esta noção de espaço deve ser proveniente de

outra fonte ou deve ser formada de outro modo e Peirce afirma ser possível explicá-la

sem recorrer à faculdade da intuição (i.e., sem recorrer à afirmação que ela ocorre de

forma imediata, direta), apenas recorrendo a faculdades cuja existência seja conhecida

(cf. CP 5.223 [1868]).

Óbvio está que este outro caminho que, para o filósofo, explica a existência da

percepção do espaço é afirmar que sabemos de tal existência a partir de uma inferência.

Para argumentar à favor da tese de que este conhecimento é obtido a partir de um

processo inferencial, Peirce leva em conta alguns fatos experimentais do que chamou de

fisio-psicologia. Estas proposições que se seguem servirão de "axiomas" para a

argumentação desenvolvida para sustentar a teoria peirceana do espaço defendida no

QFCM.

101

O que é afirmado nesta premissa está em desacordo com uma noção contemporânea proveniente

principalmente das propostas de teoria geral de sistemas: a de emergência. Diz-se que uma propriedade de

um sistema é emergente se e somente se ela não puder ser reduzida às partes do sistema e às propriedades

das partes do sistema. De um ponto de vista funcional, uma propriedade emergente de um sistema não

pode ter seu funcionamento explicado em termos do funcionamento das partes do sistema. De acordo com

o físico e filósofo da ciência Mario Bunge (2002, cf. verbete emergência e emergentismo), o fenômeno da

emergência dentro de um sistema é a admissão de que este sistema é dotado de certas propriedades que

faltam às suas componentes.

Page 149: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

134

Fato1 --> "A excitação de um nervo, por si mesma, não nos informa em que

extremidade ele está situado";

Fato2 --> "Uma única sensação não nos informa sobre quantos nervos ou

pontos nervosos são excitados";

Fato3 --> "Podemos distinguir entre as impressões produzidas por excitações

de pontos nervosos distintos";

Fato4 --> "as impressões distintas produzidas por excitações distintas de

pontos nervosos similares são similares".

(CP 5.223 [1868])102

Como pretende estabelecer que o conhecimento que temos a existência da percepção do

espaço é fruto de um processo (inferencial) e não uma apreensão imediata (intuitiva), o

primeiro movimento de Peirce logo após a apresentação dos quatro fatos é negar que

seja possível obter tal conhecimento a partir da captação de uma imagem momentânea

pela retina. Este conhecimento só se torna possível a partir de impressões relativas a

mais de um instante. Vejamos então a argumentação de Peirce.

Como numa imagem momentânea, não sabemos quantos nervos foram excitados

(fato2), a impressão formada pela excitação de um conjunto de nervos não pode ser

distinguida daquela que seria possivelmente produzida por um nervo somente.

Estabelecido este ponto no texto, Peirce passa sem dar mais explicações à seguinte

afirmação: "não é concebível que uma excitação momentânea de somente um nervo

devesse gerar a sensação de espaço" (5.223 [1868])103

. Como não há clareza neste

trecho da argumentação, podemos apenas supor qual seria a justificativa para esta

afirmação. Uma suposição é que Peirce tenha recorrido neste ponto do texto à uma

outro afirmação feita anteriormente neste mesmo parágrafo 223 e que seria logicamente

equivalente. Esta afirmação é a proposição que foi por nós chamada de premissa2 do

argumento sobre a origem da ideia de espaço: "a excitação de um único nervo não pode

produzir uma ideia tão complexa como a de espaço". Naquele ponto do texto, Peirce

pareceu estabelecer esta premissa2 com base em dados empíricos ("analogias do sistema

nervoso"). Podemos fazer uma segunda suposição que justificaria a afirmação de que

"não é concebível que uma excitação momentânea de somente um nervo devesse gerar a

sensação de espaço". Outra suposição (feita com base no argumento que Peirce

desenvolveu logo em seguida neste mesmo parágrafo do QFCM para imagem em

movimento) é que, no caso da imagem momentânea, não estão estabelecidas as

condições para se inferir a existência da percepção do espaço porque não há relação

entre diferentes impressões provenientes dos sentidos e não há relação (entre impressões

102

No original: 1. The excitation of a nerve does not of itself inform us where the extremity of it is

situated. If, by a surgical operation, certain nerves are displaced, our sensations from those nerves do not

inform us of the displacement; 2. A single sensation does not inform us how many nerves or nerve-points

are excited; 3. We can distinguish between the impressions produced by the excitations of different nerve-

points; 4. The differences of impressions produced by different excitations of similar nerve-points are

similar. 103

No original: It is not conceivable that the momentary excitation of a single nerve should give the

sensation of space.

Page 150: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

135

provenientes dos sentidos) porque há apenas uma impressão. No argumento

desenvolvido para a imagem em movimento, Peirce deixa um pouco mais claro que

entende que a sensação de espaço depende de algumas condições para surgir. Dentre

estas, está o reconhecimento de uma relação entre impressões dos sentidos. Só pode

haver sensação de espaço, quando se reconhece a relação entre uma impressão com

outra, pois, como veremos, a concepção de espaço só viria à mente com o intuito de

reduzir a complexidade gerada pelas relações entre diversas impressões. No caso da

imagem momentânea, não estão presentes estas condições que nos permitem reconhecer

uma relação entre impressões, pois, na imagem momentânea, devido à impossibilidade

referida no fato2 há apenas uma impressão dos sentidos. Obviamente só é possível

haver relação se há mais de uma impressão. Como, na imagem momentânea, não há

relação (entre impressões) e tal relação é algo que condiciona a sensação de espaço,

então "não é concebível que uma excitação momentânea de somente um nervo devesse

gerar a sensação de espaço" (ibid).

O próximo passo dado pelo filósofo no argumento desenvolvido neste trecho foi

generalizar o que foi afirmado a respeito da excitação de um nervo para um conjunto de

nervos. De acordo com esta generalização, nem mesmo a excitação momentânea de

vários nervos pode gerar a sensação de espaço. Embora também não esteja claro no

texto, podemos supor que Peirce tenha feito esta generalização com base (novamente)

no fato2. Ainda que a imagem momentânea seja formada a partir da excitação de

diversos nervos, não há como saber quantos nervos foram excitados (fato2), portanto, o

que temos é novamente apenas uma impressão. Neste caso, não há como reconhecer a

relação entre mais de uma impressão (pois não há mais de uma impressão). Assim,

como também na imagem momentânea formada a partir de vários nervos, não há

relação (entre impressões) e tal relação é algo que condiciona a sensação de espaço,

então não é concebível que uma excitação momentânea de vários nervos devesse gerar a

sensação de espaço. Destas considerações (explícitas e, acreditamos, implícitas [que

explicitamos nesta nossa análise]), Peirce conclui que "a excitação momentânea de

todos pontos nervosos da retina não pode mediatamente ou imediatamente produzir a

sensação de espaço" (CP 5.223 [1868])104

. A conclusão de todo este trecho é que

instantaneamente não pode haver conhecimento sobre a existência da percepção do

espaço.

Repare que o problema que impede que a sensação do espaço surja da captação de uma

imagem momentânea não é a constituição desta (se ela é formada a partir de um ou de

vários nervos ou pontos nervosos é algo que se torna indiferente graças ao fato2). O

problema é que ela é momentânea. Por estar presa a um instante somente, tal imagem

não consegue juntar as condições para permitir que a sensação de espaço surja. Peirce

afirma então que este argumento é válido para a formação de qualquer imagem estática

na retina e passa tratar de caso diverso: o de uma imagem em movimento (na retina).

Neste caso, de acordo com o que podemos entender do texto, a excitação que ocorre

104

No original: Therefore, the momentary excitation of all the nerve-points of the retina cannot,

immediately or mediately, produce the sensation of space.

Page 151: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

136

num instante afeta um ponto nervoso e num instante posterior afetará outro (cf. o trecho

transcrito a seguir). Então com base no fato4 (já enunciado), Peirce afirma que estas

excitações em diferentes pontos vão carregar impressões que serão consideradas

similares. Vejamos esta passagem de forma mais detida, pois esta conclusão de que

aquelas impressões sejam similares não nos parece poder ser derivada das ideias

anteriores por conta de alguns percalços no meio do argumento. Os principais

problemas deste argumento de Peirce são uma discordância entre termos utilizados nas

premissas e na conclusão e também a vagueza de alguns termos. Isto deve ser fruto,

como já comentamos, do fato de o autor ainda não ter desenvolvido sua teoria da

percepção, o que obviamente interfere na sua teoria do espaço. O trecho inteiro que

abriga este argumento dentro do parágrafo 223 é o que se segue:

Suponha, entretanto, que a imagem se mova na retina. A excitação particular

que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante posterior,

outro. Estes irão carregar impressões que são similares a partir do fato4 e

que, ainda assim, são distinguíveis a partir do fato3.

(CP 5.223 [1868])105

Para conforto do leitor, reescrevemos a seguir a proposição que consiste no fato4.

fato4 --> "as diferenças de impressões produzidas por excitações distintas de

pontos nervosos similares são similares"

Da forma como está escrito, inclusive no original (pois isto não nos parece um problema

de tradução), Peirce afirma que tais diferenças (de impressões) são similares, ou seja,

esta proposição afirma que o que são similares são as diferenças entre impressões (e não

as próprias impressões). O problema é que no trecho transcrito mais acima Peirce

pretende concluir que "as impressões são similares". Antes de tentarmos explicitar o

argumento peirceano, devemos prestar alguma atenção à conclusão: "estes irão carregar

impressões que são similares". Nesta proposição (que é a conclusão do argumento), o

autor utiliza o pronome demonstrativo "estes" (no original: these). O pronome "estes"

deve ter como referência os pontos nervosos dos quais trata a frase anterior. Esta talvez

seja a interpretação mais plausível para a referência deste pronome, pois é pouco

provável que o termo "estes" se reporte ao termo "imagem" ou ao termo "excitação"

(uma vez que estes termos estão no singular) e, por sua vez, faria pouco sentido que o

pronome em questão se reportasse ao termo "instante". Portanto, podemos retraduzir

esta proposição (conclusão do argumento) da seguinte forma: "as impressões

(carregadas pelos pontos nervosos referidos na proposição anterior) são similares".

Outra possibilidade de retradução (que nos reaproxima do texto original) é escrever da

105

No original: Suppose, however, that the image moves over the retina. Then the peculiar excitation

which at one instant affects one nerve-point, at a later instant will affect another. These will convey

impressions which are very similar by 4, and yet which are distinguishable by 3.

Page 152: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

137

seguinte forma: "estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares". E,

nesse último caso, ficaria subentendido que o pronome "estes" serve para afirmar que os

pontos nervosos de que trata a conclusão são exatamente os mesmos de que trata a

proposição anterior (que, aliás, será chamada a partir deste momento de premissa2 deste

argumento). Feitas estas observações com relação à conclusão, tentemos reconstruir o

argumento peirceano.

Argumento sobre a semelhança entre impressões

Premissa1 (fato4) --> "As diferenças de impressões produzidas por excitações

distintas de pontos nervosos similares são similares"

Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação

particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante

posterior, outro ponto nervoso.

Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares.

Ora, não é preciso muito tempo para notar que estas premissas (sozinhas e da forma que

estão) não sustentam a pretendida conclusão. A partir do fato4 (premisssa1) e daquela

suposição (premissa2) enunciada antes da conclusão não é possível derivar que os tais

pontos nervosos irão carregar impressões que são similares. Os principais problemas

parecem ser o uso de termos não definidos ou vagos nas duas premissas (como "pontos

nervosos similares" e "excitação particular") e o fato de se ter usado um termo na

conclusão que definitivamente não aparece nas premissas. Vejamos, em primeiro lugar,

este último problema mencionado. Na premissa1, não há afirmação alguma acerca de

impressões, mas apenas de "diferenças de impressões". Conforme já nos referimos, o

que são similares, de acordo com a premissa1, são as diferenças de impressões (e não as

próprias impressões). Para fins de análise, se optarmos por retraduzir esta premissa para

um condicional, teríamos a seguinte proposição: "se as diferenças de impressões forem

produzidas por excitações distintas de pontos nervosos similares, então estas diferenças

de impressões são similares". Note que garantido o antecedente ("se as diferenças de

impressões forem produzidas por excitações distintas de pontos nervosos similares"),

poderíamos concluir apenas o consequente: "estas diferenças de impressões são

similares". Este seria um raciocínio da forma que em lógica é denominada de Modus

Ponens. O problema ocorre quando Peirce pretende concluir que as próprias impressões

(carregadas pelos pontos nervosos referidos na proposição chamada de premissa2) são

similares. Como deve estar claro, não é sobre "isso" que trata a premissa. Para que a

conclusão possa se seguir algumas alterações têm que ser feitas. Ou alteramos a

premissa1 ou alteramos a conclusão do argumento. Optamos por mexer na premissa,

porque esta nos parece uma intervenção menos "invasiva" para o argumento. É esta que

servirá de ponto de apoio para Peirce sustentar a tese defendida em todo este parágrafo

Page 153: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

138

(de que a sensação do espaço é derivada e não intuitiva). A modificação que propomos é

retirar a expressão "as diferenças" para que o termo apresentado nesta primeira premissa

seja apenas "as impressões" (e não mais "as diferenças de impressões"). Nossa segunda

tentativa ficaria assim:

Reconstrução do argumento sobre a semelhança entre impressões (versão I)

Premissa1 (fato4) --> ""As (diferenças de ) impressões [distintas] produzidas por

excitações distintas de pontos nervosos similares são similares"

Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação

particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante

posterior, outro ponto nervoso.

Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares.

Esta primeira premissa modificada pode ser também posta em formato condicional: "se

impressões [distintas] forem produzidas por excitações distintas de pontos nervosos

similares, então estas impressões [distintas] são similares". O que a premissa1 afirma

que uma condição para que impressões seja similares é que elas sejam produzidas por

excitações distintas de pontos nervosos similares. Mesmo depois desta alteração

proposta, ainda temos o problema do termo "pontos nervosos similares" que ocorre na

primeira premissa. Este termo não foi definido no texto em questão106

. Parece-nos claro

que, ainda que não saibamos exatamente no que consistiria a tal similaridade entre

pontos nervosos, precisaríamos de uma terceira premissa que nos garantisse que as duas

premissas se referem aos mesmos pontos nervosos. Caso contrário não poderíamos

derivar a conclusão. Tal terceira premissa (que Peirce pode ter deixado simplesmente

implícita) afirmaria que os pontos nervosos de que trata a segunda premissa são

similares ("seja lá o que isso queira dizer"). Como estes pontos são similares, então eles

cumprem a condição imposta na primeira premissa e, por isso, as impressões que eles

carregam são similares. Mais uma tentativa de reconstrução:

Reconstrução do argumento sobre a semelhança entre impressões (versão II)

Premissa1 (fato4) --> "As (diferenças de ) impressões [distintas] produzidas por

excitações distintas de pontos nervosos similares são similares"

Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação

particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante

posterior, outro ponto nervoso.

106

Em 1877, quando volta a defender esta teoria do espaço (nestes mesmos moldes), Peirce não se refere

a esta similaridade entre pontos nervosos (cf. CP 6.416).

Page 154: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

139

Premissa3 --> Suponha que estes pontos nervosos sejam similares.

Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são similares.

Com todas estas alterações e observações, é possível que a conclusão se siga das

premissas (assim) apresentadas. Há ainda outro termo usado que traz alguma vagueza

para o argumento: "excitação particular"107

(que ocorre na segunda premissa). Porém,

acreditarmos que é desnecessário nos determos ainda mais sobre este argumento

específico, pois acreditamos que a conclusão já pode ser estabelecida a partir do que

temos. Levemos então adiante a análise do parágrafo 223.

Todo este argumento nos serviu simplesmente para concluir que é possível, no caso da

imagem em movimento, considerar similares duas (ou mais) impressões (carregadas

pelos pontos nervosos similares afetados pela tal excitação particular ou por excitações

particulares). Deve-se atentar para o seguinte detalhe: é justamente esta similaridade que

se apresenta como uma das condições para o surgimento da sensação de espaço. A outra

condição deve ser encontrada (de acordo com a exposição de Peirce), observando-se o

que foi chamado de fato3. Vejamo-la. Se a partir do fato4, pode-se estabelecer que duas

impressões podem ser consideradas similares, por sua vez, a partir do fato3, pode-se

estabelecer que (embora sejam comparáveis e similares) estas duas impressões não se

confundem. Desta vez, não acreditamos haver problemas. A passagem para a conclusão

se dá de forma mais direta. Este argumento pode ser escrito de forma esquemática.

Argumento sobre a distinção de impressões

Premissa1 (fato3) --> "Podemos distinguir entre as impressões produzidas por

excitações de pontos nervosos distintos".

Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação

particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante

posterior, outro ponto nervoso.

Conclusão --> Estes irão carregar impressões que são distinguíveis.

Para facilitar (nossa tarefa de explicitação), podemos aplicar a este argumento as

mesmas observações que fizemos na análise do argumento anterior (com relação à

conclusão). E, com o intuito de explicitar ainda mais este argumento, podemos fazer

uma suposição que entraria na posição de terceira premissa da seguinte maneira:

107

A expressão utilizada no texto original é "peculiar excitation". Se traduzíssemos a expressão por

"excitação peculiar" é provável que o trecho ficasse ainda mais vago.

Page 155: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

140

Reconstrução do argumento sobre a distinção de impressões

Premissa1 (fato3) --> "Podemos distinguir entre as impressões produzidas por

excitações de pontos nervosos distintos".

Premissa2 --> Suponha que uma imagem se mova na retina. A excitação

particular que, num instante, afeta um ponto nervoso afetará, num instante

posterior, outro ponto nervoso.

( Premissa3 --> Suponha que estes pontos nervosos sejam distintos. )

Conclusão --> Estes pontos nervosos irão carregar impressões que são

distinguíveis.

Nota-se que este segundo argumento (para estabelecer a segunda condição acima

referida) está em melhores condições do aquele argumento (sobre a semelhança entre

impressões) que analisamos antes. Quando estamos diante de duas impressões geradas

pela excitação de pontos distintos da retina, ainda que estas impressões sejam muito

similares, somos capazes de distingui-las. Segundo a exposição de Peirce, estariam

presentes então "as condições para o reconhecimento da relação entre estas impressões"

e, assim, "como há número muito grande de pontos nervosos afetados por um número

muito grande de excitações sucessivas, as relações entre as impressões resultantes serão

quase inconcebivelmente complicadas" (CP 5.223[1868]). O próximo passo do

argumento peirceano é justamente afirmar que a concepção de extensão vem à mente

para lidar com a complexidade gerada por esta miríade de relações entre impressões.

Antes de analisarmos este passo, revisemos o argumento que nos trouxe até este ponto.

Peirce, neste trecho analisado do parágrafo 223, começa por apresentar 4 proposições

relativas a 4 fatos do que chamou de fisio-psicologia. Então, ele utiliza dois desses fatos

(a terceira e a quarta proposições) para inferir que, numa imagem em movimento,

podemos distinguir impressões e também podemos considerá-las similares. Estas são as

condições para que haja relação entre as impressões. Estabelecido este ponto, Peirce

argumenta que, como há (condições para que haja) relações, então se cria um quadro de

complexidade, uma vez que há um número muito grande de pontos nervosos afetados

por um número muito grande de excitações sucessivas. O espaço surge então por meio

do conceito de extensão, que, por sua vez, é uma concepção que a mente introduz com o

intuito de reduzir a complexidade com qual ela lida no ato da percepção.

É uma conhecida lei da mente que, quando são apresentados fenômenos de

extrema complexidade, que seriam reduzidos à ordem ou a uma simplicidade

mediada pela aplicação de uma certa concepção, esta concepção, cedo ou

tarde, surge em aplicação daqueles fenômenos. No caso sob consideração, a

concepção de extensão reduziria os fenômenos à unidade e, dessa forma, sua

gênese seria totalmente explicada. Resta apenas explicar por qual motivo

cognições anteriores que a determinam não são apreendidas de modo tão

claro. Com relação a esta explicação, vou me referir a um artigo a respeito de

uma nova lista de categorias, na seção 5, apenas acrescentando que da mesma

Page 156: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

141

forma que somos capazes de reconhecer nossos amigos por certas aparências,

embora não possamos dizer o que são exatamente estas aparências e embora

estejamos inconscientes dos processos de raciocínios [envolvidos], assim,

quando o raciocínio for fácil e natural para nós, por mais complexas que

sejam suas premissas, elas afundam na insignificância e esquecimento de

forma proporcional à satisfatoriedade da teoria nelas baseada.

(CP 5.223 [1868])108

Antes de continuarmos a análise deste longuíssimo parágrafo da Q1, é necessário que se

faça uma observação de caráter geral. Esta lei da mente à qual se refere Peirce neste

trecho transcrito é de grande relevância para entendermos o problema filosófico

enfrentado no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (On a New List of Categories,

CP 1.545 - 59). É justamente neste artigo, publicado um ano antes do QFCM, que

Peirce introduz o conceito de interpretante. Este conceito, como já antecipamos na

introdução, é o responsável dentro do quadro geral da semiótica peirceana pela ideia de

fluxo (e pelo que viemos chamando no presente texto de concepção de "representação

como fluxo"). Logo que terminarmos a análise do QFCM (o que, pelo "andar da

carruagem", deve levar ainda uma centena de páginas), passaremos para um estudo

deste artigo.

Toda esta argumentação serviu para que Peirce chegasse ao ponto de estabelecer que

não há necessidade de se levantar a hipótese de que a existência da percepção do espaço

é uma impressão imediata (intuitiva) porque pode-se explicá-la como sendo o resultado

de uma inferência. Este processo inferencial tem como ponto de chegada a concepção

de extensão (o que nos leva à percepção do espaço). Sabemos que enxergamos o espaço

(não porque o "vemos" diretamente, mas) porque inferimos a existência da percepção

dele da concepção de extensão (introduzida pela menta para lidar com a complexidade

de dados provenientes dos sentidos). Porém, a pergunta não respondida no QFCM é

aquela a respeito das origens de tal inferência. Por que não temos consciência dos

passos anteriores deste processo inferencial? A resposta oferecida neste artigo por

Peirce é que, quando o raciocínio é fácil e natural para a mente a tendência é que as

premissas (por mais complicadas que sejam) "caiam no esquecimento". Quanto maior

for a confiança na teoria que nestas premissas se baseiam, "maior" será este

"esquecimento". De acordo com Peirce, a análise dos fatos o levou a enunciar não só

esta teoria do espaço, mas também uma teoria acerca do tempo.

108

No original:" Now, it is a known law of mind, that when phenomena of an extreme complexity are

presented, which yet would be reduced to order or mediate simplicity by the application of a certain

conception, that conception sooner or later arises in application to those phenomena. In the case under

consideration, the conception of extension would reduce the phenomena to unity, and, therefore, its

genesis is fully accounted for. It remains only to explain why the previous cognitions which determine it

are not more clearly apprehended. For this explanation, I shall refer to a paper upon a new list of

categories, Section 5, merely adding that just as we are able to recognize our friends by certain

appearances, although we cannot possibly say what those appearances are and are quite unconscious of

any process of reasoning, so in any case when the reasoning is easy and natural to us, however complex

may be the premisses, they sink into insignificance and oblivion proportionately to the satisfactoriness of

the theory based upon them".

Page 157: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

142

Esta teoria do espaço é confirmado pela circunstância de que uma teoria

exatamente similar é exigida imperativamente pelos fatos com referência ao

tempo. Que o curso do tempo devesse ser sentido imediatamente é

obviamente impossível, pois, neste caso, deveria haver um elemento deste

sentimento em cada instante. Porém, em um instante, não há duração e,

assim, não há sentimento imediato de duração. Por este motivo, nenhum

desses sentimentos elementares é um sentimento imediato de duração; e,

assim, a soma de todos não pode ser. Por outro lado, as impressões de

qualquer momento são muito complexas contendo todas as imagens

(elementos de imagens) do sentido e memória cuja complexidade é redutível

à simplicidade mediada graças à concepção de tempo.

(CP 5.223 [1868])109

Com relação a esta teoria do tempo exposta de forma muito breve ao final do parágrafo

223, não vamos desenvolver uma análise detalhada como foi feito para a teoria do

espaço, uma vez que as duas "correm em paralelo". Do ponto de vista formal, estas duas

teorias têm a mesma estrutura. Limitaremo-nos a apresentar de forma esquemática o

argumento geral desta teoria do tempo e traçar algumas observações com intuito

analítico simplesmente (i.e., sem fazer comentários a respeito da fundamentação da

teoria em questão [o que foi feito para a teoria do espaço]). Para que facilitemos o

entendimento da linha de raciocínio desenvolvida neste trecho, dividiremos a

argumentação geral (da teoria do tempo) em 4 argumentos menores.

Primeiro argumento - teoria do tempo exposta no QFCM

Premissa1: Se o tempo pudesse ser sentido imediatamente, então deveria haver,

em cada instante, um elemento deste sentimento de passagem do tempo.

Premissa2: Se houvesse, em cada instante, um elemento deste sentimento de

passagem do tempo, então deveria haver, em cada um destes instantes, um

sentimento de duração.

Premissa3: Se houvesse, em cada um destes instantes, um sentimento de duração,

então deveria haver duração num instante.

Premissa4: Não há duração num instante.

Conclusão: O tempo não pode ser sentido imediatamente (e também não há, em

um instante, sentido de duração).

109

No original: "This theory of space is confirmed by the circumstance that an exactly similar theory is

imperatively demanded by the facts in reference to time. That the course of time should be immediately

felt is obviously impossible. For, in that case, there must be an element of this feeling at each instant. But

in an instant there is no duration and hence no immediate feeling of duration. Hence, no one of these

elementary feelings is an immediate feeling of duration; and, hence the sum of all is not. On the other

hand, the impressions of any moment are very complicated containing all the images (or the elements of

the images) of sense and memory, which complexity is reducible to mediate simplicity by means of the

conception of time".

Page 158: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

143

Deve-se notar que ao lado da conclusão principal "o tempo não pode ser sentido

imediatamente", colocamos uma conclusão intermediária "não há, em um instante,

sentido de duração". Esta conclusão intermediária pode ser obtida de maneira muito

simples: apenas devemos negar o consequente da premissa3 utilizando-nos da

premissa4; dessa forma chegamos à negação do antecedente da premissa3, que é "não

há, em um instante, sentido de duração". É justamente com esta proposição (a conclusão

intermediária) que começamos o segundo argumento. Repare que esta proposição é o

antecedente do condicional que consiste na primeira premissa do segundo argumento e

também é obviamente a segunda premissa deste mesmo argumento.

Segundo argumento - teoria do tempo exposta no QFCM

Premissa1 Se não há, em um instante, sentido de duração, então nenhum dos

sentimentos elementares é um sentimento imediato de duração.

Premissa2: não há, em um instante, sentido de duração

Conclusão: Nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de

duração.

Estabelecida a conclusão de que "nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento

imediato de duração", o próximo passo é afirmar que "a soma de todos os sentimentos

elementares também não pode ser um sentimento imediato de duração" (esta

proposição, por sua vez, é a conclusão do terceiro argumento). Porém, para construir

este terceiro argumento (que apresentamos a seguir) e dar continuidade ao raciocínio

desenvolvido neste trecho do parágrafo 223, Peirce tem que recorrer a regra geral de

que "se nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de duração,

então a soma de todos também não pode ser (um sentimento imediato de duração)". Esta

regra geral é o que chamamos de premissa1.

Terceiro argumento - teoria do tempo exposta no QFCM

Premissa1: Se nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de

duração, então a soma de todos também não pode ser (um sentimento imediato de

duração).

Premissa2: Nenhum dos sentimentos elementares é um sentimento imediato de

duração.

Conclusão: A soma de todos os sentimentos elementares também não pode ser um

sentimento imediato de duração.

Page 159: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

144

Deve-se notar que esta regra geral (premissa1) deste argumento é similar à seguinte

regra geral que foi utilizada neste mesmo parágrafo, mas na teoria do espaço: "se a

excitação de um único nervo não pode produzir uma ideia tão complexa como a de

espaço, então a excitação de todos os nervos também não pode" (esta proposição foi a

premissa1 do argumento sobre a origem da ideia de espaço).

Então com estes três argumentos, Peirce já pode sustentar que não pode haver um

sentimento imediato de duração. O passo seguinte é afirmar que há complexidade nas

impressões de cada momento, pois, de acordo com o declarado paralelo com a linha de

raciocínio apresentada para defender a teoria do espaço, é a partir da complexidade

(multiplicidade ou, ainda, diversidade) dada nas impressões de um momento que se

apresentam as condições para a introdução da concepção de tempo. O argumento para

sustentar que haja tal complexidade parece ser o seguinte:

Quarto argumento - teoria do tempo exposta no QFCM

Premissa1: As impressões de qualquer momento contêm todas as imagens (ou os

elementos das imagens) dos sentidos e da memória.

Conclusão: As impressões de qualquer momento são muito complexas.

De forma similar ao que foi feito na teoria do espaço (com relação à concepção de

extensão), nesta breve apresentação de sua teoria do tempo, ao chegar à conclusão de

que "as impressões de qualquer momento são muito complexas", Peirce recorre à (muito

conhecida) lei da mente (acima referida) e afirma que a concepção de tempo vem à luz

justamente para reduzir tal complexidade.

Muito importante é notar o papel condicionante da multiplicidade ou diversidade de

elementos no surgimento da concepção tanto de espaço como de tempo. É a

multiplicidade ou diversidade que vem com os dados sensórios que é apresentada como

ocasião de entrada destas concepções. Para Peirce, só podemos encontrar as condições

que permitem a introdução do conceito de extensão (e, portanto, de espaço) na

complexidade dada, por exemplo, na imagem em movimento (e não na “simplicidade”

dada na imagem instantânea) e só podemos encontrar as condições que permitem a

introdução do conceito de tempo na complexidade dada nas diversas imagens (ou

elementos de imagens) dos sentidos e da memória contidas em qualquer momento.

Espaço e tempo são concepções introduzidas para reduzir a complexidade gerada pela

relação entre diversos elementos. Tem que haver uma multiplicidade para que haja tais

concepções. Este é apenas outro modo de afirmar que tanto espaço como tempo são

concepções determinadas por cognição anteriores. Tornamo-nos conscientes de que

percebemos algo no espaço ou no tempo na dependência de cognições anteriores.

Page 160: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

145

Repare que, de acordo com as teorias expostas, nunca chegamos a estas concepções de

forma direta, intuitiva. Sempre recorremos a cognições anteriores. Mas, o que são estas

cognições anteriores? No caso da concepção de espaço, seriam cognições provenientes

de impressões geradas por excitações (anteriores) em diferentes pontos nervosos da

retina. No caso da concepção de tempo, seriam cognições provenientes de imagens (ou

elementos de imagens) contidas nas impressões (de um momento). A tese de Peirce é

que tanto o espaço como o tempo são concepções que surgem em nossa mente como

resultado de uma cadeia de cognições, de uma inferência. Entretanto, este processo

inferencial não é consciente. Não temos acesso aos primeiros passos de tal processo110

.

Em linhas gerais, este é o mesmo argumento utilizado nos demais casos de que Peirce

tratou nesta segunda parte da Q1. Para perceber a textura de um tecido, é necessário, de

acordo com as explanações do autor, que a pessoa "mova os dedos sobre o tecido, o que

demonstra que ela é obrigada a comparar as sensações de um instante com as sensações

de outro instante" (CP 5.221 [1868]). A percepção de uma textura é, então, determinada

por cognições anteriores do mesmo tecido. Da mesma forma que percepção da textura

depende da relação entre elementos (sensações, no caso), a percepção da altura do som

depende da relação entre as impressões dos impulsos (que formam a onda sonora). Não

poderíamos chegar à concepção de altura com apenas uma impressão relativa a um

impulso. Assim, também "a sensação de altura é determinada por cognições anteriores".

Não se pode chegar à percepção do espaço, do tempo, da textura, da altura (de um som)

sem se recorrer a cognições anteriores. Não se pode, então, perceber de forma direta.

Nem mesmo nosso acesso ao que percebemos é direto. Para saber o que vemos

recorremos ao que não "vemos" (ao que já "vimos"). De acordo com a leitura que

desenvolvemos, com estes argumentos Peirce desenvolve uma dupla linha

argumentativa: uma delas para estabelecer, a partir do que chamamos de argumento

geral da Q1, uma resposta (negativa) à primeira questão (se há ou não alguma

capacidade intuitiva de distinguir intuições) e a segunda delas para estabelecer, a partir

do que chamamos de argumento secundário da Q1, uma relevante tese que será

utilizada em toda a série cognitiva (a saber, aquela segundo a qual até mesmo as

percepções são produtos de inferência e não de intuições). Portanto, ainda que este

último grupo de argumentos (do CP 5.219 até CP 5.224) funcione como apoio ao

argumento cuja conclusão é que "todos os casos relativos à percepção que foram

analisados são casos em que o conhecimento obtido é derivado (e não intuitivo)",

acreditamos que a função principal de todos estes argumentos é sustentar a seguinte

tese: "não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem recorrer a

quaisquer inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma

inferência". Esta tese é muito importante para responder (negativamente) a primeira

questão, porque ela constitui a segunda premissa do argumento geral da Q1111

.

110

A teoria peirceana do espaço e do tempo é aquela apresentada dentro dos limites do QFCM. Em

momento nenhum de nossas análises e da reconstrução dos argumentos de Peirce recorremos a outras

formulações (tardias e mais maduras) destas ideias. Para uma apresentação mais geral da teoria do espaço

e do tempo, cf. Goudge, 1969 [1950], p. 239-47. 111

Recordemos, nesta nota-de-roda-pé, o argumento geral da Q1:

Page 161: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

146

Esta tese foi obtida a partir de uma coleção de casos particulares (i.e., todos aqueles

analisados por Peirce na Q1). Portanto, a segunda premissa do argumento geral da Q1 é

sustentada por uma indução. Por este motivo, na segunda "leva de casos" (do CP 5.219

até CP 5.224) para análise, Peirce tentou escolher, ao menos, um caso para cada tipo de

dado sensório (que julgasse mais relevante para atividade cognitiva): visual, auditivo e

tátil. Óbvio está que o modo como cada caso deste segundo grupo foi analisado e a

própria escolha dos casos (pois todos eles dizem respeito a conhecimentos supostamente

obtidos diretamente a partir da percepção) também contribui para o que chamamos de

argumento secundário da Q1112

e, assim, tem um papel que transcende a primeira

questão.

Assim terminamos a análise da primeira das sete questões colocadas por Peirce no

QFCM. A primeira questão era justamente se, diante de uma cognição, por um ato de

simples contemplação, poderíamos saber se ela é uma intuição (ou uma cognição

derivada). A pergunta desta Q1 é se a nossa capacidade de distinguir intuições é ela

mesma intuitiva, i.e., certeira, absoluta. A resposta é negativa. Não (há evidência de

que) temos a capacidade intuitiva de distinguir intuições.

Premissa1: Se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições, então deveria haver alguma

evidência dessa capacidade, ou seja, deveria haver ao menos um caso em que tenha sido possível, sem

recorrer a quaisquer inferências, distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma

inferência.

Premissa2: Não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem recorrer a quaisquer

inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma inferência.

Conclusão: Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições.

112

Aproveitemos também esta nota-de-roda-pé para recordarmos o argumento secundário da Q1:

Premissa1: Todos os casos analisados são relativos à percepção.

Premissa2: Em todos os casos analisados, descobriu-se que o que era considerado intuitivo era, na

verdade, derivado.

Conclusão: Todos os casos relativos à percepção que foram analisados são casos em que o

conhecimento obtido é derivado (e não intuitivo).

Page 162: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

147

CAPÍTULO 5

Análise da segunda e da terceira questões do

texto "Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"

Depois de estabelecida, com os argumentos apresentados na Q1, a negação da

capacidade intuitiva de distinguir intuições, Peirce lança sombra sobre as teorias

epistemológicas que recorrem ao conceito de intuição (num papel fundacional) para

explicar as faculdades cognitivas. Assim, está aberto o caminho para a construção de

uma teoria inferencial da cognição. As explicações e os conceitos mobilizados por tal

teoria passam ao largo do conceito de intuição e de fundação (ou ponto originário do

processo de conhecimento). Os dois primeiros passos para a construção desta teoria

(alternativa, livre do conceito de intuição) que Peirce pretende erigir no QFCM é provar

que ela pode explicar a capacidade que o homem possui de saber de sua própria

existência (uma capacidade à qual geralmente se dá o nome de autoconsciência) e

também pode explicar a capacidade humana de distinguir entre os diversos tipos de

estados mentais recorrendo-se apenas à inferência (sem se utilizar, portanto, do conceito

de intuição no papel de ponto originário). Estes dois importantes passos, que serão (por

nós) analisados nas duas seções das quais é composta este quinto capítulo, são dados

por Peirce na Q2 e na Q3 dentro do QFCM.

Page 163: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

148

5.1 Análise da Q2: sobre a autoconsciência intuitiva

Questão 2: Se temos uma autoconsciência intuitiva.

Nesta segunda questão, Peirce volta sua atenção para aquele pode ser considerado um

caso privilegiado de cognição: a autoconsciência. Parece não haver sombras de dúvidas

que, dentre vários fatos dos quais podemos ter consciência ao longo da vida, a

consciência de que existimos ou a chamada autoconsciência seja o conhecimento acerca

do qual mais se possa ter certeza (ou, visto de outro ângulo, sobre o qual não poderia

pairar a menor dúvida). Se imaginarmos uma escala de certeza sobre tudo aquilo que

pensamos (ou podemos pensar), talvez o pensamento de que aquele que está pensando

existe seja o pensamento que atinge o grau máximo em tal escala. Em resumo, a

autoconsciência é um forte candidato ao posto de conhecimento certo, indubitável,

intuitivo.

De forma similar ao que foi feito na Q1, o primeiro parágrafo da Q2 é dedicado

inteiramente à definição do principal conceito desta seção: a autoconsciência. De saída,

Peirce trata de distinguir o que ele entende por autoconsciência no QFCM não só do

conceito kantiano de "apercepção pura"113

e de sentido interno, mas também da noção

de consciência em geral. A autoconsciência, conforme definida no QFCM, é um

conhecimento que tem como objeto a existência de um ego (individual, empírico,

"situado"). A autoconsciência seria, então, o conhecimento que temos de nossa própria

existência individual, i.e., como um "eu privado". A pergunta que deve ser feita é a

113

O termo "apercepção" que parece ter sido definido de forma mais clara pela primeira vez por

Leibniz, embora já estivesse presente em Descartes (cf. Mora, 2000, tomo I, p. 159) significa

"consciência que acompanha a percepção". Este termo designa uma espécie de consciência de que há

"algo" que percebe (além do objeto da percepção). Em Kant, encontra-se uma distinção entre apercepção

empírica e apercepção pura (cf. KrV, B 132). Esta consciência que acompanha cada percepção particular

e que torna possível distinguir aquele que percebe do objeto percebido, na terminologia kantiana, seria a

apercepção empírica ou sentido interno (KrV, A107). Esta é a consciência de si mesmo dada

empiricamente (por isso de forma sempre mutável) num "rio de fenômenos internos" (ibid). Já a

apercepção pura é definida justamente como uma condição da consciência em geral, é a condição que

precede toda experiência e torna esta possível (ibid). Enquanto a apercepção empírica é a consciência de

si (o "eu penso") que acompanha cada uma minhas representações (em particular), a apercepção pura é a

consciência de si (o "eu penso") que acompanha todas as representações compondo-as umas com as

outras e me tornando consciente de sua síntese (KrV, A107). Com notável atenção ao que já foi chamado

(por alguns poetas no século XX) de concreção da linguagem, Peirce lança mão de expedientes

tipográficos para esclarecer esta distinção kantiana e, dessa forma, elucidar o que entende por

autoconsciência no QFCM. De acordo com Peirce, "apercepção pura é a auto-asserção dO ego. A

autoconsciência de que trato aqui [no QFCM] é o reconhecimento de meu eu privado. Eu sei que EU (e

não meramente O eu ) existo" (CP 5.225 [1868])*. Como ficará evidente, nesta segunda questão, o uso

que faz Peirce do termo autoconsciência está muito mais próximo do que Kant, na Crítica da Razão Pura,

entende por apercepção empírica.

* No original: "Pure apperception is the self-assertion of THE ego; the self-consciousness here meant is

the recognition of my private self. I know that I (not merely the I) exist".

Page 164: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

149

seguinte: como obtemos este conhecimento (esta autoconsciência)? Mais uma vez,

estamos diante de uma bifurcação. Ou afirmamos que a autoconsciência é um

conhecimento intuitivo (i.e., obtido de forma direta ou imediata) ou afirmamos que a

autoconsciência é um conhecimento derivado, determinado por cognições anteriores

(i.e., obtido por meio de inferência). Como foi feito na análise da Q1, chamemos estas

alternativas respectivamente de caso I e caso II.

Desta vez, comecemos pelo caso I. Na verdade, comecemos pela análise do

posicionamento que trata este caso I (a autoconsciência intuitiva) como uma proposição

auto-evidente, como algo que está fora de questionamento. Esta é alternativa mais

"natural", mais próxima ao senso comum. Parece-nos auto-evidente que o conhecimento

que temos de nossa própria existência é uma cognição originária, intuitiva. Entretanto, e

o argumento peirceano é construído nesta linha, para que seja auto-evidente que temos a

faculdade intuitiva especial que gera a autoconsciência, seria necessário que tivéssemos

uma capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de cognições determinadas (por

outras cognições). Só podemos afirmar que é, para nós, evidente que determinado tipo

de objeto possua a propriedade A se pressupormos que nós temos a capacidade de

identificar A (e distingui-lo de B, C, etc.). O problema é justamente a ausência desta

faculdade, o que acabou de ser demonstrado na primeira questão. Pode até ser que

tenhamos autoconsciência intuitiva, entretanto o que Peirce mostra já no segundo

parágrafo da Q2 (transcrito a seguir) é que isto não pode ser (de forma alguma)

considerado auto-evidente.

A autoconsciência de que trato aqui [no QFCM] é o reconhecimento de meu

eu privado. Eu sei que EU (...) existo. A questão é como eu sei isto; por uma

capacidade intuitiva especial ou isto é determinado por cognições prévias?

Ora, não é auto-evidente que tenhamos tal capacidade intuitiva, pois acabou

de ser mostrado que não temos nenhuma capacidade intuitiva de distinguir

entre uma intuição e uma cognição determinada por outras [cognições].

Portanto, a existência ou não existência dessa capacidade deve ser

estabelecida por evidência (...).

(CP 5.225 - 226 [1868])114

Repare que o ponto defendido neste trecho transcrito é que, se afirmarmos que a

autoconsciência é evidentemente um conhecimento intuitivo, então está pressuposto que

temos alguma capacidade intuitiva para distinguir intuições de cognições determinadas

(caso contrário, não poderíamos garantir ser este conhecimento uma intuição de forma

evidente). Porém, não podemos contar com este pressuposto em Q2, pois acabamos de

demonstrar em Q1 que não há evidência que (sequer) sugira que haja uma faculdade

intuitiva de distinguir intuições.

114

No original: "the self-consciousness here meant is the recognition of my private self. I know that I (...)

exist. The question is, how do I know it; by a special intuitive faculty, or is it determined by previous

cognitions? / Now, it is not self-evident that we have such an intuitive faculty, for it has just been shown

that we have no intuitive power of distinguishing an intuition from a cognition determined by others.

Therefore, the existence or non-existence of this power is to be determined upon evidence (...)".

Page 165: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

150

Argumento sobre a auto-evidência do caráter intuitivo da autoconsciência

Premissa1: Se fosse auto-evidente que a autoconsciência é um conhecimento

intuitivo, então teríamos a capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de

cognições determinadas (por outras cognições).

Premissa 2 (estabelecida em Q1): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir

uma intuição de cognições determinadas (por outras cognições).

Conclusão: Não é auto-evidente que a autoconsciência seja um conhecimento

intuitivo.

Dentro da exposição da Q2, o resultado desta argumentação é que, como não é auto-

evidente, devemos procurar por evidências que sejam favoráveis a tal autoconsciência

intuitiva. Entretanto, a estratégia peirceana não é procurar estas evidências favoráveis a

autoconsciência intuitiva e argumentar contra a existência deste tipo de conhecimento

intuitivo. No lugar disso, como já estabeleceu na Q1 o problema envolvido em qualquer

capacidade que se considera intuitiva, Peirce passa a enunciar evidências favoráveis à

tese de que a autoconsciência é inferencial ou derivada (i.e., não-intuitiva) justamente

com o intuito de demonstrar que, como é possível explicar este fenômeno (o surgimento

da autoconsciência) a partir de faculdades das quais não resta dúvida que o homem

possua (como a capacidade de fazer inferências), não seria necessário recorrer a

faculdades das quais não se tem certeza se o homem possui ou não (como a intuição).

Antes de passarmos a tratar do modo como Peirce, a partir do terceiro parágrafo da Q2

(CP 5.227 [1868]), construiu seu o argumento contrário à tese de que a autoconsciência

é intuitiva (ou, de outra perspectiva, argumento favorável à tese de que a

autoconsciência é derivada ou inferencial), deve-se observar que apenas no penúltimo

parágrafo da Q2 (CP 5.237 [1868]), ele considerou o argumento adversário (i.e., aquele

que pretende sustentar tese de que a autoconsciência é intuitiva). Portanto na Q2, Peirce,

em primeiro lugar, apresenta o seu argumento (que responde negativamente a segunda

questão) e, em segundo lugar, apresenta uma crítica ao argumento adversário (que

responde positivamente a segunda questão). Em nossas análises, vamos inverter esta

ordem e tratar primeiro do modo como Peirce lidou com o argumento que sustenta a

tese oposta à sua. O penúltimo parágrafo da Q2 é o seguinte:

O único argumento sobre autoconsciência intuitiva que vale a pena citar é o

seguinte. Estamos mais certos de nossa existência do que de qualquer outro

fato; uma premissa não pode determinar que uma conclusão seja mais certa

do que ela mesma é; então, nossa própria existência não pode ter sido inferida

de qualquer outro fato. A primeira premissa pode ser admitida, porém a

segunda premissa é fundada numa uma teoria lógica ultrapassada. Uma

conclusão não pode ser mais certa do que algum dos fatos que suporta a sua

verdade, mas ela pode facilmente ser mais certa do que qualquer um daqueles

fatos. Suponhamos, por exemplo, que uma dúzia de testemunhas afirmam ter

havido uma ocorrência. Então, minha crença naquela ocorrência está baseada

Page 166: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

151

na crença de que, em geral, deve-se acreditar em cada um daqueles homens

que está sob juramento. Ainda assim, é mais certo o fato testemunhado do

que é confiável cada um desses homens. Do mesmo modo, para a mente de

um indivíduo (adulto, maduro), sua própria existência é suportada por

qualquer outro fato, e é, então, incomparavelmente mais certa do que

qualquer um desses fatos. Entretanto, não se pode dizer que ela [a minha

existência] é mais certa do que a existência de outro fato, uma vez que não há

nenhuma dúvida perceptível em nenhum dos casos.

(CP 5.237 [1868])115

Comecemos nossas análises deste longo e complicado trecho pela observação de que a

estratégia peirceana é desmontar o argumento enunciado no início do parágrafo com um

ataque direta a segunda de suas premissas. O argumento que Peirce analisa e pretende

desmontar neste trecho pode ser expresso da seguinte forma:

Argumento favorável à tese da autoconsciência intuitiva

Premissa1: Estamos mais certos de nossa existência do que de qualquer outro fato.

Premissa:2 Uma premissa não pode determinar que uma conclusão seja mais certa

do que ela mesma é.

Conclusão: Nossa própria existência não pode ter sido inferida de qualquer outro

fato.

Reparemos que o argumento que Peirce critica afirma que "nossa própria existência não

pode ter sido inferida de qualquer outro fato", porque nossa própria existência é mais

certa do que qualquer outro fato e também porque uma conclusão não pode "conter"

mais certeza do que a premissa que a suporta. Ou seja, como não é possível que a

premissa (nesse caso, um fato qualquer) seja mais certa que a conclusão (nesse caso,

nossa própria existência), não é possível, então, inferir nossa existência a partir de um

fato qualquer.

115

No original: "The only argument worth noticing for the existence of an intuitive self-consciousness is

this. We are more certain of our own existence than of any other fact; a premiss cannot determine a

conclusion to be more certain than it is itself; hence, our own existence cannot have been inferred from

any other fact. The first premiss must be admitted, but the second premiss is founded on an exploded

theory of logic. A conclusion cannot be more certain than that some one of the facts which support it is

true, but it may easily be more certain than any one of those facts. Let us suppose, for example, that a

dozen witnesses testify to an occurrence. Then my belief in that occurrence rests on the belief that each of

those men is generally to be believed upon oath. Yet the fact testified to is made more certain than that

any one of those men is generally to be believed. In the same way, to the developed mind of man, his own

existence is supported by every other fact, and is, therefore, incomparably more certain than any one of

these facts. But it cannot be said to be more certain than that there is another fact, since there is no doubt

perceptible in either case".

Page 167: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

152

Argumento sobre o relato das doze testemunhas

Premissa1: (Como a testemunha n°1 está sob juramento) a ocorrência relatada

pela a testemunha n°1 realmente aconteceu. .

Premissa2: (Como a testemunha n°2 está sob juramento) a ocorrência relatada

pela a testemunha n°2 realmente aconteceu.

Premissa3: (Como a testemunha n°3 está sob juramento) a ocorrência relatada

pela a testemunha n°3 realmente aconteceu.

...

Premissa12: (Como a testemunha n°12 está sob juramento) a ocorrência relatada

pela a testemunha n°12 realmente aconteceu.

Conclusão: (Como todas as testemunhas estão sob juramento) a ocorrência

relatada pelas 12 testemunhas realmente aconteceu.

De acordo com o que se pode compreender da análise peirceana do exemplo das doze

testemunhas, o que Peirce pretende estabelecer é que, se tomarmos isoladamente, uma

dessas testemunhas, notaremos que nossa confiança nela é mais fraca do que nossa

confiança na conclusão. Ainda que a nossa crença na conclusão não seja mais forte do

que nossa crença no relato das doze testemunhas, podemos afirmar que a nossa crença

na conclusão é ou, ao menos, pode ser mais forte do que nossa crença no relato de uma

testemunha isolada. Se a análise de Peirce estiver correta, então seria possível que uma

conclusão fosse "mais forte" que uma de suas premissa, ou seja, seria possível que uma

premissa determinasse (ou contribuísse para determinar) que sua conclusão fosse mais

certa do que ela mesma é, o que nega a premissa2 do argumento favorável à tese da

autoconsciência intuitiva. Ao negar esta premissa, abre-se espaço para se afirmar que

"nossa própria existência pode ter sido inferida de qualquer outro fato".

Argumento relativo à autoconsciência

Premissa1: O fato n°1 atesta a proposição "eu existo"

Premissa2: O fato n°2 atesta a proposição "eu existo"

Premissa3: O fato n°3 atesta a proposição "eu existo"

...

Premissa n: O fato n° n atesta a proposição "eu existo"

Conclusão: eu existo.

Page 168: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

153

De acordo com Peirce (no trecho transcrito) a mesma análise feita para o raciocínio

acerca da ocorrência relatada pelas doze testemunhas vale para este raciocínio sobre a

própria existência. Estou muito mais certo do que afirma a conclusão do que aquilo que

afirma qualquer uma das premissas tomadas isoladamente. Entretanto, pelo que se pode

entender deste trecho da Q2 (CP 2.237 [1868]), deve-se traçar uma distinção entre o que

afirma a proposição (as premissas ou a conclusão) e a própria existência ou crença na

existência dos fatos envolvidos (tanto o fato do "eu" existir como os demais fatos, i.e.,

todos os outros fatos que atestam a existência do "eu"). Por este motivo, Peirce afirma

que, ainda que a existência do "eu" seja incomparavelmente mais certa do que qualquer

um daqueles fatos que a suportam, a existência mesma desses fatos não pode ser

considerada menos certa do que a existência do "eu". Em outras palavras, não posso

dizer que estou mais certo do que afirma a conclusão (i.e., que eu existo) do que da

existência de algum outro fato que ateste minha existência. A existência do fato deve ser

tão certa quanto a existência do "eu", uma vez que não há nenhuma dúvida perceptível

em nenhum dos casos. Embora minha crença na ideia que minha existência é atestada

por todos os outros fatos seja mais forte do que a minha crença na ideia de que algum

fato específico isoladamente ateste minha existência, a minha crença na minha

existência não é mais forte do que a minha crença na existência de algum fato (que

ateste minha existência). Esta equiparação entre existência do "eu" e do fato é seminal

para as linhas argumentativas que Peirce desenvolve dentro da Q2. Não é por outro

motivo que a teoria peirceana sobre o modo como a autoconsciência emerge a partir de

um processo inferencial (e não de uma intuição) nos leva para uma paisagem teórica

muito distante daquela que podemos contemplar a partir da exposição de Descartes, por

exemplo, nas meditações.

Nas meditações, Descartes nos apresenta uma espécie de gradação de certezas cujo

centro de radiação de certezas seria existência do "eu" captada pela proposição fundante

"penso, logo existo" (cogito, ergo sum). Como vimos na seção dedicada a uma breve

exposição de linhas gerais do pensamento cartesiano (cf. capítulo 3, seção 2), como a

existência da mente é a certeza inicial, estamos mais certos da existência da mente do

que da existência do corpo. A teoria da cognição exposta no QFCM e, em particular, o

modo como a autoconsciência é explicada levaram Peirce a conclusões opostas as de

Descartes.

Analisada a contraposição que Peirce apresenta, no penúltimo parágrafo (CP 5.237

[1868]), com relação ao argumento que sustenta a tese de que a autoconsciência é

intuitiva, voltemos para a "ordem normal" do texto peirceano.

A partir do terceiro parágrafo (CP 5.227 [1868]), Peirce passa a enunciar, então,

evidências contrárias à tese de que a autoconsciência é intuitiva (ou, de outra

perspectiva, evidências favoráveis à tese de que a autoconsciência é derivada ou

inferencial).

Uma evidência que corrobora com a ideia de que não temos uma autoconsciência

intuitiva é o fato de crianças não possuírem tal conhecimento. Peirce apoia esta ideia na

Page 169: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

154

observação de que apenas tardiamente as crianças aprendem a usar a palavra "eu" (o

que, observa o filósofo norte-americano, já teria sido notado por Kant). Como o uso

tardio desta palavra indica uma autoconsciência imperfeita nas crianças observadas e

"enquanto for admissível que [disso] retiremos alguma conclusão a respeito do estado

mental daqueles que são ainda mais jovens, então esta conclusão deve ser contrária à

existência de qualquer autoconsciência nestas crianças" (CP 5.227 [1868])116

.

Portanto, com este argumento, é estabelecido que não há autoconsciência em indivíduos

muito jovens. Este estágio anterior à emergência da autoconsciência é descrito, então,

como uma consciência que abarca indistintamente o mundo externo e interno, como se

fosse um "todo indiviso". Não há noção alguma de que haja algo externo justamente por

não ser ter fronteira alguma, pois, neste estágio, o indivíduo não tem noção alguma de

que ele é "algo" que, de alguma forma, se contrapõe a outro "algo" que não é ele (i.e., o

mundo externo).

Pode-se notar que uma criança em tenra idade sempre observa seu próprio

corpo com grande atenção. E ela tem toda razão em fazê-lo, pois, do ponto de

vista da criança, o seu próprio corpo é a coisa mais importante no universo.

Apenas o que ele [este corpo] toca possui qualquer sentimento de presença ou

atualização, apenas o que está diante dele tem realmente alguma cor; apenas

o que está em sua língua tem realmente algum gosto.

(CP 5.229 [1868])117

Ninguém questiona que, quando um som é ouvido pela criança, ela não pensa

a si mesma como algo que ouve, mas ela pensa no sino ou qualquer outro

objeto como algo que soa. E quando a criança deseja mover uma mesa? Será

que ela pensa nela mesma como alguém que deseja [algo] ou será que ela

pensa na mesa como algo suscetível de ser movida? Que a criança tenha este

último pensamento está além de qualquer questão; que ela tenha aquele

primeiro pensamento deve, até que seja provada a existência de uma

autoconsciência intuitiva, ser considerada uma suposição arbitrária que

carece de bases.

(CP 5.230 [1868])118

De acordo com o exposto neste trecho transcrito acima, esta ausência de

autoconsciência pode ser entendida como espécie de "ausência de sistema de

referência". Privado de autoconsciência, o indivíduo não pode fazer referência a si

116

No original (trecho completo): "It has already been pointed out by Kant that the late use of the very

common word 'I' with children indicates an imperfect self-consciousness in them, and that, therefore, so

far as it is admissible for us to draw any conclusion in regard to the mental state of those who are still

younger, it must be against the existence of any self-consciousness in them". 117

No original: "A very young child may always be observed to watch its own body with great attention.

There is every reason why this should be so, for from the child's point of view this body is the most

important thing in the universe. Only what it touches has any actual and present feeling; only what it faces

has any actual color; only what is on its tongue has any actual taste". 118

No original: " No one questions that, when a sound is heard by a child, he thinks, not of himself as

hearing, but of the bell or other object as sounding. How when he wills to move a table? Does he then

think of himself as desiring, or only of the table as fit to be moved? That he has the latter thought, is

beyond question; that he has the former, must, until the existence of an intuitive self-consciousness is

proved, remain an arbitrary and baseless supposition".

Page 170: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

155

mesmo como centro a partir do qual se conhece e se modifica o mundo. A criança não

tem consciência de que enxerga o mundo do ponto de vista de um indivíduo. Por isso, a

criança não representa a si mesma como alguém (um ego) que ouve o som emitido pelo

sino, mas ela simplesmente pensa no sino como algo que emite um som. Quando decide

mover a mesa, a criança não vê a si mesma (ou a sua vontade) como a causa do

movimento da mesa, mas ela simplesmente vê a mesa como algo que pode ser movido.

Neste exemplo da mesa, Peirce deixa claro que seu argumento é que, diante da questão

se há ou não autoconsciência em crianças muito jovens, as evidências apontam para a

ausência deste conhecimento nestes indivíduos. Para Peirce, se, por um lado, as

evidências empíricas (i.e., observações do comportamento infantil) apoiam a tese de que

as crianças (muito jovens) simplesmente pensam na mesa (como algo a ser movido) sem

fazer referência alguma ao ego que possui a vontade de movê-la; por outro lado, não há

evidências que sustentem a tese contrária: de que mesmo as crianças (muito jovens)

seriam capazes de pensar em si mesmas como algo (um ego) que possui a vontade de

mover a mesa. Então, na ausência de evidências, esta última tese só conseguiria se

sustentar se apelássemos à ideia de que há autoconsciência intuitiva. Mas, como não

podemos afirmar que a tal autoconsciência intuitiva é auto-evidente (graças ao que foi

estabelecido no argumento sobre a auto-evidência do caráter intuitivo da

autoconsciência), se quisermos sustentar esta segunda tese, só nos resta provar que

existe esta autoconsciência intuitiva. Por este motivo, Peirce termina este trecho da Q2

transcrito acima afirmando que, até que se encontre uma prova (de que há

autoconsciência intuitiva), deve se considerar aquela última afirmação (de que crianças

muito jovens possuem autoconsciência) uma suposição infundada e arbitrária.

Notemos que, em momento algum da Q2, Peirce se dá ao trabalho de tentar provar

existência de uma faculdade de autoconsciência intuitiva, pois, para provar isto, seria

necessário recorrer ao conceito de intuição e, por tabela, seria necessário recorrer a uma

faculdade que não sabemos se possuímos ou não: a capacidade de distinguir entre

intuições e cognições não-intuitivas (cf. argumentação da Q1). Para Peirce, a

autoconsciência poderia ser explicada pela ação de faculdades que sabemos existir (CP

5.226 [1868]). O conhecimento que obtemos acerca de nossa própria existência seria

resultado de um processo inferencial realizado pela mente (e não fruto de uma geração

imediata propiciado por uma misteriosa capacidade que não sabemos se temos).

O primeiro passo para a emergência da autoconsciência é a observação feita pela

criança (desde muito cedo de acordo com o relato de Peirce) de que há alguma conexão

entre o corpo (dela) e o movimento daquele outro corpo que é objeto apto a ser movido

(no exemplo, a mesa). A criança observa que este objeto passa a se mover apenas depois

que há o contato entre aquele "corpo mais importante do universo" (o próprio corpo

dela) e o objeto em questão. Entretanto, de acordo com a linha de exposição apresentada

nesta segunda questão, este primeiro passo não pode constituir a emergência da

autoconsciência. A tese de Peirce é que a autoconsciência, a noção de há um "ego", é

uma hipótese que só pode surgir em decorrência de um descompasso entre o "ambiente

interno e o ambiente externo". Por exemplo, um descompasso entre a vontade da criança

Page 171: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

156

em ver a "mesa ser movida" e o fato da mesa não se mover (por ser muito pesada). Esta

resistência é a condição que permite que surja uma fronteira entre um ego (cuja vontade

foi negada pelo mundo) e um mundo externo (cuja realidade negou a vontade do ego).

O exemplo dado no QFCM foi o seguinte:

Uma criança escuta alguém dizer que o fogão está quente. Mas, ele não está

quente, diz a criança; e, realmente, aquele corpo central não está em contato

com o fogão e apenas o que o corpo central toca é que está quente ou frio.

Porém, a criança toca o fogão e acaba por confirmar de um modo extremo o

testemunho [que tinha ouvido]. Então, ela se torna consciente da ignorância,

e é necessário supor um ego no qual a ignorância possa residir. Então o

testemunho apresenta os primeiros raios do alvorecer da autoconsciência.

(CP 5.233 [1868])119

No exemplo fornecido, há uma discrepância entre a representação que a criança faz do

fogão (como algo que não está quente, ao contrário do que foi dito para ela) e o real ou

atual estado do fogão (como algo que está quente, em acordo com o que foi dito para

ela). São os fatos externos e esta resistência (deles em ser conforme a representação que

deles se faz) que criam a necessidade em se levantar uma hipótese para explicar o

motivo pelo qual "nem tudo sai como esperado". A noção de ego surge numa mente

individual como uma hipótese para abrigar o erro e a ignorância. Ela é resultado de uma

inferência feita a partir de fatos externos. A existência de si próprio é "inferida de fora

para dentro". Nesta explicação genética da autoconsciência, não se pode afirmar que a

existência do ego seja mais certa do que a existência dos fatos externos a partir dos

quais ela foi derivada. De forma marcadamente distinta com relação ao pensamento

cartesiano, não há gradações de certezas, não há uma escala dentro da qual, a existência

do próprio corpo, em particular, e das coisas corpóreas, em geral, seria menos conhecida

do que a existência da mente (e de Deus). Dentro da teoria exposta por Peirce no

QFCM, não há conhecimento que seja privilegiado, nem mesmo o conhecimento acerca

da existência daquele que conhece. Para Peirce, a própria existência é um conhecimento

tão hipotético como o conhecimento relativo aos fatos externos. A esta altura de nossas

análises do QFCM, já podemos notar que a epistemologia peirceana é, num certo

sentido, diametralmente oposta àquela elaborada por Descartes. O ponto de partida

cartesiano é, para Peirce, ponto de chegada.

Tentemos supor como seriam os argumentos (a sequência de ideias) que poderiam levar

um indivíduo a ter conhecimento de sua própria existência. Enfatizemos que as linhas

de raciocínio apresentadas a seguir são apenas "simulações". Como reconhece Peirce

num trecho (CP 5.236 [1868]) que transcreveremos adiante, ainda que observações

indiquem que crianças com pouca idade já sejam capazes de exercitar suas faculdades

mentais a ponto de poder desenvolver tais raciocínios (ou outros que os valham), não há

119

No original: “A child hears it said that the stove is hot. But it is not, he says; and, indeed, that central

body is not touching it, and only what that touches is hot or cold. But he touches it, and finds the

testimony confirmed in a striking way. Thus, he becomes aware of ignorance, and it is necessary to

suppose a self in which this ignorance can inhere. So testimony gives the first dawning of self-

consciousness”.

Page 172: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

157

obviamente como saber se elas o fazem da exata forma que a teoria peirceana prevê. O

importante é reter que autoconsciência seria fruto de uma inferência que começa por

notar uma discrepância entre representação e objeto representado.

Argumentos-simulação que antecedem à hipótese da existência do ego

Premissa_A1: Algo só pode estar quente ou frio se estiver em contato com o

corpo central.

Premissa_A2: O fogão não está em contato com o corpo central.

Conclusão_A3: O fogão não está quente (bem como também não deve estar frio).

Premissa_B1: O corpo central se queimou ao tocar o fogão.

Premissa_B2: Apenas aqueles objetos que estão quentes são capazes de queimar o

corpo central.

Conclusão_B3: O fogão está quente.

As proposições A3 e B3 (ambas conclusões) são contraditórias: uma afirma o que a

outra nega. As duas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, o que nos leva a crer

que há uma inconsistência. Em outras palavras, se A3 e B3 são contraditórias, uma

delas deve estar errada. E, se uma delas deve estar errada, o mínimo que se pode

concluir é que há erro. Como explicar o erro? Como explicar o fato de que num instante

se chega a conclusão de que o fogão não está quente e num outro instante se chega a

conclusão que ele está quente? A hipótese mais plausível para explicar esta

inconsistência ou este erro é supor que haja dois ambientes distintos. Um deles é um

ambiente externo cuja existência (seria uma hipótese que) serviria para abrigar o que

podemos chamar de "fogão real"; o outro é um ambiente interno cuja existência (seria

uma hipótese que) serviria para abrigar o que podemos chamar de "fogão representado",

ou seja, o fogão conforme representado para uma consciência. Há então dois "fogões": o

fogão real que, por estar quente, queimou o corpo central e o fogão representado que,

como foi representado como algo que não está quente, não deveria (se tal representação

estivesse correta) queimar o corpo central.

Se houvesse um ambiente interno (que podemos denominar ego), então obviamente

estariam apresentadas as condições de possibilidade do erro. Assim, pode-se apresentar

a existência de uma ego como hipótese explicativa da possibilidade de erro. Esta

existência hipotética de um ego.

Page 173: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

158

Argumento para a confirmação da hipótese da existência do ego

Premissa_C1: Se existisse um ego (o ambiente interno), então haveria a

possibilidade de erro.

Premissa_C2: Existe um ego.

Conclusão_C3: Há a possibilidade de erro.

Visto dessa forma, o raciocínio parece bastante simples. A única afirmação contida nele

é que, para haver possibilidade de erro, já seria suficiente que houvesse um ego (i.e., o

ambiente interno). Por isso, na situação em que houvesse um ego, a existência dele já

explicaria a possibilidade de erro. Se colocarmos esta última ideia num formato

condicional então ficaríamos com a seguinte proposição: "se existisse um ego (o

ambiente interno), então haveria a possibilidade de erro". E esta é a nossa premissa_C1.

O problema é como chegamos à premissa_C1? Afinal, é ela que faz a ligação entre a

hipotética existência de um ego e a possibilidade de erro. É esta premissa que faz com

que a hipótese funcione.

Para chegar até a premissa_C1, responsável pelo funcionamento de todo o raciocínio

hipotético, devemos pensar de trás para frente. Partimos da constatação que há erro (o que

ficou estabelecido, por exemplo, na contradição entre as proposições A3 e B3

apresentadas acima) e nos perguntamos o que deveria ocorrer para que erros, em geral,

sejam possíveis. O procedimento que levamos a cabo neste ponto da análise é muito

semelhante ao que Peirce utiliza para estabelecer como hipóteses as categorias no artigo

"Sobre uma nova lista de categorias" (CP 1.545 - 59 [1868]). De forma geral, o

procedimento possui uma forma simples e não é incomum pensarmos hipoteticamente no

dia-a-dia. Por exemplo, suponha que observamos na calçada uma poça d'água e

consideramos isto um fenômeno anômalo, i.e., um daqueles fenômenos que clamam por

explicação. A partir da constatação de que há uma poça d'água, começamos a imaginar o

que deveria ocorrer para que se formasse aquela poça naquele local e nos damos conta

que a chuva consistiria numa boa explicação, pois chuvas geralmente são responsáveis

pela formação de poças. Então, feito este raciocínio, chegaríamos ao seguinte condicional:

"se tivesse chovido, então seria possível que poças (como esta) fossem formadas". O que

precisamos fazer para chegar à hipótese da existência de um ego é algo muito parecido ao

que fizemos neste exemplo da poça d'água. A diferença é que as proposições e as ideias

envolvidas são um pouco mais complicadas. Porém, a forma do raciocínio é a mesma.

Acreditamos que para chegar à premissa_C1 "se existisse um ego (o ambiente interno),

então haveria a possibilidade de erro" seriam necessárias as quatro premissas que seguem:

Page 174: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

159

Argumento para o estabelecimento da hipótese da existência de um ego

Premissa1: Se existisse um ego, então haveria uma distinção entre um ambiente

interno onde seriam produzidas representações e um ambiente externo que poderia

ser objeto dessas representações.

Premissa2: Se houvesse uma distinção entre um ambiente interno onde seriam

produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas

representações, então haveria a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo.

Premissa3: Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo, então haveria a possibilidade de

erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno).

Conclusão: Se existisse um ego, então haveria a possibilidade de erro (nas

representações produzidas pelo ambiente interno).

Apresentadas as quatros premissas (todas na forma de condicional), o primeiro ponto a

ser notado é que alguns desses condicionais têm como consequente o antecedente de

outros, ou seja, alguns deles acabam onde outros começam. Isto significa que podemos

arranjá-los numa sequência tal como se fosse uma fila indiana de dominós. Então, neste

arranjo, sabemos que, se derrubarmos o primeiro deles, o último deverá também cair.

Para que não depositemos toda nossa confiança em metáforas ilustrativas que podem

não evocar na mente do leitor o significado (por nós) intencionado, apresentemos uma

versão formalizada deste mesmo raciocínio. É verdade que, ao lançar mão de

formalizações, a dificuldade de se fazer entender aumenta, porém isto deve ser

compensado pelo aumento da precisão no que é dito. Cada uma das proposições que

compõem as premissas será representada no raciocínio formalizado por uma letra.

proposição P = Existe um ego

proposição Q = Há uma distinção entre um ambiente interno onde seriam

produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas

representações.

proposição R = Há a possibilidade do ambiente interno produzir representações a

respeito do ambiente externo

proposição S = Há a possibilidade de erro (nas representações produzidas pelo

ambiente interno)

Page 175: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

160

O passo a passo do argumento para o estabelecimento da hipótese da existência de um

ego é o seguinte:

1. P--> Q Pr.

2. Q --> R Pr.

3. R --> S Pr.

4. | P Hip. P

5. | Q MP 1,4

6. | R MP 2,5

7. | S MP 3,7

8. P --> S Hip. P 4,7

A numeração que corre verticalmente na margem direita diz respeito aos passos do

raciocínio em questão. Os três primeiros passos consistem simplesmente na afirmação

de cada uma das três premissas de nosso argumento. É por este exato motivo que em

cada uma das linhas relacionadas aos três primeiros passos aparece, na margem

esquerda, a abreviação "Pr.", que significa que a proposição que está em tal linha entra

no argumento como uma premissa. Ainda na margem esquerda, em cada uma das

demais linhas, aparece a justificativa para a proposição que se encontra em cada uma

das linhas. Por exemplo, note que na linha 5 (i.e. no quinto passo do raciocínio) temos a

letra Q e, na margem esquerda, a justificativa "MP 1,4". Tudo isso quer dizer que, neste

raciocínio, chegamos à afirmação Q por meio da aplicação da regra (conhecida sob o

nome de) Modus Ponens às proposições que se encontram na linha 1 e na linha 4. Na

linha 1, temos a proposição "P--> Q" e, na linha 4, temos a proposição "P". E, dessas

duas proposições (juntas), podemos concluir a proposição "Q", que é exatamente o que

está na linha 5. Por este motivo, neste raciocínio, a abreviação "MP 1,4" é oferecida

como justificativa desta linha.

Na linha 4, após serem afirmadas todas as premissas do argumento, foi introduzida uma

proposição que não é um premissa nem é derivada das premissas. Esta é a proposição P

(que afirma existir um ego). Como ela não é premissa, nem é derivada (das premissas),

só podemos introduzi-la por meio de uma hipótese. Só podemos supor o que tal

proposição afirma e derivar algumas cosenquências de tal suposição. Todos os passos

dentro do raciocínio que foram feitos na dependência desta hipótese estão um pouco

mais afastados da margem esquerda. Há também uma linha horizontal tracejada que

indica que estamos raciocinando sob a hipótese de que haja um ego (proposição P).

Porém, o que quer dizer supor a proposição P ou, em linguagem natural, o que significa,

neste raciocínio, supor que exista um ego? Note que o que temos, de saída, são apenas

Page 176: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

161

três premissas. E, como já foi observado, as três podem ser "encadeadas". Isso pode ser

visto de forma mais direta simplesmente olhando para as premissas escritas em

linguagem simbólica: P-->Q , Q-->R e R-->S .

Supor a existência de um ego é simplesmente imaginar uma situação, um cenário

possível em que exista algo como um ego. Dentro deste cenário possível, sabemos de

pelo menos uma verdade (obviamente além da verdade que existe um ego): que neste

cenário deve haver "uma distinção entre um ambiente interno onde seriam produzidas

representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas representações".

Como sabemos disso? Porque é justamente isto que afirma a premissa1.

Premissa1: Se existisse um ego, então haveria uma distinção entre um ambiente

interno onde seriam produzidas representações e um ambiente externo que poderia

ser objeto dessas representações.

Esta premissa transcrita acima nos garante que na situação em que existir um ego,

também deve haver tal distinção. Esta é a primeira consequência que derivamos de

nossa hipótese. Já temos até este ponto duas afirmações: a que "existe um ego" e a que

"há uma distinção entre um ambiente interno onde seriam produzidas representações e

um ambiente externo que poderia ser objeto dessas representações". A primeira dessas

afirmações foi introduzida em nosso raciocínio por hipótese e a segunda foi introduzida

em decorrência da introdução da primeira. Mas, podemos não parar por aí. Aliás,

devemos continuar, uma vez que a meta é chegar à proposição sobre a possibilidade de

erro. Se observamos com alguma atenção, não será difícil notar que a última de nossas

proposições (aquela sobre a distinção, a relativa à letra Q) é exatamente a proposição

que está no início da premissa2. Para que sejamos precisos, esta proposição (Q) é o

consequente do condicional que constitui a premissa2.

Premissa2: Se houvesse uma distinção entre um ambiente interno onde seriam

produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas

representações, então haveria a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo.

Então, graças à premissa2, podemos saber de outra verdade a respeito de nosso cenário

hipotético: é que nele também "há a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo". É a premissa2 que nos garante que na

situação em que há aquela distinção (da qual trata a premissa1), então deve haver esta

possibilidade. Com isso, já contamos, então, com três afirmações: a primeira é que

existe um ego, a segunda é que há uma certa distinção (entre um ambiente interno e um

externo) e a terceira é que há a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo. A primeira afirmação é introduzida por

Page 177: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

162

hipótese, a segunda foi introduzida em decorrência da introdução da primeira e, por sua

vez, a terceira afirmação foi introduzida em decorrência da introdução da segunda.

Deve-se notar que só chegamos a esta última afirmação graças à hipótese de que haja

um ego. Acreditamos que o próximo passo já seja previsível.

Premissa3: Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo, então haveria a possibilidade de

erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno).

Como afirmamos que há, neste cenário possível que estamos construindo, a possibilidade

do ambiente interno produzir representações a respeito do ambiente externo, então só nos

resta concluir que, neste mesmo cenário, deve haver a possibilidade de erro (nas

representações produzidas pelo ambiente interno). O que nos permite tirar esta conclusão

a partir daquela afirmação é justamente a premissa3. Com este último movimento,

passamos a contar, então, com quatro afirmações: a primeira é que existe um ego, a

segunda é que há uma certa distinção (entre um ambiente interno e um externo), a terceira

é que há a possibilidade do ambiente interno produzir representações a respeito do

ambiente externo e, por último, a quarta afirmação é que há a possibilidade de erro (nas

representações produzidas pelo ambiente interno). Assim, utilizamos em nosso raciocínio

todas as (três) premissas que estavam disponíveis e chegamos a meta intencionada: a

afirmação de que há a possibilidade de erro. Entretanto, devemos nos recordar que

durante estes últimos passos da argumentação estivemos raciocinando sob uma hipótese.

As últimas três proposições só foram afirmadas graças à afirmação hipotética da primeira

proposição: "existe um ego". Todos esses passos (que na formalização aparecem ladeados

pela linha vertical tracejada e) que nos levaram a afirmar as últimas três proposições (Q,

R e S) fazem parte de uma suposição. Como foi construída tal suposição? Imaginamos

uma situação (um cenário possível) em que a primeira proposição é verdadeira. Então,

notamos que, na situação em que a primeira proposição é verdadeira, a segunda

proposição também tem que ser verdadeira (e isto nos é garantido pela premissa1).

Posteriormente, notamos que, na situação em que a segunda proposição é verdadeira, a

terceira proposição também tem que ser verdadeira (e isto nos é garantido pela

premissa2). E, por último, notamos que, na situação em que a terceira proposição é

verdadeira, a quarta proposição também tem que ser verdadeira (e isto nos é garantido

pela premissa3). Então, neste cenário possível em que a primeira proposição é verdadeira,

a quarta proposição também tem que ser verdadeira. Na situação em que existir um ego,

então deve haver a possibilidade de erro (nas representações produzidas pelo ambiente

interno). Esta é a conclusão de todo o raciocínio e note que ela está numa forma

condicional.

Conclusão: Se existisse um ego, então haveria a possibilidade de erro (nas

representações produzidas pelo ambiente interno).

Page 178: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

163

Esta conclusão não foi estabelecida na forma de um condicional à toa. Num condicional

não afirmamos de forma isolada nem a proposição que está na posição de antecedente

nem a proposição que está na posição de consequente. O que se afirma num condicional

é simplesmente que, se for o caso em que a proposição que está no antecedente for

verdadeira, então a proposição que está no consequente também o será. Por exemplo, o

condicional "se chover, então a corrida será adiada" não afirma que "está chovendo" ou

que "a corrida será adiada", mas este condicional (como um todo) afirma simplesmente

que, a situação em que chove é uma situação em que a corrida será cancelada. No caso

de nosso argumento, não faz parte da conclusão afirmar que há um ego, tampouco

afirmar que há a possibilidade de erro. O que é estabelecido na conclusão é que no caso

de haver um ego também deve haver a possibilidade de erro. Como na conclusão não

nos comprometemos com a afirmação de que (efetivamente) há um ego, então já

podemos abandonar nossa hipótese de que há um ego. A hipótese que afirmava esta

primeira proposição (de que há um ego) só nos serviu para descobrir que toda vez que

se afirma esta proposição deve-se também afirmar a quarta proposição (de que há

possibilidade de erro). Descoberta tal relação, já podemos descartar a hipótese de que

(efetivamente) há um ego e concluir que a existência de um ego tem como consequência

a possibilidade de erro, ou seja, se existisse um ego, então haveria a possibilidade de

erro. Antes de continuar, pedimos ao leitor que volte algumas páginas e note que a

conclusão já não faz parte da "zona hipotética" do raciocínio. Por este motivo, a linha

horizontal tracejada termina no passo 7 (quando chega-se à afirmação da quarta

proposição, i.e., de S). A linha 8 (relativa à conclusão) já voltou para perto da margem

esquerda.

Antes de continuarmos, devemos apresentar uma versão estendida deste argumento

recém-analisado, pois é possível que possa ser levantado alguns questionamentos com

relação à terceira das premissas. Na versão do argumento que acabamos de analisar, esta

premissa é a que segue:

Premissa3: Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo, então haveria a possibilidade de

erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno).

Uma crítica plenamente admissível a esta Premissa3 é que ela pode não estar bem

estabelecida, ou seja, ela é um condicional falso, pois poderia ser o caso em que o

antecedente seja verdadeiro e o consequente seja falso. Por exemplo, é (ao menos do

ponto de vista lógico) possível que "um ambiente interno seja capaz de produzir

representações a respeito do ambiente externo" (o que torna o antecedente verdadeiro) e

que "todas estas representações produzidas sejam verdadeiras" (o que torna o

consequente falso). Como é (ao menos logicamente) possível que "todas as

representações (produzidas pelo ambiente interno) sejam infalivelmente corretas", então

aquele condicional como um todo (a Premissa3) admite um contra-exemplo. A solução

Page 179: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

164

que propomos é que modifiquemos esta terceira premissa dentro de uma nova versão

deste argumento para o estabelecimento da hipótese da existência de um ego. Esta

premissa deve conter no lugar da proposição que estava na posição de antecedente uma

disjunção que contemple aquela possibilidade que estava excluída na versão original: a

possibilidade de que "todas as representações (produzidas pelo ambiente interno) sejam

infalivelmente corretas". Tal premissa assim reformada ficaria da seguinte forma:

Premissa3': Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo, então ou haveria a possibilidade de

erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno) ou todas as

representações (produzidas pelo ambiente interno) seriam infalivelmente corretas.

Com esta modificação, claro está que o resto do argumento teria que também ser

alterado. Entretanto, não é muito difícil de notar que este novo caminho aberto pela

possibilidade admitida na disjunção deve acabar numa rua sem saída, ou seja, se

admitirmos que "todas as representações (produzidas pelo ambiente interno) seriam

infalivelmente corretas", acabaríamos numa contradição, pois teríamos de admitir que,

como todas as representações estão corretas e isto significa que há uma total

coincidência entre representante e representado, então não mais seria possível fazer uma

distinção entre ambiente interno e ambiente externo. A contradição é que já na primeira

premissa afirmamos que (como supomos a existência de um ego, então) haveria uma

distinção entre um ambiente interno e um ambiente externo.

Argumento estendido para o estabelecimento da hipótese da existência de um ego

Premissa1': Se existisse um ego, então haveria uma distinção entre um ambiente

interno onde seriam produzidas representações e um ambiente externo que poderia

ser objeto dessas representações.

Premissa2': Se houvesse uma distinção entre um ambiente interno onde seriam

produzidas representações e um ambiente externo que poderia ser objeto dessas

representações, então haveria a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo.

Premissa3': Se houvesse a possibilidade do ambiente interno produzir

representações a respeito do ambiente externo, então ou haveria a possibilidade de

erro (nas representações produzidas pelo ambiente interno) ou todas as

representações (produzidas pelo ambiente interno) seriam infalivelmente corretas.

Premissa4': Se todas as representações produzidas pelo ambiente interno fossem

infalivelmente corretas, então haveria (uma incrível) coincidência entre (todas) as

representações e seus respectivos objetos.

Page 180: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

165

Premissa5': Se houvesse (esta incrível) coincidência entre (todas) as

representações e seus respectivos objetos, então não haveria possibilidade

distinção entre um ambiente interno onde seriam produzidas representações e um

ambiente externo que poderia ser objeto dessas representações.

Conclusão: Se existisse um ego, então haveria a possibilidade de erro (nas

representações produzidas pelo ambiente interno).

Este mesmo raciocínio analisado acima em sua versão formal ficaria assim:

1. P--> Q Pr.

2. Q --> R Pr.

3. R --> S v T Pr.

4. T --> U Pr.

5. U --> Z Pr.

6. Z --> ~Q Pr.

7. | P Hip. P

8. | Q MP 1,7

9. | R MP 2,8

10. | S v T MP 3,9

11. | | T Hip. T

12. | | U MP 4,11

13. | | Z MP 5,12

14. | | ~Q MP 6,13

15. | | Q ^ ~Q Ad. 8,14

16. | ~T Abs. 15

17. | S SD 10,16

18. P --> S Hip. P 7,16

Page 181: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

166

É evidente que todos esses raciocínios são simplesmente simulações. Outros

argumentos são plenamente possíveis. Enfatizamos que não sabemos como tudo ocorre

dentro da cabeça da criança ainda que se saiba que, de acordo com o que Peirce afirma

(no trecho que transcrevemos a seguir) na idade em que surge a autoconsciência, os

infantes já são capazes de produzir raciocínios muito mais elaborados do que estes

exigidos para que se tenha alguma autoconsciência.

Na idade em que sabemos que uma criança já possui autoconsciência,

também sabemos que ela está consciente a respeito da ignorância e do erro; e

sabemos que elas possuem, nesta idade, capacidade suficiente de

entendimento que as permite inferir da ignorância e do erro sua própria

existência. Assim, chega-se ao ponto de se poder afirmar que capacidades

que nos são conhecidas, agindo sob condições que sabemos existir, dariam

origem à autoconsciência. O único defeito nesta abordagem a esta questão é

que, embora saibamos que as crianças sejam capazes de exercer tanto

entendimento quanto é suposto nesta abordagem, não sabemos se elas

exercem esse entendimento exatamente da forma aqui suposta. Ainda assim,

a suposição que as crianças são capazes é infinitamente mais suportada por

fatos do que a suposição de uma faculdade inteiramente peculiar da mente.

(CP 5.236 [1868])120

Portanto, ainda que não se saiba exatamente quais são os raciocínios pelos quais as crianças

chegam a este estado de autoconsciência, as evidências suportam a suposição de que

crianças sejam efetivamente capazes de "chegar" à autoconsciência a partir de inferências.

Antes de enunciarmos o argumento geral desta Q2, cumpre observar que, caso a teoria de

Peirce esteja mesmo correta e a existência do ego seja mesmo uma hipótese levantada pela

mente para explicar a possibilidade de erro (e não fruto de um inexplicável insight), então

só podemos saber que existimos a partir da existência do mundo externo ou na dependência

da observação de fatos externos. Uma pura inspeção pela alma (ou pela mente) não

adiantaria. Novamente, estamos no antípoda do cogito cartesiano.

argumento geral da Q2

Premissa1: Se a autoconsciência fosse um conhecimento intuitivo, não seria

necessário recorrer a dados externos para se obter tal conhecimento.

Premissa2: É necessário recorrer a dados externos para se obter a

autoconsciência.

Conclusão: A autoconsciência não é um conhecimento intuitivo.

120

No original: "At the age at which we know children to be self-conscious, we know that they have been

made aware of ignorance and error; and we know them to possess at that age powers of understanding

sufficient to enable them to infer from ignorance and error their own existence. Thus we find that known

faculties, acting under conditions known to exist, would rise to self-consciousness. The only essential

defect in this account of the matter is, that while we know that children exercise as much understanding as

is here supposed, we do not know that they exercise it in precisely this way. Still the supposition that they

do so is infinitely more supported by facts, than the supposition of a wholly peculiar faculty of the mind".

Page 182: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

167

Grande parte da tarefa de Peirce na Q2 foi apresentar evidências para afirmar esta

premissa2. A ideia de Peirce é que a autoconsciência é um tipo de conhecimento que

deve ser inferido a partir do erro, isto é, a partir do reconhecimento de que há uma

discrepância entre representação e objeto representado. A existência de um "ego" é uma

hipótese que serviria, de acordo com esta teoria exposta na Q2, para explicar a

possibilidade de erro (nas representações). Como esta hipótese só pode ser levantada na

dependência do conhecimento de um mundo externo (que é a causa da discrepância

entre representação e objeto representado), logo a cognição que afirma existir um ego

não é originária, mas derivada de dados a respeito de um mundo externo.

Assim, terminamos a análise da segunda das sete questões estabelecidas por Peirce no

QFCM. A segunda questão era justamente se temos ou não uma autoconsciência

intuitiva. A pergunta desta Q1 é se o conhecimento que temos da existência de nosso

"eu privado", de nosso ego é intuitivo. A resposta é (novamente) negativa. De acordo

com as palavras do próprio autor, "devemos concluir, então, que não há nenhuma

necessidade em supor que haja uma autoconsciência intuitiva, uma vez que ela [a

autoconsciência] pode facilmente ser resultado de inferência" (CP 5.237 [1868])121

.

121

No original: "It is to be concluded, then, that there is no necessity of supposing an intuitive self-

consciousness, since self-consciousness may easily be the result of inference".

Page 183: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

168

5.2 Análise da Q3: sobre elementos subjetivos de diferentes tipos

de cognições

Questão 3: Se temos uma capacidade intuitiva de distinguir

entre os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição.

Nesta terceira questão, Peirce focaliza outro caso ao qual o conceito de intuição parece

ser aplicado sem sombras de dúvida: a capacidade que temos de distinguir entre os

diversos tipos de estados mentais, i.e., a capacidade que temos em saber se estamos

sonhando, imaginando, concebendo, acreditando etc. Antes de analisarmos o

argumento, façamos uma breve análise do primeiro parágrafo da Q3 (CP 5,238 [1868]),

pois, como nos casos anteriores, neste espaço, Peirce apresenta a definição do conceito

central da questão: o que denomina elementos subjetivos dos diferentes tipos de

cognição. Neste primeiro parágrafo, Peirce afirma que toda cognição tem duas partes

elementares e passa a defini-las. A chamada parte objetiva ou elemento objetivo é

aquilo a que a cognição se refere, é o que a cognição representa, é seu objeto. A

chamada parte subjetiva ou elemento subjetivo é algum modo (ativo ou passivo)122

pelo

qual o ego representa o objeto (a parte objetiva) da cognição. Passemos ao "reino dos

exemplos" (onde tudo se torna mais "palpável").

Por exemplo, suponha que um rapaz esteja recordando de como era a vila onde morava

durante os anos de sua infância. Esta cognição pode ser dividida, de acordo com a

definição de Peirce, naquelas duas partes. O elemento objetivo desta cognição é a

imagem que o homem tem diante de si durante esta recordação. Esta imagem é o objeto

imediato desta cognição. Suponha, então, que tal homem tenha noção de que aquilo que

está vendo é apenas uma recordação e não se confunde, de forma alguma, com uma

visão da vila real (como uma experiência atual do local em questão). Se ele é capaz de

saber que está diante de uma lembrança (e não da vila real), então deve haver algum

elemento, nesta cognição, que o permita fazer tal diferenciação. Este elemento é aquilo

que foi denominado por Peirce de elemento subjetivo da cognição. A questão, como

veremos, é justamente se temos uma capacidade intuitiva para conhecer este elemento

subjetivo das cognições.

122

No texto original Peirce utiliza os termos "ação" e "paixão": "toda cognição envolve algo representado,

ou aquilo do que estamos conscientes, e alguma ação ou paixão do eu pela qual ele [este algo] se torna

representado (CP 5.238 [1868] - no original: "every cognition involves something represented, or that of

which we are conscious, and some action or passion of the self whereby it becomes represented"). Os

termos "ação" e "paixão" têm uma longa trajetória na história da filosofia e já aparecem, por exemplo,

como duas categorias aristotélicas. Neste caso, a categoria da paixão é entendida como inverso da

categoria da ação, i.e., a paixão pode ser entendida como o caráter passivo da ação: um exemplo da

categoria de ação é "(ele) ama" e um exemplo da categoria da paixão é "(ele) é amado". Entretanto, o uso

que Peirce faz desses termos nos parece mais próximo de uma acepção mais moderna (ainda que muito

geral). Na filosofia moderna, o termo "paixão" se refere a afecções ou modificações passivas da alma (ou

do "eu" na linguagem utilizada por Peirce no trecho acima citado) e, nisto, seria o oposto do termo

"ação", que, por sua vez, se refere a uma modificação ativa da alma (ou do "eu").

Page 184: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

169

Ora, ainda que admitamos que, ao termos determinada cognição, tenhamos um acesso

direto ao objeto (ou ao elemento objetivo) desta cognição e, por este exato motivo,

Peirce o denominou de objeto imediato (da cognição)123

, não pode ser considerado auto-

evidente que tenhamos uma acesso imediato do elemento subjetivo de qualquer

cognição.

A cognição é em si mesma uma intuição de seu elemento objetivo, que pode

ser, então, chamado de objeto imediato. O elemento subjetivo não é

necessariamente conhecido imediatamente, mas é possível que tal intuição do

elemento subjetivo (...) deva acompanhar toda cognição. A questão é se este é

o caso.

(CP 5.238 [1868])124

Definidos os termos (elementos objetivo e subjetivo da cognição) e estabelecida a

questão (se há capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos subjetivos de

diferentes tipos de cognição), passemos à análise e argumentação desenvolvidas por

Peirce nesta Q3.

O primeiro ponto que devemos analisar é o argumento a respeito da suposta

autoevidência da capacidade sob investigação, pois, como afirmado no trecho transcrito

acima “o elemento subjetivo não é necessariamente conhecido imediatamente” (CP

5.238 [1868]). A estratégia relativa a este argumento é a mesma utilizada em Q2:

recorrer ao resultado da argumentação desenvolvida em Q1 (i.e., de que não há motivo

para supor que haja uma capacidade intuitiva de distinguir intuições) para "desarmar" a

certeza de que há uma capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição. O argumento é o que segue:

(...) nota-se que não sabemos intuitivamente da existência desta faculdade,

pois esta é uma faculdade intuitiva e nós não podemos intuitivamente saber

que uma cognição é intuitiva. A questão é, então, se é necessário supor a

existência desta faculdade ou se os fatos podem ser explicados sem esta

suposição.

(CP 5.240 [1868])125

123

Neste trecho Peirce novamente admite haver intuição. O outro trecho identificado é o segundo

parágrafo da Q1 (CP 5.214 [1868]). Conforme já explicamos, acreditamos que Peirce se refere nestes dois

trechos ao mesmo tipo de intuição. É o que denominamos de intuição de tipo II e a admissão, dentro da

teoria da cognição, da existência deste tipo de intuição gera uma inconsistência interna, que pretendemos

provar ser aparente. Esta inconsistência, que foi (por nós) denominada de problema do segundo tipo de

intuição só será tratado ao final das análises relativas à quarta questão do QFCM. 124

No original: “The cognition itself is an intuition of its objective element, which may therefore be

called, also, the immediate object. The subjective element is not necessarily immediately known, but it is

possible that such an intuition of the subjective element (…) should accompany every cognition. The

question is whether this is so”.

125

No original: “(...) be it noted that we do not intuitively know the existence of this faculty. For it is an

intuitive one, and we cannot intuitively know that a cognition is intuitive. The question is, therefore,

whether it is necessary to suppose the existence of this faculty, or whether then the facts can be explained

without this supposition”.

Page 185: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

170

Para que fosse intuitivamente sabido (fosse auto-evidente) que temos esta faculdade

intuitiva que nos torna capaz de diferenciar os tipos de cognição pelos seus elementos

subjetivos, seria necessário que tivéssemos uma capacidade intuitiva de distinguir uma

intuição de cognições determinadas (por outras cognições). Podemos explicitar este

argumento peirceano no seguinte esquema:

Argumento sobre a auto-evidência da capacidade intuitiva de distinguir os

elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição

Premissa1: Se fosse auto-evidente a capacidade intuitiva de distinguir os

elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição, então teríamos a

capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de cognições determinadas (por

outras cognições).

Premissa 2 (estabelecida em Q1): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir

uma intuição de cognições determinadas (por outras cognições).

Conclusão: Não é auto-evidente que tenhamos a capacidade intuitiva de distinguir

os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição.

As linhas argumentativas deste ponto do texto correm em paralelo com o que já foi

apresentando na questão anterior: só podemos afirmar que é, para nós, evidente que uma

cognição específica pertença a determinado tipo de cognição por possuir a propriedade

A se pressupormos que nós temos a capacidade de identificar A (e distingui-lo de B, C,

etc.). O problema é justamente a ausência desta faculdade, o que foi demonstrado na

primeira questão. Pode até ser que haja a tal capacidade intuitiva para se distinguir entre

os elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição, entretanto o que Peirce

novamente mostra é que isto não pode ser (de forma alguma) considerado algo que é

conhecido de forma intuitiva,ou seja, isto não é auto-evidente. Como não é evidente por

si mesmo, devem-se buscar evidências que apoiem a hipótese de que haja tal capacidade

intuitiva.

Como já é de costume, dividamos as duas respostas possíveis em caso I e caso II. No

primeiro caso, afirmamos que é intuitiva nossa capacidade para distinguir os elementos

subjetivos dos diferentes tipos de cognição e, no segundo caso, afirmamos que tal

capacidade é derivada. Analisemos o primeiro destes casos.

Como suposta evidência de que seria intuitiva a capacidade de distinguir os elementos

subjetivos dos diferentes tipos de cognição, Peirce apresenta os seguintes fatos: há uma

diferença imensa, por exemplo, "entre ver uma cor e imaginá-la" e também há uma

considerável diferença entre o "sonho mais vívido e a realidade". Entretanto, aqueles

que defendem que estes fatos são evidências nas quais podemos sustentar a ideia de que

a capacidade em questão é intuitiva confiam num argumento insustentável (de acordo

Page 186: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

171

com a exposição de Peirce). Fiquemos apenas com o exemplo da distinção entre sonho

e realidade, mas a análise e argumentação desenvolvidas valem também para a outra

distinção apresentada, a saber, visão e imaginação. O argumento em questão e que

Peirce critica pode ser colocado nas seguintes palavras:

Argumento (criticado por Peirce) sobre distinção sonho/realidade

Premissa: Há diferenças entre sonhos e realidade.

Conclusão: Somos capazes de distinguir intuitivamente sonhos de realidade.

Peirce não coloca em dúvida a verdade expressa nesta premissa. O que é criticado neste

ponto é justamente a passagem da premissa para a conclusão. Esta não se segue, de

acordo com a crítica, daquela. O problema deste argumento é o argumento como um

todo. Não há duvida de que haja marcas distintivas nos sonhos que nos permitem

identificá-los como sonhos126

em contraposição à experiência atual. Aliás, de acordo

com que podemos entender do argumento peirceano neste trecho do texto, o fato de,

graças a essas marcas, haver uma diferença imensa entre sonho e realidade deve ser

considerado uma fonte de onde tiramos a seguinte ideia: há a possibilidade de se

distinguir entre sonho e realidade. Mas, se a possibilidade de distinguir (sonho de

realidade) é retirada da observação de um fato (i.e., de que há marcas distintivas), então

obviamente nossa capacidade de distinguir sonho de realidade não é intuitiva (como

queria o argumento criticado), mas é inferida. Portanto, aquela premissa que

supostamente seria uma evidência para a hipótese de que seria intuitiva a capacidade de

distinguir os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição acaba por se

apresentar como uma evidência da tese contrária: de que é inferencial a capacidade de

distinguir os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição. Só sabemos que

dois estados mentais (ou cognições) são diferentes pela observação (e comparação) de

certas marcas que carregam. Diante de um sonho não sabemos imediatamente que

estamos sonhando, mas apenas nos tornamos conscientes de que estamos em tal estado

a partir do momento que observamos certas características e delas inferimos de que tipo

de cognição se trata. Portanto, a evidência que seria favorável ao caso I acabou se

apresentando como favorável ao caso II.

Ao final desta Q3, Peirce estende esta argumentação para a distinção entre outros tipos

de estados mentais ou, na terminologia do QFCM, outros tipos de cognições. Por

exemplo, é notável que haja também uma grande diferença entre acreditar em algo

(estar num estado de crença) e apenas conceber algo. Para Peirce, "podemos distinguir

inquestionavelmente uma crença de uma concepção, na maioria dos casos, por meio de

126

De certa forma o posicionamento crítico de Peirce diante deste argumento já foi antecipado num trecho

da primeira questão (aquele que ele trata de "marcas" em sonhos que nos permitem diferenciá-los da

realidade - cf. CP 5.217[1868]).

Page 187: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

172

um sentimento peculiar de convicção"(CP 5.242 [1868])127

. No caso das faculdades em

questão (acreditar e conceber), a marca distintiva do estado de crença é este "peculiar

sentimento de convicção" que o acompanha. Descobrimos que acreditamos em algo por

uma inferência da sensação de convicção e também por observação de fatos externos.

Antes que nos aprofundemos em nossas análises sobre este trecho específico do texto

peirceano (CP 5.242 [1868]), vamos abrir um parêntese para fazer um comentário

acerca de uma análise desenvolvida por Gallie a respeito do reconhecimento do estado

de crença. Este comentário é uma excelente oportunidade para que enxerguemos este

trecho da Q3 dentro das linhas argumentativas mais gerais do QFCM.

Em sua análise do artigo QFCM, Gallie afirma que a tese peirceana de que sabemos que

acreditamos por um sentimento de convicção que acompanha o estado mental de crença

seria baseada numa teoria elaborada por um psicólogo escocês chamado Alexander Bain

(1818-1903). O trecho em questão é o seguinte:

(...) Peirce argumenta, por sugestão do psicólogo escocês Alexander Bain,

que nós sabemos quando estamos acreditando por conta de nossa prontidão

para agir a respeito daquilo que acreditamos, enquanto que, quando apenas

consideramos uma suposição, não podemos encontrar prontidão para agir

alguma.

(Gallie, 1966, p. 67)

O primeiro ponto a ser observado é que há uma diferença entre a terminologia utilizada

por Gallie em sua análise do argumento de Peirce neste trecho da Q3 e a terminologia

utilizada pelo próprio autor cujo texto é analisado. As expressões empregadas por Peirce

são "um sentimento peculiar de convicção" e "sensação de convicção" (CP 5.242

[1868]). A expressão que Gallie utiliza é "prontidão para agir" ("readiness to act"). Na

verdade, o que Gallie parece fazer em sua análise é apresentar a tese peirceana de

acordo com uma reformulação que o próprio Peirce fez ao longo dos anos 1870. A

exemplo do que fez na análise sobre o argumento peirceano para a questão da

percepção128

, é bem possível que Gallie esteja novamente "preenchendo" o tratamento

que Peirce deu a esta questão em 1868 com elementos retirados de escritos posteriores a

esta data. A diferença é que, desta vez, ele não avisou que executaria tal

"preenchimento". Estamos fazendo esta observação, pois acreditamos haver algumas

dúvidas pairando sobre a afirmação de que Peirce, no QFCM, recebeu influência direta

da teoria de Bain. Acreditamos que a tese de Gallie sobre a tal influência na tese de

Peirce deve ser apresentada, no máximo, sob a forma de hipótese. Como pretendemos

demonstrar a seguir, não há evidências que nos permitam estabelecer esta tese de Gallie.

Para esta análise que faremos da tese de Gallie (a respeito daquela tese de Peirce),

lançaremos mão de informações obtidas por Max Fisch após uma minuciosa pesquisa

que resultou num artigo intitulado "Alexander Bain e a genealogia do pragmatismo"

127

No original: "Now, we can unquestionably distinguish a belief from a conception, in most cases, by

means of a peculiar feeling of conviction"; 128

Neste trecho (que já citamos) de sua análise, Gallie (1966, p. 67) afirma estar "preenchendo seu

tratamento inicial desta questão à luz de seus escritos de maturidade".

Page 188: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

173

(publicado originalmente em 1954). Óbvio que o propósito de Fisch é correlacionar a

teoria da crença de Bain com o nascimento do pragmatismo, o que ocorreu apenas no

início da década de 1870. Entretanto, parte das informações apresentadas neste artigo

nos servirá para avaliarmos se há condições ou não de se afirmar que Peirce, em 1868

(especificamente no QFCM), já tinha conhecimento da teoria da crença de Bain.

Em 1907, numa carta ao editor da revista The Nation (CP 5.12 [1907]), ao retraçar as

origens do pragmatismo nas reuniões do "clube metafísico" (metaphysical club)129

ocorridas em Cambridge, Massachusetts, no início da década de 1870, Peirce afirma que

o pragmatismo é pouco mais que um corolário da definição de crença elaborada por

Bain. A definição em questão, ainda segundo Peirce, é que crença é aquilo "sobre o qual

um homem está disposto a agir" (CP 5.12 [1907])130

. Este período originário ao qual se

refere o filósofo norte-americano é aproximadamente 1872 e, de acordo com a pesquisa

de Fisch (1986, p. 79), não foi encontrada nenhuma afirmação de Peirce anterior ao ano

de 1907 que conecte o pragmatismo à teoria da crença de Bain. É verdade que Fisch,

neste artigo escrito em 1954, deixou claro não ter encontrado tal afirmação em nenhum

dos escritos peirceanos publicados e também não tê-la encontrado em grande parte de

seus escritos não-publicados, o que significa que sua investigação não pôde se estender

à totalidade dos escritos (aliás, a dificuldade em ter acesso à obra de Peirce na íntegra é

algo que acomete ainda hoje estudiosos e especialistas mesmo passados 60 anos da

publicação deste artigo específico de Fisch e transcorridos exatos 100 anos da morte do

próprio filósofo). De qualquer forma, o importante para nossa análise é que esta

afirmação (feita em 1907) que conecta o pragmatismo à teoria de Bain, só nos garante

que Peirce teria tido conhecimento desta teoria a partir do início do anos 1870 (a época

do nascimento do pragmatismo). A tese de Gallie (1966, p. 67) que está sob

questionamento é que Peirce, já no QFCM em 1868, recebeu influência direta da teoria

de Bain. Como Gallie, em seu texto, não ofereceu evidências que suportem sua tese,

colocamo-nos a procurá-las e encontramos dois fatos que parecem poder ser arrolados

como evidências favoráveis à tese de Gallie:

1) No artigo subsequente ao QFCM, "Algumas consequências das quatro

incapacidades", também publicado em 1868, há um trecho em que Peirce utiliza a

expressão "disposto (ou preparado) para agir" em referência ao conceito de

crença.

2) Peirce possuía uma cópia da primeira edição da obra "Ciência mental e moral"

(Mental and Moral Science) de Bain publicada em 1868.

129

O clube metafísico era um grupo de discussões filosóficas formado jovens pensadores norte-

americanos cujas ideias exerceriam considerável influência na filosofia do século XX. O clube metafísico

ficou conhecido por ser o berço do pragmatismo (cf. Fisch, 1986, p. 137 e cf. também Fisch, 1981). Neste

grupo estavam, além de Peirce, o filósofo e psicólogo William James e o jurista Oliver Wendell Holmes

Jr. (que, mais tarde, chegaria a Suprema Corte de Justiça). 130

No original: "(...) that upon which a man is prepared to act."

Page 189: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

174

Vejamos se este primeiro fato acima apresentado pode cumprir o papel de evidência que

sustente a tese de Gallie. O trecho em questão do artigo "Algumas consequências das

quatro incapacidades" é o seguinte:

Porém a mente realmente percorre todo o processo silogístico? Certamente é

muito duvidoso se de fato a conclusão como algo que existe

independentemente na mente, tal como uma imagem repentinamente

desaloje duas premissas que existem naquela mente de forma semelhante.

Entretanto, é uma questão de experiência constante que, se um homem é

levado a acreditar nas premissas, no sentido que ele agirá a partir delas e

também afirmará que elas são verdadeiras, então, sob circunstâncias

favoráveis, ele irá também estar pronto para agir a partir da conclusão e

afirmar que também ela é verdadeira. Algo, portanto, ocorre dentro do

organismo e é equivalente ao processo silogístico.

(CP 5.268 [1868])131

É verdade que neste trecho Peirce entende o estado de crença como um estado no qual o

indivíduo está disposto a agir com relação àquilo em que se acredita (logo que as

condições aparecerem). E também é verdade que os termos utilizados por Peirce já estão

mais próximos dos termos utilizados por Gallie em sua análise da Q3 do QFCM.

Entretanto, essas verdades não podem ser consideradas provas de que Peirce recebeu

influência direta da teoria de Bain no QFCM, pois, neste trecho do artigo subsequente

transcrito acima, não há evidência textual (i.e., não há referência ao nome ou à teoria de

Bain). E, ainda que houvesse, isto apenas provaria que Peirce foi influenciado neste

segundo artigo ("Algumas consequências das quatro incapacidades"), o que não nos

autorizaria concluir que houve influência também no primeiro artigo (QFCM). Por si só,

esta semelhança terminológica pode, no máximo, apontar para a hipótese de que tenha

havido influência direta de Bain em Peirce, jamais sustentar alguma certeza a respeito

desta questão.

O segundo item acima também não será muito feliz em sua missão de comprovar a tese

de Gallie. O fato de Peirce possuir uma cópia de um livro de Bain (que continha uma

exposição de sua teoria da crença) publicado em 1868 não significa que ele adquiriu

este livro neste ano e, ainda que tenha adquirido, isso não significa que tenha lido. De

acordo com o levantamento realizado por Fisch, não podemos encontrar evidências (que

Peirce teria tido conhecimento da teoria da crença de Bain antes do início da década de

1870) nem nos escritos de Peirce e nem mesmo na cópia do livro que ele possuía.

Peirce e James ambos possuíam cópias da primeira edição do livro "Ciência

mental e moral" (Mental and Moral Science) de Bain publicado em 1868 em

Londres. A cópia de James, hoje na biblioteca Houghton na universidade de

131

No original: "But does the mind in fact go through the syllogistic process? It is certainly very doubtful

whether a conclusion -- as something existing in the mind independently, like an image -- suddenly

displaces two premisses existing in the mind in a similar way. But it is a matter of constant experience,

that if a man is made to believe in the premisses, in the sense that he will act from them and will say that

they are true, under favorable conditions he will also be ready to act from the conclusion and to say that

that is true. Something, therefore, takes place within the organism which is equivalent to the syllogistic

process".

Page 190: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

175

Harvard, o capítulo sobre crença tem marcações e anotações. Na cópia de

Peirce, hoje na biblioteca da Universidade John Hopkins, não há nenhum tipo

de marcação neste capítulo.

(Fisch, 1986, p. 88)

Estes dois fatos acima enumerados não servem, portanto, para apoiar de forma

inconteste a tese de Gallie. Não que seja impossível o que ela afirma, porém, por falta

de provas mais concretas, acreditamos que esta tese estaria muito bem caso recuasse

para o posto de hipótese. É apenas provável que Peirce tenha sofrido influência direta de

Bain neste trecho específico da Q3 (CP 5.242 [1868]). Aliás, é mais provável que a tese

peirceana apresentada neste trecho em questão seja independente da teoria de Bain. É

justamente a favor de tal independência que passamos a argumentar a partir do próximo

parágrafo.

A tese peirceana de que sabemos que acreditamos por um sentimento de convicção que

acompanha o estado mental de crença é uma afirmação sustentada por Peirce na ocasião

em que examinava uma das distinções (entre suposição/crença) que escolheu para serem

analisadas na terceira questão do QFCM. A conclusão a qual chegou nesta parte da Q3 é

coerente não só com as conclusões às quais chegou quando examinou as outras

distinções analisadas na Q3 (como sonho/realidade ou imaginação/visão), mas também

é coerente com as conclusões de outras análises em outras questões do QFCM. Assim,

já era de se esperar que Peirce chegasse a sustentar, neste caso específico da Q3, a tese

que efetivamente sustenta. Mesmo que não tivesse tido acesso à teoria de Bain, Peirce

sustentaria esta tese (ou uma que fosse equivalente), porque ela decorre de um

movimento interno ao pensamento peirceano. Tal tese é decorrente do movimento

argumentativo de Peirce no QFCM em busca de uma teoria da cognição alternativa às

teorias que recorrem ao conceito de intuição.

Recordemos que a pergunta de Peirce neste trecho não é se temos ou não a capacidade

de saber que determinada cognição é relativa a um sonho ou à realidade. A pergunta é

se este conhecimento que efetivamente podemos ter é intuitivo (direto) ou inferencial

(indireto). Como já é de se esperar, Peirce defende a tese de que tal conhecimento é

inferencial. E, com o intuito de defender esta tese, ele afirma que, para se descobrir se

estamos ou não em "estado de crença" com relação à determinada ideia ou cognição,

devemos observar algo externo à ideia ou à cognição propriamente dita. Este algo

externo é justamente sentimento de convicção que, de acordo com Peirce, acompanha o

estado mental de crença e que não se confunde de forma alguma com cognição

propriamente dita (com relação à qual se tem a crença). É esta "ajuda externa" que

fornece a este conhecimento o caráter inferencial. Pela simples contemplação da

cognição de forma isolada e em um só instante não podemos saber se ela é objeto de

crença ou uma mera suposição. Não somos capazes de fazer esta distinção de forma

imediata. Sabemos que acreditamos naquela cognição ou ideia graças a uma inferência

efetuada a partir de algo que não é aquela cognição ou ideia, mas que a acompanha, uma

marca.

Page 191: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

176

Então, se supuséssemos que Peirce não tivesse tido acesso à teoria de Bain em 1868,

ainda assim poderíamos imaginar que o filósofo norte-americano teria chegado a mesma

conclusão com relação a este trecho específico da Q3 (CP 5.242 [1868]), porque esta

conclusão é coerente com as demais encontradas nesta mesma questão e com a

argumentação geral desenvolvida ao longo do QFCM. No caso contrário, i.e., no

cenário em que Peirce efetivamente teve conhecimento prévio da teoria de Bain, ainda

assim poderíamos notar que Peirce não só não faz referência direta ao nome do

psicólogo escocês ou à sua teoria como também não utiliza, ao menos no QFCM,

terminologia a ela associada. Portanto, ainda nesta situação possível em que Peirce teria

tido conhecimento prévio da teoria de Bain, é muito mais provável que esta tenha

entrado num papel de apoio independente da tese peirceana e não como uma sugestão

de base como nos faz acreditar a exposição de Gallie do assunto.

Antes de continuarmos, enfatizemos uma vez mais que o tratamento que Peirce deu à

distinção entre crença e suposição no trecho recém discutido obedece a uma estratégia

argumentativa que atravessa todo o QFCM. Para finalizarmos nossa análise desta Q3,

devemos desenvolver um exemplo para explicitar o argumento que sustenta a resposta

de Peirce a esta terceira questão. O exemplo que segue é a respeito da capacidade em

distinguir sonho de realidade, ou seja, o acesso ao denominado elemento subjetivo (ou

parte subjetiva) de uma cognição.

De acordo com o exposto por Peirce ainda na Q1 (CP 5.217[1868]), uma das principais

marcas distintivas dos sonhos seria certa "fragmentariedade"132

. Então, imaginemos um

cenário em que um sonho possa ser diferenciado da realidade a partir da percepção desta

característica de "fragmentariedade". Suponha que estejamos relaxando numa cadeira de

praia com os olhos semicerrados e, de repente, nos vem à mente uma sequência de

imagens de uma pessoa que tenta insistentemente se comunicar conosco em uma língua

que desconhecemos. De acordo com a teoria de Peirce, não seríamos capazes de afirmar

que o que vimos era um sonho simplesmente observando uma imagem da sequência.

Como a marca distintiva do sonho seria certa "fragmentariedade", só poderíamos

percebê-la ao longo da sequência. Para podermos julgar se estamos diante de um sonho

ou de uma experiência real precisamos observar, ao menos, mais de uma imagem. Caso

contrário, com apenas uma imagem da sequência, não seria possível haver comparação

entre elas e, assim, não poderíamos saber que possuem a propriedade de

"fragmentariedade". A cognição que nos diz que "esta sequência de imagens é um

sonho" é determinada por cognições anteriores (desse mesmo objeto). E que cognições

anteriores são estas? Por exemplo, a cognição que nos afirma que "esta sequência de

imagens tem um caráter fragmentário (ou possui a propriedade da 'fragmentariedade')"

seria uma cognição anterior àquela (bem como seriam todas as outras que determinaram

esta última). Por este motivo, o conhecimento de que estamos diante de um sonho é

inferencial (e não intuitivo). Outro modo ainda de expor este ponto é o seguinte: se

132

Caráter do que é fragmentário (tradução de "fragmentariness").

Page 192: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

177

precisamos de mais de uma observação ou de mais de uma cognição para distinguir

entre sonho e realidade, então esta distinção "leva tempo" para ser feita133

.

Uma pergunta possível é se esta análise valeria para as outras distinções, principalmente

para a diferenciação entre estado de crença e de suposição. Nesta não parece haver

nenhuma sequência de imagens envolvida (como ocorre nos sonhos, fabulações,

imaginações, etc.) e aparentemente uma simples contemplação da ideia bastaria para

saber se a classificamos no grupo das "ideias meramente supostas" ou no grupo das

"ideias que efetivamente acreditamos". O importante é notar o papel da marca distintiva

neste caso. Repare que, para saber se acreditamos numa ideia que nos ocorre, temos que

"observar" não somente a ideia propriamente dita, mas também se ela carrega aquela

marca distintiva que a identificaria como pertencente ao grupo das "ideias que

efetivamente acreditamos". Suponha que venha à nossa mente a ideia de que "há um

penhasco à frente". Como podemos saber se esta ideia é algo no acreditamos ou

simplesmente uma suposição? Esta ideia (ou cognição) pertence à qual grupo: os das

"ideias meramente supostas" ou os das "ideias nas quais efetivamente acreditamos"?

Segundo a teoria peirceana apresentada no QFCM, só podemos julgar a cognição de que

"há um penhasco à frente" como uma crença se conseguimos "observar" um certo

sentimento de convicção "ao lado" dela. E, para notar esta marca, precisamos de outra

cognição. Portanto, a cognição que nos diz que estamos diante de uma crença é uma

cognição determinada por outra cognição. A primeira delas só vem à mente na

dependência da segunda. Ora, se é determinada por uma cognição anterior, a capacidade

que temos para fazer tal distinção é (novamente) inferencial, indireta, mediada, etc.

Mais uma vez, a distinção "leva tempo". Ela não pode ser feita de uma só vez, porque

exige mais de uma "observação", mais de uma cognição, em resumo, mais de um

instante.

Argumento para a distinção entre os elementos subjetivos de diferentes tipos de

cognição.

Premissa1: Esta cognição possui a marca x.

Premissa2: Todas as cognições que possuem esta marca x, são classificadas como

cognições do tipo Y.

Conclusão: Esta cognição é do tipo Y.

No caso da distinção entre estado de crença e de suposição, a tal marca x seria o

sentimento de convicção. No caso da distinção entre sonho e realidade, a tal marca

poderia ser aquela "fragmentariedade" (ou a ausência dela, a continuidade). O fator

133

Argumento semelhante foi utilizado nas análises que Peirce elaborou para os casos a respeito de

fenômenos perceptivos apresentados naquela segunda parte da Q1 (do CP 5.219 até CP 5.224).

Page 193: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

178

decisivo nesta questão (Q3) é o papel destas marcas distintivas. Todos sabemos que, ao

longo da década 1870, Peirce reformulou sua concepção de crença colocando-a dentro

do quadro geral de uma teoria que pretendia explicar a passagem do estado de dúvida

para o estado de crença (bem como alguns modos de fixação deste último). Uma das

principais características desta teoria exposta num artigo intitulado "a fixação da

crença" (CP 5.358-87 [1877]) é ter relacionado diretamente tanto o estado de dúvida

como o estado de crença ao conceito de ação134

. Se fôssemos analisar aquele exemplo

do penhasco à luz desta teoria, afirmaríamos que só podemos julgar a cognição de que

"há um penhasco à frente" como uma cognição na qual efetivamente acreditamos se

conseguimos notar que estaríamos dispostos a agir de acordo com esta cognição. Em

outras palavras, sabemos que acreditamos que "há uma penhasco à frente" se notarmos

que estaríamos dispostos a agir como uma pessoa que acredita que está diante de um

penhasco. O problema é que, no QFCM, Peirce não relaciona de forma direta o estado

de crença à ação (ou à disposição para ação). Esta ligação só foi desenvolvida anos

depois e dentro de um quadro teórico diferente (com propósitos também distintos)135

.

No QFCM, para estabelecer que a distinção crença/suposição é fruto de uma inferência,

o argumento de Peirce recorre somente à ideia de marca distintiva, neste caso, o

sentimento de convicção. Embora este "sentimento de convicção" possa parecer vago e

insuficiente para os propósitos da teoria exposta no artigo "a fixação da crença" (do

final da década de 1870), ele se mostra bem adequado aos desígnios divisados no

QFCM (um decênio antes). Se trouxermos elementos posteriores para a análise do

QFCM, se fizermos tal antecipação, corremos o risco de ofuscar o que há de mais

importante neste trecho da Q3 que trata de crença: a necessidade em se recorrer a

fatores exteriores à própria cognição que pretendemos saber se é ou não uma crença. O

fator exterior à cognição sob questão é justamente a marca distintiva. Assim, já estamos

em condições de apresentar de forma esquemática o argumento geral desta terceira

questão.

134

Nesta teoria, tanto o estado de dúvida como o estado de crença levam à ação. Entretanto de forma

distintas (cf. DE WAAL, 2007, p. 32). 135

É possível que a tese defendida no trecho específico da Q3 do QFCM seja também válida dentro do

quadro geral da teoria do final da década de 1870 (embora, para esta teoria e para seus argumentos,

aquela tese não pareça ter uma importância muito direta). Nos dois contextos teóricos, a distinção

crença/suposição continua sendo determinada por cognições anteriores (e é apenas isto que importa no

contexto argumentativo do QFCM). Comparemos duas versões da mesma tese nos dois contextos

teóricos. A primeira delas é uma versão da tese na qual estão presentes apenas termos utilizados por

Peirce neste artigo de 1868 (QFCM). A segunda é uma versão na qual estão presentes termos utilizados

por Peirce no artigo de 1877 (a fixação da crença CP 5.358-87 [1877]). Na primeira versão (a relativa

ao QFCM), a tese pode ser colocada da seguinte forma: a cognição que nos diz que a cognição de que "há

um penhasco à frente" é uma crença é determinada por uma cognição que nos diz que, naquele momento,

"há em nosso espírito um sentimento de convicção". Por sua vez, na segunda versão (a relativa ao artigo

"a fixação da crença"), a tese pode ser colocada da seguinte forma: a cognição que nos diz que a cognição

de que "há um penhasco à frente" é uma crença é determinada por uma cognição que nos diz que

"estaríamos dispostos a agir a partir da ideia de que 'há um penhasco à frente' ". De qualquer forma, a

cognição que nos revela estarmos diante de uma crença seria determinada por cognições anteriores (ou

pela cognição relativa ao sentimento de convicção [que seria a marca distintiva] ou pela cognição relativa

à disposição para agir (que também teria o papel de marca distintiva).

Page 194: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

179

argumento geral da Q3

Premissa1: Se houvesse capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição, então não seria necessário recorrer a

dados externos a uma cognição específica para se saber a qual tipo ela pertenceria.

Premissa2: É necessário recorrer a dados externos a uma cognição específica para

se saber a qual tipo (de cognição) ela pertence.

Conclusão: Não há capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição.

Se este argumento geral que atravessa toda a Q3 for comparado com aquele da Q2,

pode-se reparar que estruturalmente o papel pelas segundas premissas de cada um deles

é muito semelhante. Novamente, deve-se notar que grande parte da Q3 foi dedicada à

apresentação de evidências que sustentassem a segunda premissa acima. O resultado da

argumentação é que não temos a capacidade de, por uma pura contemplação de uma

cognição, saber de forma direta se a que tipo ela deve pertencer. Para que possamos

classificar, é necessário sempre recorrer a algo externo à própria cognição a ser

classificada. Diante de determinada cognição, por exemplo, não temos nem a

capacidade intuitiva de saber se ela é proveniente de nosso espírito ou é algo externo.

Para fazer esta avaliação é necessário que observemos elementos externos à própria

cognição (alguma "marca"). Esta incapacidade vai ter um papel importante nas

argumentações desenvolvidas para a Q4.

Assim, terminamos a análise da terceira das sete questões estabelecidas por Peirce no

QFCM. A terceira questão era justamente se temos ou não uma capacidade intuitiva de

distinguir entre os elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição. A pergunta

desta Q3 é se é intuitivo o conhecimento que temos que nos permite classificar uma

cognição como algo pertencente a algum tipo (por exemplo, sonho ou realidade, crença

ou suposição, etc.). A resposta é (novamente) negativa. Não há motivos que nos levem a

suspeitar que exista uma capacidade intuitiva de distinguir entre elementos subjetivos

dos diferentes tipos de cognição. Aliás, como já foi feito antes, a estratégia de Peirce é

demonstrar que é desnecessária a suposição de que seria intuitiva a capacidade de

distinguir os elementos subjetivos dos diferentes tipos de cognição, pois podemos

explicar tal capacidade a partir da noção de inferência. Por este motivo, nas últimas

linhas da Q3, depois de ter apresentado a explicação alternativa àquela que recorre à

peculiar capacidade da intuição, Peirce afirma que "os argumentos em favor desta

peculiar capacidade da consciência desaparece e a presunção é novamente contrária a tal

hipótese" (CP 5.243 [1868])136

.

136

No original: "the arguments in favor of this peculiar power of consciousness disappear, and the

presumption is again against such a hypothesis"

Page 195: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

180

CAPÍTULO 6

Análise da quarta questão do texto "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas

para o homem"

Este sexto capítulo está quase inteiramente dedicado à análise da quarta questão. Na Q4,

Peirce procurou estabelecer que a sua teoria inferencial da cognição é plenamente capaz

de explicar como funciona a capacidade que os indivíduos possuem de conhecer fatos

internos. A pergunta é a seguinte: como é gerado o conhecimento que o indivíduo

obtém sobre sua própria mente, sobre o seu "interior"? Uma minuciosa análise do

tratamento que Peirce dá a esta quarta questão é fundamental para entendermos o modo

como a tese central do QFCM é estabelecida (na Q5). Deve-se enfatizar que o objetivo

de Peirce nestas três últimas questões (tanto nesta Q4 bem como na Q2 e Q3) é

justamente estabelecer que as capacidades137

em torno das quais giram cada uma dessas

questões podem ser melhor explicadas teoricamente a partir do conceito de inferência, o

que tornaria desnecessária qualquer recurso ao conceito de intuição. Antes de passarmos

à quinta questão (cuja análise deve ser apresentada no sétimo capítulo), separamos uma

seção deste sexto capítulo para tratar de um problema que viemos evitando desde o

quarto capítulo (no qual analisamos a Q1). Este problema é o que denominamos de

segundo tipo de intuição (dentro do QFCM).

137

Capacidade de se gerar autoconsciência (Q2), a capacidade para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição (Q3) e a capacidade de introspecção (Q4).

Page 196: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

181

6.1 Análise da Q4: sobre a capacidade de introspecção

Questão 4: Se temos alguma capacidade de introspecção ou se

nosso conhecimento do mundo interior é derivado de

observação de fatos externos.

Nesta quarta questão, Peirce trata de uma capacidade (reivindicada para o homem) que é

geralmente entendida como um caso claro de intuição: a introspecção. Aceita a ideia de

que há um conjunto de fatos dos quais se diz geralmente que são externos enquanto

outros são considerados internos, pode-se colocar a seguinte pergunta: como são

conhecidos estes fatos (considerados) internos?

Da forma como é estabelecida a quarta questão do QFCM, são oferecidas duas respostas

(excludentes) a esta pergunta que acabamos da fazer. Ou este conhecimento dos fatos

internos é dado por uma espécie de acesso direto ou este conhecimento dos fatos

internos é dado de forma indireta (ou seja, é dado como o resultado de uma inferência

feita a partir de observações de fatos externos). Na primeira resposta, afirmamos existir

uma capacidade intuitiva de conhecer os fatos internos e, na segunda resposta, ao

contrário, afirmamos existir apenas uma capacidade não-intuitiva (inferencial, indireta)

de vir a conhecer tais fatos. No QFCM, Peirce entende por introspecção apenas o

primeiro desses casos.

Não é a intenção aqui assumir a realidade do mundo externo. Somente

assumir que há um certo conjunto de fatos que são geralmente considerados

como externos, enquanto outros, como internos. A questão é se os últimos

podem ser conhecidos de alguma outra forma que não por inferência

realizada a partir dos primeiros. Por introspecção, entendo a percepção direta

do mundo interno, porém não necessariamente a percepção deste mundo

como interno. Com este termo [introspecção] também não pretendo limitar o

significado da palavra intuição, mas pretendo estendê-lo a qualquer

conhecimento do mundo interno que não seja derivado de observação

externa.

(CP 5.244 [1868])138

Portanto, neste primeiro parágrafo, Peirce deixa claro que entende por introspecção uma

percepção direta do mundo interno ou qualquer conhecimento do mundo interno que

não seja derivado de observações externas. Neste trecho, Peirce observa que, no QFCM,

embora a introspecção seja entendida como uma percepção (direta) do mundo interno,

ela não é necessariamente uma percepção de tal mundo enquanto interno. Acreditamos

138

No original: It is not intended here to assume the reality of the external world. Only, there is a certain

set of facts which are ordinarily regarded as external, while others are regarded as internal. The question

is whether the latter are known otherwise than by inference from the former. By introspection, I mean a

direct perception of the internal world, but not necessarily a perception of it as internal. Nor do I mean to

limit the signification of the word to intuition, but would extend it to any knowledge of the internal world

not derived from external observation.

Page 197: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

182

que Peirce fez esta observação, pois, para se perceber uma cognição enquanto algo

interno (em oposição às cognições que seriam relativas ao mundo externo), deve-se

distinguir o elemento subjetivo desta cognição e, assim, classificá-la como pertencente a

um tipo de cognição. E, para que tal distinção possa ser feita e para que possamos saber

que ela é relativa a algo externo ou interno, deve-se necessariamente recorrer a

inferências. Este ponto foi estabelecido ao final da Q3.

Deve-se chamar atenção também para o fato de que, nesta quarta questão, Peirce coloca

em dúvida a própria capacidade de introspecção. Nas questões anteriores, Peirce isolava

certa capacidade e passava a questionar se tal capacidade era intuitiva ou não. Na Q1,

era a capacidade de distinguir intuições (de cognições derivadas); na Q2, era a

capacidade relativa à autoconsciência; na Q3, era a capacidade de distinguir entre os

elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição. Em cada uma destas questões, a

pergunta era se a capacidade sob análise era intuitiva. Note que, nesta quarta questão,

não tem sentido se perguntar se a capacidade de introspecção é ou não intuitiva, porque,

pela definição, o conhecimento que seria introspectivo (no caso de haver tal capacidade)

seria também intuitivo. As respostas negativas a todas as questões anteriores não

estabelecem, no argumento geral desenvolvido no QFCM, que não haja capacidade de

se fazer distinção entre intuições, de se gerar autoconsciência ou de se diferenciar entre

os diversos tipos de cognição. Tais respostas negativas estabelecem apenas que tais

capacidade não são intuitivas (ou que não há evidência suficiente que sustente a

hipótese que propõe que estas faculdades sejam intuitivas). Na Q4, é a própria

capacidade de introspecção (como um todo) que será descartada, caso a resposta seja

novamente negativa. E, a julgar pelo que já testemunhamos até este ponto do QFCM,

não devemos esperar outro destino para esta capacidade.

Antes de continuarmos, chamemos a atenção para uma suposta inconsistência

terminológica no texto peirceano, pois, embora ela não atrapalhe o argumento elaborado

por Peirce nesta Q4, pode haver alguma confusão, principalmente com relação à

resposta negativa que resulta do tratamento desta questão do QFCM. De acordo com a

definição que acabamos de fornecer, o conceito central desta quarta questão, a

introspecção, diz respeito a "uma percepção direta do mundo interno". Esta definição

dada já no primeiro parágrafo (CP 5.244 [1868]) não condiz com o uso que Peirce faz

do termo "introspecção" no seguinte trecho (que está no terceiro parágrafo da Q4):

"Embora introspecção não seja necessariamente intuitiva, não é auto-evidente que

possuamos esta capacidade"(CP 5.246 [1868])139

. Neste trecho transcrito, ele parece

usar o termo num sentido lato, diferente do sentido mais estrito utilizado na definição

(do primeiro parágrafo da Q4). Entretanto fiquemos, em nossas análises, com o sentido

dado na definição, ou seja, o termo introspecção como um tipo de percepção

necessariamente intuitivo, uma vez que é, por definição, direto.

Seguindo a linha geral da estratégia argumentativa que vem desenvolvendo para lidar

cada uma das questões levantadas no QFCM, também o primeiro passo dado por Peirce

139

No original: "Although introspection is not necessarily intuitive, it is not self-evident that we possess

this capacity"

Page 198: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

183

nesta Q4 é estabelecer que a capacidade de introspecção não é auto-evidente. A

argumento utilizado para este fim pode ser explicitado da seguinte forma:

Argumento sobre a auto-evidência da capacidade de introspecção

Premissa1: Se fosse auto-evidente a capacidade de introspecção, então teríamos a

capacidade intuitiva de distinguir diferentes modos subjetivos de consciência.

Premissa 2 (estabelecida em Q3): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir

diferentes modos subjetivos de consciência.

Conclusão: Não é auto-evidente que tenhamos a capacidade da introspecção.

Para que esta conclusão seja aceitável, devemos avaliar a pretensa verdade (que deve

estar) contida nesta primeira premissa, ou seja, temos que analisar por qual razão Peirce

faz esta conexão entre a (suposta) auto-evidência da introspecção e a capacidade

intuitiva de distinguir diferentes modos subjetivos de consciência. Por trás desta

primeira premissa, há ideia de que, se afirmamos que temos a capacidade de julgar

infalivelmente que temos a tal capacidade de introspecção, é porque pressupomos que

temos a capacidade de julgar infalivelmente se estamos diante de um fato interno ou de

um fato externo.

O problema de fundo neste ponto é a certeza, a infalibilidade que deve acompanhar um

julgamento intuitivo. Suponha que tenhamos certeza de que estamos observando um

fato interno (i.e., estamos certos que estamos "olhando para dentro de nós mesmos").

Então, neste caso, só podemos ter esta certeza se também tivermos certeza a respeito do

julgamento que nos diz que aquele fato que observamos é interno (e não externo).

Entretanto, não podemos ter esta última certeza, pois, caso fosse possível tê-la, então

deveríamos ser capazes de julgar infalivelmente (leia-se, intuitivamente) se estamos

diante de um fato interno ou de um fato externo. Não temos esta última capacidade e

este foi o ponto estabelecido na Q3. O que está em discussão neste ponto da Q4 é que só

poderíamos ter certeza acerca de nossa capacidade de introspecção se tivéssemos

certeza acerca da nossa capacidade de diferenciar os modos subjetivos de consciência (o

que foi objeto de investigação na Q3). Em resumo, só seria auto-evidente a tal

capacidade de introspecção, se fossemos capazes de distinguir intuitivamente fato

interno de externo. Porém, não somos capazes de distinguir intuitivamente fato interno

de externo (o que resulta da Q3). Logo, a tal capacidade de introspecção não é evidente

por si mesma. O resultado desse argumento é que, como a capacidade em questão não é

auto-evidente, devemos procurar evidências que sustentem a ideia de que haja algo

como introspecção.

A pergunta, então, é a seguinte: como temos acesso aos fatos internos, ao mundo

interno? Este acesso é direto ou indireto (intuitivo ou inferencial)? Como foi feito na

Page 199: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

184

análise das questões anteriores, denominemos estes duas possíveis respostas como caso

I e caso II respectivamente. Vejamos, em primeiro lugar, evidências que corroborariam

o caso I.

O primeiro ponto analisado por Peirce é a tese que se pode obter conhecimento de fatos

internos se atendo à sensação. Esta tese afirma que, considerando dados sensoriais,

poderíamos ter algum conhecimento do mundo interior e a questão é se este

conhecimento é ou não intuitivo. Tal tese parte da ideia de que toda sensação é, em

parte, determinada por condições internas. O raciocínio que nos leva a esta tese pode ser

ilustrado pelo seguinte exemplo: "a sensação de vermelidão é o que é graças à

constituição da mente. E, neste sentido, ela é a sensação de algo interno. Então,

podemos derivar um conhecimento da mente de uma consideração acerca desta

sensação" (CP 5.245 [1868])140

. Porém, ainda que possamos ter algum conhecimento

sobre fatos internos (sobre a mente, nos termos de Peirce) graças a considerações de

dados sensórios, não podemos afirmar que este acesso é intuitivo, pois este

conhecimento seria, de fato, resultado de uma inferência acerca da "vermelidão" como

um predicado de algo externo. O conhecimento obtido sobre fatos internos, nesta

situação, seria retirado de fatos externos, i.e., da observação de diversos objetos

vermelhos. Esta seria, portanto, uma evidência favorável ao caso II (não ao caso I).

No próprio texto do QCFM, Peirce não desenvolve argumentação com relação a esta

tese específica sobre o "conhecimento da mente derivado da consideração de uma

sensação". Entretanto, há elementos nesta quarta questão e também em outros pontos do

QFCM que podem nos auxiliar a reconstruir este argumento. Por exemplo, ainda na Q4,

quando passa a analisar se o conhecimento que podemos obter a respeito de outros tipos

de sentimentos141

(como as emoções) exigiria a suposição de uma faculdade intuitiva

(introspectiva, direta), Peirce afirma que as emoções (como a raiva, por exemplo) não

implicam que objeto externo (que é "alvo" da emoção) tenha um caráter determinado e

constante. Como esta observação é feita logo após uma análise da sensação, pode-se

afirmar que Peirce entende que a sensação (ao contrário da emoção) é um sentimento

que implica que seu objeto externo tenha um caráter determinado e constante. Outro

elemento que pode auxiliar nesta reconstrução é a teoria segundo a qual a função de um

conceito é trazer à unidade a multiplicidade das impressões dos sentidos. Esta teoria foi

utilizada por Peirce não apenas no artigo (imediatamente anterior à série cognitiva)

intitulado "Sobre uma nova lista de categorias", mas também na Q1 do QFCM (cf. CP

5.223 [1868]). Tentemos, então, reconstruir a argumentação peirceana para sustentar a

tese que ao conhecimento que se obtém pela consideração de uma sensação é um

conhecimento indireto (não-intuitivo).

Como alguém pode saber que está tendo uma "sensação de vermelho"? Como alguém

pode saber que está vendo algo vermelho? A resposta mais óbvia seria que esta pessoa

140

No original: "Thus, the sensation of redness is as it is, owing to the constitution of the mind; and in this

sense it is a sensation of something internal. Hence, we may derive a knowledge of the mind from a

consideration of this sensation". 141

Termo original: "feeling"

Page 200: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

185

saberia que está diante de um objeto vermelho simplesmente porque ela reconheceria

um certo padrão na impressão dos sentidos. Porém, cumpre notar que, para Peirce, este

reconhecimento é indireto, pois depende de uma comparação com experiências

anteriores, i.e., todas aquelas vezes em que esta pessoa esteve diante de algum objeto

que julgou ser vermelho. Este é, portanto, um conhecimento falível, hipotético. É

sempre possível que estes objetos que tenham sido classificados como vermelhos pela

mente desta pessoa não o sejam. Suponha que tal pessoa tenha passado a vida

classificando como vermelhos objetos que, na verdade, eram azuis. Toda vez que este

indivíduo estava diante de um objeto azul e sua mente recebia do aparato sensório uma

miríade de impressões (causadas pelo objeto), ela tratava de unificá-las sob o conceito

de vermelho. Isto é improvável, mas não é impossível. Sabemos que isto é improvável,

pois, para manter este conceito de vermelho, a pessoa em questão teria que viver isolada

ou, se tivesse algum contato com outros indivíduos, não teria oportunidade de usar o

termo relativo ao "seu" conceito de vermelho em enunciações linguísticas. Caso tivesse

contato com outros indivíduos e oportunidades de externalizar suas percepções acerca

dos objetos que julga vermelho, a tendência é que a pessoa possa, ao poucos, corrigir

sua concepção, inicialmente, errônea de vermelho.

Este tratamento do conhecimento obtido pela sensação como indireto é coerente com o

quadro geral da epistemologia peirceana (apresentado em toda a séria cognitiva) e,

sobretudo, com o objetivo de responder a pergunta que Peirce considera central na

filosofia: como são possíveis as sínteses, i.e., como é possível haver ampliação do

conhecimento ("absorção" de informação sobre o mundo)? Dentro deste quadro geral,

os juízos da percepção são também falíveis e o conhecimento neles baseado é sempre de

natureza hipotética. Mais uma vez, os projetos epistemológicos peirceanos e cartesianos

nos apresentam teses diametralmente opostas. Se, por um lado, na epistemologia

peirceana, o indivíduo (o sujeito cognoscente entendido individualmente) é o locus do

erro e da ignorância; por outro lado, para o projeto epistemológico cartesiano (das

fundações do conhecimento físico-matemático), a mente do indivíduo é o locus da

certeza e do conhecimento seguro.

Se esta interpretação das teses peirceanas nesta Q4 estiver certa, então a possibilidade

de um pensamento ser externalizado é essencial para a teoria da cognição de Peirce. A

partir da Q4, ao negar que haja introspecção, i.e., ao negar que haja algum

conhecimento direto de fatores internos, torna-se possível equacionar dentro da teoria o

conceito de pensamento e de signo (o que Peirce faz efetivamente apenas na Q5).

Realizado este passo fundamental dentro do QFCM, torna-se possível, dentro do projeto

mais amplo da série cognitiva, responder aquela questão que Peirce julga ser a mais

importante da filosofia. A negação da introspecção é, portanto, um passo estratégico

dentro do projeto epistemológico peirceano. Por este motivo, no segundo artigo da série

cognitiva, Peirce afirma que, negada a capacidade de introspecção, deve-se "deixar de

lado todas as preconcepções derivadas de uma filosofia que baseia o nosso

conhecimento do mundo externo em nossa autoconsciência". E, assim, "não podemos

admitir nenhuma afirmação sobre o que se passa dentro de nós exceto como uma

Page 201: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

186

hipótese necessária para explicar o que ocorre no que chamamos comumente de mundo

externo" (CP 5.266 [1868])142

. A noção de pensamento (ou cognição) que emerge dos

escritos peirceanos é muito peculiar. Dentro da teoria da cognição apresentada na série

cognitiva, sobretudo, no QFCM, o pensamento é entendido como um fenômeno social.

De acordo com que se pode depreender das teses peirceanas no QFCM, o ato de pensar

é um processo que parece ocorrer fora das nossas cabeças. A possibilidade de

comunicação com o mundo externo está pressuposta no modo como um indivíduo

organiza seus "conteúdos mentais". A noção de comunidade está pressuposta nesta

teoria da cognição. Não é por outro motivo que, ao final do terceiro artigo da série

cognitiva, Peirce, para poder oferecer sua resposta à pergunta sobre a possibilidade das

sínteses (i.e., do raciocínio sintético), enuncia uma espécie de "teoria social da lógica"

(cf. CP 5.341[1869]). Neste terceiro artigo, como afirmamos ainda no primeiro capítulo,

defende-se a ideia que os raciocínios ampliativos podem ter sua validade garantida

apenas se for pressuposta uma teoria da lógica que leve em consideração um conceito de

comunidade143

.

Imaginemos o seguinte cenário altamente ficcional: um homem nasce e cresce numa

ilha sem nenhum contato com outros seres humanos. Neste caso, pode-se supor que não

haja nada que obrigue este indivíduo a desenvolver algum nome, algum traço

externalizável para exprimir seus juízos perceptivos (pensamentos ou emoções) para

outros. Não se pode afirmar que lhe ocorreria a cognição "isto é vermelho", uma vez

que ele não teria formado algum conceito de vermelho sob o nome "vermelho".

Entretanto, suponha que, como este indivíduo teve algum contato visual com objetos

vermelhos em sua ilha, ele tenha alguma concepção de vermelho, mas sob outra

denominação (que, inicialmente, não se pretendesse externalizável). Suponha que

quando seu aparato sensório captar uma infinidade de impressões originadas por um

objeto vermelho, sua mente unifique esta variedade de dados sob o "conceito" de

htkçqbwz. Como em todos nós, esta unificação feita pela mente é uma introdução de

uma hipótese para explicar fenômenos externos (neste caso, um fenômeno basicamente

visual). De forma distinta do que ocorre com todos nós, este indivíduo isolado teria

maiores dificuldades para encontrar modos de confirmar sua hipótese perceptiva. Em

sociedade, de forma muito elementar, o que fazemos é uma espécie de experimento

intersubjetivo. Em geral, podemos ter alguma confiança em nossos juízos perceptivos

porque sempre é possível checar com outros se o que pensamos ser vermelho é mesmo

desta cor. Embora seja possível que nós e todos os outros sujeitos estejam errados em

nossos juízos perceptivos individuais, essa probabilidade tende a diminuir com o tempo

caso o juízo perceptivo em questão passe a ser investigado por uma comunidade

indefinida de pesquisadores por um tempo indefinidamente longo. De acordo com a

teoria peirceana, se uma comunidade indefinida de pesquisadores se submeter à tarefa

142

No original: "(...) we must put aside all prejudices derived from a philosophy which bases our

knowledge of the external world on our self-consciousness. We can admit no statement concerning what

passes within us except as a hypothesis necessary to explain what takes place in what we commonly call

the external world". 143

A comunidade de investigadores ou, de acordo com a expressão de Susan Haack (1982, p. 156),

"comunidade cognitiva".

Page 202: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

187

de investigar a questão por um tempo também indefinido, a tendência é que haja uma

convergência para um ponto no qual poderia ser estabelecida a verdade ou a falsidade

deste juízo perceptivo.

Para o indivíduo isolado, ainda que não estivesse disponível esta saída, haveria alguma

possibilidade de se elaborar um processo para confirmar sua hipótese. Ele poderia

estabelecer que se aquele objeto que está diante dele for mesmo htkçqbwz, então, uma

vez exposto à condição x, este objeto deveria apresentar as propriedades y e z. Por

exemplo, um objeto que é um htkçqbwz, quando colocado na água (condição x), libera

fumaça e emite um som estridente (propriedades y e z respectivamente). Note que, a

esta altura, quando já fosse capaz de testar, ainda que modestamente, sua hipótese

perceptiva, este indivíduo já teria em mente um conceito. Quando pensasse em

htkçqbwz, ele teria diante de sua mente uma imagem composta de vários objetos que ele

viu anteriormente e classificou como um htkçqbwz. Este rótulo "htkçqbwz" teria função

de um termo geral, ou seja, dentro de um contexto proposicional, ocorreria como

predicado. Repare que já podemos afirmar que o que ele tem em mente é um certo

conceito de htkçqbwz justamente pela possibilidade de externalização. Ao criar um

teste, este indivíduo estabeleceu um critério externo, um critério público para avaliar seu

juízo perceptivo. A esta altura, ele poderia externalizar para uma outra pessoa o que

entende por htkçqbwz e esta possibilidade de externalização seria mantida ainda que não

houvesse mais ninguém no mundo além dele. Se alguém algum dia chegar nesta ilha,

este indivíduo poderia (descontadas as dificuldades envolvidas na pronúncia) explicar

que um objeto htkçqbwz é um objeto que apresenta as propriedades y e z quando

exposto à condição x. Se imaginarmos uma espécie de corrida para o ponto de

convergência, óbvio que este homem estará sempre em desvantagem com relação

àqueles que vivem em sociedade. Entretanto, o importante é notarmos que, dentro desta

teoria peirceana da cognição, o pensamento é um tipo de atividade que só faria sentido

se for pressuposto algum tipo de externalização ou, ao menos, a possibilidade de

externalização.

Este exemplo é altamente artificial e especulativo. Não sabemos como pensaria uma

pessoa que não teve contato com semelhantes. E do ponto de vista desta teoria da

cognição exposta no QFCM, é difícil imaginar como seria a vida cognitiva de um

indivíduo isolado. O caso limite é imaginarmos que este indivíduo não pensaria ou, ao

menos, desenvolveria alguma atividade cognitiva que não poderíamos classificar como

um ato de pensar. Reiteremos que, a partir desta teoria da cognição que Peirce apresenta

no QFCM, o pensamento passa a ser entendido como um fenômeno social.

O importante é notar que o conceito de vermelho surge pela primeira vez como um

predicado (da forma "________ é vermelho") aplicado a um objeto externo. Não

podemos afirmar que o conceito surge como um predicado para um objeto interno, por

exemplo, o padrão impresso nos sentidos (a sensação propriamente dita), pois, se assim

fosse, não haveria critério externo (público) que permitisse a alguém corrigir a aplicação

(individual) que faz deste conceito.

Page 203: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

188

O resultado destas teses é que isto que chamamos de sensação do vermelho

("vermelidão") não pode ser reconhecido pela mente de forma imediata. Só posso

conhecer, saber que tenho a sensação do vermelho no momento t se notei (em momento

anterior) que determinado padrão de impressão no meu aparato sensório gerou em

minha mente a disposição para enunciar para outrem "isto é vermelho". É a partir desta

disposição que inferimos a sensação de vermelho. Só sei que tenho a sensação de

vermelho no tempo t se no tempo t - 1 percebi aquela disposição em minha mente. É

esta disposição que é utilizada como marca da referida sensação.

Esta leitura que ora apresentamos está muito próxima daquela elaborada por

Prendergast em seu artigo sobre a estrutura do argumento de Peirce no QFCM. De

acordo com Prendergast (1977, p. 296), a ideia de Peirce, neste trecho da Q4, é que "não

aprendemos a usar 'vermelho' como um predicado de algo interno tal como uma

sensação e, depois, aplicamo-lo, por inferência, a algo externo". Para Peirce, o conceito

(ou o predicado) vermelho é, em primeiro lugar, aplicado a algo externo e,

posteriormente, por inferência, chegamos à sensação de vermelho. Em outras palavras,

o conceito de vermelho é primordialmente introduzido para explicar fenômenos

externos e apenas, de forma derivada, é utilizado para explicar algum fenômeno interno

(como a sensação causada pelo objeto ou o certo padrão sensório).

Estas observações nos levam para uma interpretação próxima àquela desenvolvida por

Hookway, o que nos permite entender algumas de suas críticas com relação ao

argumento de Peirce nesta Q4. Se só podemos saber que temos uma sensação a partir de

uma inferência de que temos uma determinada disposição, então, segundo a crítica de

Hookway, temos que ter um acesso intuitivo, direto (i.e., introspectivo), ao menos, a

esta disposição.

Peirce deve ter em mente que o meu juízo que tenho a sensação de vermelho

(...) pode sempre ser uma inferência de minha vontade de fazer certas

enunciações públicas como algo é vermelho (...). Entretanto, certamente

introspecção seria necessária para estabelecer que possuo estas disposições

(...), então o argumento parece inconclusivo.

(Hookway, 1985, p. 26)

De acordo com a crítica144

de Hookway, o argumento peirceano poderia ser salvo caso

se interpretasse que o que Peirce tem em mente é que "a sensação (...) é introduzida para

explicar os pensamentos que uma pessoa julga que ela mesma tenha" (Hookway, 1985,

p. 27). É exatamente este o caminho interpretativo que estamos trilhando nesta tese (e

acreditamos que é o mesmo de Prendergast no trecho acima citado). Considerando-se

que a intenção de Peirce é explicar (sem recorrer a faculdades intuitivas) como funciona

o conhecimento (e declarações) acerca de "estados internos", de acordo com Hookway

(1985, p. 27), esta teoria apresentada é implausível.

144

Este problema apontado por Hookway é muito próximo ao que viemos desde o início das análises

chamando de "problema do segundo tipo de intuição". A segunda seção do presente capítulo será

inteiramente dedicada ao tratamento desta questão.

Page 204: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

189

Por mais implausível que possa parecer, este ponto é essencial para a semiótica

peirceana. De forma direta, não podemos ter acesso nem mesmo aos nossos

pensamentos145

. Nossos estados internos só são acessados a partir de hipóteses e estas

são sempre relativas a um objeto externo. Entretanto, afirmando isto já estamos

antecipando as conclusões às quais Peirce chega apenas no final da Q4. Até este ponto,

só analisamos o argumento peirceano que nega a capacidade de introspecção com

relação à sensação. Continuemos as análises.

Mais adiante, ainda neste parágrafo (CP 5.245 [1868]) em que lidou com a questão

relativa à sensação, Peirce passa a tratar de uma evidência que supostamente apoiaria a

hipótese que haja capacidade de introspecção. Se, por um lado, o conhecimento sobre

fatos internos obtidos na sensação é inferencial, pois os dados sensórios, em última

análise, dizem respeitos a fatos externos, têm como origem o mundo externo, por outro

lado, as emoções são um grupo particular de sentimentos cuja percepção não parece, de

forma alguma, ter origem "do lado de fora" da mente.

Existem outros sentimentos emoções, por exemplo que parecem emergir,

em primeiro lugar, não como predicados e parecem ser referentes somente à

mente. Então, parece que, por meio destes [sentimentos, i.e., as emoções),

pode ser obtido um conhecimento da mente que não é inferido de nenhuma

característica de coisas externas. A questão é se é este o caso.

(CP 5.245 [1868])146

Emoções parecem ser elementos puramente internos. O argumento de Peirce neste

trecho do QFCM (CP 5.247 [1868]) é construído para mostrar que, ainda que

consideremos uma emoção algo interno à mente, o conhecimento que dela temos é

sempre obtido a partir de algo externo ou de alguma cognição anterior. Em resumo, a

ideia é afirmar que o acesso que temos às nossas próprias emoções (ou quaisquer

"estados internos") é indireto, mediado, inferencial. Portanto, as emoções estariam

subsumidas no caso II de acordo com a divisão apresentada acima.

Suponha que um homem esteja com raiva de algum objeto. Como ele descobre que está

com raiva? Como tal indivíduo tem acesso ao seu próprio estado emocional naquele

momento? Ao contrário do que ocorre no caso da sensação, a raiva que este indivíduo

sente não implica que haja nenhuma característica determinada e específica no objeto de

sua raiva (ibid). Comparemos estas duas situações: a emoção (de raiva) e a sensação (de

vermelidão, por exemplo). Pode-se afirmar que se sabe que se está diante de um objeto

vermelho a partir da percepção de uma tendência da mente a ter certos pensamentos ou

determinadas disposições (que são devidas, acredita-se, a características constantes no

145

Lucia Santaella talvez seja a comentadora que desenvolveu uma linha interpretativa mais próxima a

esta que procuramos apresentar nesta tese. Em seus textos de exegese da obra peirceana, Santaella parece

lidar com a tese de que um pensamento em si mesmo não poderia ser diretamente conhecido com

naturalidade e sem declará-la implausível, incômoda, estranha, etc. (cf. Santaella, 2004, p. 55). 146

No original: there are certain other feelings -- the emotions, for example -- which appear to arise in the

first place, not as predicates at all, and to be referable to the mind alone. It would seem, then, that by

means of these, a knowledge of the mind may be obtained, which is not inferred from any character of

outward things. The question is whether this is really so".

Page 205: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

190

objeto observado, i.e., são devidas a propriedade de ser vermelho que seria justamente o

que causa a sensação de vermelidão [i.e., a sensação típica do vermelho]). O que se

entende por vermelho, então, tem como origem o predicado "______ é vermelho" feito

a partir da observação de diversos objetos vermelhos. No caso das emoções, não parece

haver nada externo do qual se possa derivar o conhecimento de que se está num estado

emocional específico e não em outro. Quando temos raiva de um objeto, o

conhecimento de que estamos com raiva não parece se originar do lado de fora de

nossas cabeças. O argumento peirceano vai contra esta aparência.

Porém, por outro lado, dificilmente se pode questionar que haja alguma

característica relativa na coisa externa que faz com que ele tenha raiva, e um

pouco de reflexão servirá para mostrar que sua raiva consiste no fato de dizer

para si mesmo "esta coisa é vil, abominável, etc." e que isso seja, assim, uma

marca que lhe devolve uma razão para dizer: "estou com raiva". Da mesma

forma, qualquer emoção é uma predicação a respeito de algum objeto (...).

(CP 5.247 [1868])147

De acordo com Peirce, o indivíduo do exemplo fornecido só se torna cônscio de que

está com raiva a partir do momento em que "pragueja" contra o objeto de que tem raiva.

A origem da cognição "estou com raiva" seria, então, devida a predicados aplicados a

objetos exteriores. É a partir dos predicados "______ é vil" e "______ é abominável"

aplicados a algo externo que o indivíduo infere que ele mesmo está em determinado

estado emocional, raiva. Estes predicados seriam as marcas distintivas do estado

emocional conhecido sob o nome de raiva. A inferência em questão poderia ser exposta

da seguinte forma:

Premissa 1: Só classifico objetos como vis e abomináveis quando estou com raiva

de tais objetos.

Premissa implícita 1.1: Este objeto é vil.

Premissa implícita 1.2: Este objeto é abominável.

Premissa 2: Acabei de classificar este objeto como vil e abominável.

Conclusão: Estou com raiva (deste objeto)

Mais uma vez nota-se o importante papel da ideia de marca distintiva na economia

interna da teoria exposta por Peirce neste trecho da Q4. De acordo com a teoria, a

pessoa que tem raiva só conseguiria identificar seu estado emocional a partir de

147

No original: But, on the other hand, it can hardly be questioned that there is some relative character in

the outward thing which makes him angry, and a little reflection will serve to show that his anger consists

in his saying to himself, "this thing is vile, abominable, etc." and that it is rather a mark of returning

reason to say, "I am angry." In the same way any emotion is a predication concerning some object (...).

Page 206: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

191

determinas marcas distintivas. Enquanto na argumentação desenvolvida para a Q3, a

marca distintiva servia de ponto de partida para a inferência que identificaria uma

cognição como pertencente a um tipo (por exemplo, sonhos ou experiências reais;

imaginação ou percepção, suposição ou crença, etc.), nesta argumentação da Q4, o

papel da marca distintiva é servir de ponto de partida para a inferência que identifica

determinado estado de espírito. A marca distintiva que permite identificar um estado

emocional pode ser entendida como uma consequência deste estado. A ideia por trás

disso é simples: quando se está com raiva uma das consequências do fato de se estar

neste estado é agir de determinada forma (por exemplo, praguejar, esbravejar, vociferar,

etc. [ainda que seja "em pensamento"]). Sabemos que estamos com raiva quando

notamos que estamos agindo daquela forma (que é a marca distintiva da raiva) ou

quando notamos que, ao menos, estaríamos dispostos a agir daquela forma. Esta

consequência do estado emocional é o que Jones chama de "resposta" em sua análise

deste trecho do QFCM.

Um indivíduo entra numa sala escura, tropeça numa cadeira. Raiva, digamos,

é sua resposta. Alguns adjetivos escolhidos e coloridos, para indicar quão

detestável ela é, são desferidos contra a cadeira. Peirce diria que a raiva da

pessoa em questão consiste na sua atribuição dessas características à cadeira.

Apenas quando se torna consciente de sua resposta à situação é que essa

pessoa se dá conta de que está com raiva. O conhecimento de que está com

raiva, então, é inferido da predicação de características perniciosas da

cadeira. Isso ilustra a postulação peirceana de que mesmo o conhecimento de

nossas emoções é o resultado de uma inferência de algo externo.

(Jones apud Santaella, 2004, p. 43)

Ainda neste mesmo parágrafo (CP 5.247 [1868]), Peirce afirma que o mesmo

argumento exposto para as emoções em geral vale para o senso de beleza e também para

o senso moral. A base para esta generalização é que, embora pareçam ser algo

puramente interno, estes sensos surgem primeiro como predicados de objetos externos.

A formação do senso de beleza depende de uma concepção de beleza, que, por sua vez,

pressupõe alguma experiência com o que se julga belo. Então, inicialmente, a

concepção de beleza aparece nalgum predicado (da forma "_______ é belo") aplicado a

um objeto externo que se julga belo. A mesma explicação pode ser dada para o caso do

senso moral. Tal consciência que nos permite diferenciar algo bom de algo mau

depende tanto de uma concepção do que é bom como de uma concepção do que é mal.

Estas concepções, então, pressupõem alguma experiência com o que se julga bom ou

mau. Logo, inicialmente, a concepção do que é bom ou mau deve aparecer nalgum

predicado (da forma "_______ é bom" ou "_______ é mau") aplicado a um objeto

externo que se julga bom ou mau148

.

148

Na verdade, neste ponto da Q4, Peirce apresenta a seguinte disjunção: "Bom e mau são sentimentos

que surgem primeiro como predicados e, portanto ou são predicados do não-eu ou são determinados por

cognições prévias (uma vez que não há capacidade intuitiva de se distinguir entre os elementos subjetivos

da consciência)" (CP 5.247 [1868])*. O que deve ser enfatizado é que em qualquer uma das duas

possibilidades enunciadas nesta disjunção tanto o senso de bom como de mal não podem ser acessados de

forma intuitiva, direta. Neste trecho, Peirce afirma que toda concepção do que é bom ou mau deve ter

Page 207: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

192

No parágrafo seguinte (CP 5.248 [1868]), Peirce dá mais um passo no sentido de

generalizar sua tese (de que o conhecimento de fatos internos depende de fatos

externos). Neste parágrafo, ele se pergunta se seria mesmo necessário supor que haja

uma capacidade de introspecção para explicar como é possível haver senso de vontade.

A exemplo do que ocorreu nos demais casos analisados nesta Q4, a resposta a esta

pergunta é negativa e, para "compensar" esta negação, Peirce procura afirmar que a

capacidade de fazer inferência já seria suficiente para explicar esta questão relativa à

volição. O primeiro movimento argumentativo neste trecho é identificar o conceito de

volição com a capacidade de abstração da mente. De acordo com as palavras do próprio

filósofo, a volição "nada mais é que a capacidade de concentrar a atenção, de abstrair"

(CP 5.248 [1868])149

. Feita esta identificação, Peirce afirma que o "conhecimento da

capacidade de abstrair pode ser inferido de objetos abstratos da mesma forma que o

conhecimento da capacidade de ver é inferido de objetos coloridos" (CP 5.248

[1868])150

. Sabemos de nossa capacidade de abstrair com base em certa concepção de

abstração. E tal concepção tem suas bases lançadas em cada uma das vez que estivemos

diante de um objeto que julgamos abstrato, ou seja, diante de um objeto ao qual

atribuímos o predicado "_______ é algo abstrato". Por isto, na tese defendida por Peirce

neste trecho, o conhecimento da capacidade de abstrair depende de objetos abstratos.

Aquele conhecimento é inferido a partir da "observação" de objetos abstratos. O mesmo

vale para o que Peirce chamou de "objetos coloridos" neste trecho sob análise. Sabemos

que somos capazes de ver cores151

graças a uma concepção de objeto colorido (que

temos) que, por sua vez, deve ter aparecido, em nossa mente, pela primeira vez na

posição de um predicado da seguinte forma: "_______ é um objeto colorido". A

conclusão da argumentação de todo este trecho (parágrafo 248) é que também o senso

de vontade depende da observação de fatores externos.

Então, após ter analisado os principais tipos de conhecimentos relativos ao ambiente

interno (ao "eu"), a partir de uma generalização, Peirce se encaminha para concluir, ao

final da Q4, que todo e qualquer conhecimento interno só pode ser obtido na

dependência de objetos externos. O fato de termos que recorrer aos fatos externos para

conhecer fatos internos é uma evidência favorável à hipótese de que o conhecimento

interno é também inferencial e, portanto, desfavorável à hipótese de que haja uma

capacidade intuitiva em ação quando se conhece tais fatos internos. Assim, podemos

resumir o argumento geral da seguinte forma:

aparecido nalgum predicado. Então, ou este predicado foi inicialmente aplicado a um objeto externo (ao

"não-eu") que se julga bom ou mau ou este predicado foi determinado por cognições anteriores, uma vez

que, como já foi estabelecido na Q3, não temos a capacidade intuitiva de distinguir os elementos

subjetivos da consciência.

* No original: (Good and bad are feelings which first arise as predicates, and therefore are either

predicates of the not-I, or are determined by previous cognitions (there being no intuitive power of

distinguishing subjective elements of consciousness). 149

No original: "volition (...) is nothing but the power of concentrating the attention, of abstracting". 150

No original: " the knowledge of the power of abstracting may be inferred from abstract objects, just as

the knowledge of the power of seeing is inferred from colored objects" 151

Acrescentamos o termo cores, pois, como não é difícil de se notar, Peirce utiliza apenas o verbo "ver"

(sem determinação alguma).

Page 208: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

193

argumento geral da Q4

Premissa1: Se houvesse capacidade de introspecção, então não seria necessário

recorrer a fatos externos para obter conhecimento de fatos internos.

Premissa2: É necessário recorrer a fatos externos para obter conhecimento de

fatos internos.

Conclusão: Não há capacidade de introspecção152

.

Como já se deve ter notado (por meio de um raciocínio analógico), grande parte da

tarefa do filósofo norte-americano nesta Q4 foi apresentar evidências e elaborar análises

que sustentassem o que é afirmado na segunda das premissas deste argumento geral.

Assim, terminamos a análise da quarta das sete questões estabelecidas por Peirce no

QFCM. A quarta questão era justamente se temos ou não uma capacidade introspectiva.

A pergunta desta Q4 é se possuímos uma capacidade de "olhar para dentro" e conhecer

diretamente o que "lá" encontrarmos. A resposta é (mais uma vez) negativa. Não há

motivos que nos levem a suspeitar que exista uma tal poder de introspecção. Aliás, a

exemplo do que já foi feito para questões anteriores, a estratégia de Peirce também neste

ponto é demonstrar que é desnecessária a suposição de que teríamos tal capacidade de

introspecção, pois podemos explicar o conhecimento que temos de nosso "mundo

interior" a partir da noção de inferência. É isto que está presente nas palavras que estão

última linha da Q4: "Parece que, portanto, não há razão para supor uma capacidade de

introspecção; e, consequentemente, a única maneira de se investigar uma questão

psicológica é por inferência de fatos externos (CP 5.249 [1868])153

. Com esta quarta

resposta negativa, Peirce já está muito próximo de estabelecer a tese central de sua

teoria da cognição: o pensamento só é possível inferencialmente ou, na linguagem a ser

utilizada na Q5, o pensamento só é possível a partir de signos.

152

Como já foi apontado em nossa análise anteriormente, durante um pequeno trecho da Q4 (CP 5.246

[1868]), Peirce utiliza o termo introspecção num sentido diferente do estabelecido, por ele mesmo, na

definição apresentada no primeiro parágrafo desta quarta questão. Neste trecho o termo introspecção foi

utilizado num sentido mais amplo do que aquele estabelecido na definição. Pela definição, introspecção

seria uma espécie de conhecimento do ambiente interior necessariamente intuitivo, direto. Neste trecho

em questão, Peirce dá a entender que introspecção poderia ser um conhecimento não-intuitivo (indireto)

do ambiente interior, ou seja, poderíamos utilizar a palavra introspecção mesmo para um caso em que o

conhecimento dos fatos internos é derivado de fatos externos. Claro está que, se entendermos o termo

introspecção neste sentido lato, então haveria considerável modificação no argumento geral.

Premissa1: Se houvesse capacidade de introspecção intuitiva, então não seria necessário recorrer a fatos

externos para obter conhecimento de fatos internos.

Premissa2: É necessário recorrer a fatos externos para obter conhecimento de fatos internos.

Conclusão: Não há capacidade de introspecção intuitiva.

Entretanto, ainda que esta mudança terminológica seja considerável, isto não comprometeria a linha geral

da argumentação de Peirce no QFCM. 153

No original: "It appears, therefore, that there is no reason for supposing a power of introspection; and,

consequently, the only way of investigating a psychological question is by inference from external facts".

Page 209: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

194

6.2 Excurso: o problema do segundo tipo de intuição

Antes de passarmos para a análise da quinta questão, devemos fazer uma pausa e abrir

um parêntese para lidar de forma mais direta com um problema que identificamos ainda

nas primeiras análises do texto peirceano. Denominamo-lo "o problema do segundo tipo

de intuição". Como já apresentamos e analisamos grande parte das linhas

argumentativas desenvolvidas no QFCM, já podemos propor uma interpretação que

contorne tal problema. Em primeiro lugar, reapresentemo-lo.

Dentro da teoria da cognição desenvolvida no QFCM, Peirce admite a existência de

"certas" intuições, de determinados "conhecimentos" diretos. É o que denominamos

(concordando com uma diligente análise feita por Hausman [1993, p.61]) de intuição de

tipo II. Conforme já foi anunciado, esta admissão está em rota de colisão com aquela

que pode ser considerada a tese central de toda teoria da cognição do QFCM: "todo

pensamento que pode ser conhecido é um pensamento em signos" ou (alternativamente)

"não podemos pensar sem recorrer a signos". Esta tese, estabelecida somente na Q5,

decorre das linhas argumentativas desenvolvidas por Peirce até a Q4. A admissão da

intuição de tipo II também se choca com algumas outras célebres teses (que se seguem

diretamente desta tese central). Por exemplo, com a afirmação de que "não há

pensamento no presente imediato". Embora vamos passar as próximas três dezenas de

páginas analisando em detalhes a argumentação que pretende sustentar a tese central

(acima referida), já podemos adiantar os movimentos gerais deste argumento. De acordo

com o que foi estabelecido ao final desta Q4, como até mesmo o que está em nossas

mentes só pode ser conhecido por inferências feitas a partir de elementos externos,

então só conhecemos nossos próprios pensamentos graças a inferências feitas a partir de

elementos externos a esses pensamentos. O problema é que o tal "conhecimento" direto

(do presente como presente) que Peirce admite existir (na Q1) pode, dependendo da

interpretação, ser considerado justamente o tipo de conhecimento (privilegiado sobre

estados internos) que ele mesmo nega existir na Q4.

Comecemos do princípio. No primeiro trecho em que se admite haver um certo tipo de

"conhecimento" direto, Peirce afirma que uma "cognição, como algo presente, é uma

intuição de si mesma" (CP 5.214 [1868]). Em outras palavras, a cognição, como algo

presente, é uma "visão direta" de si mesma. É neste trecho que Hausman identificou a

existência de um segundo tipo de intuição dentro da teoria peirceana. Num outro trecho,

mais adiante no QFCM, Peirce afirma que uma "cognição é em si mesma uma intuição

de seu elemento objetivo, que pode ser, então, chamado de objeto imediato"(CP 5.238

[1868]). Nesta segunda passagem, o filósofo norte-americano volta a sustentar que haja

algum tipo de intuição (envolvida em toda cognição). Acreditamos (e, nisso, sem a

companhia de Hausman) que Peirce, neste trecho, está se referindo ao mesmo tipo de

intuição cuja existência foi admita na Q1 (na primeira citação feita acima). É digno de

nota que estas "duas intuições" admitidas são, no fundo, relações reflexivas (i.e., uma

intuição de si mesmo).

Page 210: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

195

O ponto para o qual pretendemos chamar atenção é que o tal problema de inconsistência

só parece surgir na dependência de uma certa interpretação do que seria este segundo

tipo de intuição (este "conhecimento do presente como presente"). Se interpretamos que

este segundo tipo de intuição, tal "conhecimento" direto é um ato cognoscitivo comum

ou um ato de percepção através do qual o sujeito descobre algo, então este segundo tipo

de intuição deveria paradoxalmente resultar num conhecimento inferencial, hipotético,

mediado, etc. como todos os outros conhecimentos admitidos pela teoria apresentada

por Peirce no QFCM. De acordo com esta interpretação, haveria dentro da teoria a

admissão de um tipo de conhecimento que seria direto e, por isso, não recorreria a

signos (ou quaisquer elementos externos). De acordo com esta interpretação, haveria,

portanto, uma inconsistência interna na teoria. Se todo pensamento só pode ser acessado

"via" signos (i.e., elementos a ele externos), então não há espaço para se admitir a

existência de intuições (i.e., de algum conhecimento direto). As quatro proposições

apresentadas a seguir pertencem à teoria da cognição elaborada no QFCM. Notemos

que (dentro desta interpretação) as proposições I e II não podem ser verdadeiras ao

mesmo tempo que as proposições III e IV.

proposição I) Toda cognição, como algo presente, é uma intuição de si mesma

(CP 5.214 [1868])

proposição II) A cognição é em si mesma uma intuição de seu elemento objetivo

(que pode ser, então, chamado de objeto imediato da cognição). (CP 5.238 [1868])

proposição III) todo pensamento que pode ser conhecido é um pensamento em

signos" (ou não podemos pensar sem recorrer a signos)

proposição IV) Não há pensamento no presente imediato.

Para que possamos enxergar com maior nitidez esta inconsistência (que acreditamos

derivar de certas interpretações como a acima referida), comparemos os dois tipos de

conhecimento em conflito, o conhecimento indireto (inferencial) e o "conhecimento"

direto (o que também denominamos [juntamente com Hausman] de intuição de segundo

tipo). Como modelo de conhecimento necessariamente indireto, tomemos um exemplo

fornecido pelo próprio Peirce: o conhecimento que uma pessoa obtém acerca do fato de

ela estar com raiva (de algo) em determinado momento, ou seja, o conhecimento que se

obtém acerca de um estado interno. De acordo com a exposição de Peirce, a raiva

consiste no fato de dizer para si mesmo "esta coisa é vil, abominável, etc." (CP 5.247

[1868]). Assim, segundo a teoria peirceana, a cognição "estou com raiva (desta coisa)"

seria, então, o resultado de uma inferência feita a partir da cognição "esta coisa é vil,

abominável, etc.". Neste caso, nota-se que esta última cognição serviu de marca ou

signo para que chegássemos à primeira cognição. Por este motivo este conhecimento é

indireto (i.e., ele recorre a algo externo, a um signo ou uma marca).

Page 211: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

196

Vejamos o outro lado da moeda: o "conhecimento" direto do presente como presente (a

tal intuição de si mesma). Suponha que no presente momento nos venha à mente uma

cognição, um pensamento específico: o pensamento em árvore de natal. De acordo com

o que podemos depreender da teoria peirceana (sobretudo da proposição I acima

apresentada), no exato instante em que o pensamento em árvore de natal está diante da

mente, sabe-se imediatamente que se está pensando aquele pensamento (e não outro

qualquer). O problema é que quando se utiliza a expressão "sabe-se que" estamos nos

referindo, ao menos metaforicamente, a um ato cognoscitivo (ou ato de conhecimento),

ou seja, neste caso, estaríamos interpretando esta consciência da presença de algo como

um ato de conhecimento. E todo o conhecimento para Peirce é inferencial. Aliás, esta é

a justificativa para o uso das aspas quando nos referimos a este outro tipo de

conhecimento (Hausman, por exemplo, sugeriu que o termo "conhecimento" fosse

substituído por "consciência").

No caso de um sentimento (a raiva, por exemplo), dependemos daquele elemento

externo ao sentimento propriamente dito. Só nos tornamos conscientes de que estamos

com raiva de um objeto quando notamos que estamos praguejando contra tal objeto. Só

conhecemos este estado interno a partir de uma marca que é nele veiculada. A raiva

ocasiona o praguejamento e, por este motivo, sabemos daquela por este. Este ponto

pode ser apresentada na seguinte forma esquemática:

A consciência de que "estou com raiva do objeto i " é derivada da cognição "estou

praguejando contra o objeto i ".

Aparentemente, não há nada que nos impeça de aplicar este mesmo esquema para a tal

intuição de si mesma, o "conhecimento" do presente como presente. Neste caso,

poderíamos afirmar que só nos tornamos conscientes de que estamos pensando em x

quando a concepção veiculada (ocasionada) pelo fato de pensarmos em x "chega" em

nossa mente. Por exemplo, a presença (em nossa mente) da concepção de árvore de

natal (que nos torna conscientes que estamos pensando em árvores de natal) é o

resultado, é a consequência de se ter pensado em árvore de natal. Pode-se afirmar que só

nos tornamos conscientes de que estamos pensando em algo quando a concepção

veiculada por aquele pensamento nos chega à mente. É a partir da presença da

concepção de árvore de natal que "inferimos" que estamos pensando em árvores de

natal. Coloquemos de forma esquemática como fizemos para o caso anterior (o

conhecimento que se tem acerca de um estado interno).

A consciência de que "estou pensando em árvore de natal" é derivada da cognição

"veio à minha mente (minha) concepção de árvore de natal".

Se tentarmos considerar que há um inferência envolvida neste "conhecimento",

notaríamos que esta seria uma inferência muito estranha. Na verdade, parece mais um

Page 212: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

197

jogo de palavras, pois o que, no fundo, está escrito é que "sei que estou pensando em x,

porque estou pensando em x". A origem deste estranhamento é que, no caso deste

"conhecimento" do presente enquanto presente (no caso deste segundo tipo de intuição),

estamos diante de uma relação reflexiva. É uma relação de "conhecimento" voltada para

si mesma. Este estranhamento é proveniente do fato de, neste caso do "conhecimento"

do presente (como presente), ao contrário do caso do conhecimento de um estado

interno (a raiva, por exemplo), que requer um elemento externo para se efetivar, não há

necessidade de se recorrer a algo externo àquilo que está presente e do qual se pretende

ter consciência (como algo presente). O conhecimento de um estado interno e o

"conhecimento" de algo presente (como presente) são dois tipos de conhecimento

completamente diferentes, inconfundíveis. Por um lado, quando se conhece um estado

interno, a relação de conhecimento recorre a algo externo àquele estado que se pretende

conhecer (de acordo com a teoria peirceana). Por outro lado, quando se "conhece" um

pensamento presente como algo presente (à consciência), a relação de "conhecimento"

recorre ao próprio pensamento que se pretende "conhecer". Como veremos, é

justamente esta reflexividade que permite que tal "conhecimento" do presente como

presente seja considerado imediato.

O problema é que este "conhecimento" do presente como presente, esta intuição de

segundo tipo, parece não ter espaço dentro da epistemologia peirceana desenvolvida no

QFCM. Por exemplo, uma vez admitida a existência deste "conhecimento" direto, uma

pergunta que pode surgir é a seguinte: se sei que estou pensando em x, então precisei

identificar aquele pensamento que estou tendo como um pensamento específico. Porém,

isto não significa que, para classificá-lo como um pensamento em x, precisei diferenciá-

lo de outros pensamentos e isto não faria deste "conhecimento" (do presente como

presente) o resultado de uma inferência? Por exemplo, sei que estou pensando em

árvore de natal neste momento porque veio à minha mente uma certa concepção que é

muito semelhante a outras concepções que vieram à minha mente em outros momentos

anteriores em que julguei estar pensando (justamente) em árvore de natal. Isto faria do

tal "conhecimento" (do presente como presente) um conhecimento inferencial (e

hipotético). Como já cotejamos este "conhecimento" do presente (como presente) com o

conhecimento de um estado interno, façamos, desta vez, uma comparação com juízos

perceptivos (que Peirce argumentou serem todos resultantes de inferências): quando

classifico algo que vejo como uma cadeira, o que a mente faz (de acordo com o que

pode se depreender da exposição de Peirce) é comparar determinadas características do

objeto que vejo, comparar a forma dele com uma forma geral que possuo em mente e,

depois, levantar um juízo hipotético: "isto é (ou deve ser) uma cadeira (porque 'tem

forma de cadeira')". Ora, pelo que se pode entender daquela primeira proposição (acima

apresentada), quando se está pensando em x e se identifica o pensamento que se está

tendo como um pensamento em x , tal identificação é imediata. Como seria possível

fazer uma classificação imediata? Como seria possível saber que um elemento a

pertence a um conjunto A sem compará-lo com os outros elementos desse conjunto A

(ou, dito de outro modo, sem verificar se ele cumpre a condição para entrar em tal

Page 213: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

198

conjunto)? Acreditamos que o conceito de objeto imediato serve justamente para

oferecer uma resposta a estas perguntas.

De acordo com a própria definição de objeto imediato, fornecida pela primeira vez no

início da Q3 (CP 5.238 [1868]), este tipo de objeto é "algo" que faz parte da cognição

"em si mesma". O objeto imediato é inseparável da própria noção de cognição ou

pensamento, pois, do que se pode depreender da definição, ter uma cognição (ou

pensamento) é ter uma visão direta de uma forma. Esta definição de objeto imediato é

apresentada no que chamamos acima de proposição II: a cognição é em si mesma uma

intuição de seu elemento objetivo (que pode ser, então, chamado de objeto imediato da

cognição) (CP 5.238 [1868]).

Segundo a interpretação que ora desenvolvemos é justamente esta forma, este objeto

imediato (que é diferente em cada cognição) que nos torna capazes de "conhecer"

diretamente o que está presente enquanto algo que está presente. É esta forma que nos

permite afirmar que há uma intuição (do segundo tipo). Por exemplo, quando a

concepção de árvore está presente diante de minha consciência não posso confundi-la

com qualquer outra concepção (como a de unicórnios, por exemplo). A identificação de

um pensamento (como um pensamento em algo específico) não depende de um ato de

comparação com outros pensamentos semelhantes que aquela mente teve em momento

anteriores. É por não depender de um ato de comparação que se torna possível que esta

identificação seja imediata. Isto é só uma outra maneira de afirmar que tal identificação

não é determinada por cognições anteriores do mesmo objeto (no caso, o objeto é o

pensamento). O pensamento em árvores de natal convoca ou traz para diante da

consciência uma certa concepção (que é a concepção em árvore de natal que aquela

mente possui). Esta concepção tem uma forma, um padrão. É justamente esta forma ou

padrão que constitui o objeto imediato. A concepção de árvore é um certo "padrão

cognitivo ou mental". Toda vez que ocorre aquele padrão cognitivo ou mental nos

tornamos conscientes de que estamos pensando naquele pensamento específico. Esta

consciência ou este "conhecimento" é imediato. Este, portanto, é um caso de intuição

admitida dentro da teoria da cognição do QFCM.

É necessário enfatizar (novamente) que se esta consciência (do presente enquanto

presente) ou este "conhecimento" direto for comparado ao conhecimento obtido pela

percepção, então tal teoria da cognição passa a enfrentar inconsistências. Para esta

teoria, como vimos ainda na Q1, não há intuição envolvida na percepção. O

conhecimento obtido a partir da percepção é hipotético. Como exemplificamos há

pouco, quando vemos algo que tem uma forma de cadeira, passamos a comparar aquele

formato do objeto que percebemos (naquele instante) com a forma de cadeira que temos

em mente. Só depois desta comparação que podemos obter uma classificação (um juízo

perceptivo): "isto é (ou deve ser) uma cadeira". Na linguagem do QFCM, diz-se que

esta cognição ("isto é [ou deve ser] uma cadeira") é determinada, então, por cognições

anteriores (de objetos que se julgou serem cadeiras). No caso do "conhecimento" direto

do presente como presente (i.e., na consciência do que está diante da mente), há uma

intuição (dela mesma). É claro que se utilizarmos expressões que nos levem a

Page 214: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

199

representar esta consciência (do presente enquanto presente) como uma espécie de

órgão sensorial interno, a inconsistência parece inevitável. Por exemplo, comparemos

esta consciência (este "conhecimento" direto) com um olhar voltado para dentro,

direcionado para os pensamentos com o intuito de identificá-los. Assim, quando

"olhamos" para um pensamento, de acordo com a teoria acima exposta (cf. proposição I

e II), sabemos imediatamente que é um pensamento em x e não um pensamento em y.

A classificação deste "olho interno" é imediata (ao contrário daquela do "olho normal",

o externo). Então, se considerarmos este "conhecimento" direto ou esta consciência (do

presente enquanto presente) como uma espécie "olhar interior", então isto nos levaria a

supor que Peirce admite alguma capacidade de introspecção, mesmo que mínima154

.

Haveria, então, na teoria da cognição peirceana a admissão de um conhecimento

privilegiado (certo, absoluto) do mundo interior (em contraposição ao conhecimento

sempre hipotético do mundo exterior). Esta seria obviamente uma recaída no "espírito

do cartesianismo". O que pretendemos mostrar é que este conflito interno é, na verdade,

induzido por uma interpretação que aproxima (metaforicamente) dois tipos de

conhecimento que são para Peirce fundamentalmente distintos. De um lado, um

conhecimento inferencial e hipotético, obtido a partir de elementos exteriores ao que é

conhecido; do outro lado, um "conhecimento" intuitivo e absoluto, obtido a partir de

uma relação reflexiva. Aliás, a distinção é tão grande que o Hausman lamentou o fato de

Peirce ter utilizado o termo "conhecimento" para se referir ao que poderia ser

denominado "consciência do presente como presente".

Uma pergunta que pode ser feita é a seguinte: por qual motivo Peirce abriu espaço em

sua teoria para este tipo de "conhecimento" direto? Se o falibilismo é uma das principais

marcas distintivas da epistemologia inaugurada no QFCM, então, pode-se perguntar:

por que Peirce (que pode ser considerado um dos primeiros filósofos a propor uma

teoria declaradamente falibilista do conhecimento) resolveria "baixar a guarda" e

admitir a existência de um "conhecimento" infalível? Por que, ao notarmos que Peirce

admite a existência de algum tipo de intuição, temos a impressão de que o filósofo

deixou entrar pela porta dos fundos o conceito que combateu e enxotou, a duras penas,

pela porta principal de sua teoria da cognição? O que veremos é que, se, por um lado,

com esta admissão, a teoria parece se tornar inconsistente, por outro lado, se não fosse

permitido este "conhecimento" direto, a teoria se tornaria efetivamente inconsistente.

Em outras e poucas palavras, a admissão do que foi chamado de intuição de tipo II é

inevitável. Vejamos alguns porquês.

Retomemos nosso exemplo padrão para lidar como o problema do segundo tipo de

intuição. Quando se está pensando em uma árvore de natal, o "conhecimento" de se que

está pensando em uma árvore de natal (e não em qualquer outro ser) é direto. Isto é o

que Peirce denomina "conhecimento do presente como algo presente" (cf. nota em CP

5.214 [1868]). Este é um "conhecimento" intuitivo e esta é uma intuição do tipo II. E se

não fosse este o caso? Se fosse o caso que Peirce não admitisse nem mesmo esta

intuição de tipo II em sua teoria? Ou seja, a questão é: e se também este "conhecimento"

154

cf. crítica de Hookway, 1985, p. 25.

Page 215: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

200

sobre o que se está pensando fosse inferencial, indireto e hipotético? Vejamos. Se fosse

este o caso, então, haveria possibilidade de erro, o que significa que seria possível haver

uma falha de "juízo ou julgamento da consciência". Assim, quando estivéssemos

pensando, por exemplo, numa árvore de natal pode ser que nossa consciência se

confundisse (ou cometesse algum erro no processo inferencial) e nos informasse que

estávamos pensando em unicórnios. Este seria um erro de tipo muito estranho, pois este

seria um erro que jamais poderia ser classificado como tal, ao menos, por aquela mente

que estava pensando. Este seria um erro para qual não haveria possibilidade de

correção, porque seria um erro totalmente interno. Se a mente estava pensando em

árvores de natal e, por engano, informou a si mesma que estava pensando em

unicórnios, então, para todos os efeitos, ela estava pensando em unicórnios (e não em

árvores de natal). Como vimos, o "conhecimento" que se tem do que se está pensando

no instante presente é "retirado" da concepção que veio à mente naquele instante. Não

há como esta mente poderia vir algum dia a saber que estava pensando, na verdade, em

árvores de natal e não em unicórnios. Para esta mente, o que ela de fato pensou foi no

que ela julgou ("erroneamente") ter pensado: em unicórnios. Para que esta mente

pudesse saber, de alguma forma, que houve uma espécie de "erro ou falha de juízo ou

julgamento da consciência", teríamos que começar a fazer algumas suposições que nos

levariam a propor teorias da cognição cada vez mais estranhas se comparadas a que

Peirce está tentando estabelecer no QFCM (e a dele já é suficientemente estranha ou, ao

menos, implausível como classificou Hookway [1985, p. 27]). Exploremos algumas

destas possibilidades. Pedimos ao leitor que, durante este exercício de imaginação, seja

generoso com os limites de alguns conceitos como consciência, pensamento, ego, etc.

Uma possibilidade de se descobrir uma "falha de julgamento da consciência" como o

descrito acima seria supor que exista outra consciência dentro desta mesma mente. Esta

segunda consciência seria, então, capaz de enxergar o que a mente verdadeiramente

estava pensando. Esta seria uma teoria esquizofrênica da cognição e o grande problema

com ela seria o de encontrar um critério que permitisse à mente escolher qual das suas

duas consciências deveria ser a verdadeira ou a válida. Diante de uma dupla

consciência, a mente ficaria fendida também entre informações discordantes sobre dois

pensamentos diversos: um sobre árvore de natal, por exemplo, e o outro sobre

unicórnios. Não parece haver saída possível para esta teoria esquizofrênica da cognição

a não ser admitir que dois pensamentos podem ocupar o mesmo "espaço" no presente de

uma consciência ou que estes dois pensamentos pertencem a processos de raciocínio

distintos. A primeira das proposições desta disjunção não pode ser sustentada. Não

podemos admitir que "dois pensamentos podem ocupar o mesmo 'espaço' no presente de

uma consciência", porque isto nos levaria a alterar profundamente a própria concepção

de pensamento (cognição) e de consciência. A segunda das proposições da disjunção

nos parece menos problemática (ao menos se for comparada à primeira delas). Admitir

que os dois pensamentos (o da árvore de natal e o dos unicórnios) pertencem a

processos de raciocínio distintos significaria afirmar que existem duas "pessoas" (dois

"egos") pensando dentro de uma mesma mente. Este processos de raciocínios correriam

em paralelo como dois fluxos distintos ainda que o segundo deles tenha como objeto o

Page 216: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

201

primeiro deles, ou seja, o segundo processo de raciocínio (o relativo ao pensamento

sobre unicórnios) seria uma espécie de metapensamento da segunda consciência sobre o

pensamento da primeira consciência sobre árvores de natal155

. A teoria da cognição que

Peirce apresenta no QFCM está muito distante disso.

Outra possibilidade de se descobrir aquela "falha de julgamento da consciência" seria

que alguma outra mente pudesse saber que aquela primeira mente estava, na verdade,

pensando em árvores de natal, mas julgou ter pensado em unicórnios. Haveria, então,

uma "falsa consciência" (que é a daquela primeira mente) e uma "verdadeira

consciência" (que seria a daquela segunda mente). A exemplo do que ocorre na teoria

marxista da ideologia, o mínimo que se espera da pessoa que detenha a "verdadeira

consciência" é que avise a pessoa que detenha a "falsa consciência" que ela tem

pensamentos que pertencem a outrem (e não a ela própria). Ainda que seja inusitado

para a maioria das teorias epistemológicas, este conceito de "falsa consciência" tem um

importante papel dentro da economia interna do pensamento de Marx156

. Entretanto,

dentro do quadro geral da teoria da cognição apresentada na QFCM, este conceito nos

parece "uma ideia fora de lugar".

Todos estes caminhos teóricos que apresentamos acima são decorrentes da negação que

haja um conhecimento intuitivo de tipo II. Como vimos Peirce admite já no segundo

parágrafo da Q1 que há um "conhecimento do presente como presente" que é intuitivo.

Portanto, a teoria da cognição peirceana deve admitir como intuitivo ao menos este

"conhecimento" de uma cognição enquanto algo presente à mente mesmo que, ao

admiti-lo, tenha que reconhecer que este seja um tipo de "conhecimento" infalível.

Claro está que este "conhecimento" não é uma certeza fundamental como o cogito nos

sistema cartesiano. Este "conhecimento" não serve de "fundações seguras" para o

conhecimento humano, uma vez que ele é apenas a consciência direta e certa do que

está presente à mente (enquanto presente).

A nossa tese é que Peirce admite que este "conhecimento" do presente como presente

(ou esta consciência sobre o que está diante da mente no presente instante) é uma

intuição (de segundo tipo), porque este seria um "conhecimento" que não poderia, em

hipótese alguma, ser falso. Antes de argumentarmos a favor desta tese, é necessário que

lidemos uma vez mais com sua negação para que fique claro, a partir de um

155

Enquanto a primeira consciência está pensando em árvores de natal (ou acredita estar diante do

pensamento em árvore de natal), a segunda consciência está pensando que o pensamento da primeira é

sobre unicórnios e não árvores de natal. 156

Se simplificarmos ao máximo as teses desta teoria e abrirmos mão de sua terminologia técnica,

podemos afirmar que este conceito de "falsa consciência" serve para explicar os motivos pelos quais

indivíduos que pertencem a uma classe dominada não agem contra os indivíduos da classe dominante. O

fenômeno da falsa consciência, por um lado, impede que um indivíduo se enxergue como pertencente a

uma classe e, na ausência desta consciência de classe, ele acaba por não agir à favor dela. Por outro lado,

o fenômeno da falsa consciência permite que este indivíduo tenha pensamentos "que joguem contra" sua

classe e sejam apenas favoráveis à classe oposta à sua (é o que os marxistas denominavam, no caso do

sistema capitalista, de ideologia burguesa). Como saber quem se é, para o marxismo, é ter consciência de

classe (é saber que pertence a determinada classe e saber que deve pensar e agir de determinada maneira),

então o indivíduo que não possui este tipo de consciência acaba por ter pensamentos "dos outros" em sua

cabeça. De acordo com os termos da teoria, este indivíduo estaria alienado de si mesmo.

Page 217: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

202

"experimento mental", como seria impraticável não admitir dentro da teoria a existência

desta intuição de segundo tipo. A pergunta é a seguinte: se Peirce tivesse banido de sua

teoria da cognição toda e qualquer intuição (i.e., de qualquer tipo) e tivesse construído

um falibilismo irrestrito, radical? De acordo com este falibilismo, não poderíamos ter

certeza nem mesmo sobre o que estamos conscientes. Neste caso, poderíamos falhar ao

identificar o que está diante de nossa consciência da mesma forma que podemos falhar

ao identificar algo que observamos no mundo externo. O problema com este

posicionamento falibilista radical é que não se sabe exatamente em que circunstâncias

uma falha de julgamento (ou juízo) da consciência poderia ser descoberta. Sabemos que,

com relação a observações do mundo exterior, as falhas (de juízo da percepção) podem

ser descobertas, porque o mundo "resiste" às nossas representações (como fica

evidenciado no exemplo da criança e do fogão cf. CP 5.233 [1868]). No caso da

percepção, as falhas podem ser descobertas, pois a "relação de percepção" entre

observador e objeto observado não é uma relação reflexiva. No caso do "conhecimento"

do presente como presente, a relação de "conhecimento" é, como já afirmamos,

reflexiva. Neste caso, se supomos que haja alguma falha, como ela poderia ser

identificada? Ou seja, no caso de haver uma falha de julgamento da consciência (sobre o

que se está pensando), como a própria consciência descobriria o erro e, ainda que

houvesse alguma forma possível de descobri-lo, como se poderia ter certeza acerca do

que efetivamente se pensou? Se não forem considerados infalíveis, quem ou o que

poderia garantir os tais "julgamentos da consciência"?

Desenvolvamos um experimento mental para estabelecermos o seguinte ponto: supor

que haja alguma falha de "julgamento de consciência" nos leva, em primeiro lugar, a

uma autocontradição (pois, no QFCM, a consciência ou o "conhecimento" do presente

como presente é definido como uma relação reflexiva, o que torna impossível um erro)

e, em segundo lugar, a uma contradição com relação a teoria de formação do ego

apresentada no QFCM. Da forma como define, o "conhecimento" do presente como

presente ou a consciência (do que está diante da mente), Peirce não deixa espaço para

especularmos sobre a possibilidade de um "conhecimento" falível do presente como

presente (ou uma consciência cuja capacidade para identificar o que está presente à

mente seja falível). Então, esta consciência não pode ser falível. Se fosse, deveríamos

supor alguma outra instância que deveria ser capaz de fazer tais julgamentos de forma

infalível e, então, a (verdadeira) consciência seria transferida para esta instância. Parece-

nos que, dentro das possibilidades de fundamentação das teses do QFCM, da intuição de

tipo II, simplesmente não se pode escapar. Vamos ao experimento.

Suponha que algum governo de tendências totalitárias tenha investido durante anos até

conseguir inventar uma criatura que pudesse entrar na mente das pessoas para fiscalizar

o que elas estavam pensando com o intuito, claro, de taxar seus pensamentos.

Chamemo-la de o diabo fiscalizador. Esta criatura seria capaz de saber o que as pessoas

realmente estavam pensando (mesmo que elas se enganassem a respeito do que passava

por suas cabeças).

Page 218: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

203

Suponha que, de acordo com a notificação do diabo fiscalizador, a mente do Sr. K

estava pensando em a. Porém, por algum motivo, a consciência do Sr. K o informou que

ele estava pensando em b". Então (conscientemente) deve ter lhe ocorrido a cognição

"estou pensando em b". Neste caso, se o Sr. K observasse a notificação emitida pelo

diabo fiscalizador, ele poderia notar que o que ele pensou foi a e não b. Porém, esta

descoberta não pode ter efeito retroativo, pois o que ele realmente pensou foi em b

(ainda que, de acordo com o diabo fiscalizador, o seu verdadeiro pensamento tenha sido

a). Note que, se o diabo fiscalizador afirma que uma pessoa pensou algo diferente do

que ela julgou ter pensado, esta informação jamais poderá ser checada pela pessoa, pois

algo que não foi efetivamente pensado não deixa traços, marcas ou resquícios na mente

(nem no comportamento "externo"). Portanto, a pessoa não pode saber que teve este

pensamento "não-efetivamente-pensado". O Sr. K jamais poderia ter certeza de que sua

mente efetivamente pensou a (como afirma a notificação do diabo fiscalizador) no lugar

de b (como julgou sua consciência no momento que o pensamento ocorria). Ele teria

que confiar no que afirma o diabo fiscalizador sobre seus próprios pensamentos.

Neste cenário que construímos podem ser evidenciados dois grandes problemas

teóricos. Em primeiro lugar, se o Sr. K precisa recorrer ao veredicto do diabo

fiscalizador para ter certeza sobre o que ele (Sr. K) está pensando, então a "consciência

do Sr. K" teria estranhamente formado sua sede fora dele (ou seria uma espécie de

consciência distribuída). E, neste caso, (seguindo as linhas da teoria da cognição

peirceana) ou não haveria condições de se levantar a hipótese da existência de um ego

ou o hipotético ego do Sr. K. deveria incluir também o diabo fiscalizador (ou seja, da

forma como enxergaria o mundo, algo externo ao corpo central faria parte do "eu" do

Sr. K). Em segundo lugar, se afirmamos que o Sr. K. pode ter plena confiança na

notificação (pois o diabo fiscalizador seria infalível), então restituímos a tal capacidade

intuitiva (que se imaginou estar completamente banida da teoria), mas a colocamos fora

da consciência do indivíduo e isto simplesmente significa que regressamos, em um nível

ainda mais elementar, a uma situação em que o pensamento humano precisa

necessariamente de recorrer a alguma autoridade externa. Em outras palavras, se

afirmamos que veredicto do diabo fiscalizador sobre o que pensa o Sr. K. é absoluto,

então apenas transferimos o problema da intuição da consciência de um indivíduo para

uma instância externa a ela. Ora, se estendermos o falibilismo também a esta instância

externa e nos perguntássemos: quem garante que a notificação do diabo fiscalizador é

confiável? Neste caso, como resultado deste questionamento, seria necessário que se

inventasse uma segunda criatura burocrático-cognitiva: algo como um auditor de

notificações do diabo fiscalizador. As notificações deste auditor também poderiam ser

questionadas (por também ser esta uma criatura falível), o que nos levaria a necessidade

de se pensar numa terceira criatura que verificasse as notificações produzidas pelo

auditor de notificações do diabo fiscalizador e, assim, por diante.

No final das contas, o Sr. K. jamais poderia ter certeza sobre o que ele mesmo teria

verdadeiramente pensado. Porém, note que só haveria motivo para que o Sr. K

duvidasse do julgamento de sua consciência se houvesse alguma evidência de que sua

Page 219: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

204

consciência, nalgum julgamento específico, falhou. Porém, não há nenhuma evidência

desta falha, exceto o testemunho de uma instância externa (o diabo fiscalizador) que

também é falível. Como o testemunho dessa instância externa não é infalível, ela pode

falhar ao acusar alguma falha no julgamento da consciência do próprio Sr. K. Se a

instância externa pode falhar, então não há nada que obrigue o Sr. K a pensar que sua

consciência falhou em algum momento específico. O Sr. K pode escolher: ou confia no

julgamento de sua consciência (que, de acordo com as evidências, nunca falhou) ou

confia no testemunho de uma criatura cuja capacidade para identificar falhas não pode

ser considerada infalível. Não vemos motivos pelos quais o Sr. K confiaria na última em

detrimento da primeira. No caso da instância externa ser falível, para o Sr. K a hipótese

de que sua consciência tenha falhado é inútil, pois ele continuaria agindo como se

tivesse pensando aquilo que sua consciência lhe diz estar pensando. Se o testemunho da

instância externa não pode ser considerado infalível, parece-nos óbvio que toda e

qualquer pessoa confiará naquilo que sua consciência julgou ter pensado e não dará

crédito às afirmações da instância externa. Isto parece decorrer da própria concepção de

consciência (do que está diante da mente) ou do "conhecimento" do presente como

presente. Parece não haver espaço para falhas. Uma consciência que falha ao informar o

que está presente diante da mente não pode ser considerada uma consciência, i.e., um

"conhecimento" sobre o presente como presente não pode ser falho. Se fosse, não seria

obviamente um conhecimento sobre o presente enquanto presente. Este falibilismo

radical é autocontraditório.

Para supor que haja possibilidade de erro num "julgamento da consciência" (ou seja, um

erro na identificação do que está presente diante de uma mente), devemos supor que

seja possível identificar este erro. Para supor que é possível identificar tal erro, devemos

supor que exista alguma instância externa (à consciência) que faça esta identificação.

Para justificar a suposição de que exista alguma instância externa (à consciência) que

faça esta identificação, devemos supor que a identificação feita por tal instância seja

infalível (caso contrário, a instância externa estaria no mesmo "patamar" que a instância

interna [a consciência do Sr. K]). Para supor que esta identificação seja feita de forma

infalível, devemos supor que esta instância externa (responsável pela identificação)

tenha um "conhecimento" direto, imediato, absoluto do que o Sr. K verdadeiramente

pensou. Caso contrário, não podemos afirmar que o testemunho desta instância externa

seja uma evidência de que houve um erro num "julgamento de consciência" do Sr. K.

Então, para poder dar certificação ao julgamento da instância externa, teríamos que

admitir dentro da teoria novamente o tal "conhecimento" direto que tentamos banir. E,

por outro lado, se ele não for admitido, então a hipótese de que pode haver erro de

"julgamento da consciência" se torna inútil, porque as evidências que a apoiariam

seriam esvaziadas. De que adianta supor que há um certo tipo de erro para o qual não há

critérios que nos permitam identificá-lo. A estrutura do argumento que estamos

apresentando para estabelecer a necessidade em se admitir esta intuição de tipo II é

muito semelhante a do argumento enunciado por Peirce para negar que haja alguma

necessidade em se admitir a intuição de tipo I.

Page 220: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

205

Resumamos, então, nossa proposta de dissolução do chamado problema do segundo

tipo de intuição. Não é muito difícil compreender os motivos que nos levam a defender

a tese que, para Peirce, no QFCM, o "conhecimento" do presente como presente não

pode ser falso (e, por este motivo, deve ser considerado uma intuição do tipo II).

Defendemos esta tese com base no seguinte raciocínio: há clara evidência textual157

que

este "conhecimento" (esta intuição de segundo tipo) é, na verdade, uma relação

reflexiva; sendo uma relação reflexiva, este "conhecimento" (ou intuição de segundo

tipo) tem como objeto ele mesmo (ou ela mesma); então, como este "conhecimento" (ou

intuição de segundo tipo) é uma espécie de autorrepresentação, logo este

"conhecimento" (ou intuição de segundo tipo) não pode ser falso. Não poderia haver

uma "falsa consciência".

Enfatizemos que o trecho que Peirce admite haver uma intuição é o seguinte: "toda

cognição, como algo presente, é, claro, uma intuição de si mesma" (CP 5.214 [1868])158

.

A interpretação que sustentamos neste ponto é que, ao tratar o "conhecimento" do

presente enquanto presente como "uma intuição de si mesma", Peirce está afirmando

que este tipo de "conhecimento" é um conhecimento reflexivo e, por isso, não poderia

ser considerado falível. Se for mesmo considerado um tipo de conhecimento, este

"conhecimento" (que Hausman [1993, p.61] preferiu chamar de consciência) é o único

tipo de conhecimento infalível admitido por Peirce em sua teoria da cognição

(apresentada no QFCM). Analisemos este ponto com mais paciência.

Quando tomo consciência de que estou pensando em x, imaginemos que (no lugar de

uma concepção) venha à minha mente a proposição "estou em estado de consciência de

que estou pensando em x". Note, então, que esta proposição tem como objeto de

representação o próprio estado de consciência da qual trata, ou seja, esta proposição

representa o próprio estado de consciência ou o próprio fato de se estar naquele estado

de consciência. Em resumo, esta proposição é uma autorrepresentação.

De acordo com a interpretação que estamos desenvolvendo, o que Peirce parece querer

dizer no trecho acima transcrito (CP 5.214 [1868]) é que, quando uma cognição está

presente, ela age como uma representação de si mesma ou uma "visão direta" de seu

objeto imediato. Neste caso, a cognição seria uma autorrepresentação. E, ao menos se

for respeitada "certa sensatez" manifesta na lógica clássica, não se pode afirmar que

uma autorrepresentação possa ser falsa. Para que uma representação seja falsa tem que

ser possível que haja alguma propriedade na representação que não seja encontrada

naquilo que é representado (ou vice-versa). Como há total coincidência entre

representante e representado, então não pode haver possibilidade alguma de uma

autorrepresentação ser falsa. Portanto, ela é sempre verdadeira159

.

157

cf. CP 5.214 [1868]. 158

Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself. 159

Descontadas as peculiaridades de exemplos "mais empíricos", é como se um diretor chamasse uma

pessoa para fazer o papel dela mesma numa peça sobre sua própria e vida, por algum motivo, os críticos

julgassem que tal pessoa não foi convincente no papel dela mesma.

Page 221: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

206

E onde entra o conceito de objeto imediato? Este conceito (conforme esta interpretação)

designa a própria forma ou padrão de x do qual estamos conscientes quando temos o

pensamento em x. Uma cognição, quando presente diante de uma mente, como

afirmamos, age como uma representação de si mesma ou uma "visão direta" de seu

(próprio) objeto imediato. Estar consciente do que se está pensando é ter este

"conhecimento" direto do objeto imediato. Este equacionamento entre o "objeto

imediato" e "aquilo do que se está consciente quando se tem uma cognição" é baseado

num raciocínio desenvolvido a partir de definições fornecidas pelo próprio Peirce no

primeiro parágrafo da Q3160

(CP 5.238 [1868]).

Argumento sobre correlação entre o conceito de "objeto imediato" e o conceito de

intuição como um "conhecimento" do presente como presente.

Premissa_1: O elemento objetivo (parte objetiva) de uma cognição é o objeto

imediato.

Premissa_2: O elemento objetivo de uma cognição é algo que é representado

(quando uma cognição está presente) ou é algo do qual estamos conscientes

(quando uma cognição está presente).

Conclusão: O objeto imediato é algo do qual estamos conscientes (quando uma

cognição está presente).

Esta interpretação do objeto imediato como uma forma que nos permite identificar um

pensamento como algo presente em nossa mente e a partir desse reconhecimento nos

remeter a algo diferente dele (que seria o seu significado, seu conteúdo) é muito

importante para entendermos a equação entre os termos "pensamento" e "signo" (a ser

feita na quinta questão).

Para que fechemos este excurso sobre o problema do segundo tipo de intuição, devemos

ressaltar mais uma vez que, de acordo com nossas análises, não é possível dentro das

linhas argumentativas desenvolvidas no QFCM negar a existência do que foi

denominado de segundo tipo de intuição, i.e., o tal "conhecimento" do presente como

presente. Por esse motivo, nossa tese é que o combate que Peirce trava desde as

primeira linhas do QFCM não é especificamente contra conceito de intuição, mas contra

160

Para maior conforto do leitor, reproduzimos a seguir a parte inicial deste parágrafo.

"Toda cognição envolve algo representado ou algo do qual se está consciente e alguma ação ou paixão do

eu pela qual ela se torna representada. A primeira pode ser denominada elemento objetivo [de uma

cognição], a última pode ser denominada elemento subjetivo [de uma cognição]. A cognição é em si

mesma uma intuição do seu elemento objetivo, que pode, portanto, ser chamado também de objeto

imediato" (CP 5.238 [1868]).

No original: "Every cognition involves something represented, or that of which we are conscious, and

some action or passion of the self whereby it becomes represented. The former shall be termed the

objective, the latter the subjective, element of the cognition. The cognition itself is an intuition of its

objective element, which may therefore be called, also, the immediate object".

Page 222: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

207

o "uso fundacional" deste conceito dentro de teorias e reflexões epistemológicas. Para

Peirce, o problema é menos o conceito em si do que a função ou a posição que ele

ocupa em determinados sistemas (como aquele construído por Descartes nas

"Meditações" ou mesmo no "Discurso do método" [cf. capítulo 3, seção 1 desta tese] ou

todos aqueles sistemas que são, de alguma forma, animados pelo que chamava de

"espírito do cartesianismo"). Uma evidência externa ao QFCM que apoia esta leitura é

o fato de, nos escritos tardios, Peirce ter construído um conceito que, embora se

assemelhasse muito à intuição, não possui um papel fundacional: o conceito de instinto

(correlacionado ao conceito de abdução)161

.

161

Cf. Santaella, 2004, p. 104-6.

Page 223: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

208

CAPÍTULO 7

Análise da quinta questão do texto "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas

para o homem"

A quinta questão do QFCM é o centro lógico do texto. O resultado das linhas

argumentativas desenvolvidas nas últimas questões convergem para a sustentação do

que denominamos de tese-base da semiótica peirceana. O objetivo geral de Peirce no

QFCM é estabelecer uma teoria que seja capaz de explicar diversas faculdades

cognitivas afirmando que o processo cognitivo ocorre na dependência de processos

inferenciais realizados a partir de fatos externos. De acordo com esta teoria inferencial

da cognição, todo e qualquer processo cognitivo é uma inferência que parte de algum

elemento externo tal como um signo. Numa "definição genérica", o signo é um

expediente sensível que uma mente utiliza para partir na direção de um objeto (i.e., de

algo representado). O signo é algo do qual se parte em direção ao objeto representado,

mas este ponto de partida é ele mesmo diferente do objeto ( o ponto de chegada), ele é

externo ao objeto. Como a teoria peirceana da cognição descreve qualquer tipo de

conhecimento como resultante de algum processo inferencial que parte de algo externo,

esta teoria estabelece que qualquer conhecimento depende de signos. Esta afirmação de

que o pensamento depende de signos é o que denominamos de tese-base (da semiótica

peirceana). As duas seções das quais é composto este sétimo capítulo são dedicadas a

dissecar o argumento dentro da Q5 que desemboca nesta tese-base e também algumas

consequências do estabelecimento desta tese dentro do projeto filosófico de Peirce.

Page 224: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

209

7.1 Análise (da primeira parte) da Q5: sobre a capacidade de

pensar sem signos

Questão 5: Se somos capazes de pensar sem signos.

Na quinta questão, o foco é voltado para o conceito de signo. O resultado de toda

argumentação desenvolvida no QFCM converge para o estabelecimento da seguinte

tese: "Não é possível haver pensamento sem signos" ou, na forma afirmativa, "todo

pensamento é pensamento em signos". Esta proposição será denominada em nossas

análises de tese-base da semiótica peirceana (por motivos que deverão ficar claros).

A estratégia argumentativa desenvolvida até a Q4 foi apresentar diversas evidências que

tornariam desnecessária a hipótese de que haja intuição. Na verdade, como em cada

uma das três últimas questões se desenvolveu uma explicação para o fenômeno sob

análise que tem como base a noção de inferência (que é uma capacidade que

reconhecidamente o homem possui), então tornou-se desnecessária qualquer menção a

uma capacidade cuja existência nos é desconhecida (i.e. uma capacidade que não

sabemos ao certo se possuímos ou não). E Peirce considera a intuição uma capacidade

cuja existência é desconhecida a partir da argumentação apresentada na Q1.

Todos os argumentos desenvolvidos em cada uma das questões apontaram para a

negação de que tenhamos alguma capacidade intuitiva. Nada que julgamos saber

podemos afirmar que o sabemos intuitivamente. Nada do que sabemos sobre o que

percebemos ou sentimos é produto de intuição, mas de nossa capacidade de fazer

inferências. Em outra palavras, não podemos saber de forma direta (intuitiva) o que os

sentidos percebem (i.e., os chamados dados sensórios). Também não podemos saber de

forma direta de nossa própria existência, nem das diferenças (de tipo) entre nossas

cognições e nem mesmo de nada que esteja "dentro" de nossas cabeças. Para que

saibamos de tudo isso, temos que recorrer a elementos externos. De acordo com Peirce,

é inferencial todo o conhecimento que temos do que percebemos, de nossa própria

existência, das diferenças entre nossas cognições e de qualquer estado interno de nosso

ego. O resultado parcial das respostas negativas a todas as quatro primeiras questões é

que não temos acesso direto nem mesmo ao "conteúdo" de nossos pensamentos. Para

que tenhamos uma compreensão mais clara, tentemos desenvolver um exemplo que

modele esta tese peirceana que não temos acesso direto nem mesmo ao que pensamos

(no exato momento em que pensamos)162

.

Imagine que nossos pensamentos sejam caixas. Por exemplo, um pensamento sobre uma

árvore de natal seria, neste modelo, uma caixa com uma certa concepção de árvore de

natal dentro. Podemos enxergar de forma bem distinta neste modelo do pensamento

162

A este respeito, cf. a exposição de Santaella (2004, p. 54 e 55).

Page 225: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

210

como caixas as duas teorias em contenda: aquela que recorre à capacidade da intuição e

afirma haver, em alguns casos, um conhecimento direto (intuitivo) e aquela outra teoria

que recorre apenas à capacidade de inferência e afirma que todo conhecimento é

indireto (inferencial). Se houvesse alguma cognição que fosse (com certeza) uma

intuição, então esta cognição seria uma caixa de vidro. Por ser translúcida, poderíamos

saber ou vir a conhecer imediatamente o que ela leva em seu interior. Toda a

argumentação de Peirce no QFCM tenta nos convencer que a existência de uma

cognição como essa (i.e., intuitiva) seria apenas uma hipótese (uma vez que não poderia

ser auto-evidente sem cair num círculo vicioso [cf. argumentação da Q1]) e esta

hipótese seria dispensável. A alternativa seria afirmar então que todas as cognições são,

de alguma forma, resultantes de inferência. Esta pode ser considerada a ideia central da

teoria da cognição desenvolvida por Peirce e apresentada no QFCM. Neste caso, a caixa

seria completamente opaca. Não saberíamos o que uma cognição ou pensamento

conteria até que recorrêssemos a alguma inferência que nos levasse a descobrir o seu

conteúdo. Óbvio está que, para descobrir o conteúdo, não se poderia abrir a caixa e

simplesmente olhar (pois, esta "olhadela" seria, dentro de nosso modelo, o equivalente a

recorrer a alguma espécie de intuição, o que a teoria peirceana não admite). Teríamos

que nos limitar a conhecer o interior da caixa somente por marcas exteriores. Somente

pelo o que Peirce chamou, ao longo da Q4, de fatos externos. Diante das imposições

dessa teoria, estamos condenados a nunca ter certeza absoluta do que estas caixas

carregam. Nesta situação, todo o conhecimento que teríamos do interior da caixa, de seu

conteúdo, seria hipotético. Teríamos, no máximo, boas hipóteses. Nunca certezas.

Estas consequências que podem ser observadas em nosso modelo dos pensamentos

como caixas devem valer também para aquilo que diz a respeito aos próprios

pensamentos. Uma das principais consequências das teses estabelecidas pela teoria

peirceana é a ideia de que não há conhecimento privilegiado. O conhecimento que

temos de nós mesmos, do que se passa dentro de nossas mentes, é obtido da mesma

forma que qualquer outro conhecimento: por inferências, a partir de sinais ou marcas, a

partir de fatos externos. Ao suprimir os privilégios do conhecimento acerca de fatos

internos, até mesmo o que sabemos de nós mesmos passa a ser tão hipotético quanto o

que sabemos do mundo externo. Esta é uma das consequências mais perturbadoras desta

teoria peirceana da cognição: não sou necessariamente melhor testemunha sobre o que

se passa dentro de meu "eu" do que outra pessoa. Muito distante de ser fonte irradiadora

de certezas, a existência do ego e também tudo o que dele se sabe constituem um

conhecimento hipotético dentre outros. Mesmo esta autoconsciência que, de fato, temos

é inferencial. Sei que existo não por ter encontrado, numa entediante tarde de domingo,

o pensamento cujo conteúdo é a afirmação "(eu) existo". Não topei (diretamente) com a

cognição "(eu) existo". Sei que existo, porque encontrei um signo (um sinal, uma

marca) dessa existência na minha própria experiência com fatos externos. Um signo do

qual pude inferir minha existência. Este conhecimento é só mais um ponto de chegada

de algum raciocínio e não um ponto de partida privilegiado, primordial163

. O meu

163

Em contraste com o projeto cartesiano de fundação do conhecimento que apresentamos de forma breve

no terceiro capítulo.

Page 226: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

211

conhecimento a respeito de minha própria existência foi resultado de uma inferência

realizada a partir de um signo de minha existência. De acordo com a exposição da

teoria, este signo seria o erro (e a ignorância). Como vimos na Q4, mesmo aquele tipo

de cognição cuja origem julgamos completamente interna, as emoções, não escapa de só

poder ser conhecida a partir de fatos externos, marcas externas.

Sustentar a tese de que só temos acesso aos nossos pensamentos a partir de fatos

externos é o mesmo que afirmar que este acesso só pode ocorrer na dependência de

signos. O signo seria o elemento externo a uma cognição específica a partir do qual se

pode ter acesso a tal cognição. Quando afirmamos que só podemos saber que estamos

em determinado estado emocional a partir de uma de suas marcas distintivas (alguma

consequência observável de tal estado), esta marca age como um signo, porque é ela que

representa para minha mente o estado emocional relativo àquele momento (em que a

notei). É o signo que me dá o acesso a tal estado. Peirce passa a utilizar na Q5 o termo

signo justamente para fazer uma referência geral ao caráter inferencial do conhecimento

que obtemos acerca de nós mesmos e do mundo externo. Porém, se não podemos

conhecer nada diretamente, se apenas conhecemos o "conteúdo" de um pensamento a

partir de algo externo a ele, então todo pensamento deve levar a algum outro

pensamento, sendo que este nos "revela" o conteúdo daquele (ou seja, o último nos

permite saber por inferência o que hipoteticamente há no primeiro). Assim, como o

segundo pensamento também deve levar a um terceiro, não há como evitar a conclusão

de que não pode haver ponto de origem, nem ponto final (embora seja previsto, pela

teoria, um ponto de convergência [nalguns casos em que forem cumpridas certas

condicionantes]). Esta é outra das consequências perturbadoras da teoria peirceana da

cognição que acabam por afastá-la do modo como o senso comum entende o que

significar pensamento. Porém, teremos mais espaço adiante na análise desta Q5 (e

também da última questão) para avaliarmos tais consequências.

Como a quinta questão é o ponto de convergência do QFCM, ela tem uma estrutura

diferente das questões anteriores. Peirce não começa pela definição do conceito-chave

desta questão (que seria o conceito de signo) e nem passou em seguida a argumentar

contra a auto-evidência da capacidade sob questionamento (que seria a de pensar sem

recorrer a signos). Em primeiro lugar, é possível que Peirce não tenha definido o termo

"signo" neste ponto do QFCM ou por ter considerado que o termo seria usado num

sentido comum (e, por isso, não precisaria ser definido) ou por ter considerado que a

concepção de signo já teria sido bem esclarecida num artigo anterior, "sobre uma nova

lista de categorias" (CP 1.545 - 59 [1867]). Em segundo lugar, Peirce não argumentou

contra a auto-evidência da capacidade de se pensar sem signos provavelmente por dois

motivos: pelo fato de todas as linhas argumentativas desenvolvidas até a Q5 nos levar

diretamente para a negação desta capacidade e também, caso desconsiderássemos este

primeiro motivo, por uma questão de redundância, pois a argumentação seguiria as

mesmas linhas daquelas desenvolvidas nas outras questões.

Page 227: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

212

Argumento sobre a auto-evidência da capacidade de pensar sem signos

Premissa1: Se fosse auto-evidente que temos a capacidade de pensar sem signos,

então só poderíamos saber intuitivamente que temos tal capacidade.

Premissa2: Se soubéssemos intuitivamente que temos a capacidade de pensar sem

signos, então teríamos a capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de

cognições determinadas (por outras cognições).

Premissa 3 (estabelecida em Q1): Não temos a capacidade intuitiva de distinguir

uma intuição de cognições determinadas (por outras cognições).

Conclusão: Não é auto-evidente que tenhamos a capacidade de pensar sem signos.

Como não é evidente por si mesmo que tenhamos a capacidade de pensar sem recorrer a

signos, então devemos buscar evidências. A primeira evidência favorável a tal

capacidade é apresentada no primeiro parágrafo da Q5 e é a ideia de que não pode haver

uma cadeia infinita de signos. Algo, que não seja um signo, deve precedê-los. Quando

nos pomos a pensar é evidente que há um primeiro pensamento, pois havia um tempo

no qual não estávamos pensando. A evidência seria o fato de ter que haver um início, ou

seja, haveria, então, um pensamento que não seria antecedido por um signo, pois este

pensamento faria o papel de ponto de partida. Nestas primeiras linhas da Q5, Peirce

traça um paralelo com o paradoxo de Zenão. O fato de, no QFCM, de acordo com esta

evidência, ter que haver um início na série de pensamentos é o equivalente, no paradoxo

de Zenão, a ter que haver a ultrapassagem da tartaruga por Aquiles. Portanto, a pergunta

se Aquiles é capaz de ultrapassar a tartaruga é, para Peirce, equivalente à pergunta se

somos capazes de pensar sem signos.

Esta é uma questão164

familiar, mas não há até hoje argumento melhor para

respondê-la de forma afirmativa do que aquele segundo o qual pensamento

deve preceder qualquer signo. Este argumento assume a impossibilidade de

uma série infinita. Mas Aquiles, de fato, irá ultrapassar a tartaruga. Como isto

ocorre é uma questão que não precisa necessariamente ser, neste momento,

respondida, na medida que isto certamente ocorre.

(CP 5.250 [1868])165

Neste ponto do texto, portanto, Peirce não explica como seria possível haver uma série

infinita de signos. Subentende-se da estratégia evasiva (facilmente) perceptível neste

trecho que se deveria deixar de lado o fato de ter que haver um começo e prestar

atenção às evidências coletadas em todas as questões anteriores, pois o conjunto delas

aponta para uma resposta negativa à Q5, ou seja, as linhas argumentativas que começam

164

Peirce se refere à quinta questão do QFCM. 165

No original: "This is a familiar question, but there is, to this day, no better argument in the affirmative

than that thought must precede every sign. This assumes the impossibility of an infinite series. But

Achilles, as a fact, will overtake the tortoise. How this happens, is a question not necessary to be

answered at present, as long as it certainly does happen".

Page 228: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

213

nas demais questões apontam para a tese que nega que tenhamos a capacidade de pensar

sem signos. Note que o fato (de ter que haver um inicio) nos obrigaria a assumir a

proposição que afirma ser impossível haver uma série infinita. É com esta proposição

que se pode construir o argumento que Peirce considerou o melhor para sustentar uma

resposta afirmativa à Q5. Podemos explicitar tal argumento da seguinte forma:

Argumento para sustentar uma resposta afirmativa à Q5:

Premissa1 (implícita): Se houvesse algum signo que não fosse precedido por

pensamento, então este signo seria determinado por uma série infinita de outros

signos.

Premissa2 (implícita): Se tal signo fosse determinado por uma série infinita de

outros signos, então seria possível haver uma série infinita.

Premissa3: é impossível haver uma série infinita.

Conclusão: Todo signo deve ser precedido por pensamento166

.

É notável que, desta vez, e isto é um sinal da adoção de uma estratégia evasiva, Peirce

não desmontou o argumento favorável à existência da capacidade sob investigação

(como fez nas demais questões) antes de seguir para argumentação favorável à

inexistência. Na verdade, como veremos na análise da argumentação geral desta Q5,

Peirce posterga ao máximo o enfrentamento deste espinhoso problema das séries

infinitas por um motivo muito simples: durante a Q5, ele terá que começar a enfrentar

um problema logicamente anterior, a questão do incognoscível. Diz-se logicamente

anterior porque a incognoscibilidade é um problema teórico cuja solução condiciona a

resposta a ser dada à questão das séries infinitas. Além do mais, como também veremos

na análise que se segue, o tratamento dado ao problema do incognoscível durante a

quinta questão foi muito breve (até porque não era este o foco da Q5) e, por este motivo,

tal problema é recolocado no centro da sexta questão do QFCM. Na verdade, a Q6 foi

separada para tratar somente deste ponto. Assim, Peirce deixa para apresentar sua

solução teórica para o problema das séries infinitas e seu caráter (aparentemente)

paradoxal apenas na sétima e última questão do QFCM.

166

Outra versão de argumento pode ser a seguinte:

Argumento para sustentar uma resposta afirmativa à Q5 (segunda versão):

Premissa1 (implícita): ou Todo pensamento é precedido por signos ou Todo signo deve ser precedido por

pensamento.

Premissa2 (implícita): Se todo o pensamento for precedido por signos, então há uma série infinita.

Premissa3: é impossível haver uma série infinita.

Conclusão: Todo signo deve ser precedido por pensamento.

Page 229: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

214

Tendo adiado o confronto com o argumento favorável à capacidade de pensar sem

signos, Peirce desenvolve, já no segundo parágrafo da Q5, o argumento que nega tal

capacidade. A negação de que podemos pensar sem signos, como já foi dito, constitui

não apenas o resultado das quatros respostas negativas dadas às questões anteriores, mas

também pode ser considerada a tese central do QFCM.

Se procurarmos à luz de fatos externos, os únicos casos de pensamento que

podemos encontrar são de pensamentos em signos. Simplesmente, não há

outro [tipo de] pensamento que possa ser evidenciado por fatos externos.

Porém, vimos que apenas por fatos externos os pensamentos podem ser, de

alguma forma, conhecíveis. Então, o único [tipo de] pensamento que pode ser

conhecido é o pensamento em signos. Mas, pensamentos que não podem ser

conhecidos não existem. Todo pensamento, portanto, deve necessariamente

ser em signos.

(CP 5.251 [1868])167

Antes de começar a explicitar o argumento deste ponto do texto para que possamos

analisá-lo, devemos, em primeiro lugar, numerar todas as proposições do trecho acima

transcrito, uma vez que isto nos facilitará a análise. Em segundo lugar, tentemos

também encontrar e esclarecer algumas equivalências entre os termos utilizados nestas

proposições, pois são tais equivalências que devem nos permitir reescrever estas

proposições com os mesmos termos (sem lhes alterar o sentido). Comecemos por

numerar as proposições deste trecho.

Proposições do segundo parágrafo texto original (CP 5.251 [1868])

Primeira proposição --> Se procurarmos à luz de fatos externos, os únicos casos

de pensamento que podemos encontrar são de pensamentos em signos.

Segunda proposição --> Não há outro [tipo de] pensamento que possa ser

evidenciado por fatos externos.

Terceira proposição --> Apenas por fatos externos os pensamentos podem ser, de

alguma forma, conhecíveis.

Quarta proposição --> O único [tipo de] pensamento que pode ser conhecido é o

pensamento em signos.

Quinta proposição --> Pensamentos que não podem ser conhecidos não existem.

Sexta proposição --> Todo pensamento deve necessariamente ser em signos.

167

No original: "If we seek the light of external facts, the only cases of thought which we can find are of

thought in signs. Plainly, no other thought can be evidenced by external facts. But we have seen that only

by external facts can thought be known at all. The only thought, then, which can possibly be cognized is

thought in signs. But thought which cannot be cognized does not exist. All thought, therefore, must

necessarily be in signs".

Page 230: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

215

Na primeira proposição deste parágrafo Peirce afirma que só podemos encontrar um

tipo de pensamento se nos limitarmos a procurá-los à luz de fatos externos. O tipo de

pensamento que seria encontrado seria o pensamento em signos. Nesta proposição, nada

foi afirmado sobre alguma outra situação em que se poderia procurar sob outras

condições (por exemplo, à luz dos fatos internos). Porém o que se quer dizer com as

expressões "procurar pensamentos" e "encontrar pensamentos"? É provável que Peirce

esteja se referindo, com outros termos, ao que foi estabelecido ao final da Q4: que não

há capacidade de introspecção e a única forma de investigar fatos internos (as chamadas

"questões psicológicas") seria por inferência de fatos externos (cf. CP 5.249 [1868]).

Então, obviamente Peirce se limita a "procurar pensamentos" a partir de fatos externos,

pois o resultado da Q4 nos garante que esta era única maneira encontrá-los. Nesta

primeira proposição, tudo nos leva a crer que Peirce utiliza o verbo "encontrar"

(pensamentos) como sinônimo de "conhecer" ou "ter acesso a" (pensamentos). Esta

equivalência é coerente com as teses que o filósofo vem defendendo desde o início do

QFCM. É de se esperar que, num texto em que se esteja construindo uma teoria

epistemológica, o proponente se utilize de diversos termos que considere (ainda que

implicitamente) sinônimos do termo conhecimento (ou da expressão metafórica que

seria equivalente: "ter acesso").

Recordemos que a partir das teses sustentadas até o Q4, todos os pensamentos

"encontrados" apenas se tornaram conhecidos a partir de algo externo a eles mesmos.

De acordo com tais teses, um pensamento só pode ser conhecido a partir de algo externo

(que não se confunde com ele mesmo). Este fato externo, ao longo da argumentação das

outras questões, era sempre uma marca ou, na terminologia que Peirce passou a utilizar

a partir da Q5, um signo. Por exemplo, ao praguejar contra um objeto no qual

tropeçamos nos tornamos conscientes de que estamos com raiva. Assim, as palavras

proferidas (e também o tom em que elas foram proferidas) contra o objeto constituem

um signo (uma marca) de que estamos com raiva (do objeto). Neste exemplo, é

justamente este elemento externo que nos dá acesso ao nosso estado emocional. Então,

nesta primeira proposição, substituamos as expressões "procurar (pensamentos)" e

"encontrar (pensamentos)" por "conhecer (pensamentos)". Em segundo lugar,

troquemos o termo "caso" por "tipo", pois isto nos facilitará bastante a explicitação

deste argumento. Portanto, a primeira equivalência proposta em nossa análise pode ser

expressa da seguinte forma:

Equivalência n°1 para o argumento para estabelecimento da tese-base da

semiótica peirceana

"se procurarmos à luz de fatos externos, os únicos casos de pensamento que

podemos encontrar são de pensamentos em signos"

é equivalente à

"O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é o pensamento

em signos".

Page 231: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

216

Com relação à segunda proposição deste segundo parágrafo da Q5, também temos uma

proposta de equivalência. Neste caso, pretendemos estabelecer que a expressão (na

verdade, o predicado diádico) "______ ser evidenciado por______" pode ser substituída

pela expressão "______ pode ser conhecido a partir de______". Vejamos o porquê. Se

invertermos (para a voz ativa este trecho que está na voz passiva), teremos a seguinte

afirmação: "fatos externos não evidenciam nenhum outro [tipo de] pensamento". Por

sua vez, o verbo "evidenciar" parece ser, neste trecho, sinônimo das expressões "tornar

claro, manifesto ou evidente", o que nos aproxima bastante da ideia de conhecimento.

Tornar algo claro, manifesto ou evidente é torná-lo, de alguma forma, conhecido ou, ao

menos, torná-lo passível de ser conhecido, i.e., torná-lo conhecível ou cognoscível (este

é um termo mais técnico a ser usado, sobretudo, na sexta questão). Note, por exemplo,

que a afirmação "fatos externos não tornam manifesto nenhum outro [tipo de]

pensamento" é equivalente à afirmação "fatos externos não tornam conhecido nenhum

outro [tipo de] pensamento" ou à afirmação "fatos externos não tornam conhecível ou

cognoscível nenhum outro [tipo de] pensamento". Encontrada esta equivalência, o

próximo passo é invertemos novamente esta frase (e recolocá-la na chamada voz

passiva, que é sua "forma" original): "nenhum outro [tipo de] pensamento pode ser

conhecido a partir de fatos externos". Chegamos, assim, à segunda equivalência.

Equivalência n°2 para o argumento para estabelecimento da tese-base da

semiótica peirceana

"não há outro [tipo de] pensamento que possa ser evidenciado por fatos externos"

é equivalente à

"nenhum outro [tipo de] pensamento pode ser conhecido a partir de fatos

externos".

Uma última observação acerca de equivalências deve ser feita. Durante toda a análise

desta Q5 bem como da Q6, utilizaremos o termo "cognoscível" como sinônimo do

adjetivo "conhecível" ou da expressão "que pode ser (de alguma forma) conhecido".

Apresentadas tais equivalências, antes de partirmos para a explicitação do argumento

propriamente dito, lancemos mão de apenas mais um artifício que deve nos facilitar a

exposição: uma suposição. Como a meta de Peirce neste trecho é estabelecer que "todo

pensamento é pensamento em signos", suponhamos, desde já, que existem apenas dois

tipos de pensamento (no que diz respeito à sua relação com signos): há o tipo I

denominemo-lo de pensamento sem signos e há o tipo II denominemo-lo de

pensamento em signos. De acordo com o primeiro deles, o homem seria capaz de pensar

sem recorrer a signos, i.e., ele seria capaz de ter acesso a um pensamento ou cognição

sem utilizar qualquer elemento que fosse externo a este pensamento ou cognição; este

Page 232: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

217

acesso se daria por uma mera contemplação imediata de tal pensamento ou cognição.

De acordo com o segundo desses tipos, o acesso a um pensamento ou cognição se daria

a partir de algum elemento (alguma marca ou sinal) externo a este pensamento ou

cognição; este acesso não seria, portanto, direto, pois seria mediado por este elemento

externo.

Com esta suposição e com aquelas equivalências já estabelecidas, já podemos

apresentar as duas primeiras proposições deste parágrafo como as duas primeiras

premissas do argumento que pretendemos analisar.

Primeiro trecho do argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica

peirceana

[Suponha que existam dois tipos de pensamento: o pensamento sem signos

(tipo I) e o pensamento em signos (tipo II)]

Premissa1: O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é o

pensamento do tipo II (i.e., o pensamento em signos).

Premissa2: Nenhum outro tipo de pensamento pode ser conhecido a partir de fatos

externos.

Conclusão (intermediária): Pensamentos do tipo I não podem ser conhecidos a

partir de fatos externos.

Notemos que, dessas duas proposições não há muito para concluir. Elas nada dizem a

respeito dos pensamentos de tipo I (i.e. pensamentos sem signos), exceto que não

podem ser conhecidos a partir de fatos externos (o que de certa forma já está

evidenciado na premissa2). Na verdade, estas premissas nada dizem a respeito da

possibilidade de haver (ou se encontrar) algum caso de pensamento que pertença ao tipo

I e que fosse conhecível por fatos internos (e não por fatos externos). Apenas com estas

premissas (as duas primeiras proposições), fica aberta a possibilidade de haver então

algum pensamento que não recorra a signos (por isso, pertenceria ao tipo I) e que só

fosse acessível a partir de fatos internos. É justamente desta possibilidade que Peirce vai

passar tratar em seguida. O próximo passo em sua argumentação é justamente "fechar

estar porta". A terceira proposição deste parágrafo da Q5 nega que haja tal possibilidade

(com base na argumentação desenvolvida no Q4). Então, depois de negada a

possibilidade de se conhecer qualquer pensamento a partir de fatos internos, Peirce parte

para concluir que "o único pensamento que poderia ser conhecível seria o pensamento

em signos". Esta é a quarta proposição no texto original. Entretanto, não é difícil notar

que Peirce deixou nas entrelinhas alguns passos lógicos desse argumento. Devemos

explicitá-lo, pois é exatamente neste trecho que surge, pela primeira vez no QFCM, a

questão do incognoscível.

Page 233: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

218

Repassemos os primeiros passos. Apenas com as duas primeiras premissas sabemos que

a partir de fatos externos só são conhecíveis pensamentos do tipo II e de nenhum outro

tipo pode ser assim conhecido. Então, comecemos a imaginar um cenário em que

houvesse algum pensamento do tipo I. Este pensamento obviamente não seria

conhecível a partir de fatos externos, pois, se o fosse, ele deveria, graças à premissa2,

pertencer ao tipo II (e não ao tipo I como supomos). Então, se houver algum

pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem signos), este pensamento do tipo I não

seria conhecível a partir de fatos externos. Esta é nossa terceira premissa.

Premissa3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem

signos), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos

externos.

Enfatizemos que esta proposição (que constitui a terceira premissa) não está no texto

peirceano. Ela é produto de uma explicitação que propomos do argumento do autor.

Vejamos, então, o próximo ponto. Se, neste cenário possível, há um pensamento

pertencente ao tipo I e tal pensamento não pode ser conhecível a partir de fatos externos,

então só nos resta considerar duas possibilidades: ou este pensamento do tipo I (que

supomos existir) pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento do

tipo I (que supomos existir) não é conhecível de forma alguma. Não há um terceiro

caminho, uma vez que este (hipotético) pensamento do tipo I não pode ser conhecível a

partir de fatos externos (pois, se fosse, pertenceria ao tipo II). Esta bifurcação está

representada na quarta premissa.

Premissa4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de fatos

externos, então só nos restam duas possibilidades: ou este pensamento do tipo I

pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento do tipo I não é

conhecível de forma alguma.

É de fundamental importância compreender por qual motivo ocorre esta bifurcação (ou

disjunção) neste condicional. Toda argumentação que Peirce desenvolveu nas quatro

questões anteriores estava direcionada ao pensamento que, de alguma forma, poderia ser

conhecido. Desde a Q1, Peirce aparentemente vem tratando de cognições (ou

pensamentos) em geral. Em cada uma das questões subsequentes, Peirce se perguntava

se um pensamento específico (ou um tipo de pensamento) exigiria certa capacidade

ligada à noção de intuição ou poderia ser explicado apenas a partir de faculdades cuja

existência não se duvida que o homem possua (como a capacidade de fazer inferências a

partir de elementos exteriores ao pensamento [ou tipo de pensamento] sob

investigação). A estratégia peirceana foi concentrar sua força no ataque à suposta

capacidade intuitiva de distinguir intuições de cognições derivadas (o que foi executado

na Q1) e também foi criar, por todo QFCM, linhas de defesa cuja finalidade era

Page 234: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

219

sustentar a hipótese geral de que as explicações que recorriam à inferência estavam

sempre em melhores condições (para cumprir seus propósitos teóricos) do que as

explicações que recorriam à intuição. A hipótese geral de que a inferência é sempre uma

explicação melhor estava apoiada no ataque inicial (realizado durante a Q1) à suposta

capacidade intuitiva de distinguir intuições que teria demonstrado haver uma fraqueza

"congênita"168

em todas explicações que recorrem à intuição.

Para combater a intuição e, sobretudo, a certeza e infalibilidade que a ela estão

associadas, Peirce optou por sustentar a tese que todo pensamento só é conhecido

inferencialmente a partir de algo diferente dele (uma marca, um sinal, em resumo, um

signo). Note que tal tese só faz referência a pensamentos que possam ser conhecidos.

Talvez este ponto fique mais claro se colocarmos esta tese da seguinte forma: Se "p" é

um pensamento conhecível, então "p" é conhecível apenas em virtude de uma inferência

(nunca de forma direta). Se prestarmos atenção no antecedente desta tese (apresentada

na forma de condicional), notaremos que tal afirmação trata apenas do conjunto dos

pensamentos conhecíveis. Nada foi afirmado (nem negado) com relação aos elementos

que estão fora deste conjunto, i.e., aos pensamentos não-conhecíveis. Todas as linhas

argumentativas peirceanas convergiram para sustentar uma tese que versa "somente"

sobre elementos pertencentes a um domínio: o conjunto de todos os pensamentos que

podem ser conhecidos ("acessados" ou "encontrados"). Por este exato motivo, no início

(deste parágrafo) da Q5, as únicas proposições que Peirce tem estabelecidas são

relativas a tal domínio169

.

Este ponto é crucial para todo o QFCM. Não fosse esta bifurcação, o argumento

peirceano rumo à tese de que "todo pensamento é pensamento em signos" poderia ser

desenvolvido sem muitos problemas, de forma mais direta.

168

Referimo-nos à falácia denominada petitio principii da qual tratamos nas análises da Q1. 169

Nestas análises nos comprometemos a revelar a estrutura do argumento geral construído por Peirce no

QFCM. Temos tentado só utilizar nestas análises recursos fornecidos internamente no texto estudado.

Bem à moda estruturalista. Porém, como estamos acomodados numa nota-de-roda-pé, nada nos impede

de fazer uma observação realizada a partir de um ponto externo ao texto em questão. Para "quem olha de

fora", não é difícil saber por qual motivo Peirce, no QFCM, somente trata daquelas cognições ou

pensamento que sejam conhecíveis. Conforme visto nos capítulos que dedicamos a um panorama

histórico, o motivo pelo qual Peirce entrou numa luta contra as epistemologias que recorriam ao conceito

da intuição foi justamente a percepção de que seu próprio projeto epistemológico dependia da negação do

incognoscível. Admitida a existência de qualquer incognoscibilidade, deixaria de funcionar a sua teoria

social da lógica e os raciocínios ampliativos não poderiam ter validade. Ainda que fiquemos uma centena

de páginas examinando minuciosamente os detalhes dos principais pormenores de cada linha do texto

peirceano, é necessário que tenhamos a visão de conjunto do projeto do filósofo. Isto explica o fato de

termos dedicados os três primeiros capítulos desta tese à tarefa de oferecer uma visão geral deste período

inicial do pensamento peirceano. Aqueles três capítulos panorâmicos servem para compensar a tendência

estruturalista dos capítulos de análise.

Page 235: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

220

Argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica peirceana

desconsiderando a questão do incognoscível

Premissa_A1: O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é

o pensamento do tipo II (i.e., o pensamento em signos).

Premissa_A2: Nenhum outro tipo de pensamento pode ser conhecido a partir de

fatos externos.

Premissa_A3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem

signos), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos

externos.

Premissa_A4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de

fatos externos, então este pensamento do tipo I pode ser conhecível a partir de

fatos internos.

Premissa_A5: Se este pensamento do tipo I pudesse ser conhecível a partir de

fatos internos, então deveria, neste caso, ser possível conhecer pensamentos a

partir de fatos internos.

Premissa_A6: É impossível conhecer pensamentos a partir de fatos internos.

Conclusão_A: Não há pensamento que pertença ao tipo I (i.e., o pensamento sem

signos).

Estabelecida esta conclusão, chega-se imediatamente à tese: "todo pensamento é

pensamento em signos". Entretanto, não é isso que ocorre no QFCM. Devido às

afirmações sustentadas por argumentos já desenvolvidos, Peirce deve levar em conta

aquela alternativa na premissa4. A partir do momento que se supõe existir algum

pensamento do tipo I (i.e., pensamento sem signos), abrem-se dois caminhos: ou este

pensamento do tipo I pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento

do tipo I não é conhecível de forma alguma. Vejamos que se tomarmos o primeiro

caminho, então acabaríamos entrando em contradição com aquela proposição que

afirma que "só podemos conhecer os pensamentos a partir de fatos externos" (obtida na

Q4). Esta é a terceira proposição (deste segundo parágrafo) no texto original. No

argumento que estamos explicitando nesta análise, esta proposição aparece como a

premissa6. Como este primeiro caminho resulta numa contradição, para continuar

supondo que haja algum pensamento do tipo I, só nos resta o segundo caminho (que

afirma que tal pensamento não seria conhecível de forma alguma). Assim, de todas estas

premissas, podemos concluir que a única possibilidade de haver algum pensamento do

tipo I é se ele fosse um pensamento que não poderia ser conhecido de forma alguma (ou

seja, uma pensamento que não seria conhecível a partir de fatos internos, nem externos).

Isto pode ser colocado da seguinte forma: "ou não há pensamento que pertença ao tipo I

(i.e., o pensamento sem signos) ou (se houver), este pensamento do tipo I não pode ser

Page 236: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

221

conhecido de forma alguma". Desse modo, fechamos (apenas) o segundo trecho do

argumento desenvolvido neste segundo parágrafo.

Segundo trecho do argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica

peirceana

Premissa3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem

signos), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos

externos.

Premissa4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de fatos

externos, então só nos restam duas possibilidades: ou este pensamento do tipo I

pode ser conhecível a partir de fatos internos ou este pensamento do tipo I não é

conhecível de forma alguma.

Premissa5: Se este pensamento do tipo I pudesse ser conhecível a partir de fatos

internos, então deveria, neste caso, ser possível conhecer pensamentos a partir de

fatos internos.

Premissa6 (estabelecida na Q4): É impossível conhecer pensamentos a partir de

fatos internos.

Conclusão (intermediária): Logo, ou não há pensamento que pertença ao tipo I

(i.e., o pensamento sem signos) ou (se houver), este pensamento do tipo I não

pode ser conhecido de forma alguma.

Com esta conclusão, ainda não podemos chegar à meta, que é a seguinte tese: "todos os

pensamentos são pensamentos em signos". Para alcançá-la seria necessário que se

concluísse, neste argumento que ora analisamos, que "não há nenhum pensamento que

pertença ao tipo I", proposição que é obviamente equivalente à afirmação de que "todos

os pensamentos pertencem ao tipo II". Porém, o ponto de chegada deste segundo trecho

(o que chamamos de conclusão intermediária) não afirma que não há pensamentos de

tipo I. O que temos nesta conclusão é mais uma vez uma disjunção. Diante de uma

disjunção "A ou B", se quisermos obter a afirmação de uma das partes (de um dos

disjunctos), devemos conseguir a negação da outra parte. É justamente o que ocorre.

Neste ponto da argumentação, Peirce introduz a seguinte proposição que acaba por fazer

este papel: "pensamentos que não podem ser conhecidos não existem" ou, afirmada de

outra forma, "todos os pensamentos são cognoscíveis". Esta é a quinta proposição no

texto original e a premissa8 em nossa explicitação da argumentação peirceana. No

terceiro trecho deste argumento (apresentado a seguir), acrescentamos uma proposição

(condicional) denominada de "premissa7" para fazer uma espécie de ligação entre o que

foi afirmado na proposição final do segundo trecho (o que foi chamado de conclusão

intermediária) e a premissa8.

Page 237: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

222

Terceiro trecho do argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica

peirceana

Conclusão do segundo trecho: Ou não há pensamento que pertença ao tipo I

(i.e., o pensamento sem signos) ou (se houver), este pensamento do tipo I

não pode ser conhecido de forma alguma.

Premissa7: Se este pensamento de tipo I não pode ser conhecido de forma algum,

então existe (ao menos um) pensamento que não pode ser conhecido.

Premissa8: Não existem pensamentos que não possam ser conhecidos.

Conclusão: Não há pensamento que pertença ao tipo I (i.e., o pensamento sem

signos).

Antes de voltarmos nossa atenção para a conclusão que segue de todos os trechos deste

argumento, façamos mais algumas observações sobre esta importante proposição que

foi denominada de premissa8. Além de ter sido indispensável neste argumento que

estabeleceu dentro do QFCM a tese de que "todo o pensamento é pensamento em

signos", esta proposição será requerida novamente nas argumentações desenvolvidas na

Q6 e, depois, na Q7. Neste trecho, Peirce não sustenta esta premissa8 em nenhuma

argumentação anterior. A explicação mais plausível seria a de que a proposição seria

garantida pela própria definição de pensamento (ou cognição) e, por isso, não poderia

haver algum pensamento que não pudesse ser conhecido. Não poderia haver uma

cognição incognoscível. Embora, no texto, não haja nenhum esclarecimento sobre o

ponto de sustentação desta proposição, o mais comum, entre os comentadores da obra

peirceana, é aceitar estar explicação (bem plausível, aliás) apresentada acima. Por

exemplo, em sua análise destas passagens do QFCM, De Waal sustenta de forma bem

direta a tese que Peirce efetivamente considera a "cognoscibilidade" ou a possibilidade

de ser conhecido como parte essencial da ideia de cognição. De acordo com De Waal, o

posicionamento peirceano no QFCM é que "pertence à essência do pensamento a

possibilidade de ser conhecido (pensamentos incognoscíveis são uma contradição em

termos)" (De Waal, 2007, p. 29).

A partir do conjunto das premissas apresentadas nesta análise (ainda que nem todas

estejam explícitas no argumento do texto original), já é possível concluir que "todo o

pensamento é pensamento em signos" (sexta proposição na exposição original). A

seguir reapresentamos todas estas premissas seguida desta conclusão. Colocadas ao

final de cada proposição, as letras (bem como o sinal de negação nalguns casos) servem

para nos ajudar a identificar esta proposição na versão formalizada deste argumento

(que é apresentada logo em seguida).

Page 238: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

223

Argumento para estabelecimento da tese-base da semiótica peirceana

Premissa1: O único tipo de pensamento conhecível a partir de fatos externos é o

pensamento do tipo II (i.e., o pensamento em signos) (P).

Premissa2: Nenhum outro tipo de pensamento pode ser conhecido a partir de fatos

externos (R).

Premissa3: Se houver algum pensamento do tipo I (i.e., o pensamento sem signos)

(Q), então este pensamento do tipo I não seria conhecível a partir de fatos

externos (~S).

Premissa4: Se este pensamento do tipo I não pode ser conhecível a partir de fatos

externos (~S), então só nos restam duas possibilidades: ou este pensamento do

tipo I pode ser conhecível a partir de fatos internos (T) ou este pensamento do

tipo I não é conhecível de forma alguma (U).

Premissa5: Se este pensamento do tipo I pudesse ser conhecível a partir de fatos

internos (T), então deveria, neste caso, ser possível conhecer pensamentos a

partir de fatos internos (V).

Premissa6 (estabelecida na Q4): É impossível conhecer pensamentos a partir de

fatos internos (~V).

Premissa7: Se este pensamento de tipo I não pode ser conhecido de forma algum

(U), então existe (ao menos um) pensamento que não pode ser conhecido (W).

Premissa8: Não existem pensamentos que não possam ser conhecidos (~W).

Conclusão: Não há pensamento que pertença ao tipo I (i.e., o pensamento sem

signos) (~Q).

Esta tese é a resposta (novamente negativa) à quinta questão. A incapacidade referida

nesta tese é o resultado direto das incapacidades às quais Peirce chegou em cada uma

das questões anteriores, sobretudo, a quarta delas. Em nossa explicitação do argumento

peirceano neste segundo parágrafo, optamos por utilizar um tipo de raciocínio

conhecido pelo nome de "redução ao absurdo". Como o alvo de Peirce neste trecho era

atingir a tese que afirma "não haver capacidade de se pensar sem signos", optamos por

começar o raciocínio pela suposição da tese contrária: de que "há, ao menos, um

pensamento que possa ser pensado na ausência de signos", o que é o mesmo que supor

que "temos a capacidade de pensar sem signos". A partir das premissas fornecidas e de

tal suposição, foi derivada uma contradição. E a partir desta contradição se conclui a

negação do que foi suposto. No seguinte esquema (obtido a partir da formalização do

argumento), fica mais fácil de "enxergar" estes movimentos:

Page 239: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

224

1. P Pr.

2. R Pr.

3. Q --> ~S Pr.

4. ~S --> T v U Pr.

5. T --> V Pr.

6. ~V Pr.

7. U --> W Pr.

8. ~W Pr.

9. | Q H

10. | ~S MP 3,9

11. | T v U MP 4,10

12. | ~T MP 5,6

13. | U SD 11,12

14. | W MP 7,13

15. | W ^ ~W Ad. 8,14

16. ~Q ctr. 15

Repare que na linha nove introduzimos como uma hipótese a afirmação de que

"temos a capacidade de pensar sem signos". Então, partindo desta suposição (e lançando

mão das oito premissas apresentadas anteriormente), chegamos a uma contradição, que,

na formalização, aparece no décimo quinto passo. A contradição é que, raciocinando a

partir da hipótese (de que é possível se pensar sem signos), chegamos à afirmação de

que "existem pensamentos que não possam ser conhecidos". Entretanto, de acordo com

a oitava premissa, "não existem pensamentos que não possam ser conhecidos". Por este

motivo, na linha seguinte à descoberta de tal contradição, concluímos que aquilo que era

afirmado na suposição não podia ser verdadeiro. Logo, o resultado é que "não somos

capazes de pensar sem signos". Como o argumento que sustenta a resposta à quinta

questão é apresentado (ainda que de forma bastante tácita) já no segundo parágrafo, os

demais parágrafos da Q5 são dedicados a alguns esclarecimentos (mas, não muitos)

acerca da tese bem como algumas de suas principais consequências.

Page 240: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

225

7.2 Análise (da segunda parte) da Q5: sobre a capacidade de

pensar sem signos

A argumentação de Peirce em toda a Q5 é fragmentária e cheia de saltos. Ao que tudo

indica, no terceiro parágrafo (CP 5.252 [1868]), ele continua, de alguma forma, lidando

com a proposição de que "não existem pensamentos que não possam ser conhecidos".

Neste terceiro parágrafo da Q5, Peirce parece tentar esclarecer que esta proposição se

refere basicamente a uma potencialidade e não a uma atualidade. Ao negar que não há

pensamentos que não possam ser conhecidos não se está afirmando que todos os

pensamentos sejam atualmente ou factualmente conhecidos, mas apenas que todos são,

em princípio, conhecíveis. O termo utilizado ao final deste terceiro parágrafo (CP 5.252

[1868]) é (pensamentos) "distinguíveis". Assim, Peirce passa a tratar de um caso em que

haveria um pensamento não-conhecido ou, ao menos, um "pensamento que não teria

sido efetivamente conhecido". No exemplo fornecido, Peirce supõe uma situação na

qual um certo indivíduo, ao raciocinar (sobre a falibilidade de Aristóteles), diz para si

mesmo as seguintes palavras: "Aristóteles é homem, portanto, ele é falível". Note que,

se formos levar em conta apenas o que o indivíduo teria efetivamente dito para si

mesmo, o seu argumento teria apenas uma premissa com uma passagem direta à

conclusão.

Argumento sobre exemplo fornecido no terceiro parágrafo da Q5 (CP 5.252 [1868])

Premissa: Aristóteles é homem

Conclusão: Aristóteles é falível.

Diante do cenário criado pelo exemplo, Peirce se pergunta se este indivíduo não teria

pensado naquilo que não teria dito para si mesmo, a saber, que "todo homem é falível".

Afinal, esta seria a premissa implícita neste argumento. A resposta de Peirce é que o

indivíduo pensou nisto na medida em que isto é dito em seu portanto. Vejamos o trecho

inteiro em que Peirce trata deste ponto:

Um homem diz para si mesmo, "Aristóteles é um homem; portanto, ele é

falível". Então, ele não pensou no que não disse para si mesmo, que todo

homem é falível? A resposta é que ele o fez na medida em que isso é dito em

seu portanto. Assim, nossa questão não é relativa a fato, mas é uma mera

pergunta pela distinguibilidade de pensamento.

(CP 5.252 [1868])170

170

No original: "A man says to himself, "Aristotle is a man; therefore, he is fallible." Has he not, then,

thought what he has not said to himself, that all men are fallible? The answer is, that he has done so, so

Page 241: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

226

Pela última afirmação do trecho acima transcrito, notamos que Peirce tenta operar uma

clivagem. A nossa leitura é que, justamente neste trecho, começa a ganhar contornos o

posicionamento antipsicologista de Peirce. O uso do termo "distinguibilidade" pode ser

entendido como um sinal de que Peirce pretende construir sua teoria da cognição com

base em critério lógicos e não psicológicos, atitude que acabaria, então, por colocá-lo

dentro do antipsicologismo dominante na lógica no final do século XIX. Infelizmente,

no QFCM, este ponto permaneceu implícito, uma vez que Peirce não voltou, neste

artigo, ao termo "distinguibilidade" para prestar maiores esclarecimentos. Assim, de

acordo com esta leitura do termo "distinguibilidade", para teoria da cognição que Peirce

expõe no QFCM, não seria relevante que, diante de uma cognição específica, o

indivíduo tenha que ter consciência de quais são exatamente as outras cognições que a

determinam. Saber se podemos ter ou se temos que ter consciência de todas as

cognições anteriores que determinam uma cognição específica é obviamente um

problema da alçada da psicologia, o que a torna uma questão que não importa

diretamente à argumentação do QFCM (de acordo com esta interpretação que ora

propomos). O que é relevante, aliás, decisivo, para a teoria exposta é apenas a

possibilidade de tais cognições anteriores serem distinguidas. Outra forma de colocar

este ponto é afirmar que toda cognição tem que ter uma "origem" distinguível, ou seja,

sempre tem que ser possível distinguir uma outra cognição a partir da qual chegamos a

cognição cuja "origem" está sob investigação. Dada uma cognição x deve sempre ser

possível distinguir (ao menos) uma outra cognição (anterior) y que é aquela cognição a

partir da qual se chegou à cognição x.

No exemplo fornecido, não é relevante o fato de o indivíduo ter dito ou não para si

mesmo o pensamento "todo homem é falível". O relevante é que, de acordo com a

teoria, este pensamento determina o pensamento "Aristóteles é falível". A determinação

consiste na ideia que este último pensamento depende logicamente daquele anterior. A

mente do indivíduo do exemplo recorre àquela cognição para chegar até esta última

(que é a conclusão do raciocínio). Esta recorrência e dependência são de ordem lógica.

Parece-nos claro que a preocupação de Peirce é de ordem estritamente lógica e não

psicológica. Tentemos esclarecer este ponto criando um exemplo dentro do exemplo

fornecido por Peirce neste terceiro parágrafo da Q5.

Suponha que a consciência desse indivíduo do exemplo original fosse, "de repente,

assaltada" pela "inesperada" ideia de que "Aristóteles é falível" logo depois de ter tido a

ideia que "Aristóteles é homem". Imagine também que fôssemos um funcionário da

mente cuja função fosse solicitar as credenciais e investigar a procedência de

pensamentos. Então, suponha que nos fosse pedido para justificar por qual motivo

aquela mente foi levada a pensar que Aristóteles seria falível. Ao começarmos a

investigação, a primeira pista que possivelmente descobríamos seria o fato de que o

pensamento sob investigação ("Aristóteles é falível") e o pensamento que ele substituiu

("Aristóteles é homem") têm o mesmo objeto, ambos tratam da mesma referência.

far as this is said in his therefore. According to this, our question does not relate to fact, but is a mere

asking for distinctness of thought".

Page 242: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

227

Porém, isto não seria suficiente para que as origens do pensamento investigado fossem

reveladas. Não seria suficiente porque depois de ter pensado que Aristóteles era homem,

aquela mente poderia ter tido outro pensamento qualquer sobre Aristóteles. O que nos

foi pedido para investigar foi justamente por que aquela mente teve o pensamento de

que Aristóteles seria falível logo depois de ter tido o pensamento de que este mesmo

sujeito seria homem. Portanto, não bastaria afirmar que a mente teve este pensamento

naquele segundo momento porque o pensamento anterior, num primeiro momento, tinha

sido também a respeito de Aristóteles. Se apresentássemos esta "justificativa" só ficaria

provada a nossa incompetência como investigadores.

O segundo passo seria descobrir uma ligação entre os dois pensamentos que torne

necessária a passagem de um para o outro. Na verdade, que torne necessária a

ocorrência do pensamento investigado naquele momento em que ele veio à mente. A

pergunta que nossa averiguação quer responder é a seguinte: quais as circunstâncias que

explicariam a ocorrência do pensamento "Aristóteles é falível" naquele exato momento?

Se a presença do pensamento anterior ("Aristóteles é homem") no momento anterior não

é suficiente para explicar a ocorrência, então "alguém" mais deve estar envolvido. Se

nos perguntássemos qual pensamento seria corresponsável por tal ocorrência, parece

que não haveria uma lista muito grande de suspeitos para investigar, pois, com alguma

argúcia, não demoraria para notarmos que efetivamente há um terceiro pensamento que

seria capaz de agir, ainda que de forma oculta, como ponte entre o pensamento

"Aristóteles é homem" e o pensamento "Aristóteles é falível". Este terceiro pensamento

seria aquele que afirma "todo homem é falível". Vejamos por que ele seria a peça que

faltava para darmos o caso como encerrado.

Na presença do pensamento anterior ("Aristóteles é homem"), a afirmação de que todo

homem é falível age como uma regra que "obriga" a mente a substituir o pensamento

anterior pelo pensamento "Aristóteles é falível". Esta regra opera de forma muito

simples. O pensamento "todo homem é falível" garante à mente que aquele indivíduo

(Aristóteles) que ela sabe ser homem (pelo pensamento "Aristóteles é homem") é um

dos indivíduos aos quais o pensamento "todo homem é falível" se refere. Por este

motivo, tal mente deve pensar que este mesmo indivíduo (Aristóteles) é falível. A

operação que resulta na ocorrência investigada pode ser explicada a partir de uma

metáfora visual. Se colocarmos lado a lado os outros dois pensamentos responsáveis

pela ocorrência do pensamento "Aristóteles é falível", é fácil notar que o pensamento

"Aristóteles é homem" acaba onde o pensamento "todo homem é falível" começa.

Quando tivéssemos encontrado este pensamento implícito (que, de acordo com

explicação dada no texto, teria sido pensado e dito através do termo "portanto"), então já

poderíamos considerar o caso encerrado, pois a ocorrência do pensamento investigado

("Aristóteles é falível") em um dado momento seria suficientemente explicada pela

presença, no momento anterior, do pensamento "Aristóteles é homem" e pela "presença

oculta" do pensamento "todo homem é falível" (uma espécie de "mentor intelectual"

daquela ocorrência). Dadas estas condições, o único pensamento que aquela mente

Page 243: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

228

poderia ter tido naquele segundo momento seria aquele que ela efetivamente teve:

"Aristóteles é falível"171

.

A conclusão desta análise sustenta a seguinte interpretação: a teoria da cognição exposta

no QFCM não diz respeito a processos psicológicos de pensamento, ainda que Peirce se

utilize de exemplos e contra-exemplos obtidos a partir de dados empíricos que foram

retirados de psicologia experimental ou do que chamou de "fisio-psicologia" (CP 5.223

[1868]). As preocupações da teoria da cognição peirceana são de ordem lógica. Se as

teses peirceanas forem lidas à luz de um posicionamento psicologista, seria inescapável

que sua teoria da cognição terminasse num paradoxo. Vejamos este ponto com algum

detalhamento.

A tese peirceana que todo pensamento é pensamento em signos afirma, como vimos,

que só podemos ter acesso a uma cognição ao recorrer a elementos exteriores à própria

cognição. Ainda que possamos estar conscientes de uma cognição que esteja diante da

mente no instante presente, só podemos ter acesso ao "conteúdo" (ou significado) desta

cognição a partir de um elemento exterior (a ela). Recorrer a elementos exteriores a uma

cognição específica é, por exemplo, encontrar um sinal ou uma marca a partir do qual

tivemos acesso a tal cognição. Este sinal ou marca é justamente o signo que nos "leva"

até aquela cognição específica. Portanto, o signo é simplesmente uma cognição

(anterior) que determina uma cognição específica172

, é simplesmente um pensamento

que nos leva a outro pensamento.

A tese-base estabelece que, dado um pensamento qualquer, deve ter havido um outro

pensamento anterior que seria o signo a partir do qual chegamos àquele pensamento

(dado). Porém, a teoria não lida com questões factuais. Não é afirmado que, num

processo empírico de pensamento tomando lugar dentro dos limites da cabeça de uma

pessoa, para ter um pensamento específico x, esta pessoa teria que ter pensado

anteriormente numa série infinita de outros pensamentos que a teriam levado até o

pensamento x. Se fosse este o caso, obviamente teríamos que admitir que, na verdade,

aquela pessoa nunca chegaria efetivamente a pensar x e, assim, a teoria peirceana

apresentada no QFCM conteria uma contradição, uma inconsistência. Este problema é o

mesmo por trás do paradoxo de Aquiles e a tartaruga com o qual Peirce iniciou a Q5. Da

mesma forma que Aquiles, para alcançar a tartaruga, precisa de percorrer metade do

caminho que o separa dela e, antes disso, seria preciso percorrer metade da metade deste

caminho e, antes ainda, metade da metade da metade, etc.; no caso de uma cognição ou

pensamento qualquer, seria sempre possível encontrar ou distinguir uma cognição

prévia que determinaria aquela cognição e, novamente, seria sempre possível encontrar

ou distinguir uma cognição prévia que determinaria esta última cognição e assim por

diante. Para Murphey (1993 [1961], p. 121), este é um problema não-resolvido no

171

Note que a conclusão é uma interpretação das premissas ou, ao menos, do conjunto das premissas. Por

este motivo, pode-se afirmar que, num raciocínio, as premissas dirigem a mente para uma conclusão. 172

Esta cognição específica será chamada de interpretante da cognição anterior (que, nesse caso, está no

papel de signo embora possa ter sido, por sua vez, interpretante de uma cognição que deve ter vindo antes

dela e que a determina). O termo técnico interpretante ainda será introduzido.

Page 244: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

229

QFCM, pois Peirce deixa indefinida relação entre os conceitos de continuidade e

descontinuidade. De acordo co Ransdell (1966, p. 42) a chave para dissolver o paradoxo

seria fazer uma distinção entre um ponto de vista psicológico (a partir do qual o

pensamento seria entendido como um processo contínuo) e um ponto de vista lógico (a

partir do qual o pensamento seria entendido como um processo que pode ser "quebrado"

em unidades discretas de premissas e conclusões). Esta (provável) solução entrevista

por Ransdell está apenas implícita no QFCM e, no caso deste trecho específico, está

baseada em certa interpretação do termo "distinguibilidade" (muito próxima da que

apresentamos). Não vamos entrar em tal discussão neste ponto de nossas análises.

Deixaremos para analisar esta relevante consequência da teoria de cognição peirceana

no espaço dedicado à última questão do QFCM, uma vez que, no texto original, Peirce

também deixou para última parte o enfrentamento deste problema. Voltemo-nos para o

último trecho da Q5.

No último parágrafo da Q5 Peirce apresenta algumas proposições equivalentes à tese de

que "todo pensamento é pensamento em signos" e deriva algumas consequências. Este

parágrafo é provavelmente o trecho mais conhecido de todo o QFCM e talvez da série

cognitiva e este ponto é também, dentro do texto, uma espécie de mirante de onde pode

se contemplar o cenário peculiar da teoria da cognição peirceana. Este cenário é peculiar

por conta da noção de fluxo. Vejamos.

Da proposição que todo pensamento é um signo segue que todo pensamento

deve se dirigir a outro pensamento, deve determinar outro pensamento, uma

vez que esta é a essência de um signo. Esta é, afinal, outra forma do axioma

familiar de que, na intuição, i.e., no presente imediato, não há pensamento ou

de que tudo sobre o que é refletido tem passado. Hinc loquor inde est173

. Do

fato que, dado qualquer pensamento, deve ter havido um pensamento [anterior]

tem seu análogo no fato que, dado qualquer tempo passado, deve ter havido

uma infinita série de tempos. Dizer, então, que o pensamento não pode ocorrer

num instante, mas requer tempo, é outra maneira de dizer que todo pensamento

deve ser interpretado em outro ou que todo o pensamento se dá em signos.

(CP 5.253 [1868])174

Após uma centena de páginas de análises, chegamos diante de um ponto do texto

QFCM no qual é possível enxergar com nitidez a noção de fluxo que é tão peculiar à

semiótica peirceana. Em algumas oportunidades anteriores já havíamos ressaltado o

que pode ser considerado uma das principais consequências das teses defendidas dentro

173

A tradução literal da expressão latina "hinc loquor inde est" é a ideia de "lugar ou momento a partir do

qual se fala" ou a ideia de que "no presente imediato (ou no exato momento em que se fala), as palavras já

foram (i.e., já passaram). Recentemente, Winfried Nöth e Gesche Linde publicaram um artigo totalmente

dedicado ao uso que Peirce faz desta expressão latina bem como a origem desta referência (cf. Nöth e

Linde, 2014). 174

No original: From the proposition that every thought is a sign, it follows that every thought must

address itself to some other, must determine some other, since that is the essence of a sign. This, after all,

is but another form of the familiar axiom, that in intuition, i.e., in the immediate present, there is no

thought, or, that all which is reflected upon has past. Hinc loquor inde est. That, since any thought, there

must have been a thought, has its analogue in the fact that, since any past time, there must have been an

infinite series of times. To say, therefore, that thought cannot happen in an instant, but requires a time, is

but another way of saying that every thought must be interpreted in another, or that all thought is in signs.

Page 245: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

230

da teoria da cognição peirceana: na impossibilidade de ser imediato, o acesso a uma

cognição requer obviamente tempo. Entretanto, apenas depois do estabelecimento (do

que chamamos de) tese-base, pode-se notar com clareza que a passagem de tempo está

implicada no próprio entendimento do que é pensamento de acordo com esta teoria da

cognição apresentada no QFCM. O argumento é bem simples.

Argumento sobre a noção de fluxo

Premissa: Todo pensamento é signo.

Premissa: Todo signo deve se dirigir a outro signo.

Conclusão: Todo pensamento deve se dirigir a outro pensamento.

Neste parágrafo, podemos notar que há uma analogia fundamental entre o processo de

inferência e o pensamento que atravessa todo o QFCM. A semiótica peirceana nasce no

bojo desta analogia. O ápice do QFCM é este equacionamento entre os termos

"pensamento" e "signo"175

. Existem vários modos para se apresentar esta equação. De

forma um tanto vaga, mas seguindo um certo teor pragmático, podemos afirmar que esta

equação parte da observação que os pensamentos se comportam dentro da cabeça da

mesma forma que os signos se comportam do lado de fora dela. No texto, Peirce utiliza

o termo "essência": pensamento e signo são essencialmente iguais.

De acordo com uma definição bem genérica, um signo é algo que serve de "veículo"

para uma ideia. Outra definição, também não muito precisa, é a de que o signo torna

presente algo ausente. Dirijamo-nos para algo que, desde o surgimento das primeiras

teorias e reflexões semióticas (provavelmente na antiguidade), nunca se duvidou ser um

exemplar legítimo de signo: a palavra. Por exemplo, a palavra "árvore" é claramente um

signo. Se observarmos bem, isto que chamamos de palavra "árvore" materialmente é

apenas uma sucessão de sons (se estiver sendo falada) ou uma sucessão de grafemas (se

estiver sendo grafada). Porém, o essencial de uma palavra está situado bem além de sua

existência material. O essencial de uma palavra é justamente a sua capacidade de

convocar uma ideia, uma concepção, o que é algo necessariamente diverso dela mesma.

Por exemplo, a palavra "árvore" traz à mente do ouvinte ou do leitor, uma ideia, uma

concepção de árvore. Ainda que para significar um signo não possa jamais abrir mão de

sua materialidade, não é esta qualidade material que o torna um signo, mas uma

175

De um ponto de vista externo ao QFCM, pode-se observar que tanto a analogia entre pensamento e

inferência como também o equacionamento entre pensamento e signo possuem a mesma origem: a

descoberta feita por Peirce (em 1865) de que a relação sígnica é a relação fundamental para lógica (ou

seja, a relação entre sujeito e predicado, entre antecedente e consequente e entre premissa e conclusão são

casos particulares da relação sígnica). De acordo com tese defendida no segundo capítulo, esta descoberta

e algumas outras (também no campo da lógica) que afastaram Peirce do pensamento kantiano e o impeliu

a elaborar um sistema próprio de categorias (distinto daquele de Kant e também de Aristóteles).

Page 246: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

231

qualidade imaterial que é a sua capacidade de significar, i.e., a capacidade de remeter a

mente para algo diverso (que é por ela entendida como o significado do signo).

Para que enxerguemos isto que Peirce chama de "essência" de um signo, vamos ao

proverbial exemplo das palavras num dicionário (ainda que este modo de entender o

conceito de signo esconda um perigo do qual trataremos no último capítulo). Suponha

que um dicionário venha parar na mão de uma pessoa que não conheça o significado de

nenhuma palavra que nele se encontra. Se esta pessoa quiser conhecer o significado de

um termo x qualquer, ela deve obviamente abrir o dicionário e ler o verbete

correspondente a este termo. Suponha, então, que na frente do termo x, esteja o termo y,

o que quer dizer que y é o significado de x. Se esta pessoa quiser saber o significado de

y, ela deve procurar o verbete correspondente a este termo. Suponha que o significado

de y é z e, por sua vez, o significado de z é w e assim por diante. Do x esta pessoa foi

direcionada para o y, do y ela foi direcionada para o z, do z ela foi direcionada para o w

e assim até que ela se canse e pare de procurar por significados.

O essencial do signo não é sua forma material (isto nos serve para identificá-lo apenas),

mas a sua capacidade em dirigir nossa atenção para algo distinto dele mesmo. Com o

pensamento, valem as mesmas observações. De acordo com a teoria da cognição

elaborada no QFCM, o essencial do pensamento também não é sua forma material176

.

Esta nos serve para identificá-lo somente. O essencial do pensamento é a sua capacidade

de nos remeter a algo distinto dele mesmo (em geral, a outro pensamento).

A teoria da cognição elaborada ao longo do QFCM junto com esta tese-base (da

semiótica) apresentam um modelo lógico da mente. Conforme visto nas duas últimas

seções do terceiro capítulo, este teoria que nos oferece uma visão da mente a partir de

um ponto de vista lógico (ou semiótico) pode ser entendida como uma teoria da

substituição. De acordo com Ransdell (1966, p. 93), dentro desta teoria da cognição, "a

mente não é uma coisa, mas um certo processo ordenado", a mente é uma espécie de

processamento logicamente ordenado de formas (puras). E, continua Ransdell, neste

"processamento lógico, uma forma toma o lugar, substitui (logicamente) alguma outra

como o único conteúdo positivo da mente no dado instante (lógico)".

A noção de fluxo é criada dentro desta teoria da cognição exposta no QFCM porque,

como não podemos conhecer nada diretamente, mas apenas conhecemos o "conteúdo"

de um pensamento a partir de algo externo a ele, todo pensamento deve levar a algum

outro pensamento. É este que nos "revela" o conteúdo daquele.

Se só conhecemos o conteúdo de um pensamento a partir do próximo pensamento na

sequência, então há sempre um intervalo entre o momento em que temos uma cognição

176

É de se supor que o pensamento não apenas tenha determinada forma, mas também detenha certa

materialidade (i.e., certa qualidade material [ainda que muito sutil]). Esta forma material que nos permite

identificar um pensamento é tudo aquilo que é intuído quando temos aquele pensamento diante de nossa

consciência. Esta intuição (de segundo tipo) é relativa ao "conhecimento" do presente como presente (CP

5.214 [1868]). De acordo com a interpretação pacientemente desenvolvida para resolver o que chamamos

de problema do segundo tipo de intuição, esta forma que nos permite identificar um pensamento é o

objeto imediato (cf. segunda seção do capítulo anterior).

Page 247: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

232

e o momento em que sabemos qual era o conteúdo daquela cognição que tivemos. Isto é

muito estranho. Entretanto, negar esta consequência seria restituir a intuição ao seu

papel de conhecimento direto (e infalível). Para sabermos que temos um pensamento x,

temos que ter outro pensamento y que nos "revele" o conteúdo do pensamento x. Para

todos os efeitos, só sabemos que pensamos x a partir do momento que nos veio à mente

o pensamento y, o que significa que apenas sabemos de x quando este já não é mais o

pensamento diante do qual nossa mente está. Como o pensamento y que utilizamos

(como signo) para descobrir o que estamos pensando (x) empurra este pensamento (x)

para o passado, então sempre que o pensamento y chegar para "revelar" o conteúdo (o

significado) do pensamento x, este já não é mais o que estamos pensando, mas o que

estávamos pensando. Assim, de acordo com esta teoria, estamos condenados a nunca

saber o que pensamos no presente (imediato). Por este motivo, nesta Q5, Peirce

estabelece a tese que “na intuição, num momento apenas, não há pensamento algum”

(CP 5.253 [1868]).

Por estranho que pareça (ou mesmo implausível), dentro desta teoria da cognição, o ato

do pensamento é entendido como algo que transcorre de um instante para outro, ou seja,

é um ato que exige um intervalo de tempo. Não pode haver “ato instantâneo de

pensamento”, pois algo para ser pensado deve poder ser interpretado em outro

pensamento. Esta é a essência do pensamento. Se, por um lado, todo pensamento deve

poder ser interpretado num outro pensamento (i.e., o próximo da sequência), por outro

lado, de acordo com Peirce, todo pensamento “tem um passado”, o que significa que é

sempre possível retraçar o caminho que nos levou a um pensamento específico. A

origem de qualquer pensamento deve nos ser cognoscível, deve poder ser investigada.

Assim, não há nenhum pensamento que possa ser considerado originário (i.e., “sem

passado”). Em resumo, o argumento é que, se todo pensamento deve poder ser

interpretado em outro pensamento, então todo pensamento deve também poder ser o

resultado de uma interpretação de um pensamento anterior. Na teoria da cognição

exposta no QFCM, não há pontos de chegada (pré-estabelecidos), tampouco pontos de

partida. Não há nem mesmo pontos de parada, pois, na ausência de movimento, não

haveria pensamento algum. Esta é a noção de fluxo peculiar à semiótica peirceana.

Um problema de fundo que atravessa toda a quinta questão é que a teoria da cognição

exposta no QFCM requer a possibilidade de uma série infinita, o que parece ser contra

as evidências das quais falamos no início da Q5. Entretanto, sem admitir esta

possibilidade, parece não haver outro modo de impedir que seja introduzida na teoria

alguma concepção de intuição ou de ponto originário do processo de conhecimento. O

problema é que admitir algum ponto originário significa admitir a incognoscibilidade.

Como veremos, para qualquer um que se submeta à tarefa de construir uma teoria

epistemológica, o incognoscível se apresenta como um resíduo insistente.

Como a estratégia para estabelecer as teses que compõe a teoria da cognição exposta no

QFCM é sustentar que tudo que for conhecível ou cognoscível só pode sê-lo por

inferências (e nunca diretamente, por intuições), então o único modo de evitar que a

teoria tenha que admitir a existência de uma série infinita (de signos) é afirmar que toda

Page 248: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

233

série (sígnica) deve ter um início. Porém, afirmar que deve haver um início é afirmar

que há um pensamento que não foi determinado por nenhum pensamento anterior. Este

ponto inicial seria um pensamento que é considerado ponto inicial justamente por não

ser resultado de processo inferencial algum. Entretanto, não podemos saber o que este

pensamento é, pois, de acordo, com a argumentação desenvolvida nas quatro primeiras

questões do QFCM, não temos acesso direto ao que pensamos ou sentimos (ou, até

mesmo, ao que percebemos). Sustentar que deveríamos conhecer diretamente o

("conteúdo" deste) primeiro pensamento seria reintroduzir, de alguma forma, a noção de

intuição que se pretendia evitar. O resultado é que, caso optemos por afirmar que há um

ponto inicial (com o intuito de evitar a admissão de uma série infinita [que

supostamente não seria apoiada por evidências]), então este ponto inicial deve

necessariamente ser incognoscível. Chega-se, então, a um dilema: ou há algo de

incognoscível envolvido em todo processo de conhecimento ou há uma série infinita

envolvida em todo processo de conhecimento. Denominemos estes de caminho I e

caminho II.

Esta bifurcação se apresenta como um dilema, pois qualquer dos caminhos nos leva a

admissão de proposições problemáticas (ao menos, assim o é à primeira vista).

Comecemos pelo caminho II. Por um lado, se admite-se que há uma série infinita de

signos (cada um deles interpretando o anterior), então haveria uma contradição com o

que é considerado evidente: que há um início para qualquer processo de pensamento.

Por outro lado, se admite-se que há algo de incognoscível no início de qualquer

processo de conhecimento, então a teoria teria introduzido uma concepção (a de

incognoscibilidade) que seria tão misteriosa e inexplicável quanto aquela que pretendia

evitar (a de intuição)177

. É claro que, diante desta bifurcação, Peirce não poderia optar

pelo caminho I. Toda a teoria da cognição peirceana parte de uma crítica à intuição

justamente porque este conceito se apresentar, de acordo com a argumentação

desenvolvida na Q1, como um mistério inexplicável e inquestionável que jaz nas

fundações das teorias epistemológicas propostas na modernidade. Não haveria sentido

construir toda uma teoria que seria exibida como alternativa àquelas que recorrem ao

conceito de intuição para, na fase de acabamento da obra, descobrirmos que toda a

construção foi feita sobre conceitos similares (ou, ao menos, conceitos que são, para

todos os efeitos teóricos, equivalentes) aos que deveriam ser evitados. A intenção de

Peirce ao criticar o uso fundacional do conceito de intuição parecia ser propor uma

teoria que não estabelecesse um conceito absolutamente inexplicável como fundamento

último do conhecimento humano (até porque, e isto ficaria evidente à luz de escritos

mais tardios, não pode haver fundação última e completamente segura). Na leitura de

Peirce, uma teoria que estabeleça um ponto originário para o conhecimento é uma teoria

que institui um ponto de incognosciblidade, um ponto cego epistemológico.

177

E, como sabemos (cf. os três primeiros capítulos), Peirce está impedido de aceitar a introdução de

qualquer tipo de incognoscibilidade em sua teoria da cognição sob pena de ter desfeita qualquer

possibilidade de explicar como são possíveis os raciocínios ampliativos ou sintéticos e também encontrar

alguma fundamentação para validade deles (que é o objetivo do argumento da série cognitiva como um

todo).

Page 249: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

234

De forma mais imediata, o que Peirce pretende evitar é justamente uma certa

ambientação de mistério e obscuridade que é cultivada ao redor da concepção de

intuição. Como geralmente a criação de um ambiente destes serve para proteger (e, não

raras vezes, blindar) certas crenças de questionamentos, é impossível não notar certas

semelhanças entre o véu de mistério que encobre as teorias que recorrem à intuição

(como fundação última) e o véu de mistério criado em torno de dogmas ou de mitos

fundacionais. Acreditar que a origem de nossos conhecimentos não pode ser conhecida

ou questionada é muito semelhante a acreditar numa espécie de “olho que vê, mas não

pode ser visto”. Se Peirce desconfia de soluções teóricas que recorram à intuição e, por

isso, optou por construir uma teoria que lhe fosse alternativa, então não faria sentido

que tal teoria recorresse a conceitos similares ou equivalentes aos que se pretende evitar.

É como se trocássemos todos os elementos cenográficos de uma cena, mas o ambiente

noir fosse mantido.

Se a intuição, como ponto de partida (dos processos de conhecimento), foi preterida por

ter sido considerada irremediavelmente inexplicável, parece-nos óbvio que, pelo mesmo

motivo, também deve ser rejeitada a ideia de que uma cognição ou pensamento

incognoscível possa cumprir este papel de ponto inicial. Note que para rejeitar a

hipótese de que haja algo de incognoscível no conhecimento humano, i.e., eliminar o

primeiro caminho do referido dilema, a argumentação geral do Q5 (que serviu para

estabelecer a tese-base) não é suficiente. Ainda que tenha estabelecido nesta quinta

questão que todo pensamento é signo e, portanto, não deve haver pensamento

incognoscível, o problema do incognoscível é recolocado, em outro nível, na sexta

questão. Para que compreendamos este ponto é necessário rever como o problema do

incognoscível surgiu no horizonte da Q5.

O problema central da Q5 era estabelecer aquilo que chamamos de tese-base: "todo

pensamento é pensamento em signos". Para estabelecer esta tese, Peirce teve que

enfrentar diretamente, pela primeira vez no QFCM, o problema do incognoscível. Como

esperamos ter deixado claro durante as análises, toda a argumentação desenvolvida nas

questões anteriores estava voltada para um domínio específico: aqueles pensamentos

que são, de alguma forma, conhecíveis ou cognoscíveis. Nada tinha se afirmado até

então sobre a possibilidade de existir algum pensamento que estivesse fora deste

domínio. Por este exato motivo, Peirce precisou de introduzir na Q5 uma proposição178

que negasse esta possibilidade (de existir algum pensamento que não fosse

cognoscível). Apenas a partir desta proposição e de uma segunda proposição que afirma

não haver pensamentos (ou cognições) que possam ser conhecidos a partir de fatos

internos (i.e., de forma direta, por mera contemplação), Peirce consegue responder (de

forma negativa) à quinta questão. O argumento geral pode ser representado da seguinte

forma:

178

Esta é a quinta proposição (do segundo parágrafo da Q5) e a premissa8 em nossa explicitação da

argumentação peirceana.

Page 250: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

235

Argumento geral da Q5

Premissa1: Se houvesse capacidade de se pensar sem recorrer a signos, então (ou)

haveria pensamentos incognoscíveis ou haveria pensamentos que poderiam ser

conhecidos a partir de fatos internos.

Premissa2 (estabelecida na Q4): Não há pensamentos que poderiam ser

conhecidos a partir de fatos internos.

Premissa3: Não há pensamentos incognoscíveis.

Conclusão: Não há capacidade de se pensar sem recorrer a signos.

Desnecessário dizer que é bem resumida a argumentação desenvolvida na Q5 para

sustentar que “todo pensamento é pensamento em signos” (tese-base). É como se esta

tese-base fosse um resultado que se seguisse de forma bastante direta, quase “natural”

das teses estabelecidas nas outras questões QFCM. Se observarmos este argumento

geral, não é difícil notar que Peirce não dedicou muito espaço para tal argumentação

durante a Q5, pois a segunda premissa acima já tinha sido estabelecida desde o final da

Q4 e a terceira premissa foi estabelecida, sem discussões, (aparentemente) em

decorrência de uma definição (a do próprio termo pensamento ou cognição). Quase todo

o texto da Q5 foi ocupado com esclarecimentos e consequências da tese-base bem como

com algumas proposições equivalentes.

Antes de terminarmos a análise desta Q5, façamos uma última observação (que,

inclusive, nos serve de transição para próxima questão). Mesmo tendo sustentado a tese

que "não temos a capacidade de pensar sem signos" sob afirmação que não há

pensamentos incognoscíveis, o problema do incognoscível ainda não saiu totalmente do

horizonte da teoria da cognição exposta no QFCM. O dilema persiste, pois, ao afirmar

que todo o pensamento é signo e não há pensamento/signo incognoscível, o problema

do incognoscível recua para a posição anterior ao signo, a saber, para a posição de

objeto do signo. Em outras palavras, mesmo que não haja nenhum pensamento ou signo

incognoscível (em si mesmo), resta ainda a possibilidade que haja um pensamento ou

signo cujo objeto seja incognoscível. Assim, tem que se verificar a possibilidade de

haver algum pensamento (que em si é cognoscível, mas) que represente algo que seja

em si mesmo incognoscível.

Page 251: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

236

CAPÍTULO 8

Análise da sexta e da sétima questões do texto

"Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"

Neste oitavo capítulo, apresentaremos, na primeira seção, uma análise da sexta questão

do QFCM, que diz respeito à possibilidade de haver algum signo cujo objeto seja

incognoscível (i.e., uma cognição que represente algo incognoscível); e na segunda

seção, uma análise da sétima questão, que diz respeito ao problema da primeira

cognição. Nestas duas últimas questões do QFCM, as linhas argumentativas

desenvolvidas por Peirce foram inteiramente dedicadas à tarefa (ou tentativa) de

descartar, de uma vez por todas, qualquer necessidade de recurso à intuição ou

incognoscibilidade e à difícil tarefa (ou, mais uma vez, tentativa) de convencer o leitor

que é possível conceber a atividade cognitiva como um processo sem pontos

originários. A teoria inferencial ou sígnica da cognição elaborada por Peirce precisa de

explicar como é possível haver efetivamente pensamento se a teoria afirma que toda

cognição é determinada por uma cognição anterior (e não há ponto de origem), pois esta

afirmação é uma consequência direta da tese-base. Como veremos, de uma forma ou de

outra, na Q6 e na Q7, Peirce vai lidar com consequências do estabelecimento da tese-

base (na Q5).

Page 252: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

237

8.1 Análise da Q6: sobre o significado do incognoscível

Questão 6: Se um signo pode ter qualquer significado, se por

sua definição ele for um signo de algo absolutamente

incognoscível.

O foco da sexta questão é inteiramente voltado para um tema que já havia surgido na

Q5: o problema do incognoscível. O objetivo de Peirce nesta Q6 ao responder (como já

era de se esperar) de forma negativa à pergunta é estabelecer a tese de que "tudo que

existe é cognoscível (ou conhecível)". Enquanto na Q5, o objetivo era estabelecer a

equação pensamento = signo, no Q6, o objetivo é estabelecer a equação ser =

cognoscível. É bem verdade que, como já foi dito, na Q5, Peirce já tinha lidado com

incognoscível também. Mas, naquela oportunidade, a questão era se havia pensamento

(cognição) incognoscível, i.e., pensamento que não possa ser conhecido (de forma

alguma). Na Q6, a pergunta é se um pensamento pode representar algo incognoscível.

Como todo pensamento é signo (tese estabelecida na Q5), a pergunta pode ser

recolocada do seguinte modo: o signo de algo incognoscível possui algum significado?

Argumentar a favor da tese de que um signo pode ter como objeto algo incognoscível é

a última chance que Peirce tem de evitar ter que admitir dentro de sua teoria da

cognição a tal série infinita (de signos). Como o leitor já deve ter antecipado, Peirce

obviamente (pelos motivos que apresentamos ainda durante a análise da Q5) não aceita

esta última oportunidade de escapar das séries infinitas. Diante do dilema formado por

um caminho que leva até a incognosciblidade e outro que leva até as séries infinitas,

Peirce optará por seguir esta última via. Porém, este é um assunto para a sétima e última

questão do QFCM. Antes, tratemos do suposto significado do incognoscível, pois a

negação de que haja algum significado num termo desse tipo irá nos conduzir até a

pergunta que constitui a Q7.

A estrutura da Q6 é muito semelhante àquela da Q5 embora a sexta questão não diga

respeito diretamente a uma capacidade, mas à possibilidade de haver significado no

signo de algo incognoscível. Como na Q5, também o primeiro parágrafo da Q6 foi

reservado para tratar da resposta positiva à pergunta. O segundo parágrafo, por sua vez,

foi dedicado à argumentação que sustenta uma resposta negativa e os últimos parágrafos

foram separados para analisar consequências de tal negação e prestar alguns

esclarecimentos.

Parece que seria possível [que um signo pudesse ter qualquer significado no

caso em que, por sua definição, ele for um signo de algo absolutamente

incognoscível], e as proposições hipotéticas e universais seriam uma

instância [deste caso]. Então, a proposição universal, "todos os ruminantes

são biungulados" trata de uma infinidade possível de animais e não importa

quantos ruminante possam ser examinados, resta sempre a possibilidade

relativa à existência de outros que não forma examinados. No caso de uma

proposição hipotética, este ponto é ainda mais claro, pois tais proposições

Page 253: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

238

tratam não apenas de uma estado de coisas atual, mas de todo e qualquer

estado de coisas possível, os quais são todos desconhecidos na medida em

que apenas pode existir [i.e. estar atualizado].

(CP 5.254 [1868])179

Podemos apresentar a sexta questão a partir da seguinte suposição: imagine que haja um

signo cujo objeto seja incognoscível, um signo que represente algo que não possa ser

conhecido; a pergunta, então, é: este signo pode ter algum significado? No primeiro

parágrafo da Q6, transcrito acima, Peirce considera a resposta positiva a esta questão e,

de acordo com a exposição do autor, tanto proposições universais como hipotéticas

seriam casos de signos que podem ser compreendidos, i.e., possuem algum significado,

mas seus objetos não podem ser conhecidos (ou não podem ser "totalmente

conhecidos"). Vejamos, primeiro, o caso das proposições universais. O exemplo

utilizado foi a proposição "todos os ruminantes são biungulados". Como esta proposição

se refere a um conjunto infinito de seres, pode-se afirmar que seu objeto não pode nunca

ser conhecido em sua plenitude. Aquilo que esta proposição representa só poderia ser

alcançado (acessado) caso fosse possível verificar se todos os ruminantes efetivamente

são biungulados. Como não é possível fazer tal verificação (uma vez que o conjunto em

questão é infinito), então parece justo concluir que o objeto desta representação é algo

incognoscível.

O segundo caso considerado por Peirce neste primeiro parágrafo são as proposições

hipotéticas. De acordo com Peirce, proposições hipotéticas dizem respeito a estados de

coisas possíveis e tais estados não são efetivamente conhecíveis, visto que apenas um

deles pode existir", i.e., estar atualizado, e assim ser efetivamente conhecido.

Consideremos a seguinte proposição hipotética: "se Salvador fosse capital do Paquistão,

então Dorival Caymmi cantaria música sufi". Ao "lado" do estado de coisas atual (que é

o fato de Salvador ser capital da Bahia, que obviamente não fica no sul da Ásia, mas no

nordeste do Brasil), pode-se imaginar uma multiplicidade de possíveis estados de

coisas. O que esta proposição afirma é que, em cada um dos estados possíveis em que é

cumprida a condição de Salvador ser a capital do Paquistão, há um indivíduo

denominado "Dorival Caymmi" que tem a propriedade de "cantar música sufi". Repare

que a proposição não afirma que, de fato, "Dorival Caymmi" tenha a propriedade de

"cantar música sufi", mas que este indivíduo teria esta propriedade dentro de certo

cenário hipotético. Como só podemos conhecer o que de fato existe, aquilo que uma

proposição hipotética representa deve ser considerado incognoscível.

No texto do QFCM, Peirce apenas apresenta o que seria uma resposta positiva à sexta

questão. Como foi feito naquele primeiro parágrafo da Q5 (em que lidou com uma

possível resposta positiva à quinta pergunta), Peirce opta por não desenvolver um

179

No original: "It would seem that it can, and that universal and hypothetical propositions are instances

of it. Thus, the universal proposition, "all ruminants are cloven-hoofed," speaks of a possible infinity of

animals, and no matter how many ruminants may have been examined, the possibility must remain that

there are others which have not been examined. In the case of a hypothetical proposition, the same thing

is still more manifest; for such a proposition speaks not merely of the actual state of things, but of every

possible state of things, all of which are not knowable, inasmuch as only one can so much as exist".

Page 254: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

239

contra-argumento para desmontar esta tese que afirma que um signo de algo

incognoscível possui algum significado (o que consiste numa resposta positiva à Q6),

mas prefere apostar na força do argumento que sustenta a tese contrária: que um signo

de algo incognoscível não possui significado algum (o que consiste numa resposta

negativa à Q6). Apenas, ao final da sexta questão, Peirce, num último e brevíssimo

trecho, volta ao assunto tratado neste primeiro parágrafo e afirma que, com relação ao

"argumento das proposições universais e hipotéticas, a resposta é que, embora a verdade

delas [i.e. de tais proposições] não possa ser conhecida com certeza absoluta, ela pode,

em termos de probabilidade, ser conhecida por indução" (CP 5.258 [1868])180

.

No segundo parágrafo (CP 5.255 [1868]) da Q6, Peirce passa a argumentar contra a

possibilidade de haver algum significado num signo de algo incognoscível. O primeiro

passo para construir seu argumento é afirmar que a origem de toda e qualquer

concepção é a experiência. A partir desta afirmação (que é uma espécie de regra geral) e

de algumas premissas adicionais, Peirce estabelece a tese que não podemos ter

concepção alguma do absolutamente incognoscível. E, por sua vez, é partir desta

afirmação que Peirce estabelece a tese de que o signo de algo absolutamente

incognoscível não pode ter significado algum, o que consiste na resposta (negativa) à

sexta questão. Antes de analisarmos o argumento que o leva a sustentar esta tese, deve

ser enfatizado que é neste segundo parágrafo da Q6 que pode ser encontrada a primeira

enunciação do que ficaria mais tarde conhecido sob o nome de máxima pragmática181

:

"o significado de um termo é a concepção que ele veicula". Como veremos na análise

da argumentação peirceana, esta definição de significado é essencial para economia

interna da teoria da cognição apresentada no QFCM:

Por outro lado, todas as nossas concepções são obtidas a partir de abstrações

e combinações de cognições que ocorrem primeiro em julgamentos da

experiência. Assim, não pode haver concepção do absolutamente

incognoscível, uma vez que nada desse tipo ocorre na experiência. Porém, o

significado de um termo é a concepção que ele veicula. Então, um termo não

pode ter tal significado.

(CP 5.255 [1868])182

Para explicitarmos o raciocínio de Peirce neste trecho transcrito, optamos por dividi-lo

em dois argumentos: um deles, relativo à concepção do absolutamente incognoscível e o

180

No original: "To the argument from universal and hypothetical propositions, the reply is, that though

their truth cannot be cognized with absolute certainty, it may be probably known by induction". 181

É verdade que esta é a primeira enunciação da máxima pragmática num texto publicado, pois foi

encontrada uma anotação (de caderno), datada de novembro de 1866, que já contém, segundo

interpretação de De Waal (2007, p. 30), a ideia central desta máxima. Nesta anotação Peirce afirma que

"o que não é uma questão de experiência possível não é uma questão de fato" (W 1,9). De acordo com

tese defendida por De Tienne (1989, p. 405), alguns dos germens do pragmatismo (ou pragmaticismo)

peirceano já estavam em atuação no artigo "Sobre uma nova lista de categorias" (publicado em 1867). 182

No original: "On the other hand, all our conceptions are obtained by abstractions and combinations of

cognitions first occurring in judgments of experience. Accordingly, there can be no conception of the

absolutely incognizable, since nothing of that sort occurs in experience. But the meaning of a term is the

conception which it conveys. Hence, a term can have no such meaning".

Page 255: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

240

outro, relativo ao suposto significado de um termo que representa algo absolutamente

incognoscível. Vejamos o primeiro desses argumentos.

Argumento sobre a concepção do absolutamente incognoscível

Regra: Todas as nossas concepções vêm da experiência.

Premissa1: Se não há nada relativo ao absolutamente incognoscível na experiência,

então não pode haver concepção relativa ao absolutamente incognoscível.

Premissa2: Não há nada relativo ao absolutamente incognoscível na experiência.

Conclusão: Não temos concepção do absolutamente incognoscível.

Estabelecido que não temos concepção do absolutamente incognoscível, Peirce se dirige

para sustentar a tese de que um signo de algo (absolutamente) incognoscível não pode

ter significado algum. De acordo com o argumento peirceano, este signo não pode ter

significado algum, pois, se tivesse, então deveria veicular ou carregar alguma

concepção. Entretanto, tal signo não pode veicular ou carregar concepção alguma, pois,

de acordo com o que acabamos de concluir no argumento anterior, não temos concepção

alguma de algo (absolutamente) incognoscível. Ao reconstruirmos o argumento de

Peirce neste segundo parágrafo, deve-se notar que a conclusão obtida do raciocínio

explicitado anteriormente entra como premissa (a sexta delas) no argumento que segue.

Argumento sobre o significado de um termo que representa algo absolutamente

incognoscível

Premissa1: O significado de um termo é a concepção que ele carrega.

Premissa2: Se um termo tem algum significado, então este termo deve carregar

alguma concepção relativa ao que representa.

Premissa3: Suponha um termo W que represente algo absolutamente incognoscível.

Premissa4: Se o termo que representa algo absolutamente incognoscível tiver

algum significado, então este termo deve carregar alguma concepção relativa ao

absolutamente incognoscível.

Premissa5: Se tal termo deve carregar alguma concepção relativa ao

absolutamente incognoscível, então obviamente deve haver alguma concepção

relativa ao absolutamente incognoscível.

Premissa6: Não há concepção relativa ao absolutamente incognoscível.

Conclusão: O (suposto) termo W que representa algo absolutamente

incognoscível não tem significado algum.

Page 256: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

241

Todo pensamento (graças a sua essência sígnica) deve se dirigir a outro pensamento (da

mesma forma que um signo deve ser interpretado em outro signo). O incognoscível

seria então um pensamento/signo que não ocasionaria nenhum outro pensamento/signo.

O signo de algo incognoscível seria, então, uma espécie de "veículo vazio", pois, como

vimos, nele não é carregada nenhuma concepção. A partir do exposto nestas linhas,

então, pode-se oferecer uma resposta negativa à sexta questão: um signo de algo

absolutamente incognoscível não pode ter significado algum. Entretanto, o problema do

incognoscível dentro do QFCM não termina neste ponto, pois há ainda algumas

possibilidades que precisam ser contempladas. Por exemplo, a possibilidade de que haja

algum significado composto no termo "incognoscível", ou seja, mesmo na

impossibilidade de o termo “incognoscível” ter significado como um bloco, i.e., como

um todo não-analisado, resta ainda a possibilidade de considerar o termo incognoscível

como algo composto de partes e considerar que tal termo consiga, de alguma forma,

ganhar algum significado “ao tomar emprestado” o significado de suas partes

componentes.

Consideremos, então, como faz Peirce no terceiro parágrafo da Q6 (CP 5.256 [1868]),

esta possibilidade de que o termo "incognoscível" seja um conceito composto e derive

seu significado do significado dos conceitos do qual é constituído. Este caráter

composto pode ser visto de forma mais clara na seguinte equivalência: afirmar que algo

é "in-cognoscível" é equivalente a afirmar que algo é "não-cognoscível". Assim, nota-se

que o termo "incognoscível" poderia ser decomposto no conceito "não" e no conceito de

"cognoscível". A primeira resposta de Peirce contra esta análise é que o termo "não"

seria apenas um termo sincategoremático183

e, assim, não poderia ser considerado, por si

só, um conceito (CP 5.256 [1868]). Então, se o "não" não é um conceito, esta parte da

palavra "incognoscível" não tem significado independente (pois, abstraída de sua

combinação com o termo "cognoscível" na palavra em questão, ela não carrega

concepção alguma), o que nos leva de volta ao caso analisado argumento anterior184

.

A outra possibilidade a ser contemplada dentro desta consideração de que o termo

“incognoscível” seria composto é que o termo "não" seja um conceito autônomo (algo

equivalente à concepção de "aquilo que é diferente de"). Neste caso Peirce vai retomar

a premissa que todos os conceitos que são construídos a partir da experiência são

relativos a algo cognoscível. A partir desta premissa, Peirce pode obter a seguinte

conclusão:

183

Sincategoremáticas são aquelas expressões dentro de uma linguagem às quais não é possível atribuir

um significado independente quando abstraídas da combinação com outros termos ou expressões (cf.

BRANQUINHO, MURCHO, GOMES, 2006, p. 703 [verbete sincategoremático]). 184

Argumento sobre o significado de um termo que representa algo absolutamente incognoscível.

Page 257: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

242

Argumento sobre a equivalência entre os termos “experienciável” e

“cognoscível”

Premissa1: Tudo que puder ser experienciado é da natureza de uma cognição.

Conclusão: O mais alto conceito que puder ser atingido por abstração de

julgamentos da experiência é um conceito de algo da natureza de uma cognição.

Porém, podemos obter uma conclusão mais geral ainda, pois, por uma premissa já

apresentada em argumento anterior, sabemos que não há outro modo de se obter

concepções "mais altas" (além da abstração realizada a partir de cognições que ocorrem

primeiro em julgamentos da experiência). Como não há outro modo de se obter

concepções e dado que "tudo que puder ser experienciado é da natureza de uma

cognição" (premissa1), podemos concluir que todo e qualquer conceito (que pudermos

obter) é um conceito de algo da natureza de uma cognição.

Argumento (generalizado) sobre a equivalência entre os termos “experienciável”

e “cognoscível”

Premissa1: Tudo que puder ser experienciado é da natureza de uma cognição.

Premissa2: Todas as nossas concepções são obtidas por abstração e combinação

de cognições que ocorreram primeiro em julgamentos da experiência.

Conclusão: O mais alto conceito que podemos obter é um conceito de algo da

natureza de uma cognição.

Nesse caso, nota-se que, se o "não" for considerado um conceito, então ele também

seria um conceito de algo da natureza de uma cognição. Neste ponto do texto, Peirce

apenas afirma que, se o "não" fosse um conceito independente, ele seria um conceito do

cognoscível, ou seja, um conceito de algo cognoscível (cf. CP 5.257 [1868]). Está, neste

trecho, subsumido um relevante passo lógico, pois é provável que, para afirmar que o

conceito de "não" é um conceito de algo cognoscível, Peirce tenha recorrido

implicitamente a uma ideia que fora utilizada em argumentação na Q5: "não existem

pensamentos que não possam ser conhecidos" (esta é a quinta proposição do segundo

parágrafo da Q5 no texto original [CP 2.251] e é a premissa8 do argumento que

explicitamos em nossa análise desta questão). Esta proposição é equivalente à afirmação

de que "todos os pensamentos (ou cognições) são cognoscíveis".

Page 258: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

243

Argumento sobre a primeira parte do termo composto “incognoscível”

Premissa1: Suponha que o termo "não" seja um conceito.

Premissa2: Se o termo "não" fosse um conceito, então o termo "não" seria um

conceito de algo da natureza de uma cognição.

Premissa3: Todos os pensamentos (ou cognições) são cognoscíveis.

Premissa4: Se o termo "não" fosse um conceito de algo da natureza de uma

cognição, então o termo "não" seria um conceito de algo cognoscível.

Conclusão: Se o termo "não" fosse conceito, então o termo "não" seria um

conceito de algo cognoscível.

Com esta conclusão, Peirce parte para estabelecer que, se o termo "não" que faz parte

do termo "não-cognoscível" for considerado um conceito autônomo (e não um termo

sincategoremático), então há uma autocontradição envolvida no termo "não-

cognoscível" (como um todo). Nesta passagem não há muitas explicações. Depois de

concluir que o termo "não" teria como objeto algo cognoscível, Peirce passa

diretamente para a afirmação de que o termo "não-cognoscível" seria, "no mínimo,

autocontraditório" (CP 5.257 [1868]), pois seria um conceito da forma "A, não-A". Para

estabelecer este ponto, Peirce parece pressupor uma espécie de regra de

composicionalidade para conceitos. Como as duas partes que constituem o conceito

(composto) de "não-cognoscível" são conceitos de algo cognoscível, então o conceito

como um todo não poderia ser um conceito de algo que não fosse cognoscível. Isto tem

um paralelo em lógica proposicional clássica. Por exemplo, se a proposição a é

verdadeira e a proposição b é verdadeira também, então não há como a conjunção (a

"composição") das duas proposições ter outro valor além daquele valor que já é

verificado para cada uma de suas partes (naquela valoração), i.e., o valor verdadeiro. Se

o termo "não" for um conceito de algo cognoscível e o termo "cognoscível" também for

um conceito de algo cognoscível, então a composição destas partes, i.e., o conceito de

"não-cognoscível" como um todo, teria que ser um conceito de algo cognoscível. Neste

caso, o termo "incognoscível" teria necessariamente como objeto algo cognoscível. Tal

termo se referiria a algo que nega existir (daquela forma que existe). Esta é,

acreditamos, a autocontradição à qual Peirce se refere neste trecho (CP 5.257 [1868]),

que, aliás, transcreveremos a seguir para que o leitor tenha uma visão geral da

argumentação do autor.

Se penso "branco", não vou tão longe como Berkeley a ponto de afirmar que

penso, neste caso, numa pessoa vendo, mas afirmo que aquilo que penso é da

natureza de uma cognição e o mesmo acontece com tudo o que puder ser

experienciado. Consequentemente, o mais alto conceito que puder ser

alcançado por abstração a partir de juízos da experiência e, assim, o mais

alto conceito que pode ser alcançado em geral é o conceito de algo da

natureza de uma cognição. Então, o não, ou aquilo que "é diferente de", se for

Page 259: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

244

um conceito, deve ser um conceito de algo cognoscível. Assim, não-

cognoscível, se for um conceito, então deve ser um conceito da forma "A,

não-A" e é, no mínimo, contraditório. Então, a ignorância e o erro podem

apenas ser concebidos como correlacionados ao conhecimento real e

verdadeiro, o que é da natureza de uma cognição. Em oposição a uma

cognição qualquer, há uma realidade desconhecida, porém cognoscível.

Entretanto, em oposição a toda cognição possível, há apenas autocontradição.

Em resumo, cognoscibilidade (nesta acepção ampla) e ser não são apenas o

mesmo do ponto de vista metafísico, mas, na verdade, estes são termo

sinônimos.

(CP 5.257 [1868])185

O próximo passo dado por Peirce nesta Q6 na direção da tese que afirma que toda a

realidade é cognoscível foi esclarecer a origem do conceito de realidade dentro de sua

teoria. Este conceito bem como qualquer concepção relativa à realidade que temos é

proveniente da experiência. Para estabelecer este ponto, Peirce retoma um argumento

utilizado na Q2 para considerar o "ego" uma hipótese que é levantada para explicar a

possibilidade de erro e de ignorância. De acordo com o raciocínio desenvolvido naquele

ponto do QFCM (que, em nossas análises, chamamos de argumento para a confirmação

da hipótese do ego), a concepção de ego deve surgir como hipótese a partir do momento

em que se pode constatar um erro com relação a alguma representação. Entretanto,

qualquer erro só pode ser constatado a partir da experiência. Assim, o erro, a ignorância

ou qualquer outra concepção que aponte para distância entre o mundo real e o mundo

conforme representado só pode se formar a partir da experiência.

De acordo com o argumento exposto na Q6, o erro e a ignorância não podem ser

concebidos sem duas outras concepções que lhes são correlatas: o conhecimento real e a

verdade. Seria, então, impossível conceber que o nosso conhecimento do mundo está,

de alguma, errado sem conceber ao mesmo tempo que haja um conhecimento real (no

sentido de conhecimento verdadeiro). Se voltarmos ao exemplo da criança e do fogão

apresentado e analisado na Q2, podemos notar que, quando, a partir de uma experiência

(possivelmente traumática), o indivíduo em questão toma consciência que sua

representação do estado do fogão não corresponde ao real estado do fogão, ele também

toma consciência (a partir da mesma experiência) que há uma realidade desconhecida,

ou seja, que há uma realidade à qual sua representação não foi capaz de corresponder. O

individuo do exemplo toma consciência de que deve haver alguma realidade

desconhecida, pois apenas uma realidade não-correspondente à sua representação

185

No original: "If I think "white," I will not go so far as Berkeley and say that I think of a person seeing,

but I will say that what I think is of the nature of a cognition, and so of anything else which can be

experienced. Consequently, the highest concept which can be reached by abstractions from judgments of

experience -- and therefore, the highest concept which can be reached at all -- is the concept of something

of the nature of a cognition. Not, then, or what is other than, if a concept, is a concept of the cognizable.

Hence, not-cognizable, if a concept, is a concept of the form "A, not-A," and is, at least, self-

contradictory. Thus, ignorance and error can only be conceived as correlative to a real knowledge and

truth, which latter are of the nature of cognitions. Over against any cognition, there is an unknown but

knowable reality; but over against all possible cognition, there is only the self-contradictory. In short,

cognizability (in its widest sense) and being are not merely metaphysically the same, but are synonymous

terms".

Page 260: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

245

explicaria porque o fogão foi capaz de queimá-lo enquanto ele o representava como um

objeto que não estava quente. O conhecimento real e a verdade são, portanto, conceitos

que surgem a partir da experiência (juntamente com o erro e a ignorância). Se são

conceitos que têm como origem a experiência, então são conceitos da natureza de

cognições, o que significa, por sua vez, que são ambos conceitos de algo cognoscível. O

ponto de chegada deste raciocínio é que tanto o conhecimento real (no sentido de

conhecimento verdadeiro) como a verdade são conceitos relativos ao que é cognoscível.

A argumentação peirceana se dirige para a afirmação de que a concepção de realidade e

de verdade que podemos ter (a partir da experiência) é de uma realidade cognoscível

bem como de uma verdade cognoscível. Não haveria como, de acordo com a teoria

exposta, concebermos algo como uma realidade incognoscível ou uma verdade oculta

(que nunca se desvelasse). Graças aos nossos erros, sabemos que há uma realidade

desconhecida que se contrapõe às nossas representações. Graças à impossibilidade de

haver incognoscibilidade, sabemos que esta realidade desconhecida deve, ao menos,

poder ser conhecida de algum modo, ou seja, a realidade desconhecida deve ser

conhecível ou cognoscível. Devemos enfatizar este ponto, pois, dentro desta teoria

exposta no QFCM, à realidade desconhecida (contraposta a alguma cognição) deve-se

necessariamente acrescentar a qualificação de conhecível ou cognoscível.

Afirmar que a realidade é cognoscível pressupõe que, embora ela se contraponha a

alguma de nossas cognições (ou representações), sempre dever haver, ao menos, a

possibilidade de se chegar a uma cognição que a ela corresponda (ou uma representação

seja correta). É justamente este possível "ponto de chegada" que consistiria no conceito

de conhecimento real ou verdade.

Por outro lado, afirmar que há alguma realidade incognoscível pressupõe que ela se

contraponha a todas as cognições (ou representações) possíveis. Neste caso, não seria

possível se obter esta concepção, pois o que temos a partir da experiência é a negação

de algumas cognições (ou representações) e não uma negação de todas as cognições (ou

representações) possíveis.

Assim, ao longo da Q6, Peirce examinou basicamente dois casos para considerar se há

ou não significado num termo que representa algo (absolutamente) incognoscível. No

primeiro deles, foi considerada a possibilidade de o termo “incognoscível” ter um

significado por si só e o resultado a que chegou é que este termo não poderia ter

significado algum, pois isso pressuporia que houvesse alguma concepção veiculada pelo

termo, o que, por sua vez, não pode ocorrer, uma vez que não há nada, na experiência,

que corresponda ao incognoscível (por si só). No segundo caso, foi examinada a

possibilidade de o termo “incognoscível” derivar seu significado dos conceitos

veiculados por suas partes (o termo “não” [i.e., a parte “in”] e o termo “cognoscível”).

O resultado a que chegou é que, se o termo “incognoscível” for considerado, assim, um

termo composto, então há uma contradição nele envolvida (uma vez que ambas as

partes diriam respeito a algo dado na experiência e, portanto, algo cognoscível). Dessa

forma, o resultado geral de todas estas considerações é a seguinte disjunção: “ou o signo

Page 261: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

246

de algo absolutamente incognoscível é uma autocontradição ou este signo não tem

significado algum”. Podemos resumir o argumento geral da Q6 no seguinte esquema:

Argumento geral da Q6

Premissa1: Se o signo de algo absolutamente incognoscível tivesse algum

significado, este significado deveria ser relativo a uma concepção do

incognoscível proveniente da experiência.

Premissa2: Se o significado de tal signo fosse relativo a uma concepção do

incognoscível proveniente da experiência, então este seria um signo de algo

cognoscível.

Premissa3: Se o signo de algo absolutamente incognoscível fosse um signo de

algo cognoscível, então este signo seria uma autocontradição.

Conclusão: Ou o signo de algo absolutamente incognoscível é uma

autocontradição ou este signo não tem significado algum.

Com esta argumentação elaborada para responder a Q6, Peirce passa a sustentar a tese

de que ideia de incognoscibilidade é, na verdade, vazia, pois não há a ela

correspondente nenhuma concepção construída a partir da experiência. A existência de

algo incognoscível é uma hipótese para a qual não podem se encontrar evidências

favoráveis. Tudo "o que é" é conhecível. Depois de, na Q5, equacionar os termos

"pensamento" e "signo", nesta Q6, Peirce equaciona os termos "ser" e

"cognoscibilidade". Deve-se enfatizar que esta não é uma identidade construída

exclusivamente no campo da metafísica. Estes termos, de acordo com as palavras do

próprio autor, devem ser considerados sinônimos, ou seja, esta é uma identidade

também (e sobretudo) semântica. Estes dois termos devem possuir o mesmo significado.

Vejamos este ponto de uma perspectiva puramente extensional. De acordo com esta

identidade estabelecida por Peirce entre os termos "ser" e "cognoscibilidade", todo e

qualquer elemento que pertença ao "conjunto de tudo aquilo que é" também pertence ao

"conjunto de tudo aquilo que é passível de ser conhecido". Para Peirce, portanto, se

alguma "coisa" não pertence ao "conjunto de tudo aquilo que é passível de ser

conhecido" (e este é justamente o caso do incognoscível), então esta mesma "coisa" não

pode existir. Esta coisa "faz parte do não-ser".

Page 262: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

247

8.2 Análise da Q7: sobre as origens

Questão 7: Se há alguma cognição que não seja determinada

por uma cognição anterior.

A sétima e última questão do QFCM é o enfrentamento de um problema que foi

posto já na quinta questão: as séries infinitas. O problema da teoria exposta não

apenas admitir, mas requerer (necessariamente) que haja uma série infinita de

cognições (que devem anteceder qualquer cognição particular) é que isso implica na

impossibilidade de haver alguma origem para as cognições (em geral), o que

obviamente contraria algumas evidências como o fato de termos a nítida e simples

impressão de que há, sim, um começo para todo e qualquer processo de pensamento.

Como a Q7 é uma pergunta acerca da existência de um ponto inicial (para a série de

cognições), Peirce, como fez nas duas últimas questões, começa por afirmar que há

evidências (“muitos fatos”) a favor de uma resposta positiva à pergunta, i.e., a favor

da suposição de que haja uma primeira cognição.

Parece que há ou que houve, pois como estamos de posse de cognições,

que são todas determinadas por cognições prévias, e estas por cognições

anteriores, então deve ter havido um primeiro termo nestas séries ou, caso

contrário, nosso estado de cognição em qualquer instante seria

completamente determinado, de acordo com leis lógicas, por nosso estado

em qualquer instante anterior. Porém, há muitos fatos contrários a esta

última suposição, e, assim, favoráveis às cognições intuitivas.

(CP 5.259 [1868])186

Tentemos reconstruir qual seria o argumento favorável à resposta positiva, ou seja, à

afirmação de que deve haver intuição, deve haver algum ponto originário na série de

signos: "Se não houvesse um ponto originário, então todo é qualquer estado de

cognição seria sempre completamente determinado por um estado anterior, o que

significaria que o processo que nos levaria a conhecer nunca começa efetivamente;

logo, o conhecimento é impossível (nesta situação em que não ponto originário)".

Aparentemente, este argumento (ao qual se refere Peirce e que tentamos reconstruir)

é do tipo transcendental (cf. análise de Prendergast, 1977, p. 302-3). Como o

conhecimento é possível, logo deve haver algum ponto originário em toda série de

signos, deve haver intuição. Este seria um argumento em favor da reposta positiva à

Q7.

A grande diferença do parágrafo inicial desta Q7 para os trechos similares nas

questões anteriores é que, na sétima questão, Peirce apenas afirma haver evidências

186

No original: "It would seem that there is or has been; for since we are in possession of cognitions,

which are all determined by previous ones, and these by cognitions earlier still, there must have been a

first in this series or else our state of cognition at any time is completely determined, according to logical

laws, by our state at any previous time. But there are many facts against the last supposition, and therefore

in favor of intuitive cognitions".

Page 263: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

248

favoráveis à resposta positiva, mas não considera possíveis argumentos ou contra-

argumentos que sustentem ou neguem tal resposta. O motivo para isso é muito

simples: para continuar defendendo sua teoria da cognição (que se apresenta como

um corpo teórico livre do conceito de intuição187

), não há outra saída exceto afirmar

que toda cognição é determinada por uma cognição prévia. Peirce simplesmente não

considera uma resposta positiva, pois, na Q7, já não há mais bases para se

fundamentar a tese de haja uma primeira cognição. Como vimos, a última

oportunidade tinha sido descartada na Q6, quando Peirce nega que haja algo

incognoscível (que pudesse servir de objeto de um pensamento ou de um signo).

Então, qualquer tentativa de evitar a recorrência à série infinita implicaria num

retorno à intuição, o que criaria uma inconsistência interna na teoria da cognição

peirceana exposta no QFCM. Sigamos, portanto, para as análises do segundo

parágrafo desta Q7.

Por outro lado, como é impossível saber intuitivamente que uma cognição

dada não é determinada por uma cognição prévia, a única maneira de

saber disso é por uma inferência hipotética realizada a partir da

observação de fatos. Porém, apresentar uma cognição pela qual uma

cognição dada foi determinada é explicar as determinações desta cognição

[dada]. E esta é a única maneira de explicá-las. Pois algo que esteja

inteiramente fora da consciência e que se suponha ter determinado a

cognição dada pode, como tal, somente ser conhecido e somente ser

apresentado na cognição determinada em questão. Assim, supor que uma

cognição é determinada somente por algo absolutamente externo é supor

que as suas determinações não podem ser explicadas. Mas, esta é uma

hipótese que não pode ser justificada sob circunstância alguma, uma vez

que a única justificativa para uma hipótese é que ela explique os fatos, e

dizer que eles estão explicados e, ao mesmo tempo, supor que sejam

inexplicáveis é uma autocontradição.

(CP 5.260 [1868])188

O primeiro passo para que analisemos o complicado argumento que atravessa todo o

segundo parágrafo da Q7 é dividi-lo em proposições.

187

Não nos referimos às intuições de segundo tipo. 188

No original: On the other hand, since it is impossible to know intuitively that a given cognition is not

determined by a previous one, the only way in which this can be known is by hypothetic inference from

observed facts. But to adduce the cognition by which a given cognition has been determined is to explain

the determinations of that cognition. And it is the only way of explaining them. For something entirely

out of consciousness which may be supposed to determine it, can, as such, only be known and only

adduced in the determinate cognition in question. So, that to suppose that a cognition is determined solely

by something absolutely external, is to suppose its determinations incapable of explanation. Now, this is a

hypothesis which is warranted under no circumstances, inasmuch as the only possible justification for a

hypothesis is that it explains the facts, and to say that they are explained and at the same time to suppose

them inexplicable is self-contradictory.

Page 264: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

249

Proposições do segundo parágrafo da Q7 texto original (CP 5.260 [1868])

Proposição1: é impossível saber intuitivamente que uma cognição dada não é

determinada por uma cognição prévia.

Proposição2: a única maneira de saber que uma cognição dada não é determinada

por uma cognição prévia é por uma inferência hipotética realizada a partir da

observação de fatos.

Proposição3: Apresentar uma cognição pela qual uma cognição dada foi

determinada é explicar as determinações desta cognição [dada].

Proposição4: Apresentar uma cognição pela qual uma cognição dada foi

determinada é a única maneira de explicar estas determinações.

Proposição5: Algo que esteja inteiramente fora da consciência e que se suponha

ter determinado a cognição dada pode, como tal, somente ser conhecido e somente

ser apresentado na cognição determinada em questão.

Proposição6: Supor que uma cognição é determinada somente por algo

absolutamente externo é supor que as suas determinações não podem ser

explicadas.

Proposição7: Supor que uma cognição é determinada somente por algo

absolutamente externo é uma hipótese que não pode ser justificada sob

circunstância alguma.

Proposição8: A hipótese de que uma cognição é determinada somente por algo

absolutamente externo não pode ser justificada sob circunstância alguma.

Proposição9: A única justificativa para uma hipótese é que ela explique os fatos.

Proposição10: Dizer que os fatos estão explicados e, ao mesmo tempo, supor que

sejam inexplicáveis é uma autocontradição.

Como já foi feito em outras ocasiões, teremos que dividir a argumentação elaborada por

Peirce neste segundo parágrafo da Q7 em trechos (em "sub-argumentos"). Pode-se

Notar que as linhas iniciais deste parágrafo sob análise contêm argumentos mais

simples. A argumentação desenvolvida nestas linhas é o equivalente ao que chamamos

nas análises das questões anteriores de argumento sobre a auto-evidência (da capacidade

em questão). Neste caso da Q7, o que estaria sendo questionado seria a afirmação de

que é auto-evidente a ideia que uma cognição dada não é determinada por uma cognição

prévia. Em resumo, o que Peirce pretende negar nestas primeiras linhas é que saibamos

intuitivamente que uma cognição dada não é determinada por uma cognição prévia. O

argumento peirceano pode ser expresso da seguinte forma:

Page 265: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

250

Argumento sobre a auto-evidência da afirmação de que uma cognição dada não é

determinada por uma cognição prévia

Premissa1: Se fosse possível que soubéssemos intuitivamente que uma cognição

dada não é determinada por uma cognição prévia, então teríamos a capacidade

intuitiva de distinguir uma intuição de cognições determinadas (por outras

cognições).

Premissa2: Não temos a capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de

cognições determinadas (por outras cognições).

Conclusão: Não é possível saber intuitivamente que uma cognição dada não é

determinada por uma cognição prévia.

Exatamente como foi feito na maioria das questões anteriores, logo após ter negado que

seja auto-evidente a existência de alguma faculdade, Peirce afirma que é necessário que

se busquem evidências que nos levem a afirmar que tal faculdade exista. Neste caso, o

que está sob questionamento é como poderíamos saber que uma cognição dada não é

determinada por uma cognição prévia. Neste trecho da Q7, Peirce defende que, como

não podemos saber intuitivamente nada acerca desta questão, só nos restaria poder saber

(que uma cognição dada não é determinada por uma cognição prévia) por meio de

inferências realizadas a partir de fatos observados, i.e., evidências. Em outras palavras,

como não é auto-evidente a afirmação de que uma cognição dada não é determinada por

uma cognição prévia, devemos buscar evidências que nos levem a fazer tal afirmação.

Este raciocínio poderia ser explicitado no seguinte argumento:

Argumento sobre a necessidade em se buscar evidências para afirmação de que

uma cognição dada não é determinada por uma cognição prévia

Premissa1: Se não é possível saber intuitivamente que uma cognição dada não é

determinada por uma cognição prévia, então o único modo de saber que uma

cognição dada não é determinada por uma cognição prévia é por inferência

(hipotética) a partir de fatos observados.

Premissa2: Não é possível saber intuitivamente que uma cognição dada não é

determinada por uma cognição prévia.

Conclusão: o único modo de saber que uma cognição dada não é determinada por

uma cognição prévia é por inferência (hipotética) a partir de fatos observados.

Page 266: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

251

Descartada a possibilidade de sabermos intuitivamente que uma cognição dada é

originária (i.e., não é determinada por alguma cognição anterior), devemos buscar

evidências que sustentem a afirmação de uma cognição dada seja originária.

Encontradas tais evidências, poderíamos, por inferência, afirmar que seria possível

encontrar um ponto de origem para a série de cognições e, assim, poderíamos responder

de forma positiva à última questão: "sim, há uma cognição que não seja determinada por

uma cognição anterior". Como sabemos, Peirce, para continuar sustentando sua teoria

da cognição, deve procurar um modo de responder à sétima questão de forma negativa:

"não, não há uma cognição que não seja determinada por uma cognição anterior". Por

este motivo, no texto, Peirce age a partir de uma estratégia argumentativa peculiar. Ao

invés de procurar por evidências que sustentem uma resposta positiva à Q7 (e contrapô-

las às evidências que sustentem a resposta negativa), Peirce apresenta a reposta positiva

como hipótese e passa analisar suas consequências. A partir de tais consequências,

afirma que a resposta positiva à Q7 seria uma proposição que não poderia ser levantada

como hipótese. Seria uma proposição que se mostra incapaz de cumprir o papel de

hipótese. Assim, ao final deste segundo parágrafo, Peirce conclui que, diante desta

sétima questão, seria a resposta negativa o único caminho possível. Porém, ao já

apresentarmos a conclusão, estamos nos adiantando demais. Analisemos o argumento

peirceano neste segundo parágrafo começando pela seguinte pergunta: como

poderíamos responder à sétima questão?

Para responder à sétima questão "se há alguma cognição que não seja determinada por

uma cognição prévia", deve-se explicar como se daria a determinação desta possível

cognição que não seria determinada por uma cognição prévia. A hipótese mais óbvia

seria que ela foi (inteiramente) determinada por algo que é uma não-cognição, i.e., algo

que, a partir de fora da consciência, determinaria uma cognição específica. Há algo que

cumpre estas condições e que recebeu, na história da filosofia, o nome técnico de

"objeto transcendental". No QFCM, Peirce o denominou simplesmente de objeto

externo. Entretanto, toda argumentação peirceana neste trecho do QFCM sustenta a

ideia de que a hipótese de que haveria um objeto externo (que seria o único responsável

pelas determinações da cognição dada) não pode ser considerada uma maneira válida de

explicar as determinações da cognição dada. Assim, afirma Peirce, a única forma válida

de explicar as determinações de uma cognição dada é apresentar alguma (outra)

cognição que teria determinado a cognição dada. Como este ponto é fundamentado no

texto é o que passaremos a analisar. Tentemos, então, explicitar o argumento peirceano.

Conforme já antecipamos, para poder descartar a hipótese relativa ao objeto externo,

Peirce afirma que ela seria inválida, pois tornaria inexplicável justamente aquilo que

pretende explicar, ou seja, seria uma proposição que se anularia enquanto hipótese. Para

estabelecer que esta hipótese consiste numa autocontradição, o ponto de partida é

afirmação da proposição5 no texto original. Neste trecho, Peirce pretende chamar

atenção para o fato de a hipótese da determinação pelo objeto externo ser muito

peculiar, pois ela é uma ideia que diz respeito a um objeto ao qual só podemos chegar a

partir daquela cognição cujas determinações pretendíamos explicar. É essencial para o

Page 267: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

252

argumento peirceano que o seguinte ponto esteja estabelecido: como não há nenhum

outro acesso possível ao objeto "criado" pela hipótese, então nada podemos saber deste

objeto (exceto que ele é produto de uma suposição feita para explicar as determinações

de uma cognição específica). É justamente esta ausência de acesso independente que

Peirce irá utilizar para concluir que, com esta hipótese, tornamo-nos incapazes de

explicar o fato que pretendíamos explicar: as determinações da cognição dada. O

problema é que, no texto, Peirce faz esta passagem de uma forma tão breve que ela nos

parece injustificável do ponto de vista lógico. De acordo com a numeração que estamos

utilizando, tal passagem é feita da proposição5 à proposição6.

Da proposição5

“algo que esteja inteiramente fora da consciência e que se suponha ter

determinado a cognição dada pode, como tal, somente ser conhecido e

somente ser apresentado na cognição determinada em questão” (CP 5.260

[1868]).

Peirce passa direto para a seguinte equivalência (proposição6)

"supor que uma cognição é determinada somente por algo absolutamente

externo é supor que as suas determinações não podem ser explicadas" (CP

5.260 [1868])

Não há sombra de dúvidas que estão implícitos neste raciocínio uma série de passos

intermediários. Tentemos explicitá-los para que possamos avaliar, como um todo, o

argumento de Peirce para descartar a hipótese da determinação pelo objeto

(absolutamente) externo. O ponto de partida para este argumento é, como vimos, a

afirmação de que o objeto absolutamente externo (que supomos, por hipótese, existir) só

pode ser acessado ou conhecido a partir do fato que ele pretende explicar (a

determinação da cognição dada). Neste caso, não haveria acesso independente ao objeto

que supomos existir, pois o único "testemunho" que teríamos deste objeto externo seria

a cognição (dada) cujas determinações pretendemos explicar (com a introdução, por

hipótese, da existência deste mesmo objeto). O que Peirce sustenta é que, de tal objeto

externo, nada sabemos exceto que ele é algo introduzido (por hipótese) para explicar um

fato. E não podemos saber mais nada a respeito deste objeto (não podemos ter um

acesso independente a ele), porque, por definição, ele é algo inacessível, algo que está

fora da consciência. Como não temos outro acesso a este objeto, então uma das

conclusões mais evidentes é que não podemos saber nada a respeito do efeito que ele

tem na cognição dada, ou seja, como não sabemos o que é este objeto externo, não é

possível explicar sua influência sob a cognição dada. Assim, as determinações que

pretendíamos explicar com tal hipótese se tornam inexplicáveis justamente porque, pela

hipótese, não é possível saber como ocorrem as determinações em questão. Logo, a

partir do momento que elegemos um objeto externo para explicar a origem de uma

cognição dada, tornamos inexplicáveis as determinações desta cognição por este objeto.

Page 268: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

253

Argumento para o estabelecimento da proposição6

Premissa1: Se supuséssemos que há algo absoltamente externo (algo que estaria

inteiramente fora da consciência) que teria determinado a cognição dada, então

suporíamos a existência de um objeto do qual só teríamos conhecimento pela

cognição dada.

Premissa2: Se supuséssemos a existência de um objeto do qual só tivéssemos

conhecimento pela cognição dada, então nada saberíamos deste objeto além do

fato de (tal objeto) ser algo cuja existência foi proposta como hipótese para

explicar a determinação daquela cognição dada.

Premissa3: Se nada soubéssemos deste objeto além do fato de (tal objeto) ser algo

cuja existência foi proposta como hipótese para explicar a determinação daquela

cognição dada, então não podemos saber (em particular) como este objeto teria

determinado a cognição dada.

Premissa4: Se não podemos saber (em particular) como este objeto teria

determinado a cognição dada, as determinações desta cognição (dada) não

poderiam ser explicadas de modo algum (por esta hipótese).

Conclusão: Se supuséssemos que há algo absoltamente externo (algo que estaria

inteiramente fora da consciência) que teria determinado a cognição dada, então as

determinações desta cognição (dada) não poderiam ser explicadas de modo algum

(por esta hipótese).

Assim, acreditamos ter explicitado a série de passos lógicos subsumidos entre a

proposição5 e a propsoição6 do texto original. Estabelecido este ponto, Peirce passa

imediatamente à argumentação de que uma hipótese dessas não poderia ser considerada

válida. E assim chegamos ao trecho final deste segundo parágrafo da Q7 (CP 5.260

[1868]). Antes de analisarmos o motivo pelo qual a hipótese do objeto externo deveria

ser considerada inválida, apresentemos toda esta questão dentro de uma forma

esquemática. O fato que a hipótese veio para explicar é a determinação de uma cognição

dada. Então, considere duas proposições. Uma delas se refere ao fato (a ser explicado

pela hipótese) e a outra é a própria hipótese.

Raciocínio hipotético do parágrafo CP 5.260 [1868]

Proposição q --> "Há uma cognição (que foi determinada por algo)"

(fato a ser explicado)

Proposição p --> "Há um objeto externo (que determina a cognição dada)”

(hipótese)

Page 269: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

254

Note que segunda proposição é utilizada para explicar a primeira proposição. E esta

hipótese pode ser colocada da seguinte forma: "Há uma cognição (dada), porque há um

objeto externo que a determinou". A mesma ideia pode ainda ser apresentada na forma de

um condicional: “se houvesse um objeto externo, então isso explicaria a existência e as

determinações desta cognição (dada)”. Vejamos, então, por qual motivo Peirce afirma que

esta proposição p não pode ser considerada uma hipótese válida para explicar o fato descrito

na proposição q.

O problema levantado por Peirce ao final do parágrafo transcrito acima (CP 5.260 [1868])

seria exatamente o fato de se ter recorrido a algo inexplicável para explicar alguma coisa.

De acordo com o filósofo, a única justificativa que temos para introduzir uma hipótese é

que ela possa explicar os fatos. Entretanto, se o fato a ser explicado é justamente a

determinação da cognição (dada) por algo (ou uma cognição anterior ou um objeto externo,

por exemplo), então, ao lançar a hipótese de que o único responsável por tal determinação

seria um objeto externo, esta hipótese acaba por explicar que, embora haja uma

determinação da cognição pelo objeto externo, esta determinação não pode ser explicada.

Logo, o que se pretendia explicar foi, graças à hipótese, declarado inexplicável. A crítica é

que, neste caso, a explicação consistiria justamente em afirmar que não há explicação.

No texto original, mais uma vez, a argumentação de Peirce é breve e fragmentária. Para

sustentar a afirmação de que a hipótese relativa ao objeto externo deve ser considerada

inválida (o que foi feito, de acordo com o sistema de numeração que viemos utilizando em

nossas análises, na proposição10), Peirce se apoia na argumentação anterior189

que concluiu

que, se fosse levantada a hipótese relativa ao objeto externo, então as determinações da

cognição (dada) não poderiam ser explicadas de modo algum e também se apoia em duas

outras premissas: a proposição8 e a proposição9.

A partir da proposição6 propriamente dita ou da conclusão do argumento para o

estabelecimento da proposição6:

Se supuséssemos que há algo absoltamente externo (algo que estaria inteiramente

fora da consciência) que teria determinado a cognição dada, então as

determinações desta cognição (dada) não poderiam ser explicadas de modo algum.

em conjunção com a Proposição8

A hipótese de que uma cognição é determinada somente por algo

absolutamente externo não pode ser justificada sob circunstância alguma.

em conjunção com a Proposição9,

A única justificativa para uma hipótese é que ela explique os fatos.

Peirce conclui a proposição10:

Dizer que os fatos estão explicados e, ao mesmo tempo, supor que sejam

inexplicáveis é uma autocontradição.

189

O argumento para o estabelecimento da proposição6.

Page 270: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

255

Para que sejamos exatos, a expressão "hipótese inválida" não foi utilizada no texto

original. A conclusão que leva Peirce a rejeitar a hipótese é que ela seria

autocontraditória e, por isso, consideramos que seria uma hipótese inválida. A seguir,

expomos dois argumentos que acreditamos serem capazes de sustentar a afirmação de

que a hipótese analisada é inválida (porque autocontraditória). Como veremos, estes

dois argumentos podem ser considerados explicitações do raciocínio desenvolvido neste

trecho do parágrafo 260. A diferença entre os dois é a interpretação que se dá à

(chamada) proposição6.

Argumento para a invalidade da hipótese (primeira versão)

Premissa1: Se uma proposição pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese,

então esta proposição deve ser capaz de explicar os fatos sob investigação.

Premissa2: Se uma proposição afirma não haver explicação para os fatos sob

investigação, então esta proposição (obviamente) não é capaz de explicar os fatos

sob investigação.

Premissa3: A proposição p afirma que não há explicação para os fatos sob

investigação.

Premissa4: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese.

Conclusão: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese e a proposição

p não pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese.

(contradição)

A explicitação da argumentação apresentada acima depende que interpretemos a

proposição6190

como uma afirmação de uma equivalência. De acordo com esta

interpretação, a afirmação de que "uma cognição é determinada somente por algo

absolutamente externo" (que é, na verdade, a hipótese) é equivalente à afirmação de que

"as determinações (da cognição pelo objeto) não podem ser explicadas". É esta

interpretação que nos permite introduzir no argumento explicitado a terceira premissa.

Outra interpretação consistiria em entender que estas afirmações não são (exatamente)

equivalentes, porém a segunda se segue da primeira, ou seja, quando afirmássemos que

"uma cognição é determinada somente por algo absolutamente externo" (que seria a

hipótese), então poderíamos concluir que "as determinações (da cognição pelo objeto)

não podem ser explicadas". Para esta segunda interpretação da porposição6, teríamos

190

No texto original, o que denominamos de proposição6 afirmava o seguinte: "supor que uma cognição é

determinada somente por algo absolutamente externo é supor que as suas determinações não podem ser

explicadas" (CP 5.260 [1868]).

Page 271: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

256

que modificar a segunda e a terceira premissas do argumento para a invalidade da

hipótese.

Argumento para a invalidade da hipótese (segunda versão)

Premissa1: Se uma proposição pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese,

então esta proposição deve ser capaz de explicar os fatos sob investigação.

Premissa2.1: Se uma proposição afirma não haver explicação para os fatos sob

investigação ou se tal proposição tiver como consequência a afirmação de que não

há explicação para os fatos sob investigação, então esta proposição (obviamente)

não é capaz de explicar os fatos sob investigação.

Premissa3.1: A proposição p afirma algo cuja consequência seria a afirmação de

que não há explicação para os fatos sob investigação".

Premissa4: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese.

Conclusão: A proposição p é introduzida (na teoria) como hipótese e a proposição

p não pode ser introduzida (numa teoria) como hipótese.

(contradição)

Portanto, a conclusão deste trecho da argumentação é que a hipótese (relativa ao objeto

externo) consiste numa autocontradição. Este ponto é afirmado na proposição10, a última

do parágrafo 260. Entretanto, a conclusão final de Peirce não está no término, mas bem no

meio deste parágrafo. A conclusão final é a proposição4: "Apresentar uma cognição pela

qual uma cognição dada foi determinada é a única maneira de explicar estas

determinações" (CP 5.260 [1868]). E o argumento para sustentá-la pode ser o que segue:

Argumento sobre a inviabilidade da hipótese de que haja um objeto externo que

seria o único responsável pelas determinações de uma cognição (dada)

Premissa1: Se (para explicar as determinações da cognição dada) não podemos

contar com a hipótese de que haja um objeto externo que seria o único

responsável pelas determinações da cognição (dada), então a única maneira de

explicar tais determinações é apresentar uma (outra) cognição anterior que

determinaria a cognição dada.

Premissa2: não podemos contar com a hipótese de que haja um objeto externo que

seria o único responsável pelas determinações da cognição (dada)

Conclusão: a única maneira de explicar tais determinações é apresentar uma

(outra) cognição anterior que determinaria a cognição dada.

Page 272: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

257

O "pulo do gato" da argumentação de Peirce neste trecho foi a invalidação da hipótese

que constitui uma resposta positiva à Q7. Mas, para invalidar esta hipótese de que haja

um objeto externo que seria o único responsável pelas determinações de uma cognição

(dada), podemos supor que Peirce parece ter confiado em qualquer um dos seguintes

recursos: ou ele considerou a proposição que estabelece esta hipótese uma

autocontradição (em decorrência da própria definição de hipótese) ou ele recorreu a uma

espécie de princípio metateórico (para poder declará-la inválida). No primeiro caso,

Peirce teria invalidado tal hipótese por conta de uma autocontradição, que, neste caso,

poderia ser encontrada na própria definição do que é uma hipótese (movimento

semelhante parece ter ocorrido quando considerou autocontraditório a ideia de

"pensamento que não poderia ser conhecido" esta é o que denominamos quinta

proposição do segundo parágrafo da Q5 CP 5.251 [1868]). No segundo caso, Peirce

teria invalidado a hipótese ao recorrer a um princípio metateórico, ou seja, um princípio

que só poderia ser estabelecido numa teoria sobre teorias. Neste segundo caso, notemos

que a hipótese em questão só teria sido considerada inválida por não cumprir uma

condição básica que, de acordo com Peirce, deve cumprir toda e qualquer ideia que

queira se candidatar ao posto de hipótese. Esta condição pode ser expressa da seguinte

forma: "toda hipótese deve ser capaz de explicar aquilo que se propõe explicar

excluindo a possibilidade de afirmar que não há explicação para aquilo que se pretende

explicar". Note que, segundo tal princípio, qualquer proposição pode ser apresentada

(dentro de um corpo teórico) como hipótese (para explicar alguma outra proposição)

exceto aquela proposição que afirma não haver explicação (para o que se pretende

explicar).

De acordo com esta leitura, o que Peirce estaria afirmando, então, é que a hipótese em

questão é inválida não porque os fatos a contradisseram, mas porque ela simplesmente

não pode ocupar o lugar de hipótese dentro de um corpo teórico. E deve-se enfatizar que

ela não pode ocupar tal lugar justamente em decorrência do "conteúdo" do que afirma.

Por exemplo, a hipótese geocêntrica (ptolomaica) foi descartada com base no fato de os

dados empíricos a terem negado. No caso da argumentação peirceana, a hipótese

relativa ao objeto externo não foi descartada por ter sido "contrariada" pelos fatos, mas

por ter sido entendida como uma proposição que afirmava não haver explicação

possível para o fenômeno que pretendia explicar. Ela nem sequer pode ser alçada à

posição de hipótese. Portanto, em resumo, a ideia de Peirce é que uma proposição que

afirme não haver explicação possível para o fenômeno que pretendia explicar é uma

proposição que não pode ser apresentada como hipótese por descumprir aquilo princípio

metateóretico anunciado acima. Antes de nos encaminharmos para a análise do terceiro

parágrafo da Q7, desenvolvamos um exemplo do que seria uma proposição que não

poderia ser considerada hipótese pelo fato de declarar inexplicável o que pretende

explicar.

Trabalhemos com o seguinte exemplo: suponha que entremos num ambiente de trabalho

e notemos que as pessoas possuem caixas de lenços descartáveis em suas mesas. Numa

Page 273: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

258

situação dessas, não seria estranho que a primeira hipótese que nos viria à cabeça seria a

de que estas mesmas pessoas estariam resfriadas. Ora, esta hipótese pode ser

representada pelo seguinte condicional:

“se estas pessoas estivessem resfriadas, então isso explicaria o fato destas pessoas

terem caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas”.

O que este condicional nos afirma é que, em toda situação que as pessoas estão

resfriadas, são situações em que essas pessoas também colocam em suas mesas caixas

de lenços (descartáveis). Neste condicional, a ideia de “estar resfriado” está sempre

associada à ideia de “ter caixas de lenços [...]” e é por este exato motivo que a primeira

ideia serve de hipótese para explicar a segunda ideia. Entretanto, note que a primeira

ideia (“estar resfriado”) é independente da segunda (“ter caixas de lenços [...]”).

Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas

mesas" (fato a ser explicado)

Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (hipótese)

Portanto, podemos resumir o levantamento desta hipótese ou esta tentativa de

explicação do fenômeno anômalo (os lenços em todas as mesas) com a seguinte frase:

"todas estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas, porque elas

estão resfriadas". Note que esta última parte ( "[as pessoas] estão resfriadas") é uma

hipótese não só porque acreditamos ser capaz de explicar a primeira parte como também

é dela independente.

Vejamos, então, uma segunda situação, um pouco diferente justamente por haver aquela

independência. Diante do fato a ser explicado, no lugar de supor que tais pessoas

estariam resfriadas, poderíamos lançar a seguinte "hipótese": “estas pessoas têm caixas

de lenços (descartáveis) em suas mesas, porque elas têm 'sudariumensaeose' ”. Se nos

fosse perguntado o que seria esta “sudariumensaeose”, responderíamos que é uma

condição que explicaria o porquê de pessoas terem lenços em suas mesas. Porém, se

insistissem e nos fosse perguntado no que consistiria exatamente esta condição,

responderíamos que nada sabemos a respeito da “sudariumensaeose” somente que ela é

a causa que determina o fato de as pessoas terem lenços em suas mesas. Ora, se apenas

o que sabemos desta tal “sudariumensaeose” é que ela serve para explicar o fato (de as

pessoas terem lenços em suas mesas), então esta condição não pode ser separada deste

fato. Não há um acesso independente a esta condição.

Portanto, esta hipótese explica o fato afirmando que o fato foi determinado por algo que

supomos existir toda vez que o fato existir. Ora, se o fato é determinado por algo ao

Page 274: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

259

qual não se pode ter acesso, então o que esta hipótese faz é explicar o fato afirmando

que ele não possui explicação.

No terceiro parágrafo (CP 5.261 [1868]), Peirce volta a tratar daquele que seria a mais

forte candidata à cognição originária, primeira: os julgamentos da percepção. Afirmar,

por exemplo, que o peculiar caráter do vermelho não é determinado por nenhuma

cognição prévia é obviamente uma objeção à tese defendida por Peirce no parágrafo

anterior. Neste ponto do texto, para argumentar contra esta objeção, é apresentada uma

distinção. De acordo com Peirce, o caráter do vermelho como cognição é diferente do

caráter do vermelho como tal. Se, por um lado, o primeiro (como é uma cognição) é

sempre determinado por uma cognição anterior, por outro lado, do segundo (que é o

caráter em si) pode-se afirmar que não seja determinada por alguma cognição prévia. A

diferença é entre a ideia que se tem da cor vermelha e a própria cor (a qualidade de)

vermelho. Como base para esta distinção, Peirce apresenta um exemplo.

Caso seja feita a objeção segundo a qual o caráter peculiar do vermelho não é

determinado por nenhuma cognição anterior, replico que este caráter não é o

caráter do vermelho como uma cognição, pois se houvesse um homem para o

qual as coisas vermelhas parecessem com aquelas coisas que, para mim, são

azuis e vice-versa, então os olhos daquele homem ensinam a ele os mesmos

fatos que ensinariam caso ele fosse como eu.

(CP 5.261 [1868])191

Antes de analisarmos o exemplo peirceano e sua função de premissa (ou justificativa)

para a afirmação de que o caráter do vermelho, entendido como uma cognição, deve

sempre ser determinado por cognições anteriores, vejamos que Peirce já tinha lidado

antecipadamente com esta objeção acima transcrita. Neste ponto do QFCM é possível

que Peirce esteja retomando a argumentação desenvolvida na segunda parte da Q1 (do

CP 5.219 até CP 5.224). Naquela parte do início do QFCM, o foco era defender a tese

que nem mesmo o conhecimento que obtemos a partir dos dados sensórios pode ser

considerado intuitivo, direto e, por isso, indubitável. Até mesmo este conhecimento é

inferencial e hipotético. Ao olhar para um objeto e classificá-lo como algo de cor

vermelha, uma pessoa deve necessariamente recorrer a cognições anteriores de objetos

vermelhos. O julgamento da percepção "este objeto é vermelho" depende da capacidade

desta pessoa em abstrair e comparar este caráter de vermelho presente no objeto diante

do qual ela está com o caráter vermelho presente em outros objetos observados

anteriormente (cf. interpretação e Gallie, 1966, p. 67-8). Mesmo na primeira ocasião em

que classificou algum objeto como vermelho, tal pessoa já deveria ter em mente alguma

descrição do que seria um objeto vermelho (caso contrário, não haveria como realizar

esta primeira classificação). O importante a ser notado neste trecho é que toda as vezes

em que classificamos algum objeto como algo que pertence a uma classe (por exemplo,

a classe dos objetos de cor vermelha), recorremos, de alguma forma, a dados obtidos em

191

No original: "If it be objected that the peculiar character of red is not determined by any previous

cognition, I reply that that character is not a character of red as a cognition; for if there be a man to whom

red things look as blue ones do to me and vice versa, that man's eyes teach him the same facts that they

would if he were like me."

Page 275: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

260

momentos anteriores. Como tudo que podemos conhecer depende de um sistema de

classificação, depende de inferências realizadas a partir de dados já obtidos, então todo

o nosso conhecimento é hipotético. Não pode haver conhecimento absoluto. Todo nosso

conhecimento é relativo a um sistema de referências. Vamos ao exemplo fornecido por

Peirce no trecho acima transcrito.

Suponha que exista um indivíduo a para o qual os objetos vermelhos parecessem azuis e

que também exista um segundo indivíduo b para o qual os objetos azuis parecessem

vermelhos. Quando o indivíduo a visse um objeto vermelho, ele iria classificá-lo como

um objeto azul, pois, dentro de seu sistema de referência, aquelas características que ele

enxerga no objeto naquele momento (por exemplo, determinado padrão perceptivo que

se supõem serem ocasionadas por certo comprimento de onda dentro do espectro

eletromagnético) são similares às características de outros objetos que outrora foram

classificados como pertencentes à classe de objetos azuis. Então, por meio de uma

inferência hipotética, tal indivíduo considera aquele objeto como algo azul. Por sua vez,

o outro indivíduo (b), se estivesse diante deste mesmo objeto vermelho, iria classificá-lo

como um objeto vermelho. Afinal, dentro do sistema de referência, aquelas

características que ele enxerga no objeto naquele momento seriam devidas ao mesmo

padrão perceptivo enxergado pelo indivíduo b. Supõe-se que este seria o mesmo padrão

perceptivo para os dois indivíduos, porque se supõe que este padrão seria ocasionado

pelo mesmo comprimento de onda dentro do espectro eletromagnético. Então, para o

indivíduo b , o objeto vermelho percebido teria características similares às

características de outros objetos que outrora foram classificados como pertencentes à

classe de objetos vermelhos. Se por um lado, o indivíduo a enxerga como azul objetos

vermelhos, por outro lado, o indivíduo b enxerga como vermelho objetos azuis. A

afirmação de Peirce neste trecho (CP 5.261 [1868]) é, apesar destas diferenças

classificatórias, os olhos destes dois indivíduos os ensinariam os mesmos fatos.

Desenvolvamos este exemplo ainda mais para que possamos esclarecer esta afirmação

de Peirce.

Suponha que no mundo onde vivem estes dois indivíduos haja uma doença que se

chama "cegueira vermelha" e que seria a privação do sentido da visão provocada pela

observação acumulada de objetos vermelhos. As pessoas deste mundo, se

permanecessem tempo demais olhando para objetos vermelhos, acabariam ficando

cegas, pois o comprimento de onda relativo ao vermelho provocaria danos às células

fotorreceptoras. Este efeito danoso causado por objetos de cor vermelha só poderia ser

revertido pela observação de objetos de cor azul. Neste mundo imaginado, todas as

vezes que as pessoas tivessem que olhar para objetos de cor vermelha durante um tempo

muito prolongado, elas eram orientadas a se curar dos danos causados por tais

observações voltando os olhos para objetos azuis. Note que tanto o indivíduo a como o

indivíduo b evitariam olhar os mesmos objetos e também "recuperariam a saúde" dos

olhos observando os mesmos objetos. A diferença é que tais objetos seriam classificados

por estes dois indivíduos de forma distinta. A única diferença é que, para o indivíduo a,

os objetos que deveriam ser evitados lhe apareceriam como azuis e os que lhe serviriam

Page 276: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

261

para curar os olhos lhe apareceriam como vermelhos. O comportamento desses

indivíduos neste mundo seria muito semelhante, apesar desta diferença no momento de

classificar os objetos (com relação à cor). A experiência ensinaria as estes homens os

mesmos fatos192

.

O quarto parágrafo da Q7 (CP 5.262 [1868]) pode ser considerado uma espécie de

reprodução em pequena escala de todo o QFCM, algo como uma síntese das linhas

argumentativas elaboradas por Peirce ao longo de todo o artigo. Neste parágrafo, como

no QFCM em geral, há uma linha argumentativa destinada a estabelecer que as teorias

epistemológicas que recorram à hipotética faculdade cognitiva da intuição devem

resultar nalguma contradição e também há uma segunda linha argumentativa destinada a

estabelecer que uma teoria epistemológica deveria, então, recorrer somente a faculdades

cognitivas cujas existências não seriam questionadas. Para fins de análise, dividiremos

este quarto parágrafo da Q7 em duas partes. A primeira delas (relativa àquela primeira

linha argumentativa) vai do início do parágrafo até o trecho " (...) um evento que ocupa

tempo nenhum". A segunda parte começa onde termina a primeira parte e vai até o

trecho final do parágrafo " (...) só existe na medida em que é conhecida".

Além disso, não conhecemos nenhuma capacidade que nos permitisse

conhecer uma intuição. Pois, enquanto uma cognição está começando e,

portanto, está num estado de mudança, apenas no primeiro instante ela seria

uma cognição. E, portanto, a apreensão dela deve ocorrer em tempo nenhum

e ser um evento que ocupa tempo nenhum. Além disso, todas as faculdades

cognitivas que conhecemos são relativas, e consequentemente o produto

delas são relações. Porém, a cognição de uma relação é determinada por

cognições prévias. Então, nenhuma cognição que não seja determinada por

uma cognição prévia pode ser conhecida. Ela não existe, porque, em primeiro

lugar, ela é absolutamente incognoscível e, em segundo lugar, uma cognição

só existe na medida em que é conhecida.

(CP 5.262 [1868])193

No início deste quarto parágrafo da Q7, Peirce volta a afirmar a tese inicial do QFCM,

que é a resposta negativa à primeira questão: "Não há capacidade intuitiva de distinguir

intuições". Entretanto, para sustentar, desta vez, que não haveria nenhuma capacidade

que nos permitisse conhecer uma intuição Peirce apresentou um argumento distinto

daquele desenvolvido na Q1. Neste trecho da Q7, o filósofo optou por sustentar a

conclusão em premissas referentes a uma espécie de aspecto temporal da questão. O

raciocínio, neste caso, é que, se admitíssemos a existência de alguma capacidade de se

conhecer cognições como intuições, então teríamos que admitir que haveria um evento

(que seria a apreensão de tais cognições intuitivas) que não ocuparia tempo algum.

192

Buchler também desenvolveu uma interpretação para este exemplo (cf. BUCHLER, 1937, p. 9 -10) 193

No original: "Moreover, we know of no power by which an intuition could be known. For, as the

cognition is beginning, and therefore in a state of change, at only the first instant would it be intuition.

And, therefore, the apprehension of it must take place in no time and be an event occupying no time.^P1

Besides, all the cognitive faculties we know of are relative, and consequently their products are relations.

But the cognition of a relation is determined by previous cognitions. No cognition not determined by a

previous cognition, then, can be known. It does not exist, then, first, because it is absolutely incognizable,

and second, because a cognition only exists so far as it is known".

Page 277: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

262

Como não seria possível que houvesse um evento desses, então não podemos admitir

que exista alguma capacidade de se conhecer cognições intuitivas. A seguir

apresentamos uma tentativa de reconstrução do argumento peirceano utilizado neste

trecho. Desnecessário lembrar que o argumento a seguir é uma tentativa de explicitação,

o que significa que parte do que aparece nele está apenas (acreditamos) implícito no

texto. A quarta premissa, embora seja um ponto essencial para se derivar a conclusão,

no texto original, está implícita.

Argumento sobre a capacidade de reconhecimento de uma intuição

Premissa1: Se houvesse alguma capacidade que nos permitisse conhecer uma

cognição como intuitiva, como intuição, então tal cognição apenas seria uma

intuição no primeiro instante em que estivesse sendo apreendida.

Premissa2: Se tal cognição apenas fosse uma intuição no primeiro instante em que

estivesse sendo apreendida, então a apreensão desta cognição como intuição

deveria ser um evento que ocorreria sem ocupar tempo algum.

Premissa3: Se a apreensão desta cognição como intuição fosse um evento que

ocorresse sem ocupar tempo algum, então deveria ser possível haver um evento

que ocorresse sem ocupar tempo algum.

Premissa4: Não é possível haver um evento que ocorresse sem ocupar tempo

algum.

Conclusão: Não há nenhuma capacidade que nos permita conhecer uma cognição

como intuitiva.

Devemos chamar a atenção para um fato curioso: este raciocínio (acima explicitado)

não parece ter um papel decisivo dentro dos argumentos da Q7, pois o que foi por ele

estabelecido já tinha sido sustentado por outro argumento durante a Q1. Uma das

conclusões intermediárias deste raciocínio (acima apresentado) é que "se houvesse

alguma capacidade que nos permitisse conhecer uma cognição como intuitiva, então a

apreensão desta cognição como intuição deveria ser um evento que ocorreria sem

ocupar tempo algum". Entretanto, saber que, neste caso, deveria haver um evento que

ocorreria sem ocupar tempo algum não responde de forma negativa à sétima questão

(que é o objetivo de Peirce a esta altura do QFCM). Numa nota-de-rodapé Peirce

reconhece que este argumento cobre apenas parte da sétima questão, pois, a partir dele,

podemos concluir que não deve haver alguma capacidade que nos permita conhecer

uma cognição como intuitiva, mas não se pode concluir que não haja nenhuma cognição

que não seja determinada por algo semelhante (i.e., por outra cognição).

Page 278: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

263

Durante o resto deste quarto parágrafo da Q7 (CP 5.262 [1868]), Peirce se dedica a

construir um argumento para cobrir a "outra parte da sétima questão". Como vimos, o

argumento da primeira parte deste parágrafo não pode sustentar a ideia de que não haja

nenhuma cognição que não seja determinada por outra cognição. Esta ideia está

justamente no foco do argumento que passamos a analisar. Nesta segunda metade do

parágrafo, Peirce nos apresenta três proposições para concluir que "nenhuma cognição

que não seja determinada por uma cognição prévia pode ser conhecida" (CP 5.262

[1868]).

Proposições da segunda parte do quarto parágrafo texto original (CP 5.262

[1868])

Proposição_1: Todas as faculdades cognitivas que conhecemos são relativas.

Proposição_2: O produto de faculdades (cognitivas) relativas são relações.

Proposição_3: A cognição de uma relação é sempre determinada por cognições

anteriores.

Proposição_4 (conclusão): Nenhuma cognição que não seja determinada por uma

cognição prévia pode ser conhecida.

Enxergar como é possível estabelecer esta última proposição como conclusão a partir

das afirmações anteriores não é uma tarefa muito difícil. Para que explicitemos o

argumento relativo a este trecho, podemos recorrer ao seguinte expediente: combinemos

estas três primeiras proposições em duas proposições condicionais.

Proposições condicionais obtidas a partir de proposições da segunda parte do

quarto parágrafo texto original (CP 5.262 [1868])

Proposição condicional_1 (obtida a partir da combinação da Proposição_1 e da

Proposição_2): Se todas as faculdades cognitivas conhecidas são relativas e o

produto de faculdades (cognitivas) relativas são sempre relações, então tudo que

podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas conhecidas) são relações.

Proposição condicional_2 (obtida a partir da combinação da Proposição_2 e da

Proposição_3): Se tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas

conhecidas) são relações e a cognição de uma relação é sempre determinada por

cognições anteriores, então tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades

cognitivas conhecidas) é sempre determinado por cognições anteriores.

Page 279: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

264

Utilizado este expediente, já podemos explicitar o argumento que tem como conclusão a

afirmação de que "nenhuma cognição que não seja determinada por uma cognição

prévia pode ser conhecida" (Proposição_4 acima). Para isso, basta que identifiquemos a

Proposição_1 do texto original como a primeira premissa de tal argumento e

apresentemos a Proposição condicional_1 e a Proposição condicional_2

respectivamente como a segunda e terceira premissas.

Argumento sobre o domínio do conhecimento

Premissa1: Todas as faculdades cognitivas conhecidas são relativas

Premissa2: Se todas as faculdades cognitivas conhecidas são relativas e o produto

de faculdades (cognitivas) relativas são sempre relações, então tudo que podemos

conhecer (graças a faculdades cognitivas conhecidas) são relações.

Premissa3: Se tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas

conhecidas) são relações e a cognição de uma relação é sempre determinada por

cognições anteriores, então tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades

cognitivas conhecidas) é sempre determinado por cognições anteriores.

Conclusão: Tudo o que podemos conhecer (graças a faculdades cognitivas

conhecidas) é sempre determinado por cognições anteriores.

Esta conclusão é obviamente equivalente à proposição "nenhuma cognição que não seja

determinada por uma cognição prévia pode ser conhecida" (CP 5.262 [1868]). Esta é uma

resposta negativa à sétima questão, portanto. Estabelecida esta tese, Peirce volta a afirmar

que admitir que haja alguma cognição que não fosse determinada por uma anterior seria

admitir a existência de uma cognição incognoscível, o que não pode ser feito. Neste ponto

da Q7, Peirce recorre a uma premissa utilizada na Q5 (todo pensamento é conhecível ou

cognoscível) e outra apresentada na Q6 (o incognoscível não existe). O argumento

peirceano neste último trecho do quarto parágrafo da Q7 é o seguinte:

Argumento sobre a inexistência de uma cognição originária

Premissa1: Se houvesse alguma cognição que não fosse determinada por uma

cognição anterior, então tal cognição (não-determinada) seria absolutamente

incognoscível.

Premissa2: Não pode haver alguma cognição que seja absolutamente

incognoscível (porque uma cognição só existe na medida em que é conhecida).

Conclusão: Não existe nenhuma cognição que não seja determinada por uma

cognição anterior.

Page 280: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

265

Peirce abre a sétima questão afirmando haver evidências favoráveis a uma resposta

positiva. Uma argumentação possível é que deve haver alguma cognição que não seja

determinada por nenhuma cognição anterior, pois, caso contrário, o processo de

conhecimento não se efetivaria nunca já que não haveria um início. Esta argumentação

que apresentamos corre em paralelo ao argumento que leva ao paradoxo de Zenão.

Assim, de acordo com este argumento, a obtenção de conhecimento seria uma ilusão da

mesma forma que o movimento o é de acordo com o paradoxo de Zenão194

.

Como vimos, no início da Q7, o filósofo norte-americano não apresentou nenhum

argumento destinado a desmontar alguma argumentação em favor desta resposta

positiva. Na verdade, Peirce vem postergando uma refutação definitiva a esta resposta

positiva desde o início da Q5. No último parágrafo da Q7, Peirce opta por construir um

argumento cuja base é uma analogia entre pensamento e continuidade. No início deste

parágrafo, lemos:

A resposta ao argumento favorável à ideia de que deve haver um primeiro

elemento é a seguinte: ao retraçarmos nosso caminho das conclusões em

direção às premissas, ou das cognições determinadas em direção àquelas que

as determinaram, nós acabamos por atingir, em todos os casos, um ponto

além do qual a consciência na cognição determinada é mais vívida do que a

consciência numa cognição que a determine.

(CP 5.264 [1868])195

Então, no trecho que vem logo em seguida, Peirce solicita que imaginemos que um

triângulo invertido seja vagarosamente mergulhado na água e nos pede para supor que

cada uma das linhas que a superfície da água vai formar no triângulo (em cada instante

deste mergulho) seja considerada uma cognição. Por exemplo, no instante t, a superfície

da água deve formar uma linha que, ao atravessar o triângulo, deve obviamente estar

localizada a alguma altura do triângulo. Logo em seguida, no instante t+1, a superfície

da água deve formar uma linha que se localiza a uma altura maior ainda no triângulo.

194

Este paradoxo também é conhecido como "paradoxo de Aquiles e da tartaruga". Os argumentos do

filósofo (pré-socrático) Zenão de Eleia relativos ao paradoxo de "Aquiles e da Tartaruga" foram

desenvolvidos para provar a tese de que o movimento é ilusório. Na historieta atribuída a Zenão, Aquiles

é convocado para disputar uma corrida contra uma tartaruga e, por ser muito mais rápido, o herói grego

deixa que o vagaroso quelônio comece na frente. Zenão então nos apresenta a ideia que, para Aquiles

ultrapassar a tartaruga, ele deve (antes) percorrer metade do caminho que os separa. Entretanto, antes

disso, ele deve percorrer metade da metade do caminho que os separa. E antes disso ainda, ele deve

percorrer metade da metade da metade do caminho que os separa. E, assim infinitamente, pois, de acordo

com Zenão, o espaço a ser percorrido por Aquiles pode ser infinitamente partido em pedaços cada vez

menores (mas que são sempre maiores que o nada). Assim, conclui Zenão, como deve percorrer um

número infinito de espaços, Aquiles, na verdade, nunca sai do lugar. A ideia do filósofo eleata é que, se

para sairmos de um ponto (qualquer) x e chegarmos a um ponto y (diferente de x), tivéssemos que

percorrer infinitos trechos de espaço (por menores que estes sejam), então nunca chegaríamos a nos

mover, pois seriam necessários infinitos intervalos de tempo (por menores que estes sejam). 195

No original: "The reply to the argument that there must be a first is as follows: In retracing our way

from conclusions to premisses, or from determined cognitions to those which determine them, we finally

reach, in all cases, a point beyond which the consciousness in the determined cognition is more lively

than in the cognition which determines it".

Page 281: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

266

Para Peirce, neste exemplo, esta última linha representa uma cognição determinada pela

cognição anterior (da linha anterior). Ambas as cognições têm o mesmo objeto.

Estabelecido isto, Peirce afirma que a consciência nesta última cognição (aquela da

linha mais alta no triângulo) é mais vívida que a cognição anterior que a determinou

(i.e., aquela da linha mais baixa no triângulo). Deve-se chamar a atenção para o seguinte

detalhe: o ponto que está no vértice do triângulo representa um objeto externo à mente

que determina ambas as cognições (as duas linhas). Construído o exemplo, Peirce se

encaminha para afirmar que dada uma linha, a qualquer altura do triângulo, é sempre

possível traçar uma segunda linha que esteja abaixo daquela primeira, ou seja, é sempre

possível encontrar alguma outra linha que esteja entre a linha dada e o vértice. Do

"outro lado da analogia", isto significa afirmar que é sempre possível encontrar

(distinguir) alguma cognição que seja anterior a qualquer cognição dada, ou seja, é

sempre possível encontrar alguma cognição entre uma cognição dada e o objeto externo

que se supõe determinar a cadeia de cognições. Note que, para a teoria peirceana, nunca

é possível afirmar que este elemento totalmente externo à consciência (este objeto

transcendental) é o único responsável pelas determinações de uma cognição específica,

pois entre uma cognição específica e este elemento externo é sempre possível distinguir

outra cognição que determinou a cognição específica. Vejamos este ponto de acordo

com as palavras do próprio Peirce:

(...) Faça a linha na altura que desejar [no triângulo], você poderá traçar a

uma distância finita tantas linhas quanto quiser abaixo da linha feita

inicialmente ou abaixo de qualquer outra. Pois qualquer secção está a alguma

distância do vértice, caso contrário, ela não seria uma linha. Seja a distância

a. Então deve haver, antes do vértice, secções a distâncias de 1/2a, 1/4a,

1/8a, 1/16a, assim por diante. Então não é verdade que deve haver um

primeiro elemento. Podem-se explicar as dificuldades lógicas deste paradoxo

(que são idênticas as do paradoxo de Aquiles) da forma que se quiser. Estou

contente com o resultado, uma vez que seus princípios estão totalmente

aplicados ao caso particular da determinação de cognições (por outras

cognições). Que se negue o movimento, se for apropriado; apenas assim se

poderia negar o processo de determinação de uma cognição por outra. Que se

diga que instantes e linhas são ficções; então, que se diga também que

estados de cognição e juízos são ficções. O ponto no qual insisti não é esta ou

aquela solução de tal dificuldade, mas é meramente que a cognição surge por

um processo de começar, de iniciar-se (beginning), bem como ocorre

qualquer outro processo de mudança.

(CP 5.263 [1868])196

196

No original: "(...) draw the horizontal line where you will, as many horizontal lines as you please can

be assigned at finite distances below it and below one another. For any such section is at some distance

above the apex, otherwise it is not a line. Let this distance be a. Then there have been similar sections at

the distances 1/2a, 1/4a, 1/8a, 1/16a, above the apex, and so on as far as you please. So that it is not true

that there must be a first. Explicate the logical difficulties of this paradox (they are identical with those of

the Achilles) in whatever way you may. I am content with the result, as long as your principles are fully

applied to the particular case of cognitions determining one another. Deny motion, if it seems proper to do

so; only then deny the process of determination of one cognition by another. Say that instants and lines

are fictions; only say, also, that states of cognition and judgments are fictions. The point here insisted on

Page 282: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

267

A última cartada de Peirce no QFCM é um argumento por analogia. Portanto, o que

deve ser analisado neste último movimento argumentativo é a analogia que lhe serve de

base. Antes de apresentarmos esta análise, devemos explicar o porquê este último

movimento argumentativo do QFCM é tão importante., há muito em jogo nestas últimas

linhas. Para que este argumento funcione, uma sequência de pensamentos (de signos,

portanto) deve ser análoga à sequência de linhas no triângulo (do exemplo fornecido).

As sequências de pensamentos e de linhas (no triângulo) devem ser ambas contínuas. E

é neste ponto que encontramos o que pode ser considerado o problema mais grave de

todo o QFCM do ponto de vista argumentativo. Como veremos no próximo capítulo,

para que o argumento geral do QFCM funcione dentro do projeto filosófico do jovem

Peirce (cujo objetivo é responder como são possíveis os raciocínios sintéticos ou

ampliativos), a tese-base precisa estar bem estabelecida. O estabelecimento da tese-base

depende do esclarecimento do conceito de continuidade ou de continuum, uma vez que

a proposta teórica de Peirce é que a atividade cognitiva teria, tal como um processo

sígnico (de interpretação), uma natureza contínua. Como a teoria inferencial (ou

sígnica) da cognição apresentada no QFCM tem concorrentes que são capazes de

explicar de forma mais simples (ou, ao menos, natural) o funcionamento da atividade

cognitiva recorrendo ao conceito de intuição, Peirce tem por obrigação provar que a

afirmação (contra-intuitiva) de que os processos cognitivos têm natureza contínua é uma

solução teórica aceitável (comparada às propostas concorrentes). A grande dificuldade é

que, de acordo com nossa interpretação, o argumento por analogia apresentado por

Peirce ao final desta Q7 não foi capaz desmontar esta resposta positiva (à sétima

questão), pois um argumento deste tipo não é capaz de explicar no que consiste a

natureza contínua dos dois termos da comparação (da analogia). Este argumento

pressupõe que já esteja bem definida esta concepção de natureza contínua197

. Como

reconheceu Murphey, o problema é que não está bem definida no QFCM (Murphey,

1993 [1961], p. 121) a própria noção de continuidade ou de continuum nem a sua

relação com o conceito de cognição ou pensamento (cf. p. 109 e 110). De acordo com

Prendergast, seria exatamente o conceito de continuum (que está na base deste

argumento por analogia) um dos principais problemas de toda a filosofia peirceana198

.

É evidente que este importante argumento se baseia na validade da analogia

entre pensamento e o continuum matemático. Ademais, a noção de

continuum é um dos problemas mais polêmicos na filosofia peirceana.

Contudo, apesar das dificuldades e obscuridades, Peirce produziu a crítica

mais devastadora do cartesianismo dentro da epistemologia.

(Prendergast, 1977, p. 304)

is not this or that logical solution of the difficulty, but merely that cognition arises by a process of

beginning, as any other change comes to pass". 197

A definição de continuum que Peirce fornece no terceiro artigo da série cognitiva é a seguinte: "um

continuum é precisamente aquilo que, cada uma de suas partes tem partes, no mesmo sentido" (CP 5.335

[1869]). 198

Outro grande problema que atravessa toda a filosofia peirceana é a “irredutibilidade da relação

triádica”. Trataremos desta questão no último capítulo.

Page 283: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

268

A solução que Joseph Ransdell (1966, p. 42) encontrou para este problema do conceito

de continuidade é muito elegante e coerente. Ransdell opera uma distinção entre um

ponto de vista psicológico (segundo o qual a atividade cognitiva deve ser entendida

como um processo contínuo) e um ponto de vista lógico (segundo o qual a atividade

cognitiva deve ser entendida como um processo que pode ser "quebrado" em unidades

discretas [tais como premissas e conclusões]). De acordo com Ransdell (1966, p. 91), o

que Peirce procurou fazer nos textos de 1867 e 1868 é construir um modelo lógico da

mente (cf. seção 3 do capítulo 3). Entretanto, ainda que esta solução interpretativa que

Ransdell nos oferece sobre este tema polêmico do pensamento peirceano seja muito

interessante, ela serve para o todo da obra peirceana, mas não para o texto específico

com qual viemos lidando nesta última centena de páginas: o QFCM. Não há evidências

textuais suficientes dentro do QFCM para suportar esta solução. No QFCM não há

sinais muito claros desta distinção. O que, de fato, encontramos é uma analogia. Uma

analogia, aliás, que não é capaz de esclarecer o que se entende por continuum quando se

afirma que o pensamento tem natureza contínua e não discreta.

Entretanto, onde estaria exatamente o problema de Peirce ter, como último recurso para

estabelecer sua teoria inferencial ou sígnica da cognição, confiado numa analogia?

Analisemos a analogia que está na base deste argumento. Como já vimos no início das

análises dessa sétima questão, o argumento favorável à resposta positiva à Q7 que

Peirce parece levar em consideração é um argumento transcendental e pode ser expresso

da seguinte forma: como o conhecimento é possível, logo deve haver algum ponto

originário em toda série de signos, deve haver intuição. Esta argumentação depende da

(verdade da) seguinte proposição: "Se não há primeiro elemento na série de cognições,

então não há pensamento, não há cognoscibilidade (não há processo de conhecimento)".

O que esta proposição nos garante é que haver um primeiro elemento (na série de

cognições) é uma condição necessária para haver pensamento ou cognição de algo. De

acordo com esta proposição, para que tenhamos efetivamente uma cognição de um

objeto é necessário (supor) que haja alguma primeira cognição relativa àquele objeto.

Com seu argumento por analogia, Peirce pretende mostrar que é falsa esta proposição

que estabelece tal condição necessária. Como estamos diante de uma proposição

condicional que tenta expressar uma espécie de regra para a existência ou efetividade de

um certo processo, a estratégia mais imediata seria apresentar um contraexemplo: um

caso em que a regra é descumprida, um caso em que a condição (que deveria ser

necessária) não é satisfeita e, ainda assim, o processo "ocorre normalmente". Como o

que esta regra (este condicional) estabelece é que para haver processo de cognição de

um objeto deve haver primeiro elemento, então obviamente um contraexemplo seria um

caso em que não há primeiro elemento, mas há o referido processo. O caso em que não

há primeiro elemento é uma situação em que, dada uma cognição qualquer sobre um

objeto, é sempre possível encontrar (dentro da série) um outro elemento que esteja entre

o elemento dado e o objeto (ao qual a série de cognições é relativa). O contraexemplo é

justamente este caso em que é sempre possível encontrar uma nova cognição antes do

objeto (de uma cognição qualquer). Em outras palavras, o contraexemplo de que Peirce

precisa é justamente um caso em que o pensamento, o processo de cognição de um

Page 284: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

269

objeto tenha uma natureza contínua. Entretanto, no lugar de apresentar um

contraexemplo, Peirce construiu uma analogia entre a natureza contínua do processo de

cognição (de um objeto) e a natureza contínua das linhas que atravessam o triângulo no

exemplo dado (ou a natureza contínua do espaço no paradoxo de Zenão).

O conceito de continuum é o calcanhar de Aquiles do QFCM (e provavelmente da série

cognitiva como um todo). Numa avaliação final (que será melhor desenvolvida no

próximo capítulo e, sobretudo, no último capítulo), acreditamos que este tenha se

tornado o ponto fraco do QFCM justamente por ter ficado implícito, por não ter sido

desenvolvido nesta última questão. Na Q7, Peirce parece ter optado por colocar o

conceito de continuum num lugar de pressuposto. Este conceito não foi definido, nem

explorado dentro da série cognitiva. Devemos nos recordar que o primeiro golpe

desferido por Peirce contra o projeto cartesiano de fundação do conhecimento físico-

matemático foi justamente a explicitação e posterior problematização de algo que estava

pressuposto na obra cartesiana: a capacidade intuitiva de se distinguir intuições (de

cognições derivadas). A primeira peça que Peirce moveu no tabuleiro foi direcionada

para atacar um pressuposto central ao projeto cartesiano. O que vemos agora é a

debilidade de um dos principais pressupostos sobre os quais está assentada a teoria

inferencial da cognição proposta por Peirce. Aparentemente, na Q7, Peirce pressupõe

que o processo de conhecimento (relativo a um objeto) tenha sempre uma natureza

contínua (ao menos do ponto de vista lógico, de acordo com a distinção de Ransdell). A

impressão é que esta proposição (a quarta premissa no esquema a seguir) deveria ser

provada, estabelecida e não pressuposta. Ou argumento da Q7 é circular ou, graças à

ausência, no texto, de procedimentos destinados a esclarecer conceitos-chave ou

explicitar sentidos latentes (tal como um procedimento de definição ou de análise de

conceito), o argumento da Q7 não fecha, é inconclusivo.

Argumento geral da Q7

Premissa1: Se o processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma

natureza contínua, então, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre

possível distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou.

Premissa2: Se, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre possível

distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou, então

tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por cognições anteriores.

Premissa3: Se tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por

cognições anteriores, então não há cognição originária.

Premissa4: O processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma

natureza contínua.

Conclusão: Não há cognição originária.

Page 285: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

270

Esta argumentação permanece problemática mesmo que levemos em conta a seguinte

definição de continuum que Peirce fornece no terceiro artigo da série cognitiva: "um

continuum é precisamente aquilo cuja cada uma de suas partes tem partes do mesmo

tipo" (CP 5.335 [1869])199

. Esta definição não ajuda a dissolver o paradoxo de o

pensamento parecer ter uma natureza contínua por um lado e uma natureza discreta por

outro. Esta definição não esclarece como é possível que um processo seja contínuo e

ainda, assim, seja composto de entidades que, ao menos, parecem discretas como

cognições (ou signos). Estes questões permaneceram em aberto.

O argumento por analogia ao final da Q7 não foi um erro de estratégia argumentativa de

Peirce. Talvez esta tenha sido sua única opção se levarmos em conta a possibilidade de,

na época, ele não ter ainda um entendimento muito desenvolvido sobre o conceito de

continuidade ou não ter "equipamentos" apropriados para lidar com infinito. Devemos

lembrar que, em sua época, estavam ainda sendo desenvolvidas as ferramentas

conceituais que seriam requeridas para um tratamento adequado das questões com as

quais Peirce começou a lidar na base de seu sistema filosófico. O infinito e o continuum

eram questões matemáticas que estavam, então, entrando na ordem do dia sob um novo

tratamento. A base da argumentação elaborada no QFCM (e na série cognitiva como um

todo) mobilizava conceitos que estariam no centro das teorias elaboradas pelo

matemático alemão Georg Cantor e que estariam destinadas a modificar profundamente

o modo de se fazer e entender (o que é) matemática. Para Murphey, o conceito de

continuum sofreu modificações ao longo do desenvolvimento do pensamento peirceano.

Então, em 1868, Peirce já tinha se envolvido com problemas a respeito de

infinitude e continuidade problemas para os quais ele ainda não tinha

respostas adequadas. Não até a década de 1880, quando teve contato com a

obra de Georg Cantor, e conseguiu fazer progressos substanciais em diversas

áreas. Enquanto isso, a relação da inferência com o processo de pensamento

requis clarificações posteriores.

(Murphey, 1993 [1961], p. 121)

Com relação aos escritos da década de 1860 não nos parece justo culpar Peirce pela

obscuridade das linhas que analisamos acima, pois sua concepção de continuum estava

solidamente baseada na matemática de seu tempo. O que está na base desta concepção é

a denominada teoria dos infinitesimais200

. Desde Newton e Leibniz (século XVII), o

cálculo esteve baseado no obscuro conceito de infinitesimal, que são quantidades

infinitamente pequenas (cf. Courant e Robins, 1941, p. 433). Ao longo do século XIX,

esta teoria dos infinitesimais seria rejeitada e substituída pela teoria dos limites.

Segundo Murphey (1993 [1961], p. 119-20), embora, ainda nas primeiras décadas do

199

No original: "a continuum is precisely that, every part of which has parts, in the same sense" 200

Tecnicamente, a teoria clássica dos infinitesimais "considera o infinitesimal como um recíproco do

infinito, então se a é finito, x é infinito, e i é infinitesimal, a/x = i e conversamente a/i = x. Além do mais,

os infinitesimais são eles mesmos capazes de serem divididos: assim (a/x) / x = i2

" Murphey, 1993

[1961], p. 120).

Page 286: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

271

século XIX, o trabalho do matemático francês Augustin-Louis Couchy tenha

contribuído bastante para estabelecer a superioridade da teoria dos limites com relação a

teoria do infinitesimal, a aceitação geral com respeito a esta superioridade só veio, no

final desse mesmo século, com o trabalho do matemático alemão Karl Theodor Wilhelm

Weierstrass. Neste meio tempo, os matemáticos mais antigos ainda estavam presos à

antiga teoria. Dentre estes, um dos mais fieis à antiga teoria dos infinitesimais era o pai

de Peirce, o matemático norte-americano, Benjamin Peirce. De acordo com Murphey

(1993 [1961], p. 120), até o fim de sua vida, Charles Peirce nunca abandonou esta

teoria. Por este exato motivo, ainda que consideremos desenvolvimentos posteriores

deste problema do conceito de continuum relativo à teoria da cognição, não nos parece

que Peirce tenha alcançado uma solução satisfatória.

Em 1891, no artigo lei da mente ("Law of Mind"), texto no qual apresenta sua doutrina

do sinequismo201

, o conceito de continuidade aparece de forma muito mais

desenvolvida (ainda que estivesse distante da concepção cantoriana e que o próprio

Peirce tenha reconhecido alguns anos mais tarde que este tratamento que deu ao

conceito de continuidade era "desajeitado", cf. CP 6.174 [1905]). Neste artigo, a

argumentação peirceana para afirmar que é contínua a natureza da atividade cognitiva é

muito semelhante àquela desenvolvida na série cognitiva ao final da década de 1860.

Neste caso do artigo de 1891, o argumento tenta nos garantir que se o processo de

pensamento não for contínuo, então se tornaria inexplicável como é possível um

indivíduo ter memória. De acordo com Peirce, "o presente está conectado ao passado

por uma série real de passos infinitesimais" (CP 6.109 [1891])202

. Estruturalmente,

estamos diante do mesmo argumento (com algumas poucas distinções). A direção geral

do argumento é a mesma. A base é ainda a teoria dos infinitesimais como em 1868.

Este problema do continuum na teoria da cognição (do QFCM) parece insistir aberto

mesmo se considerarmos o desenvolvimento de novas abordagens em fase tardia do

pensamento de Peirce (Cf. CP 6.120 - 6 [1891], 6.168 – 170 [1901] e também CP 3.569

[1903] e 4.121 [1893]). De um ponto de vista filosófico, a definição peirceana para o

termo “continuum” é peculiar. De acordo com o filósofo Ivo Ibri, estudioso da

metafísica peirceana, Peirce juntou a definição aristotélica do termo (segundo a qual o

continuum é alguma coisa cujas partes têm um limite em comum) com aquela elaborada

por Kant (para quem o caráter essencial de uma série contínua seria a infinita

divisibilidade, ou seja, que entre quaisquer dois dos membros desta série, um terceiro

poderia sempre ser encontrado). Então, para Peirce, “o continuum é alguma coisa

infinitamente divisível cujas partes têm um limite em comum” (Ibri, 1992, p. 66). Como

veremos, com algum detalhamento, nas análises dos próximos capítulos, as duas

201

O termo utilizado por Peirce nos textos originais é “synechism”. De acordo com o filósofo, esta é a

“forma inglesa do grego ‘synechismós’ de ‘synechés’, continuo. (…)”. Mais adiante, neste mesmo

parágrafo, Peirce traz algumas distinções: “o materialismo é a doutrina de que tudo é matéria, o idealismo

é a doutrina de que tudo é ideia, o dualismo é a filosofia que separa tudo em duas partes. Assim, eu

propus que o sinequismo signifique a tendência a se considerar tudo como contínuo” (CP 7.565 [1892]).

Ainda a respeito da doutrina peirceana do sinequismo, cf. CP 6.102 – 163 [1892] e CP 6.172 [1902].

202 No original: " the present is connected with the past by a series of real infinitesimal steps".

Page 287: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

272

características elementares deste conceito de continuum (a infinita divisibilidade e os

limites comum de suas partes) já podiam ser enxergadas dentro conceito de signo (ou de

processo sígnico) construído por Peirce para ser mobilizado dentro da série cognitiva.

Portanto, esta última questão do QFCM, o problema das origens, é um ponto nevrálgico

do pensamento peirceano. Por este motivo Lucia Santaella afirma que os problemas

levantados ao final do QFCM foram carregados por Peirce pelo resto de sua carreira

filosófica.

Argumentando que nunca podemos saber, com certeza, se uma cognição,

qualquer cognição, é, de fato, originária, Peirce continuou sustentando que

toda a cognição é determinada por outra, o que significava atacar o postulado

aristotélico-cartesiano de que as premissas primeiras da demonstração são

indemonstráveis. A complexidade da questão, contudo, não se esgota, de

modo algum, na resposta que Peirce encontrou para ela nesse artigo. Pode-se

dizer que os problemas aí implicados foram levados por ele vida afora. Suas

variações e ecos iriam, mais tarde, reaparecer nos espinhosos entreveros da

sua teoria da percepção e do objeto do signo, assim como no seu gradativo

abandono do idealismo em prol do realismo ou de um idealismo objetivo,

como ele preferia qualificar.

(Santaella, 2004, p. 45)

Voltaremos a este ponto no próximo e também no último capítulo. Esta Q7, a última

questão do QFCM, contém uma argumentação (no mínimo) inconclusiva. É uma veia

aberta. Para Peirce, 1868 é um ano que nunca terminou.

Page 288: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

273

CAPÍTULO 9

Resultados da análise do texto "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas

para o homem"

Durante os últimos quatro capítulos, analisamos ponto por ponto, o primeiro artigo da

série cognitiva, "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o

homem" (aqui abreviado com algumas das iniciais do título no idioma original: QFCM).

Podem-se identificar neste texto dois grandes movimentos argumentativos: o primeiro

deles é aquele projetado para estabelecer a equivalência entre os conceitos de

pensamento e signo e o segundo deles tenciona provar que é possível construir uma

teoria da cognição sem pontos originários (sem intuição). Para construir esta teoria da

cognição que pretende explicar como funciona a produção de conhecimento sem

recorrer a pontos originários (intuições), Peirce lança mão de conceitos provenientes de

outro corpo teórico: a semiótica. Entretanto, só podemos notar a importância de

algumas teses estabelecidas dentro do QFCM para o projeto filosófico peirceano (como

um todo) e o entrelaçamento entre semiótica e epistemologia se observarmos o QFCM a

partir de um ponto de vista externo. A ideia deste breve (nono) capítulo é enxergar o

QFCM a partir de fora, ou seja, como esta peça argumentativa específica se encaixa na

engrenagem construída por Peirce para responder o que considerava ser o problema

fundamental da filosofia. Por este motivo, devemos começar este capítulo tratando

daquilo que está do “lado de fora” do QFCM. Revisemos de modo sucinto o projeto

filosófico de Peirce e os principais passos lógicos de sua construção.

O objetivo último do projeto filosófico dentro do qual estão os textos e as questões que

viemos analisando nos últimos capítulos é responder aquele problema considerado (por

Peirce) central na filosofia: como são possíveis as sínteses (ou, em outros termos, como

é possível o raciocínio sintético ou ampliativo)? Como foi exposto nos três primeiros

capítulos (sobretudo, no segundo), o caminho que levaria Peirce a poder fornecer dentro

dos três artigos que compõem a série cognitiva (1868-69) uma resposta a esta pergunta

começa a ser trilhado por volta do ano de 1864 quando ele faz algumas descobertas na

área da lógica. Estas descobertas acabam por afastá-lo progressivamente de sua matriz

intelectual, o pensamento kantiano, e o estimula a construir uma nova lista de

categorias. Como vimos no segundo capítulo, no ano de 1865, Peirce descobre que

todas as relações relevantes para a lógica são casos particulares de uma relação mais

fundamental: a relação sígnica. Peirce passa a considerar que tanto a relação entre

sujeito-predicado numa proposição como a relação entre antecedente e consequente

num condicional e também a relação entre premissa-conclusão numa inferência são

Page 289: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

274

todos casos particulares de relações sígnicas. Não é por outro motivo que a relação

sígnica passa a ocupar um posicionamento central no pensamento peirceano. A teoria

peirceana das categorias utiliza justamente o conceito de signo para responder à questão

da possibilidade das sínteses. Ainda no primeiro capítulo, apresentamos uma espécie de

roteiro, um passo a passo lógico para construção do sistema filosófico peirceano. A

seguir reapresentamos este roteiro para que possamos localizar dentro dele os

argumentos do QFCM.

Passos lógicos – construção inicial do sistema filosófico peirceano

I) Descobertas no campo da lógica (entre 1864 e 1866) levam ao questionamento

das categorias kantianas.

II) Elaboração de uma nova lista de categorias.

III) A terceira categoria proveniente da nova lista de categorias leva ao

questionamento de todas as teorias epistemológicas que posicionam a intuição

como conceito responsável por explicar as fundações do conhecimento.

IV) O questionamento de todas as teorias epistemológicas que colocam o conceito

de intuição naquela "posição fundacional" leva à elaboração de uma nova teoria

da cognição.

V) A elaboração de uma teoria da cognição (condizente com a teoria das

categorias e alternativa àquelas teorias que recorrem à intuição) leva a uma

reformulação do conceito de realidade e o estabelecimento de uma teoria da

realidade que é considerada compatível com as descobertas na área da lógica e

com a epistemologia de base semiótica (inaugurada por Peirce).

VI) A reformulação do conceito de realidade torna possível a proposição de uma

teoria que funciona como uma validação (à prazo) para o raciocínio sintético (ou

ampliativo).

Se observarmos de "trás para frente", da resposta fornecida por Peirce para o problema

central de sua filosofia (ao menos nesta fase de formação de um pensamento

propriamente semiótico) na direção das descobertas efetuadas no período pós-64,

teremos o seguinte roteiro. No terceiro artigo ("Fundamentos da validade das leis da

lógica: outras consequências das quatro incapacidades"), Peirce apresenta uma teoria

que fundamenta a validade dos raciocínios ampliativos na seguinte condicionante

básica: para ser válido, um raciocínio ampliativo deve ser aplicado por um tempo

indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Como vimos,

esta solução teórica depende de duas reformulações conceituais efetuadas no segundo

dos artigos da série ("Algumas consequências das quatro incapacidades"). A primeira

Page 290: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

275

dessas reformulações conceituais é aquela que torna o sujeito cognoscente uma espécie

de sujeito coletivo ao substituir a noção de indivíduo por uma noção de comunidade

indefinida de pesquisadores e a segunda delas é a reformulação do conceito de

realidade, que passa a ser considerado um ponto de convergência ao qual tendem todas

as linhas de investigação levadas a cabo por aquela comunidade indefinida de

pesquisadores. Estas duas reformulações são consequências diretas da teoria da

cognição apresentada, sobretudo, no primeiro artigo da série (QFCM). Por sua vez, tal

teoria da cognição é uma consequência direta da teoria das categorias (proposta por

Peirce), principalmente do papel da terceira categoria (a representação ou "referência a

um interpretante") na resposta ao problema central do projeto filosófico peirceano. E,

conforme explicado acima, esta teoria das categorias é uma consequência das

descobertas na área da lógica feitas por Peirce no período posterior ao ano de 1864.

Apresentado este panorama, já podemos localizar o QFCM como um texto cujas linhas

argumentativas se distribuem ao longo dos passos III, IV e V. Durante a última centena

de páginas, nosso trabalho de análise esteve voltado basicamente para esta “etapa”

lógica da construção do pensamento peirceano. Como veremos ao final deste capítulo,

para sustentar nossa própria tese acerca da importância do conceito de recursividade

para o projeto filosófico peirceano, os resultados das análises do QFCM nos obrigarão a

voltar nossa atenção para os primeiros passos lógicos (sobretudo, o II e o III) e para o

modo como Peirce estabeleceu num artigo anterior à série cognitiva (intitulado “Sobre

uma nova lista de categorias”) o que denominaremos de teses elementares da semiótica

peirceana. Estas teses são essenciais para que o conceito de signo funcione conforme o

esperado dentro da teoria da cognição proposta na série cognitiva. Os desenvolvimentos

dentro do pensamento peirceano relativos a esses primeiros passos lógicos serão

analisados nos próximos dois capítulos. Portanto, em resumo, neste nono capítulo,

pretendemos expor os principais resultados das análises do QFCM (realizadas nos

capítulos 4,5,6,7 e 8) e a relevância das teses estabelecidas neste primeiro artigo da série

cognitiva para o projeto filosófico peirceano.

Page 291: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

276

9.1 - Primeiro movimento argumentativo geral do QFCM: o

estabelecimento da tese-base da semiótica

Aquela proposição que denominamos de tese-base da semiótica (“todo pensamento é

pensamento em signos” ou, noutra formulação, “todo pensamento se dá em signos”)

funciona como um “centro lógico” de todo o QFCM e de parte considerável do segundo

artigo da série cognitiva (“Algumas consequências das quatro incapacidades”). Por um

lado, convergem para esta tese as principais linhas argumentativas do QFCM

desenvolvidas para estabelecer a teoria peirceana da cognição. Por outro lado, saem

desta tese-base as consequências que são analisadas no segundo artigo da série (dentre

elas podemos citar [novamente] a reformulação do conceito de verdade e de sujeito

cognoscente). Dentro do QFCM, a tese-base é estabelecida por uma linha

argumentativa que começa a ser desenvolvida ainda na Q1 e tem por finalidade afirmar

que o homem só tem acesso aos próprios pensamentos de forma indireta, ou seja, por

inferência a partir de elementos externos. Graças à solução teórica que Peirce pretende

propor para o problema das sínteses, ele está impedido de colocar a intuição num papel

fundacional dentro de sua teoria do conhecimento. Por isso, este acesso indireto,

inferencial se torna o principal ingrediente da teoria da cognição que é por Peirce

proposta como alternativa àquelas teorias que recorrem ao conceito de intuição para o

papel de ponto originário do processo de conhecimento.

No QFCM, a argumentação contra o recurso à intuição não é direta. Peirce não prova

que as teorias que recorrem a intuição são todas falsas. O que ele de fato faz é construir

uma teoria alternativa que não só explica todas as faculdades cognitivas humanas que

suas "concorrentes" explicam como evita o seus pontos fracos (provenientes do recurso

ao conceito de intuição). Portanto, no lugar de afirmar que as teorias adversárias são

falsas, Peirce simplesmente coloca sob suspeita o recurso teórico ao conceito de

intuição (que está na base, no papel de fundação, destas teorias adversárias) e tenta

construir uma teoria sobre conceitos que estejam "acima de quaisquer suspeitas". Não é

difícil notar alguns indícios que Peirce se move de acordo com esta estratégia ao longo

de todo o QFCM. Em cada uma das questões que compõem este artigo, são

apresentados dois caminhos teóricos básicos: um deles, para explicar determinada

faculdade cognitiva, recorre à capacidade de intuir (de ter intuições) e o outro caminho,

para explicar o mesmo fenômeno, recorre à capacidade de inferir (de fazer inferências).

Durante todas as análises (nos capítulos anteriores), denominamos estes dois caminhos

de caso I e caso II (respectivamente). A estratégia peirceana é argumentar que devemos

optar por este segundo caminho teórico, uma vez que este é baseado numa capacidade

da qual não se duvida que o homem de fato possua. Isto obviamente significa que o

outro caminho recorre a uma capacidade cuja existência, de acordo com Peirce, há

dúvidas. Deve-se enfatizar que em momento algum do QFCM, encontramos uma

afirmação direta de que não existem intuições.

Page 292: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

277

Para colocar o recurso teórico ao conceito de intuição sob dúvida, Peirce desenvolve,

em primeiro lugar, um argumento para negar que seja autoevidente que tenhamos a

capacidade de distinguir intuições. Como vimos nas análises da Q1 (capítulo 4), o

argumento favorável a existência da capacidade intuitiva de distinguir intuições é uma

falácia denominada petitio principii. Segundo Peirce, há uma circularidade

incontornável quando tentamos estabelecer nossa suposta capacidade intuitiva de

distinguir intuições nalgum elemento que seja (ele mesmo) de caráter intuitivo (por

exemplo, num sentimento supostamente de caráter intuitivo). Este movimento

argumentativo de Peirce estava destinado a questionar um pressuposto sob o qual

estavam assentadas as teorias adversárias. Estas teorias dentro da série cognitiva são

agrupadas sob a expressão "espírito do cartesianismo". Devemos recordar (da breve

apresentação que fizemos do pensamento de Descartes no terceiro capítulo) que a

capacidade de distinguir, de "isolar" intuições é um dos pressupostos do projeto

filosófico cartesiano. Enfatizemos novamente: o argumento peirceano desenvolvido na

Q1 nega apenas a existência de uma capacidade para se distinguir intuitivamente

intuições (mas, ele não nega a existência de intuições). É este movimento argumentativo

que, dentro do QFCM, é responsável por lançar uma sombra (de dúvida) sobre o

conceito de intuição. A partir deste ponto, as reflexões que foram desenvolvidas

passaram a considerar problemático o recurso teórico ao conceito de intuição. Isto abriu

caminho para uma teoria da cognição baseada no conceito de inferência. Problematizar

a intuição é apenas a parte negativa do QFCM. A construção efetiva de uma teoria

epistemológica alternativa àquelas que recorrem a tal conceito é a parte positiva.

O primeiro desafio desta teoria (alternativa, livre do conceito de intuição) que Peirce

pretendeu erigir no QFCM é provar que ela pode explicar a capacidade que o homem

possui de saber de sua própria existência, uma capacidade por vezes denominada de

autoconsciência. Isto é feito durante a Q2 do QFCM (que foi analisada no quarto

capítulo desta tese). Não é difícil notar que as teorias que recorrem ao conceito de

intuição têm uma considerável facilidade em explicar (de um ponto de vista

epistemológico) este fenômeno. Para estas teorias, o conhecimento do "eu" é direto,

fruto de uma intuição e, por isso mesmo, deve ser considerado certo e absoluto.

Entretanto, como Peirce afirmou que o recurso à intuição é uma saída teórica

problemática, ele se compromete a encontrar uma solução que recorra apenas ao

conceito de inferência (que não seria problemático). Como vimos, a solução encontrada

é sustentar que a autoconsciência seria gerada a partir de conhecimento ou, para que

sejamos precisos, da ausência de conhecimento relativo a fatos externos. De acordo com

Peirce, o conhecimento do "eu" é derivado da ignorância, da percepção de que nossas

representações individuais não estão de acordo com o mundo externo.

Notemos algo que é fundamental para a análise que pretendemos desenvolver neste

nono capítulo. Já nesta Q2, pode-se observar que começa a se desenhar um movimento

geral dentro das linhas argumentativas do QFCM. Este movimento é repetido, ao

menos, outras duas vezes: na Q3 e na Q4. Durante esta Q2, ao examinar o fenômeno da

autoconsciência, Peirce explica pela primeira vez uma faculdade cognitiva afirmando

Page 293: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

278

que o processo de cognição depende de um elemento externo àquilo que é objeto da

cognição. Em outras palavras, o processo de conhecimento relativo a um objeto é

indireto justamente porque depende de um recurso a um elemento ou fator externo ao

próprio objeto (a ser conhecido). Este movimento argumentativo vai desembocar mais

adiante no texto, na tese-base. Esta é decorrência dessas teses que afirmam que as

faculdades cognitivas são todas indiretas, i.e., todas dependem de inferência a partir de

fatos externos (mesmo aquilo que parece puramente interno).

Tanto na terceira como na quarta questões, Peirce enfrentou a tarefa de explicar com sua

teoria inferencial duas outras capacidades (além da capacidade de se obter

autoconsciência) que parecem facilmente explicadas por teorias que se utilizam do

conceito de intuição. No caso da Q3, como vimos na segunda seção do capítulo 5,

Peirce precisou provar que é possível explicar a capacidade humana de distinguir entre

os diversos tipos de estados mentais recorrendo-se apenas à inferência (sem se utilizar,

portanto, do conceito de intuição)203

. A ideia por trás da Q3 é estabelecer que não é

intuitiva, mas inferencial (portanto, indireta) a capacidade que temos em saber se

estamos sonhando, imaginando, concebendo, acreditando etc. Já na Q4, Peirce tratou de

como o homem se torna capaz de conhecer os fatos internos. De acordo com a teoria da

cognição peirceana, mesmo o conhecimento que o indivíduo obtém sobre sua própria

mente, sobre o seu "interior", é um conhecimento indireto. Assim, a percepção de que

estamos em determinado estado de espírito é derivada de consequências (que agem

como marcas) externas daquele fato interno.

Nestes três pontos do QFCM (na Q2, Q3 e Q4), Peirce tratou daquelas que podem ser

consideradas as principais faculdades cognitivas explicadas pelas teorias adversárias

(i.e., aquelas que utilizam o conceito de intuição numa posição fundacional): a

capacidade de se gerar autoconsciência, a capacidade para se distinguir entre os

elementos subjetivos de diferentes tipos de cognição e a capacidade de introspecção.

Em cada uma dessas questões, o objetivo foi estabelecer que tais capacidades podem ser

melhor explicadas teoricamente a partir do conceito de inferência, o que tornaria

desnecessária qualquer recurso ao conceito de intuição. Para provar que uma teoria

inferencial da cognição está em melhores condições para explicar o funcionamento de

determinadas faculdades do que as teorias adversárias, Peirce precisou, em primeiro

lugar, de desmontar a impressão de obviedade que está relacionada a respostas teóricas

que recorrem ao conceito de intuição. Ele precisou negar que seria auto-evidente (i.e.,

que seria óbvio) que cada uma dessas faculdades (investigadas em cada uma dessas

questões) fossem intuitivas. Ao estabelecer tal negação, as explicações que recorrem ao

conceito de intuição passam a precisar de evidências para que fossem sustentadas.

Assim, (desmontado o argumento para a auto-evidência), as evidências para se afirmar

que essas capacidades são intuitivas (diretas) podem e devem ser comparadas com as

evidências para se afirmar que essas mesmas capacidades são inferenciais (indiretas).

Nas três questões seguintes (Q2, Q3 e Q4), a tarefa central foi provar que as evidências

203

Nos termos do texto, esta capacidade foi chamada de faculdade para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição.

Page 294: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

279

favoráveis às explicações que recorrem ao conceito de inferência são mais fortes do que

as evidências favoráveis ao outro caminho teórico e, por este motivo, deve-se optar por

uma teoria inferencial da cognição (no lugar daquelas que recorrem ao conceito de

intuição).

O elo entre a proposição estabelecida ao final da Q1 e os argumentos elaborados nas

três questões seguintes é justamente o movimento argumentativo de descartar a

afirmação de que é auto-evidente que as capacidades sob investigação (em cada uma

dessas questões) sejam intuitivas. Durante as análises denominamos este ponto de

"argumento sobre a auto-evidência" (da capacidade em questão). Por exemplo, Peirce

(logo nas primeiras linhas da Q2) descarta a afirmação de que é auto-evidente que a

autoconsciência seja intuitiva argumentando que, se fosse este o caso, então estaria

pressuposto que teríamos a capacidade intuitiva de distinguir intuições (de outras

cognições que fossem não-intuitivas). Porém, isto não pode ser pressuposto, pois foi

estabelecida ao final da Q1 justamente a afirmação de que não temos a capacidade

intuitiva de distinguir intuições. Assim, Peirce utiliza a conclusão do argumento geral

da Q1 para desabilitar a "resposta automática" de que seria auto-evidente que as

capacidades cognitivas sob investigação (nas questões seguintes) seriam intuitivas.

Como vimos, é este movimento que permite a comparação entre um caminho teórico

que explique os fenômenos em questão por meio do conceito de intuição e outro cujas

explicações recorram somente ao conceito de inferência. A seguir reapresentamos em

sequência todos os argumentos gerais desenvolvidos em cada uma das quatro primeiras

questões do QFCM. Entretanto, no esquema a seguir, optamos por explicitar uma linha

argumentativa que age como uma conexão entre o ponto de chegada da Q1 e os pontos

de partidas das três questões seguintes.

Argumento geral da Q1

Premissa1: Se houvesse uma capacidade intuitiva de distinguir intuições, então

deveria haver alguma evidência dessa capacidade, ou seja, deveria haver ao menos

um caso em que tenha sido possível, sem recorrer a quaisquer inferências,

distinguir se uma cognição é produto de uma intuição ou de uma inferência.

Premissa2: Não há nenhum caso em que tenha sido possível distinguir, sem

recorrer a quaisquer inferências, se uma cognição é produto de uma intuição ou de

uma inferência.

Conclusão: Não há capacidade intuitiva de distinguir intuições.

Page 295: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

280

Linha argumentativa de ligação entre a Q1 e as três questões seguintes (Q2,

Q3 e Q4)

Premissa1: Se fosse auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e

Q4 fossem intuitivas, então estaria pressuposta que teríamos a capacidade

intuitiva de distinguir intuições.

Premissa2 (estabelecida na Q1): Não temos as capacidade intuitiva de distinguir

intuições.

Conclusão1: Não é auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e

Q4 sejam intuitivas.

Premissa3: Se não é auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e

Q4 sejam intuitivas, então deve haver evidências que as três capacidades

estudadas na Q2, Q3 e Q4 sejam intuitivas.

Premissa4: Não é auto-evidente que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e Q4

sejam intuitivas.

Conclusão2: Deve haver evidências que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e

Q4 sejam intuitivas.

Premissa5: Ainda que haja evidências que as três capacidades são intuitivas, para

afirmar que tais capacidades, de fato, são intuitivas, seria necessário que tais

evidências fossem mais fortes que as evidências que corroboram a tese contrária

(i.e., de que tais capacidades não são intuitivas).

Premissa6: As evidências favoráveis à tese de que as três capacidades estudadas

na Q2, Q3 e Q4 são intuitivas não são mais fortes que as evidências favoráveis à

tese de que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e Q4 não são intuitivas.

Conclusão: Não podemos afirmar que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e

Q4 são intuitivas.

Argumento geral da Q2

Premissa1: Se a autoconsciência fosse um conhecimento intuitivo, não seria

necessário recorrer a dados externos para se obter tal conhecimento.

Premissa2: É necessário recorrer a dados externos para se obter a autoconsciência.

Conclusão: A autoconsciência não é um conhecimento intuitivo.

Page 296: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

281

Argumento geral da Q3

Premissa1: Se houvesse capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição, então não seria necessário recorrer a

dados externos a uma cognição específica para se saber a qual tipo ela pertenceria.

Premissa2: É necessário recorrer a dados externos a uma cognição específica para

se saber a qual tipo (de cognição) ela pertence.

Conclusão: Não há capacidade intuitiva para se distinguir entre os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição.

Argumento geral da Q4

Premissa1: Se houvesse capacidade de introspecção, então não seria necessário

recorrer a fatos externos para obter conhecimento de fatos internos.

Premissa2: É necessário recorrer a fatos externos para obter conhecimento de

fatos internos.

Conclusão: Não há capacidade de introspecção.

No esquema acima apresentamos o que denominamos de linha argumentativa de ligação

entre a Q1 e as três questões seguintes (Q2, Q3 e Q4). A premissa6 (localizada no terceiro

argumento da linha) só pode ser estabelecida a partir do momento em que se coleta um

número suficiente de evidências favoráveis a uma teoria inferencial (e desfavoráveis,

portanto, a uma que fosse baseada no conceito de intuição). Dentro da economia interna do

QFCM, esta coleta de evidências é feita na Q2, Q3 e Q4. Em cada uma dessas questões,

Peirce caminha no sentido de estabelecer a ideia que as evidências em favor de uma teoria

inferencial são maiores do que as evidências em favor de uma teoria da cognição que se

baseie no conceito de intuição. Em cada uma das questões, a coleta de evidências

desemboca em proposições que afirmam que as faculdades cognitivas investigadas são

resultantes de processos de inferência. Estas proposições são aquelas que ocupam em cada

questão a posição de segunda premissa dentro do argumento geral.

Premissa2 do argumento geral da Q2: É necessário recorrer a dados externos para

se obter a autoconsciência.

Premissa2 do argumento geral da Q3: É necessário recorrer a dados externos a

uma cognição específica para se saber a qual tipo (de cognição) ela pertence.

Premissa2 do argumento geral da Q4: É necessário recorrer a fatos externos para

obter conhecimento de fatos internos.

Page 297: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

282

Notemos que todas estas segundas premissas dos argumentos gerais da Q2, Q3 e Q4 são

a base para que se possa estabelecer a premissa6 do que denominamos "linha

argumentativa de ligação...." . Estabelecida esta premissa6, então já é possível afirmar

que todos estes tipos de conhecimento descritos na Q2, Q3 e Q4 são produto de

inferência (e não de intuição). É justamente isto que pretende a teoria da cognição

elaborada por Peirce.

Premissa6 da linha argumentativa de ligação... : As evidências favoráveis à tese

de que as três capacidades estudadas na Q2, Q3 e Q4 são intuitivas não são mais

fortes que as evidências favoráveis à tese de que as três capacidades estudadas na

Q2, Q3 e Q4 não são intuitivas.

Quando elaboramos as análises, questão por questão, nos capítulos precedentes, não

tivemos a oportunidade de mostrar que todas as segundas premissas dos argumentos

gerais da Q2, Q3 e Q4 são proposições que guardam uma forte semelhança entre si.

Cada uma delas afirma que a capacidade (ou faculdade) sob investigação (em cada uma

dessas questões) é sempre indireta ou inferencial, porque cada uma delas diz respeito a

uma cognição ou a um conhecimento que só pode ser produzido na dependência de algo

externo. Tanto a cognição relativa ao conhecimento da existência do ego (i.e., a

autoconsciência) como a cognição relativa ao conhecimento de algum fato ou estado

interno (como uma emoção, por exemplo) são produzidas a partir de algo diverso delas

mesmas, de algo externo a elas mesmas. Estas cognições são resultados de inferências

que partem de algum fator externo. No caso da cognição relativa à autoconsciência, o

fator externo do qual se parte é a ignorância com relação ao mundo externo. No caso da

cognição relativa ao estado interno, o fator externo do qual se parte é alguma marca

(externa) da existência deste estado (interno). O que cada uma dessas segundas

premissas faz (em sua respectiva "área de atuação") é aproximar as explicações de

Peirce para cada uma dessas faculdades cognitivas de um modelo geral. Este modelo

geral é o do signo.

Se observarmos o projeto filosófico peirceano como um todo e se recordarmos quais

foram as descobertas (no campo da lógica) que despertaram em Peirce a necessidade de

produzir uma resposta própria ao problema da possibilidade das sínteses, torna-se óbvio

porque a teoria da cognição que pretendeu desenvolver no QFCM tem como modelo

geral o processo sígnico. Como já nos referimos por diversas vezes, no período entre

1864 e 1865, Peirce descobre que todas as relações relevantes para a lógica (como as

relações sujeito-predicado, antecedente-consequente e premissa-conclusão) são casos

particulares de uma relação mais fundamental: a relação sígnica. Então, se o processo

inferencial (a relação entre premissa-conclusão) é um processo sígnico, então uma teoria

inferencial da cognição é, no fundo, uma teoria sígnica da cognição. Observando o

Page 298: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

283

QFCM sob esta ótica, podemos ter uma compreensão por qual motivo Peirce caminha

no sentido de uma teoria inferencial da cognição.

Durante grande parte do QFCM, Peirce luta para estabelecer uma teoria que explique

diversas faculdades cognitivas afirmando que o processo cognitivo ocorre na

dependência de fatos externos. Segundo a teoria, os processos cognitivos nada mais são

que inferências que partem de fatos externos. Ora, em termo gerais, o signo é algo, é

um expediente sensível do qual se parte na direção de um objeto (i.e., de algo

representado), mas este ponto de partida é ele mesmo diferente do objeto, externo ao

objeto. Ao descrever qualquer tipo de conhecimento como resultante de algum processo

inferencial que parte de algo externo, Peirce estabelece que qualquer conhecimento

depende de signos. Esta é a tese-base.

Argumento geral da Q5

Premissa1: Se houvesse capacidade de se pensar sem recorrer a signos, então (ou)

haveria pensamentos incognoscíveis ou haveria pensamentos que poderiam ser

conhecidos a partir de fatos internos.

Premissa2 (estabelecida na Q4): Não há pensamentos que poderiam ser

conhecidos a partir de fatos internos.

Premissa3: Não há pensamentos incognoscíveis.

Conclusão: Não há capacidade de se pensar sem recorrer a signos.

É provável que para ser estabelecida nestes termos a tese-base necessite de um salto

indutivo. E isto também vale para o argumento geral da Q4, reapresentado mais acima.

Também a conclusão deste argumento depende que aquilo que foi observado para a

parte (que os tipos de pensamentos analisados dependem de algum tipo de processo

inferencial) também valha para o todo (todos os tipos de pensamento [os analisados e

os não analisados] dependam de algum tipo de processo inferencial).

Nas três questões anteriores à Q5, Peirce apenas apresentou argumentos para afirmar

que os (seguintes) três tipos de conhecimento dependem de inferência a partir de

elementos externos (i.e., dependem de signos): o conhecimento da existência do ego (a

autoconsciência), o conhecimento que nos permite distinguir entre os diversos tipos de

estados mentais e, por último, o conhecimento acerca de estados internos. Se

considerarmos que estes três tipos de conhecimento esgotam toda a atividade cognitiva,

se o que entendermos pelo termo "pensamento" puder se totalmente reduzido a estes

três tipos de conhecimento, então, neste caso, já podemos afirmar que "não há

capacidade de se pensar sem recorrer a signos". Caso contrário, devemos presumir que

Peirce, para derivar tal conclusão na Q5, deve ter considerado que estes três tipos acima

Page 299: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

284

referidos são representativos da classe de todos os tipos de conhecimento. Porém, ainda

que a tese-base dependa de uma indução (como esta descrita), acreditamos que este não

é o ponto. Mesmo se considerarmos que a tese-base não possa ser estabelecida como

válida para todos os tipos de conhecimento possíveis, o que nos parece fundamental no

QFCM é que Peirce pretende apresentar sua teoria como a melhor hipótese capaz de

explicar a "vida" cognitiva, ao menos, melhor que as demais disponíveis que recorrem

ao conceito de intuição. Acreditamos que, neste ponto, para Peirce, já é suficiente

provar que uma teoria inferencial da cognição se sai melhor que as teorias adversárias.

Nesta quinta questão, vem à tona o problema do incognoscível. Ao longo de todo o

QFCM, Peirce tenta por diversas linhas argumentativas derrubar a hipótese de que

exista algo incognoscível. Na Q5, por exemplo, ele afirma que um pensamento não

pode ser incognoscível (cf. premissa3 do argumento geral da Q5 acima reapresentado).

Na Q6, por sua vez, Peirce afirma que o incognoscível não pode ser objeto de um signo

(ou seja, não há signo de algo incognoscível).

Argumento geral da Q6

Premissa1: Se o signo de algo absolutamente incognoscível tivesse algum

significado, este significado deveria ser relativo a uma concepção do

incognoscível proveniente da experiência.

Premissa2: Se o significado de tal signo fosse relativo a uma concepção do

incognoscível proveniente da experiência, então este seria um signo de algo

cognoscível.

Premissa3: Se o signo de algo absolutamente incognoscível fosse um signo de

algo cognoscível, então este signo seria uma autocontradição.

Conclusão: Ou o signo de algo absolutamente incognoscível é uma

autocontradição ou este signo não tem significado algum.

Na Q7, para tentar descartar de uma vez por todas, a hipótese a respeito da existência de

algum tipo de incognoscibilidade, Peirce recorre a uma espécie de princípio

metateórico. De acordo com a argumentação peirceana (que reapresentamos a seguir),

não podemos levantar a hipótese de que uma cognição seja determinada somente por

algo absolutamente externo (à consciência), porque esta hipótese se anularia na sua

função de hipótese, seria, nos termos de Peirce, uma autocontradição (cf. CP 5.260

[1868] e nossas análises no oitavo capítulo). A ideia é que a hipótese que afirma que um

objeto externo (à consciência) é o único responsável pelas determinações de uma

cognição, na verdade, está declarando que estas determinações não podem ser

explicadas. E (por uma espécie de princípio geral [metateórico] que rege a introdução de

hipóteses em teorias) uma hipótese não pode explicar um fenômeno declarando-o

inexplicável. Para Peirce, é exatamente isso que a ideia de incognoscibilidade cria

Page 300: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

285

dentro de uma teoria epistemológica. Ela declara que há algo, há uma zona da realidade

que não pode ser conhecida.

Com relação ao problema do incognoscível, as argumentações peirceanas, da Q5 até a

Q7, vão no sentido de declarar a ideia de incognoscibilidade uma autocontradição (em

diversos níveis). Vejamos, este mesmo problema sob três ângulos diversos. Na Q5, a

ideia é afirmar que um pensamento não pode ser incognoscível. Na Q6, a ideia é afirmar

que um pensamento não pode ser sobre o incognoscível (i.e., um pensamento não pode

representar algo incognoscível). E, na Q7, a ideia é afirmar que o incognoscível não

pode estar na origem de uma cadeia de pensamentos (na forma de objeto externo).

Na Q5, Peirce defende que um pensamento, em si mesmo, não pode ser incognoscível,

aparentemente com base na ideia de que, se um pensamento pudesse ser incognoscível,

isto nos levaria a uma concepção autocontraditória da própria atividade cognitiva. Se

observássemos esta questão a partir da metáfora que correlaciona o pensamento à noção

de acessibilidade, então, caso o pensamento fosse incognoscível, ele seria algo como um

acesso inacessível, uma espécie de porta que foi construída para nunca ser aberta.

Portanto, para Peirce, todo pensamento deve torna-se acessível por meio de um signo

(i.e., algo externo a ele). Caso contrário, este pensamento seria algo como um

"pensamento que não pode ser pensado" ou uma cognição incognoscível (cf. nossas

análises na primeira seção do sétimo capítulo e também De Waal, 2007, p. 29). Já na

Q6, Peirce declara que um pensamento não pode nos levar ao incognoscível.

Estabelecido (na Q5), que todo pensamento é signo, Peirce nos garante que um

pensamento ou um signo não pode representar algo incognoscível, pois, neste caso,

como o seu significado deveria ser relativo a algo proveniente da experiência e, por isso,

algo cognoscível, o significado deste pensamento/signo sobre algo incognoscível teria

que ser relativo a algo cognoscível. Isto é um contradição. Na Q7, Peirce afirma que é

autocontraditória a própria hipótese de que haja algo de incognoscível responsável pelas

determinações do que poderíamos considerar nossas primeiras cognições. Na verdade,

dentro da teoria da cognição exposta não há primeiras cognições.

Nos três casos acima referidos (relativos às últimas três questões), a incognoscibilidade

é associada a algum tipo de autocontradição. Se sairmos do QFCM e o observarmos de

fora para dentro, perceberemos que o motivo pelo qual Peirce está impossibilitado de

admitir a existência de qualquer tipo de incognoscibilidade é que o incognoscível torna

inexplicável justamente o que seu projeto filosófico tenta explicar: a possibilidade das

sínteses. Não é por outro motivo que Peirce está impossibilitado de admitir dentro de

sua teoria a ideia de que as cognições intuitivas sejam pontos fundantes, originários (e,

por isso, absolutamente seguros) do processo cognitivo. Caso se admita a entrada da

intuição, a incognoscibilidade a acompanha. É a partir disso que podemos esclarecer a

contraposição da epistemologia peirceana e a cartesiana. No início do segundo texto da

série cognitiva ("Algumas consequências das quatro incapacidades"), Peirce apresenta

na forma de quatro itens o que entende por "espírito do cartesianismo" e o compara às

ideias filosóficas dominantes no período imediatamente anterior (a escolástica). A

Page 301: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

286

seguir reproduzimos o quarto desses itens e o comentário geral feito por Peirce logo

depois de explicar no que consiste este "espírito do cartesianismo".

(...) 4. A escolástica tinha seus mistérios de fé, porém tentava explicar todas

as coisas criadas. Por sua vez, existem muitos fatos que o cartesianismo não

apenas não explica como torna absolutamente inexplicáveis, a menos que

afirmar que "Deus os fez assim" deva ser considerado uma explicação.

Sob alguns desses aspectos, ou sob todos, a maioria dos filósofos modernos

tem sido cartesiana. Agora, ainda que não pretenda retornar à escolástica,

parece-me que a ciência e a lógica modernas requerem que sejamos capazes

de nos colocarmos sob uma plataforma muito diferente desta [apresentada].

(CP 5.264-5 [1868])204

De acordo com que podemos depreender deste (quarto) ponto referido acima, Peirce

entende que o cartesianismo não apenas não explica a possibilidade do raciocínio sintético

como a torna inexplicável (exceto no caso em que se considere válida a explicação "Deus a

fez assim"). É conhecida a concepção peirceana de que filosofia poderia se desenvolver ao

tomar emprestado os métodos das ciências que obtiveram êxitos em seus propósitos de

produção de conhecimento (CP 5.265 [1868]). A orientação geral que Peirce segue é que a

filosofia e, em particular, a epistemologia deveriam ser reconstruídas sob novas bases e esta

reconstrução seria uma exigência da ciência e da lógica modernas. Como já esclarecemos

nos primeiros capítulos e revimos no início deste, um pensamento propriamente peirceano

(já demonstrando autonomia com relação à sua matriz [a filosofia kantiana]) começa a ser

desenvolvido a partir de descobertas no campo da lógica, sobretudo, aquela que garantiu a

Peirce que todas as relações elementares da lógica eram casos particulares da relação

sígnica. É isto que liga a descoberta no campo da lógica à solução propriamente semiótica

de um problema epistemológico: a possibilidade do raciocínio sintético e a ampliação do

conhecimento. A atividade cognitiva em geral é explicada como um processo sígnico (i.e.,

um processo interpretativo) e a ampliação do conhecimento, em particular, é explicada

como resultante de um processo sígnico que converge para um ponto de fuga. Uma das

pressuposições essenciais ao projeto filosófico peirceano (que pretende assentar a filosofia

sob novas bases) é que esta convergência não ocorreria caso houvesse "bolsões de

incognoscibilidade" na realidade. Por este motivo, dentro do QFCM, vemos Peirce lutando

contra a entrada em sua teoria da noção de incognoscibilidade. Já em período maduro de

sua carreira filosófica, esta profunda incompatibilidade entre a noção de incognoscível e a

filosofia peirceana foi sintetizada na forma de um princípio geral, que Peirce denominou de

lei fundamental da razão (CP 7.135 [1989]).

Lei fundamental da razão

"Não bloqueie o caminho da investigação"

204

No original: (...) 4. Scholasticism had its mysteries of faith, but undertook to explain all created things.

But there are many facts which Cartesianism not only does not explain but renders absolutely

inexplicable, unless to say that "God makes them so" is to be regarded as an explanation. In some, or

all of these respects, most modern philosophers have been, in effect, Cartesians. Now without wishing to

return to scholasticism, it seems to me that modern science and modern logic require us to stand upon a

very different platform from this.

Page 302: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

287

Para Peirce, esta lei deveria ser gravada em todo e qualquer muro da cidade da filosofia.

É óbvio que a concepção do que é real que começa a emergir da teoria semiótica da

cognição exposta no QFCM não deve admitir a existência "bolsões de

incognoscibilidade" na realidade. Aliás, dentro do próprio QFCM, esta

incompatibilidade que surge dentro da epistemologia já ganha uma contraparte

metafísica. Ainda na Q6, Peirce afirma que tudo o que há deve poder ser conhecido. O

ser é ser conhecível. Não há realidade incognoscível. Esta é uma tese metafísica. É

justamente a tese-base o ponto fundamental para as teses peirceanas provenientes de

diferentes "terrenos" filosóficos, a lógica ou semiótica, epistemologia e a metafísica.

Vejamos, primeiro, porque a tese-base pode ser considerada o epicentro das

reformulações propostas por Peirce na epistemologia e como isso acarreta numa certa

visão metafísica.

A tese-base funciona como um comutador teórico. Ela transforma afirmações a respeito

de signos em afirmações a respeito de cognições e vice-versa. Assim, a teoria da

cognição desenvolvida por Peirce é estruturalmente semelhante à sua teoria geral dos

signos. Se toda e qualquer proposição de uma delas pode ser convertida numa

proposição equivalente na outra, isto significa que a proposição "não há primeira

cognição" é equivalente à proposição "não há primeiro signo". Isto, de fato, é

importante para o projeto filosófico peirceano como um todo, pois o fato de a teoria

afirmar a inexistência de último elemento na cadeia de signos/cognições desemboca

numa reformulação do conceito de realidade. É justamente neste ponto que as reflexões

epistemológicas de Peirce se encaminham para estabelecer teses no terreno da

metafísica. A concepção de realidade a que chega Peirce no segundo artigo da série

cognitiva é resultante da solução semiótica encontrada para um problema

epistemológico (a possibilidade das sínteses).

Ao equacionar, signo e pensamento, a teoria da cognição de Peirce opera uma

reformulação do conceito de verdade. Se fizermos uma comparação da epistemologia

peirceana com aquela apresentada por Descartes (no "Meditações" ou no "Discurso do

método"), o primeiro ponto a ser notado é que o conceito de verdade que emerge dos

textos da série cognitiva foi "deslocado". Na epistemologia cartesiana, a verdade é um

valor atribuído à proposição da qual se parte para fundar um sistema de crenças. No

caso do projeto fundacionalista cartesiano, a proposição inicial é "cogito, ergo sum". Na

epistemologia peirceana, como não é possível se partir de uma proposição

necessariamente verdadeira (ou, conforme a Q1, não é possível se ter certeza sobre a

verdade de um ponto de partida), todo ponto de partida é necessariamente hipotético e a

verdade passa a ser um valor que só pode ser atribuído ao ponto de chegada. O

problema é que não se pode chegar efetivamente no ponto de chegada. Ele é um

projeção, um ponto de fuga. Como conceder validade a um processo cujo ponto de

partida é necessariamente hipotético? Como poderia a verdade emergir no meio do

caminho? A resposta de Peirce é que a verdade não surge no meio, mas ao longo do

processo. E a verdade só pode emergir ao longo do processo se garantirmos que o

Page 303: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

288

processo seja autocorrígivel. Para que o processo de conhecimento seja autocorrígivel,

deve-se pressupor que o processo seja aplicável sobre si mesmo, ou seja, que o

resultado de um estágio do processo dependa do resultado do estágio anterior. Em

linhas gerais, esta parece ser a origem da recursividade dentro do horizonte teórico do

projeto filosófico peirceano. A descrição geral do processo de obtenção do

conhecimento é que este é um processo (de natureza sígnica) que não possui ponto

originário (e, por isso mesmo, nem poderia possuir um ponto final pré-estabelecido).

Como a teoria semiótica da cognição apresentada por Peirce no QFCM não pode

admitir a existência de algo incognoscível e qualquer ponto originário (como uma

intuição num papel fundacional) acarreta a existência de alguma incognoscibilidade, a

obtenção de conhecimento só pode ser descrita como um processo interpretativo sem

ponto originário. Não é por outro motivo que o ponto final do QFCM é o

estabelecimento da tese que não há cognição originária.

Argumento geral da Q7

Premissa1: Se o processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma

natureza contínua, então, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre

possível distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou.

Premissa2: Se, dada uma cognição qualquer sobre um objeto, é sempre possível

distinguir uma cognição anterior (desse mesmo objeto) que a determinou, então

tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por cognições anteriores.

Premissa3: Se tudo o que puder ser conhecido é sempre determinado por

cognições anteriores, então não há cognição originária.

Premissa4: O processo de conhecimento (relativo a um objeto) tem sempre uma

natureza contínua.

Conclusão: Não há cognição originária.

Como deixamos claro na análise da Q7 (apresentada na segunda seção do sétimo capítulo),

o grande problema é a concepção de continuum mobilizada por Peirce no QFCM. Dentro

do QFCM, nas quatro primeiras questões, Peirce desenvolve linhas argumentativas que

confluem para o estabelecimento da tese-base. Esta é enunciada apenas na Q5. Nas duas

últimas questões, Peirce se dedica à tarefa de descartar de vez qualquer recurso à intuição

ou incognoscibilidade e de nos convencer que é possível conceber a atividade cognitiva

como um processo sem pontos originários. Esta é uma consequência direta da tese-base. Se

a tese-base for verdadeira, então se segue que não há primeira cognição. Para "manter de

pé" sua teoria inferencial (ou sígnica) da cognição, Peirce precisa explicar como é possível

haver pensamento se toda cognição é determinada por uma cognição anterior (e não há

ponto de origem). Como vimos, o que Peirce precisa explicar é a natureza contínua do

pensamento, da atividade cognitiva. Esta explicação cuja necessidade estava posta desde as

Page 304: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

289

primeiras linhas da Q5 foi adiada até as últimas linhas da Q7, a questão final do QFCM.

Então, ao apagar das luzes, como última cartada, Peirce aposta num argumento por

analogia. Este ponto é essencial para o QFCM e para o projeto filosófico do jovem Peirce,

pois a tese-base para ser estabelecida depende da afirmação de que a atividade cognitiva, o

pensamento tem uma natureza contínua e não uma natureza discreta. Sem esclarecer o que

entende por continuidade no QFCM, Peirce cria um ponto altamente vulnerável para todo o

projeto filosófico, pois a tese-base é o elemento central dentro do QFCM e o QFCM é peça

indispensável para o funcionamento da "engrenagem argumentativa" da série cognitiva205

.

Recordemos que esta "engrenagem" funciona da seguinte forma: as peças básicas do

pensamento peirceano (inclusive a definição de signo) são concebidas no artigo "Sobre uma

nova lista de categorias"; estas peças são mobilizadas para construção de uma teoria

inferencial (ou sígnica) da cognição iniciada no primeiro artigo da série cognitiva (QFCM);

por sua vez, esta teoria desemboca, no segundo artigo da série, numa reformulação

conceitual (do que é realidade, verdade, sujeito cognoscente) que passa a ficar alojada

dentro de uma espécie de "teoria social da lógica" que cria condições para que Peirce possa

responder, no terceiro artigo da série, como funciona a validade para raciocínios sintéticos

(ou ampliativos). Dentro de toda esta engrenagem argumentativa, para que a teoria

inferencial (ou sígnica) da cognição possa cumprir seu papel, a tese-base da semiótica tem

que estar estabelecida. Ela que é a responsável, dentro do primeiro artigo da série (QFCM),

por fazer uma ponte entre semiótica (teoria que trata de signos) e epistemologia (teoria que

trata de conhecimento) e, assim, criar as condições que tornam possíveis aquelas

reformulações conceituais acima mencionadas (e que foram desenvolvidas por Peirce nos

artigos subsequentes). Ora, não foi por outro motivos que afirmamos que a explicação

peirceana acerca da natureza contínua do pensamento é o calcanhar de Aquiles do seu

projeto filosófico.

Entretanto, se "deixarmos" de lado este ponto fraco nas argumentações do QFCM e

considerarmos estabelecida a tese-base e, assim, também a teoria inferencial (ou sígnica) da

cognição, notaremos que por trás da série cognitiva há uma teoria semiótica que depende de

duas teses fundamentais: num processo interpretativo, não há primeiro signo e, num

processo interpretativo, não há último signo. A mais notável consequência do

estabelecimento de uma teoria inferencial da cognição (dentro da série cognitiva) é que não

pode haver primeira cognição, o que é equivalente à afirmação de que não pode haver

primeiro signo. E uma das consequências mais notáveis desta consequência acima referida é

que também não pode haver última cognição, o que é equivalente à afirmação de que não

pode haver último signo. Aliás, o segundo grande movimento argumentativo do QFCM é

justamente desenvolvido para provar que é possível se desenvolver uma teoria da cognição

sem pontos originários, sem intuição no papel de fundação do processo cognitivo. É este

segundo movimento que termina naquele argumento por analogia colocado ao final da Q7.

205

Outro problema para a “engrenagem argumentativa” para sustentar estas teses elementares é o que

ficou conhecido na literatura especializada na obra peirceana sob o nome de “tese da irredutibilidade da

relação triádica”. Trataremos deste problema (tão fundamental quanto o do continuum) no último

capítulo.

Page 305: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

290

9.2 - Segundo movimento argumentativo geral do QFCM: o

estabelecimento da tese a respeito das origens do processo

cognitivo

Além de sustentar o que denominamos de tese-base (da semiótica), grande parte do

esforço de Peirce no QFCM está voltado para a demonstração de que é possível

estabelecer uma teoria da cognição sem recorrer ao conceito de intuição (com um papel

fundacional). Por este motivo, ele se viu obrigado a sustentar a ideia de que toda

cognição é determinada por uma cognição anterior (do mesmo objeto). Assim, dentro da

teoria da cognição (elaborada por Peirce na série cognitiva) não se pode admitir que

haja uma primeira cognição ou, o que é equivalente (uma vez estabelecida o que

denominamos de tese-base), não há um primeiro signo.

O papel do QFCM dentro do projeto filosófico peirceano é estabelecer justamente esta

equivalência entre signo e pensamento. Durante as quatro primeiras questões do QFCM,

Peirce faz uma descrição geral do que seria uma teoria da cognição alternativa àquelas

teorias que recorrem à intuição (para funcionar como ponto de fundação do processo de

conhecimento). As características atribuídas à cognição nestas quatro primeiras questões

do QFCM levam Peirce a estabelecer, na quinta questão, uma equivalência entre o

processo cognitivo (a atividade de pensar) e o processo sígnico (a atividade de

interpretar um signo em outro).

Durante as análises do Q5 (no sétimo capítulo), explicamos que o ponto comum entre o

processo cognitivo e o sígnico era em que ambos os casos o processo se dava por meio

de um procedimento no qual um elemento (um signo ou um pensamento) é algo que

deve ser sempre remetido a outro elemento semelhante (outro signo ou outro

pensamento) que lhe serve de interpretante. Da mesma forma que todo signo deve ser

interpretado em outro signo, todo pensamento deve ser interpretado em outro

pensamento. Assim, os pensamentos, as cognições parecem funcionar dentro da mente

da mesma forma que as palavras funcionam do lado fora dela. As palavras (que são

signos por excelência) parecem funcionar (i.e. significar) quando remetem a mente de

uma pessoa para outras palavras. Portanto, de acordo com a teoria desenvolvida no

QFCM, também as cognições devem necessariamente remeter a outras cognições. As

linhas argumentativas desenvolvidas até a Q4 desembocam na ideia de que o homem só

tem acesso a uma cognição (i.e., ele só pode interpretá-la) ao ser produzida uma nova

cognição (que será por este exato motivo denominada de interpretante).

Entretanto, como teoria da cognição do QFCM tem um papel central no projeto

filosófico peirceano, para que seja demonstrada a equivalência entre pensamento e

signo, Peirce deve garantir certas propriedades para ambos os processos dos quais

afirma a equivalência. Por exemplo, o filósofo americano deve garantir que tanto o

processo cognitivo como o sígnico possam funcionar na ausência de um ponto de

origem absoluto e também na ausência de um ponto de chegada (pré-estabelecido), ou

Page 306: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

291

seja, possa funcionar numa espécie de fluxo. Essas duas propriedades (de poder

funcionar "sem início e fim") do processo cognitivo/sígnico são ideias fundamentais

para o projeto filosófico do jovem Peirce. E, de fato, podemos enxergar nas linhas

argumentativas do QFCM duas proposições que chamaremos de teses elementares da

semiótica.

Teses elementares da semiótica peirceana

Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo interpretativo).

Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo interpretativo).

Tese adicional

Tese_3 da semiótica --> Todo processo interpretativo tem um número infinito de

elementos.

A pergunta que devemos nos fazer é como estas duas teses elementares podem ser

estabelecidas dentro das linhas argumentativas desenvolvidas no QFCM ou, de forma

mais abrangente, dentro do sistema filosófico do jovem Peirce. Focalizemos na primeira

dessas teses. Como é possível, com o "material" que temos nos QFCM, sustentar a

afirmação de que, num processo interpretativo (i.e. numa cadeia sígnica), não há

primeiro signo? Uma das primeiras soluções que pode nos vir à mente é utilizar aquela

equivalência enunciada na tese-base. Entretanto, com esta medida não se vai muito

longe. Na verdade, não se vai a lugar algum, pois, caso se utilize a equivalência entre o

conceito de signo e o de cognição para afirmar que não há primeiro elemento num

processo sígnico, o argumento se torna circular. E isto ocorre por um simples motivo: o

objetivo geral do QFCM dentro do projeto filosófico é justamente provar que a

cognição age tal como um signo. Assim, feita esta observação, reparemos que, se

considerarmos que o conceito de cognição é equivalente ao conceito de signo (o que é

garantido pela tese-base), como está expresso a seguir, a argumentação geral do QFCM

seria circular.

Trecho de argumento para estabelecimento da Tese_1 da semiótica a partir do

QFCM que torna circular a argumentação do QFCM

Premissa1 (conclusão da Q7): Não há primeira cognição.

Premissa2 (tese-base da semiótica): Cognições e signos são equivalentes.

Conclusão: Não há primeiro signo.

Page 307: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

292

O problema está justamente no fato de que, para estabelecer a tese-base, a proposição

"não há primeiro signo" já deve estar estabelecida. Isto nos leva a desconfiar que a tese

"não há primeiro signo" esteja pressuposta no QFCM. Durante todo o QFCM, o

conceito central, o signo, não foi discutido, definido, nem analisado em seus

pormenores. O motivo que nos parece justificar tais ausências é o fato de tal conceito já

ter sido apresentado num artigo imediatamente anterior ao QFCM e que, inclusive, lhe

serve de base. Este artigo é o "Sobre uma nova lista de Categorias" (1867) e ele será

objeto de um detalhado estudo que nos custará outra centena de páginas (capítulos 10,

11 e 12).

Se nos limitarmos a observar as linhas argumentativas a partir de uma perspectiva

interna ao próprio texto (o que, por motivos metodológicos, nos comprometemos a fazer

durante os capítulos de análise do QFCM), parece que a tese que afirma que não há

primeira cognição é estabelecida em primeiro lugar e depois correlacionada à tese a

respeito da não existência do primeiro signo. A aparência é a de que Peirce primeiro

constrói uma teoria da cognição e depois a encaixa numa teoria semiótica, ou seja,

primeiro ele teria feito uma série de afirmações sobre cognições e, posteriormente, teria

notado que estas se comportam como signos. Na verdade, Peirce, em primeiro lugar,

obtém uma teoria que descreve o comportamento do signo e, ao notar que o mecanismo

responsável por fazer um signo funcionar é capaz de explicar a possibilidade de síntese

(i.e. a ampliação de conhecimento) ao recorrer a um processo de natureza contínua (e é

exatamente disso que ele precisa para construir uma teoria da cognição que não recorra

a ponto originário algum, i.e., sem intuição), então ele deduz o que deveria ser o

comportamento da cognição para que fosse semelhante ao comportamento do signo. A

intenção de Peirce parece ser a de apresentar o processo cognitivo como um "exemplar"

do comportamento geral do signo, pois esta explicação semiótica da atividade cognitiva

não apenas seria capaz de explicar as mesmas faculdades (cognitivas) que as teorias

adversárias explicam como também poderia propor uma resposta plausível para a

validade do raciocínio sintético, uma vez que Peirce não considera plausível a resposta

segundo a qual este tipo de raciocínio seria validado pela natureza benevolente de

Deus206

.

Como vimos ainda no primeiro capítulo (e também revimos neste), a partir de 1865,

Peirce já sabia que inferências (predicações e condicionais) eram casos particulares de

relações sígnicas. Uma teoria inferencial da cognição é, então, uma teoria que explica as

faculdades cognitivas com conceitos semióticos ou, ao menos, que podem ser reduzido

a estes. Afinal, inferências são tipos de signo. Portanto, logicamente, dentro do projeto

filosófico peirceano, o que vem primeiro é o modelo geral de signo. Este modelo é

logicamente anterior, porque é o seu mecanismo de funcionamento que explica porque

não há primeiro elemento no caso das cognições. Dentro do QFCM, Peirce não se

esforça para estabelecer porque, dentro de um processo sígnico, não há primeiro signo,

206

A esse respeito, cf. seção anterior deste capítulo, a primeira seção do terceiro capítulo e também CP

5.264-5 [1868].

Page 308: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

293

o que ele de fato faz com considerável empenho é tentar estabelecer porque não há

primeira cognição e, nisso o processo cognitivo é essencialmente igual ao processo

sígnico. Que o processo sígnico não tenha primeiro elemento simplesmente não é

discutido no QFCM. Isto é pressuposto. Neste primeiro artigo da série cognitiva, como

esclarecemos, a definição de signo não é sequer oferecida. Deve-se enfatizar que, no

QFCM, já se parte da ideia de que não haja primeiro signo. O debate é se o processo

cognitivo é de fato semelhante ao processo sígnico. Por este motivo, a tese central do

QFCM é a tese-base da semiótica. Da Q1 até a Q5, Peirce trata de estabelecê-la. Na Q6

e Q7, o filósofo já avalia algumas consequências do estabelecimento da tese-base e trata

de argumentos contrários à sua proposta teórica. Para que a tese-base funcione dentro do

QFCM como "comutador" teórico entre semiótica e epistemologia (cf. seção anterior) e

sustente sua teoria inferencial (portanto, semiótica) da cognição de forma a permitir a

elaboração de uma resposta plausível ao (que considera ser o) problema central da

filosofia, Peirce precisa de já ter estabelecido a ideia de que um processo sígnico ocorra

na ausência de um ponto originário e de um ponto de chegada pré-estabelecido. E o

funcionamento do processo sígnico sob tais condições é justamente o que nos garante as

teses fundamentais: "Não há primeiro signo num processo interpretativo" (Tese_1 da

semiótica) e "Não há último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da semiótica).

O que pretendemos provar (nos capítulos subsequentes) que ocorre com o sistema de

Peirce é que as teses fundamentais são derivadas diretamente da definição de signo

apresentada no texto "Sobre uma nova lista de categorias" e aparentemente a definição

de signo, por sua vez, segue uma orientação geral. Como já afirmamos, esta orientação

não é explicitada na série cognitiva, mas amadureceu ao longo do tempo na forma de

um princípio geral, que Peirce denominou de lei fundamental da razão: "Não bloqueie o

caminho da investigação" (CP 7.135 [1989]). A nossa tese central é que é justamente o

mecanismo recursivo interno ao conceito de representação que está dentro do conceito

signo (conforme definido no texto "Sobre uma nova lista") que nos permite derivar o

que denominamos de teses fundamentais da semiótica peirceana.

A sustentação das duas teses fundamentais depende de uma análise interna do conceito

de signo. Apenas com um exame da estrutura interna do signo (suas três partes básicas)

e um estudo do mecanismo de representação que o faz funcionar como signo é que se

torna possível estabelecer estas duas teses elementares. Para que já sejamos precisos

com relação a este ponto, só podemos lidar com esta questão depois de introduzir o

conceito de interpretante (que é "a terceira parte" do conceito peirceano de signo). Este

conceito será introduzido e devidamente analisado nos próximos capítulos. O que

podemos fazer por enquanto é apresentar um esboço de um argumento dedicado a

sustentar esta segunda tese da semiótica apenas lançando mão das proposições

estabelecidas no QFCM.

Ora, a primeira dessas teses pode ser facilmente enxergada dentro dos argumentos do

QFCM, uma vez que grande parte das três últimas questões deste primeiro artigo da

série cognitiva foi dedicada justamente a provar que não há primeira cognição e, de

forma similar, não deve haver também primeiro signo. Com relação à segunda tese, a

Page 309: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

294

ideia por trás da proposição "não há último signo" é a de que não há fim para o processo

sígnico ou interpretativo (e equivalentemente também não deve haver fim para o

processo cognitivo). Vejamos o porquê. O último signo seria aquele que representaria

totalmente o seu objeto. Ele seria o último estágio do processo interpretativo.

Como num processo inferencial só podemos ter garantias com relação à verdade da

conclusão com base na verdade das premissas, o que ocorreria no caso em que não

podemos ter certeza com relação à verdade das premissas? O que ocorreria é que toda e

qualquer conclusão (retirada dessas premissas) teria um caráter hipotético, i.e., nunca

poderíamos ter certeza alguma com relação a tal conclusão. Num processo inferencial o

único modo de se garantir a verdade de um ponto de chegada (a conclusão) é sustentá-la

na verdade do ponto de partida (as premissas). O problema é que na teoria da cognição e

também na semiótica peirceanas, não se pode ter certeza com relação ao ponto de

partida. Não há fundações, não há primeiras premissas. Não há nenhuma proposição da

qual se possa afirmar que seja necessariamente verdadeira e que, por isso, poderia

ocupar a posição de primeira premissa. Se, ao contrário do projeto fundacionalista

cartesiano (brevemente apresentado no terceiro capítulo), na epistemologia que Peirce

propõe na série cognitiva, não é possível encontrar algum ponto de partida privilegiado,

uma intuição da qual se possa se partir (carregando adiante sua certeza inicial), então

não se pode ter certeza com relação ao ponto de chegada. Não há como transferir a

verdade de um ponto inicial para um ponto final, pois simplesmente não há nada que

garanta que o ponto de partida seja efetivamente verdadeiro. Isto significa que o

processo interpretativo não termina e o motivo que justifica a ausência de um ponto

final é o caráter hipotético dos pontos de partida.

Quando Peirce, dentro do QFCM, rejeita qualquer possibilidade de se ter certeza que se

encontrou algum tipo de ponto de partida absolutamente certo para se iniciar um

raciocínio, ele, ao mesmo tempo, rejeita qualquer possibilidade de se poder ter certeza

que se encontrou algum tipo de ponto de chegada absolutamente certo. A verdade, a

certeza com relação ao que afirma alguma proposição, é um ponto de fuga. Para poder

construir uma teoria epistemológica que descreva a atividade cognitiva de forma a

permitir que seja explicada a possibilidade do raciocínio sintético (i.e., a ampliação do

conhecimento), Peirce deve buscar algum processo que funcione na ausência de pontos

originários ou pontos de chegada pré-estabelecidos. É neste momento que podemos

divisar os motivos que levaram Peirce a caracterizar recursivamente a relação de

representação que está dentro do conceito de signo. O primeiro ponto, explicar o que se

entende por definição ou caracterização recursiva.

Recordemo-nos da caracterização recursiva que oferecemos (ainda no texto

introdutório) de um tipo de operação (muito comum em matemática) denominada de

fatorial. Esta operação é representada pelo símbolo " ! ". Por exemplo, o fatorial de um

número n é representado como n! e o resultado desta operação é " n x (n - 1)! ". O valor

resultante da operação fatorial aplicada sobre o número n é o número n multiplicado

pelo fatorial de seu antecessor e isto significa que o resultado desta operação depende

do resultado desta mesma operação para um caso anterior. A tal recursividade consiste

Page 310: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

295

justamente no fato desta operação recorrer à uma referência a ela mesma para poder ser

definida. Não é demais repetir que tal definição não é circular, pois esta recorrência é

feita para um caso anterior da aplicação da operação definida. Como vimos os casos

anteriores são dados numa sequência até que se atinja um caso primeiro cujo resultado é

definido pela chamada cláusula base. O caso base é a operação fatorial para o número 1.

Neste caso (de acordo com a cláusula base), o valor de 1! é 1.

Caracterização recursiva da operação fatorial

Cláusula n°1 (cláusula base) --> Se o número (diante do símbolo que representa a

operação fatorial) for menor ou igual a 1, então o valor da operação fatorial é 1.

Cláusula n°2 (regra geral) --> Caso o número (diante do símbolo que representa a

operação fatorial) tenha outro valor que não seja menor ou igual a 1, então o

valor da operação fatorial é o valor do número multiplicado pelo valor da

operação fatorial aplicada sobre o antecessor deste número.

Como já recordamos da definição ou caracterização recursiva da operação fatorial,

voltemos para o caso da segunda tese elementar da semiótica ("não há último signo"),

pois as semelhanças entre a noção geral de recursividade e o processo sígnico ou

cognitivo (descrito por Peirce no QFCM) já devem saltar às vistas do leitor. A ideia é

simples: se supuséssemos uma situação na qual os processos sígnicos funcionassem de

forma recursiva sem que houvesse, no entanto, alguma cláusula base, notaríamos que,

nesta situação, o tal processo sígnico continuaria indefinidamente. Assim, estaria

estabelecida a tese de que não há um signo último. Vejamos que tanto num processo

sígnico (ou cognitivo) como na operação fatorial (conforme definida acima) há uma

recorrência a elemento anteriores de uma sequência. Cada elemento da sequência (sejam

signo, cognições ou fatoriais) é determinado por um elemento anterior. Comparemos.

No caso do fatorial esta determinação é clara. O valor de 1! determina o valor de 2!. Por

sua vez, o valor de 2! determina o valor de 3!. E assim por diante. Como numa cadeia

sígnica, cada signo é determinado por um signo anterior. Assim o valor de 3! depende,

em última instância, do valor de 1!. Porém, só podemos calcular com precisão e certeza

matemáticas o valor de 3! porque estamos de posse (graças à própria definição da

operação fatorial fornecida acima) do valor de 1!. O cálculo de n! não deixa de ser um

processo inferencial que depende do cálculo de (n - 1)! . As garantias de que estamos

diante de um valor correto para uma operação específica de fatorial estão todas

depositadas nos valores das operações que obtivermos para os casos anteriores e, em

última instância, para o primeiro caso (que é dado na definição).

Considere, então, uma situação em que não há uma cláusula base definida para a

operação fatorial. Apenas com a regra geral (sem a cláusula base), não seria possível

obter algum resultado no cálculo do fatorial para um número qualquer. Seja qual fosse o

Page 311: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

296

número, o valor resultante dependeria sempre do caso anterior e, como não haveria (pré-

estabelecido) nenhum "primeiro caso", então este procedimento não teria fim. Notemos,

então, que estamos diante de um processo que é capaz de produzir um número infinito

de elementos dentro de uma sequência na qual um elemento que esteja na posição an

(dentro da sequência) depende do elemento que está posição an-1 (dentro da mesma

sequência). Os elementos são construídos com base no elemento anterior. Numa

operação caracterizada recursivamente, esta dependência é clara. Um número que seja

resultado da operação na posição an é de alguma forma resultante da aplicação da

operação sobre o número que está posição an-1. É exatamente deste tipo de processo que

Peirce precisa para construir uma teoria da cognição dentro da qual o processo do

conhecimento possa ocorrer na ausência de ponto originário e disso depende a

sustentação do projeto filosófico peirceano como um todo.

Portanto, para que o projeto filosófico peirceano atinja seu objetivo de responder como

são possíveis as sínteses, Peirce precisou estabelecer o que denominamos de teses

elementares de sua semiótica: "não há primeiro signo num processo interpretativo"

(Tese_1 da semiótica) e "não há último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da

semiótica). A nossa tese é justamente que a caracterização ou definição do conceito de

representação que está no coração do conceito de signo (ou processo interpretativo) da

semiótica peirceana é necessariamente recursiva. Sem esta recursividade (ou recurso

semelhante), simplesmente não seria possível derivar essas duas teses elementares.

Como veremos no último capítulo (o décimo terceiro), se tentarmos criar uma teoria

semiótica sem a caracterização recursiva de representação, então, dentro deste corpo

teórico, não seria possível garantir que em todo processo interpretativo não haja ponto

originário ou ponto de chegada preestabelecido. Portanto, enunciemos novamente a

nossa tese central.

TESE de Doutorado - A caracterização do conceito de representação (interno

à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva.

Em resumo, para que funcione a solução teórica encontrada por Peirce para o (que

considera o) problema central da filosofia, as duas teses fundamentais acima referidas

têm que ser verdadeiras e a verdade destas depende da recursividade que é encontrada

dentro da concepção de signo ou de processo representativo. Embora a verdade das

chamadas teses elementares da semiótica peirceana seja condição necessária para que

funcione a referida solução teórica, não se pode afirmar que ela seja uma condição

suficiente. Outros fatores (que não poderemos submeter à análise neste trabalho) entram

em jogo, como a natureza do processo de convergência previsto pela teoria.

Entendido que as duas teses são condições necessárias para a sustentação do projeto

filosófico de Peirce, focalizemos a relação entre as teses elementares e a caracterização

recursiva de representação mobilizada por Peirce para definir o processo representativo

ou interpretativo. Nossa tarefa deste ponto em diante é provar que a caracterização

Page 312: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

297

recursiva de representação é uma condição necessária para o estabelecimento das duas

teses. O primeiro passo neste sentido é elaborar uma análise do texto em que Peirce

apresenta uma definição de signo (ou de processo interpretativo) com esta

caracterização recursiva de representação. Este texto é intitulado "Sobre uma nova lista

de categorias" e ele serve de base para as linhas argumentativas desenvolvidas por

Peirce na série cognitiva.

Page 313: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

298

CAPÍTULO 10

Análise do texto "Sobre uma nova lista de

categorias" (ONLC)

Na última centena de páginas, esforçamo-nos para produzir uma análise da estrutura

argumentativa do primeiro artigo da série cognitiva: "Questões concernentes a certas

faculdades reivindicadas para o homem" (QFCM). Grande parte deste esforço foi

dedicada à explicitação das linhas argumentativas que sustentam o que foi, nesta

análise, denominado de tese-base da semiótica. De acordo com tal tese: “todo

pensamento é pensamento em signos”.

Como explicamos nos três primeiros capítulos, a semiótica nasce da separação do

pensamento peirceano de sua matriz kantiana. Conforme tese defendida nestes capítulos

iniciais, o distanciamento de Peirce com relação a Kant pode ser explicado como

resultante de algumas descobertas na área da lógica feitas entre os anos 1864 e 1866. A

principal delas é descoberta que a relação sujeito-predicado, a relação antecedente-

consequente e a relação entre premissas e conclusão são casos particulares de uma

relação mais fundamental: a relação sígnica. Estas descobertas levaram Peirce a

desconfiar das bases lógicas sobre as quais estavam assentadas as categorias

apresentadas na “Crítica da Razão Pura” e isto acabou por obrigá-lo a construir seu

próprio sistema de categorias, tarefa que seria concluída apenas em 1867, quando

publica o artigo “Sobre uma nova lista de categorias” (“On a new list of categories”). É

a partir de seu próprio sistema de categorias que Peirce vislumbra a possibilidade de

responder o que considera o problema maior da filosofia: como são possíveis as sínteses

(ou os raciocínios ampliativos)? (cf. CP 5.348 [1868]). A resposta peirceana é que uma

síntese é resultante de um processo de representação, ou seja, o que torna possível a

síntese é um processo interpretativo, é uma ação sígnica. Não é por outro motivo que a

terceira das categorias peirceanas trazidas à luz neste artigo 1867 é denominada

“representação”. É exatamente para este artigo que voltaremos nossas “capacidades

analíticas” neste décimo capítulo. Aliás, a partir desse ponto de nossa exposição em

diante iremos nos referir ao artigo “Sobre uma nova lista de categorias” com a sigla

ONLC (“On a New List of Categories”).

É verdade que, em nossas análises, invertemos a ordem cronológica e também lógica da

exposição do pensamento peirceano. Em primeiro lugar (do capítulo 4 ao 9), analisamos

a teoria da cognição contida na epistemologia peirceana e deixamos para ser analisada

em segundo lugar (capítulo 10) a base sobre a qual foi erigida esta teoria da cognição.

Esta base é obviamente o sistema de categorias, uma vez que, conforme já antecipamos

nos primeiros capítulos (e veremos com mais detalhes neste e nos próximos capítulos),

Page 314: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

299

a terceira categoria é aquela responsável por um processo (recursivo) de representação

cuja função, dentro da teoria das categorias, é a de responder como é possível haver

síntese. Antes de seguirmos pra as análises, esclareçamos novamente o que se entende

por síntese dentro do ONLC.

Em geral, o conceito de síntese se refere a uma operação que tem como resultado a

união de elementos diversos. Na filosofia, o conceito se refere principalmente à união

entre (o termo) sujeito e (o termo) predicado dentro de um contexto proposicional.

Nesta acepção, uma proposição é justamente o resultado de uma síntese. Por exemplo, a

proposição "todas as baleias são azuis" pode ser entendida como algo (um enunciado

linguístico) que propõe uma síntese entre a ideia de baleia e a ideia de azul. Por um

lado, pode-se afirmar que a síntese produz uma proposição que é (nalgum sentido da

palavra) mais complexa que suas componentes (que, neste sentido, seriam mais

simples), mas, por outro lado, também se pode afirmar que, numa proposição, ao se

sintetizar sujeito e predicado, obtém-se algo mais "simples" . Esta simplicidade

associada à síntese, nesta segunda acepção, consistiria na ideia de captar de uma só vez

aquilo que, de outra forma, teria que ser captado em dois momentos. Em outras

palavras, a síntese diria respeito à captação (pela mente) de elementos diversos num só

ato do conhecimento. Parece-nos que dentro dos limites desta acepção que o termo

síntese é definido pelo filósofo alemão Immanuel Kant na obra “Crítica da Razão Pura”.

Entendo pois por síntese, na acepção mais geral da palavra, o ato de juntar,

umas às outras, diversas representações e conceber sua diversidade num

conhecimento

(KrV, A77 / B 103).

(...) a síntese de um diverso (seja dado empiricamente ou a priori) produz

primeiro um conhecimento, que pode aliás de início ser grosseiro e confuso e

portanto carecer de análise, no entanto é a síntese que, na verdade, reúne os

elementos para os conhecimentos e os une num determinado conteúdo; é pois

a ela que temos de atender em primeiro lugar, se quisermos julgar sobre a

primeira origem do nosso conhecimento.

(KrV, A77-78 / B 103)

No ONLC, as categorias (qualidade, relação e representação) são conceitos ou

concepções introduzidas para explicar como é possível haver síntese dentro de uma

proposição. Para Peirce, a unidade à qual o entendimento reduz as impressões é a

unidade de uma proposição. "Esta unidade consiste na conexão entre o predicado e o

sujeito" (CP 1.548)207

. Antes de seguirmos para a explicação do modo como este

décimo capítulo foi divido, devemos fazer uma observação com relação ao ponto de

partida da teoria peirceana desenvolvida no ONLC.

Como vimos nos primeiro capítulos, a partir de 1864, antes mesmo daquelas

descobertas no campo da lógica que o impeliriam a elaborar seu próprio sistema de

207

No original: "the unity to which the understanding reduces impressions is the unity of a proposition.

This unity consists in the connection of the predicate with the subject".

Page 315: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

300

categorias, Peirce começa a se distanciar da concepção kantiana da lógica expressa na

“Crítica da Razão Pura” graças a estudos que fez da obra de alguns lógicos medievais.

Segundo a análise de Murphey (1993 [1961], p. 56), a esta altura, o entendimento que

Peirce começou a desenvolver a respeito da lógica já estava sob a influência de Scotus e

isto já pode ser apontado como um dos motivos do gradual afastamento do pensamento

peirceano com relação à sua matriz kantiana. Por um lado, para Kant (e este

posicionamento se reflete de forma fundamental na “Crítica da Razão Pura”), o foco

principal da lógica é a proposição e o estudo da proposição deve preceder o estudo da

estrutura maior na qual as proposições estão encaixadas, a saber, o silogismo. Por outro

lado, para Scotus, o foco principal da lógica é o silogismo e o estudo do silogismo deve

preceder o estudo das proposições, uma vez que as únicas distinções logicamente

significativas entre proposições são aquelas que "afetam a função delas dentro de um

silogismo" (cf. Murphey, 1993 [1961], p. 56).

Feitas estas observações, pode-se perguntar por que Peirce resolve trabalhar no ONLC

dentro de um contexto proposicional (por que ele resolve fechar o foco no processo de

predicação que ocorre na proposição) se, a esta altura, já era do seu entendimento

(seguindo Scotus) que o foco principal da lógica deveria ser a inferência (e não a

proposição)? Ora, um dos prováveis motivos que devem ter levado Peirce a escolher o

contexto proposicional no ONLC é o fato de, nesta época, ele já ter em mente que, no

fundo, a relação entre sujeito e predicado dentro de uma proposição (ou de antecedente

e consequente dentro de um condicional) é exatamente a mesma relação encontrada

entre a premissa e a conclusão de um argumento, pois todas estas relações não passam

de casos particulares de uma relação fundamental: a sígnica208

. Em outras palavras, a

relação de sujeito para predicado e de premissa para conclusão é uma relação de

representação. Como prova de que, para Peirce, no ONLC bem como na série cognitiva

como um todo, o contexto proposicional e o contexto inferencial têm a mesma estrutura

(que é aquela de um signo), apresentaremos na quarta seção deste décimo capítulo uma

análise em que o processo de síntese (para o qual são mobilizadas as categorias) é

explicado a partir de um processo inferencial (e não de predicação209

).

Pretendemos neste décimo capítulo, elaborar uma apresentação geral e uma análise dos

principais pontos e da linha argumentativa desenvolvida por Peirce no ONLC. Para

facilitar a análise, vamos dividir a apresentação de tais pontos e desta linha

argumentativa em quatro partes. Cada um destas partes corresponde a uma seção dentro

deste décimo capítulo. Na primeira parte, dedicaremo-nos à apresentação dos principais

conceitos envolvidos (conceito210

, substância, ser) e das ferramentas teóricas utilizadas

por Peirce (como o método de abstração por ele denominado de prescindência). Na

segunda e terceira partes, explicitaremos os modos de exposição das categorias no

208

Esta é a terceira descoberta acima aludida (e à qual nos referimos, por diversas vezes, nos três

primeiros capítulos, sobretudo, na terceira seção do segundo capítulo). 209

Deve-se recordar que, conforme o entendimento que Peirce desenvolveu a partir de suas pesquisas no

campo da lógica após 1864, tanto a predicação como a inferência dizem respeito a relações

(respectivamente sujeito-predicado e premissa-conclusão) são caso particulares da relação sígnica. 210

Os termos “conceito” e “concepção” serão considerados sinônimos.

Page 316: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

301

ONLC. A base destas primeiras partes de nossa apresentação (principalmente a segunda

e terceira) é um artigo de Andre De Tienne (1989) intitulado "O método inicial para

encontrar as Categorias". Neste artigo, este importante comentador da obra peirceana

faz uma leitura minuciosa do ONLC na tentativa de revelar que "o método para

encontrar as Categorias é um tipo de desconstrução de hipótese" (1989, p. 403) e

funciona como uma espécie de "raciocínio reverso".

Enquanto o foco destas três primeiras partes de nossa leitura do ONLC é apresentação

dos argumentos e do método de exposição efetivamente utilizado por Peirce, na quarta

parte, dedicaremo-nos à apresentação a uma visão um pouco mais ampla do problema

central da filosofia peirceana: como são possíveis as sínteses (em geral). Nesta última

parte, passaremos a enxergar a proposição e a síntese dela resultante dentro de uma

estrutura argumentativa, pois, como esperamos tornar claro ao final de nossa leitura do

ONLC, é justamente um estudo do processo inferencial que levou Peirce explicar como

é possível "unificar a variedade da experiência" (Hookway, 1985, p. 19). Em poucas

palavras, a síntese que ocorre numa proposição é, em última análise, a resultante de um

processo inferencial. A base desta quarta parte de nossa apresentação é um texto

seminal de David Savan (1976) sobre semiótica peirceana.

Portanto, a linha geral do roteiro de nossa análise do ONLC funcionará como uma

espécie de zoom out211

: num primeiro momento (as três primeiras partes), fecharemos o

foco na proposição na tentativa de explicar microscopicamente como surge o fenômeno

da síntese (de acordo com Peirce) e, num segundo momento, em plano aberto,

enxergaremos este mesmo fenômeno dentro de uma proposição que, por sua vez, estará

encaixada dentro de um argumento (numa posição que torna claro que a síntese é "algo"

que ocorre na proposição como resultado de um processo inferencial).

211

No cinema, zoom out é o movimento aparente de afastamento (gerado somente pela manipulação do

jogo de lentes da câmara) em relação ao objeto que é filmado.

Page 317: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

302

10.1 Primeira parte da análise do ONLC: conceitos-chave

A teoria desenvolvida no ONLC por Peirce pretende descrever quais são as concepções

elementares e universais responsáveis pela redução da variedade das impressões

sensoriais à unidade. No fundo, o que se pretende explicar é como funciona a

predicação. Os dois primeiros parágrafos do ONLC (transcritos a seguir) deixam

evidente este desiderato bem como apresentam a definição do primeiro conceito-chave

da teoria: o conceito de “conceito” ou "concepção").

Este artigo é baseado numa teoria já estabelecida de que a função dos

conceitos é reduzir a variedade das impressões sensoriais à unidade e a

validade de um conceito consiste na impossibilidade de se reduzir o conteúdo

da consciência à unidade sem introduzi-lo.

(CP 1.545)212

Esta teoria dá origem a uma concepção de gradação entre aqueles conceitos

que são universais, pois um conceito desses pode unificar a variedade [das

impressões] dos sentidos e, ainda assim, pode ser que ainda seja necessária

outro conceito para unificar aquele conceito e a variedade à qual ele é

aplicado; e assim por diante.

(CP 1.546)213

A definição apresentada para o termo "conceito" é bem abrangente. Um conceito seria

qualquer elemento indispensável para a tarefa de redução da variedade (das impressões)

a uma unidade. Deve-se enfatizar que um conceito é, neste sentido, da natureza de uma

hipótese, pois ele não é um elemento proveniente das impressões do sentido (ou da

combinação entre elas), mas é um elemento adicionado hipoteticamente com o intuito

de reduzir a variedade (das impressões) a uma unidade (cf. W 1.516).

De acordo com a passagem transcrita acima, pode ser o caso em que mais de um

conceito tenha que ser introduzido (para unificar a variedade). Suponhamos que o

conceito A tenha sido introduzido para reduzir à unidade a tal variedade dos dados

provenientes dos sentidos, porém, pode ser o caso (e é exatamente este o caso descrito

pela teoria, como veremos) que outro conceito B tenha que ser introduzido para unificar

o resultado da introdução do conceito A. Ou seja, o conceito B é introduzido para

unificar a variedade criada pela introdução do próprio conceito A e pela variedade à

qual ele se aplicava. A gradação de que trata Peirce nestes trechos iniciais do ONLC é a

ideia de que, quando há mais de um conceito introduzido (e é exatamente este o caso),

212

This paper is based upon the theory already established, that the function of conceptions is to reduce

the manifold of sensuous impressions to unity and that the validity of a conception consists in the

impossibility of reducing the content of consciousness to unity without the introduction of it. (CP 1.545)

213

This theory gives rise to a conception of gradation among those conceptions which are universal. For

one such conception may unite the manifold of sense and yet another may be required to unite the

conception and the manifold to which it is applied; and so on. (CP 1.546)

Page 318: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

303

deve haver uma hierarquia entre tais conceitos. Há uma ordem de entrada em que um

conceito é introduzido para “terminar o serviço” do anterior. Cada novo conceito é

introduzido para reduzir a variedade criada justamente pela introdução do conceito

anterior, pois este, quando introduzido, soma-se ao “material (sensório)” que ele

pretendia reduzir, o que torna necessário que se introduza um novo conceito para

“terminar o serviço” do anterior.

O primeiro passo dado por Peirce para expor sua teoria é estabelecer quais são os

conceitos-limite do processo de predicação, isto é, qual é o primeiro e qual é o último

conceito sem o qual não seria possível reduzir a variedade à unidade. Estes são,

respectivamente, o conceito de substância e o conceito de ser. Paralelo a isto, Peirce

também apresenta qual será o método utilizado para encontrar os demais conceitos

intermediários (que são aqueles que estão entre o primeiro e o último). Este método é

um modo de separação de ideias (um tipo de abstração) denominado pro Peirce de

prescindência. Antes de tratarmos deste método, vejamos as categorias-limite.

Conceitos (ou concepções), como vimos, servem para dar unidade à diversidade de

impressões que nos chegam dos sentidos. O primeiro conceito a ser levantado para

explicar a síntese é relativo "àquilo que está presente, em geral", o que, neste artigo

ONLC, é equivalente ao termo filosófico "substância". Este é o conceito mais próximo

da "porta de entrada", isto é, das impressões dos sentidos.

O conceito universal que está mais próximo dos sentidos é aquele do

presente, em geral. Trata-se de um conceito, porque é universal. Porém, como

o ato de atenção não tem conotação alguma, ele apenas é a pura capacidade

denotativa da mente, isto é, a capacidade que direciona a mente para um

objeto, em contraposição à capacidade de pensar qualquer predicado deste

objeto então, o conceito do que está presente em geral, que nada mais é do

que o reconhecimento geral do que está contido na atenção, não possui

conotação e, assim, não possui unidade própria. Este conceito do presente em

geral, do ISSO em geral, é apresentado em linguagem filosófica sob o nome

de "substância" nalgum dos sentidos do termo. Antes que qualquer

comparação ou discriminação possa ser feita entre o que está presente, o que

está presente deve ser reconhecido como tal, ser reconhecido como isso, e

subsequentemente as partes metafísicas que são reconhecidas por abstração

são atribuídas a ele, mas este isso não pode ser um predicado. Este isso,

Page 319: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

304

então, não é predicado de um sujeito, nem está num sujeito. Assim, ele é

idêntico à concepção de substância.

(CP 1.547)214

Se o objetivo da teoria peirceana apresentada no ONLC é explicar como são possíveis

as sínteses (em geral) ou quais são as os conceitos (ou as concepções) fundamentais que

explicam a síntese cujo protótipo é a proposição, então é natural que o primeiro conceito

seja aquele que é tradicionalmente entendido como algo que condiciona as proposições

(e, em particular para Peirce neste artigo, seja o conceito que está mais próximo da

diversidade das impressões). Uma proposição é basicamente um enunciado linguístico

que deve poder ser julgado verdadeiro ou falso. Em poucas palavras, uma proposição é

basicamente uma afirmação. Para que possamos afirmar algo a respeito de algo é

necessário pressupor a subsistência daquilo que é objeto da afirmação (i.e., o segundo

"algo" nesta frase). É natural que, ao se pôr a explicar o funcionamento do processo de

predicação, Peirce comece por nos apresentar o conceito que diz respeito a algo que é

justamente uma espécie de "suporte" ou substrato sobre o qual ocorre a predicação.

Neste sentido, o conceito (ou a concepção) de substância é uma condição elementar para

a predicação. Se, por meio de diferentes proposições, somos capazes de atribuir

diferentes predicados a um mesmo objeto (tal como numa lista descritiva deste objeto) é

porque somos capazes de supor que algo tenha permanecido o mesmo através de cada

uma dessas predicações. Para haver predicação, é necessário que algo subsista.

Tomemos, como exemplo, algumas determinações (ou propriedades) temporais de

algum objeto, ou seja, alguns atributos que um objeto possui durante algum tempo, mas,

depois, deixa de possuí-los. Imagine um abacate que estivesse verde no momento "t" e

tivesse se tornado maduro do momento "t+1". Se somos capazes de notar a mudança

(neste abacate) é porque pressupomos que haja algo que permaneceu sob a mudança de

um estado para outro. Este algo que permaneceu é justamente o substrato que, num

primeiro momento, recebeu o predicado "______ está verde" e, num segundo momento,

recebeu o predicado "______ está maduro".

Ainda que o conceito de substância (que é equivalente, de acordo com Peirce, ao

conceito de "o que está presente [em geral]" apresentado no ONLC) tenha uma papel

específico na economia interna de cada teoria na qual é introduzido e, com isso, ganhe

matizes de significado, parece haver certas ideias nucleares associadas a tal concepção

como as noções de "constância" e "permanência", por exemplo. Estas duas noções, que

214

No original: "That universal conception which is nearest to sense is that of the present, in general. This

is a conception, because it is universal. But as the act of attention has no connotation at all, but is the pure

denotative power of the mind, that is to say, the power which directs the mind to an object, in

contradistinction to the power of thinking any predicate of that object -- so the conception of what is

present in general, which is nothing but the general recognition of what is contained in attention, has no

connotation, and therefore no proper unity. This conception of the present in general, of IT in general, is

rendered in philosophical language by the word "substance" in one of its meanings. Before any

comparison or discrimination can be made between what is present, what is present must have been

recognized as such, as it, and subsequently the metaphysical parts which are recognized by abstraction are

attributed to this it, but the it cannot itself be made a predicate. This it is thus neither predicated of a

subject, nor in a subject, and accordingly is identical with the conception of substance."

Page 320: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

305

são bem captadas nesta metáfora do suporte, estão presentes na definição oferecida pelo

filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein na obra "Tractatus Logico-Philosophicus": "a

substância é o que subsiste independente do que seja o caso" (Tractatus, 2.024)215

. Em

alguns contextos teóricos, o termo substância condiciona não apenas a noção geral de

predicação, mas a percepção de mudanças de estado e da própria passagem do tempo. A

tese que geralmente é defendida dentro destas teorias é que só podemos "enxergar" a

noção de mudança (e as noções dela derivadas ou dependentes) contra um pano-de-

fundo de permanência. Vejamos, por exemplo, o modo como Kant entende o termo

substância na "Crítica da Razão Pura".

Nascer e morrer não são mudanças do que nasce e morre. Mudar é um modo

de existir, que se sucede a outro modo de existir de um mesmo objeto. Por

conseguinte, tudo o que muda é permanente e só o seu estado se transforma.

E como essa mudança atinge apenas as determinações que podem cessar ou

começar, é-nos lícito dizer, em expressão que parece um tanto paradoxal, que

só o permanente (substância) muda; o variável não sofre qualquer mudança,

apenas uma transformação, pois que algumas determinações cessam e outras

começam.

Só nas substâncias pode haver percepção de mudança e não há percepção

possível dos nascer e do perecer absolutos, senão enquanto mera

determinação do permanente, porque é essa mesma permanência que torna

possível a representação da passagem de um estado para outro e do não-ser

para o ser e só enquanto determinações mutáveis do que permanece, podem

ser empiricamente conhecidos estes estados.

(...)

As substâncias (no fenômeno) são os substratos de todas as determinações de

tempo.

(KrV, A 187-8 , B 230-1)

Feitas algumas referências às definições para o termo substância presentes nas obras de

outros filósofos, voltemos a focalizar este conceito tal como foi apresentado por Peirce

no ONLC e notemos que, também neste caso, ele é entendida como uma condição para

que haja sínteses. Imagine algo que seja objeto de nossa atenção em determinado

momento. Qualquer atribuição de propriedade ou qualidade que queiramos fazer (a isso

que é objeto de nossa atenção) não pode ser feita de forma imediata, i.e., não pode ser

feita no mesmo instante em que nos tornamos atentos à presença do objeto. Qualquer

propriedade ou qualidade que enxerguemos neste objeto depende de um ato de

comparação entre isso que está presente (diante de nossos sentidos ou nosso

entendimento) e algum outro objeto (percebido ou concebido anteriormente). Isto nos

leva a uma das teses centrais do pensamento peirceano (apresentadas, principalmente,

na chamada série cognitiva e, por nós, analisada no capítulos precedentes): não se pode

ter acesso ao que está imediatamente presente na consciência". Este "algo" (i.e., o objeto

tal como se apresentaria no presente imediato à nossa mente) é o que Peirce chamou de

215

No original: "Die Substanz ist das, was unabhängig von dem, was der Fall ist, besteht".

Page 321: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

306

"o que está presente em geral". Este "algo" tal como se apresenta no presente imediato

não possui conotação, ou seja, não possui determinações (predicados) justamente por

ser a estrutura que torna possível haver determinações. O conceito de substância ou, de

acordo com os termo de Peirce no ONLC, "aquilo que está presente à mente (em geral)"

é justamente o tipo de estrutura (sobreposta à diversidade das impressões) que torna

possível formular juízos ou formar proposições.

Supor que haja algo que é objeto de nossa atenção no presente imediato, embora não

saibamos o que é ou quais características tem, é supor que haja algo que funciona como

uma espécie de "suporte abstrato" para posteriores predicações. Isto é o estabelecimento

de uma hipótese. A hipótese da substância é a suposição de que haja um todo cujas

partes permanecem sob um estado de anonimato até que a mente passe a nomeá-las por

meio de proposições sintéticas. Entretanto, note que, para que possamos, por meio de

proposições, nomear as partes deste todo (que é a substância), antes temos que supor

que haja este todo. Por exemplo, imaginemos uma lista que descreva uma caneta

esferográfica: "a caneta é azul", "a caneta é antiga", "a caneta é fina", etc.. A hipótese da

substância é justamente a suposição de que haja algo, algum substrato, por baixo de

todas estas descrições e que este algo seja justamente o que está sendo descrito em todas

estas proposições que compõem tal lista. Neste caso, aquilo que faz o papel de

substância ou substrato é a caneta (que está sendo descrita). A caneta (descrita) é o isso

que está (ou esteve) presente diante da mente daquela pessoa (que descreve) "antes"

mesmo que se começasse a descrevê-la. Esta descrição é uma sequência de proposições

sintéticas e em cada uma delas se atribui uma característica àquilo permanece através

das descrições. Isto que permanece é justamente o que se denomina de substância.

Focalizemos o momento que antecede tais descrições, o instante em que nossa mente

passa a ter como objeto de atenção a caneta. Neste "momento", a caneta (em si mesma)

já possui a capacidade para receber todas aquelas características, entretanto nossa mente

ainda não atribuiu a ela nenhum desses predicados. É como se a substância fosse um

todo cujas partes não foram ainda rotuladas, identificadas. O conceito de substância,

embora não tenha predicados associados, é uma estrutura (uma espécie de suporte) que

serve justamente para receber predicados. Por este exato motivo, de acordo com o

trecho de Peirce transcrito acima (CP 1.547), o conceito de substância não possui

unidade. A substância é a hipótese de que haja algo que possa receber predicados

embora não os tenha no presente imediato. Isto é outra forma de afirmar que, no

presente imediato, não há conotação, não há predicação. Como não há predicação, então

não há síntese. Então, por este motivo, o isso (que está presente) não possui unidade.

O conceito de substância é para Peirce, no ONLC, uma espécie de categoria-limite, pois

é o início do processo de predicação. Substância é o ponto de partida da predicação,

pois é a concepção mais próxima da variedade das impressões (dos sentidos) que é

exigida para haver síntese. Em outras palavras, o conceito de substância é a primeira

suposição a ser feita no caminho entre a variedade e a unidade. A outra ponta do

processo de predicação é o conceito de ser.

Page 322: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

307

A suposição ou hipótese que "fecha" o processo de predicação é o conceito de ser, pois

esta concepção tem um papel de unificação dentro da proposição e a unificação (entre

sujeito e predicado) é justamente o alvo perseguido pelos conceitos (que levantamos

dentro dos limites desta teoria). Se lembrarmos que, no ONLC, Peirce buscou

estabelecer quais são os conceitos que servem como hipóteses (indispensáveis) para

explicar como é possível a síntese (dentro de uma proposição), então, como o conceito

de ser perfaz justamente o papel de sintetizador (de cópula, como veremos), não há mais

nenhum outro conceito indispensável a ser levantado. Ele é o último.

Então, se por um lado, o conceito de substância não possui nenhuma unidade, pois ele é

um todo cujas partes não são imediatamente identificáveis, por outro lado, o conceito de

ser possui unidade justamente por não possuir partes. Enquanto, a concepção de

substância é levantada como hipótese para explicar sobre que "suporte" (metafísico) é

realizada uma predicação, a concepção de ser é levantada como hipótese para explicar

como é realizada a síntese (a unificação) entre sujeito e predicado. Por este exato

motivo (como notamos), esta é a última suposição. Ao contrário do conceito de

substância que é definido como uma categoria que é “determinável”, o conceito de ser é

definido como uma categoria que é completamente indeterminada.

O primeiro ponto a ser notado com relação ao conceito de ser é que este é uma categoria

"vazia", pois, ao entrar numa proposição, ele simplesmente não altera, não soma nada à

substância. Estudaremos esta questão de forma mais detida daqui algumas páginas.

Neste ponto, basta que tenhamos em mente que é a "vacuidade" deste conceito que

permite que ele tenha um papel quase puro de síntese, ou seja, é como se a concepção

de ser, pela sua "vacuidade", se tornasse capaz de fazer o papel de soma entre duas

parcelas sem acrescentar nada às parcelas que seriam, por ela, somadas. Na proposição

"a vela é branca", pode-se afirmar que o termo "branco" determina a concepção de vela,

pois tal termo limita a concepção que se tem da vela (em questão). Não fosse tal

determinação, a vela (em questão) poderia ser azul, verde, vermelha, etc. Por exemplo,

suponha que tenhamos uma lista que pretensamente contém todas as características de

uma determinada vela (ou grupo de velas) e, nesta lista, não há referência alguma à cor.

Assim, poderíamos afirmar que, com relação à cor, esta vela em questão (ou o grupo de

velas) estaria indeterminada. Pela lista apenas, não haveria como saber se a vela é azul,

verde, vermelha, etc. Sob este aspecto, tal objeto está indeterminado. Nesta mesma

proposição "A vela é branca", não podemos afirmar que o verbo ser (flexionado na

forma "é", no caso) determina de alguma maneira a concepção da referida vela. Não

podemos afirmar isto porque a função do verbo ser nesta proposição é apenas juntar o

termo sujeito "vela" e termo predicado "branco" sem nada acrescentar (aos termos). Ele

não possui conteúdo algum (CP 1.548). O termo "ser" (nesta acepção) é uma expressão

linguística bem peculiar, pois, por não poder carregar (por definição) conteúdo

conceitual algum, esta palavra funciona como um “veículo vazio”, a representação (na

linguagem) da indeterminação.

Para que entendamos o que é um conceito ou uma concepção completamente

indeterminada, vejamos como funciona o outro extremo, isto é, um conceito ou uma

Page 323: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

308

concepção (completamente) determinada. Antes, introduzamos uma distinção clássica

entre dois tipos de valor semântico de um termo (ou de uma expressão linguística)

qualquer: a extensão (ou denotação) e a intensão (ou conotação). A extensão de um

termo é o objeto ao qual (ou os objetos aos quais) ele se refere. Dentro de uma

construção conjuntista, a extensão de um termo é um conjunto com todos os seres que

constituem referência para este termo216

. A intensão de um termo é o "conteúdo

conceitual" envolvido nele. Dentro de uma construção conjuntista, a intensão de um

termo é um conjunto com todas as propriedades associadas a ele. Por exemplo, a

extensão do termo "baleia" é maior do que a extensão do termo "Sousândrade". O

primeiro designa aqueles seres que são considerados os maiores mamíferos (vivos). O

segundo designa apenas o poeta brasileiro do século XIX (cujo nome de batismo era

Joaquim de Sousa Andrade). Entretanto, a intensão do termo "Sousândrade" é maior do

que a intensão do termo "baleia". Suponha que a intensão de cada um destes termos seja

uma lista que apresente (de forma ideal) todas as características atribuídas à referência

de cada um dos termos em questão. Parece-nos óbvio que a lista (a intensão) do termo

"Sousândrade" (por ser este um termo singular217

) deve conter muito mais

características do que a lista correspondente ao termo "baleia" (por ser este um termo

geral). Deve haver muito mais propriedades ou predicados que podemos afirmar acerca

de um indivíduo. Termos singulares são mais determinados ou carregam mais

determinações se comparados a termos gerais.

Suponha que estejamos diante de uma lista de propriedades associadas a um indivíduo.

De acordo com a lista, o indivíduo descrito é "ser humano", "(ser) do sexo masculino",

"(ser) brasileiro", "(ser) mulato", "(ser) escritor", "(ser) autor de 'Memórias póstumas de

Brás Cubas' " etc. . Com esta lista em mãos, a ideia ou a concepção que temos deste

indivíduo é bem "rica", i.e., compreende muitos atributos. Neste caso, o conjunto de

propriedades ou características apresentadas já é suficientemente "rico" para determinar

sua referência: o indivíduo Machado de Assis. Representemos este indivíduo com o

termo "Machado de Assis". A intensão (ou conotação) do termo "Machado de Assis"

seria, neste caso, o conjunto com todas estas características (que acreditamos que

descrevem verdadeiramente este indivíduo). Nesta mesma situação, a extensão (ou

denotação) do termo "Machado de Assis" é mínima. Na verdade, o conjunto que

constitui a extensão deste termo é um conjunto unitário, uma vez que seu único membro

é o indivíduo Machado de Assis. Quando afirmamos que o conjunto que constitui a

216

Há algumas especificidades em se admitir esta construção conjuntista apresentada. Por exemplo, se é

estabelecido que a extensão de um termo é o conjunto formado pelos seres designados por tal termo,

então há que se admitir que tanto o termo "saci" como o termo "fênix" tem a mesma extensão: o conjunto

vazio. Ainda de acordo com esta construção, um termo singular deve ter como extensão um conjunto

unitário (e não o objeto que está contido neste conjunto unitário e é a referência do termo em questão). 217

Um termo singular (ou um designador em terminologia introduzida pelo lógico norte-americano Saul

Kripke) é um termo que reservamos dentro de nossas linguagens para fazer referência a indivíduos, ou

seja, estes são termos com apenas um referente. Um termo geral, por sua vez, é um termo que reservamos

dentro de nossas linguagens para fazer referência a um ou mais objetos (a classes ou conjuntos). Num

contexto proposicional, enquanto um termo singular designa um objeto, um termo geral designa uma

função predicativa, ou seja, um termo geral designa uma condição a ser satisfeita ou não por um objeto

qualquer.

Page 324: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

309

extensão deste termo é um conjunto unitário, o que pretendemos estabelecer é que este

termo não se aplica a qualquer outro indivíduo ou entidade (tal termo não se aplica a

Napoleão, Marilyn Monroe, Walter Raleigh, meu sapato, Curupira, o ódio que Hitler

nutria pelos Judeus, etc.).

Considere, então, que tiremos desta lista algumas características e fiquemos apenas com

os seguintes predicados: "ser humano", "(ser) do sexo masculino", "(ser) brasileiro",

"(ser) mulato", " (ser) escritor". É óbvio que, neste caso, estamos diante de um novo

termo, de outro conceito, pois a lista que temos não mais descreve somente Machado de

Assis, mas todos os demais escritores brasileiros mulatos. Assim, o conjunto que

constitui a extensão deste novo termo não é mais unitário, pois passaria a conter, além

de Machado de Assis, também Lima Barreto, por exemplo. Pode-se afirmar que estamos

diante de um termo geral, uma vez que este é um termo cuja referência é constituída por

quaisquer indivíduos que cumprirem as seguintes condições: "ser humano", "(ser) do

sexo masculino", "(ser) brasileiro", "(ser) mulato", " (ser) escritor". Antes de cortarmos

itens da lista, tínhamos um termo ("Machado de Assis") que era reservado para se

referir somente a um indivíduo. Repare que, ao diminuirmos o conjunto que constitui a

intensão (ao criarmos um termo menos preciso), aumentamos o conjunto que constitui a

extensão (se compararmos à extensão do termo anterior).

Se continuarmos com este procedimento de cortar itens da lista, então aumentaria o

conjunto que constitui a extensão dos novos termos que seriam criados. Se gerarmos

uma nova lista a partir de uma antiga ao cortarmos um item desta, então, na nova lista

assim gerada, podemos designar ou descrever mais indivíduos do que a lista anterior.

Na lista que conta apenas com os predicados "ser humano", "(ser) do sexo masculino",

podemos designar Napoleão e Walter Raleigh, o que não podia ser feito com a lista que

contava com os predicados "ser humano", "(ser) do sexo masculino", "(ser) brasileiro".

Embora Napoleão e Walter Raleigh estejam contemplados no conjunto que constitui a

extensão do termo gerado a partir daquela lista – com os predicados "ser humano",

"(ser) do sexo masculino" – ainda há alguns seres que ficariam de fora de tal extensão

(por exemplo, Marilyn Monroe, meu sapato, Curupira, o ódio que Hitler nutria pelos

Judeus, entre outros). Podemos levar este procedimento até que a lista fique com apenas

um item: o predicado "ser humano". O conjunto que constitui a extensão do termo

gerado por esta lista (com apenas um predicado) já inclui o indivíduo Marilyn Monroe

(mas ainda deixa de fora alguns seres como meu sapato, Curupira, o ódio que Hitler

nutria pelos Judeus e outros seres que não cumprem a condicionante de serem

humanos).

Suponha, então, que cortemos o último item da lista e fiquemos com uma lista vazia.

Neste caso, não há mais predicados para que possamos determinar o conjunto que

constitui a extensão do termo em questão. Como não há mais condições a serem

verificadas para que um ser qualquer esteja neste conjunto, então podemos afirmar que

qualquer ser está contido neste conjunto. Este conjunto contém tudo o que é. Basta que

algo seja para que esteja neste conjunto. Este termo ao qual chegamos pode ser

denominado de "ser". Este é o conceito de ser. Nada fica de "fora" do conjunto extensão

Page 325: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

310

deste conceito. No diagrama reproduzido a seguir podemos notar que todas aqueles

itens que foram cortados, todos aqueles predicados, são, na verdade, determinações do

ser.

Apresentados os dois conceitos-limites dentro do ONLC (substância e ser), passemos a

tratar dos conceitos intermediários: qualidade, relação e representação. Estas

concepções intermediárias são admitidas dentro da teoria apresentada por Peirce como

suposições necessárias para explicar como é possível se passar da variedade (subjacente

ao conceito de substância) à unidade (subjacente ao conceito de ser). Desde a primeiro

conceito (substância) até o último (ser), notemos que cada um desses conceito é

admitido (na teoria) como hipótese indispensável para explicar o conceito anterior. O

primeiro deles é o conceito de substância, que entra em cena para explicar a síntese (i.e.,

a redução da variedade à unidade). Nesta ordem, o segundo conceito é o de

representação, que é admitido para explicar o conceito de substância. Ainda nesta

ordem, o terceiro conceito é o de relação, que é admitido para explicar o conceito de

representação. Por sua vez, o quarto conceito é o de qualidade, que é admitido para

explicar o conceito de relação. Por último, e esta é a hipótese-base, o quinta conceito é

o de ser, que é admitido para explicar o conceito de qualidade. Como cada uma das

suposições é admitida para explicar uma suposição que já tinha sido admitida antes (até

a primeira delas), então o que Peirce nos apresenta no ONLC é uma cadeia de hipóteses.

O método por Peirce utilizado para derivar as categorias é um método essencialmente

abdutivo218

. Antes que comecemos a descrever, de forma minuciosa, esta cadeia de

218

Para Peirce, a abdução é, ao lado da indução, uma inferência ampliativa. De modo diverso da indução,

o processo abdutivo tem como ponto de chegada não a formulação de uma regra geral, mas a explicação

Ser

ser físico

ser vivo

ser humano

ser brasileiro

ser mulato

ser escritor

...

...

...

ser não humano

ser não vivo

...

ser não físico

...

... ...

Page 326: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

311

suposições que constitui a coluna dorsal do ONLC, devemos examinar a estrutura de

tais tipos de encadeamento. Para isso, desenvolveremos um exemplo.

Imagine a seguinte situação (que irá nos servir de exemplo): ao chegarmos a um

escritório, reparamos que quase todos os funcionários têm, em suas mesas, caixinhas de

lenços (descartáveis). Esta cena traz à nossa mente uma ideia que poderia muito bem ser

representada pela seguinte proposição:

Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas

mesas"

Então, antes mesmo que acabássemos de formular de forma exata alguma pergunta a

respeito das razões que lavariam todas aquelas pessoas a terem lenços, vem à nossa

mente uma ideia que se apresenta como provável resposta a este questionamento: "todas

estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas, porque elas estão

resfriadas". A ideia “estas pessoas estão resfriadas” é uma hipótese para a ideia “estas

pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas mesas”. Já temos, então, duas

proposições:

Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas

mesas" (fato a ser explicado)

Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (primeira hipótese)

Estendamos este exemplo supondo que também esta segunda afirmação ("estas pessoas

estão resfriadas") exija uma explicação, afinal também seria curioso o fato de várias

pessoas estarem resfriadas. Talvez a primeira hipótese que serviria para explicar esta

segunda afirmação (que, por sua vez, serve para explicar aquela primeira proposição)

seria que "estas pessoas estão resfriadas, porque estão todas no mesmo ambiente e isto

facilita o contágio". Entretanto, vamos supor que tal hipótese foi descartada, pois

recebemos a informação (adicional) que há pessoas que estavam naquele momento no

escritório e davam sinais de estarem resfriadas (i.e., estavam com caixinhas de lenços

sobre a mesa), mas tinham acabado de retornar de férias ou tinham acabado chegar, pois

foram transferidas de outros setores da empresa. O fato de também estes funcionários

apresentarem sinais do (suposto) resfriado joga contra a hipótese de que estas pessoas

estariam resfriadas, porque todas elas estariam no mesmo ambiente e isto facilitaria o

de um fato ou de um acontecimento. A finalidade é introduzir uma hipótese explicativa (cf. CP 2.263

[1878]). Por este motivo, este tipo de inferência (para a qual Peirce utilizou outros termos ao longo do

tempo [como "retrodução" e "hipótese"]) hoje também é chamado de "inferência para a melhor hipótese".

Page 327: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

312

contágio (afinal, há recém-chegados que também ostentam caixinhas de lenços em suas

mesas). Talvez a segunda hipótese que nos viesse à mente fosse alguma ideia relativa ao

sistema de condicionamento de ar do prédio. Entretanto, suponhamos que tal hipótese

tenha sido também descartada, pois nos lembramos que foi feita, em data recente, a

manutenção de tal sistema. Imagine, então, que tenhamos chegado a uma nova hipótese

para aquela segunda afirmação ("estas pessoas estão resfriadas"). A nova hipótese é que

"estas pessoas estão resfriadas, porque houve recentemente diversas mudanças bruscas

de temperatura". Neste caso, notemos que a ideia de que “houve recentemente diversas

mudanças bruscas de temperatura” é uma hipótese para a ideia “estas pessoas estão

resfriadas”. Temos, então, uma terceira proposição que é nossa segunda hipótese .

Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas

mesas" (fato a ser explicado)

Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (primeira hipótese)

Proposição 3 --> "Houve recentemente diversas mudanças bruscas de

temperatura" (segunda hipótese)

Compliquemos ainda mais este exemplo supondo que tenhamos achado que esta última

ideia (apresentada para explicar a anterior) também seja curiosa e, por este motivo,

também exija explicações. Ora, por "sugestão midiática", suponha que seja o

aquecimento global o candidato mais natural à explicação para o fato de ter havido

diversas mudanças bruscas de temperatura naquela região em que nos encontramos. Em

resumo, "houve recentemente diversas mudanças bruscas de temperatura, porque o

aquecimento global tem alterado o regime climático (desta região)". Entra em cena,

então, uma quarta ideia que é a nossa terceira hipótese.

Proposição 1 --> "Estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis) em suas

mesas" (fato a ser explicado)

Proposição 2 --> "Estas pessoas estão resfriadas” (primeira hipótese)

Proposição 3 --> "Houve recentemente diversas mudanças bruscas de

temperatura" (segunda hipótese)

Proposição 4 --> "O aquecimento global tem alterado o regime

climático desta região" (terceira hipótese)

Page 328: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

313

A concepção de aquecimento global (com suas consequências) serve para explicar o

fato de haver um grande número de pessoas presentes naquele escritório com caixas de

lenços (descartáveis) sobre suas mesas.

Proposição 4 explica a Proposição 3

Proposição 3 explica a Proposição 2

Proposição 2 explica a Proposição 1

Há desenvolvida neste exemplo uma linha de raciocínio, uma cadeia de argumentos que

tem como objetivo justificar ou explicar um fato inicial (denominado acima de

proposição 1). Notemos que há basicamente dois métodos de exposição para esta linha

de raciocínio: um que parte do fato a ser explicado e segue até a explicação básica e um

outro que parte da explicação básica ("última" hipótese) e segue até o fato a ser

explicado.

Neste primeiro método (acima referido), o que fazemos é construir uma hipótese para

um fato. Neste caso, partimos da proposição 1 "Estas pessoas têm caixas de lenços

(descartáveis) em suas mesas" (fato a ser explicado) e nos perguntamos o que deveria

acontecer para que o estado de coisas descrito nessa proposição ocorresse. A resposta é

aquilo que chamamos de proposição 2 "Estas pessoas estão resfriadas”. Caso esta

segunda proposição seja efetivamente uma boa hipótese, uma boa explicação, então

deveria ser o caso que não poderíamos conceber aquela primeira ideia (de que as

pessoas possuem caixinhas de lenços) sem recorrer a esta segunda ideia (de que essas

mesmas pessoas estão resfriadas) ainda que pudéssemos conceber a segunda sem

recorrer à primeira. Dessa forma, podemos construir uma cadeia de hipótese em que

cada uma delas explique a anterior. A ideia de que se pode conceber x sem y, mas não

y sem x é o coração do método da prescindência. E, no caso do ONLC, é este método

de prescindência que vai garantir uma hierarquização dos conceitos ou das concepções

introduzidas. Em termos do próprio Peirce no ONLC, o conceito que é introduzido (para

reduzir a variedade da experiência à unidade) pode ser prescindido dos fatores que o

ocasionam (i.e., as impressões), mas estes fatores não podem prescindir do conceito. É

exatamente isto que torna o conceito indispensável. Voltando para o nosso exemplo, a

ocasião de entrada da ideia do resfriado (proposição 2) é a ideia das caixinhas de lenço

(proposição 1), ou seja, a proposição (2) "estas pessoas estão resfriadas” só entrou "em

cena" para explicar a proposição (1) "estas pessoas têm caixas de lenços (descartáveis)

em suas mesas". A proposição 2 pode ser concebida sem a proposição 1, mas o inverso

não ocorre. Podemos pensar na ideia de resfriado sem que nossa mente dirija nossa

atenção para a ideia de lenço (ou caixinhas de lenços). Entretanto (se a hipótese do

exemplo for mesmo uma boa hipótese), não podemos pensar na ideia de lenço (ou

caixinhas de lenços) sem que nossa mente recorra à ideia de resfriado. É esta relação

Page 329: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

314

assimétrica de "inseparabilidade" de uma para a outra que tornaria esta última ideia uma

boa hipótese para aquela primeira.

No segundo método apresentado acima, o que fazemos é supor, em primeiro lugar, a

hipótese mais elementar (no exemplo é aquela relativa ao aquecimento global) para

depois "desconstruí-la" (no sentido de tentar enxergar quais são as ideias [componentes]

que nos levaram até tal hipótese). Neste caso, partimos da proposição 4 "o aquecimento

global tem alterado o regime climático desta região" (hipótese mais elementar) e nos

perguntamos que outra ideia (ou hipótese) estaria implicada nesta proposição 4 para

fazer com que ela cumpra seu papel de explicação do fato em questão (isto é, o fato de

que pessoas têm caixas de lenços em suas mesas). A pergunta é: quais são as ideias

implicadas na proposição 4 que nos autorizam afirmar que ela é uma explicação

plausível para o fato (que pretendemos explicar)? Talvez a resposta mais imediata seria

que o aquecimento global (proposição 4) é a suposta causa das mudanças bruscas de

temperatura registradas na região (proposição 3). Por sua vez, as mudanças bruscas de

temperatura registradas na região (proposição 3) são a suposta causa do resfriado de

cada uma daquelas pessoas observadas no escritório (proposição 2). Então, como último

passo deste método de exposição, o resfriado de cada uma daquelas pessoas observadas

no escritório (proposição 2) é a suposta causa que explica o fato destas pessoas terem,

em suas mesas, caixinhas de lenços descartáveis (proposição 1 e fato explicado). Neste

segundo método, óbvio está que operamos por uma espécie de método de prescindência

reverso.

Notemos que nos dois métodos de exposição, o alvo é a apresentação de uma

justificativa ou uma explicação para um fato considerado anômalo (representado, neste

exemplo, pela proposição 1). A linha de raciocínio hipotética que está por trás destes

dois métodos é a mesma: a proposição 1 é justificada pela suposição da proposição 2; a

proposição 2 é justificada pela suposição da proposição 3; a proposição 3 é justificada

pela suposição da proposição 4. O que muda de um método para outro é a ordem em

que são apresentados as proposições bem como o método de abstração, i.e. a ferramenta

teórica utilizada: o método da prescindência num caso e o método da prescindência

reversa noutro. Pode-se também sustentar a ideia de que a ferramenta teórica utilizada

em ambos os métodos de exposição é a mesma, entretanto, no primeiro deles, ela foi

utilizada para construir uma hipótese básica (no caso, a proposição 4) e, no segundo

método de exposição, ela foi utilizada para desconstruir estas mesma hipótese básica.

Também no ONLC, tendo como guia as categorias-limite, podemos entrever dois

métodos de exposição para aqueles conceitos intermediários (que são as categorias

propriamente ditas). No primeiro deles, que chamaremos de método construtivo

conforme sugestão de De Tienne em artigo já referido (1989, p. 402-3), parte-se da

concepção de substância e se segue em direção à concepção de ser. O caminho seguido

neste método é o passo a passo da construção da hipótese básica que explica como é

possível haver síntese dentro de uma proposição. No segundo método, chamado de

desconstrutivo (também por sugestão de De Tienne), parte-se da concepção de ser e se

segue em direção à concepção de substância. O caminho seguido neste outro método é o

Page 330: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

315

passo a passo da desconstrução da hipótese básica que explica como é possível haver

síntese dentro de uma proposição.

Ainda que o método de exposição escolhido por Peirce seja este segundo,

apresentaremos primeiro o método construtivo, pois nele a ferramenta teórica da

prescindência é utilizada dentro de uma "ordem natural". Como o objetivo da teoria é

explicar como é possível que a variedade das impressões seja reduzida à unidade do

conceito, deve-se esperar que a exposição da teoria comece pela noção de substância,

que, conforme demonstrado, é aquela concepção mais próxima da referida variedade. A

maneira mais natural de expor tal teoria seria Peirce começar pelo conceito de

substância e passar a apresentar qual seria o próximo conceito a ter que ser suposto para

explicar o conceito de substância (e a redução a que a variedade é submetida). Nesta

ordem "mais natural", o conceito de representação (ou referência a um interpretante)

surgiria como hipótese do conceito de substância. No próximo passo, o conceito de

relação (ou referência a um correlato) seria, então, apresentado como hipótese para

explicar o conceito de representação. E assim se seguiria até o último conceito a ser

levantado como hipótese: conceito de ser. Nesta ordem em que se procura construir a

hipótese básica (o conceito de ser), cada novo conceito que é introduzido (como

hipótese) é prescindível do anterior (que ele explica), mas a anterior (por ele explicado)

não é dele prescindível. Por exemplo, vejamos o primeiro passo quando a concepção de

representação é introduzida para servir de explicação à concepção de substância. Neste

primeiro passo, o conceito de representação pode ser prescindido do conceito de

substância, porém este não pode ser prescindido daquele. Por isto, o conceito de

representação serve de base ou de hipótese ao conceito de substância. Como o leitor já

deve ter começado a notar pelas semelhanças com exemplo fornecido, estes são os

primeiros passos da construção de uma hierarquia de hipóteses e o conceito de ser ficará

alocado na base desta hierarquia.

Page 331: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

316

10.2 Segunda parte da análise do ONLC: método de exposição

hipotético-construtivo

Comecemos, então, pelo conceito de substância. De acordo com termos do próprio

Peirce no ONLC, a "ocasião" da substância é a variedade das impressões. Como já

vimos, esta é "sua ocasião", pois este conceito é introduzido para explicar justamente

como a variedade pode ser reduzida à unidade. Porém, ao se introduzir a concepção de

substância, nota-se que esta também exige uma explicação, ou seja, um outro conceito

que lhe sirva de hipótese. Senão, vejamos. Para conceber quaisquer dois elementos

distintos da experiência (diferentes impressões) como unificados é preciso concebê-los

juntos como sendo nossos (CP 1.554), ou seja, concebê-los em relação (um com outro)

para nossa mente. Portanto, é preciso concebê-los em referência a um interpretante (a

um terceiro elemento mediador). Ora, mas concebê-los em referência a um interpretante

é representá-los. Então, para supor que haja algo como uma substância e para que a

variedade (subjacente a ela) possa ser trazida à unidade precisamos supor o conceito (ou

a concepção) de representação.

Representação é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de

substância. Portanto, aquela explica esta.

Então se abstrairmos a concepção de substância, ficamos apenas com uma referência a

um interpretante, ou seja, uma representação.

Uma representação é simplesmente um elemento intermediário que serve para colocar

em relação uma coisa (que representa) com outra coisa (que é representada).

Representar é fazer referência a um interpretante (que é justamente um nome especial

que Peirce cunhou para este terceiro elemento que tem um papel de mediação numa

relação). E para haver representação, i.e., para haver um elemento intermediário (com o

papel de representar) é necessário supor que haja dois elementos (caso contrário, não há

intermediação, pois não haveria nada para estar no meio). Representação supõe,

portanto, uma correlação entre dois outros elementos. Representar é justamente juntar

(por meio de um terceiro elemento) algo com o seu correlato. Então, para supor que haja

algo como uma representação, precisamos supor o conceito de relação.

Porém, deve-se notar que o conceito de relação (entre os dois elementos) pode ser

separado do conceito de representação, embora o conceito de representação não possa

ser separado do conceito de relação. Podemos supor relação sem representação, mas não

podemos supor representação sem relação. Em resumo, a concepção de relação é

prescindível da concepção de representação.

Page 332: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

317

Relação é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de

Representação. Portanto, aquela explica esta.

Então se abstrairmos a concepção de referência a um interpretante (representação),

ficamos apenas com uma referência a um correlato, ou seja, uma relação.

Uma relação é simplesmente alguma ligação entre um relato e um correlato com

referência a algum aspecto (ou qualidade). Relacionar é fazer referência a um

correlato. E para ligar dois elementos por uma relação é necessário supor que haja

alguma qualidade (uma abstração pura) que nos permita fazer a relação. Por exemplo,

a abstração "altura" nos permite comparar João e Pedro na proposição "João é mais

alto que Pedro"; a abstração "azul" na proposição "a baleia é azul" nos permite

comparar, de certa forma, a baleia com todos os outros seres que são azuis. Porém,

deve-se notar que conceito ou a concepção de qualidade pode ser separada do conceito

de relação, embora o conceito de relação não possa ser separado do conceito de

qualidade. Podemos supor qualidade sem relação, mas não podemos supor relação

sem qualidade. Em resumo, a concepção de qualidade é prescindível da concepção de

relação.

Qualidade é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de

Relação. Portanto, aquela explica esta.

Então se abstrairmos a concepção de relação, ficamos apenas com uma abstração pura

(a referência a um fundamento): a concepção de qualidade.

Uma qualidade é simplesmente alguma determinação qualquer do ser. Qualificar ou

determinar é fazer referência a um fundamento ( "ser mais alto que _____" ou "ser

azul") . E para fazer referência a um fundamento é necessário supor que haja "algo"

que possa ser determinado por este fundamento e este "algo" que nos permite fazer a

determinação é a concepção de ser. Podemos observar este ponto por outra

perspectiva, pois, como vimos, a concepção de ser é o que "sobraria" caso

eliminássemos todas as determinações (características) associadas a um termo (ou a

uma expressão linguística).

Porém, deve-se notar que o conceito de ser pode ser separado do conceito de

qualidade (ou fundamento), embora conceito de qualidade não possa ser separado do

conceito de ser. Podemos supor ser sem qualidade, mas não podemos supor qualidade

sem ser. Em resumo, a concepção de ser é prescindível da concepção de qualidade.

Ser é a primeira concepção que pode ser prescindida da concepção de

Qualidade. Portanto, aquela explica esta.

Page 333: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

318

Então se abstrairmos a concepção de referência a um fundamento (qualidade), ficamos

apenas com uma referência a uma categoria (completamente) indeterminada: ser.

Como esta concepção é justamente a responsável pela noção de unidade que era o alvo

de toda esta teoria acerca de categorias, então chegamos ao fim da cadeia de hipóteses.

A última suposição é justamente a responsável pela noção de unidade. O ponto de

chegada foi, então, o conceito ou a concepção de ser. Esta serve para explicar a

concepção de substância.

Repare que, no caminho construtivo (da concepção de substância para concepção de

ser), o primeiro passo é a introdução do conceito de representação ou de referência a

um interpretante. Este é o primeiro passo depois do estabelecimento da suposição da

substância, porque a concepção deste elemento intermediário (o interpretante) é a

responsável pela síntese. Outra forma de afirmar isto é: o conceito de representação

(referência a um interpretante) só foi introduzido para explicar como é possível juntar

diferentes elementos da experiência, ou seja, a ocasião da introdução da concepção de

representação (ou referência a um interpretante) é a diversidade de impressões.

Embora o conceito de representação (referência a um interpretante) seja o responsável

mais direto pela síntese, ele, para cumprir seu papel, envolve, no mínimo, outro

conceito: o de relação (referência a um correlato). Na verdade, quando introduzimos o

conceito de representação (referência a um interpretante), criamos a necessidade de

supor outro conceito que o explique (ou lhe sirva de base). Esta outro conceito é a

relação ou referência a um correlato. A ocasião da introdução do conceito de

referência a um correlato é o conceito de referência a um interpretante. Isto ocorre

porque, como vimos, a referência a um interpretante é imprescindível da referência a

um correlato (i.e., representação subentende relação). O mesmo processo ocorre entre

os dois outros conceitos.

Quando introduzimos o conceito de relação (referência a um correlato), criamos a

necessidade de supor outro conceito que o explique (ou lhe sirva de base). Este outro

conceito é a qualidade ou referência a um fundamento. Em outras palavras, a

referência a um correlato é imprescindível da referência a um fundamento (i.e.,

relação subentende qualidade). Portanto, qualidade é imprescindível para relação e

relação é imprescindível para representação. Por outro lado, representação é

prescindível de relação e relação é prescindível de qualidade.

O conceito de ser (bem como a ideia de unidade que lhe é subjacente) é o último a ser

introduzido. E a ocasião de entrada dele é justamente o conceito de qualidade ou de

referência a um fundamento. Podemos resumir estes pontos da seguinte forma:

Page 334: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

319

A ocasião da introdução da concepção de REPRESENTAÇÃO (referência a um

interpretante) é a concepção da (variedade da) SUBSTÂNCIA.

A ocasião da introdução da concepção de RELAÇÃO (referência a um correlato)

é a concepção de REPRESENTAÇÃO (referência a um interpretante).

A ocasião da introdução da concepção de QUALIDADE (referência a um

fundamento) é a concepção de RELAÇÃO (referência a um correlato).

A ocasião da introdução da concepção (da unidade) do SER é a concepção de

QUALIDADE (referência a um fundamento).

Cada novo conceito ou concepção que entra nesta linha argumentativa obviamente tem

uma ocasião (de entrada) diferente daquela primeira (que é a diversidade ou variedade

das impressões). Isto é equivalente a afirmar que apenas a concepção de representação

(embora esta envolva outras) é introduzida com a justificativa de lidar com a variedade

dos elementos da experiência. Todas os outros conceitos entraram no argumento com

justificativas diversas. Todas as outras concepções entraram como exigências de alguma

outra concepção que já teria entrado anteriormente. Por exemplo, a justificativa para

introduzir a concepção de relação (ou referência a um correlato) foi a presença da

concepção de representação (ou referência a um interpretante) e o fato desta última

pressupor a primeira. O mesmo ocorre com as demais concepções. A justificativa para

introduzir a concepção de qualidade (ou referência a um fundamento) foi a presença da

concepção de relação (ou referência a um correlato) e o fato desta última pressupor a

primeira. Por sua vez, a justificativa para introduzir a concepção de ser (e noção de

unidade que a acompanha) foi a presença da concepção de qualidade (ou referência a

um fundamento) e o fato desta última pressupor a primeira.

Esclarecida a ordem de entrada desses conceitos, enfatizemos novamente que é apenas o

primeiro conceito (o de representação) que é capaz de lidar diretamente com a

diversidade dos elementos da experiência (apenas ele surge neste "ambiente imediato").

Nenhum dos outros conceitos introduzidos, caso prescindirem deste conceito de

representação, conseguem explicar ou justificar a síntese (a unidade dada no conceito ou

concepção de ser). Resumamos a linha de argumentação para estabelecer as categorias

de acordo com este método de exposição: partimos da concepção de substância e

notamos que para concebê-la é imprescindível a concepção de referência a um

interpretante (categoria da representação). Além disso, notamos que concepção de

referência a um interpretante (categoria da representação) não pode ser prescindida da

concepção de referência a um correlato (categoria da relação) e esta não pode ser

prescindida da concepção de referência a um fundamento (categoria da qualidade). Esta

última concepção não pode, por sua vez, ser prescindida da concepção de ser. Portanto

para conceber substância é necessário introduzir a concepção de ser e todas as outras

concepções intermediárias: referência a um interpretante, a um correlato e a um

fundamento. Que haja alguma unidade é uma suposição levantada para explicar a

Page 335: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

320

concepção de substância. Na verdade, para que sejamos mais precisos, é necessário

especificar que a unidade (representada, dentro de uma proposição, pelo termo "ser") é

uma suposição levantada para explicar como a variedade ou diversidade subjacente à

concepção de substância pode ser reduzida, sintetizada. Em poucas palavras, o conceito

de ser é a hipótese primeira a ser lançada para que procuremos respostas para aquela

pergunta inicial: como são possíveis as sínteses? Nestas últimas páginas, com auxílio de

uma diligente leitura de Andre De Tienne (1989), esforçamo-nos para expor as

categorias da (nova) lista proposta por Peirce. Entretanto, o método por nós utilizado

para expô-las é muito diferente daquele método de exposição escolhido por Peirce no

artigo original (que está sob análise). Na verdade, para que novamente sejamos mais

precisos, o método peirceano é exatamente o inverso.

Page 336: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

321

10.3 Terceira parte da análise do ONLC: método de exposição

hipotético-desconstrutivo

No método que Peirce escolheu para expor sua (nova) lista de categorias, o ponto de

partida é o ponto de chegada do caminho recém apresentado: a unidade do ser. Tendo

como norte a variedade (dada no conceito de substância) e partindo da unidade (dada

no conceito de ser), qual seria o primeiro passo? Qual seria o primeiro conceito a ser

introduzido (neste novo caminho)? O primeiro ponto a ser notado é que, neste novo

caminho, é como se estivéssemos utilizando o método da prescindência invertido.

Qual concepção foi negada para que chegássemos à concepção de ser? Qual

concepção foi negada para que chegássemos à noção de unidade subjacente à

concepção de ser? A resposta é o conceito ou a concepção de qualidade (ou referência

a um fundamento). Reparemos que o conceito de qualidade só serve como resposta,

porque este conceito não pode ser mentalmente separado (prescindido) do conceito de

ser (cf. De Tienne, 1989, p. 404). Com a inversão (do método) da prescindência, pode-

se notar que a concepção de ser é "o que sobra" quando abstraímos a concepção de

qualidade, pois o termo ser designa justamente uma categoria sem determinações (sem

conteúdo cf. CP 1.548) . Assim, nesta ordem, o conceito de qualidade se segue do

conceito de ser.

Este raciocínio pode ser aplicado para se "derivar" as outras categorias. Nesta ordem,

da mesma forma que o conceito de qualidade se segue do conceito de ser (pois

somente aquele pode ser abstraído deste), o conceito de relação se segue do conceito

de qualidade. Neste caso, a pergunta é: qual concepção foi negada para que

chegássemos à concepção de qualidade? A resposta é a concepção de relação (ou

referência a um correlato). Notemos que, quando abstraímos (separamos) a noção de

relação (ou referência a um correlato), o que permanece é a concepção de qualidade.

Por exemplo, para que cheguemos à noção geral de vermelho (i.e., a qualidade

vermelho), devemos supor que haja algo como uma "vermelidão" que não se confunde

com o vermelho deste ou daquele objeto concreto. A suposição é que haja algo como

uma qualidade de vermelho, o aspecto do vermelho em si mesmo, sem nenhuma

relação com algo (concreto) que seja efetivamente vermelho. Quando se "desliga" a

cor vermelha de qualquer objeto (que seja atualmente) vermelho, i.e., quando se

"desliga" a cor vermelha de sua relação com os objetos vermelhos, chega-se à

concepção de vermelho como qualidade. Portanto, chega-se ao conceito de qualidade

ao se abstrair a concepção de relação.

E, de acordo com esta mesma lógica, perguntemo-nos: nesta ordem, como se chega ao

conceito de relação? Colocada de outro modo: qual concepção foi negada para que

chegássemos à concepção de relação? A resposta é a concepção de representação (ou

referência a um interpretante). Neste artigo ONLC, a noção de representação é

definida como uma referência a um terceiro elemento mediador (denominado

interpretante). Abstrair uma representação significa, portanto, abstrair a referência a

Page 337: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

322

este terceiro elemento. Numa representação, ao se retirar o terceiro elemento, fica-se

apenas com o primeiro elemento (aquele que representava) e o segundo elemento

(aquele que era representado). Com a saída do terceiro elemento, o que permanece é a

relação (entre representante e representado). Portanto, chega-se à concepção de

relação ao se abstrair a concepção de representação. Este ponto ficará mais claro

quando desenvolvermos (no próximo capítulo) uma análise específica do conceito de

interpretante.

Para finalizar, podemos fazer o mesmo tipo de pergunta e notar que a resposta nos

leva ao "último" conceito visto desta perspectiva que ora apresentamos. Qual

concepção foi negada para que chegássemos à concepção de representação? A

resposta é a concepção de substância. Recordemos que o termo "substância" serve

para designar "algo" sobre o qual se podem formular juízos (predicações). Substância

é aquilo que está presente (em geral). Porém, de acordo com o que vimos das teses

peirceanas na chamada série cognitiva, não se tem acesso ao conteúdo de um

pensamento no presente imediato, ou seja, para se conhecer o conteúdo de um

pensamento é necessário produzir outro pensamento que interprete o primeiro. Para

conhecermos isso que está presente diante da mente, é preciso que isso (que está

diante da mente) seja objeto de uma representação. Neste caso, se abstrairmos esse

isso (a substância), então ficamos com a representação (disso). Portanto, se

abstrairmos a concepção de substância, o que resta é a concepção de representação.

Resumamos estes pontos todos no seguinte esquema:

o SER é resultado da abstração da QUALIDADE

QUALIDADE é resultado da abstração da RELAÇÃO

RELAÇÃO é resultado da abstração da REPRESENTAÇÃO

REPRESENTAÇÃO é resultado da abstração da SUBSTÂNCIA.

Porém, estamos tratando deste novo caminho, desta linha argumentativa que parte do

conceito de ser e se dirige para o conceito de substância como se estivéssemos a

observando do ponto de vista do método anterior (cuja linha argumentativa parte da

concepção de substância para a de ser). Para que possamos observar o

desenvolvimento desta linha argumentativa desenvolvida neste sentido de uma forma

mais autônoma (sem tomar como referência aquela que foi exposta anteriormente) é

necessário que, ao invés de nos perguntarmos o que tivemos que abstrair (ou negar)

para chegar a determinado conceito (ou concepção), perguntemo-nos o seguinte: o que

temos que acrescentar para que reestabeleçamos a unidade do ponto de partida? O

método de exposição que Peirce escolheu no ONLC é uma espécie de desconstrução

da hipótese do ser (como explicação para as sínteses). Com a ferramenta de

prescindência, Peirce estabeleceu que, para haver alguma síntese da variedade da

Page 338: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

323

experiência, devemos supor, em última instância, a concepção de ser. Então, ele

começa sua exposição no ONLC pela hipótese de que a concepção de ser explica, em

última instância, como são possíveis as sínteses. Estabelecida esta hipótese, Peirce

passa a procurar quais seriam os ingredientes necessários para levantá-la.

No ONLC, a síntese é ponto de partida (e não ponto de chegada), é algo dado na

proposição. No método de exposição do ONLC, Peirce, de saída, afirma que o

conceito de ser é o responsável pela unidade dentro de uma proposição. E, como está

expresso no trecho a seguir, junto com o conceito de ser (que, neste método de

exposição, é dado na proposição) é introduzido o conceito de qualidade (que parece

ser dado na impressão [CP 1.551]).

O conceito de ser surge na formação de uma proposição. Uma proposição

sempre possui, além de um termo para expressar a substância, outro para

expressar a qualidade daquela substância; e a função deste conceito de ser é

unir a qualidade à substância. Qualidade, então, no seu sentido mais amplo,

é o primeiro conceito [introduzido] para que passemos de ser a substância.

(CP 1.551)219

De acordo com as palavras de Peirce, o conceito de ser serve justamente para unir

substância e qualidade dentro de uma proposição. Notemos também que o conceito de

qualidade é uma pura abstração e, por isso, não se confunde de forma alguma com o

conceito de substância. Ora, mas se estes dois conceitos não se confundem, então

“ainda” não há propriamente síntese. Assim, com esta introdução ainda não

conseguimos reestabelecer a unidade primordial, isto é, a unidade do ponto de partida

(o conceito ou concepção de ser). Quando é introduzida alguma concepção que

represente um aumento da variedade e não uma redução à unidade (como ocorreu

neste primeiro passo), isto é sinal de que será preciso supor alguma outra

concepção220

. Podemos entender este ponto imaginando que a linha de

desenvolvimento do argumento exposto por Peirce está seguindo uma regra (ou algo

como um algoritmo):

219

No original: "The conception of being arises upon the formation of a proposition. A proposition

always has, besides a term to express the substance, another to express the quality of that substance; and

the function of the conception of being is to unite the quality to the substance. Quality, therefore, in its

very widest sense, is the first conception in order in passing from being to substance". 220

Em outras palavras, podemos notar que, para trazer a variedade à unidade, a concepção de qualidade

seria necessária, mas não seria de forma alguma suficiente. Que ela não seja suficiente (para trazer a

variedade à unidade) é fácil de notar, pois a qualidade (ou a referência a um fundamento) não se confunde

com a substância. O problema é que, para notar que tal conceito ou concepção é necessária (para trazer a

variedade à unidade), precisamos de pensar no caminho inverso. É apenas por conta da introdução da

concepção de representação (ou referência a um interpretante) que a concepção de qualidade se torna

necessária (porque esta não pode ser prescindida daquela). No sentido em que estamos nos movendo (do

Ser à substância) só conseguimos enxergar a insuficiência das concepções que são introduzidas. No

sentido anterior (da substância ao ser), só conseguíamos enxergar a necessidade de cada uma das

concepções que eram introduzidas.

Page 339: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

324

Nesta teoria, a introdução de uma concepção elementar acontece para:

1) reduzir a variedade da substância à unidade

ou

2) adicionar à substância outro conceito que possa reduzir a variedade da

substância à unidade.

Caso tenha ocorrido o segundo caso, a instrução é voltar e introduzir um novo

conceito até que se atinja o caso um ("quando o programa pode parar").

Não é difícil notar que a introdução do primeiro conceito (o de qualidade ou de

referência a um fundamento) falha em reduzir a variedade da substância à unidade. Por

este exato motivo, quando é introduzido este primeiro conceito, Peirce afirma que ele

adiciona um novo conceito ou concepção à substância. Este novo conceito ou

concepção adicionada é a de relação ou de referência a um correlato. De acordo com

Peirce,

A psicologia experimental estabeleceu o fato de que só podemos conhecer

uma qualidade por meio de contraste ou similaridade com outra qualidade.

Por contraste ou conformidade, algo faz referência a um correlato, caso este

termo possa ser utilizado num sentido mais amplo do que o usual.

(CP 1.552)221

Observemos que a ocasião de entrada da concepção de referência ao fundamento (ou

qualidade) é a brecha para a concepção de referência a um correlato (ou relação).

Porém, também esta segunda concepção introduzida falha em reduzir a variedade da

substância à unidade (ou seja, ela se encaixa naquele segundo caso da regra ou

algoritmo que apresentamos). Isto abre espaço para ser adicionada um terceiro conceito

ou concepção: a de representação ou de referência a um interpretante. Novamente, de

acordo com Peirce,

A ocasião de referência a um correlato é obviamente uma comparação. (...)

Toda referência a um correlato, então, adiciona à substância a concepção de

uma referência a um interpretante; e esta é, portanto, a próxima concepção na

passagem de ser a substância.

(CP 1.553)222

221

No original: "Empirical psychology has established the fact that we can know a quality only by means

of its contrast with or similarity to another. By contrast and agreement a thing is referred to a correlate, if

this term may be used in a wider sense than usual" (CP 1.552) 222

No original: "The occasion of reference to a correlate is obviously by comparison. (...)Every reference

to a correlate, then, conjoins to the substance the conception of a reference to an interpretant; and this is,

therefore, the next conception in order in passing from being to substance" (CP 1.553).

Page 340: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

325

Observemos que, desta vez, a ocasião de entrada da concepção de referência a um

correlato (ou relação) é a brecha para a concepção de referência a um interpretante (ou

representação).

Já este terceiro conceito ou concepção introduzida não adiciona uma nova (quarta)

concepção à substância como as duas anteriores, pois é justamente a referência ao

interpretante que é responsável por "unir diretamente a variedade da substância" (CP

1.554). De acordo com a regra (ou algoritmo) que apresentamos acima, este terceiro

conceito se encaixa no primeiro caso e, por este motivo, ele nos leva diretamente (i.e.,

sem passar por nenhum outro conceito) ao ponto final: o conceito de substância.

A referência a um interpretante se torna possível e justificada por aquilo que

torna possível e justifica a comparação. Mas esta é claramente a diversidade

de impressões. Se tivéssemos nada mais que uma impressão, não seria

necessário que ela fosse reduzida à unidade e não seria necessário, portanto,

que ela fosse pensada como referida a um interpretante; e [neste caso] a

concepção de referência a um interpretante não surgiria. Entretanto, como há

uma variedade de impressões, temos o sentimento de complicação ou

confusão, que nos leva a diferenciar uma impressão de outra e, uma vez que

foram diferenciadas, é necessário que elas sejam trazidas à unidade. Porém,

elas não são trazidas à unidade até que as concebamos juntas como sendo

nossas, isto é, até que nós as referenciemos a uma concepção que seja o

interpretante delas. Portanto, a referência a um interpretante surge mediante a

unificação de impressões diversas e, assim, ela não acrescenta uma

concepção à substância, como as outras duas referências fazem, mas ela

unifica diretamente a substância em si mesma. É, portanto, a última

concepção na passagem de ser a substância.

(CP 1.554)223

Apresentados os dois métodos de exposição das categorias no ONLC, façamos algumas

últimas observações. Tanto no método construtivo como no desconstrutivo, para se

supor que haja síntese da variedade proveniente das impressões, tem-se que recorrer aos

três conceitos intermediários (qualidade, relação e representação). Estes são as

categorias propriamente ditas que "fazem" a passagem do conceito de ser ao conceito de

substância. A tese defendida por Peirce é que estes são os três conceitos universais.

Comparemos este dois métodos por meio de esquemas (que apresentamos na próxima

página).

223

No original: "Reference to an interpretant is rendered possible and justified by that which renders

possible and justifies comparison. But that is clearly the diversity of impressions. If we had but one

impression, it would not require to be reduced to unity, and would therefore not need to be thought of as

referred to an interpretant, and the conception of reference to an interpretant would not arise. But since

there is a manifold of impressions, we have a feeling of complication or confusion, which leads us to

differentiate this impression from that, and then, having been differentiated, they require to be brought to

unity. Now they are not brought to unity until we conceive them together as being ours, that is, until we

refer them to a conception as their interpretant. Thus, the reference to an interpretant arises upon the

holding together of diverse impressions, and therefore it does not join a conception to the substance, as

the other two references do, but unites directly the manifold of the substance itself. It is, therefore, the last

conception in order in passing from being to substance". (CP 1.554)

Page 341: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

326

Método (hipotético) desconstrutivo

SER (Hipótese Inicial)

Introdução da concepção de referência a um fundamento

(QUALIDADE)

Justificativa: esta concepção (referência a um fundamento) seria dada

na própria impressão (cf. CP 1.551)

Introdução da concepção de referência a um correlato (RELAÇÃO)

Justificativa: a concepção anterior (referência ao fundamento) não é

suficiente para reduzir à unidade

Introdução da concepção de referência a um interpretante (REPRESENTAÇÃO)

Justificativa: a concepção anterior (referência ao correlato) não é suficiente para

reduzir à unidade.

SUBSTÂNCIA

Método (hipotético) construtivo

SUBSTÂNCIA

Introdução da concepção de referência a um interpretante (REPRESENTAÇÃO)

Justificativa: esta concepção (referência a um interpretante) é necessária para se

estabelecer a noção de síntese (ou de redução da variedade à unidade).

Introdução da concepção de referência a um correlato (RELAÇÃO)

Justificativa: esta concepção (referência a um correlato) é necessária para se

estabelecer a concepção anterior (referência a um interpretante).

Introdução da concepção de referência a um fundamento

(QUALIDADE)

Justificativa: esta concepção (referência a um fundamento) é

necessária para se estabelecer a concepção anterior (referência a um

correlato).

SER

Page 342: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

327

10.4 Quarta parte da análise do ONLC: a síntese no contexto

argumentativo

Até este ponto, concentramo-nos basicamente no problema da síntese tal como foi

apresentado e tratado por Peirce no ONLC, a saber, dentro de um contexto

proposicional. De início, limitamo-nos a seguir a linha de raciocínio peirceana

elaborada para sustentar as três categorias e, posteriormente, com o intuito de explicitar

sentidos latentes no texto sob análise e também passagens e inferências implícitas no

argumento peirceano, procuramos apresentar também métodos alternativos de

exposição (destas categorias). Na quarta parte, pretendemos ampliar o foco da análise

que vem sendo desenvolvida neste capítulo e, assim, nos afastaremos um pouco da

linhas argumentativas do ONLC. A ideia, nesta última seção deste capítulo dedicado ao

ONLC, é acompanhar uma análise desenvolvida por Savan (1976) em sua introdução à

semiótica peirceana. De acordo com esta análise de Savan, a síntese é decorrente de um

processo de inferência, ela é o ponto de chegada de um argumento. Ao apresentar o

problema da síntese dentro de um contexto inferencial (ou argumentativo), esta análise

nos ajudará a enxergar de forma mais clara o motivo pelo qual a terceira concepção

universal introduzida no ONLC, a representação (ou a referência a um interpretante),

está associada à noção de mediação. Então, para que não sejamos acusados de plágio, já

alertamos que, durante as próximas páginas, vamos reproduzir em linhas gerais (com

alguns poucos acréscimos) a análise de Savan sobre o problema da síntese (no

pensamento de Peirce) por um motivo muito simples: julgamo-nos incapazes de fazer

melhor224

.

Há um fenômeno indubitável dentro do qual a síntese pode ser observada e

estudada na sua mais clara e pura forma, desembaraçada de acréscimos

irrelevantes e acidentais, a saber, a inferência lógica. A inferência conecta um

termo com outro, uma proposição com outra, um argumento com outro, e

esta conexão é tal que a passagem do antecedente para o consequente implica

em mudança e crescimento.

(...) Peirce acredita, então, que o estudo da inferência lógica irá resultar num

entendimento dos princípios básicos que estão por baixo de todas as formas

de sínteses e crescimento.

(Savan, 1976, p. 2)

A sugestão peirceana é que a síntese seja compreendida como um resultado de um

processo inferencial. Uma proposição sintética é justamente aquela na qual há uma

224

Deve-se enfatizar que o que torna possível esta abordagem de Savan é o fato de, dentro do pensamento

peirceano (no período posterior ao ano de 1865), podermos considerar que todas as relações relevantes

para a lógica são casos particulares de uma relação mais fundamental: a relação sígnica. Para Peirce, a

relação entre sujeito-predicado (numa proposição), a relação entre antecedente e consequente (num

condicional) e também a relação entre premissa-conclusão (numa inferência) são todas casos particulares

de relações sígnicas. Por este motivo podemos usar a inferência lógica como modelo interpretativo de um

processo sígnico.

Page 343: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

328

combinação (união) de elementos (um termo sujeito e um termo predicado) que antes

não estavam combinados225

. Diante disso, uma das perguntas mais imediatas seria:

como chegamos a uma proposição? Em que condições se torna possível uma síntese?

Ora, no caso das proposições, todas as condições para que ocorra uma síntese são

criadas por um processo inferencial, i.e., um argumento. Colocado de outro modo, se

alguém, durante algum tempo, sustenta a crença de que "baleias são azuis", então uma

pergunta a ser feita é: como tal pessoa teria chegado a estabelecer esta crença (de que

baleias seriam seres azuis)? Neste caso, é razoável afirmar que esta síntese é o ponto de

chegada de um processo inferencial. Após uma inferência, juntou-se a ideia que se tinha

de baleia com a ideia que se tinha de seres azuis. Para que enxerguemos como um

processo inferencial perfaz esta tarefa de sintetizar elementos (ideias, representações),

temos que observar a estrutura interna de uma proposição. Tomemos como exemplo a

proposição (a síntese) apresentada por David Savan (1976, p.2) em sua análise:

"Todos os pássaros na plantação de Jonas são pretos".

Numa famigerada análise sugerida pela gramática (ao menos de línguas indo-europeias)

e acatada por Aristóteles na teoria inaugural da ciência da Lógica (a silogística),

podemos notar que há nesta proposição alguns itens que merecem atenção de um lógico:

há um quantificador (universal), "todo"; há um sujeito, "os pássaros na plantação de

Jonas"; e há um predicado, "ser preto" (ou, posto de outra forma, "_____ é preto").

Fiquemos com estes dois últimos itens apenas: o termo sujeito e o termo predicado,

respectivamente, aquilo ao qual se atribui algo e aquilo que é atribuído.

Consideremos inicialmente226

que toda proposição tem uma estrutura de Sujeito e

Predicado, S é P. Quais seriam condições que tornaram possível esta síntese entre S e P?

Em primeiro lugar, deve-se pressupor que deve ter havido alguma situação em que S e P

estavam disponíveis, mas ainda não estavam unidos e, numa segunda situação, S e P

foram unidos (e este é o ponto que queremos enfatizar da análise) graças à presença de

um termo médio. Há, portanto, uma situação em que os dois termos (sujeito e

predicado) estão disponíveis para uma mente, isto é, tem-se em mente uma ideia acerca

225

Este é basicamente a mesma definição oferecida para este conceito quando tratamos da relação entre a

filosofia peirceana e a kantiana na primeira seção do segundo capítulo. 226

Peirce mais tarde reformulou grande parte de suas teses a partir de um novo aparato lógico que

chamava de "lógica dos relativos". De forma resumida, a novidade deste aparato consiste na introdução

do uso de quantificadores e variáveis ligadas na análise lógica, o que desemboca no que hoje entendemos

por lógica de primeira ordem. Estas inovações começaram a ser desenvolvidas num artigo de 1870

intitulado “Description of a Notation for the Logic of Relatives, Resulting from an Amplification of the

Conceptions of Boole's Calculus”. Porém, a lógica de primeira ordem peirceana só ganhou uma forma

definitiva num artigo de 1885 intitulado “On the Algebra of Logic: A Contribution to the Philosophy of

Notations.” Apesar do impacto considerável que estas inovações na análise lógica tiveram no

pensamento peirceano, algumas das linhas mais gerais de raciocínio desenvolvidas por Peirce no artigo

ONLC (do qual estamos nos ocupando) não dependam do aparato lógico utilizado. Em particular, a linha

de raciocínio que queremos focalizar (a saber, aquela que sustenta a necessidade em se reconhecer sempre

um fator de mediação numa síntese ou representação de qualquer tipo) pode ser concebida dentro dos

limites do aparato lógico fornecido pela silogística aristotélica.

Page 344: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

329

dos "pássaros na plantação de Jonas" e uma outra ideia de "cor preta" (certa noção de

"pretitude" [blackness]). E há uma segunda situação em que os dois termos são

unificados, isto é, as ideias acerca dos "pássaros na plantação de Jonas" e de "cor preta"

são fundidas dentro de um só molde: a proposição. A passagem da primeira destas

situações para a segunda é exatamente o que chamamos de síntese e esta passagem é

captada pelo que chamamos de inferência. Vejamos então esta operação de síntese que o

termo médio faz dentro de uma inferência. O exemplo a seguir é o mesmo utilizado por

Savan (1976, p. 2):

Premissa Maior --> M é P --> "Todos os corvos são pretos".

Premissa Menor --> S é M --> "Todos os pássaros na plantação de

Jonas são corvos".

Conclusão --> S é P --> "Todos os pássaros na plantação de Jonas são

pretos".

Façamos uma análise do que ocorre dentro desta estrutura argumentativa ou "dentro"

deste processo inferencial. O termo médio (neste caso, "corvos") que ocorre nas duas

premissas é o responsável por unir o termo sujeito da conclusão ("todos os pássaros na

plantação de Jonas") ao termo predicado da conclusão ("ser algo preto"). Esta noção de

mediação fará uma longa carreira dentro do pensamento peirceano. Este termo médio

age como uma ponte. Na metáfora utilizada por Savan (1976, p. 3), é como se o termo

médio M tivesse apresentado o termo S ao termo P. Ainda nos valendo da análise de

Savan, podemos enxergar a síntese como um processo de substituição que pode ser

compreendido sob duas perspectivas. Na primeira delas, podemos considerar que a

conclusão é derivada a partir do momento em que substituímos na premissa maior o M

pelo S e esta substituição é justificada pela premissa menor, pois, de acordo com esta,

todas as entidades que são S também são M. Numa segunda perspectiva, podemos

considerar que a conclusão é derivada a partir do momento em que substituímos na

premissa menor o M pelo P e esta substituição é justificada pela premissa maior, pois,

de acordo com esta, todos os M são P (isto é, P, neste caso, designa um caráter que

pertence a qualquer coisa que esteja subsumida no conjunto representado por M). Deve-

se destacar o porquê de o M ser uma espécie de mediador no estabelecimento da síntese

entre S e P. Note que, se por um lado, todo S é M (e isso seria a justificativa para a

substituição na primeira perspectiva apresentada), por outro lado, todo M é P(e isso

seria a justificativa para a substituição na segunda perspectiva apresentada). O termo

médio pode ser substituído tanto pelo S como pelo P dependendo sob qual perspectiva

pretendemos fazer a substituição. Nas próximas duas páginas, apresentamos de forma

esquemática as análises nas duas perspectivas acima mencionadas.

Page 345: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

330

--> Primeira perspectiva (substituição na premissa maior do M pelo S)

- Linha inicial: M é P.

- Regra de substituição: substituir o M pelo S.

- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o

termo M é uma proposição que o termo M pode ser trocado pelo termo S, pois a

premissa menor garante que todo S é M, ou seja, algo que é verdade a respeito de

M também deve ser verdadeiro a respeito de S (mas, o inverso não é

necessariamente verdade).

- Linha final: S é P

--> Exemplo de substituição sob a primeira perspectiva

- Linha inicial: "Todos os corvos são pretos".

- Regra de substituição: substituir o termo "corvos" pelo termo "os pássaros na

plantação de Jonas".

- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o

termo "corvos" é uma proposição que o termo "corvos" pode ser trocado pelo

termo "os pássaros na plantação de Jonas", pois a premissa menor garante que

todos "os pássaros na plantação de Jonas" são "corvos", ou seja, algo que é

verdade a respeito de "corvos" também deve ser verdadeiro a respeito de "os

pássaros na plantação de Jonas" (mas, o inverso não é necessariamente verdade).

Por exemplo, se afirmamos que é verdade que todo "corvo é onívoro", então deve

ser verdade que todos"os pássaros na plantação de Jonas são onívoros". Por outro

lado, se afirmamos que é verdade que todos "os pássaros na plantação de Jonas

são aves que sofreram uma mutação (por conta do agrotóxico utilizado por

Jonas)", disso não se segue necessariamente que todos "corvos são aves que

sofreram uma mutação (por conta do agrotóxico utilizado por Jonas). Pode ser o

caso em que haja corvos (nalgum canto do mundo) que não tenham tido contato

com o agrotóxico (utilizado por Jonas) e, por isso, não seria verdadeiro afirmar

que estes "corvos são aves que sofreram uma mutação (por conta do agrotóxico

utilizado por Jonas)". Ou seja, aquela primeira proposição ("os pássaros na

plantação de Jonas são aves que sofreram uma mutação") pode ser verdadeira sem

que isso acarrete na verdade da segunda proposição ("corvos são aves que

sofreram uma mutação").

- Linha final: "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".

Page 346: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

331

--> Segunda perspectiva (substituição na premissa menor o M pelo P)

- Linha inicial: S é M.

- Regra de substituição: substituir o M pelo P.

- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o

termo M é uma proposição que o termo M pode ser trocado pelo termo P, pois a

premissa maior garante que todo M é P ou seja, algo que é verdade a respeito de P

também deve ser verdadeiro a respeito de M (mas, o inverso não é

necessariamente verdade).

- Linha final: S é P

--> Exemplo de substituição sob a segunda perspectiva

- Linha inicial: "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".

- Regra de substituição: substituir o termo "corvos" pelo termo "_____ é algo

preto" .

- Justificativa para a regra de substituição: Toda proposição em que ocorre o

termo "corvos" é uma proposição que o termo "corvos" pode ser trocado pelo

termo "_____ é algo preto", pois a premissa maior garante que "todos os corvos

são pretos", ou seja, algo que é verdade a respeito de "seres ou objetos que são

pretos" também deve ser verdadeiro a respeito de "corvos" (mas, o inverso não é

necessariamente verdade). Por exemplo, se afirmamos que é verdade que todos

"os seres ou objetos pretos são temidos pelo povo Peuyahe", então deve ser

verdade que todos os "corvos são temidos pelo povo Peuyahe". Por outro lado, se

afirmamos que é verdade que todos " corvos são passeriformes", disso não se

segue necessariamente que todos os "seres ou objetos pretos são passeriformes".

Pode ser o caso em que haja seres ou objetos que são pretos e, no entanto, não

sejam passeriformes. Por exemplo, buracos negros são pretos e não são

passeriformes. Ou seja, aquela primeira proposição ("os corvos são

passeriformes") pode ser verdadeira sem que isso acarrete na verdade da segunda

proposição ("os seres ou objetos pretos são passeriformes").

- Linha final: "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".

Podemos começar a enxergar neste ponto da análise quais são as condições que tornam

possível uma síntese entre S e P. Chamemos a atenção do leitor, pois irão reaparecer

nesta análise voltada para um contexto inferencial que ora apresentamos aquelas

mesmos conceito ou concepções universais que Peirce "derivou" (dentro de um

contexto proposicional) no ONLC.

Page 347: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

332

A primeira das condições (que tornam possível a síntese entre S e P) é que haja algo que

represente uma qualidade ou um caráter (neste caso é o termo P [predicado]: "_____ é

algo preto"). A segunda destas condições é que haja algo que represente uma entidade

ou uma multiplicidade de entidades (neste caso é o termo S [sujeito]: "os pássaros na

plantação de Jonas"). A terceira condição é que haja algo que represente o que P

representa ou o que S representa ou o que ambos representam (neste caso é o termo M

[termo médio]: "corvos"). Este termo médio (que representa o que P representa ou o que

S representa ou o que ambos representam) pode ser entendido como algo que também

representa uma espécie de regra que, como vimos, possa justificar a substituição de M

por S ou P. É esta regra que nos permite substituir "corvos" por "os pássaros na

plantação de Jonas" ou por "_____ é algo preto". Deve-se chamar atenção para um

ponto com relação ao qual muito insistimos, sobretudo, nos primeiros capítulos e que

recebe ênfase especial nesta análise de Savan: o modo como Peirce encontrou dentro do

processo inferencial o modelo para estudar o problema central da (sua) filosofia: a

possibilidade de síntese. Antes de continuarmos, repassemos a análise deste processo

inferencial dentro de uma outra linguagem: a conjuntista.

Peguemos os termos envolvidos nesta inferência (os termos sujeito, predicado e também

o termo médio) e estabeleçamos que cada um deles designa um conjunto. Por exemplo,

o termo (sujeito) "os pássaros na plantação de Jonas" (que ocorre na premissa menor)

pode ser traduzido como o conjunto de todas as coisas (seres ou objetos) que são "os

pássaros na plantação de Jonas". Por motivos óbvios designaremos este conjunto pela

letra S. Outro exemplo, o termo (predicado) "_____ são pretos" (que ocorre na premissa

maior) pode ser traduzido como o conjunto de todas as coisas que "são pretas". Este

conjunto será designado pela letra P. E, por último, o termo (médio) "corvos" (que

ocorre nas duas premissas) pode ser traduzido pelo conjunto de todas as coisas (seres ou

objetos) que são "corvos".

Com os termos traduzidos, vejamos como ficam as proposições em linguagem

conjuntista. Se quisermos afirmar que determinado pássaro que conhecemos (e que se

chama César) é um corvo basta que arranjemos uma letra para designar tal indivíduo,

por exemplo, a letra c. Neste caso, afirmar que "o pássaro chamado César é um corvo"

é o mesmo que afirmar que "o pássaro chamado César pertence ao conjunto de todas as

coisas que são corvos". Nos símbolos usuais para teoria de conjuntos: "c P".

Entretanto, se quisermos expressar uma afirmação acerca de dois conjuntos, por

exemplo, (os conjuntos dos corvos e das coisas pretas), podemos recorrer a um

condicional. Afirmar que todos "os corvos são pretos" é o mesmo que afirmar que "se

uma coisa pertence ao conjunto das coisas que são corvos, então essa mesma coisa

pertence ao conjunto das coisas que são pretas". Com o auxílio de uma variável (que

nos permite dispensar o uso recorrente da palavra "coisa"), esta mesma frase traduzida

em linguagem conjuntista ficaria: se x M, então x P. Outra maneira de afirmar isto

é estabelecer que o conjunto M está contido no conjunto P, ou seja, qualquer coisa que

pertencer ao conjunto M também pertence ao conjunto P. Em símbolos: "M P".

Page 348: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

333

Premissa Maior --> M é P --> "Todos os corvos são pretos".

--> "se x M, então x P" ou "M P"

Premissa Menor --> S é M --> "Todos os pássaros na plantação de Jonas são corvos".

--> "se x S, então x M" ou "S M"

Conclusão --> S é P --> "Todos os pássaros na plantação de Jonas são pretos".

--> "se x S, então x P" ou "S P"

Nota-se ,então, que a relação (de síntese) entre os conjuntos S e P foi mediada pelo

conjunto M. O que Peirce está afirmando é que, para chegarmos à síntese "S P",

temos que "passar" por "S M" e "M P". Para a afirmarmos que o S está dentro do P,

precisaríamos afirmar (antes) que o S está dentro de um M e este M está dentro de um

P. O M torna possível a síntese entre S e P porque o M é um termo (neste modelo com

qual trabalhamos agora, M é um conjunto) que está, por um lado, relacionado ao S e

está, por outro lado, relacionado ao P. Se, por um lado, o conjunto M contém o conjunto

S, por outro lado, o M está contido no conjunto P. O M é um conjunto que tem um

papel mediador porque é justamente ele que (por estar entre S e P) nos permite inferir

que o S está dentro do P.

Entretanto, e este é o ponto essencial (de acordo com nossa tese), notemos que este

procedimento de encontrar um termo médio, encontrar um elemento mediador pode ser

aplicado sobre o resultado obtido anteriormente. Este é um procedimento que pode ser

aplicado sobre si mesmo. E, como veremos durantes as detalhadas análises que vão se

seguir nos próximos capítulos, é exatamente esta aplicação sobre si mesmo que cria a

sequência infinita de signos/interpretantes dentro da semiótica. Visualmente, dentro de

diagramas emprestado de uma linguagem conjuntista, esta sequência infinita de

signos/interpretantes poderia ser representada da seguinte forma:

Page 349: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

334

Esta é um dos modos de se apresentar visualmente a caracterização recursiva da relação

de representação que está dentro do conceito peirceano de signo. A produção de novas

representações mediadoras, i.e., novos interpretantes, é infinita.

Page 350: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

335

CAPÍTULO 11

Análise da definição de interpretante dentro do

texto "Sobre uma nova lista de categorias"

(ONLC)

No capítulo anterior, apresentamos uma análise da estrutura do artigo "Sobre uma nova

lista de categorias" (que abreviamos pelas iniciais do título no idioma original: ONLC)

com o objetivo de exibir os conceitos básicos (categorias) que vão constituir os tijolos

de construção de todas as teorias elaborados por Peirce ao longo de sua carreira,

inclusive aquelas teorias que compõem a série cognitiva (cuja primeira parte analisamos

do quarto ao nono capítulo). Como vimos, é no ONLC que Peirce constrói o seu

próprio sistema de categorias com o intuito de responder o que considera o problema

maior da filosofia: como são possíveis as sínteses ou os raciocínios ampliativos? A

solução teórica de Peirce é que a síntese resulta de um processo de representação, ou

seja, o que torna possível a síntese é uma ação sígnica. De acordo com a análise

realizada no capítulo anterior, o elemento interno ao conceito peirceano de signo

responsável pela síntese é o interpretante. Assim, o objetivo deste décimo primeiro

capítulo é apresentar uma análise detalhada do conceito de interpretante conforme a

definição oferecida no ONLC para que possamos explicitar a caracterização recursiva

da relação de representação presente dentro do conceito peirceano de signo. Conforme

exposto no nono capítulo, é esta caracterização recursiva que torna possível o

estabelecimento do que denominamos de teses elementares da semiótica peirceana:

"Não há primeiro signo num processo interpretativo" (Tese_1 da semiótica) e "Não há

último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da semiótica). Estas teses

elementares são indispensáveis para que a solução teórica de Peirce funcione, pois elas

garantem que a teoria inferencial ou sígnica da cognição elaborada (sobretudo) no

primeiro artigo da série cognitiva (QFCM) seja estabelecida sem se recorrer ao conceito

de intuição, de uma cognição originária, fundante.

Como vimos no primeiro capítulo, a primeira vez que utiliza o termo "interpretante" é

em março de 1866 (W1; 347), numa anotação a respeito das partes que compõem um

argumento. Junto com esta primeira ocorrência, Peirce não ofereceu definição alguma

do que entendia, à época, por interpretante. Alguns meses mais tarde, na sétima das

palestras do Lowell Institute, em Boston, pode-se notar que Peirce já utiliza o termo

“interpretante” (W1, 465 [1866]) para designar aquele elemento que é resultado de um

processo de representação. A diferença fundamental entre esta definição incipiente do

termo e aquela oferecida no ONLC (e que analisaremos a seguir) é o conceito de

interpretante neste caso está fora da estrutura triádica, típica do pensamento peirceano

Page 351: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

336

(principalmente, a partir do ONLC). A semelhança entre estas duas definições é que,

ainda que o conceito de interpretante esteja dentro de uma estrutura diádica, ele já está

definido com a função de substituição ("surrogate"). O trecho em questão é o seguinte:

O processo de seleção de um equivalente para um termo é a identificação de

dois termos anteriormente diversos. De fato, isto é um processo de nutrição

pelo qual esses termos adquirem toda a vida e vigor e graças ao qual esses

mesmos termos exibem uma energia quase criativa. Cada uma dessas da

equivalências é a explicação do que está no fundo do termo primário eles

são substitutos, são intérpretes do primeiro termo. Eles são corpos novos,

animados pela mesma alma. Denomino-os de interpretantes do termo. E a

quantidade desses interpretantes, denomino de informação ou implicação do

termo.

(Lowell Lecture VII ─ W1, 464-5 [1866])227

Neste trecho, o interpretante é entendido como um segundo termo que se apresenta

como equivalente a um primeiro termo. Não é preciso muito esforço para notar que a

estrutura desta definição de interpretante é diádica. Como veremos, dentro do modelo

triádico de signo que encontramos no ONLC, o modo como se desenvolve o processo

de representação é consideravelmente mais complicado. Porém, este aumento de

complexidade é uma exigência interna do projeto filosófico de Peirce. Aliás, nosso

objetivo nestes capítulos finais é demonstrar para o leitor como a introdução do terceiro

elemento da concepção peirceana de signo (o interpretante) é uma condição necessária

para sustentação de todo projeto filosófico desenvolvido no ONLC e na série cognitiva.

A solução teórica de Peirce para o problema das sínteses depende do conceito de

interpretante, para sermos mais precisos, depende, inclusive, do modo como tal conceito

foi definido. Portanto, a ideia deste décimo segundo capítulo é fechar o foco de nossas

análises num parágrafo específico dentro do ONLC: aquele em que pela primeira vez

Peirce define o conceito de interpretante dentro de um modelo triádico de signo.

227

No original: "The process of getting an equivalent for a term, is an identification of two terms

previously diverse. It is, in fact, the process of nutrition of terms by which they get all their life and vigor

and by which they put forth an energy almost creative. Each of these equivalents is the explication of

what there is wrapt in the primary – they are the surrogates, the interpreters of the original term. They are

new bodies, animated by the same soul. I call them the interpretants of the term. And the quantity of these

interpretants, I term the information or implication of the term".

Page 352: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

337

11.1 A primeira definição de Interpretante dentro do modelo

triádico de signo

O parágrafo dentro do ONLC ao qual nos referimos no texto introdutório deste capítulo

é o seguinte:

A ocasião de referência a um correlato é obviamente por comparação. Este ato

não tem sido suficientemente estudado pelos psicólogos, e, portanto, será

necessário aduzir alguns exemplos para mostrar no que consiste tal ato.

Suponha que queiramos comparar duas letras p e b. Nós podemos imaginar que

uma delas seja invertida [e rotacionada] tendo como eixo a linha de escrita

e,depois, colocada sobre a outra letra para, finalmente, tornar-se transparente

para que se possa ver através dela. Dessa maneira, formaremos uma nova

imagem que medeia entre as imagens das duas letras, enquanto ela representa

uma delas como sendo (quando invertida) a semelhança da outra. Suponha,

então, que pensemos num assassino como alguém que está em determinada

relação com uma pessoa assassinada. Neste caso, concebemos o ato de

assassinato, e é nesta concepção que é representado que, correspondente a todo

assassino (bem como a todo assassinato), deve haver uma pessoa assassinada.

Dessa maneira, recorremos novamente a uma representação mediadora que

representa o relato como algo que está para um correlato com o qual a própria

representação mediadora está em relação. Novamente, suponha que olhemos a

palavra homme num dicionário da língua francesa. Neste caso, encontraremos

diante desta palavra homme a palavra homem, que, localizada naquele lugar,

representa homme como algo que representa a mesma criatura bípede que a

própria palavra homem representa. Por uma contínua acumulação de exemplos,

pode-se notar que toda comparação, além da coisa relacionada, o fundamento e

o correlato, requer também uma representação mediadora que representa o

relato como uma representação do mesmo correlato que esta representação

mediadora (ela mesma) representa. Esta representação mediadora pode ser

denominada de interpretante, pois ela cumpre o papel de um intérprete, ou seja,

o papel de alguém que diz que um estrangeiro diz a mesma coisa que ele

mesmo (intérprete) diz. O termo representação deve ser entendido aqui num

sentido lato, que pode ser melhor explicado por exemplos do que por definição.

Neste sentido, uma palavra representa alguma coisa para a concepção na mente

do ouvinte, um retrato representa a pessoa retratada para a cognição de

reconhecimento, um catavento representa a direção do vento para a concepção

daquele que o entende, um advogado representa seu cliente para o juiz e o júri

que ele influencia.

(CP 1.553)228

228

No original: "The occasion of reference to a correlate is obviously by comparison. This act has not

been sufficiently studied by the psychologists, and it will, therefore, be necessary to adduce some

examples to show in what it consists. Suppose we wish to compare the letters p and b. We may imagine

one of them to be turned over on the line of writing as an axis, then laid upon the other, and finally to

become transparent so that the other can be seen through it. In this way we shall form a new image which

mediates between the images of the two letters, inasmuch as it represents one of them to be (when turned

over) the likeness of the other. Again, suppose we think of a murderer as being in relation to a murdered

person; in this case we conceive the act of the murder, and in this conception it is represented that

Page 353: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

338

Neste longo trecho transcrito acima, o interpretante nos é apresentado como o terceiro

termo de uma relação triádica na qual os outros dois termos são denominados por Peirce

de relato e correlato Peirce denomina de relato o primeiro termo (elemento) dentro do

signo e denomina de correlato o segundo termo (cf. Brunning, 1980, p.118). Assim

localizado, o interpretante é definido em função dos outros termos da relação triádica.

Isolemos, então, esta primeira definição de interpretante (dentro de um modelo triádico

de signo).

Definição n° 1 de Interpretante (CP 1.553) --> o interpretante é uma

representação mediadora que representa o relato como uma representação do

mesmo correlato que esta representação mediadora (ela mesma) representa.

Neste trecho do ONLC, Peirce opera por indução. Ele apresenta uma série de exemplos

de atos de comparação entre dois elementos quaisquer em que, em cada um destes atos,

se faz presente uma espécie de terceiro termo ou terceiro elemento, e este terceiro

elemento é apresentado, então, como aquilo que torna possível a comparação.

Fornecidos alguns os casos, Peirce parte para uma generalização: "por uma contínua

acumulação de exemplos, pode-se notar que toda comparação" requer também uma

representação mediadora, i.e., o interpretante.

Antes de passarmos para a análise de cada um dos três exemplos (fornecidos por

Peirce), refinemos esta concepção de interpretante para que possamos enxergar a

estrutura desta proposição. Para isto, devemos substituir os termos que nela ocorrem por

variáveis. Os termos a serem substituídos são justamente os três elementos envolvidos,

de acordo com a exposição de Peirce, em toda e qualquer comparação: o relato,

correlato e a representação mediadora. No esquema a seguir, substituímos cada um

desses termos pelas variáveis X, Y e Z.

Estrutura da definição n° 1 de Interpretante --> Um interpretante é "um Z que

representa um X como uma representação do mesmo Y que o Z representa"

corresponding to every murderer (as well as to every murder) there is a murdered person; and thus we

resort again to a mediating representation which represents the relate as standing for a correlate with

which the mediating representation is itself in relation. Again, suppose we look up the word homme in a

French dictionary; we shall find opposite to it the word man, which, so placed, represents homme as

representing the same two-legged creature which man itself represents. By a further accumulation of

instances, it would be found that every comparison requires, besides the related thing, the ground, and the

correlate, also a mediating representation which represents the relate to be a representation of the same

correlate which this mediating representation itself represents. Such a mediating representation may be

termed an interpretant, because it fulfills the office of an interpreter, who says that a foreigner says the

same thing which he himself says. The term representation is here to be understood in a very extended

sense, which can be explained by instances better than by a definition. In this sense, a word represents a

thing to the conception in the mind of the hearer, a portrait represents the person for whom it is intended

to the conception of recognition, a weathercock represents the direction of the wind to the conception of

him who understands it, a barrister represents his client to the judge and jury whom he influences".

Page 354: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

339

Na próxima seção, ao analisarmos cada um dos exemplos fornecidos neste parágrafo,

pretendemos tornar claro que a estrutura (a forma abstrata) do conceito interpretante

(acima exposta) é a mesma em cada um dos casos.

Page 355: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

340

11.2 Análise dos exemplos que acompanham a primeira definição

de Interpretante dentro do modelo triádico de signo

Nas próximas três subseções desta segunda seção do décimo primeiro capítulo,

desenvolveremos uma análise de cada um dos exemplos fornecidos por Peirce no

parágrafo que está sob exame. Ao final de cada análise, apresentaremos um conjunto de

noções gerais que podem ser derivadas de cada um dos exemplos.

Page 356: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

341

11.2.1 - O primeiro exemplo

Suponha que queiramos comparar duas letras p e b. Nós podemos imaginar

que uma delas seja invertida [e rotacionada] tendo como eixo a linha de

escrita e,depois, colocada sobre a outra letra para, finalmente, tornar-se

transparente para que se possa ver através dela. Dessa maneira, formaremos

uma nova imagem que medeia entre as imagens das duas letras, enquanto ela

representa uma delas como sendo (quando invertida) a semelhança da outra.

(CP 1.553)229

No primeiro exemplo, suponhamos que uma pessoa esteja comparando a letra p com a

letra b. Para fazer tal comparação, seria necessário, segundo Peirce, que a mente desta

pessoa recorresse a um terceiro elemento, que seria uma espécie de representação

mediadora ou interpretante. A pessoa tem em mente, então, uma imagem da letra p e

uma imagem da letra b. Para comparar estas duas imagens, entraria em cena uma

terceira imagem. No exemplo, esta terceira imagem é justamente o resultado de um

certo procedimento que torna possível, para uma mente, a comparação entre (a imagem

de) uma letra e (a imagem da) outra. Vejamos passo por passo este procedimento.

Em primeiro lugar, devemos escolher uma dentre as duas letras que serão comparadas.

Escolhamos a letra p. Em segundo lugar, devemos inverter esta letra escolhida, ou seja,

é como se observássemos sua imagem no espelho. Em terceiro lugar, seria feita uma

sobreposição desta letra escolhida e invertida com a outra letra. Neste terceiro passo,

devemos pegar a letra p invertida e sobrepô-la a letra b. Em quarto lugar, devemos

tornar transparente a letra escolhida, invertida e sobreposta (à outra). Portanto, neste

quarto passo, devemos tornar transparente o p invertido que tínhamos colocado sobre o

b. Ao tornar a letra p (modificada de acordo com todos os passos anteriores)

transparente poderemos notar que ela é semelhante a letra b. Elas possuem a mesma

"forma". Ora, aquilo que resulta de todo esse procedimento é uma nova imagem e é

justamente esta imagem que torna possível a comparação. O resultado do procedimento

é a imagem do p invertido, sobreposto (ao b) e tornado transparente (para que se

enxergue, através dele, o b).

229

No original: "Suppose we wish to compare the letters p and b. We may imagine one of them to be

turned over on the line of writing as an axis, then laid upon the other, and finally to become transparent so

that the other can be seen through it. In this way we shall form a new image which mediates between the

images of the two letters, inasmuch as it represents one of them to be (when turned over) the likeness of

the other."

Page 357: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

342

Neste exemplo, Peirce defende que, para que alguém possa comparar duas imagens,

seria necessário recorrer a uma terceira imagem que serviria à mente desta pessoa como

uma espécie de "ponte" para o ato de comparação. É necessário deixar claro que essa

afirmação é muito diferente de sustentar que duas coisas quaisquer apenas seriam

semelhantes na presença de uma terceira coisa que as tornassem semelhantes. Duas

coisas podem ser efetivamente semelhantes (uma nuvem e um hipopótamo, por

exemplo) sem que ninguém ou nenhuma mente nunca pare para notar tal semelhança.

Neste caso, não haveria a ocasião para que surgisse aquele terceiro elemento, isto é, o

fator mediador entre (a imagem de) a nuvem e (a imagem de) o hipopótamo. Portanto, o

fato de algo ser parecido com alguma outra coisa (ou mesmo a possibilidade de algo ser

parecido com qualquer coisa) é independente230

deste terceiro elemento. Na verdade,

este terceiro elemento só parece emergir quando a semelhança em questão passa a ser

notada por uma mente (responsável pelo ato de comparação). Por este exato motivo,

toda a vez que vai definir este terceiro elemento (o tal interpretante), Peirce se refere a

ele como uma representação. Vejamos este ponto mais detidamente, pois esta é a

primeira noção geral acerca do conceito de interpretante que vamos retirar destes

exemplos. A pergunta que devemos nos fazer é a seguinte: por qual motivo Peirce

denomina este terceiro elemento de representação mediadora?

Ao tentarmos comparar as duas letras, devemos, de acordo com o exemplo, conceber

uma terceira imagem (que seria resultado de todo aquele procedimento descrito). Então,

notamos que esta terceira imagem tem justamente o papel de representar (para a mente

que compara) a imagem de uma letra como semelhante à imagem de outra letra. No

exemplo fornecido, a terceira imagem surge (na mente daquele que se submete à tarefa

de comparar as [imagens das] duas letras) com a função de representar a semelhança de

uma a letra p com relação à letra b. Neste ponto da análise, abrem-se dois caminhos

interpretativos: o terceiro elemento (o interpretante) tem como objeto de sua

230

Esta independência aparece da seguinte forma no texto: "a referência a um interpretante não

prescindida da referência a um correlato; mas a última pode ser prescindida da primeira" (CP 1.554

[1867]). No original: "Reference to an interpretant cannot be prescinded from reference to a correlate; but

the latter can be prescinded from the former".

Page 358: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

343

representação a relação de semelhança propriamente dita ou ele teria como objeto de

sua representação o primeiro elemento como algo semelhante ao segundo elemento? A

pergunta neste caso é: o interpretante representa a própria relação entre a (imagem da)

letra p e a (imagem da) letra b ou o interpretante representa a (imagem da) letra p como

algo que é semelhante à (imagem da) letra b. A interpretação que vamos sustentar nesta

tese é a relativa à segunda destas alternativas. Entretanto, não vamos argumentar a favor

deste interpretação neste ponto, pois isto extrapolaria os limites da análise que

pretendemos desenvolver dos três exemplos fornecidos no CP 1.553. Voltemos,

portanto, à análise.

A terceira imagem (deste primeiro exemplo) representa a semelhança de uma com

relação à outra, porque ela, de certa forma, é o resultado de um certo procedimento

(determinada transformação) que tem por intuito justamente mostrar as semelhanças

entre as duas coisas comparadas. Portanto, já notamos que este terceiro elemento é uma

representação, porém por que ele foi classificado como uma representação mediadora?

Pois o terceiro elemento representa (para a mente que compara) o primeiro elemento

como algo que está numa relação de semelhança com o segundo elemento e, ao mesmo

tempo, este terceiro elemento representa (também para mente que compara) o segundo

elemento como algo que está numa relação de semelhança com o primeiro elemento.

Este terceiro elemento é não só uma representação (para uma mente), mas uma

representação cujo papel é de mediação. Reparemos que o papel da terceira imagem

neste exemplo é justamente colocar as outras duas imagens em relação (de semelhança,

no caso).

Desta forma, a terceira imagem (que é, neste exemplo, concebida como uma

representação que medeia entre as imagens das duas outras letras) se encaixa

perfeitamente naquele molde abstrato que estamos considerando como definição (n°1)

de interpretante. Senão, vejamos

.

Os elementos do primeiro exemplo encaixados na estrutura da definição n° 1

de Interpretante --> Neste caso o interpretante seria "uma terceira imagem que

representa a primeira imagem (a do p) como algo que está numa relação (de

semelhança) com a segunda imagem (a do b) que a terceira imagem representa"

Reparemos que a terceira imagem não representa a primeira imagem (a do p) como tal.

Porém, a terceira imagem representa a primeira imagem sob um aspecto. A terceira

imagem representa a primeira imagem apenas enquanto esta é semelhante à segunda

imagem. Simplifiquemos trocando as expressões relativas às imagens pelas constantes

p, b e p' (respectivamente para a imagem da letra p, a imagem da letra b e imagem da

letra p modificada).

Page 359: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

344

Neste caso o interpretante seria "um p' que representa o p como algo que está

numa relação (de semelhança) com o b que p' também representa (como algo está

numa relação [de semelhança] com p )"

ou equivalentemente

Neste caso o interpretante seria "um p' que representa o p como algo que está

numa relação (de semelhança) com o b que é também representado pelo p' (como

algo está numa relação [de semelhança] com p )"

Repare que o p' (que é o p modificado por aqueles procedimentos descritos acima) não

representa o p enquanto tal. Mas, o p' representa o p como algo que está numa relação

de semelhança com b. O p' apenas representa o p na medida em que este é algo que está

numa relação de semelhança com b.

Desta análise, podemos derivar, no mínimo, três noções acerca do conceito de

interpretante. Em primeiro lugar, o conceito de interpretante é classificado como uma

representação, ou seja, ele é algo da natureza de uma representação. Em segundo lugar,

o interpretante é um caso particular de representação, pois ele é definido como uma

representação cujo papel numa comparação é o de fazer uma mediação entre as "coisas"

comparadas. Estas duas primeiras noções são apresentadas de forma explícita na própria

definição inaugural de interpretante e não é necessário efetivamente derivá-las. Já a

terceira noção não aparece nominalmente na definição com a qual estamos trabalhando,

mas também não é necessário muito esforço para entrevê-la neste primeiro exemplo.

Além de ser uma representação mediadora, podemos depreender deste primeiro

exemplo que o interpretante entra em cena como resultado de um procedimento, de uma

transformação, da aplicação de uma regra (dada num passo a passo). Portanto, o

conceito de interpretante está também associado à noção de processo. A seguir, as três

noções gerais de que tratamos acima:

Noções gerais obtidas no primeiro exemplo

NG 1.1 - O interpretante é algo da natureza de uma representação.

NG 1.2 - O interpretante é um caso particular de representação.

NG 1.3 - O interpretante é produto de um tipo de regra.

Page 360: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

345

11.2.2 - O segundo exemplo

Suponha que pensemos num assassino como alguém que está em

determinada relação com uma pessoa assassinada. Neste caso, concebemos o

ato de assassinato, e é nesta concepção que é representado que,

correspondente a todo assassino (bem como a todo assassinato), deve haver

uma pessoa assassinada. Dessa maneira, recorremos novamente a uma

representação mediadora que representa o relato como algo que está para um

correlato com o qual a própria representação mediadora está em relação.

(CP 1.553)231

No segundo exemplo, Peirce afirma que, quando pensamos num assassino como uma

pessoa que está em determinada relação (de assassínio) com outra pessoa (aquela que

foi assassinada), não podemos deixar de conceber um terceiro elemento (que não se

confundiria com a pessoa que assassina, nem com a pessoa que é assassinada). Este

terceiro elemento cumpre um papel de representação mediadora (ou interpretante) e que,

neste caso, seria justamente a concepção do ato de assassinato. De acordo com Peirce, é

nesta concepção (do ato de assassinato) que está representada a ideia de que para cada

assassino (e também para cada assassinato) há uma pessoa assassinada.

Peirce não está de forma alguma afirmando que para haver uma relação de assassinato

teria que haver uma mente capaz de conceber as pessoas envolvidas no ato como termos

de uma relação abstrata de assassínio. A existência da relação (de assassinato ou

qualquer outra relação diádica) é independente da concepção desta relação (por uma

mente). Por exemplo, o fato de Caim ter matado Abel é independente de alguém

conceber que tenha havido, neste caso, uma relação tal que um deles é um assassino e

outro é a vítima. O que Peirce parece afirmar é que, a partir do momento em que

passamos a pensar numa pessoa como estando numa determinada relação com outra, ou

seja, a partir do instante que passamos a pensar em Caim como alguém que assassinou

outra pessoa (Abel), surge na nossa mente uma concepção que age como terceiro

elemento cuja função é representar para nossa mente aquela relação entre Caim e Abel

ou, entendido de outro modo, a função deste terceiro elemento seria representar para a

nossa mente (não a relação propriamente dita, mas) Caim como uma pessoa que está em

determinada relação com Abel. É esta concepção que "diz" para nossa mente que há um

assassino e uma vítima.

O interessante é notar que Peirce defende que a concepção do ato de assassinato (o

terceiro elemento) está numa posição tal dentro da tríade que seria ele o termo capaz de

"definir" para a mente que teve tal concepção (o terceiro elemento) os papéis dos outros

231

No original: "Again, suppose we think of a murderer as being in relation to a murdered person; in this

case we conceive the act of the murder, and in this conception it is represented that corresponding to

every murderer (as well as to every murder) there is a murdered person; and thus we resort again to a

mediating representation which represents the relate as standing for a correlate with which the mediating

representation is itself in relation".

Page 361: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

346

dois termos. A ideia é que o que "faz" de alguém um assassino (ou uma pessoa

assassinada) para a mente é justamente a posição dentro da relação tal como ela foi

representada. Entretanto, podemos colocar a mesma pergunta feita na análise do

exemplo anterior: por qual motivo Peirce denomina este terceiro elemento de

representação mediadora?

O terceiro elemento obviamente cumpre um papel de representação mediadora, pois ele

é uma concepção que surge com o objetivo de representar o primeiro elemento não em

si mesmo, mas de representar o primeiro elemento como algo que está numa relação

com o segundo elemento. Da mesma forma que o terceiro elemento do exemplo anterior

surgia para representar algo que estava numa relação (naquele caso, uma relação de

comparação ou semelhança entre duas [imagens de] letras), neste segundo exemplo, que

ora analisamos, o terceiro elemento também surge para representar algo que está numa

relação (neste caso, uma relação de assassínio entre duas pessoas). Esclarecido que

também neste caso o terceiro elemento tem um papel de representar e mediar,

posicionemos, então, os elementos envolvidos neste segundo exemplo no molde

abstrato que retiramos das definição n°1 de interpretante.

Os elementos do segundo exemplo encaixados na estrutura da definição n° 1

de Interpretante -->Neste caso o interpretante seria "a concepção do ato de

assassinato que representa a primeira pessoa (a que assassina) como algo que está

numa relação (de assassínio) com a segunda pessoa (a que é assassinada) que a

concepção do ato de assassinato também representa (como algo que está numa

relação [de assassínio] com a primeira pessoa [a que assassina])"

Se trocarmos os elementos provenientes deste segundo exemplo por algumas variáveis,

podemos facilitar bastante a visualização da forma deste enunciado e, assim, captar a

semelhança estrutural entre este exemplo e o anterior.

Neste caso o interpretante seria um "C que representa A como algo que está numa

relação (de assassínio) com B que C também representa (como algo está numa

relação [de assassínio] com A)"

ou equivalentemente

Neste caso o interpretante seria um "C que representa A como algo que está numa

relação (de assassínio) com B que também é representado por C (como algo está

numa relação [de assassínio] com A)"

Page 362: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

347

Reparemos que o C é o elemento (uma concepção) que representa A como algo

relacionado a B e, ao mesmo tempo, representa B como algo relacionado a A. Por isso,

neste exemplo, para a mente que "teve" tal concepção, esta vai operar como uma

mediação, ou seja, tal concepção será uma representação cujo papel será o de fazer uma

mediação entre os outros dois elementos relacionados (A e B).

Deste segundo exemplo fornecido por Peirce, podemos derivar mais algumas noções

acerca do papel e das propriedades do interpretante ou da representação mediadora.

Neste caso, o terceiro elemento surge em decorrência da concepção de uma relação

diádica qualquer, ou seja, ele surge em decorrência de uma representação que uma

mente faz de uma relação diádica qualquer. Supondo que haja uma relação diádica

qualquer, há de se enfatizar que o terceiro elemento surge como exigência não da

existência da relação entre os dois primeiros elementos, mas ele surge como uma

exigência da concepção ou da representação (da existência) da relação entre os dois

primeiros elementos. De certa forma, é pelo terceiro elemento que a relação entre os

dois primeiros é estabelecida para uma mente. É como se a relação entre A e B só

passasse a existir para uma mente depois da entrada em cena do terceiro elemento232

. A

seguir apresentamos as noções gerais obtidas a partir da análise desses dois primeiros

exemplos. Com relação às noções provenientes da análise do exemplo anterior, a

diferença desta lista de noções gerais está na segunda delas.

Noções gerais obtidas nos dois primeiros exemplos

NG 2.1 = NG 1.1.

NG 2.2 - O interpretante é uma representação mediadora produzida sobre uma

relação diádica (chamada de relação-base).

NG 2.3 - O interpretante é produto de um tipo de regra.

232

Este ponto foi discutido no capítulo anterior quando analisamos a teoria das categorias defendida no

ONLC. O que foi descrito neste parágrafo é justamente a ocasião de introdução da terceira categoria, a

representação, que é também definida como "referência a um interpretante". O trecho no ONLC em que

este ponto fica evidente é o seguinte: "A referência a um interpretante se torna possível e justificada por

aquilo que torna possível e justifica a comparação. Mas esta é claramente a diversidade de impressões. Se

tivéssemos nada mais que uma impressão, não seria necessário que ela fosse reduzida à unidade e não

seria necessário, portanto, que ela fosse pensada como referida a um interpretante; e [neste caso] a

concepção de referência a um interpretante não surgiria"(CP 1.554 [1867]). No original:"Reference to an

interpretant is rendered possible and justified by that which renders possible and justifies comparison. But

that is clearly the diversity of impressions. If we had but one impression, it would not require to be

reduced to unity, and would therefore not need to be thought of as referred to an interpretant, and the

conception of reference to an interpretant would not arise".

Page 363: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

348

11.2.3 - O terceiro exemplo

Suponha que olhemos a palavra homme num dicionário da língua francesa.

Neste caso, encontraremos diante desta palavra homme a palavra homem,

que, localizada naquele lugar, representa homme como algo que representa a

mesma criatura bípede que a própria palavra homem representa.

(CP 1.553)233

No terceiro exemplo, Peirce apresenta o terceiro elemento como se fosse o resultado de

um processo de tradução. Suponha que encontremos uma palavra em língua francesa cujo

significado desconheçamos e, por este motivo, tenhamos que recorrer a um dicionário. De

acordo com o descrito no trecho transcrito acima, quando olhamos, por exemplo, a

palavra (em língua francesa) “Homme” em um dicionário de francês-português234

devemos encontrar diante dela a palavra (em língua portuguesa) “homem”. Então, esta

palavra (“homem”) em língua portuguesa, ao estar naquela posição (naquele dicionário),

representa a palavra em língua francesa (“homme”) como algo que representa a mesma

criatura bípede (que a palavra em língua portuguesa representa). Portanto, a palavra

“homem” representa a palavra “homme” como algo que representa o mesmo objeto que

ela (a palavra “homem”) representa.

Nos dois exemplos anteriores, notamos que havia sempre um elemento que estava numa

relação (de semelhança ou de assassínio com outro elemento) e este primeiro elemento

era, então, representado, por um terceiro elemento, como algo que estava naquela relação.

O que pretendemos ressaltar é que, nesses dois primeiros exemplos, existia sempre uma

independência entre o fato de haver uma relação (entre os dois primeiros elementos) e o

terceiro elemento que representa. Repassemos este ponto. Nos exemplos anteriores,

começávamos por estabelecer uma relação entre a e b e, depois, afirmávamos que para se

pensar ou conceber o a como algo que está naquela relação com o b, precisaríamos criar

(conceber) um novo elemento: o c. Entretanto, nos dois casos anteriores, o fato de haver

uma relação entre a e b era independente de qualquer outro fator (inclusive era

independente de haver uma mente para "notar" essa relação). Ou seja, o que queremos

afirmar é que o fato de haver uma semelhança entre duas coisas quaisquer é independente

de uma mente ter de produzir um terceiro elemento que serviria para representar (para

esta mente) a semelhança entre aquelas duas coisas. Também o fato de uma primeira

pessoa ser a assassina de uma segunda pessoa era independente de uma mente ter de

produzir um terceiro elemento que serviria para representar (para esta mente) o fato de a

primeira ter assassinado a segunda. Tanto a relação de semelhança como o fato de ter

havido um assassinato são independentes da introdução de um terceiro elemento.

233

No original: "Again, suppose we look up the word homme in a French dictionary; we shall find

opposite to it the word man, which, so placed, represents homme as representing the same two-legged

creature which man itself represents". 234

Obviamente, no exemplo original desenvolvido por Peirce, a tradução é da língua francesa para a

inglesa.

Page 364: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

349

Neste terceiro exemplo, a relação de representação do primeiro elemento ("homme") para

o segundo elemento ("criatura bípede") não é de forma alguma independente da entrada

em cena de um terceiro elemento (que neste exemplo específico foi a palavra "homem").

Ao contrário dos dois anteriores, neste terceiro exemplo, é a própria relação entre o

primeiro e o segundo elementos que parece exigir a presença do terceiro elemento. Este

ponto é central para o entendimento do que vem a ser o signo, pois é neste "momento"

dentro do texto que Peirce começa a caracterizar o que ele entende por representação e,

como esperamos tornar paulatinamente claro, isto está longe da simplicidade exibida pela

noções mais comuns de representação.

A diferença fundamental (entre este terceiro exemplo e os anteriores) está no tipo de

relação com qual começamos, i.e., no tipo de relação entre os dois primeiros elementos.

Chamemos esta relação de relação-base. No primeiro exemplo fornecido por Peirce, a

relação-base era uma relação de semelhança (dada numa comparação) e os elementos

considerados como semelhantes eram duas letras (ou, mais exatamente, suas imagens).

No segundo exemplo, a relação-base era uma relação de assassínio e os elementos entre

os quais se dava tal relação eram duas pessoas, uma que assassinava e a outra que era

assassinada.

É necessário recordar que o terceiro elemento só emerge nos primeiros exemplos porque

Peirce não está se referindo ao fato de haver semelhança entre duas letras ou ao fato de

haver um assassinato, mas está se referindo a operações mentais: uma comparação (de

duas imagens) e uma concepção (de uma pessoa como estando numa determinada relação

com uma segunda pessoa). É a operação mental de comparar (para encontrar semelhanças

ou diferenças) ou de conceber (como um relato entra numa relação com seu correlato) que

traz o terceiro elemento (junto com seu papel de representação mediadora) neste dois

primeiros exemplos. Deve-se notar que, quando quer fazer necessária a recorrência ao

terceiro elemento, o filósofo norte-americano não se refere às relações-base propriamente

ditas, mas ao modo como, no momento em que uma mente vai conceber um elemento

como algo que está na relação (base) com o outro, torna-se necessária a entrada em cena

de um terceiro elemento. Por este exato motivo, Peirce começa estrategicamente cada um

dos dois primeiros exemplos com referências diretas aos tais "atos mentais": no primeiro

exemplo, "suponha que queiramos comparar as letras p e b"235

; e, no segundo exemplo,

"suponha que pensemos num assassino como alguém que está em determinada relação

com uma pessoa assassinada"236

.

Se antes fazia sentido afirmar que a relação-base poderia subsistir sem a referência

necessária ao terceiro elemento, no último exemplo fornecido por Peirce já não faz

sentido, pois, neste caso, a relação-base é (ela mesma) uma relação de representação. Isto

faz toda a diferença, pois é apenas neste terceiro exemplo que o conceito peirceano de

representação passa a ser definido como algo que exibe uma espécie de recorrência ou

recursividade. Apenas quando colocamos uma relação de representação como relação-

base e nos atentamos para o fato de que o terceiro termo estabelece também uma

235

"suppose we wish to compare the letters p and b." 236

"suppose we think of a murderer as being in relation to a murdered person".

Page 365: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

350

representação (que tem como papel interpretar a primeira relação) notamos que uma

representação (para ser concebida como tal) depende de um terceiro termo que é também

uma representação, ou seja, uma representação de dois termos quaisquer depende de uma

segunda representação (que representa justamente aquele primeiro termo como uma

representação do segundo termo da mesma forma que ele [terceiro termo] é representação

do segundo). Esta recursão fica clara apenas neste terceiro exemplo fornecido por Peirce,

porque, neste caso, a representação é apresentada justamente como aquela relação que

deve recorrer a uma (outra) representação. O resultado disso é uma concepção, uma

caracterização recursiva da relação de representação. Portanto, no caso da relação de

representação, a referência ao terceiro elemento ou termo é essencial. Uma representação

deve (por definição) exigir um interpretante (que nada mais é que uma outra

representação [mediadora] que serve para interpretá-la).

Se afirmamos que, para a representar b, é necessário um terceiro termo c para representar

a como representação de b (da mesma forma que c representa), então esta proposição está

afirmando que a noção de representação é, de algum modo, recursiva. Embora tenhamos

definido o conceito de recursão (na verdade, de "caracterização recursiva") já no texto

introdutório e também no nono capítulo desta tese, no próximo capítulo esta definição

será reapresentada para que possamos enfatizar algumas peculiaridades (muito relevantes)

da caracterização recursiva que Peirce nos apresenta do conceito de representação dentro

da semiótica (e de sua teoria da cognição). Por ora, é suficiente que notemos que a

recursão neste exemplo da palavra (em língua francesa) "homme" é clara. Apenas neste

terceiro exemplo estamos diante de, no mínimo, duas representações e, para notar a

recursão, basta que reparemos que uma relação de representação está envolvida na outra.

Para que algo represente uma coisa é necessário recorrer a uma representação deste "algo"

como representante daquela "coisa". Ora, mas se esta já é uma segunda representação,

então, para representar, precisamos recorrer a uma outra representação. No fundo, o que

Peirce estabelece com esta definição é que, para se "efetivar", toda representação exige,

de alguma forma, outra representação. Então, já neste artigo ONLC, uma representação

qualquer é apresentada como um certo procedimento que, por definição, deve recorrer a

uma outra representação. O papel da recursão dentro desta definição é criar a noção de

fluxo, a noção de passagem de uma representação à outra. É como se a natureza mesma

da representação fosse ser desenvolvida noutra representação. A recursividade é uma

propriedade que o conceito de representação vai legar para o conceito peirceano de signo.

Esta recursividade, dentro do conceito de representação (que, por sua vez, está alocado

dentro do conceito peirceano de signo), tem um papel fundamental na economia interna

da obra peirceana. O que temos defendido é que esta concepção de "representação como

fluxo" é uma exigência interna aos problemas filosóficos estabelecidos por Peirce no

início de sua carreira. Ao definir a relação de representação recursivamente e colocar esta

concepção no centro da definição de signo, Peirce estava criando um modelo de

funcionamento do signo que respondia à necessidade em se produzir uma teoria da

cognição que seria oferecida como uma alternativa àquelas teorias que recorrem à noção

de intuição (cf. capítulos 4 - 12).

Page 366: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

351

Coloquemos, então, os elementos deste terceiro exemplo fornecido por Peirce naquele

molde que já utilizamos nas análises dos exemplos anteriores.

Os elementos do terceiro exemplo encaixados na estrutura da definição n° 1 de

Interpretante --> Neste caso o interpretante seria "a palavra (em língua

portuguesa) 'homem' que representa a palavra (em língua francesa) 'homme' como

uma representação da mesma criatura bípede que a palavra (em língua portuguesa)

'homem' representa"

Quando Peirce define que o interpretante é ele mesmo uma representação (mediadora),

ele estabelece que o terceiro elemento de uma representação qualquer (por exemplo, entre

a palavra "homme" e "criatura bípede") deve ser considerado o primeiro elemento de nova

representação.

Se notarmos que este terceiro elemento "a palavra (em língua portuguesa) 'homem' " é,

por definição, também uma representação, então também ele deve exigir a presença de

um outro termo para fazer mediação, ou seja, esta palavra (exatamente como aquela que

ela interpreta) deve ser interpretada ou "traduzida" noutra palavra (ou qualquer outra coisa

que cumpra um papel de interpretante). Se a representação entre a e b "exige a presença"

do terceiro termo, c, e se este terceiro termo é (ele mesmo) uma representação de a (como

representante daquele b que ele mesmo [c] também representa), então deve haver um

novo termo d (o quarto na sequência) para ser o interpretante do termo c. Neste caso, o

argumento geral parece ser o seguinte: se uma representação entre dois elementos

quaisquer a e b deve necessariamente recorrer a um outro elemento c (o terceiro termo)

que serve para representar o elemento a como uma representação do mesmo elemento b

que c representa, então temos uma outra relação de representação. Se esta outra relação é

uma relação representação, então ela mesma recorrerá a um outro elemento d (um quarto

termo) que serve para representar o elemento c como representante do mesmo a

(relacionado ao b) que o d representa.

De tudo que foi exposto, não é difícil notar que é possível derivar deste terceiro exemplo

uma especificação muito importante da terceira noção geral da lista que viemos

apresentando ao final da análise de cada exemplo. Podemos derivar desta análise acima

apresentada que o terceiro elemento surge por ocasião de um processo recursivo.

Noções gerais obtidas nos três exemplos

NG 3.1 = NG 2.1 e NG 1.1.

NG 3.2 = NG 2.2

NG 3.3 - O interpretante é produto de uma regra recursiva.

Page 367: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

352

11.2.4 - Noções gerais obtidas a partir dos três exemplos

O sistema de numeração que utilizamos para nos referir às noções gerais serve para

sabermos de qual exemplo cada uma delas foi retirada. Por exemplo, a noção geral 3.3

("o interpretante é produto de uma regra recursiva") só se torna disponível a partir da

análise do terceiro exemplo. Antes disso, por exemplo, no primeiro exemplo, o que

tínhamos era apenas uma versão mais vaga dela: "o interpretante é produto de um tipo

de regra" (NG 1.3). Obviamente, algumas destas noções gerais são repetidas. Por

exemplo ao final da análise do terceiro exemplo, apresentamos uma lista cujo primeiro

item nos informa que "NG 3.1 = NG 2.1 e NG 1.1". Se deixarmos de lado estas

repetições e isolarmos apenas aquelas noções mais desenvolvidas que foram derivadas

das análises, então teremos uma nova lista com apenas três noções gerais.

Noções gerais obtidas nos três exemplos (versão decantada)

NG I (na numeração anterior: 1.1) - O interpretante é algo da natureza de uma representação.

NG II (na numeração anterior: 2.2) - O interpretante é uma representação mediadora

produzida sobre uma relação diádica (chamada de relação-base).

NG III (na numeração anterior: 3.3) - O interpretante é produto de uma regra recursiva.

Page 368: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

353

11.3 Excurso: alguns modelos de interpretação do conceito

peirceano de representação

Já ao final deste trecho que separamos para analisar neste capítulo (CP 1.553 [1867]),

Peirce se refere a um sentido lato de representação. Como vimos nas seções anteriores,

este sentido lato é justamente uma concepção da relação de representação que implique

num terceiro termo além do primeiro termo (representante) e do segundo termo

(representado). A esta altura, fica claro também que, ao se referir à relação de

representação com esta estrutura triádica, já estamos diante do conceito peirceano de

signo ou, ao menos, já temos as condições necessárias e suficientes para definir tal

conceito. A seguir transcrevemos este trecho final do fragmento do texto peirceano que

ora analisamos:

O termo representação deve ser entendido aqui num sentido lato, que pode

ser melhor explicado por exemplos do que por definição. Neste sentido, uma

palavra representa alguma coisa para a concepção na mente do ouvinte, um

retrato representa a pessoa retratada para a cognição de reconhecimento, um

catavento representa a direção do vento para a concepção daquele que o

entende, um advogado representa seu cliente para o juiz e o júri que ele

influencia.

(CP 1.553 [1867])

Como vimos nas análises que apresentamos seções anteriores deste capítulo, o conceito

de interpretante é formal e abstrato. O interpretante pode ser considerado tanto uma

"posição" (de mediação) dentro da tríade como um procedimento ou regra geral

responsável pela geração de novos signos a partir de signos anteriores. Na verdade, de

acordo com a interpretação que viemos defendendo, ainda que o interpretante seja

entendido como uma posição, deve ficar claro que aquele elemento que entra nesta

posição (i.e., um novo signo) é gerado por um procedimento ou regra geral, e esta é uma

espécie de regra de recursão aplicada infinitamente sempre sobre o último signo da

sequência. Desde as linhas imediatamente posteriores à definição inaugural do conceito

de interpretante (que apresentamos acima), Peirce se preocupou em fornecer vários

exemplos. Assim, pretendia tornar mais palpável o que se deve entender por esse

processo interpretativo, que em si mesmo seria apenas uma forma, um complexo de

relações ou um movimento bem abstrato que ocorreria graças à interação de entidades

igualmente abstratas (cujas definições seriam entrecruzadas). É de um desses exemplos

que nasce o que podemos considerar o primeiro modelo interpretativo para esta

estrutura ou processo formal cujo nome técnico na obra peirceana passou a ser (a partir

de 1906) “semiose”. O assim chamado modelo da tradução. Aliás, pelo que se pode

depreender do trecho transcrito a seguir, é justamente devida à noção de tradução

(subjacente a este modelo) a escolha do nome para o conceito de interpretante: a

"representação mediadora pode ser denominada de interpretante, pois ela cumpre o

Page 369: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

354

papel de um intérprete, ou seja, o papel de alguém que diz que um estrangeiro diz a

mesma coisa que ele mesmo (intérprete) diz" (CP 1.553).

Dentro deste modelo, podemos imaginar que cada uma das frases que o intérprete vá

enunciando como tradução das frases enunciadas pelo estrangeiro serve para o ouvinte

como um "interpretante".

Modelo da tradução para o conceito de interpretante --> Um interpretante é

"uma frase Z que garante que aquela frase X que foi falada (numa língua

estrangeira) tenha o mesmo significado Y que ela (a frase Z) tem (na língua do

ouvinte)".

Outros modelos para interpretar esta definição abstrata da semiose ou do processo

interpretativo (potencialmente infinito) foram desenvolvidos tanto por Peirce em outros

textos como por comentadores em estudos exegéticos. Um dos modelos mais notáveis é

aquele atribui a geração de interpretantes a uma incompletude e insuficiência inerentes a

qualquer representação. É como se invariavelmente houvesse um intervalo separando o

signo do objeto, o representante do representado. O interpretante seria justamente o

elemento responsável pela incessante tentativa de transposição do espaço que separa o

signo do objeto, que, ao longo do tempo, passaria a ser cada vez menor. No trecho

transposto a seguir, Santaella explica como funciona o signo dentro desse modelo da

impotência-incompletude.

A cadeia triádica ou semiose é a forma lógica de um processo que revela o

modo de ação envolvido na cooperação diferencial de três termos. O modo de

ação típico do signo é o do crescimento através da autogeração. O signo, por

sua própria constituição, está fadado a germinar, crescer, desenvolver-se num

interpretante (outro signo) que se desenvolverá em outro e assim

indefinidamente. Sua ação é a de crescer, desenvolvendo-se num outro signo

para o qual é transferido o facho da representação. Nessa medida, o

interpretante realiza o processo de interpretação, ao mesmo tempo em que

herda do signo o vínculo da representação. Herdando esse vínculo, o

interpretante gerará, por sua vez, um outro signo-interpretante que levará à

frente, numa corrente sem fim, o processo de crescimento.

Porém, cumpre, elucidar por que o signo está fadado a crescer. A

transferência do facho da representação para o interpretante significa que o

signo é sempre inelutavelmente incompleto em relação ao objeto que ele

representa.

(...) o signo está ligado ao objeto não em virtude de todos os aspectos do

objeto, porque, se assim fosse, ele seria o próprio objeto. Pois bem, ele é

signo justamente porque não pode ser o objeto. (...) Daí sua incompletude e

consequente impotência, sua tendência a se desenvolver num interpretante

onde busca se completar. Contudo, sendo o interpretante de natureza sígnica,

ele se manterá também em dívida para com o objeto, que será, em razão

Page 370: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

355

disso, aquilo que, por resistir em sua alteridade, determina a causação lógica

do desenrolar dos interpretantes.

Estão aí colocadas, na alteridade do objeto e na incompletude do signo, as

raízes das questões ontológicas e epistemológicas do universo sígnico. Para

Peirce, em última instância, o lugar lógico do objeto é o da "realidade", a qual

se torna manifesta através de signos. Mas ao mesmo tempo, a "realidade" é

aquilo que determina ou impulsiona a produção de signos.

(Santaella, 2000, p. 29 - 30)

Dentro deste modelo descrito por Santaella, o conceito de interpretante pode ser

expresso da seguinte forma:

Modelo da insuficiência-incompletude representativa para o conceito de

interpretante --> Um interpretante é "um Z que procura completar a função

representativa de um X que representa o mesmo Y que o Z representa também de

forma insuficiente.

Ora, como também o Z é insuficiente para completar a função representativa do X com

relação ao Y, então deve ser introduzido um quarto termo para tentar completar o

"serviço" de representação.

Um outro modelo possível para interpretar o conceito de interpretante e também de

processo de representação dentro da semiótica peirceana é proveniente da noção de

substituição237

. Suponha que um embaixador tenha sido convidado para ir a uma festa

cívica representando o seu país, mas, no dia do evento, quebrou a perna e, como não

poderia comparecer, enviou um substituto. Notemos que neste caso, o substituto não vai

à festa representar "a pessoa do embaixador", mas ele vai representar aquilo que o

embaixador representaria caso estivesse presente: o país. Esta é uma substituição

construída sobre outra substituição (anterior).

Modelo da substituição para o conceito de interpretante --> Um interpretante é

"um Z que SUBSTITUI o X como alguém que SUBSTITUI o mesmo Y que o Z

SUBSTITUI"

237

Na verdade, como já fizemos referência na terceira seção do terceiro capítulo, o próprio Peirce recorre

a este modelo numa passagem do segundo artigo da série cognitiva (cf. CP 5.279 [1868]). Nesta

passagem (que está dentro de uma seção sobre "ação mental"), Peirce afirma que, em termos gerais, um

processo inferencial (que é um caso particular de um processo sígnico) pode ser entendido como um

processo de substituição. Neste caso, a conclusão de uma inferência nada mais seria que o resultado de

um processo de substituição. Para Peirce, "a conclusão pode ser considerada como a proposição que

substituiu qualquer das premissas e a substituição é justificada pelo fato afirmado na outra premissa" (CP

5.279 [1868]).

Page 371: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

356

Outros modelos interpretativos para o conceito de interpretante e para o processo

interpretativo (ou representacional) têm aparecido na literatura especializada na obra de

Peirce. Alguns deles entrelaçados com conceitos e noções pertencentes a

desenvolvimentos muito recentes do pensamento científico. Por exemplo, modelos

inspirados em processos biológicos (cf. Merrell, 1996); em processos emergenciais (cf.

Queiroz e El-hani, 2007, p. 93-129); em processos cognitivos dentro do variado

quadro das ciências (contemporâneas) da cognição (cf. Queiroz, 2004, p. 180-188).

Outras interpretações, como a do astrofísico e semioticista Jorge Vieira (2007, p. 63)

aproximam os processos interpretativos descritos pela semiótica peirceana do que vem

sendo denominado de processos auto-organizativos.

Page 372: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

357

CAPÍTULO 12

Interpretante e recursividade

Esta interpretação que apresentamos do conceito de interpretante como um elemento

que é resultado de uma regra de recursão não é desprovida de lastro. A base para esta

interpretação deste conceito fundamental na semiótica peirceana está tanto nos textos

peirceanos (distribuída por dezenas de definições do conceito de signo) como em

interpretações de alguns dos mais importantes estudiosos da obra de Peirce.

Acreditamos que considerar o interpretante como uma espécie de regra (procedimento)

de recursão é uma ideia sugerida na própria estrutura triádica do signo e no modo como

Peirce define o papel de cada um dos elementos da tríade com relação aos demais.

Óbvio está que não encontraremos jamais evidência textual direta desta interpretação

que fazemos, uma vez que a noção de recursividade ainda não tinha sido desenvolvida

na época em que Peirce estava lançando os fundamentos de sua semiótica. Na verdade,

seria mais preciso afirmar que os lógicos e matemáticos do período tinham alguma

noção (ainda que vaga) do procedimento de recursividade. Prova disso é que o próprio

Peirce foi o responsável pela primeira definição recursiva (que se tem notícia) sem, no

entanto, ter estabelecido formalmente o que vem ser uma definição recursiva (cf.

Fraenkel, Bar-Hillel e Levy, 1973, p. 299). Portanto, é óbvio que Peirce nunca

apresentou uma definição declaradamente (formalmente) recursiva de signo ou de

interpretante, ele nunca afirmou de forma explícita que o interpretante era o resultado de

uma (regra de) recursão. Mas, se nos faltam evidências, diretas, imediatas, cartesianas,

claras e distintas, por outro lado, sobram sugestões gentilmente oferecidas por uma

perspectiva estrutural, formal da concepção de signo. A sugestão de que há uma

correlação entre interpretante e recursividade é retirada não de uma ou duas definições

de signo, mas de uma forma (ou estrutura) abstraída de diversas definições de signo

elaboradas em diversos momentos do desenvolvimento da semiótica peirceana. Já na

definição "inaugural" de interpretante (que acabamos de analisar) podemos enxergar a

recursividade em operação no interior da noção peirceana de signo. Infelizmente, para

esta tese, não poderemos desenvolver análises minuciosas das demais definições que

Peirce construiu de signo e também de interpretante.

Com relação a esta correlação entre recursividade e interpretante, além do ponto de

apoio interno ao texto peirceano, buscamos também referências externas, ou seja,

interpretações de alguns estudiosos que vão na mesma direção que nossa leitura. Uma

destas interpretações (que convergem com a nossa) é a de David Savan, para quem

interpretante é uma "instância (ou réplica) de uma regra de recursão". Na verdade,

Savan defende a tese de que a concepção de regra de recursão é um dos fatores que

caracterizam quase todas as definições peirceana de interpretante. Então, antes de nos

Page 373: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

358

voltarmos para as análises relativas à nossa própria tese a respeito da correlação entre

recursividade e interpretante, examinemos esta interpretação de Savan sobre o conceito

de interpretante, pois esta é uma ótima oportunidade para que esclareçamos alguns

pontos que permaneceram na penumbra238

na análise recém-terminada do texto

peirceano. A análise deste trecho dos escritos de Savan acerca do pensamento semiótico

de Peirce deve nos levar, na segunda seção deste capítulo, a uma definição do conceito

de representação (ou processo de representação) que torne clara a recursividade

implicada, graças à introdução do termo "interpretante" na teoria semiótica, em

qualquer processo de representação. Esta definição (que torne evidente como [para

Peirce] qualquer processo de representação é fruto de uma recursão) deve, na terceira

seção deste capítulo, nos levar de volta à questão das origens do processo cognitivo, o

que, por sua vez, deve nos deixar no ponto exato para que possamos, no próximo e

último capítulo, sustentar nossa tese acerca da correlação entre recursividade e

interpretante. Na verdade, é justamente a caracterização recursiva de representação

(dentro da concepção peirceana de signo) que introduz um terceiro elemento (o

interpretante) no processo de representação que acaba por ser responsável pelas

características peculiares da semiótica desenvolvida por Peirce. Bem no espírito

(recursivo) do conceito de interpretante de Peirce, passemos para uma interpretação da

interpretação de David Savan justamente sobre o conceito de interpretante.

238

Deixamos sem resposta a seguinte pergunta: o interpretante representa a própria relação entre o

primeiro e segundo termos ou o interpretante representa o primeiro termo como algo que está em

determinada relação com o segundo termo?

Page 374: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

359

12.1 Análise do trecho de Savan a respeito da relação entre

interpretante e recursividade

O trecho em que David Savan apresenta uma interpretação que converge com a linha

interpretativa que viemos desenvolvendo nesta tese está num artigo intitulado "resposta

a T. L. Short" (Savan, 1986). Como o próprio título sugere, neste artigo, Savan

apresenta algumas respostas a questionamentos levantados (e direcionados diretamente

a ele [Savan]) por um outro importante intérprete da obra peirceana, Thomas Short

(1986). Por sua vez, as questões levantadas por Short estão num artigo intitulado "Os

estudos peirceanos de David Savan" ("David Savan's Peirce Studies"). O pano-de-fundo

contra o qual ocorre este debate entre Short e Savan é a célebre discussão a respeito da

unidade da filosofia peirceana (cf. primeira seção do primeiro capítulo). A seguir

apresentamos três teses defendidas por Savan a respeito da semiótica peirceana às quais

Short se refere em seu texto. Enfatizemos que as duas primeiras são indispensáveis para

se estabelecer aquelas que foram denominadas (no nono capítulo) de teses fundamentais

da semiótica: "não há primeiro signo num processo interpretativo" (Tese_1 da

semiótica) e "não há último signo num processo interpretativo" (Tese_2 da semiótica).

Teses defendidas por Savan acerca da semiótica peirceana

Tese1 (defendida por Savan) --> "Todo interpretante é um signo" (Savan, 1976, p. 32)

Tese2 (defendida por Savan) --> "Todo signo é um interpretante" (Savan, 1976, p. 32)

Tese3 (defendida por Savan) --> "Sem interpretante não há signo, mas somente um signo

potencial ou virtual" (Savan, 1976, p. 3)

Apresentadas estas três teses que Savan defende acerca do conceito peirceano de

interpretante (e de signo), Short observa (juntamente com outros comentadores) que "a

primeira e a terceira proposições implicam um progressus infinito de signo/interpretantes,

enquanto a segunda proposição" (assumindo que para cada interpretante deve haver um

signo que o interpreta) "implica um regressus infinito de signo/interpretantes" (Short,

1986, p. 103). Short, então, considera que tanto estas teses como suas consequências estão

consonantes com a teoria da cognição que Peirce desenvolveu em dois artigos em 1868:

"de acordo com esta teoria não há primeira cognição e nem última cognição, embora uma

série qualquer de cognições, sendo contínua, pode começar e terminar num tempo finito"

(Short, 1986, p. 103). Neste ponto de seu texto, Short passa a argumentar a favor da tese

de que Peirce, numa fase madura de seu pensamento, teria abandonado estas três teses

que, para Savan, seriam essenciais à noção de signo (bem como a de interpretante). De

acordo com Short, Peirce teria sido obrigado a abandonar as teses que implicam os

processos interpretativos infinitos para escapar da "prisão semiótica na qual cada signo

Page 375: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

360

significa apenas aquilo que outro signo o faz significar" (Short, 1986, p. 103).

Infelizmente, nesta tese, não teremos uma oportunidade para apresentar e analisar de

forma mais detida os argumentos apresentados por Short para afirmar que Peirce teria

feito esta reformulação profunda em sua semiótica239

. Entretanto, o que também

pretendemos provar, ao final desta tese, é que as teses da série cognitiva e do ONLC que

implicam nos processos interpretativos infinitos não criam prisão semiótica alguma

(portanto, caso Peirce tenha de fato abandonado teses defendidas no início de sua carreira,

deve ter sido por outro motivo). Short revela nas entrelinhas de seus esmerados e

engenhosos escritos sobre Peirce uma irredutível inconformidade com o que chamou de

progressus e regressus infinito de signo/interpretantes (Short, 1986, p. 103). Há um

inegável tom de incredulidade, em geral, com relação à semiótica proposta ao final da

década de 1860 e, em particular, com relação à noção de processo interpretativo infinito

(cf. Short, 2007, p. 46, p. 51, p. 53 e, sobretudo, p. 57). Não culpamos Short. É natural

que o infinito assuste. Cause vertigem. Aliás, uma teoria que tenha como exigência

interna um progressus ou um regressus infinito parece estar destinada a ser considerada

uma teoria que nada tem a dizer sobre o fenômeno que pretende explicar. É como se ela

estivesse eternamente em vias de dizer, mas nunca dissesse coisa alguma. É, antes, uma

iniciação ao silêncio do que uma explicação. E este é um silêncio eterno. A reação de

Short é natural. Afinal, é mesmo atribuído ao silêncio dos espaços ou tempos infinitos um

certo apavoramento, talvez inescapável. Algumas das linhas de Short fazem eco com uma

das últimas e célebres frases do texto "O homem perante a Natureza" do filósofo Blaise

Pascal: "o silêncio eterno desses espaços me apavora". A diferença é que Pascal estava

inconformado não com a infinitude do cosmos, mas com a esmagadora finitude do

homem ante a vastidão cósmica.

Antes que entremos num debate com Short ou comecemos a "filosofar" sobre o infinito,

voltemos para o texto de Savan para que possamos "fechar" esta seção. Por ora, basta que

atentemos que é neste contexto acima descrito que David Savan apresenta a interpretação

(fundamental para nossa tese) que o terceiro elemento da semiose (o interpretante ou a

representação mediadora [nos termos do ONLC]) é a resultante de uma "regra de

recursão". E, como vimos na seção anterior, é justamente a noção de recursão a

responsável pela infinitude do processo interpretativo. Segundo Savan, "o primeiro e

terceiro correlatos trocam de papéis numa alternação infinita. Cada instância de

interpretante se torna um signo para a próxima instância de interpretante. Esta troca

contínua entre primeiro e terceiro correlatos, e entre signos e interpretantes, é essencial"

(Savan, 1986, p. 134) . Passemos, então, ao trecho específico em que Savan trata da

correlação entre a noção de recursividade e o conceito de interpretante:

No [artigo] "uma nova lista de categorias", já há um reconhecimento de que o

conceito de um terceiro está intimamente ligado ao conceito de interpretante.

"O conceito de terceiro é aquele de um objeto que está de tal forma relacionado

dois outros que estão relacionados ao outro da mesma forma que o terceiro está

239

Os argumentos de Short (a respeito desta suposta reformulação) estão desenvolvidos com muito mais

fôlego e com uma riqueza maior de detalhes numa obra recente sobre a teoria do signos peirceana (Short,

2007).

Page 376: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

361

relacionado ao outro" (1.556, 1867). Peirce converteu esta definição de terceiro

na definição de interpretante apenas acrescentando (no fundo) um ponto: ele

especificou que a relação triádica é uma relação de representação. Em escritos

mais tardios, Peirce notou que representação deveria ser definida em termos de

Terceiridade. Representação é, na verdade, um caso exemplar de Terceiridade,

porém Terceiridade é um conceito mais abrangente e básico. Não é nenhuma

surpresa que nalgumas definições de interpretante apresentadas em escritos

mais tardios, Peirce não mencione representação (eg. 1.541, 1903; 2.274, 1902;

2.242, 1903; W 192, 1905). O que é característico de quase todas as definições

de interpretante ou de Terceiridade como categoria elaboradas por Peirce é que

o terceiro relatum é uma instância, ou réplica, de uma regra de recursão.

(Savan, 1986, p. 133)

Como a concepção de "regra de recursão" à qual está se referindo nesta passagem é uma

noção muito comum na matemática e lógica contemporâneas, antes de detalhar sua

interpretação acerca do conceito peirceano de interpretante, Savan recorre a uma

definição de recursividade presente no livro "Mathematical logic" do filósofo e lógico

norte-americano W. Quine (que já apresentamos no texto introdutório): "qualquer noção

geral que é resolvida numa sequência infinita de casos especiais é dita recursivamente

caracterizada quando explicamos o primeiro caso e adicionamos uma regra geral que

descreva (i+1)-ésimo caso, para cada i, em termos dos primeiros i casos240

" (Quine, 1981,

p. 86). Vejamos, então, a explicação de Savan a respeito do interpretante:

(...) Peirce concebeu o terceiro correlato de uma relação triádica como algo que

corporifica uma regra de recursão. Se utilizarmos a notação de Peirce, isto pode

ser apresentado da seguinte forma: uma relação triádica é tal que, dado um

primeiro e um segundo correlato, A e B, eles estão de tal forma relacionados

numa relação diádica r que A r B só ocorre se houver um terceiro correlato C e

C r B. Claramente, se C r B é uma relação correspondendo a A r B, então deve

haver um quarto correlato D tal que D r B e assim por diante para um

sequência teoricamente infinita de casos.

(Savan, 1986, p. 133)

Pela descrição de Savan, Peirce concebeu o terceiro correlato de uma relação triádica

como algo que corporifica ou incorpora (embody) uma regra de recursão. Utilizando os

termos de Peirce, pode-se apresentar este ponto da seguinte forma: uma relação triádica é

tal que, dados o primeiro e segundo correlatos, A e B, eles estão de tal forma relacionados

pela relação diádica, r, que A r B ocorre somente se houver um terceiro correlato, C, tal

que C r B. Evidentemente, se C r B é uma relação que corresponde à relação A r B, então

deve haver um quarto correlato, D, tal que D r B, e assim por diante para uma sequência

teoricamente infinita de casos.

A pergunta a ser colocada é a seguinte: de onde sai o terceiro elemento (o interpretante)?

A resposta de Savan é que ele é produto de uma regra recursiva (Savan, 1986, p. 133).

240

No original: Any general notion which is resoluble into an infinite sequence of special cases is said to

be recursively characterized when we have explained the first case and added a general rule describing

the (i + l)st case, for each i, in terms of the first i cases (Quine, 1981, p. 86).

Page 377: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

362

Isso pode ser entendido dentro daquele modelo da incompletude-insuficiência

representativa que apresentamos no capítulo anterior. Neste modelo, a introdução de um

terceiro elemento pode ser entendida como decorrente da incapacidade de dois elementos

sozinhos conseguirem “completar” uma relação de representação. Este tipo de relação

sempre exige a terceira ponta. Vejamos. A tem a relação r com B. Mas, isto só ocorre se

houver um C que tenha essa mesma relação r com B. Repare que, para completar essa

primeira relação (A r B), é necessário que se estabeleça uma outra relação (C r B).

Entretanto, de acordo com a interpretação apresentada por Savan, a segunda relação (C r

B) deve corresponder à primeira relação (A r B)241

. Para que haja esta relação de

correspondência entre as relações “C r B” e “A r B”, deve haver um quarto elemento D.

Neste ponto, podemos notar que há uma bifurcação, há basicamente duas possibilidades

interpretativas para explicar o modo pelo qual o interpretante é introduzido. No primeiro

desses caminhos interpretativos, a forma pela qual o C é introduzido é a mesma pela qual

o D e todos os outros interpretantes são introduzidos. Na segunda interpretação, a forma

pela qual o C é introduzido é "ligeiramente" diferente da forma pela qual o D é

introduzido (e a forma de introdução do D seria, então, diferente da forma de introdução

do E e assim sucessivamente). Esta ligeira diferença estaria no fato de que, nesta segunda

interpretação, o D entra como um termo de uma relação cujo outro termo seria ele mesmo

uma relação. Portanto, neste caso, a produção de interpretantes envolveria relações de

ordem superior. Inicialmente, parece não pairar dúvida sobre o fato de Savan estar

considerando que, numa relação triádica (entre os elementos A, B e C), só ocorre a

relação diádica A r B se ocorrer outra relação diádica C r B (o que acaba por trazer C para

“dentro do jogo”).

Na primeira interpretação que podemos fazer, Savan afirmaria que o D entra em cena da

mesma forma que o C. Assim, o D seria chamado à baila porque a relação “C r B”

sofreria da mesma insuficiência que acomete a relação à qual ela corresponde, a relação

“A r B”. Neste caso, C desenvolve a relação r com B como uma espécie de exigência da

relação diádica (“inicial”) “A r B”. Ora, mas esta outra relação “C r B” (que foi exigida

por “A r B”) é também uma relação diádica. E por ser diádica (exatamente como a relação

à qual ela corresponde), a relação “C r B” exige a entrada em cena de um novo termo, a

saber, o termo D que vai formar uma outra relação “D r B” e que também vai sofrer da

mesma insuficiência daquela relação diádica inicial, “A r B”, exigindo, portanto a entrada

em cena de um quinto termo e assim por diante. Este ponto pode ser vista na seguinte

ilustração (que, aliás, foi retirada de uma outra obra de Savan [1976, p.34]):

241

Já vimos isto anteriormente naquele modelo da tradução. Esta passagem pode ser enxergada naquela

ideia de que o interpretante de um signo tem o papel de traduzi-lo. Naquele exemplo peirceano em que

uma pessoa procura no dicionário o significado (em sua língua natal) da palavra francesa para “homem”,

podemos considerar a palavra em língua francesa “homme” como signo (A), o conjunto ao qual a palavra

francesa faz referência como objeto (B) e, por último, a palavra em língua portuguesa “homme” como

interpretante (C). Neste caso, para que “homme” represente o “conjunto dos homens”, a palavra “homem”

é trazida à baila. Para que A represente B, o termo C é trazido à baila. E o papel de C é afirmar que diz a

respeito de B o mesmo que A (diz a respeito de B).

Page 378: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

363

Na segunda interpretação, Savan afirmaria que o D entra em cena de forma ligeiramente

diferente da forma pela qual o C entrou. De acordo com esta segunda interpretação, o D

seria chamado à baila porque a relação (de correspondência) entre a relação “C r B” e a

relação “A r B” sofreria da mesma insuficiência que a relação “A r B”. E isto nos levaria a

tratar de uma relação de segunda ordem, ou seja, uma relação cujos termos relacionados

são eles mesmos relações (na verdade, um dos termos). Chamemos esta relação de

correspondência entre “C r B” e “A r B” de relação r*. Então, podemos reescrevê-la da

seguinte forma: “(A r B) r*(C r B)”. Ora, mas (novamente) esta relação “(A r B) r*(C r

B)” é uma relação diádica. E por ser diádica (exatamente como as relações que são termos

seus, as relações “A r B” e “C r B”), a relação “(A r B) r*(C r B)” exige a entrada em cena

de um novo termo, a saber, o termo D que formaria, então, uma outra terceira relação “ (

D r* (C r B) ) r** ((A r B) r*(C r B)) ”.

Page 379: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

364

Repare que o novo termo dessa relação é o termo “D r* C r B” e o segundo termo é a

relação anterior “(A r B) r*(C r B)”.

Dentre as duas interpretações acima expostas, iremos optar pela primeira delas. A

justificativa é que na definição de interpretante que Peirce oferece no ONLC (e com a

qual estamos trabalhando) não há um sinal claro de que há, envolvido no processo

interpretativo, relações de ordem superior (i.e., relações sobre relações, relações cujos

termos são eles mesmos relações). Revisitemos tal definição.

Definição n° 1 de Interpretante (CP 1.553) --> o interpretante é uma

representação mediadora que representa o relato como uma representação do

mesmo correlato que esta representação mediadora (ela mesma) representa.

De acordo com Peirce, o interpretante é uma representação que "incide" sobre o

primeiro elemento (o relato) e esta "incidência" não se dá sobre o primeiro elemento de

forma isolada, mas sobre o primeiro elemento como um representante do segundo

elemento (o correlato). A função deste "como" pode ser melhor entendida se nos

voltarmos para a estrutura por trás desta definição de interpretante com a qual estamos

lidando.

Estrutura da definição n° 1 de Interpretante --> Um interpretante é "um Z que

representa um X como uma representação do mesmo Y que o Z representa"

Note que o terceiro termo (o Z) também representa o segundo (o Y), mas apenas na

medida em que o terceiro termo (o Z) representa o primeiro (o X) como um

representante do segundo (o Y). O interpretante é uma representação constituída sobre

uma representação anterior e é justamente nisto que consiste a recursividade. Porém, o

interpretante não representa a representação anterior, mas ele representa um dos termos

(ou elementos) da representação anterior como o representante do outro termo (da

representação anterior) da mesma forma (aliás) que ele (interpretante) representa.

Se abandonarmos por uns instantes estes formalismos, descermos na escala de

abstração, e lançarmos mão de um exemplo mais prosaico, talvez sejamos mais felizes

na tarefa de fazer com que o leitor entenda esse ponto. O modelo da substituição é uma

ótima maneira para descermos das abstracionices para o cotidiano. De acordo com este

modelo, o interpretante pode ser descrito da seguinte forma (como vimos no capítulo

anterior):

Page 380: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

365

Modelo da substituição para o conceito de interpretante --> Um interpretante é

"um Z que SUBSTITUI o X como alguém que SUBSTITUI o mesmo Y que o Z

SUBSTITUI"

Dessa vez, imaginemos um exemplo que exiba uma riqueza de detalhes maior do que

aquele do embaixador da perna quebrada. Suponha que, num universo paralelo (ou num

mundo possível ou quaisquer outra suposição similar), os Beatles tenham sido um

conjunto musical formado no alto sertão do Pernambuco e que tenham começado a

carreira tocando xaxado na gruta de Angico para entreter Lampião e seu bando. Certo

dia, durante um show que os Beatles teriam feito em comemoração as mais recentes

vitórias dos cangaceiros, uma volante da eficiente polícia alagoana (a mesma que, [ao

menos] neste universo paralelo, teria sido contratada pela CIA para matar Che Guevara

e o teria feito numa emboscada em selvas bolivianas) invade a gruta e dá início a uma

intensa troca de tiros com Lampião e seus homens. Paulo, que era o sanfoneiro da

banda, é baleado e falece dois dias depois. Como, nesta época, os Beatles já eram

famosos e movimentavam vultosas quantias de dinheiro, o empresário do grupo e os

donos da gravadora decidiram esconder dos tabloides a morte do sanfoneiro da banda e

arranjar um substituto. Encontraram, então, Billy Shears, um músico muito semelhante

fisicamente ao sanfoneiro morto, mas que tocava zabumba. Por este motivo, para que a

banda voltasse à turnê, o substituto teve que aprender a fingir que tocava sanfona para

poder fazer as vezes do sanfoneiro morto de forma convincente. Entretanto, Billy Shears

conseguiu cumprir a função de substituto de Paulo McCartney por apenas algumas

apresentações. Por conta de uma espécie de maldição, sabotagem da polícia alagoana

(ou qualquer coisa que o valha), durante a passagem de som que antecederia a mais um

show, o substituto pisa numa poça d'água formada no palco, toca num fio desencapado

do microfone e morre eletrocutado. Sempre precavido, Billy deixara uma gravação-

testamento na qual ordena que seu irmão gêmeo (alguns segundos mais novo) assuma o

seu lugar na banda caso algo acontecesse a ele.

Steve Shears, o irmão de Billy, escuta a gravação e aceita o novo emprego, mas pede

um tempo para que possa aprender a tocar zabumba como irmão que iria substituir.

Então, o empresário explica para Steve que ele não deve aprender a tocar zabumba. Ele

deve aprender a tocar (ou, ao menos, fingir que toca) sanfona, pois ele não iria substituir

seu irmão como um tocador de zabumba, mas ele iria substituir seu irmão no papel que

este tinha assumido como substituto do sanfoneiro original da banda (Paulo). Ou seja, o

empresário explicou para Steve que, embora seu irmão (Billy Shears) tocasse zabumba,

não era esse o papel dele na banda e, por este motivo, ele (Steve Shears) deveria tocar

sanfona. Steve não substituiria Billy enquanto tal, mas aquele substituiria este enquanto

este era substituto de Paulo. Quando Steve (o substituto do substituto) subisse no palco,

ele deveria se lembrar de imitar os trejeitos não de seu irmão (que era apenas o

substituto), mas do músico que este irmão estava substituindo (Paulo). Em outras

palavras, Steve Shears substituiria o seu irmão na banda, mas apenas enquanto seu

irmão era substituto de outra pessoa. Se esta cadeia de substituição continuasse,

Page 381: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

366

notaríamos que todos, de alguma forma, teriam como objeto de sua imitação a mesma

pessoa: Paulo. Dentro deste modelo, ao ser a pessoa substituída, Paulo assume o papel

do objeto (o segundo elemento ou segunda posição dentro do signo); por sua vez, Billy,

ao ser o (primeiro) substituto, assume o papel de signo (o primeiro elemento ou segunda

posição dentro do signo[com um todo]); e, por último, como substituto do substituto,

Steve entra no papel de interpretante (o terceiro elemento ou terceira posição dentro do

signo).

Modelo da substituição (exemplo dos Beatles do cangaço) --> O interpretante é

"STEVE que substitui BILLY como alguém que substitui a mesma pessoa

(PAULO) que ele (STEVE) substitui"

É claro que neste exemplo escolhemos (de saída) uma primeira substituição: aquela de

Billy com relação a Paulo. No caso do conceito peirceano de signo, não é possível que

seja encontrada uma primeira representação. Este exemplo serve apenas para fornecer

uma imagem (ainda que vaga) de como o processo de substituição poderia ser levado

suficientemente longe sem que se “perdesse” de vista o objeto primeiro da cadeia de

substituições (no caso, Paulo). Todo novo substituto que entra na série, deve se lembrar

que está substituindo o substituto anterior na função que este tinha de substituir Paulo.

Uma distinção relevante é que o processo sígnico, ao contrário deste exemplo da

substituição, tem que ser necessariamente infinito (ainda que, de acordo com Peirce, ele

convirja para algum ponto). Para que pudéssemos enxergar isto neste exemplo, seríamos

obrigados a pensar numa situação em que a substituição de Paulo, por algum motivo,

nunca chegasse a se concretizar e, por este motivo, seria sempre necessário introduzir na

série um novo substituto (para o substituto anterior). Formalmente, o que está ocorrendo

dentro do signo é que conceito de representação foi definido recursivamente sobre o

próprio conceito de representação (i.e., sobre uma representação anterior dada numa

sequência).

De acordo com nossa interpretação sobre a interpretação de Savan (a respeito do

conceito de interpretante), o terceiro elemento do signo entra em cena como uma

representação constituída sobre uma representação anterior (entre o primeiro e o

segundo elemento). É uma relação (de representação) constituída sobre uma relação-

base (que também é de representação). A equivalência ou correspondência de que trata a

definição de Savan parece ocorrer entre essas duas representações: a relação de

representação do primeiro para o segundo termo e a relação de representação do terceiro

para o segundo. Nos próprios termos de Savan, C r B seria uma relação correspondente

à relação A r B (Savan, 1986, p. 133). Mas se observarmos a definição de Peirce no

ONLC, a relação do terceiro elemento para o segundo "passa" pela referência ao

primeiro termo. Por exemplo, dentro do modelo da tradução, quando um intérprete

enuncia uma frase como parte de uma tradução do discurso de alguém, ele garante que

aquela frase que foi falada numa língua estrangeira tenha o mesmo significado que a

frase enunciada por ele (intérprete) tem na língua do ouvinte. Há obviamente uma

Page 382: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

367

relação de correspondência neste caso. A frase falada em língua estrangeira tem um

significado (relação A r B [primeiro e segundo elementos]). A frase falada na língua do

ouvinte também tem um significado (relação C r B [terceiro e segundo elementos]). A

correspondência está no fato de o intérprete garantir que o significado dessas duas frases

(dessas duas representações) é o mesmo. Elas se equivalem (com relação a este ponto).

Entretanto, por que afirmamos acima que, no caso, da definição de interpretante do

ONLC, a relação do terceiro elemento para o segundo (C r B) "passa" pela referência ao

primeiro termo ( A )? Porque o terceiro elemento não é uma representação do segundo

elemento por si só. O terceiro elemento é uma representação do segundo elemento que

só pode entrar como terceiro termo porque a relação dele com o segundo é dita

equivalente à relação entre o primeiro e o segundo. Caso contrário este modelo de signo

construído por Peirce não seria triádico, e as duas relações de representação (A r B e C r

B) estariam desligadas uma da outra. O interpretante é justamente a ideia de que as duas

representações estão imbricadas. Uma representação é constituída a partir da outra como

se uma fosse interpretação da outra. No modelo da tradução, notemos que a frase falada

na língua do ouvinte (i.e., a tradução do intérprete) é uma relação de representação

constituída sobre outra relação de representação (uma relação-base): a frase falada em

língua estrangeira (que, no exemplo, solicita por uma tradução para que possa ser

compreendida pelo ouvinte). É da equivalência entre estas duas representações

"imbricadas" dentro conceito peirceano de signo que trata o trecho de Savan acima

apresentado (e nesta seção analisado).

Estas observações todas nos levam a crer que o conceito de signo (ou processo de

significação), o conceito de representação (ou de processo de representação) e, em

geral, os principais conceitos envolvidos na semiótica peirceana, não são o que parecem

à primeira vista. Há algumas peculiaridades que são resultantes do tipo de problema

filosófico (epistemológico) que Peirce pretende responder com suas teorias. Deve ter

ficado claro que, quando Peirce constrói uma teoria (a semiótica) para explicar o

funcionamento de processos de representação ou significação, o filósofo não está

preocupado em descrever especificamente fenômenos linguísticos, mas fenômenos

cognitivos, e seu escopo teórico não é responder, em particular, como é possível que as

palavras (das linguagens naturais) representem algo, mas responder como um tipo de

processo representacional (justamente descrito em sua semiótica) tornam possíveis os

raciocínios sintéticos. Na próxima seção, apresentaremos, para cada um dos conceitos

básicos da semiótica peirceana, definições nas quais a noção de recursividade virá para

primeiro plano. Assim já estaremos a meio caminho de podermos demonstrar de um

modo mais formal que a caracterização recursiva do conceito de representação é uma

exigência interna do projeto filosófico do jovem Peirce. Aliás, comecemos este conjunto

de definições básicas por aquele que pode ser considerado o conceito central da

semiótica: a representação (ou o signo num sentido lato). Como ficará claro na próxima

seção e, sobretudo, no último capítulo, todos os conceitos básicos da semiótica (signo,

objeto e interpretante) fazem referência ao conceito de representação.

Page 383: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

368

12.2 A caracterização recursiva do conceito de representação na

semiótica peirceana

A terceira e última categoria apresentada no artigo "Sobre uma nova lista de

categorias" (ONLC) é a "representação" ou "referência a um interpretante". Ao final

do parágrafo (CP 1.553 [1867]) que analisamos no capítulo anterior, Peirce afirma

que, naquele texto, devemos entender o termo representação num sentido lato. Deste

alerta devemos depreender que o termo "representação", neste caso, designa não uma

relação binária simples entre algo que representa e algo que é representado, mas

designe também um terceiro elemento além do representante e do representado. Logo

após nos solicitar que entendamos este termo num sentido lato, Peirce afirma que isto

pode ser melhor explicado por exemplos (do que por definição). Notemos que em

cada um desses exemplos (que reapresentaremos a seguir), a representação é

entendida como algo que envolve três elementos (cada um dos quais "marcaremos"

com um número). O primeiro desses exemplos é o de uma palavra que é algo (1) que

"representa alguma coisa (2) para a concepção na mente do ouvinte (3)"; o segundo

exemplo é o de um retrato que é algo (1) que "representa a pessoa retratada (2) para a

cognição de reconhecimento (3)"; o terceiro exemplo é o de um catavento que é algo

(1) que "representa a direção do vento (2) para a concepção daquele que o entende

(3)"; o quarto e último exemplo é o de um advogado é alguém (1) que "representa seu

cliente (2) para o juiz e o júri que ele influencia (3)" (CP 1.553 [1867]).

O problema a ser enfrentado caso se opte por interpretar o termo "representação" neste

sentido lato é que dentro daquilo que estaríamos chamando de representação haveria

outras representações. Se denominamos representação, em sentido lato, a relação

triádica (a tríada) entre signo, objeto e interpretante, então parece que somos

obrigados a concordar que há uma relação de representação, num sentido estrito, entre

o signo e objeto (bem como há outra relação de representação, também no sentido

estrito, entre o interpretante e o signo e, por último, também há uma terceira relação

de representação [no mesmo sentido dessas anteriores] entre o interpretante e objeto) .

Então, o termo representação num sentido lato designaria, na verdade, um complexo

de relações representacionais (entendidas num sentido estrito). Assim, para evitar

confusão terminológica, deve-se sempre fazer a distinção entre representação no

sentido lato e este mesmo termo no sentido estrito. No primeiro deles o termo

"representação" designa a relação triádica com um todo, no último ele designa apenas

uma relação de representação parcial entre dois elementos dentro da tríada. Como

veremos, o termo "signo" enfrenta problemas terminológicos semelhantes. Por este

motivo, mais adiante, iremos optar, para nos referir à relação triádica como um todo,

pelo termo "processo de representação" ou "processo interpretativo".

Entendido o termo no sentido lato, conforme solicitado pelo próprio autor, há

basicamente duas grandes vias para se interpretar o que é uma representação dentro do

ONLC e da semiótica peirceana em geral. Na primeira dessa vias, podemos interpretar

Page 384: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

369

que o conceito de representação diga respeito a uma estrutura, uma entidade composta

de três elementos. Na segunda dessas vias, podemos interpretar que o conceito de

representação se refere a um processo ordenado com três elementos, a algo que se

desenvolve ao longo do tempo. Nossa análise do ONLC (e do parágrafo específico em

que o conceito de interpretante é introduzido) deve ter sido suficiente para convencer

o leitor de que devemos optar por uma "interpretação dinâmica" no lugar de uma

estática. Ao interpretarmos o conceito de representação dentro deste "registro

dinâmico", i.e., ao entendermos que este conceito tenta captar a ideia de um processo,

de algo que se desenvolve no tempo, podemos dar passos largos para evitar algumas

confusões terminológicas que sempre rondam as interpretações e comentários sobre os

escritos peirceanos a respeito de semiótica. Portanto, o conceito de representação

construído por Peirce neste artigo ONLC é aquele que entende uma representação

como "algo" (estrutura ou processo) que é definido como uma relação triádica cujos

elementos são: o signo, o objeto e o interpretante. Como vimos, uma representação

pode ser entendida como "algo" (estrutura ou processo) que pressupõe estes três

elementos.

O primeiro problema a ser enfrentado é definir, com base nos escritos de Peirce, um

termo para designar esta tríada como um todo. Com relação a este ponto, deve-se

enfatizar que há um debate entre os intérpretes da obra peirceana se o termo "signo"

designa a relação triádica inteira, i.e., a tríada como um todo, ou se este termo é

referente a apenas uma posição dentro da tríada: a primeira delas (cf. Nöth, 2011a, p.

453; Liszka, 1996, p. 111; Johansen, 1993, p. 62; Benedict, 1985, p. 266). De acordo

com a terminologia que viemos utilizando, a questão é se o termo "signo" designaria o

conjunto com os três elementos (signo [num sentido restrito], objeto e interpretante)

ou designaria apenas o primeiro elemento do conjunto. Segundo Nöth (2011a, p. 453),

"o termo signo tem [apenas] este sentido mais restrito e nunca serviu, em todos os

escritos de Peirce, como nome para a tríada como um todo". Ora, o termo mais

adequado que encontramos para designar a relação triádica como um todo (a tríada) é

a expressão "processo de representação" ou "processo interpretativo" (embora

variantes sejam possíveis: processo sígnico, por exemplo). Por este motivo, passemos

a utilizar, a partir desse ponto, o termo signo para designar apenas a primeira posição

ou o primeiro elemento dentro do (que passamos a denominar de) processo

interpretativo242

.

242

De fato o termo que Peirce utilizou para designar a primeira posição do processo representativo no

ONLC foi representamen. Entretanto, ao longo do tempo, nem ele mesmo seguiu esta definição e mais

tarde, abandonou este termo.

Page 385: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

370

O primeiro e principal ponto a ser percebido é que, dentro dos limites da semiótica

peirceana, não é possível definir o conceito de representação ou de "processo de

representação" sem fazer referência àqueles três elementos: o signo, o objeto e o

interpretante. A marca distintiva do conceito peirceano de representação é a

impossibilidade de se tratá-lo como uma relação diádica. Se insistirmos em entender o

conceito de representação como uma relação diádica, então, ao menos dentro da

semiótica peirceana, somo obrigados a reconhecer que esta é uma representação parcial

(incompleta ou insuficiente de acordo com o modelo apresentado por Santaella [2000, p.

29 - 30] acima citado). Se resolvermos interpretar o termo representação naquele

sentido estrito (conforme explicado no início deste parágrafo), então somos obrigados a

reconhecer que toda representação (assim entendida) pressupõe uma referência a uma

representação anterior. Toda representação (assim entendida) estaria "imbricada" noutra

representação. Nisto consiste exatamente a tal caracterização recursiva que defendemos

ser uma condição necessária dentro corpo teórico da semiótica de Peirce. Por exemplo,

se entendermos que há, de fato, uma relação (diádica) de representação entre o signo (o

primeiro elemento) e o objeto (o segundo elemento), somos obrigados a fazer referência

a um interpretante (um terceiro elemento) que é algo que pertence a uma segunda

relação de representação. Portanto, tentemos captar a noção de representação de Peirce

definindo o que seria uma representação entendida como uma relação binária (ou seja,

entendida naquele sentido restrito) e notemos que isto só pode ser feito caso se faça

Page 386: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

371

referência a um terceiro elemento pertencente a outra representação (entendida como

relação binária). A seguir, apresentamos uma primeira tentativa de se definir o que se

entende por representação ou, de forma mais precisa, por "processo de representação"

dentro da semiótica peirceana:

Versão 1 - Noção (ainda muito vaga) de representação dentro da semiótica

peirceana: uma representação é uma relação (entre um elemento denominado

"representante" e um elemento denominado "representado") constituída sobre

uma relação de representação anterior (dada numa sequência).

Nesta definição vaga da relação de representação, já podemos observar o caráter

recursivo que a ação de representar ganha quando definida dentro da teoria semiótica de

Peirce. A caracterização recursiva consiste justamente no fato de, para se definir o que é

uma representação x (que o ocupa a posição n numa sequência dada), ser necessário se

recorrer (fazer referência) a uma representação y (que ocupa a posição n-1 na mesma

sequência dada). Porém, falta especificar o que se deve entender pelo predicado

(diádico) "ser constituído sobre", afinal uma representação foi acima definida como algo

que é constituído sobre uma representação anterior (dentro de uma sequência dada de

representações). Para melhorar esta definição, podemos começar por nomear os

elementos que ocorrem dentro da representação, uma vez que ela foi definida como uma

relação (binária) se presume que possua dois elementos. Ora, dentro de uma noção

muito geral de representação, o primeiro elemento é aquele que tem por função

representar e o segundo elemento é aquele que tem por função ser representado. Na

semiótica peirceana, este primeiro elemento recebe o nome de signo e o segundo

elemento recebe o nome de objeto. Estas noções são fruto de procedimentos de

definição muito elementares, e estes termos são assim definidos em quase todas as

teorias semióticas ou semânticas (na linguística, lógica, computação, etc.). Em alguns

casos, o representante é denominado de "significante", "símbolo", "sinal", "caractere",

etc. O termo exato utilizado dentro de cada um desses corpos teóricos não nos importa

nesse momento, o que importa é notar que, na maioria dessas teorias, o signo é

entendido como algo (geralmente um expediente sensório) que é produzido com a

finalidade de representar alguma outra coisa e o objeto, por sua vez, é entendido como

qualquer coisa que seja representado por um signo. Como estas noções são bem aceitas

(na semiótica peirceana e nas congêneres) podemos apresentá-las como noções gerais

ao lado das outras três que derivamos (no capítulo anterior) do texto peirceano:

NG IV - Um signo é qualquer elemento produzido para representar algo.

NG V - Um objeto é qualquer elemento representado por um signo.

Page 387: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

372

Estas duas noções gerais acima apresentadas (ainda que de forma vaga) podem nos

fornecer informação para definir de forma mais precisa os conceitos que estão

envolvidos na semiótica. Assim, por definição, sabemos que o primeiro elemento de

uma representação é chamado de signo (i.e., aquilo que é capaz de representar) e o

segundo elemento é chamado de objeto (i.e., aquilo que é representado). Isto nos

fornece duas definições básicas da semiótica peirceana:

Definição de signo: um signo é o primeiro elemento de uma representação.

Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma representação.

Nisto a semiótica peirceana é muito parecida com as demais teorias construídas para

explicar com funcionam os processos de representação. Entretanto, não é possível

definir (dentro da semiótica peirceana) o que é uma representação apenas recorrendo a

dois elementos (signo e objeto, ou seja, respectivamente, representante e representado).

O terceiro elemento, como temos visto nas últimas centenas de páginas, entra em cena

justamente para interpretar (i.e., produzir uma nova representação sobre) a relação de

representação do signo para o objeto. Por isso, na semiótica peirceana, toda

representação só pode ser constituída a partir de uma outra representação (anterior).

Nisto, como vimos, consiste a recursividade. Se toda representação pressupõe uma

representação anterior, então deve haver uma relação entre essas duas representações.

De acordo com Savan (1986, p. 133), esta é uma relação de equivalência. Porém, para

que sejamos ainda mais precisos, devemos olhar para dentro de cada uma dessas

representações que estão relacionadas e procurar por uma relação entre os elementos

dessas duas representações. É neste ponto da análise que recorremos ao conceito de

interpretante, pois este é o elemento que, por definição, relaciona um elemento de uma

representação com algum elemento de uma representação anterior.

O interpretante é o primeiro elemento de uma representação cujo segundo elemento é o

primeiro elemento da representação anterior (o signo) e o interpretante representa este

primeiro elemento da representação anterior (o signo) como uma representação do

segundo elemento da representação anterior (o objeto) da mesma forma que ele (o

interpretante) representa. Notemos que o interpretante não representa o signo por si só,

mas o representa como um representação de um objeto que ele mesmo (o interpretante)

representa. Não fosse esta condição que acrescentamos depois do termo "mas" na frase

anterior, a concepção peirceana de signo poderia ser reduzida a uma relação diádica

entre um signo e um objeto (um representante e um representado). É exatamente este

nível de detalhamento que pode ser enxergado dentro da definição de interpretante

analisada no capítulo anterior.

Page 388: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

373

Definição n° 1 de Interpretante (CP 1.553) --> o interpretante é uma

representação mediadora que representa o relato como uma representação do

mesmo correlato que esta representação mediadora (ela mesma) representa.

Estrutura da definição n° 1 de Interpretante --> Um interpretante é "um Z que

representa um X como uma representação do mesmo Y que o Z representa"

Uma vez que já analisamos a estrutura interna da relação de representação, já podemos

voltar para aquela noção de representação que denominamos de Noção (ainda muito

vaga) de representação dentro da semiótica peirceana. Nesta primeira versão,

definimos uma representação como "uma relação (entre um elemento denominado

'representante' e um elemento denominado 'representado') constituída sobre uma relação

de representação anterior (dada numa sequência)". Ora, nesta primeira versão, os

componentes da relação de representação (signo e objeto) não são nomeados nem há

esclarecimento algum a respeito da relação entre as duas representações de que trata a

definição: a representação que é definida e a representação anterior (àquela que é

definida). Quando introduzimos o terceiro elemento na definição (o interpretante) foi

possível descobrir como é essa relação entre as duas representações de que trata tal

definição. Descobrimos que o primeiro elemento da representação (que é definida) é

produzido para representar o primeiro elemento da representação anterior (àquela que é

definida). Isto nos permite chegar a uma segunda versão da noção de representação na

semiótica peirceana.

Versão 2 - Noção (ainda um pouco vaga) de representação dentro da semiótica

peirceana: uma representação é uma relação cujo primeiro elemento é produzido

para representar o primeiro elemento de uma representação anterior (...).

Ainda que, com esta nova versão, possamos entender melhor o que a versão anterior

pretendia expressar com o predicado uma "representação constituída sobre outra

representação", ainda há um importante ponto de vagueza e ambiguidade nesta noção de

representação. De acordo com o que está expresso nesta segunda versão, tem-se a

impressão de que o primeiro elemento da representação (que é definida) funciona

simplesmente como uma representação do primeiro elemento do representação anterior

(àquela que é definida). Parece que o primeiro elemento de uma representação o primeiro

elemento da outra enquanto tal. Vimos na seção anterior que não bem assim que funciona.

Pela definição de interpretante (CP 1.533 [1867]), sabemos que o primeiro elemento de

uma representação qualquer não é produzido para representar o primeiro elemento da

representação anterior de "forma isolada", mas ele é produzido para representar este

(outro) primeiro elemento como um elemento que representa um objeto que ele mesmo

Page 389: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

374

representa243

. Em outras palavras, quando definimos que, numa representação qualquer, o

primeiro elemento é produzido para representar o primeiro elemento de representação

anterior, este primeiro elemento que é assim produzido cumpre uma função de signo e de

interpretante ao mesmo tempo (e, como veremos no próximo capítulo, isso é essencial

para se demonstrar o que foi denominado, no nono capítulo, de teses elementares da

semiótica peirceana). Este primeiro elemento é o signo da representação que está sendo

definida e é o interpretante da representação anterior (àquela que está sendo definida). Se

observarmos este ponto dentro do modelo inferencial, é como se, numa cadeia

argumentativa, atentássemos para o fato de que uma proposição que é premissa num

determinado argumento também é conclusão de um argumento anterior. É a mesma

proposição, mas ela cumpre duas funções distintas em cada um dos argumentos em que

figura. A cadeia de signos/interpretante funciona basicamente da mesma forma. Portanto,

para passarmos de uma noção (vaga) para um conceito de representação (bem definido

internamente na teoria semiótica de Peirce), devemos especificar a forma pela qual o

primeiro elemento da representação (que é definida) é produzido para representar o

primeiro elemento da representação anterior (àquela que é definida). Aquele primeiro

elemento é produzido para representar este primeiro elemento como um representante de

algo (um objeto) que ele mesmo (aquele primeiro elemento) representa. Chegamos,

assim, à definição, dentro da semiótica peirceana, do conceito de representação.

Definição de representação (dentro da semiótica peirceana): uma representação

é uma relação cujo primeiro elemento é produzido para representar o primeiro

elemento de uma representação anterior (como algo que está numa relação [de

representação] com o segundo elemento [dessa representação anterior] da mesma

forma que ele [o primeiro elemento] está numa relação [de representação] com este

segundo elemento [dessa representação anterior]).

É digno de nota que este conceito só faz sentido quando se faz referência a um interpretante.

Como viemos insistindo desde o primeiro capítulo, dentro da teoria semiótica de Peirce, é

justamente o interpretante o elemento responsável pela recursividade que pode ser

observada na definição do conceito representação. Antes de analisarmos esta relação entre

os conceitos de interpretante e de representação (ou de processo de representação), notemos

que, se, por um lado, o primeiro é o responsável pela recursividade propriamente dita,

então, por outro lado, o último é o responsável pela coesão entre todos os conceitos básicos

da semiótica. Consideremos deste ponto em diante que os conceitos básicos da semiótica

são os seguintes: signo, objeto, interpretante e representação.

243

É mesmo caso do exemplo dos "Beatles do Cangaço". Neste exemplo, Steve não iria substituir Billy de

"forma isolada" (i.e., enquanto tal). Steve iria substituir Billy no seu papel de substituto de Paulo (então,

de uma forma indireta Steve iria substituir Paulo). O interpretante não representa a representação anterior

pura e simplesmente, mas ele representa um dos elementos da representação anterior como o

representante do outro elemento (da representação anterior) da mesma forma que ele (interpretante)

representa.

Page 390: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

375

Se analisarmos a definição de signo (o primeiro elemento ou primeira posição da relação

triádica), a definição de objeto (o segundo elemento ou segunda posição da relação

triádica) e também a definição de interpretante (o terceiro elemento ou terceira posição

dentro da relação triádica), notaremos que, em cada um desses casos, para que o termo em

questão fosse definido, fez-se referência ao conceito de representação. Na verdade este

conceito age como uma espécie de colágeno ligando os demais conceitos básicos da teoria

semiótica. Todos os outros conceitos são definidos com relação ao conceito de

representação. Portanto, como seria de se esperar244

, representação é a ideia elementar, o

conceito central da semiótica (cf. também Nöth, 2011a, p. 446).

A seguir apresentamos cada um dos conceitos básicos da semiótica com suas respectivas

definições. Notemos as semelhanças estruturais e as diferenças específicas entre o

conceito de representação e o conceito de interpretante.

Definições básicas da semiótica peirceana:

Definição de representação: uma representação é uma relação cujo primeiro

elemento é produzido para representar o primeiro elemento de uma representação

anterior (como algo que está numa relação [de representação] com o segundo

elemento [dessa representação anterior] da mesma forma que ele [o primeiro

elemento] está numa relação [de representação] com este segundo elemento [dessa

representação anterior]).

Definição de signo: Um signo é o primeiro elemento de uma representação.

Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma representação.

Definição de interpretante: o interpretante é o primeiro elemento de uma

representação que é produzido para representar o primeiro elemento da

representação anterior (como algo que está numa relação [de representação] com o

segundo elemento [dessa representação anterior] da mesma forma que ele [o

interpretante] está numa [relação de representação] com este segundo elemento

[dessa representação anterior]).

Embora o conceito de representação caracterizado de forma recursiva ocupe o centro da

teoria semiótica elaborada por Peirce, é necessário enfatizar mais uma vez que é o

conceito de interpretante que nos "explica" como (dentro da teoria) funciona a ideia de

recursividade. Uma vez que já estamos diante de definições bem estabelecidas (após

244

Deve-se recordar que, conforme examinado no primeiro capítulo, a origem mais remota dessa

centralidade do conceito de representação está na proposta peirceana de que a lógica fosse entendida

como uma espécie de "ciência das representações em geral" (W1; 169 [1865]). Para se referir a esta

"ciência das representações em geral", Peirce toma emprestado o termo "semiótica" (cunhado por Locke

ao final do "Ensaio sobre o entendimento humano").

Page 391: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

376

centenas de páginas de análises e ponderações), podemos nos dar ao luxo de ser

precisos. Assim, é muito mais preciso afirmarmos que é o interpretante que especifica

esta noção de recursividade dentro da teoria. Isto se torna óbvio se observarmos as

semelhanças entre a definição acima oferecida para o termo "representação" e a

definição para o termo "interpretante". Notemos que são estruturalmente idênticas as

segundas partes de cada uma dessas definições (i.e., aquelas partes que começam em

ambos os casos com "como algo que está numa relação [...]"). Não é difícil notar que o

conceito de representação é mais geral que o conceito de interpretante. Este funciona

dentro da teoria como uma especificação do que aquele afirma de forma geral. Se, na

definição de representação nos é garantido que toda representação depende de uma

representação anterior (dada numa sequência), então, na definição de interpretante, por

sua vez, nos é especificado como ocorre esta dependência, esta recursão dentro da

relação triádica, ou seja, como uma representação, para ser interpretada, recorre a uma

representação anterior.

O resultado geral é que, na teoria semiótica elaborada por Peirce, o conceito de

representação é caracterizado recursivamente e o funcionamento desta recursão é

especificado no papel do conceito de interpretante (definido como um dos elementos do

processo de representação). Portanto, o conjunto dessas definições básicas da semiótica

descreve um certo processo (que por vezes denominamos de "processo interpretativo"

ou "processo de representação") que ocorre sempre na dependência de um estágio

anterior. Ora, se isto for verdade, então, no fundo, o que a teoria semiótica (de Peirce)

nos descreve é um processo que não pode ter ponto originário. Porém, se estamos desde

as primeiras linhas deste prolixo texto defendendo a posição segundo a qual o processo

de representação ou o processo interpretativo (ao qual se refere a teoria semiótica de

Peirce) é caracterizado (e funciona) recursivamente, então se pressupõe que, a exemplo

do que ocorre com a operação fatorial que nos serviu de modelo para explicar o que é

caracterização recursiva, também o processo interpretativo deve possuir um ponto de

origem, um primeiro caso (cf. Quine, 1981, p. 86). Para operação fatorial, o primeiro

caso é estabelecido na chamada cláusula base. Se não há um primeiro caso, não se pode

efetivamente chegar a um valor para uma operação fatorial específica. O problema é

que, das quatro definições básicas acima, não há nada parecido com uma cláusula-base,

nem há referência alguma a ponto originário. Na verdade, sabemos pelas análises dos

escritos peirceanos feitas nos últimos oito capítulos, que a ausência de qualquer ponto

originário no processo interpretativo é uma exigência interna do projeto filosófico de

Peirce. Isto nos leva de volta ao ponto final245

de nossas análises do texto "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" (QFCM). Voltamos,

assim, à questão das origens.

245

Cf. segunda seção do capítulo 8.

Page 392: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

377

12.3 Recursividade e a sétima questão do QFCM

Como analisamos no capítulo anterior, no ONLC, Peirce apresenta uma definição ou

caracterização recursiva da relação de representação e, dentro da teoria semiótica que

está nos centro do pensamento peirceano, o responsável pela especificação do modo

como funciona esta recursividade é o conceito de interpretante. De acordo com esta

definição recursiva de representação, uma representação de dois termos quaisquer

depende de uma segunda representação (que representa justamente aquele primeiro

termo como uma representação do segundo termo da mesma forma que ele [terceiro

termo] é representação do segundo). Como vimos, qualquer representação deve (por

definição) exigir um interpretante (que nada mais é que uma outra representação

[mediadora] que serve para interpretá-la). Dentro do campo da matemática, como já

citamos em duas oportunidades, a operação fatorial é um tipo de operação que pode

facilmente se definida recursivamente. E, se for feita uma definição ou caracterização

recursiva, só podemos calcular o valor de um operação fatorial ao recorremos ao que é

geralmente denominado de cláusula base246

.

Se entendermos o conceito peirceano de representação (que está no centro de sua

semiótica) como uma espécie de operação (definida recursivamente), então surge uma

questão de suma importância: qual seria o papel da cláusula base neste modelo, neste

"entendimento" recursivo do conceito de signo? Antes de tentarmos responder tal

pergunta é necessário que revisemos o que se entende por uma caracterização ou

definição recursiva e por cláusula base.

Como nas duas oportunidades anteriores que tratamos de caracterizações recursivas,

utilizamos o exemplo do fatorial, desta vez optamos por recorrer a uma outra operação

(também corriqueira na matemática): a exponenciação. Para caracterizar de forma

recursiva esta operação devemos estabelecer duas cláusulas: a chamada cláusula base e

a regra geral. Nosso domínio é o dos números naturais.

Caracterização recursiva da operação de exponenciação

Cláusula n°1 (cláusula base) --> x0 = 1

Cláusula n°2 (regra geral) --> x n-1

= xn

· x

Vejamos o cálculo da seguinte operação de exponenciação: 23 . De acordo com a

caracterização apresentada acima, este caso é (inicialmente) regido pela segunda

cláusula, pois o expoente é um número natural maior que zero. Assim, 23 = 2

2 · 2 .

246

Ou o que Quine (1981, p. 86) chamou de "primeiro caso" em sua definição de caracterização recursiva

(que foi citada por Savan).

Page 393: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

378

Entretanto, para descobrirmos o resultado de 22 · 2 é necessário que saibamos antes o

resultado da exponenciação 22 . E, de acordo com a segunda cláusula novamente, 2

2 = 2

1

· 2. Ora, novamente encontramos um expoente: 21

. Se aplicarmos outra vez a

equivalência que nos foi oferecida pela segunda cláusula, então chegamos a 21 = 2

0 · 2 .

Dessa vez, o expoente a que chegamos é o número zero, o que nos reporta à primeira

cláusula, e assim nos garante um valor fixo (sem nenhuma outra exponenciação para

resolver). O valor de x0 é 1. O diagrama a seguir representa a sequência de operações.

Nesta sequência, uma operação é sempre realizada sobre o resultado da anterior (exceto

a primeira delas).

Portanto, o resultado final pode ser expresso pela seguinte proposição: 23 = 8.

No horizonte teórico do pensamento peirceano, não haveria espaço para se admitir que a

cadeia de representações (a sequência signo-interpretante) tivesse uma base pré-definida

como ocorre com as operações fatorial e de exponenciação (nos exemplos fornecidos ao

longo de nossa tese). Nestes exemplos, é óbvio que há uma última operação ou, sob

outra perspectiva, há o primeiro caso. Porém, dentro de uma cadeia sígnica, como

vimos, não pode haver primeiro elemento. Não um que seja definitivo. Então, a cláusula

base deve necessariamente possuir um caráter hipotético. Vejamos com paciência este

ponto. Em primeiro lugar, analisemos o funcionamento desta cláusula base dentro da

operação de exponenciação.

No caso da operação de exponenciação, podemos imaginar que haja uma sequência cujo

primeiro elemento nos apresente justamente o resultado da aplicação desta operação

para primeiro caso, o expoente zero: 20 = 1. Todos os casos seguintes são determinados

por este valor prefixado da operação de exponenciação para o primeiro caso. Todos os

casos posteriores dependem desta operação base.

Page 394: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

379

Sequência da operação de exponenciação (para os naturais):

Caso_1 (ou Posição_nº1 da sequência) --> 20 = 1

Caso_2 (ou Posição_nº2 da sequência) --> 21 = 2

Caso_3 (ou Posição_nº3 da sequência) --> 22 = 4

Caso_4 (ou Posição_nº4 da sequência) --> 23 = 8

O procedimento de cálculo do valor da operação de exponenciação 23

, por exemplo,

segue um "roteiro" que pode ser dividido nos seguintes quatro passos:

Passo a passo do cálculo da operação 23

Passo_1) 23 = 2

2 · 2 (este resultado exige os desenvolvimentos do Passo_2,

Passo_3 e Passo_4)

Passo_2) 22 = 2

1 · 2 (este resultado depende dos desenvolvimentos do Passo_3 e

Passo_4)

Passo_3) 21 = 2

0 · 2 (este resultado depende dos desenvolvimentos do Passo_4)

Passo_4) 2o = 1 (este resultado é preestabelecido)

Note que só paramos no quarto passo, pois chegamos diante de uma operação cujo valor

está preestabelecido pela própria definição ou caracterização do que é a operação de

exponenciação.

Podemos comparar a execução da operação de exponenciação a um processo

inferencial. Nessa inferência cada passo intermediário rumo ao resultado final depende

do passo imediatamente anterior. O resultado de um passo está condicionado pelo

resultado do próximo passo. Em outras palavras, o resultado de um passo depende do

desenvolvimento do passo seguinte. Se observarmos o procedimento do cálculo dentro

do esquema apresentado anteriormente (a sequência), notaremos que cada passo é

condicionado pelo resultado do caso anterior. Por exemplo, no primeiro passo

utilizamos uma operação cujo resultado nos é apresentado, dentro da sequência, no

quarto caso. O resultado deste quarto caso depende do resultado dos outros três casos

anteriores. É por isso que no segundo passo utilizamos uma operação cujo resultado nos

é apresentado no terceiro caso, e o resultado deste terceiro caso, por sua vez, depende do

resultado dos outros três casos anteriores. E assim sucessivamente até o último passo (o

quarto) no qual utilizamos uma operação cujo resultado no primeiro caso. O resultado

Page 395: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

380

deste primeiro caso nos é dado de antemão. Este resultado é preestabelecido pela

cláusula base. Não é por outro motivo, este quarto passo é o último.

Se nos fosse solicitado que colocássemos, passo a passo, o raciocínio desenvolvido para

encontrar o resultado da operação de exponenciação 23

na forma de um argumento,

talvez a primeira ideia que nos viesse à mente seria a de que uma das maneiras mais

simples de expressá-lo (embora não seja a única) seria construir uma cadeia de

condicionais.

Raciocínio para operação de exponenciação 23

Condicional_1) Se o resultado da operação de exponenciação 20 é 1, então o

resultado da operação de exponenciação 21

é 2.

Condicional_2) Se o resultado da operação de exponenciação 21

é 2, então o

resultado da operação de exponenciação 22

é 4.

Condicional_3) Se o resultado da operação de exponenciação 22

é 2, então o

resultado da operação de exponenciação 23

é 8.

Apresentada esta cadeia de condicionais, devemos, então, analisá-la. Como é de

conhecimento geral, todo condicional é uma proposição complexa constituída de duas

componentes: uma proposição denominada antecedente e outra proposição denominada

consequente. Cada um dos condicionais acima apresentados é constituído de

proposições que, para nossos objetivos de análise, serão consideradas atômicas (i.e.,

proposições cujas partes que a compõem não são elas mesmas proposições).

Proposições atômicas que compõem o raciocínio para operação de

exponenciação 23

Proposição P) o resultado da operação de exponenciação 20 é 1

Proposição Q) o resultado da operação de exponenciação 21 é 2

Proposição R) o resultado da operação de exponenciação 22 é 2

Proposição S) o resultado da operação de exponenciação 23 é 8

Com estas quatro proposições (P, Q, R e S), já podemos construir um argumento que

expresse o processo inferencial que nos levou ao resultado para a referida operação de

exponenciação. Toda a nossa atenção deve estar voltada para a proposição P (“o

resultado da operação de exponenciação 20 é 1”). A verdade desta proposição é

Page 396: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

381

garantida pela cláusula base da própria definição. Assim, é como se todo o nosso

raciocínio partisse de uma base preestabelecida. Graças ao que afirma a cláusula base da

definição, partimos (em termos lógicos) de um resultado preestabelecido. Se

acreditamos que o "conteúdo" do que a proposição P afirma está assegurado pela

definição, então a proposição P pode ser afirmada como uma das premissas (a quarta

delas no esquema a seguir) e o argumento pode ser apresentado da seguinte forma:

Argumento sobre exponenciação - caso I: “base preestabelecida”

Premissa1: Se o resultado da operação de exponenciação 20 é 1, então o resultado

da operação de exponenciação 21

é 2.

Premissa2: Se o resultado da operação de exponenciação 21

é 2, então o

resultado da operação de exponenciação 22

é 4.

Premissa3: Se o resultado da operação de exponenciação 22

é 2, então o

resultado da operação de exponenciação 23

é 8.

Premissa4: O resultado da operação de exponenciação 20 é 1.

Conclusão: O resultado da operação de exponenciação 23

é 8

Reparemos que todas as premissas são condicionais. Exceto uma, a quarta. Todas as três

primeiras premissas são proposições (complexas) que afirmam ligações entre outras

proposições. Estas três primeiras apenas nos garantem que se algo ocorrer (se o

antecedente for verdadeiro), então outra coisa deve necessariamente ocorrer também (o

consequente tem que ser verdadeiro). Apenas a quarta premissa nos garante que algo

efetivamente ocorre. De acordo com a quarta premissa, é efetivamente o caso em que "

O resultado da operação de exponenciação 20 é 1". E por que neste argumento podemos

afirmar assim de forma tão categórica a ideia expressa nesta quarta premissa (i.e., na

proposição P)? A garantia está obviamente na cláusula base. Dessa forma, como

partimos de uma certeza inicial e nossa inferência é (dedutivamente) válida (o que

significa que este procedimento inferencial é capaz de conservar a verdade das

premissas das quais se partiu), também podemos ter certeza com relação o ponto de

chegada. Dada que a proposição P é verdadeira (graças à cláusula base), então também

dever ser verdadeira a conclusão do argumento: "o resultado da operação de

exponenciação 23

é 8" (que é a proposição S). A inferência é certeira. A conclusão é

certa. O importante é notar que o resultado final só pôde ser afirmado de forma

categórica por conta da cláusula base, que nos garante a verdade daquela proposição P

(“o resultado da operação de exponenciação 20 é 1”).

E o que ocorreria se, por algum motivo, não pudéssemos ter estabelecida de antemão

aquela proposição P, ou seja, o que ocorreria se, por algum motivo, a cláusula base não

Page 397: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

382

nos fornecesse uma garantia do resultado da operação de exponenciação para o primeiro

caso (x0), mas apenas nos apresentasse um resultado hipotético. É exatamente isto que

ocorre com a epistemologia peirceana. Dentro de terreno matemático, não faria sentido

algum caracterizar recursivamente uma operação sem a cláusula base ou cuja cláusula

base fosse hipotética, uma vez que isso faria com que nunca fosse possível se chegar

efetivamente a um resultado ou só se chegaria a um resultado hipotético (tal como o

ponto de partida). Ainda que dentro destes exemplos corriqueiros da matemática (aos

quais recorremos) seja difícil imaginar quais seriam os motivos que nos levariam a

tornar ou considerar a cláusula base uma hipótese, dentro do terreno da epistemologia,

Peirce construiu uma teoria composta de diversos motivos que nos levam a acreditar

que a atividade cognitiva ocorra sem que haja efetivamente uma base preestabelecida ou

que toda e qualquer base (i.e., ponto de partida numa perspectiva lógica) sobre a qual se

desenvolva um processo cognitivo seja, em última análise, de natureza hipotética. Após

trezentas páginas, o leitor já deve reconhecer do que estamos tratando. Esta questão já é

velha conhecida nossa: o problema da primeira cognição (ou signo). É a última das

questões do primeiro artigo da série cognitiva, a Q7 do QFCM. Se, dentro do argumento

sobre exponenciação (que apresentamos acima), introduzimos a proposição P como

hipótese, teremos uma alteração considerável no ponto de chegada.

Argumento sobre exponenciação - caso II: “base hipotética”

Premissa1: Se o resultado da operação de exponenciação 20 é 1, então o resultado

da operação de exponenciação 21

é 2.

Premissa2: Se o resultado da operação de exponenciação 21

é 2, então o

resultado da operação de exponenciação 22

é 4.

Premissa3: Se o resultado da operação de exponenciação 22

é 2, então o

resultado da operação de exponenciação 23

é 8.

(HIPÓTESE) Premissa4: (Hipoteticamente) o resultado da operação de

exponenciação 20 é 1.

Conclusão: Se o resultado da operação de exponenciação 20 for 1, então o

resultado da operação de exponenciação 23

é 8

A seguir oferecemos duas formalizações dos dois últimos argumentos apresentados

acima. Nestas duas formalizações, podemos enxergar de maneira mais clara a distinção

essencial entre uma inferência que tem como base (lógica) uma afirmação e uma

inferência que tem como base (lógica) uma hipótese.

Page 398: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

383

Argumento (formalizado) sobre exponenciação - caso I: “base categórica”

1. P--> Q Pr.

2. Q --> R Pr.

3. R --> S Pr.

4. P Pr.

5. Q MP 1,4

6. R MP 2,5

7. S MP 3,7

Na formalização a seguir, a linha pontilhada que acompanha (na vertical) os passos 4, 5,

6 e 7 significa que cada um desses passos é dado na dependência de uma hipótese

introduzida no passo 4.

Argumento (formalizado) sobre exponenciação - caso II: “base hipotética”

1. P--> Q Pr.

2. Q --> R Pr.

3. R --> S Pr.

4. | P Hip. P

5. | Q MP 1,4

6. | R MP 2,5

7. | S MP 3,7

8. P --> S Hip. P 4,7

O resultado deste argumento construído sobre uma base hipotética é também uma

hipótese, um condicional. No caso, este condicional é o seguinte: "se o resultado da

operação de exponenciação 20 for 1, então o resultado da operação de exponenciação 2

3

é 8". A natureza hipotética dessa proposição que está na posição de conclusão fica bem

evidente se observarmos que, dentro de um condicional, a afirmação do consequente (no

caso, "o resultado da operação de exponenciação 23

é 8") depende da afirmação do

antecedente (no caso, "o resultado da operação de exponenciação 20 for 1").

Page 399: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

384

Assim, a semiótica peirceana é uma teoria sobre o funcionamento dos signos, sobre o

que podemos denominar de atividade sígnica. Esta teoria apresenta este funcionamento

ou esta atividade como um processo interpretativo que, além de ser gerado

recursivamente (i.e., no qual cada passo é sempre constituído a partir de passos

anteriores), não admite pontos de referência absolutos, i.e., não admite o

estabelecimento de pontos de partida ou de chegada. A atividade sígnica, conforme

descrita na semiótica peirceana, se dá num fluxo.

Como vimos no nono capítulo, dentro de seu projeto filosófico (cujo objetivo último é

responder como são possíveis os raciocínios sintéticos pergunta que considerou

central na filosofia), Peirce tentou estabelecer a equivalência entre a atividade sígnica

(descrita por sua teoria semiótica) e a atividade cognitiva (descrita por sua teoria da

cognição). Este movimento argumentativo muito geral (realizado dentro da série

cognitiva) tem como principal resultado colocar a semiótica no centro da epistemologia

desenvolvida no pensamento peirceano. Como a semiótica foi originalmente proposta

como uma espécie de ciência geral das representações e ela ocupa uma posição central

no projeto filosófico peirceano, este movimento argumentativo de Peirce acaba por

levar o debate, o jogo epistemológico para um novo tabuleiro: a semântica. Dentro da

semiótica peirceana, podemos observar uma teoria da representação, uma teoria

semântica. Óbvio está que, nesta passagem, entendemos o termo "semântica" de forma

"generosa". Entendemos que este termo designe um campo teórico que tem como objeto

de estudo a relação entre representante e representado (e questões adjacentes) da mesma

forma que, no campo da epistemologia, o objeto de estudo é a relação sujeito

cognoscenteobjeto. Nesta acepção (ampla), a semiótica peirceana é algo como uma

"semântica abstrata". E esta é, por força do projeto filosófico (ou do tipo de resposta que

Peirce está disposto a fornecer para a pergunta central da filosofia), uma semântica

necessariamente de fluxo.

Page 400: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

385

CAPÍTULO 13

Recursividade e a concepção de represtação como fluxo

A teoria da representação que pode ser encontrada dentro da semiótica peirceana foi

elaborada por Peirce para explicar como é possível haver algum tipo de síntese, ou seja,

(de um ponto de vista epistemológico) como é possível que haja algum acréscimo de

informação dentro de um sistema de crenças. Por exemplo, supondo que alguém tenha

adquirido a informação de que baleias são seres azuis, deveríamos nos perguntar como o

predicado " ____ser azul" foi unido ao sujeito lógico "as baleias" na proposição "as

baleias são azuis" dentro de um estado informação em que se desconhecia o fato de

baleias serem azuis. Como funciona o processo que tem como resultado a síntese desse

sujeito (lógico) com este predicado?

Como vimos no último capítulo, o conjunto dos principais conceitos da semiótica

peirceana (conceito de signo, objeto, interpretante e representação) descrevem exatamente

o processo interpretativo que (dentro do projeto filosófico peirceano) é o responsável por

responder como se tornam possíveis as sínteses. A resposta encontrada por Peirce é que a

síntese é a resultante de um processo interpretativo, uma sequência de representações, em

que estão envolvidos três elementos: signo, objeto e interpretante. Nossa tese central é que

o ponto de distinção da semiótica peirceana com relação a outras propostas teóricas

projetadas para explicar fenômenos de ordem semântica não é o fato de Peirce ter

definido o processo interpretativo a partir da referência a três elementos (signo, objeto e

interpretante), mas o fato de ter definido recursivamente o papel do terceiro elemento (o

interpretante) dentro da relação triádica. O interpretante instala no interior da relação

triádica uma regra de recursão. Assim, a diferença elementar da semiótica para propostas

teóricas semelhantes (i.e., outras semióticas ou teorias semânticas) definitivamente não é

o número de elementos que entram em seu conceito central: a ideia de representação (ou

de signo, num sentido lato). A diferença elementar é justamente a caracterização recursiva

do conceito de representação que está presente na semiótica peirceana (graças à

introdução do terceiro elemento, o interpretante) e (aparentemente) ausente das demais

propostas teóricas. Como temos nos esforçado para demonstrar, a recursividade possui

um papel central na economia interna do projeto filosófico peirceano: garantir que sejam

verdadeiras as teses elementares ("não há primeiro signo num processo interpretativo"

Tese_1 da semiótica e "não há último signo num processo interpretativo" Tese_2 da

semiótica). Sob esta perspectiva, a relação (como veremos, irredutivelmente) triádica só

serve para instalar um processo que é caracterizado recursivamente. Não é o "número

três" que importa diretamente, mas sim como o terceiro elemento é caracterizado.

Page 401: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

386

Para corroborar esta proposição segundo a qual o que é central na semiótica peirceana

(para que ela cumpra seu papel dentro do projeto filosófico como um todo) é a

caracterização recursiva do conceito de representação (e, na verdade, os três elementos da

relação triádica apenas servem para estabelecer tal recursividade), apresentaremos neste

capítulo, de um modo mais formal, argumentos para sustentar que é a recursividade que

nos permite estabelecer o que denominamos de teses elementares. O modo mais formal

que utilizaremos é deduzir as teses elementares das definições centrais que foram isoladas

nos capítulos precedentes. Assim, a ideia central nas duas primeiras seções deste décimo

terceiro capítulo é mostrar como as teses elementares podem ser deduzidas das definições

básicas fornecidas por Peirce em seus escritos e, uma vez estabelecidas (internamente)

tais teses, a semiótica seria capaz de descrever um processo interpretativo que pode, no

interior do projeto filosófico peirceano, ser oferecido como resposta para a questão da

"validade" dos raciocínios sintéticos. Durante as demonstrações das duas primeiras seções

deste capítulo voltaremos a esbarrar em dois dos maiores problemas dentro do sistema

filosófico peirceano: a noção de continuum (da qual já tratamos ao final do nono capítulo)

e a irredutibilidade da relação triádica.

Na última seção deste último capítulo, trataremos daquela que consideramos a única

interpretação dos escritos peirceanos do final da década de 1860 para a qual, ainda que

sejam estabelecidas (dentro da semiótica) as teses elementares, a semiótica não serviria

para descrever um processo interpretativo capaz de explicar a "validade" dos raciocínios

sintéticos. De acordo com esta interpretação, o processo interpretativo (descrito pela

semiótica peirceana) seria inevitavelmente circular, portanto, neste caso, como não

haveria convergência para um ponto-limite (conforme pretende Peirce), a solução teórica

peirceana falharia. Na verdade, o que pretendemos mostrar de um modo mais formal

neste último capítulo é que, para que funcione a solução teórica para o que Peirce

considera o problema central da filosofia, as duas teses fundamentais acima referidas têm

que ser verdadeiras dentro da semiótica (i.e., a partir das definições básicas da semiótica)

e a verdade destas depende da recursividade que é encontrada dentro da concepção de

signo (num sentido lato) ou de processo interpretativo. Entretanto, ainda que a verdade

destas teses elementares seja condição necessária para que funcione a referida solução

teórica, não se pode afirmar que ela seja uma condição suficiente. Para que pudéssemos

apresentar (além da caracterização recursiva, que é uma condição necessária) quais seriam

as condições que seriam suficientes para fazer com que a solução teórica peirceana

funcionasse, teríamos que ampliar o corpus desta pesquisa. Seria preciso analisar os

outros textos que compõem a série cognitiva, o que obviamente não pode ser feito (por

carência de espaço-tempo). Ainda que estejamos impossibilitados de especificar quais

seriam estas condições suficientes e, assim, desenvolver uma argumentação mais precisa,

pretendemos nesta última seção apresentar algumas razões para se descartar esta

interpretação que entende o processo interpretativo como circular.

Page 402: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

387

13.1 As teses elementares da semiótica

Nesta primeira seção deste décimo terceiro capítulo, dedicaremo-nos à tarefa de provar

o que viemos denominando desde o nono capítulo de teses elementares da semiótica

peirceana. O primeiro passo é apresentar de um modo mais formal de onde partiremos

para estabelecer cada uma dessas teses. Nossos pontos de partida (nossos "axiomas")

são as definições básicas e também as "noções gerais" que coseguimos isolar a partir da

análise (realizado no décimo capítulo) do artigo "Sobre uma nova lista de categorias"

(On a New List of Categories, ONLC, CP 1.545 - 59). Além das definições básicas e

das noções gerais da semiótica, apresentaremos no quadro abaixo um princípio geral.

Elementos da semiótica peirceana

Definições Básicas Abreviatura

Definição de representação: uma representação é uma relação cujo

primeiro elemento é produzido para representar o primeiro elemento

de uma representação anterior (como algo que está numa relação [de

representação] com o segundo elemento [dessa representação

anterior] da mesma forma que ele [o primeiro elemento] está numa

relação [de representação] com este segundo elemento [dessa

representação anterior]).

(df_1)

Definição de signo: um signo é o primeiro elemento de uma

representação. (df_2)

Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma

representação. (df_3)

Definição de interpretante: um interpretante é o primeiro elemento de

uma representação que é produzido para representar o primeiro

elemento da representação anterior (como algo que está numa relação

[de representação] com o segundo elemento [dessa representação

anterior] da mesma forma que ele [o interpretante] está numa [relação

de representação] com este segundo elemento [dessa representação

anterior]).

(df_4)

Noções Gerais Abreviatura

Noção Geral I: O interpretante é algo da natureza de uma representação. (NG I)

Noção Geral II: O interpretante é uma representação mediadora

produzida sobre uma relação diádica (chamada de relação-base). (NG II)

Noção Geral III: O interpretante é produto de uma regra recursiva. (NG III)

Noção Geral IV: Um signo é qualquer elemento produzido para

representar algo. (NG IV)

Noção Geral V: Um objeto é qualquer elemento representado por um

signo. (NG V)

Princípio Geral Abreviatura

Lei fundamental da razão: Não bloqueie o caminho da investigação. (LFR)

Page 403: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

388

Portanto, o objetivo desta primeira seção é estabelecer as duas teses a seguir:

Teses elementares da semiótica peirceana

Tese_1 da semiótica --> Não há primeiro signo (num processo interpretativo).

Tese_2 da semiótica --> Não há último signo (num processo interpretativo).

Para cumprir este objetivo, iremos recorrer a duas proposições que foram denominadas

ainda no capítulo 12 (cf. primeira seção) de teses de Savan.

Teses defendidas por Savan acerca da semiótica peirceana

Tese1 (defendida por Savan) --> "Todo interpretante é um signo" (Savan, 1976, p. 32)

Tese2 (defendida por Savan) --> "Todo signo é um interpretante" (Savan, 1976, p. 32)

Tese3 (defendida por Savan) --> "Sem interpretante não há signo, mas somente um signo

potencial ou virtual" (Savan, 1976, p. 3)

Na verdade, para estabelecer as duas teses elementares da semiótica, devemos, de forma

direta, recorrer às duas primeiras das teses apresentadas acima. Entretanto, como

explicaremos de forma mais detalhada adiante, para se estabelecer a segunda tese

elementar da semiótica, será necessário pressupor uma espécie de princípio geral que

pode ser considerado equivalente à proposição que foi acima denominada de terceira

tese de Savan. Nesta seção, portanto, apresentaremos quatro argumentos:

Argumento 1) para o estabelecimento da primeira tese de Savan

Argumento 2) para o estabelecimento da segunda tese de Savan

Argumento 3) para o estabelecimento da primeira tese elementar da semiótica

peirceana

Argumento 4) para o estabelecimento da segunda tese elementar da semiótica

peirceana

Cada um desses argumentos, quando necessário, foi dividido em trechos. O passo a

passo destes argumentos foi apresentado dentro de uma tabela com duas colunas: na

primeira delas dispõem-se as proposições (premissas e conclusões) e, na segunda

coluna, apresentam-se as abreviaturas para cada uma das proposições que aparece numa

linha específica da argumentação, pois, deste modo, facilita-se a justificativa para cada

passo dentro do argumento.

Page 404: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

389

O primeiro de nossos argumentos é relativamente simples. A conclusão intencionada,

que é a primeira tese de Savan ("todo interpretante é um signo"), se segue de forma bem

direta da definição de interpretante e da quarta noção geral.

Argumento 1 - para o estabelecimento da primeira tese de Savan

Premissa1:Todo elemento produzido para representar algo é um

signo. (NG IV)

Premissa2: Todo interpretante é um elemento produzido para

representar algo (a saber, o relato como uma representação do

mesmo correlato que ele [interpretante] mesmo representa).

(df_4)

Conclusão: Todo interpretante é um signo. (prp_1)

Já o segundo de nossos argumentos, que apresentaremos na próxima página, é um

pouco mais longo, uma vez que se fez necessário explicitar alguns de seus passos

intermediários.

Argumento 2 - para o estabelecimento da segunda tese de Savan

Trecho 2.1 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan

Premissa1: uma representação é uma relação cujo primeiro

elemento é produzido para representar o primeiro elemento de

uma representação anterior (como algo que está numa relação

[de representação] com o segundo elemento...)

(df_1)

Conclusão: Toda representação tem como primeiro elemento um

elemento produzido para representar o primeiro elemento de

uma representação anterior (como algo que está numa relação

[de representação] com o segundo elemento...).

(prp_2.1)

Trecho 2.2 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan

Premissa1: Toda representação tem como primeiro elemento um

elemento produzido para representar o primeiro elemento de

uma representação anterior (como algo que está numa relação

[de representação] com o segundo elemento...).

(prp_2.1)

Conclusão: Todo primeiro elemento de uma representação é

produzido para representar o primeiro elemento da

representação anterior (como algo que está numa relação [de

representação] com o segundo elemento...).

(prp_2.2)

Page 405: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

390

Trecho 2.3 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan

Premissa1: Todo primeiro elemento de uma representação é

produzido para representar o primeiro elemento da

representação anterior (como algo que está numa relação [de

representação] com o segundo elemento...).

(prp_2.2)

Premissa2: Todo elemento produzido para representar o

primeiro elemento da representação anterior (como algo que está

numa relação [de representação] com o segundo elemento...) é

um interpretante.

(df_4)

Conclusão: Todo primeiro elemento de uma representação é um

interpretante. (prp_2.3)

Trecho 2.4 do argumento para o estabelecimento da segunda tese de Savan

Premissa1: Todo signo é um primeiro elemento de uma

representação. (df_2)

Premissa2: Todo primeiro elemento de uma representação é um

interpretante. (prp_2.3)

Conclusão: Todo signo é um interpretante. (prp_2)

Dos raciocínios (acima apresentados) que nos levam às duas primeiras teses de Savan,

podemos chegar às duas teses elementares da semiótica. Comecemos por provar a

Tese_1 da semiótica ("não há primeiro signo [num processo interpretativo]") a partir da

segunda tese de Savan ("todo signo é um interpretante").

Argumento 3 - para o estabelecimento da primeira tese elementar da semiótica

peirceana

Trecho 3.1 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Todo signo é um interpretante. (prp_2)

Premissa2: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma

representação que é produzido para representar o primeiro

elemento da representação anterior (como algo que está numa

relação [de representação] com o segundo elemento...)

(df_4)

Conclusão: Todo signo é produzido para representar o primeiro

elemento da representação anterior (como algo que está numa

relação [de representação] com o segundo elemento...)

(prp_3.1)

Page 406: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

391

Trecho 3.2 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa: Todo signo é produzido para representar o primeiro

elemento da representação anterior (como algo que está numa

relação [de representação] com o segundo elemento...)

(prp_3.1)

Conclusão: Todo signo é resultado de uma representação

anterior. (prp_3.2)

Trecho 3.3 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Toda representação é uma relação cujo primeiro

elemento é produzido para representar o primeiro elemento de

uma representação anterior (como algo que está numa relação

[de representação] com o segundo elemento...)

(df_1)

Conclusão: Toda representação tem um primeiro elemento. (prp_3.3)

Trecho 3.4 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Toda representação tem um primeiro elemento. (prp_3.3)

Premissa2: O primeiro elemento de uma representação é o signo. (df_2)

Conclusão: Toda representação tem (como primeiro elemento)

um signo. (prp_3.4)

Trecho 3.5 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Toda representação tem (como primeiro elemento)

um signo. (prp_3.4)

Premissa2: Todo signo é resultado de uma representação

anterior. (prp_3.2)

Conclusão: Não há primeira representação. (prp_3.5)

Trecho 3.6 do argumento para o estabelecimento da primeira tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Não há primeira representação.. (prp_3.5)

Premissa2: Toda representação tem (como primeiro elemento)

um signo. (prp_3.4)

Conclusão: Não há primeiro signo. Tese_1

Page 407: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

392

Estabelecida a primeira tese, passemos à prova da Tese_2 da semiótica ("não há último

signo [num processo interpretativo]").

Argumento 4 - para o estabelecimento da segunda tese elementar da semiótica

peirceana

Trecho 4.1 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Todo interpretante é um signo. (prp_1)

Premissa2: Todo signo é o primeiro elemento de uma

representação. (df_2)

Conclusão: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma

representação. (prp_4.1)

Trecho 4.2 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma

representação que é produzido para representar o primeiro

elemento da representação anterior (como algo que está numa

relação [de representação] com o segundo elemento...)

(df_4)

Conclusão: Todo interpretante é produzido para representar o

primeiro elemento da representação anterior (como algo que está

numa relação [de representação] com o segundo elemento...)

(prp_4.2)

Trecho 4.3 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa: Todo interpretante é produzido para representar o

primeiro elemento da representação anterior (como algo que está

numa relação [de representação] com o segundo elemento...)

(prp_4.2)

Conclusão: Todo interpretante é resultado de uma representação

anterior. (prp_4.3)

Trecho 4.4 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Todo interpretante é resultado de uma representação

anterior. (prp_4.3)

Premissa2: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma

representação. (prp_4.1)

Conclusão: Todo interpretante é resultado de uma representação

anterior e é o primeiro elemento de uma representação (distinta

da anterior).

(prp_4.4)

Page 408: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

393

Trecho 4.5 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa: Todo interpretante é resultado de uma representação

anterior e é o primeiro elemento de uma representação (distinta da

anterior).

(prp_4.4)

Conclusão: Toda representação resulta num interpretante (que é

o primeiro elemento de uma segunda representação). (prp_4.5)

Trecho 4.6 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa: Toda representação resulta num interpretante (que é o

primeiro elemento de uma segunda representação). (prp_4.5)

Conclusão: Não há última representação. (prp_4.6)

Trecho 4.7 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa1: Não há última representação. (prp_4.6)

Premissa2: Toda representação tem (como primeiro elemento)

um signo. (prp_3.4)

Conclusão: Não há último signo Tese_2

A prova de que não há primeiro signo se segue de forma muito natural das definições (e

também das noções gerais) que Peirce nos fornece no ONLC. Por sua vez, a prova de

que não há último signo acima apresentada possui uma passagem que poderia muito

bem ser questionada num exame mais minucioso. Isto obviamente nos obriga a

explicitar os passos intermediários subentendidos nesta passagem. O trecho em questão

é a seguinte:

Trecho 4.5 do argumento para o estabelecimento da segunda tese elementar

da semiótica peirceana

Premissa: Todo interpretante é resultado de uma representação anterior e é o

primeiro elemento de uma representação (distinta da anterior).

Conclusão: Toda representação resulta num interpretante (que é o primeiro

elemento de uma segunda representação).

Page 409: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

394

Se observarmos que o que está afirmado na premissa deste argumento é que todo

interpretante é resultante de uma representação anterior à representação da qual ele é o

primeiro elemento, notaremos que disso não podemos derivar, sem fazer algumas

pressuposições, que toda e qualquer representação deve necessariamente ser

representada por um interpretante que estará "localizado" numa segunda representação

(i.e., numa representação que, dentro de uma sequência, vem logo depois desta

representação que foi chamada de representação anterior). Da afirmação que todo

interpretante é resultado de uma representação anterior (àquela da qual ele é o primeiro

elemento) não podemos deduzir que toda representação resulta num novo interpretante,

portanto, numa nova representação. O problema é justamente que tipo de suposição

devemos fazer.

O que nos permite derivar a proposição "não há primeira representação" (prp_3.5) é

justamente o fato de a relação de representação (dentro da teoria) ter sido definida de

forma recursiva. Esta definição nos garante de forma explícita que, dada uma

representação específica, há sempre uma representação anterior. Porém, nesta mesma

definição, não há nada que nos garanta explicitamente que, dada uma representação

específica, haja sempre uma representação seguinte. Acreditamos que para que este

argumento funcione deve-se pressupor a ação de uma espécie de princípio.

O simples fato de não haver entre as definições dos conceitos básicos da semiótica

nenhuma cláusula base (ou condição semelhante) já faz com que a recursividade

internalizada no conceito de representação crie um regressus infinito ao impedir que

haja algum ponto originário (exatamente como exige o projeto filosófico peirceano).

Portanto, a ausência da cláusula base pode nos ajudar, de forma explícita, somente em

uma das direções do processo interpretativo, aquela que segue rumo às origens (que

nunca podem ser encontradas). Na outra direção, a (ausência de) cláusula base e a

recursividade não podem nos ajudar. Para provar que toda representação resulta num

interpretante, não podemos depender de uma "ausência", mas precisamos recorrer a uma

"presença". Para provar que não há última representação é necessário que seja

introduzido no sistema o seguinte princípio: "toda representação requer um

interpretante" ou, expresso de forma mais precisa, "toda representação deve ser

representada por um interpretante (que faz parte da próxima representação na

sequência)".

Princípio de sequência

"toda representação requer um interpretante"

Esta ideia está subtendida na teoria da representação que Peirce nos apresenta no

ONLC. Este princípio de sequência está latente na insistência com a qual Peirce sempre

afirma que a tríada (a relação triádica entre signo, objeto e interpretante) é

Page 410: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

395

irredutivelmente triádica. Na verdade, o que está expresso neste princípio é uma das

ideias mais caras a todo o pensamento peirceano: a irredutibilidade da relação triádica.

A partir deste princípio, é estabelecida uma garantia de que, por definição, não pode

haver uma representação entre um signo e um objeto sem pressupor o interpretante, ou

seja, toda representação deve ser representada por um interpretante. A ideia por trás

deste princípio é exatamente a mesma por trás da terceira tese de Savan: "Sem

interpretante não há signo, mas somente um signo potencial ou virtual" (Savan, 1976, p.

3). O que Savan chama de "signo", denominamos de representação ou processo de

representação (ou ainda processo interpretativo). O que estamos enxergando de um

modo mais formal neste décimo terceiro capítulo foi, num certo sentido, antecipado por

Short (1986, p. 103) quando notou que a primeira tese de Savan ("todo interpretante é

um signo") não é suficiente para implicar no progressus infinito de

signos/interpretantes, pois é necessário recorrer à terceira tese de Savan ("sem

interpretante não há signo, mas somente um signo potencial ou virtual"). Portanto, para

provar que não há último signo, devemos recorrer a este princípio.

Deve-se chamar atenção para o motivo pelo qual não denominamos este princípio de

sequência de "terceira tese de Savan". A ideia de que toda representação deve

necessariamente resultar num interpretante não pode ser derivada das definições dos

conceitos básicos (e noções gerais) que Peirce nos forneceu nos escritos analisados. A

proposição "toda representação requer um interpretante" não pode ser considerada uma

tese, pois ela não pode ser deduzida das definições básicas. Então, só nos resta

introduzi-la como um princípio geral. Não nos surpreenderia (e nem ficaríamos

ofendidos) se nossos leitores torcessem o nariz para esta "solução" de introduzir como

princípio o que talvez devesse ser provado. Esta solução (por nós) apresentada pode ser

considerada uma solução ad hoc. Ela segue, de fato, a seguinte orientação: quando não

for possível provar uma proposição (para que ela passe de conjectura a teorema), então

coloque-a no conjunto dos axiomas (e ela não "precisará" de ser provada). Parte

considerável do tempo da pesquisa realizada para esta (nossa) tese foi gasto na tentativa

de encontrar algum caminho para derivar a tese da irredutibilidade da relação triádica

(utilizada para descrever o processo interpretativo) a partir das definições básicas da

semiótica. Falhamos miseravelmente em todas tentativas. O fato é que o próprio Peirce

tentou por diversas vezes provar a irredutibilidade da relação triádica. Se ele foi ou não

bem-sucedido nas provas que apresentou é algo debatido entre os comentadores (cf.

Burch, 1997; Brunning, 1997). A irredutibilidade da relação triádica pode ser

considerada, ao lado do conceito de continuum, um dos maiores "problemas em aberto"

em todo o sistema filosófico peirceano.

Portanto, este princípio acima anunciado é indispensável, pois é ele que garante que não

pode haver uma representação (entre um signo e um objeto) que não vá recorrer a um

interpretante (que, por sua vez, será um novo signo [como afirma a primeira tese de

Savan, a prp_1). Em resumo, este princípio estabelece que o processo interpretativo,

i.e., a relação triádica, que está no centro da semiótica peirceana, é irredutivelmente

triádica.

Page 411: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

396

Pelo resto desta seção, dedicaremo-nos a mostrar que a teoria peirceana da

representação foi elaborada dentro da semiótica justamente para descrever um processo

contínuo, pois é exatamente de um processo contínuo que Peirce precisa para descrever,

dentro da epistemologia, como é possível haver síntese. A teoria da cognição peirceana

(apresentada na série cognitiva) recorre justamente ao processo (interpretativo) contínuo

descrito pela teoria peirceana da representação.

Com a entrada em cena do que denominamos princípio de sequência, o processo

interpretativo passa a ser irredutivelmente triádico e, assim fica estabelecido que ele não

pode ter fim. É como se a teoria da representação elaborada por Peirce estivesse

tentando descrever um processo que não apenas é recursivo "de frente para trás", mas

também o é de "trás para frente". Este princípio de sequência opera dentro da teoria

como um princípio de simetria. É como se ele afirmasse que o que vale para uma

direção do processo interpretativo também valesse para a outra: se não há ponto inicial

(ou final) numa direção também não há na outra. Assim, uma representação é algo que

não só depende de uma representação anterior (como está claro na definição de

interpretante), mas também depende da produção de uma representação posterior (como

está implícito nalgumas passagens). É isto que cria a noção de continuidade dentro do

processo interpretativo descrito pela semiótica. O que a teoria descreve é uma peça que

tem sua parte anterior feita para se encaixar na parte posterior de uma peça (do mesmo

tipo) que deve vir antes daquela primeira peça dentro de uma sequência. O mesmo pode

ser dito da parte posterior de qualquer peça. A parte posterior é feita para se encaixar na

parte posterior de uma peça (do mesmo tipo) que deve vir depois daquela peça (dentro

de uma sequência). Os limites dessas peças coincidem. Isto permite que, por menor que

sejam duas peças que estejam encaixadas uma na outra, sempre é possível encontrar

uma terceira peça que possa ser encaixada entre as duas. Esta metáfora das peças é, de

fato, "perigosa" (ainda que seja sugestiva), pois se as entendermos como coisas físicas,

então elas seriam entidades discretas. E este não é apenas um problema da metáfora que,

por ora, escolhemos como recurso explicativo, mas é um problema que diz respeito a

uma tensão que atravessa todo o projeto filosófico do jovem Peirce (e provavelmente

todo o pensamento peirceano): a tensão entre contínuo e discreto. Quando decidiu

explicar um processo que se supõe contínuo (o processo interpretativo) por meio de

unidades que supõe serem discretas, tais como signos e interpretantes, Peirce passou a

correr o risco de cair em contradição. Se considerarmos que o processo interpretativo é

feito de peças (cada uma delas encaixada numa outra), então, para que ele seja contínuo,

temos que admitir que não há alguma peça que seja a menor possível. Isto pode ser

entendido de forma mais clara se recordarmos que os argumentos apresentados por

Peirce para tratar do problema da primeira cognição ou do primeiro signo (no QFCM)

correm em paralelo com o tratamento dado por ele (na série cognitiva) ao paradoxo de

Zenão (CP 5.333-5 [1869]).

Para Peirce, o paradoxo de Zenão surge apenas se assumirmos que há partes últimas no

espaço . Entretanto, de acordo com a definição de continuum de Peirce (em 1868-9 ou

mesmo depois desse período), ao assumirmos isto estaríamos afirmando que o espaço

Page 412: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

397

não é contínuo. Se admitíssemos que o espaço é contínuo, então isto significa que ele é

feito de partes que têm partes do mesmo tipo e, assim, não possui partes últimas. O

resultado deste raciocínio é que se seguimos dividindo o espaço, nunca vamos chegar a

um momento em que a próxima divisão resultaria em partes que não mais seriam do

mesmo tipo que ele, ou seja, não seriam mais espaços. As partes do espaço são sempre

espaço. E também as partes das partes dele. O fato de o espaço ser contínuo faz com que

suas partes (e as partes de suas partes [e as partes dessas partes...]) sejam sempre

classificadas como espaço. A ideia por trás dessa solução é afirmar que não existe um

"intervalo" mínimo (finito) que possa ser denominado de espaço. Formalmente, o

processo interpretativo descrito por Peirce em sua semiótica funciona do mesmo modo.

Toda representação é resultante e tem como resultado algo do mesmo tipo que ela: uma

representação. Afirmar que, na solução proposta por Peirce do paradoxo de Zenão (CP

5.333-5 [1869]), não há partes últimas no espaço é equivalente a afirmar que não há

primeira representação e não há última representação (ou não há primeiro signo e não há

último signo) no processo interpretativo.

Se prestarmos atenção às características básicas da noção peirceana de continuum,

notaremos que esta noção é a base da correlação que Peirce pretende fazer entre

semiótica e epistemologia. Na definição oferecida na séria cognitiva, Peirce define o

continuum apenas como "aquilo cuja cada uma de suas partes tem partes do mesmo

tipo" (CP 5.335 [1869]). Porém, já fase madura de seu pensamento, ele passou a afirmar

que um continuum é "algo infinitamente divisível cujas partes têm um limite em

comum” (cf. CP 6.120 - 6 [1891]). Não é difícil notar que em qualquer uma dessas duas

formulações, a noção de continuum é o foco da semiótica peirceana. É como se os

conceitos básicos da semiótica peirceana fossem construídos para descrever um

processo que deve ser necessariamente contínuo. Como neste último capítulo, estamos

dentro da semiótica peirceana (examinando como suas teses estão sustentadas

internamente em suas definições básicas), podemos observar de forma clara como este

corpo teórico foi projetado especificamente para "captar" (modelar) um processo

contínuo.

Com as duas primeiras teses de Savan ("todo signo é interpretante" e "todo interpretante

é signo"), sabemos que, dentro da teoria, os conceitos de signo e interpretante são

construídos para estarem conectados (todo signo é um interpretante de alguma

representação e todo interpretante é um signo de alguma representação). E esta é uma

das características da noção de continuum que Peirce desenvolveu ao longo de sua

carreira filosófica: o processo interpretativo é algo cujas partes têm limites em comum.

Sabemos pelas demonstrações acima que podemos derivar as duas primeiras teses de

Savan do conjunto de conceitos básicos da semiótica peirceana. Isto significa que, a

partir da caracterização recursiva do conceito de representação e dos conceitos de signo,

objeto e interpretante, podemos afirmar que o processo interpretativo (ou de

representação descrito pela semiótica) é um processo cujas partes têm limites em

comum. Já temos uma das partes (uma das condições) da noção peirceana de

continuum. Então para provar que o processo interpretativo (descrito pela semiótica) é

Page 413: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

398

contínuo, basta que seja estabelecido que ele pode ser dividido infinitamente. Em outras

palavras, basta que seja provado que não há último signo e não há primeiro signo no

processo interpretativo (tal como a inexistência de partes últimas no espaço, no caso do

tratamento peirceano do paradoxo de Zenão). Entretanto, afirmar que não há primeiro

nem último signo é afirmar as duas teses elementares da semiótica peirceana e, como

vimos acima, para prová-las não é suficiente o conjunto de conceitos básicos da

semiótica peirceana. É preciso acrescentar o que foi denominado de princípio de

sequência.

Então já sabemos o que a recursividade (junto com sua contraparte simétrica: o

princípio de sequência) pretende construir dentro da teoria da representação: a noção de

continuidade. No caso da semiótica, a continuidade do processo interpretativo consiste

justamente na infinita divisibilidade (o que é garantido pela recursividade) e na

indistinção entre os limites de cada uma das partes que compõem o contínuo (o que é

garantido pelas definições dos conceitos de signo e interpretante [que são

intercambiáveis]). Que o processo de representação descrito pela semiótica seja

contínuo não é nenhuma surpresa, uma vez que esta teoria foi projetada justamente para

descrever um processo com esta característica. O problema é a pretensão (clara no

projeto filosófico peirceano) de que também seja contínuo o processo cognitivo (tal

como o processo descrito pela semiótica).

Em primeiro lugar, notemos que a semiótica (como a lógica ou a matemática) é uma

ciência formal. Ela não descreve nada na realidade. A semiótica simplesmente descreve

um processo cujo mecanismo interno é dado por uma relação triádica. O objeto da

semiótica é abstrato: são relações e estruturas, processos abstratos. Isto obviamente não

impede que a semiótica (a exemplo da matemática e também da lógica) seja utilizada

para explicar o "funcionamento", o "mecanismo" de processos concretos. O que Peirce

parece ter feito na série cognitiva é ter usado a semiótica para explicar (como) a

atividade cognitiva (pode produzir sínteses). Um dos principais movimentos

argumentativos247

de toda a série cognitiva pretende justamente estabelecer que a

atividade cognitiva pode ser descrita pela semiótica, ou seja, pode ser descrita como um

processo de representação (ou um processo interpretativo). Em termos gerais, este

movimento argumentativo é o responsável por colocar a semiótica no coração da

epistemologia peirceana.

Na última oportunidade que teve dentro do QFCM para provar que sua teoria da

cognição seria superior às teorias adversárias (que recorrem a pontos originários,

intuições no papel de fundações), Peirce confia numa analogia e acaba por pressupor o

que deveria provar. Recordemos esta passagem. Naquele ponto do QFCM, Peirce

precisaria provar que a atividade cognitiva é um processo contínuo e, por este motivo

poderia ser representada como um processo sígnico ou interpretativo (descrito pela

semiótica). Ao longo de todo o QFCM, Peirce procurou construir diversas linhas

argumentativas com o intuito de ir nos convencendo ao poucos que a atividade

247

Cf. primeira seção do nono capítulo.

Page 414: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

399

cognitiva funcionava na dependência de signos. Ele foi, linha a linha, questão a questão,

convencendo-nos de que a atividade cognitiva era, no fundo, uma atividade que poderia

muito bem ser descrita pela semiótica (i.e., pela "ciência geral das representações").

Quase convencidos, fomos tomados por um espírito de desconfiança quando notamos

que se a atividade cognitiva funcionasse do modo como Peirce a descrevia (i.e., tal

como um processo sígnico, interpretativo), então não haveria ponto originário. Ora, isto

coloca nossa confiança na teoria peirceana em xeque, porque a teoria adversária

consegue explicar a atividade cognitiva com muito mais simplicidade. Como as teorias

alternativas àquela que Peirce advoga no QFCM são mais simples, então é justo que

solicitemos ao filósofo norte-americano uma justificativa, uma razão para que possamos

escolher a teoria dele como a mais adequada para explicar os fenômenos em questão. O

que é solicitado então é que se apresente um motivo que nos leve a acreditar que o

processo cognitivo é semelhante ao processo sígnico. A expectativa era que, sabendo

que o processo sígnico é contínuo, Peirce nos apresentasse um argumento que

estabelecesse que (também) o processo cognitivo é contínuo. Ora, como vimos, não foi

isto que foi feito. Peirce apresentou um argumento (por analogia) que pressupôs que

ambos os processos seriam contínuos. Porém, é justamente isto que esperávamos ver

provado. Petitio principii.

Caso nossas análises estejam minimamente corretas, é uma ironia que Peirce termine o

QFCM com uma petitio principii, pois este mesmo texto começa com uma acusação de

que a reivindicação de uma faculdade intuitiva de reconhecimento de intuições cai

necessariamente numa argumentação circular. O primeiro passo de Peirce dentro do

QFCM (ainda na primeira questão) é justamente afirmar que não há como justificar a

capacidade de se distinguir intuitivamente cognições intuitivas de cognições que não o

sejam (i.e., cognições derivadas), pois esta pressuposição de que o homem tenha esta

capacidade está na base não só do projeto fundacionalista de Descartes como daqueles

sistemas filosóficos que (de acordo com Peirce) seriam animados pelo "espírito do

cartesianismo". É este movimento argumentativo que está na base da solicitação

peirceana para que se desconfie do conceito de intuição (no papel de fundação) e

também está na base da solicitação do voto de confiança que se deveria depositar na

teoria sígnica da cognição (a alternativa peirceana às teorias de teor cartesiano).

No pior dos cenários, na mais "pessimista" das leituras, podemos entender que esta

argumentação derradeira de Peirce no QFCM é representativa de todo o

desenvolvimento argumentativo deste texto. Dessa perspectiva, o que jovem Peirce teria

feito dentro de seu projeto filosófico seria, em primeiro lugar, construir uma teoria

formal para descrever um processo que seria necessariamente contínuo e, em segundo

lugar, teria pressuposto que também a atividade cognitiva seria contínua e, por este

exato motivo, poderia ser descrita por aquela teoria formal, a teoria peirceana da

representação.

Para resgatar o projeto filosófico do jovem Peirce desta leitura acima apresentada,

podemos enunciar o seguinte caminho interpretativo: o escopo da teoria peirceana da

Page 415: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

400

representação não é efetivamente descrever processos concretos. Geralmente, a

resistência à teoria peirceana da cognição começa quando notamos que toda a vez que

pensamos ou raciocinamos temos a impressão de que o pensamento começa em algum

ponto definido do tempo e, de qualquer forma, não poderíamos pensar antes de termos

nascido. Dessas impressões e constatações óbvias, deduzimos que uma teoria que nos

afirme que não há ponto originário em tais processos só pode estar equivocada.

Entretanto, até que ponto Peirce pretende descrever um processo mental efetivo, algo

que ocorra na cabeça de indivíduos? E se o escopo de sua teoria (e da ciência semiótica

em geral) fosse construir um modelo lógico da mente? O que, de fato, Peirce estava

tentando descrever, modelar com a semiótica? Qualquer interpretação que pretenda

apresentar algum caminho, alguma resposta para esta pergunta deve passar pelo

problema da tensão entre continuum e discreto.

É exatamente neste ponto da discussão que entra em cena a solução interpretativa

oferecida por Ransdell, da qual já tratamos em três oportunidades anteriores248

. A

solução de Ransdell é propor que se opere uma distinção entre um ponto de vista

psicológico (de acordo com o qual a atividade cognitiva deve ser entendida como um

processo contínuo) e um ponto de vista lógico (de acordo com o qual a atividade

cognitiva deve ser entendida como um processo que pode ser "quebrado" em unidades

discretas [tais signos e interpretantes ou premissas e conclusões]). Operada esta

distinção, Ransdell (1966, p. 91) passa a defender que o que Peirce procurou fazer nos

textos de 1867 e 1868 seria a construção de um modelo lógico da mente (e não a

descrição da atividade cognitiva do ponto de vista psicológico). De fato, com esta

distinção podemos esclarecer muitos pontos do posicionamento peirceano: por exemplo,

na série cognitiva, Peirce pretende apresentar o processo inferencial sob um ponto de

vista anti-psicologista (o que se encaixa perfeitamente na visão anti-psicologista da

lógica a favor da qual Peirce vinha advogando desde as Palestras em Harvard [1865]). O

único problema é que a proposta de Ransdell não consegue esclarecer o que, dentro do

texto, Peirce entende por continuum e o que entende por discreto. Esta interpretação de

Ransdell não esclarece por qual motivo Peirce recorre diversas vezes (sobretudo, na

última questão) ao conceito de continuum para descrever um processo que, do ponto de

vista lógico (de acordo com a distinção introduzida), é discreto. Assim, pode-se

facilmente verificar que dois dos principais problemas enfrentados por Peirce ao longo

de toda a sua carreira filosófica estão intimamente relacionados no cerne de sua teoria

da representação: a irredutibilidade da relação triádica e o conceito de continuum.

Afinal, o processo (interpretativo) contínuo de que trata a semiótica só pode, por ela ser

descrito, ao se estabelecer que a relação triádica (a tríada) entre signo, objeto e

interpretante é irredutivelmente triádica.

Entretanto, ainda que deixemos em suspenso este problema relativo ao

continuum/discreto, podemos afirma que o argumento geral de Peirce no QFCM não

seria circular (apenas o argumento particular apresentado ao final da sétima questão).

248

Na terceira seção do terceiro capítulo, na segunda seção do sétimo capítulo e também na segunda

seção (ao final) do nono capítulo.

Page 416: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

401

Nossa interpretação é que, em geral, dentro do QFCM, Peirce não pressupôs que o

processo de cognição seria contínuo, mas, na verdade, apresentou diversas linhas

argumentativas com intuito de comprovar este ponto. Ao longo do texto, Peirce

apresentou argumentos que (juntos) sustentam a ideia de que a atividade cognitiva é

contínua (e assim poderia ser descrita pela semiótica).

Portanto, sabemos que a recursividade e também sua contraparte simétrica (o princípio

de sequência) são introduzidas na teoria peirceana da representação para garantir que o

objeto por ela descrito seja contínuo. Por sua vez, esta teoria semiótica da representação,

para cumprir seu papel dentro do projeto filosófico peirceano, requer que sejam

estabelecidas o que foi denominado de "teses elementares da semiótica". Antes de

passarmos para a próxima seção, em que pretendemos provar que estes teses

elementares, na verdade, são condições necessárias dentro do projeto filosófico do

jovem Peirce, reapresentemos (na próxima página) o quadro com as definições básicas

(e noções gerais) da semiótica peirceana com o acréscimo do princípio acima discutido.

Page 417: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

402

Definições Básicas abreviatura

Definição de representação: uma representação é uma relação

cujo primeiro elemento é produzido para representar o primeiro

elemento de uma representação anterior (como algo que está

numa relação [de representação] com o segundo elemento [dessa

representação anterior] da mesma forma que ele [o primeiro

elemento] está numa relação [de representação] com este

segundo elemento [dessa representação anterior]).

(df_1)

Definição de signo: um signo é o primeiro elemento de uma

representação. (df_2)

Definição de objeto: um objeto é o segundo elemento de uma

representação. (df_3)

Definição de interpretante: um interpretante é o primeiro

elemento de uma representação que é produzido para representar

o primeiro elemento da representação anterior (como algo que

está numa relação [de representação] com o segundo elemento

[dessa representação anterior] da mesma forma que ele [o

interpretante] está numa [relação de representação] com este

segundo elemento [dessa representação anterior]).

(df_4)

Noções Gerais abreviatura

Noção Geral I: O interpretante é algo da natureza de uma

representação. (NG I)

Noção Geral II: O interpretante é uma representação mediadora

produzida sobre uma relação diádica (chamada de relação-base). (NG II)

Noção Geral III: O interpretante é produto de uma regra

recursiva. (NG III)

Noção Geral IV: Um signo é qualquer elemento produzido para

representar algo. (NG IV)

Noção Geral V: Um objeto é qualquer elemento representado

por um signo. (NG V)

Princípios Gerais abreviatura

Lei fundamental da razão: Não bloqueie o caminho da

investigação. (LFR)

Princípio de sequência: Toda representação requer um

interpretante. (PRS)

Page 418: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

403

13.2 A recursividade como condição necessária

Passemos, então, nesta segunda seção, à tarefa de provar que a recursividade é condição

necessária para a sustentação das teses elementares da semiótica peirceana (e, por

extensão, para o projeto filosófico peirceano). Modificar o conceito de representação

(que é a parte essencial da semiótica) ou, ao menos, o modo como ele é caracterizado

dentro da teoria, é obviamente o primeiro passo para verificarmos que a recursividade é

uma condição necessária para a sustentação daquelas duas teses. A ideia é criar uma

teoria semiótica cujo conceito de representação não seja recursivo e verificar se, dentro

desta semiótica, é possível estabelecer as duas teses fundamentais. A definição de

representação a seguir é claramente não-recursiva: uma representação é uma relação

binária entre um signo e um objeto (i.e., um conjunto de pares ordenados cujo primeiro

elemento é o signo e o segundo elemento é o objeto).

De acordo com a definição acima apresentada, uma representação é simplesmente uma

relação binária. Para que sejamos mais precisos, a representação, neste caso, é entendida

como um par ordenado cujo primeiro elemento é o signo e o segundo elemento é o

objeto. Podemos afirmar que este é um conceito tradicional de representação em

oposição ao conceito peirceano de representação (que é não-tão-tradicional-assim).

Se, por um lado, dentro da semiótica peirceana, a concepção de processo interpretativo é

inseparável do conceito de representação, no caso desta semiótica não-peirceana que

recorre a uma definição tradicional de representação, o conceito de processo

interpretativo (que passaremos a distinguir com o símbolo ' da seguinte forma: processo

interpretativo') precisa ser construído de forma independente.

Elementos de uma semiótica baseada no conceito tradicional de

representação: semiótica não-peirceana (i.e., "não-recursiva")

Definições Básicas Abreviatura

Definição tradicional de representação (dft_1): uma

representação é um par ordenado constituído por um signo (como

primeiro elemento) e um objeto (como segundo elemento).

(dft_1)

Definição tradicional de signo (dft_2): Um signo é o primeiro

elemento de uma representação. (dft_2)

Definição tradicional de objeto (dft_3): um objeto é o segundo

elemento de uma representação. (dft_3)

Definição tradicional de processo interpretativo (dft_4): um

processo interpretativo' é uma sequência de representações

encadeadas (e este encadeamento consiste em arranjar os pares

ordenados [as representações] de modo que o segundo elemento de

um par na sequência seja o primeiro do próximo par na sequência).

(dft_4)

Page 419: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

404

Notemos que, neste caso, representações são simplesmente pares ordenados cujo

primeiro elemento é o signo (i.e., aquilo que representa) e o segundo elemento é o

objeto (aquilo que é representado). O ponto que pretendemos estabelecer, então, é que,

com esta definição, ainda que possamos lidar com algum tipo de processo interpretativo'

(encadeando as representações, i.e., encadeando os pares ordenados, como veremos a

seguir), jamais poderíamos provar que os processos interpretativos (descritos por esta

teoria) não podem ter origem ou fim. Dentro desta teoria semiótica da representação,

sempre é possível construir um encadeamento de representações (i.e., um processo

interpretativo') que tem um ponto de origem ou um ponto final. Na semiótica peirceana,

isto simplesmente não é possível. Dado um processo interpretativo, é impossível afirmar

que há uma origem ou um ponto final. Como vimos na seção anterior.

Pelas definições básicas (acima apresentadas), dentro desta semiótica com o conceito

tradicional de representação, podemos construir a noção de processo interpretativo'

lançando mão de uma concepção de cadeia de pares ordenados. Neste caso, podemos

definir uma cadeia de pares ordenados como uma sequência de pares ordenados dentro

da qual o segundo elemento do par ordenado que está na posição a1 dentro da sequência

é o primeiro elemento do par ordenado que está na posição a2 (i.e., a posição seguinte).

Uma cadeia seria uma sequência em que uma representação termina onde a próxima (da

sequência) começa. Assim, o objeto (de um signo) é um novo signo. Este novo signo,

por sua vez, deve ter um outro objeto. Então, se imaginarmos que também este outro

objeto pode ser considerado um outro signo, então notaríamos que estamos diante de

uma cadeia. Suponha uma situação em que um elemento A seja um signo que represente

um elemento B, que, por isso, é denominado objeto (de A). Então na sequência;

encontramos na posição de signo o elemento B (que é o antigo objeto do signo A na

representação anterior) e na posição de objeto (deste signo B) um elemento C. Em

seguida, encontramos, numa terceira representação (i.e., num terceiro par ordenado) o

elemento C como signo e o elemento D como objeto. Chamemos esta cadeia de

representações de sequência S:

Esquema da sequência S (construída dentro de uma semiótica não-peirceana)

[ A - B ] ; [ B - C ] ; [ C - D ]

[Signo1 - Objeto1] ; [Signo2 = Objeto1 - Objeto2] ; [Signo3 = Objeto2 - Objeto3]

Ainda que, com esta definição, pareçamos estar próximos ao conceito de processo

interpretativo que encontramos dentro da semiótica peirceana, devemos chamar atenção

para algumas diferenças essenciais. A sequência apresentada acima tem obviamente um

ponto de origem: o elemento A (o signo1). E também há um ponto de chegada: o

elemento D (objeto 3). Esta possibilidade não está "disponível" na semiótica peirceana.

O principal ponto a ser notado é que este conceito tradicional de representação nos

permite afirmar que é possível haver uma primeira representação dentro de uma

sequência. Se tentássemos proceder dessa forma na semiótica peirceana, seríamos

Page 420: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

405

obrigados a reconhecer que o que chamamos de primeira representação não pode ser de

fato classificada como uma representação, pois toda representação, para ser definida,

requer uma referência a uma representação anterior numa sequência.

Como o processo interpretativo' é definido como um encadeamento de representações e

cada uma das representações é um par (com um signo e um objeto), então, pelas

definições (de processo interpretativo' e de representação), não é necessário que uma

cadeia construída de acordo com tais definições seja infinita. Isto é outra forma de

afirmar que este corpo teórico admite a existência de uma cadeia de representações que

seja finita. Como as definições básicas desta semiótica não-peirceana nos permitem

construir uma cadeia que seja finita, i.e., que tenha um primeiro e um último par, então

a construção de uma cadeia com estas características deve ser o primeiro passo de cada

uma das provas que apresentaremos a seguir. Portanto, o primeiro passo em cada um

dos argumentos que apresentaremos a seguir é justamente a hipótese relativa a

existência de uma certa sequência de representações (que cumpre a propriedade de ter

um primeiro e um último elemento). A partir da existência desta sequência (que é

permitida dentro desta teoria não-peirceana), provaremos, dentro dos argumentos 5 e 6,

respectivamente a proposição que "há (ao menos) um signo que não é objeto" e a

proposição que "há (ao menos) um objeto que não é signo"249

. A partir dessas

proposições, estamos aptos a provar, ainda nestes mesmos argumentos 5 e 6, a negação

das teses elementares da semiótica peirceana. O objetivo geral dessas provas

(apresentadas nos argumentos 5 e 6) é mostrar que, dentro desta teoria semiótica não-

peirceana ("não-recursiva"), podemos derivar as negações das teses elementares (da

semiótica peirceana). Denominemos novamente de sequência S esta cadeia de pares

ordenados (representações) que possui o primeiro e o último elemento.

Argumento 5 - para o estabelecimento da negação da primeira tese elementar da

semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da representação

Hipótese: suponha a existência de uma sequência S cujo

primeiro termo seja o par ordenado [a,b], o segundo termo da

sequência seja o par ordenado [b,c] e o último termo da

sequência seja o par ordenado [c,d] e, além disso, todos os

termos da sequência S são pares ordenados em que o primeiro

elemento é um signo e o segundo elemento é um objeto.

(hip)

249

Estas proposições são as equivalentes, dentro desta semiótica não-peirceana, às teses de Savan dentro

da semiótica peirceana.

Page 421: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

406

Trecho 5.1 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Toda representação é um par ordenado constituído

por um signo como primeiro elemento e um objeto como

segundo elemento.

(dft_1)

Premissa2: Todos os termos da sequência S são pares ordenados

em que o primeiro elemento é um signo e o segundo elemento é

um objeto.

(hip)

Conclusão: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma

representação. (prp_5.1)

Trecho 5.2 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Todo processo interpretativo' é uma sequência de

representações encadeadas (e este encadeamento consiste em

arranjar os pares ordenados [as representações] de modo que o

segundo elemento de um par na sequência seja o primeiro do

próximo par na sequência)

(dft_4)

Premissa2: A sequência S é uma sequência de representações

encadeadas. (hip)

Conclusão: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)

Trecho 5.3 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: O primeiro termo da sequência S é a representação

(par ordenado) [a,b]. (hip)

Conclusão: A sequência S possui uma primeira representação. (prp_5.3)

Trecho 5.4 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)

Premissa2: A sequência S possui uma primeira representação. (prp_5.3)

Conclusão: Algum processo interpretativo' possui uma primeira

representação. (prp_5.4)

Page 422: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

407

Trecho 5.5 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Algum processo interpretativo' possui uma primeira

representação. (prp_5.4)

Conclusão:Algum primeiro elemento de uma representação não

é um segundo elemento de uma representação (anterior) (prp_5.5)

Trecho 5.6 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Todo primeiro elemento de uma representação é um

signo. (dft_2)

Premissa2: Algum primeiro elemento de uma representação não

é um segundo elemento de uma representação (anterior). (prp_5.5)

Conclusão: Algum signo não é um segundo elemento de uma

representação (anterior). (prp_5.6)

Trecho 5.7 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Todo segundo elemento de uma representação é um

objeto. (dft_3)

Premissa2: Algum signo não é um segundo elemento de uma

representação (anterior). (prp_5.6)

Conclusão: Algum signo não é um objeto (de uma representação

anterior). (prp_5.7)

Trecho 5.8 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Algum signo não é um objeto (de uma representação

anterior). (prp_5.7)

Conclusão: Há (ao menos) um signo que não é objeto. (prp_5.8)

Page 423: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

408

Trecho 5.9 do argumento para o estabelecimento da negação da primeira tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Há (ao menos) um signo que não é objeto. (prp_5.8)

Conclusão: Não é o caso em que 'não há primeiro signo' (prp_5)

Estabelecida, então, a negação da primeira tese da semiótica peirceana ("não há

primeiro signo") dentro desta semiótica não-peirceana, passemos para negação da

segunda tese (da semiótica peirceana).

Argumento 6 - para o estabelecimento da negação da segunda tese elementar da

semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da representação

Hipótese: suponha a existência de uma sequência S cujo

primeiro termo seja o par ordenado [a,b], o segundo termo da

sequência seja o par ordenado [b,c] e o último termo da

sequência seja o par ordenado [c,d] e, além disso, todos os

termos da sequência S são pares ordenados em que o primeiro

elemento é um signo e o segundo elemento é um objeto.

(hip)

Os dois primeiros trechos da argumentação que segue são iguais ao da argumentação

anterior (por este motivo, mantivemos a numeração das abreviaturas, pois tratam-se das

mesmas proposições mobilizadas nos raciocínio anterior).

Trecho 6.1 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Toda representação é um par ordenado constituído

por um signo como primeiro elemento e um objeto como

segundo elemento.

(dft_1)

Premissa2: Todos os termos da sequência S são pares ordenados

em que o primeiro elemento é um signo e o segundo elemento é

um objeto.

(hip)

Conclusão: Todo interpretante é o primeiro elemento de uma

representação. (prp_5.1)

Page 424: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

409

Trecho 6.2 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Todo processo interpretativo' é uma sequência de

representações encadeadas (e este encadeamento consiste em

arranjar os pares ordenados [as representações] de modo que o

segundo elemento de um par na sequência seja o primeiro do

próximo par na sequência)

(dft_4)

Premissa2: A sequência S é uma sequência de representações

encadeadas. (hip)

Conclusão: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)

Trecho 6.3 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: O último termo da sequência S é a representação (par

ordenado) [c,d]. (hip)

Conclusão: A sequência S possui uma última representação. (prp_6.3)

Trecho 6.4 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: A sequência S é um processo interpretativo'. (prp_5.2)

Premissa2: A sequência S possui uma última representação. (prp_6.3)

Conclusão: Algum processo interpretativo' possui uma última

representação. (prp_6.4)

Trecho 6.5 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Algum processo interpretativo' possui uma última

representação. (prp_6.4)

Conclusão:Algum segundo elemento de uma representação não

é um primeiro elemento de uma representação (subsequente) (prp_6.5)

Page 425: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

410

Trecho 6.6 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Todo segundo elemento de uma representação é um

objeto. (dft_3)

Premissa2: Algum segundo elemento de uma representação não

seja um primeiro elemento de uma representação (subsequente). (prp_6.5)

Conclusão: Algum objeto não é um primeiro elemento de uma

representação (subsequente). (prp_6.6)

Trecho 6.7 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Todo primeiro elemento de uma representação é um

signo. (dft_2)

Premissa2: Algum objeto não é um primeiro elemento de uma

representação (subsequente). (prp_6.6)

Conclusão: Algum objeto não é um signo (de uma representação

subsequente). (prp_6.7)

Trecho 6.8 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Algum objeto não é um signo (de uma representação

subsequente). (prp_6.7)

Conclusão: Há (ao menos) um objeto que não é signo. (prp_6.8)

Trecho 6.9 do argumento para o estabelecimento da negação da segunda tese

elementar da semiótica peirceana dentro de uma teoria "tradicional" da

representação

Premissa: Há (ao menos) um objeto que não é signo. (prp_6.8)

Conclusão: Não é o caso em que 'não há último signo' (prp_6)

O único ponto que alteramos na base desta semiótica não-peirceana é a definição de

representação. E isto já foi suficiente para tornar possível a construção de certos objetos

dentro da teoria: por exemplo, processos interpretativos' (i.e., sequências de

representações) que possuem um primeiro ou um último elementos (ou ambos). Este

tipo de objeto não pode ser construído dentro da semiótica peirceana. Esta teoria não

permite. Como a partir desta caracterização não-recursiva do conceito de representação,

Page 426: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

411

conseguimos derivar a negação das teses elementares, então a caracterização recursiva

do conceito de representação é uma condição necessária para o estabelecimento das

teses elementares.

Por sua vez, o estabelecimento das teses elementares é uma condição necessária para

que o processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) consiga cumprir seu

papel dentro do projeto filosófico: explicar como se tornam possíveis os raciocínios

sintéticos. Se nos recordarmos que nesta explicação Peirce recorre à ideia de que o

processo interpretativo se direciona para um ponto-limite e como para seguir

(eternamente) em direção a este ponto-limite o processo deve passar por uma

quantidade infinita de signos/interpretantes, então notaremos que não há como afirmar

que há um número finito de signos/interpretantes (no processo interpretativo conforme

descrito pela semiótica peirceana).

O problema é que há, ao menos, uma interpretação que pode ser feita a partir do

estabelecimento das duas teses elementares que não segue na direção intencionada por

Peirce em seu projeto filosófico. É possível se apresentar uma interpretação segundo a

qual, embora não haja primeiro, nem último signo dentro do processo interpretativo, há

um número finito de elementos disponíveis para ocuparem estas posições (dentro do

processo). Ora, neste caso, seriam verdadeiras as duas teses elementares, mas o processo

interpretativo funcionaria com um número finito de elementos. Esta interpretação é

aquela segundo a qual o processo interpretativo é circular. É óbvio que, neste caso, o

processo interpretativo jamais poderia se dirigir para um ponto-limite (externo à série),

mas ele retornaria sempre para algum ponto anterior na sequência. No lugar da

convergência, a teoria descreveria uma espécie de prisão.

Esta interpretação arruinaria todo o projeto filosófico elaborado pelo jovem Peirce, pois,

sob esta perspectiva, o processo interpretativo (descrito pela semiótica) seria circular e,

por este motivo, não poderia convergir para o ponto-limite que, dentro da teoria,

explicaria a possibilidade da síntese. Para tornar impossível, seria necessário estabelecer

uma terceira tese dentro da semiótica peirceana (além das duas elementares). No nono

capítulo, denominamo-la de tese adicional.

Tese adicional

Tese_3 da semiótica --> Todo processo interpretativo tem um número infinito de

elementos.

Aparentemente, esta tese poderia ser derivada das duas teses elementares. Entretanto, o

que, de fato, pode ser destas derivado é a proposição segundo a qual "todo processo

interpretativo tem um número infinito de signos/interpretantes", o que é diferente de

uma proposição que afirme haver (em todo processo interpretativo) um número infinito

de elementos que ocupam a posição de signo e interpretante. O número de

Page 427: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

412

signos/interpretantes (num processo interpretativo) pode ser obviamente diferente do

número de elementos disponíveis para ocuparem as posições de signos e interpretantes

(neste mesmo processo). Se for estabelecido que o primeiro desses números é infinito (e

foi o que fizemos nesta seção), isto não implica que o segundo desses números também

tenha que ser infinito. Para barrar esta interpretação que entende o processo

interpretativo como circular precisamos da tese segundo a qual "todo processo

interpretativo tem um número infinito de elementos". Neste ponto, aproximamo-nos dos

limites de nossa exposição. Intuitivamente sabemos que esta tese é verdadeira dentro da

semiótica, mas não podemos demonstrá-la a partir do "material" que temos disponível.

Isto significa que estamos próximos dos limites do que podemos sustentar com

segurança a partir das análises que apresentamos nas últimas centenas de páginas. Para

estabelecer esta tese_3 da semiótica ("todo processo interpretativo tem um número

infinito de elementos"), seria preciso desenvolver uma análise muito detalhada do

segundo e terceiro artigos da série cognitiva e examinar mais de perto a natureza deste

processo de convergência previsto pela semiótica de Peirce.

Ainda que estejamos impedidos de apresentar uma demonstração mais formal desta tese

que é capaz de impedir esta interpretação catastrófica do funcionamento circular da

semiótica peirceana250

, optamos por dedicar a última seção deste último capítulo à tarefa

de aduzir razões para não se aderir a esta interpretação. Ao contrário de grande parte

das semióticas do século XX, não é justo que se diga que semiótica peirceana é um

corpo teórico projetado para permanecer eternamente de costas para o mundo.

250

Não seria nenhuma surpresa caso se descubra que, "por baixo" desta interpretação (inclusive,

possibilitando-a), esteja um problema muito elementar (de todo o pensamento peirceano) que é a

distinção discreto/continuum.

Page 428: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

413

13.3 A Hipótese da prisão linguística

Não são raros os artigos ou livros que nos oferecem estudos comparativos entre a

semiótica peirceana e aquela que deve ser considerada a semiótica do século XX: a

estruturalista. Num primoroso livro, Jorgen Dines Johansen (1993) escolheu, como título

da parte que trata especificamente de semiótica estruturalista, a seguinte expressão:

"signos sem mundos". Esta expressão é bastante feliz, pois o ponto de distinção é mesmo

o fato de a semiótica peirceana descrever formalmente um processo (interpretativo) que

foi mobilizado dentro do projeto filosófico do jovem Peirce para explicar como o sujeito

cognoscente (entendido como uma espécie de comunidade indefinida de investigadores)

consegue obter conhecimento sobre o mundo. A semiótica peirceana está, dentro do

referido projeto filosófico, voltada para o mundo. Como o modelo sígnico (diádico)

mobilizado por Saussure em sua obra "Curso de Linguística Geral" (e também em seu

projeto semiológico) exclui o objeto de referência, não é nenhuma surpresa que as

reflexões dos representantes mais filosofantes da corrente estruturalista que atravessou o

século tenham desaguado na concepção de "prisão linguística". O que não é natural, nem

pode ser admitido pelos estudiosos dos escritos de Peirce é que algumas interpretações

levem a semiótica peirceana para o mesmo destino.

Ao longo do século XX, o termo "semiótica" (bem como seus congêneres) esteve

associado com mais frequência ao nome de Ferdinand de Saussure do que ao nome de

Peirce. A semiótica saussureana parece ter agido no século XX como uma espécie de guia

interpretativo, algo como uma interpretação dominante. De acordo com os lamentos de

alguns peirceanos mais ciosos, durante quase todo este século, mesmo aqueles que

optaram por estudar a obra de Peirce tomaram como norte a concepção de semiótica

elaborada por Saussure e passaram, aos poucos, a projetar intenções próprias do projeto

semiológico saussuriano (ou a ele atribuídas por seguidores) no projeto filosófico

peirceano. Em seu livro sobre a teoria geral dos signos de Peirce, Thomas Short se queixa,

já na primeira linha, deste problema.

A teoria peirceana dos signos, ou semeiótica [semeiotics], mal interpretada

por tantos, caiu nas mãos das pessoas erradas. Esta teoria foi tomada por um

exército interdisciplinar de semioticistas cujas visões e intenções são

antagônicas às do próprio Peirce e, enquanto isso, ela tem sido evitada por

aqueles filósofos que, mais próximos aos propósitos de Peirce, estão

trabalhando exatamente nos problemas para os quais a semiótica foi

desenvolvida para solucionar.

(Short, 2007, prefácio, p. XI)

É possível que concordemos com o que Short afirma na primeira parte da primeira frase

do trecho acima transcrito. Em geral, parece-nos que Peirce tem sido mal interpretado,

porém não acreditamos que o problema esteja na natureza interdisciplinar do exército de

intérpretes ao qual Short se refere. Aliás, quem não corre o risco de ser mal interpretado?

Por este motivo, geralmente, filósofos são sepultados em valas de dimensões maiores do

Page 429: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

414

que aquelas reservadas aos demais mortais. Isto faz com que haja margem de manobra

dentro do túmulo para que se possa falar bastante besteira acerca de sua obra pelos

séculos que se seguirem à sua morte. Numa vala generosa, o filósofo pode revirar-se,

debater, espernear à vontade e sua inquietação não irá atrapalhar o descanso dos vizinhos.

Para isto, não parece haver remédio. Em geral, falar besteira é uma propriedade associada

ao fenômeno antropológico. A internet vem paulatinamente conseguindo provar esta tese.

Em particular, no ambiente acadêmico, interpretações estapafúrdias de obras filosóficas (e

mesmo de teorias científicas) têm aparecido com cada vez mais frequência, o que parece

ser resultado da industrialização da academia: implementação de sistemas de pontuação

puramente quantificacionais, índices de produtividade, "quadrilhas citacionais" (este é um

tipo de crime de lesa-humanidade que consiste em produzir artigos acadêmicos de

baixíssima qualidade somente com a finalidade de citar outro artigo do mesmo tipo

produzido por outro membro da mesma quadrilha), etc.. O desalento é que esta "era do

paper"251

está apenas em seus primeiros dias e a expectativa é que ela nos reserve ainda

muitas surpresas desagradáveis no futuro.

Ainda que concordemos com a afirmação de que Peirce tem sido, em geral, mal

interpretado, não podemos concordar com a ideia de que sua obra tenha "caído nas mãos

das pessoas erradas". Um livro tão respeitável não poderia ter começado de forma tão

desrespeitosa. Dificilmente, pode ser afirmado de forma categórica que um grupo de

pessoas detém ou deveria deter o "monopólio interpretativo" de alguma obra. Exceção

deve ser feita para algumas seitas. Acreditamos que esta frase inicial do livro de Short (até

por sua localização dentro do texto) não deve ser entendida literalmente. É um recurso

retórico. O tom agressivo destas primeiras linhas não combina com o comportamento que

esperamos de um intérprete do porte de Thomas Short. Entendido literalmente, esta frase

seria fruto de uma supersimplificação de uma realidade que está longe de ser simples. A

expressão "cair nas mãos das pessoas erradas" é o tipo de frase que esperamos ouvir

naquelas histórias infantis sobre super-heróis em que exageramos os traços

comportamentais das "pessoas certas" e os das "pessoas erradas" justamente para que a

criança possa distinguir comportamento canônico de comportamento desviante. Por

exemplo, é comum neste tipo de narrativa ouvirmos da boca de um personagem a frase

"este artefato pode cair nas mãos das pessoas erradas" logo que se descobre que os

cientistas desenvolveram um novo armamento que possui um poder de destruição muito

maior ao das armas disponíveis até então.

O exército interdisciplinar (cujo auxílio Short despreza) foi recrutado nas mais distantes

áreas das ciências e humanidades e é natural que cada um de seus membros carregue, de

sua "terra natal", de sua unidade, algumas projeções, intenções, estratagemas específicos

para o campo de batalha. Se, por um lado, concordamos com a ideia de que devemos nos

esforçar para distinguir o pensamento peirceano de outras abordagens com as quais ele

tem sido "confundido sistematicamente", por outro lado, não é possível menosprezar

certas interpretações ou desenvolvimentos (da obra peirceana) provenientes de áreas

muito distantes da filosofia. Não podemos, a priori, depreciar o auxílio deste exército

251

ou "civilização do paper" (Cf. Prado Jr., 2004, p. 24)

Page 430: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

415

interdisciplinar. Comecemos pelas distinções e passemos (ao final desta seção) para as

justificativas que nos levam a acreditar que a semiótica é, por natureza, interdisciplinar.

Se focalizarmos apenas a relação entre Saussure e Peirce, notaremos que a distância entre

os dois é abissal.

De fato, o projeto filosófico peirceano cujo escopo é construir um modelo lógico da

mente para explicar a possibilidade de validação dos raciocínios sintéticos está muito

distante do projeto (que veio a público em 1916 e foi) sugerido por Ferdinand de

Saussure. Ainda que enxerguemos uma afinidade entre ambos os projetos pelo fato de

Peirce ter proposto uma espécie de teoria social da lógica (cf. CP 5.341[1869]) e de

Saussure ter preestabelecido que a semiologia deveria ser tratada como uma ciência que

estudaria "a vida dos signos no seio da vida social" (Saussure, 2006 [1916], p. 24), pode-

se argumentar que tal coincidência não pode nos impedir de notar que o projeto peirceano

pretende responder a um problema constituído a partir dos debates filosóficos acerca de

questões epistemológicas realizados dentro do período moderno e o mesmo não pode ser

dito do projeto saussuriano. A preocupação central de Peirce é arranjar suas próprias

peças para colocá-las no tabuleiro da epistemologia252

. Na verdade, o que não é incomum

em filosofia, Peirce pretende utilizar certas peças e alguns deslocamentos de perspectiva

para redesenhar o próprio jogo. Em seu sistema filosófico, a semiótica passa a ocupar uma

posicão central253

.

Por sua vez, como já afirmamos, a preocupação teórica de Saussure é explicar um

fenômeno linguístico a partir de um modelo diádico de signo (cujos elementos são:

significante e significado). A teoria da representação que está por trás da abordagem

saussuriana é uma espécie de “semântica de listagem”: a cada significante corresponde

um significado (a cada representante corresponde um representado). Significado, segundo

esta perspectiva, é uma entidade, algo como um conteúdo mental ou, nos termos de

Saussure (2006 [1916], p.80), um conceito. Ao contrário das teorias da representação que

"deixam" o significado se entificar, a semiótica peirceana nos apresenta uma concepção

de significado como um fluxo. Na teoria peirceana da representação, não podemos nos

referir ao significado como se fosse algo, como se fosse uma entidade mental ou um

estado interno, por exemplo. Aliás, levadas às últimas consequências, dentro das teorias

peirceanas, não há conteúdos mentais, estados internos, etc. Por este motivo, a teoria da

representação mobilizada dentro da semiótica peirceana é inseparável da ideia fluxo.

Começamos nosso texto (há mais de quatrocentas páginas) tentando explicar o "sucesso"

da semiótica saussureana e de teorias semânticas assemelhadas. Nossa hipótese inicial é

que tais propostas teóricas são simples. Ainda que alguns dos seguidores de Saussure

tenham prestado inestimáveis contribuições no sentido de torná-la cada vez mais

complexa, no fundo, o objetivo do projeto semiológico de Saussure (comparado ao do

252

Ainda que Peirce tenha travado suas principais batalhas no campo da epistemologia, como já nos

referimos (também em nota), para Hookway (1992 [1985], p. 18), as intenções de Peirce na série

cognitiva eram, na verdade, metafísicas. 253

Deely denominou a concepção de semiótica que Peirce desenvolveu de "a grande visão" (Delly, 1996,

p. 46).

Page 431: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

416

projeto peirceano) continuou humilde: explicar fenômenos semânticos não-linguísticos a

partir de um modelo desenvolvido para explicar fenômenos linguísticos. E ainda que

derrubem nossa hipótese inicial de que estas propostas teóricas eram, em si mesmas,

simples, podemos continuar argumentando que elas o eram relativamente, pois algumas

das teorias mobilizadas por Peirce em seu projeto filosófico dependem de deslocamentos

de perspectivas suficientemente complexos (como a passagem do sujeito cognoscente

individual para o coletivo ou a construção de uma concepção pragmática de realidade [ou

de verdade]). No primeiro capítulo, defendemos a tese de que a semiótica peirceana é algo

mais que complexa. Ela é essencialmente "estranha". A ideia de fluxo que reside no

coração da semiótica peirceana é difícil de ser aceita. Esta ideia parece ter um efeito

atordoante. De fato, nas outras semióticas e outras teorias mais tradicionais da

representação, não se lida com um conceito que vem desde os gregos dando forma aos

mais embaraçantes paradoxos: o conceito de infinito. Como já nos referimos no capítulo

anterior (em sua primeira seção), é provável que a fonte desta interpretação de Short que

pretendemos criticar nesta seção seja justamente uma aversão com relação a este conceito.

Short se queixa do exército de semioticistas que levaram Peirce para terras distantes para

lutar numa guerra que não era sua, mas o próprio Short parece ter problemas em seguir

Peirce nalgumas batalhas que o filósofo norte-americano resolveu entrar (por força de seu

projeto filosófico). Aparentemente, Short está impossibilitado de aceitar que, nos escritos

do final da década de 1860, Peirce decide travar alguns combates para conquista de

determinados territórios específicos cujo domínio julgava estratégico para todo o seu

projeto. Um desses territórios é o conceito de continuum que Peirce mobilizou na série

cognitiva (e em momentos posteriores) para lidar com problemas relativos ao conceito de

infinito. Acreditamos que Peirce tomou esta decisão, pois entendeu, desde muito cedo,

que o conceito de infinito não poderia ser eliminado do horizonte teórico de seu sistema

filosófico. Short reluta em aceitar que o progressus e também regressus infinitos são

constitutivos da semiótica peirceana.

O problema com o posicionamento de Short é que o seu entendimento do projeto filosófico

do jovem Peirce está muito mais próximo de teses que são mais facilmente encontradas em

abordagens estruturalistas do que parece à primeira vista. Mais de vinte anos antes desta

obra da qual retiramos o trecho acima citado, Short já tinha desenvolvido a tese de que o

fato de o processo interpretativo descrito pela semiótica (proposta pelo jovem Peirce) ser

necessariamente infinito criaria uma espécie de "prisão semiótica na qual cada signo

significa apenas aquilo que outro signo o faz significar" (Short, 1986, p. 103).

Nesta seção, pretendemos argumentar, por diversas vias, que este entendimento do

processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) como algo que deve funcionar

como um aprisionamento semiótico segue na direção contrária àquela intencionada por

Peirce em seu projeto filosófico. Como a semiótica peirceana é justamente a tentativa de

descrição de um processo constituído por uma série infinita de representações cujo limite

está fora da própria série, a expressão "prisão semiótica" se aproxima perigosamente do

que geralmente é denominado de uma "contradição em termos", vamos nos referir a esta

Page 432: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

417

ideia que está presente na interpretação de Short com um nome que consideramos mais

apropriado: prisão linguística254

.

A interpretação de Short a respeito da prisão linguística (o que denominou de "prisão

semiótica") parece estar relacionada a uma leitura do texto peirceano que atribui duas

características básicas ao processo interpretativo.

Características do processo interpretativo de acordo com a hipótese da prisão linguística

C1) o processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) possui um número

finito de elementos disponíveis para ocuparem a posição de signos/interpretantes.

C2) o processo interpretativo (descrito pela semiótica peirceana) é puramente

mecânico.

A atribuição ao processo interpretativo da segunda dessas características é uma espécie de

"leitura behaviorista" do texto peirceano. De acordo com esta leitura, um signo específico

seria completamente determinado por um signo anterior que ele interpreta. Esta

interpretação seria puramente mecânica, pois uma regra interpretativa agiria sempre para

fazer com que o signo x tivesse como interpretante o signo y, ou seja, a regra

interpretativa sempre faria com que o signo x fosse seguido (dentro da sequência) pelo

signo y.

Já a atribuição ao processo interpretativo da primeira dessas característica é uma espécie

de "leitura linguística" do texto peirceano. Se entendermos que a semiótica estuda signos

que estão dentro de uma língua ou de um código específico, teremos que concluir que a

semiótica estuda signos que funcionam dentro de sistemas cujo elementos significantes

são finitos (por exemplo, dentro da língua portuguesa, há um número finito de vocábulos).

Assim, caso tentemos utilizar este conjunto finito de elementos para construir um

processo interpretativo sem último signo (o que é uma exigência teórica do projeto

filosófico peirceano), então, teríamos, a partir de determinado momento, que começar a

repetir signos.

Quando alguém resolve defender a hipótese de que o processo interpretativo (descrito

pela semiótica peirceana) é uma espécie de prisão linguística (ou, nos termos de Short,

"prisão semiótica") é possível que o faça de dois modos: sustentando uma versão forte ou

uma versão fraca desta hipótese. Na versão forte desta hipótese, entende-se que o

processo interpretativo possui a primeira característica acima apresentada ("possuir um

número finito de elementos que possam ser utilizados como signo") e também,

adicionalmente, a segunda delas ("ser um procedimento puramente mecânico"). Neste

caso, o processo interpretativo, se for levado suficientemente longe, começará a utilizar

signos repetidos (i.e., signos que já ocorreram antes no processo), que terão como

interpretantes também signos que já ocorreram antes. Esta é a versão forte da hipótese,

254

cf. uso dessa expressão por Frederic Jameson (1972)

Page 433: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

418

pois, neste caso, o processo interpretativo necessariamente deve começar a se repetir, a

"andar em círculos" (pois, esgotaram-se os signos) e seria justamente esta repetição que

caracterizaria a prisão (referida pelo nome da hipótese). Em sua versão fraca, entende-se

que o processo interpretativo não possui a primeira característica (C1), mas possui apenas

a segunda delas (C2). Assim, mesmo que haja um número infinito de elementos

disponíveis para serem signos/interpretantes (o que é exigido pela semiótica peirceana),

por algum motivo particular, um processo interpretativo específico pode começar a se

repetir e isto caracterizaria a tal prisão linguística. Esta é a versão fraca da hipótese, pois,

ao contrário da anterior, o processo interpretativo não deve necessariamente começar a se

repetir. Se ele o fizer, isto ocorrerá por motivos particulares, por acidente e não por

necessidade.

Nosso objetivo nas próximas páginas é argumentar que o processo interpretativo

conforme descrito pela semiótica peirceana elaborada ao final da década de 1860 só pode

ser considerado uma prisão linguística sob esta segunda versão da hipótese, a versão

fraca. O problema é que, como veremos, esta versão fraca é contraditória. Para captar de

modo mais formal a ideia de prisão (referida nas duas versões dessa hipótese), vamos

utilizar a noção de looping255

.

Em primeiro lugar, vejamos o caso em que o processo interpretativo é entendido como

algo que possui simultaneamente as duas características acima mencionadas. Se

interpretarmos que os signos funcionam como palavras e, mais especificamente, se

entendermos que os signos são vocábulos estabelecidos dentro de um código

(característica C1 acima mencionada), então temos que aceitar a seguinte proposição: há

um número finito de signos. Se há um número finito de signos e se levarmos

suficientemente longe um processo interpretativo, então, cedo ou tarde, precisaríamos

recorrer a signos que já foram utilizados em passos anteriores (desse processo

interpretativo). Neste caso, se um signo específico sempre tiver como sucessor, dentro da

sequência, o mesmo signo (característica C2 acima mencionada), então entraríamos num

looping e o processo interpretativo nunca teria fim. Notemos que, se existe um número

finito de signos, então, para que haja um processo interpretativo infinito, é necessário

pressupor que tal processo seja circular.

Nas semióticas não-peirceanas (i.e., aquelas cujo conceito de representação não é

caracterizado recursivamente), não é difícil de se "enxergar" um processo interpretativo'

circular como o descrito acima. Suponhamos que existem apenas quatro signos numa

linguagem (ou num código): A, B, C e D. Podemos construir o seguinte processo

interpretativo' que, embora possua um número finito de elementos, continua eternamente.

Esquema da sequência S2 (construída dentro de uma semiótica não-peirceana)

[ A - B ] ; [ B - C ] ; [ C - D ] ; [ D - A ] ...

[Signo1 - Objeto1] ; [Signo2 = Objeto1 - Objeto2] ; [Signo3 = Objeto2 - Objeto3 ]; [Signo4 = Objeto3 - Objeto4] ...

255

Em computação, denomina-se loop ou looping uma sequência de instruções que se repete

continuamente até que determinada condição seja cumprida.

Page 434: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

419

Notemos que há quatro representações (quatro pares ordenados) neste processo

interpretativo, pois, a partir da quarta representação, entramos num looping e voltamos

para a primeira representação (o par A-B). Este looping pode ser representado

esquematicamente da seguinte forma:

A-B; B-C; C-D; D-A; A-B; B-C; C-D; D-A; A-B; B-C; C-D; D-A; A-B; B-C; C-D; D-A; ...

A ideia de uma prisão linguística parece consistir justamente no fato de se entrar num

looping. De acordo com esta ideia, a linguagem funcionaria como uma prisão, pois

qualquer signo estaria destinado a nos remeter a outro signo sem que jamais

chegássemos a qualquer outra coisa que não fosse um signo (que deveria nos remeter a

outro signo...). Também na semiótica peirceana, sabemos que todo signo remete a um

outro signo (aliás, todo signo é determinado por um signo anterior e determina um

signo posterior). Entretanto, o que passaremos a tentar mostrar é que nada está mais

distante da semiótica peirceana do que esta ideia de prisão linguística, pois a teoria

desenvolvida por Peirce afirma que há um ponto de fuga no processo interpretativo.

Como vimos, a solução teórica que Peirce pretende apresentar nos escritos do final da

década de 1860 é que há um processo de convergência, a série de signos converge para

um limite externo à própria série. No processo de aproximação deste limite, passa-se

por uma quantidade infinita de signos/interpretantes. De acordo com as linhas gerais da

semiótica peirceana, deve haver necessariamente um número infinito de elementos num

processo interpretativo256

.

Ora, a ideia de prisão linguística vai na direção contrária. Quando afirmamos que

estamos presos nalgum local, pressupomos que haja algo (tal como paredes, muros,

grades, etc.) que, de alguma forma, limite nossos movimentos. Neste caso, estamos

condenados a ter que repetir nossos passos. Dentro de uma cela, por exemplo, podemos

passar o resto da vida andando. Entretanto, se andarmos o suficiente notaremos que, em

algum momento, começamos a repetir passos e caminhos anteriores e, na verdade, nossa

"andança" não nos leva a lugar nenhum (que seja externo à prisão).

Aquele que interpreta dessa forma o processo interpretativo (descrito pela semiótica

peirceana) está implicitamente comparando o conceito de signo com a noção de palavra

ou vocábulo (pertencente a um código). Na segunda seção do sétimo capítulo, utilizamos

o exemplo do dicionário para nos referirmos à tese peirceana de que um signo remete

sempre a outro signo (i.e., um signo tem como interpretante outro signo). Este exemplo

serve somente para nos referirmos a esta característica específica do processo

interpretativo (esta noção de que há um primeiro elemento que, para representar um

segundo elemento, sempre deve se remeter a outro elemento numa sequência [i.e., um

terceiro]), entretanto, sob outras perspectivas, a palavra e o dicionário são péssimos

256

Como afirmamos ao final da seção anterior, disso sabemos intuitivamente, porém para demonstrar de

modo mais formal seria necessário aguardar uma análise minuciosa dos dois últimos textos da série

cognitiva.

Page 435: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

420

modelos para se interpretar o conceito peirceano de processo interpretativo. O motivo é

simples: este modelo pode nos dar a impressão de que os signos, como palavras, são

unidades discretas e, além disso, existem num número finito. Note que, no caso do

dicionário, sabemos de antemão que o número de elementos (vocábulos) é finito (embora

seja numeroso).

Tanto no dicionário, em particular, como no sistema linguístico, em geral, teríamos um

número finito de elementos, então, nestes casos, o fato de um signo só remeter a outro

signo nos colocaria numa espécie de prisão que, por ser vasta, nos daria a impressão de

estarmos livres. Porém, para que pudéssemos aplicar esta noção de prisão linguística à

semiótica peirceana seria necessário, como veremos adiante, pressupor que se trataria de

uma prisão infinita. Uma espécie de prisão sem grades ou muros. Seria um

"aprisionamento" que nos permitiria movimentarmos como bem entendermos, irmos para

onde quisermos. Isto é contraditório, pois este sistema prisional não cumpriria sua função

básica, que seria privar o indivíduo de sua liberdade (de ir e vir). Não acreditamos que

uma prisão dessas seja concebível, exceto metaforicamente. Longe de apresentar uma

leitura cientificista do texto peirceano, se observarmos que alguns dos maiores entusiastas

deste modelo da prisão linguística são pensadores contemporâneos com uma forte

inclinação para produzir textos repletos de metáforas e oximoros desconcertantes,

notaremos que este tipo de interpretação talvez não seja tão adequada à obra de um

filósofo que pretendia "resgatar o bom navio da Filosofia para o serviço da ciência das

mãos dos piratas sem lei da literatura" (CP 5.449 [1905])257

. Analisemos mais de perto a

relação entre esta ideia da prisão linguística e a semiótica peirceana.

Se observarmos na teoria peirceana da representação, qual seria o papel específico da

recursividade dentro desta teoria? A recursividade cria a necessidade de que qualquer

representação (entre dois elementos) recorra a um terceiro elemento. É indispensável a

introdução de um terceiro elemento C para que um primeiro elemento A represente um

segundo elemento B. Mas, este C é ele mesmo uma representação (ele é um interpretante

da representação anterior, porém é também um signo de uma representação posterior). Por

este motivo, ele vai exigir a entrada em cena de um quarto elemento D. E este elemento

D, por sua vez, vai exigir a entrada em cena de um quinto elemento E. Para fazermos com

que a semiótica peirceana caiba nesta hipótese da prisão linguística, teremos que fazer a

seguinte suposição: "há sempre um número finito de elementos disponíveis para um

processo interpretativo qualquer".

Se houver um número finito de elementos disponíveis para um processo interpretativo

específico, então, a partir de determinado momento, teremos que começar a repetir os

elementos (caso contrário teríamos que admitir que há um último elemento, há um último

signo [que não produz interpretante algum] e a teoria peirceana não permite que se admita

isto). Assim, se houver um número finito de elementos à disposição, algum elemento em

posição bem adiantada na sequência vai ter como interpretante um elemento que já tinha

257

No original: "(...) rescue the good ship Philosophy for the service of Science from the hands of lawless

rovers of the sea of literature (...)".

Page 436: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

421

ocorrido antes na sequência. Neste caso, os elementos que se seguirão a este elemento

repetido também já vão ter aparecido antes. Neste caso, entraríamos num looping.

Esquema da sequência S3 (construída dentro da semiótica peirceana)

A representa B - produz como interpretante C

C representa A (como representante de B) - produz como interpretante D

D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E

E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F

F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D

E a partir desse ponto, como o interpretante do elemento F é um elemento que já tinha

ocorrido na sequência ( D ), então entra-se num looping. Este looping pode ser

enxergado mais facilmente nos dois seguintes esquemas.

Esquema II da sequência S3 (construída dentro da semiótica peirceana)

A representa B - produz como interpretante C

C representa A (como representante de B) - produz como interpretante D

D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E

E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F

F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D

| D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E

| E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F

| F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D

| D representa C (como representante de B) - produz como interpretante E

| E representa D (como representante de B) - produz como interpretante F

| F representa E (como representante de B) - produz como interpretante D

Esquema III da sequência S3 (construída dentro da semiótica peirceana)

A - C - D - E -F

A - C - D - E -F - D - E -F - D - E -F - D - E -F - D - E -F ...

Page 437: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

422

O problema com raciocínio acima desenvolvido é que partirmos da seguinte suposição:

"se houver um número finito de elementos disponíveis para este processo interpretativo

(...)". Esta suposição é justamente o que afirma aquela proposição relativa à característica

C1 acima mencionada. Não podemos aceitar esta suposição, pois, como afirmamos no

final da seção anterior, é possível provar a tese segundo a qual, "num processo

interpretativo, há um número infinito de elementos" a partir das duas teses elementares e

de um exame do que Peirce afirma acerca da convergência (para o limite) nos dois

últimos artigos da série cognitiva.

Entretanto, antes de descartarmos esta hipótese, podemos testá-la em sua versão mais

fraca: o processo interpretativo pode entrar em looping. Neste cenário, vamos supor que

há um número infinito de elementos disponíveis para um processo interpretativo (o que é

compatível com a semiótica peirceana) e, ainda assim, por motivos particulares, tal

processo específico cai num looping. A diferença é que, neste caso, como há um número

infinito de elementos disponíveis (para entrarem na posição de signo), não mais podemos

afirmar que o processo interpretativo (se fosse levado suficientemente longe)

necessariamente cairia num looping. Neste caso, supondo que um processo interpretativo

específico (como a sequência S3) tenha de fato caído num looping, esta ocorrência não foi

fruto de uma necessidade, mas de um fator acidental (uma mera possibilidade). Ainda que

consideremos estranha esta versão fraca da hipótese segundo a qual o "aprisionamento"

não ocorre de forma necessária (mas simplesmente consiste numa possibilidade),

devemos testá-la.

Suponha que, num novo cenário, existam infinitos elementos disponíveis na "linguagem"

(no "código"), mas, por algum motivo, o interpretante de um signo seja um outro signo

que já tenha ocorrido na sequência. Então, como sabemos se este processo interpretativo

entrou ou não num looping? Primeiro, notemos que, quando afirmamos que um

determinado procedimento entrou num looping, afirmamos que há um trecho deste

procedimento que vai se repetir para sempre. É o caso do trecho "D - E -F" acima

apresentado (em qualquer dos cenários, tanto naquele em que todo processo interpretativo

deve necessariamente desembocar num looping, porque há um número finito de

elementos, como naquele outro cenário em que, apesar de haver um número infinito de

elementos, o processo interpretativo desemboca, por motivos particulares, num looping).

A favor da interpretação de Short, poderíamos notar que, neste segundo cenário, não

haveria um último signo (a Tese_2 seria verdadeira) e, se supuséssemos que o signo A foi

determinado por algum signo anterior, então também não haveria primeiro signo (o que

faria a Tese_1 ser verdadeira também). Só podemos saber que este processo interpretativo

entrou num looping, porque notamos que os passos começaram a se repetir. Entretanto, só

podemos ter certeza de que estamos, de fato, diante de um looping (i.e., um procedimento

que vai se repetir eternamente) se pressupormos que jamais pode ser alterada a regra que

determina que o interpretante de um signo x é sempre um signo y.

No caso da sequência S3, só podemos afirmar que o processo interpretativo em questão

de fato cai num looping a partir do momento que, por exemplo, pressupormos que jamais

Page 438: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

423

será alterada a regra (interpretativa) que estabelece que o signo F tem como interpretante

o signo D. Esta pressuposição é aquela referente à segunda característica (C2) apresentada

no início desta seção. Se os signos da sequência sempre tiverem como seus interpretantes

os mesmos signos, então, de fato, não há como escapar do looping. Neste caso, esta

interpretação nos afirmaria que o processo interpretativo, no fundo, é mecânico. Embora

intuitivamente saibamos que esta interpretação esteja em descordo com o projeto

filosófico de Peirce, nos escritos do final da década 1860, é mais difícil isolar uma tese

peirceana que bloqueie esta leitura. Ao contrário da versão forte da hipótese, esta versão

fraca não tem uma incompatibilidade tão explícita com relação a semiótica desenvolvida

ao final da década de 1860 por Peirce. Entretanto, não é difícil provar que os

desenvolvimentos posteriores da semiótica peirceana acabaram por levantar teses que nos

permitem impedir esta leitura "behaviorista", mecanicista do processo interpretativo.

Em geral, o modo como Short entende o processo interpretativo não parece se encaixar

bem com as principais características do processo que Peirce procurou descrever na série

cognitiva. De acordo com o que analisamos, aquilo que a semiótica tenta descrever mais

se aproxima de um processo de convergência para um limite do que um processo circular.

Como afirmamos, em diversas oportunidades, a solução teórica de Peirce para o problema

das sínteses é a ideia de que o processo interpretativo é composto por uma cadeia de

representações que tende a um limite, a um ponto de fuga. É uma série infinita de

elementos (cada um deles interpretando o anterior dentro de uma sequência) que tende

para um limite que é exterior à própria série.

Infelizmente, não podemos estabelecer nosso ponto de forma mais rigorosa, pois nossas

análises não nos forneceram dados suficientes acerca do pensamento peirceano. Para que

pudéssemos tratar de forma adequada esta questão, precisaríamos ampliar o corpus desta

pesquisa. Seria necessário examinar não apenas os demais artigos da série cognitiva (nos

quais Peirce desenvolve sua concepção de processo de convergência), mas também

estudar detalhadamente os desenvolvimentos posteriores da semiótica peirceana. Sabe-se

que, em período posterior do desenvolvimento de sua filosofia, Peirce passou a elaborar

sistemas de classificação de signos cada vez mais complexos. Não foram raras as vezes

em que mudanças propostas dentro da teoria dos signos vieram de descobertas na área da

lógica. Por exemplo, entre o período de 1870 - 1885, Peirce desenvolveu um novo aparato

para análise lógica que passou a chamar de "lógica dos relativos"258

(e também

reorganizou seu sistema de categorias). A partir de então, Peirce introduz a distinção entre

signos degenerados e signos genuínos. Enquanto estes últimos determinam

especificamente um interpretante (criando a noção de continuidade expressa no que

denominamos de princípio de sequência na seção anterior), os primeiros não especificam

seu interpretante (cf. CP 1.365-6 [1890] e CP 2.304 [1891]). Sob esta nova abordagem,

ícones são entendidos como um tipo (degenerado) de signo que não determina de forma

específica o seu interpretante (como o símbolo o faz), mas apenas o sugere. Estes signos

258

Como já nos referimos anteriormente (em nota), a novidade deste aparato consiste justamente na

introdução do uso de quantificadores e variáveis ligadas na análise lógica, o que desemboca no que hoje

entendemos por lógica de primeira ordem.

Page 439: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

424

obviamente não têm um funcionamento puramente mecânico, completamente

determinado por passos anteriores. A introdução destas distinções na teoria pode

esclarecer que, para a semiótica peirceana, o processo interpretativo não é

necessariamente um procedimento puramente mecânico. Esta especificação na teoria

desmonta, então, aquela proposição C2 ("o processo interpretativo [descrito pela

semiótica peirceana] é puramente mecânico").

No tratamento mais recente que deu a esta questão, Thomas Short (2007, p. 57) afirma

que a falha relativa à "prisão semiótica" foi resolvida pelo próprio Peirce quando a partir

de 1907 (MS 318) passa a admitir dentro de sua teoria signos cujos interpretantes não

seriam mais eles mesmos (novos) signos. De acordo com Short, estes seriam os casos em

que o processo interpretativo desemboca numa mudança de hábito. Ainda que Peirce

tenha, de fato, realizado esta alteração, isto não significa que havia a referida falha na

teoria proposta ao final da década de 1860. Longe de corrigir uma falha, acreditamos que

esta alteração foi realizada com intuito de especificar ou esclarecer uma ideia que já

estava presente na proposta teórica original. Na série cognitiva, Peirce afirmou que a

"validade" dos raciocínios sintéticos só pode ser obtida pela aplicação deste tipo de

raciocínio por um tempo indefinido por uma comunidade indefinida de investigadores.

Ora, esta solução teórica pressupõe que haja algum tipo de autocorreção envolvida no

processo, caso contrário a teoria não poderia afirmar haver uma convergência para um

ponto-limite (ou esta seria devida a algum tipo de milagre). É possível que, com o

conceito de "mudança de hábito", Peirce pretendesse introduzir em sua teoria semiótica

uma ferramenta para tratar do modo como o processo interpretativo pode corrigir a si

mesmo. Afinal, a mudança de hábito pode ser entendida como uma alteração de um

hábito interpretativo, i.e., a substituição de uma regra interpretativa por outra (que se

julgue mais adequada aos propósitos do processo interpretativo).

Este ponto é muito relevante para entendermos o modelo lógico da mente que Peirce

procurou construir na série cognitiva. Na verdade, estes eram apenas os primeiros passos

da construção. Embora a forma que a semiótica tomou nos escritos do final da década de

1860 esteja longe de poder ser considerada definitiva, algumas linhas mestres já tinham

sido fixadas e muito do traçado original se manteria através das alterações. Acreditamos

que o que foi aqui denominado de teses elementares da semiótica peirceana são um claro

exemplo de pontos que nunca foram alterados por Peirce. No lugar da interpretação que

sustenta que Peirce teria negado, por exemplo, a última dessas teses, podemos apontar

para um caminho interpretativo diferente. É possível que, a partir dessa alteração proposta

em 1907, Peirce tenha tentado descrever um modelo de mente que pudesse desenvolver

processos interpretativos em diversos níveis. Por exemplo, de acordo com esta

modificação ou especificação no modelo, a mente poderia desenvolver um processo

interpretativo cujo objeto fosse um outro processo interpretativo justamente com o intuito

de modificar as regras (interpretativas) deste último. Esta interpretação do texto peirceano

tem a intenção de compatibilizar esta solução teórica da "mudança de hábito" (proposta

em 1907) com algumas ideias que já estavam associadas à versão da semiótica elaborada

na década de 1860, como a noção de convergência e de autocorreção. Com isso

Page 440: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

425

pretendemos evitar uma interpretação que afirme haver no interior do sistema filosófico

(que começou a ser desenvolvido no final da década de 1860) uma gravíssima

contradição. Embora o conceito de recursividade tenha um papel central na semiótica

peirceana (ao menos de acordo com nossa tese) e tal conceito esteja fortemente

relacionado ao conceito de computabilidade (captado teoricamente por Alan Turing ainda

na década de 1930) e ao modo como funcionam os computadores, não podemos reduzir o

funcionamento do processo interpretativo descrito pela semiótica ao modus operandi de

uma máquina. Mesmo na década de 1860, o modelo lógico da mente estava longe de ser

puramente mecânico, maquínico. Expliquemos mais detalhadamente este ponto.

No início de seu célebre livro "Gödel, Escher e Bach", um dos mais importantes teóricos

contemporâneos no campo das ciências cognitivas, Douglas Hofstadter (1999 [1979]),

apresenta um critério interessante para distinguir atividade mental inteligente da atividade

(puramente) mecânica realizada pelas máquinas. Por exemplo, uma máquina executa

cegamente as regras ou diretrizes que estão escritas em seu programa. Enquanto uma

máquina está destinada a agir somente "dentro do tabuleiro" a partir das "regras do jogo",

a mente humana é capaz de se retirar ("pular fora") do "jogo" e, ao observá-lo de fora,

torna-se capaz de entender o funcionamento das regras para, eventualmente, modificá-las.

Para explicar como funciona esta distinção, Hofstadter (1999 [1979], p. 34) nos apresenta

um sistema formal, denominado de Sistema-MIU, que nos permite, com algumas poucas

regras, construir certas cadeias de símbolos259

a partir de uma cadeia de símbolos dada.

Este sistema, que lida apenas com cadeias formadas por três símbolos (M, I e U) apenas,

funciona como um jogo cujo objetivo é produzir determinadas cadeias (que funcionam

dentro do sistema como se fossem teoremas) a partir de uma cadeia inicial (que faz o

papel de axioma). Quando conseguimos provar que é possível, seguindo as regras,

construir uma segunda cadeia a partir da cadeia inicial, então isto significa que temos duas

cadeias de símbolos em nossa coleção: a primeira delas (que é dada de saída) e a segunda

cadeia, que foi obtida a partir da primeira (por meio das regras). Esta cadeia inicial é a MI

e as regras para transformação de uma cadeia em outra são as seguintes:

Regras do Sistema-MIU

Regra 1: Se você possui uma cadeia cuja última letra seja I, então você pode adicionar um

U ao final (da cadeia).

Regra 2: Suponha que você tenha Mx. Então, neste caso, você pode adicionar à sua coleção

Mxx.

Regra 3: Se III ocorre em alguma das cadeias de sua coleção, você pode fazer (a partir

dela) uma nova cadeia com o U no lugar do III.

Regra 4: Se UU ocorre dentro de alguma cadeia, você pode eliminar esta parte da cadeia.

259

Em linguagens formais, cadeias de símbolos são sequências (justaposições) de um número finito de

símbolos (cf. Ramos, Neto e Vega, 2009, p. 77). No caso do sistema-MIU, os únicos símbolos

disponíveis para formação de cadeias são as letras M, I e U.

Page 441: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

426

Como afirmamos, inicialmente temos apenas a cadeia MI (este é o nosso ponto de

partida pré-estabelecido, nosso axioma). Esta é nossa única cadeia. A partir dela, pela

regra 1 podemos derivar, i.e., construir uma segunda cadeia para aumentar nossa

coleção: a cadeia MIU. Passamos a ter, então duas cadeias na nossa coleção: MI e

MIU. A partir dessa segunda cadeia, podemos, graças à regra 2, criar a cadeia MIUIU.

Então já seriam três cadeias em nossa coleção: MI, MIU e MIUIU. Como já foi

esclarecida a maneira pela qual podermos expandir nossa coleção, então já temos

condições de levantar uma questão pouco mais complexa a respeito do sistema-MIU.

Podemos nos perguntar se, dentro desse sistema, seria possível construir algumas

cadeias específicas. Por exemplo, é possível, a partir da cadeia inicial MI, derivarmos a

cadeia MUIIU? A demonstração a seguir nos responde que sim, é possível (Hofstadter,

1999 [1979], p. 35-6).

(1) MI Axioma

(2) MII Derivado de (1)

pela regra 2

(3) MIIII Derivado de (2)

pela regra 2

(4) MIIIIU Derivado de (3)

pela regra 1

(5) MUIU Derivado de (4)

pela regra 3

(6) MUIUUIU Derivado de (5)

pela regra 2

(7) MUIIU Derivado de (6)

pela regra 4

O sucesso em se derivar MUIIU da cadeia inicial MI não significa que toda e

qualquer outra cadeia pode ser obtida a partir desta primeira. Não nos foi cedido junto

com as regras uma lista completa de quais cadeias podem ser construídas a partir da

cadeia iniciais e quais não podem. Diante deste sistema formal, não sabemos quais

cadeias podem ser teoremas, i.e., podem ser demonstradas a partir de nosso único

axioma. Por exemplo, partindo da cadeia MI, é possível chegar na cadeia U? É

possível derivar a segunda cadeia de símbolos da primeira delas? Se dirigirmos este

pergunta a uma pessoa, ela provavelmente se submeteria à tarefa de procurar, por

tentativa e erro, um caminho possível para sair de MI e chegar em U respeitando as

regras. O mesmo ocorreria se dirigíssemos esta mesma pergunta para uma máquina

programada para gerar todas cadeias [os teoremas] que podem ser obtidas a partir da

cadeia inicial MI (o nosso axioma) e para apenas parar quando encontrar a cadeia

solicitada (no caso, U). A diferença fundamental, de acordo Hofstadter, é que,

enquanto a máquina jamais pararia de procurar um caminho possível, o ser humano,

mais cedo ou mais tarde, acabaria percebendo que há um padrão por trás das regras

que não permite que se derive a cadeia U.

Page 442: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

427

A diferença está na capacidade exibida pela inteligência humana de "sair" do sistema,

observá-lo de fora e perceber que todas as quatro regras têm o seguinte ponto em

comum: todas elas mantêm intacta a primeira letra da cadeia (que elas modificam).

Ora, se a primeira letra de nossa primeira cadeia é a letra M e todas elas mantêm

intacta a primeira letra da cadeia (que elas modificam), então as cadeias possíveis que

pudermos construir a partir de MI deverão manter intacta sua primeira letra. Em

outras palavras, nunca (com estas regras) podemos nos livrar deste M inicial. Por mais

óbvio que isto nos pareça, uma máquina jamais pode compreender este ponto, pois ela

está condenada a sempre olhar para o "jogo" a partir de dentro260

. Portanto, de acordo

com Hofstadter o ponto que nos permite distinguir a capacidade humana de agir

inteligentemente dentro (e a partir de fora) de um sistema (como o que foi apresentado

acima) das capacidades das máquinas é que é "uma propriedade inerente da

inteligência a capacidade de 'pular fora' da tarefa que ela está executando para que

observe o que está sendo feito; ela está sempre procurando, e quase sempre

encontrando, padrões" (Hofstadter, 1999 [1979], p. 37).

Se voltarmos para nossa discussão acerca da hipótese da prisão linguística dentro da

semiótica peirceana, notaremos que a concepção de "mudança de hábito" introduzida

por Peirce em 1907 pode ser entendida como uma alteração de uma regra

interpretativa realizada a partir de fora do processo interpretativo propriamente dito tal

como se fosse o "pulo para fora do sistema" descrito por Hofstadter. Obviamente, ao

sair de um processo interpretativo para observá-lo de fora, cairíamos noutro processo

interpretativo (um nível acima daquele primeiro) cujo objeto seria justamente o

primeiro processo interpretativo.

Não temos espaço para desenvolver esta (nossa) interpretação (que correlaciona uma

reformulação conceitual no pensamento peirceano com a abordagem de Hofstadter a

respeito da mente humana), mas este é um modo de afirmar que a teoria semiótica

apresentada por Peirce no final da década de 1860 não consistia numa prisão

linguística e a alteração de 1907 é apenas uma especificação de uma ideia que já

260

Na verdade, neste ponto de sua exposição, Hofstadter lança um desafio ao leitor: partindo da cadeia

MI, é possível chegar na cadeia MU? É possível derivar a segunda cadeia de símbolos da primeira delas?

No livro, Hofstadter adia por alguns capítulos a resposta para que o leitor tente encontrá-la sozinho. Para

que não estraguemos a "surpresa" ou, ao menos, a emoção de procurar pela resposta certa, vamos tratar

deste problema nesta nota de rodapé. O primeiro ponto a ser notado é que, para criar uma cadeia em que,

além do M inicial, tenhamos apenas um U, seria necessário que obtivéssemos antes uma cadeia com três

Is, como a que segue: MIII. Neste caso, poderíamos a partir da regra 3, derivar a cadeia MU da cadeia

MIII. O problema é nunca chegamos a uma cadeia com estas três Is a partir de nossa cadeia inicial (MI).

Na verdade, depois de algum tempo tentando, a mente humana poderia pular fora do sistema e perceber

que não é possível que qualquer cadeia à qual se possa chegar a partir da cadeia inicial MI tenha um

número de Is que seja divisível por três. Esta é a propriedade de que "o número de Is de uma cadeia (de

um teorema) nunca é divisível por três". Esta é uma propriedade do sistema-MIU. Chega-se à conclusão

de que não é possível encontrar uma cadeia com três Is (ou com um número de Is que seja divisível por 3)

ao se perceber que tanto a regra 1 como a regra 2 preservam esta propriedade. Não há nenhuma regra de

transformação dentro do sistema que nos permita chegar aos três Is, o que, por sua vez, nos impede de

chegar ao destino intencionado: MU. O ponto da exposição de Hofstadter é que uma máquina ficaria para

sempre tentando encontrar um caminho (neste sistema) para MU sem jamais se dar conta da

impossibilidade dessa empresa.

Page 443: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

428

estava presente desde as primeiras formulações da semiótica peirceana: o conceito de

autocorreção. Portanto, em termos gerais não concordamos com a interpretação de

Short (2007, p. 42 e 43) segundo a qual o progressus e regressus infinitos do processo

interpretativo descrito pela semiótica elaborada por Peirce ao final da década de 1860

são falhas que teria sido corrigidas em 1907 (com a introdução do conceito de

"mudança de hábito"). Também, em termos gerais, embora não concordemos com sua

missão de tirar Peirce das mãos das "pessoas erradas" (Short, 2007, prefácio, p. XI), é

louvável a intenção de Short em trazer Peirce para alguns debates contemporâneos na

filosofia. É verdade que existem muitas afinidades entre algumas teses peirceanas

desenvolvidas no interior de sua semiótica e algumas teses desenvolvidas no

pensamento contemporâneo.

Por exemplo, a tese peirceana de que até mesmo a percepção é determinada por

cognições anteriores pode ser comparada à tese contemporânea no campo de filosofia

da ciência segundo a qual toda observação é "carregada de teoria" (conforme teses de

Norwood Hanson e também Thomas Kuhn [cf. Suppe, 1997, 95-102]). A tese

peirceana de que não há fundação última (indubitável) para um sistema de crenças

pode aproximar o pensamento de Peirce da visão coerentista segundo a qual o

conhecimento é conjunto coerente de crenças que se "apoiam" mutuamente tal com se

fossem nódulos de uma rede (comparar, por exemplo, metáforas epistemológicas

como o "barco de Neurath" [cf. Quine, 1960, p.2], a "rede de crença" de Quine [cf.

Quine e Ullian, 1978] e a "argumentação como um cabo" de Peirce [CP 5.264-5

{1868}] ). Por sua vez, a tese peirceana de que o sujeito cognoscente é a comunidade

indefinida de investigadores (intimamente relacionada à tese de que atividade

cognitiva é externa à mente entendida individualmente) pode ser aproximada da tese

de Wittgenstein a respeito do critério para se seguir uma regra (cf. Investigações

filosóficas, §143 - 242). De acordo com (o segundo) Wittgenstein, o único critério

possível para se saber se estamos ou não seguindo corretamente uma regra

(gramatical) é público, é um critério externo. De acordo com esta abordagem, a

linguagem é necessariamente uma atividade pública e não faria sentido algum afirmar

que há uma linguagem própria de um indivíduo, uma espécie de linguagem privada.

Se levarmos às últimas consequências as teses de Wittgenstein, não existe algo como

uma experiência interior, uma experiência de uma esfera interior. Não existem estados

internos.

Em paralelo, se levarmos às últimas consequências a tese peirceana de que só temos

acesso indireto aos nossos próprios estados internos (pensamentos, sensações,

emoções, etc.), então notaremos que, de acordo com as teorias peirceanas, a atividade

cognitiva se estrutura como uma espécie de sistema "linguístico" (na verdade, um

sistema semiótico) e, assim, até mesmo a atividade mental deixa de ser um fenômeno

privado e passa a ser um fenômeno público. Dentro desta interpretação das teses

peirceanas, para Peirce, até mesmo o raciocínio é uma atividade essencialmente

pública, pois os critérios de uso e as regras de validação são públicas e não privadas.

Na verdade, e isto já deve estar claro para o leitor, este é o cerne do projeto filosófico

Page 444: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

429

peirceano. Não é outro o motivo que leva Peirce a propor, ao final, do último artigo da

série cognitiva, uma espécie de teoria social da lógica. Para Peirce, os raciocínios

sintéticos (i.e., ampliativos) só podem ser "validados a longo prazo" dentro de uma

espécie de teoria social da lógica. Para que vejamos este ponto com clareza é

suficiente que recordemos que a resposta que Peirce formulou para o que considerou o

problema central da filosofia é que a ampliação de um sistema de crenças só pode ter

seu critério de validade estabelecido por um processo de interpretação levado adiante

por uma comunidade indefinida de investigadores por um tempo indefinido (e com um

método que seja autocorrigível). Ora, para que a solução teórica peirceana funcione,

i.e., para que haja algum processo interpretativo supra-individual de convergência

para um ponto-limite, devemos pressupor não apenas que o processo possa ser

autocorrigível, mas também devemos pressupor a existência de um sistema com

critérios públicos que permita que o próprio processo seja corrigível. Este sistema se

chama linguagem. As reflexões filosóficas realizadas em campo epistemológico

deságuam em reflexões a respeito e linguagem. A teoria social da lógica proposta por

Peirce exige uma teoria da linguagem. Senão, vejamos.

Se o estado real do objeto só pode ser aproximado por um processo de investigação

efetivado por uma comunidade indefinida, então se deve pressupor que haja algum

tipo de troca de informação entre os indivíduos que são membros desta comunidade.

Caso não haja modo possível de se externalizar informações, cada processo

interpretativo (relativo a algum objeto) parcial que ocorre numa consciência

individual não poderia tornar público seus resultados e assim o processo interpretativo

geral (relativo a esse mesmo objeto) esbarraria na finitude dos indivíduos, o que, por

sua vez, impediria que uma investigação supra-individual fosse levada a cabo por uma

comunidade indefinida por um tempo indefinido. Qualquer pessoa que se dispusesse a

pensar ou investigar qualquer "assunto" estaria sempre começando do zero. A

continuidade do processo interpretativo descrito in abstrato pela semiótica depende,

na prática, da existência de uma linguagem que permita a comunicação entre os

membros da comunidade (indefinida de investigadores). A constituição de sujeito

cognoscente coletivo depende da linguagem. Assim, o pensamento semiótico que

emerge dos escritos peirceanos deságua em reflexões sobre linguagem e também

comunicação. E, de fato, não é difícil encontrar nos textos peirceanos reflexões sobre

as condições práticas que tornam exequível aquele processo de convergência para

verdade. Por exemplo, reflexões sobre economia da pesquisa científica (CP 1.85; CP

1.122-125), sobre o que denominou de "ética da terminologia" (CP 2.219-226[1903]),

etc.. Entretanto, muito além desses exemplos, o que pretendemos enfatizar é que a

semiótica, a ciência geral das representações, exige (e apresenta novas perspectivas

para) teorizações a respeito da linguagem e comunicação. E acreditamos que é a

própria natureza do pensamento peirceano que exige que estas teorizações devam ir

além do terreno da filosofia e passem a germinar também nas frações mais férteis do

solo científico. Para Peirce, o pensamento semiótico é naturalmente interdisciplinar.

Page 445: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

430

Ao longo de nosso interminável texto, optamos por não fazê-lo, mas é possível traçar

fortes correlações entre teses peirceanas e teses presentes na filosofia do século XX.

Como é o caso (acima aludido) da tese segundo a qual a atividade cognitiva é externa

à mente entendida individualmente, que, ao que tudo indica, corre em paralelo a teses

do segundo Wittgenstein. Algumas afinidades são sugestivas e a convergência de

algumas teses pode apontar para existência de alguns pontos que, ao longo do tempo,

serão considerados fundamentais para a filosofia deste período. Entretanto, não é certo

que devemos investir todas nossas fichas em comparações entre Peirce e os demais

filósofos sem antes examinarmos como cada uma destas teses (que serão postas como

termos de comparação) são sustentadas internamente no pensamento peirceano. Se

optarmos por, primeiro, estudar internamente um sistema filosófico, para depois de

isolada sua estrutura, compararmos este sistema com aquele desenvolvido por outro

filósofo, então vamos baixar consideravelmente a probabilidade de interpretarmos

uma especificidade (que às vezes é uma exigência interna de uma teoria, de uma

abordagem) como uma falha261

. É óbvio que tais estudos comparativos são parte

essencial da exegese de uma obra filosófica. Só devemos fazê-los com parcimônia.

Ora, se não é certo que insistamos compulsivamente na comparação com outros

filósofos (ainda que tenhamos ocupado quase 1/4 desta tese com o diálogo entre

Peirce e outros filósofos), também não é certo que, por uma espécie de princípio de

autossuficiência, tranquemos a obra peirceana dentro de si mesma ou, como parece

sugerir Short, dentro do campo da filosofia. O pensamento peirceano, por sua

natureza, deve transcender os limites do campo da filosofia. Por este motivo, não

podemos concordar com a sugestão de Short de que deveríamos deixar de apostar

nossas fichas em correlações interdisciplinares. Aliás, citamos há pouco um trecho em

que Peirce defende que “o bom navio da Filosofia” deve ser colocado a serviço da

ciência (CP 5.449 [1905]) e a própria filosofia deve tomar emprestados métodos das

ciências (CP 5.265 [1868])262

. Peirce foi “tomado” por um exército interdisciplinar em

decorrência de uma exigência interna de seu pensamento pragmaticista e, sobretudo,

do modo como entendia o papel da ciência e da filosofia. Enquanto o fato de sua obra

ter sido mal interpretada é um acidente histórico263

, o fato de sua obra de sido

distribuída interdisciplinarmente é parte da essência de seu pensamento.

261

Caso se escolha o caminho inverso sempre corremos o risco de achar que um filósofo específico

deveria ter sustentado em sua obra alguma uma tese específica de uma determinada forma apenas porque

assim o fizeram outros filósofos que desenvolvem investigações relacionadas ao mesmo problema ou

dentro do mesmo tema. Neste caso, é como se lêssemos, num primeiro plano, o que o filósofo deveria ter

escrito e legássemos para um segundo plano o que ele de fato escreveu. 262

Devemos recordar que Peirce, dentro da série cognitiva, não apenas afirma que a filosofia deveria

tomar emprestado os métodos das ciências que obtiveram êxitos em seus propósitos de produção de

conhecimento como afirma que ela deveria ser reconstruída sobre uma nova base e esta reconstrução era

uma exigência, de acordo com a visão peirceana, da própria ciência moderna e da lógica moderna. 263

Por exemplo, é um acidente ocasionado por condições históricas do século XX o fato de a semiótica

peirceana ter sido confundida com propostas homônimas e o fato de o ambiente acadêmico ter ficado

progressivamente mais suscetível a modismos que só tendem a produzir abordagens, comentários e

interpretações de baixa qualidade e com pouco “fôlego”. Tudo isso é externo à obra peirceana.

Page 446: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

431

Antes de seguirmos para as considerações finais, devemos fazer uma última

correlação do pensamento semiótico peirceano com alguma teoria ou reflexão

pertencente ao cenário contemporâneo. Na verdade, neste último caso, escolhemos

uma teoria que não apenas tem suas bases lançadas sobre o solo da filosofia peirceana

como foi desenvolvida sob inegável influência do que mesmo Short não hesitaria em

classificar como "espírito peirceano". Este caso exemplifica muito bem a "natureza

interdisciplinar" da semiótica da qual viemos tratando nos últimos parágrafos, pois

esta teoria pode ser entendida não apenas como um produto do pensamento de Peirce,

mas também como um notável desenvolvimento teórico de teses peirceanas que

passam a germinar em terrenos cada vez mais distantes da fonte primordial: a

filosofia. Referimo-nos à "teoria das matrizes da linguagem e pensamento" proposta

por Lucia Santaella. Infelizmente, não teremos espaço-tempo para desenvolver este

tópico, mas acreditamos que esta teoria pode esclarecer uma das teses mais relevantes

e incômodas de todo projeto filosófico do jovem Peirce (e que acabamos de

correlacionar com teses wittgensteinianas): a ideia de que a atividade cognitiva é

externa à mente entendida individualmente. Como afirmamos esta ideia reside no

cerne de tal projeto filosófico e é parte essencial do modelo lógico da mente

construído pela semiótica peirceana.

Em linhas gerais, o mecanismo recursivo que Peirce utilizou para descrever o

funcionamento das representações é basicamente o mesmo mecanismo que Santaella

utilizou para descrever o surgimento, desenvolvimento e reprodução das linguagens

(i.e., sistemas de representação) dentro de uma teoria que batizou com o nome de

"teoria das matrizes da linguagem e pensamento". De acordo com Santaella (2005

[2001]), todo o conjunto das linguagens concebíveis pode ser explicado a partir de três

matrizes, que são uma espécie de "molde semiótico" dentro qual se forja uma

linguagem lhe emprestando determinadas propriedades. A tese central da teoria de

Santaella (2005 [2001], p. 20 e 21) é que por baixo da multiplicidade e diversidade

das linguagens existentes há três matrizes lógicas a partir das quais, por processos de

combinação e mistura, originam-se todas as formas (concebíveis) de linguagem.

Acreditamos que esta teoria pode ser apresentada como um desenvolvimento direto da

teoria peirceana do interpretante e, ao que tudo indica, ela pode ser mobilizada para o

esclarecimento de uma das teses que mais provocam estranheza nos que leem os

escritos peirceanos e se esforçam para deles ter alguma compreensão: aquela segundo

a qual não temos capacidade de introspecção e que só podemos conhecer nossos

pensamentos de forma indireta. Esta tese, levada às últimas consequências na forma

como foi defendida por Peirce em seus escritos (CP 5.244 - 449 [1868]), nos obrigaria

a considerar o ato de pensamento ou a atividade cognitiva, em geral, como um

fenômeno social, algo muito distante de algumas crenças há muito tempo

sedimentadas no solo do senso-comum.

Como foi examinado em detalhes no sexto capítulo, dentro da semiótica peirceana,

ocupa um importante lugar a tese que o acesso que temos aos nossos próprios

pensamentos é indireto, ou seja, tal acesso é mediado por signos. E há uma tese

Page 447: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

432

adicional que pode ser entrevista nos trechos264

em que Peirce estabelece esta tese

acima referida: este acesso indireto só pode ser realizado por um signo entendido

como algo externo ou, ao menos, como algo que se supõe externalizável. Isto nos leva

a crer que, de acordo com a semiótica peirceana, só podemos ter acesso aos nossos

pensamentos porque nossa atividade cognitiva funciona pressupondo a possibilidade

de externalização de nossos pensamentos. É por este motivo que os modos possíveis

pelos quais os homens se tornam capazes de pensar estão inscritos nos modos

possíveis pelos quais os homens se tornam capazes de externalizar pensamentos. A

possibilidade de comunicação com o mundo externo está pressuposta no modo como

um indivíduo organiza seus "conteúdos mentais" e não o inverso. Na verdade, é como

se aquilo que acostumamo-nos a denominar de conteúdo interno (estado interno) só

pode ser identificado e acessado a partir de elementos externos, públicos. É

exatamente neste ponto que acreditamos que a teoria das matrizes é capaz de intervir,

pois as linguagens (provenientes de cada uma das matrizes ou do cruzamento entre

elas) acabam por funcionar como uma espécie de plataforma de estabilização do fluxo

de signos que corre não apenas do "lado de fora" da mente, mas, sobretudo, do "lado

de dentro". Uma linguagem, conforme concebida dentro da teoria das matrizes, é um

conceito que se refere a um modo de estruturar o fluxo de signos externos (i.e., signo

entendido como um expediente sensível externo, tal como a palavra) e também o fluxo

de signos internos (i.e., signo entendido como um expediente sensível interno,

pensamento). Não é por outro motivo que o nome completo da teoria é "teoria das

matrizes da linguagem e pensamento".

Desta forma, como já vimos incontáveis vezes, a semiótica surge como um dos

principais elementos mobilizados por Peirce para responder à pergunta que

considerava central à filosofia: como é possível haver raciocínio sintético, como é

possível haver ganho, ampliação, crescimento do conhecimento? A resposta peirceana

é que as sínteses se tornam possíveis graças a um processo interpretativo no qual uma

representação se desenvolve numa representação posterior em direção ao objeto real

apresentado. O mecanismo recursivo de representação que descrevemos (por diversas

vezes ao longo desta tese) foi elaborado por Peirce no coração de sua semiótica

justamente para explicar como é possível haver síntese, haver crescimento do

conhecimento. Se, por um lado, a semiótica surge para explicar como é possível haver

produção de representações que signifiquem um aumento do conhecimento, por outro

lado, a teoria das matrizes é proposta para explicar como é possível haver sistemas de

representação (i.e., linguagens) que sejam capazes de crescer, se desenvolver e se

reproduzir justamente para poder cumprir o destino da atividade cognitiva: a

ampliação de um conhecimento que paulatinamente se aprofunda numa realidade cada

vez mais complexa. O real em permanente mudança (até mesmo devido à própria

264 Segundo Peirce, "não podemos admitir nenhuma afirmação sobre o que se passa dentro de nós exceto

como uma hipótese necessária para explicar o que ocorre no que chamamos comumente de mundo

externo" (CP 5.266 [1868]). Cf. também CP 5.245 [1868].

Page 448: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

433

atividade cognitiva) é o ponto de fuga da atividade cognitiva. Que as linguagens, os

sistemas de representação, se desenvolvam é uma exigência da própria finalidade do

pensamento, que, para Peirce, é se desenvolver em outro pensamento. O metabolismo

das linguagens é posto à disposição do pensamento e isto explica o motivo pelo qual

linguagens tendem a perdurar através do fluxo incessante de informações que correm

em suas veias e também através da evolução ininterrupta dos suportes materiais que as

sustentam.

As palavras são mais eternas do que os mármores e os metais, já dizia

Shakespeare. Por isso, o que mudam são os suportes que se tornam mais

sofisticados, mais reprodutíveis, mais multiplicadores, mas a linguagem não

morre, permanece. (...) as tecnologias vão mudando, as linguagens sonham

com a eternidade.

(Santaella, 2007, p.209)

Esclarecidos o surgimento e o mecanismo de uma representação, parece-nos natural que

uma teoria semiótica se mova na direção de explicar uma segunda questão: como se

tornam possíveis e como funcionam os sistemas de representação ao quais,

habitualmente, damos o nome de linguagem. A teoria social da lógica, anunciada por

Peirce no interior de sua semiótica, parece afluir naturalmente para reflexões a respeito

de linguagem e também comunicação.

Page 449: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

434

Considerações finais

O foco de toda a pesquisa cujo resultado apresentamos neste longo volume é o que

denominamos ainda no texto introdutório de elemento lógico do sistema filosófico de

Charles S. Peirce. Conforme explicado, por elemento lógico entendemos a estruturação

argumentativa desenvolvida pelo filósofo para validar as teorias que são oferecidas

como respostas a problemas filosóficos estabelecidos internamente (dentro de seu

próprio sistema filosófico) ou externamente (pela tradição). O centro de gravitação de

toda nossa exposição do pensamento peirceano bem como de nossas análises e

interpretações é aquilo que o próprio Peirce considerou como problema central da

filosofia: como são possíveis as sínteses? A solução encontrada por Peirce durante a

fase de construção de seu sistema filosófico (segunda metade da década de 1860) foi

estabelecer, dentro de uma ciência geral das representações (que denominou de

semiótica), que toda e qualquer síntese é resultante de um processo de representação ou

de um processo interpretativo cujo funcionamento é descrito pela interrelação de três

elementos: o signo, o objeto e o interpretante.

Nosso objetivo central foi mostrar que a solução teórica encontrada pelo jovem Peirce

tem como componente essencial a recursividade. Para que sejamos precisos, o que de

fato possui um caráter essencialmente recursivo é a definição (ou caracterização) do

conceito de representação apresentada por Peirce dentro do âmbito da semiótica. Ao

introduzir o conceito de interpretante em sua explicação do modo como funciona um

processo de representação e exigir que toda e qualquer representação recorra a uma

representação anterior (e seja remetida para uma representação posterior), então a

definição de representação torna-se necessariamente recursiva. Como demonstramos,

este tipo de definição ou caracterização recursiva é uma exigência interna da teoria que

Peirce planeja oferecer como resposta ao que considerou ser o problema central da

filosofia.

Ao contrário da epistemologia cartesiana que inaugura a filosofia moderna ao garantir a

possibilidade de se encontrar uma fundação segura para o processo de conhecimento, a

epistemologia peirceana começa no antípoda do projeto de Descartes. Para Peirce, não

há fundação complemente segura, pois, conforme argumentação apresentada já no início

do primeiro artigo da série cognitiva (cf. capítulo 4) não é possível encontrar alguma

garantia infalível que um ponto de partida (de um raciocínio, por exemplo) seja uma

proposição necessariamente verdadeira (i.e., nunca é possível se ter certeza sobre a

verdade de um ponto de partida). Assim, dentro dos limites da epistemologia peirceana,

todo ponto de partida seria necessariamente hipotético e a verdade passa a ser uma

espécie de projeção, de ponto de fuga do processo de conhecimento. De acordo com

esta perspectiva, a verdade só pode ser aproximada ao longo do processo de

conhecimento se garantirmos que ele seja, de alguma forma, autocorrígivel, o que, por

sua vez, exige que tal processo seja aplicável sobre si mesmo, ou seja, que o resultado

Page 450: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

435

de um estágio dependa do resultado do estágio anterior. Em linhas gerais, como vimos

de modo mais detalhado no nono capítulo, esta parece ser a origem da recursividade

dentro do horizonte teórico do projeto filosófico peirceano. A descrição geral do

processo de obtenção do conhecimento é que este é um processo de natureza sígnica que

não pode possuir ponto de originário e nem pode possuir um ponto final pré-

estabelecido.

A argumentação para sustentação de nossa tese foi apresentada de um modo mais

formal no último capítulo. Para provar que a solução teórica encontrada pelo jovem

Peirce tem como componente essencial a recursividade, isolamos duas teses elementares

dentro da semiótica ("não há primeiro signo [num processo interpretativo] e "não há

último signo [num processo interpretativo]") e demonstramos que elas dependem da

caracterização recursiva do conceito de representação. Também mostramos que, graças

às argumentações internas à teoria da cognição elaborada por Peirce (sobretudo, no

primeiro artigo da série cognitiva, "Questões concernentes a certas faculdades

reivindicadas para o homem"), as teses elementares da semiótica podem ser convertidas

em teses epistemológicas: "não há primeira cognição [num processo de aquisição de

conhecimento] e "não há última cognição [num processo de aquisição de

conhecimento]". Este papel de conversão de teses pertencentes ao campo da semiótica

em teses pertencentes ao campo da epistemologia é realizado dentro do primeiro artigo

da série cognitiva pelo que foi denominado de tese-base ("todo pensamento é

pensamento em signos"). É esta conversão que permite que Peirce utilize um aparato

conceitual desenvolvido inicialmente no artigo "Sobre uma nova lista de categorias"

para explicar como são possíveis as sínteses para também explicar no artigo "Questões

concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" como funciona a "vida

cognitiva" na ausência de pontos originários e como funciona o processo de

conhecimento na ausência de cognições intuitivas, pontos fundantes. Dessa forma,

como as teses elementares da semiótica são essenciais ao projeto filosófico concebido

ao final da década de 1860 e a recursividade é uma condição necessária para a

sustentação destas teses, então a recursividade é um elemento essencial de tal projeto

filosófico. Em resumo, o estabelecimento das chamadas teses elementares da semiótica

é condição necessária para que funcione a solução teórica oferecida por Peirce para o

problema das sínteses e a recursividade é condição necessária para o estabelecimento

destas teses. Por este motivo, enunciamos (ainda nas primeiras linhas deste longo texto)

nossa tese da seguinte forma: "a caracterização do conceito de representação (interno à

teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva".

Reapresentados os principais movimentos argumentativos para a sustentação de nossa

tese, devemos fazer alguns apontamentos críticos. Da forma como concebemos e

apresentamos esta tese, pode-se notar que argumentação geral possui três pontos fracos:

o primeiro deles (I) é que não foi feita uma análise mais detalhada das descobertas na

área da lógica que permitiram que Peirce passasse a sustentar (a partir de meados da

década de 1860) que todas as relações elementares da lógica seriam casos particulares

da relação sígnica. O segundo ponto fraco (II) é que, embora tenhamos realizado

Page 451: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

436

análises pormenorizadas do artigo "Sobre uma nova lista de categorias" e, sobretudo, do

artigo "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem", não

foram feitas análises dos dois últimos artigos que compõem a série cognitiva ("Algumas

consequências das quatro incapacidades" e "Fundamentos da validade das leis da lógica:

outras consequências das quatro incapacidades"). As limitações impostas por este corte

no corpus ficaram claras no último capítulo (em que concentramos as demonstrações de

modo mais formal). Embora acreditemos que tenhamos conseguido demonstrar que o

estabelecimento das teses elementares da semiótica peirceana seja condição necessária

para que funcione a solução teórica oferecida por Peirce para o problema (filosófico)

das sínteses, é certo que não apresentamos (em todo este longo texto) garantia alguma

que ela seja uma condição suficiente. Para que apresentássemos alguma garantia desse

tipo seria necessário avaliar a natureza do processo de convergência previsto pela teoria

peirceana, ou seja, precisaríamos subter à minuciosa análise os dois últimos artigos que

compõem a série cognitiva (como fizemos com o primeiro deles).

O terceiro ponto fraco (III) é que (acreditamos que) o papel da tese-base dentro do

artigo "Questões concernentes a certas faculdades reivindicadas para o homem" exige

uma análise mais detalhada, pois sua sustentação envolve um dos mais espinhosos

problemas em todo o pensamento peirceano: a relação continuum/discreto. O que

fizemos nesta tese é aplicar uma espécie de "princípio de caridade". Deixamos de lado

esta questão, confiando na possibilidade de que esta tese pudesse ser considerada

"estabelecida" (a partir das argumentações desenvolvidas por Peirce no primeiro artigo

da série cognitiva), pois tínhamos plena consciência de sua centralidade para o projeto

filosófico peirceano. Como já reconhecemos nas análises apresentadas no nono capítulo,

o problema é que este é um ponto altamente vulnerável na argumentação geral da série

cognitiva. Entretanto, a justificativa que temos para esta omissão é irresistível: nossa

incompetência técnica para lidar com a questão continuum/discreto no nível de

detalhamento que ela merece dentro do pensamento peirceano.

Embora o objetivo desta tese tenha sido demonstrar que"a caracterização do conceito de

representação (interno à teoria semiótica peirceana) é necessariamente recursiva",

podemos enunciar neste espaço dedicado às considerações finais que há uma intenção

não-declarada sob o nosso texto: oferecer o conceito de recursividade como uma chave

de leitura da semiótica peirceana (sobretudo, do surgimento de um pensamento

propriamente semiótico na obra peirceana no final da década de 1860) com o intuito de

dissipar uma atmosfera de estranhamento que envolve algumas teses peirceanas,

principalmente aquelas mais distantes do senso-comum. Um claro exemplo é a tese

segundo a qual o pensamento é um fenômeno essencialmente social e dependente de

critérios externos, públicos (e não um processo individual, "privado"). Obviamente esta

intenção não pode ser declarada nem mesmo como objetivo específico de um trabalho

acadêmico, porque acreditamos que ela lida com questões demasiadamente vagas. O

que não significa que não seja importante ou que não tenha animado a pesquisa. De

fato, acreditamos que o conceito de recursividade pode contribuir para dissolver o

estranhamento que parece sempre acompanhar a leitura de textos peirceanos. Se

Page 452: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

437

considerarmos a caracterização recursiva do conceito de representação como a origem

ou a causa da noção de fluxo dentro do pensamento peirceano e consequentemente a

causa do estranhamento, então notaremos que o próprio Peirce oferece dentro de seu

projeto filosófico um caminho teórico que tende a superar este estranhamento. O

contraponto à noção de fluxo é a própria concepção de linguagem que emerge dos

escritos peirceanos do final da década de 1860, sobretudo dentro do âmbito daquilo que

Peirce denominou "teoria social da lógica" (que engloba tanto o conceito de

comunidade indefinida de investigadores como a ideia de um processo de convergência

para a realidade). Finalizemos nossa exposição com algumas poucas palavras a respeito

dessa intenção não-declarada e dessa estranheza provocada pelos escritos peirceanos.

Afinal, começamos o primeiro capítulo (há mais de quatrocentas páginas) tratando

justamente dessa estranheza.

Suponha que se tenha solicitado a alguém (que não fosse perito no assunto ou que nunca

tivesse refletido muito sobre tais questões) que desenvolvesse uma teoria para explicar

como funcionam as representações. O mais provável é que tal pessoa explicasse que a

relação entre aquilo que representa e aquilo que é representado (entre significante e

significado, por exemplo) é isto mesmo que nos aparece à primeira vista, a saber, uma

relação diádica (i.e., uma relação com dois elementos). A explicação, neste caso,

consistiria em afirmar que a palavra "árvore" representa a "ideia de árvore", porque

simplesmente associamos uma "coisa" a outra. Uma teoria que explique assim o

fenômeno semântico é tão natural, intuitiva e direta como a ideia da construção de

pirâmides tida, de forma independente, por diferentes pessoas de várias civilizações ao

longo da história. Ora, neste passado distante, parece-nos que, se um agrupamento de

homens resolve construir uma edificação gigantesca, seja qual for o motivo, é muito

provável que o primeiro projeto exequível que lhes tenha ocorrido (por conta da

tecnologia e material disponível, pelo custo em recursos naturais e "humanos") seja o de

construir uma pirâmide, um dos mais simples dentre os poliedros. Acreditamos que a

simplicidade da ideia (de edificar pirâmides) já seja suficiente para explicar o fato

histórico de diversas pessoas terem tido (mais ou menos) a mesma ideia de forma

independente. Seria uma extravagância do intelecto levantar e alimentar hipóteses que

tenham havido arquitetos-astronautas, urbanistas-extraterrenos, gigantes gentis, deuses-

visitantes, etc.

Com o conceito de representação, parece ocorrer o mesmo. A simplicidade da ideia de

afirmar que a representa b por conta somente de uma associação entre a e b já é

suficiente para explicar o sucesso ou, ao menos, a difusão de teorias que definem o

conceito de representação diadicamente e de semióticas que recorram a tais teorias.

Algo muito distinto ocorre com a semiótica peirceana. Nela não é possível explicar a

relação entre representante e representado sem recorrer a um terceiro elemento.

Dificilmente se consegue explicar com poucas palavras como é o funcionamento desse

terceiro elemento e o porquê de sua introdução numa teoria que aparentemente passaria

bem com apenas dois elementos. Prova desta dificuldade está no fato de termos levado

duas centenas de páginas para explicar (o que acreditamos serem) os principais motivos

Page 453: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

438

que levaram Peirce a construir uma concepção de representação com este terceiro

elemento. E o importante não é exatamente o número de elementos, se são dois, três ou

quatro, mas como este terceiro elemento foi definido e como esta definição foi

mobilizada por Peirce dentro de um projeto teórico maior: responder aquela que

considerava a questão fundamental da filosofia (como é possível o raciocínio sintético

ou ampliativo). É justamente pelo modo específico como foi definido e também pelo

papel central dentro de toda a filosofia peirceana que se torna inexequível a tarefa de

explicar em poucas palavras (como o leitor deve ter percebido) o que é este tal terceiro

elemento. É este terceiro elemento um dos principais responsáveis pela sensação de

estranhamento provocada pela leitura de algumas teses e teorias defendidas por Peirce.

Como esperamos ter demonstrado, este terceiro elemento instala no coração da filosofia

peirceana uma noção de fluxo. Esta noção de fluxo, de movimento incessante, coloca

Peirce numa tradição de pensamento que parece estar destinada às margens. Se

considerarmos que as ideias de fundação, origem, ancoragem, enraizamento têm uma

relevância considerável na história da cultura ocidental, pois estão associadas dentro de

um campo semântico ao qual sempre nos voltamos para explicarmos o que geralmente

entendemos por civilização, devemos notar que a noção de fluxo (peculiar ao

pensamento peirceano) parece se comportar como uma espécie de dispositivo anti-

civilizacional. Mesmo o mais idôneo e bem-intencionado dos multi-culturalistas

contemporâneos não conseguiria esconder certo desconforto que uma cultura nômade

causa em espíritos criados no seio de alguma civilização. Desconfiamos que este seja o

motivo mais primitivo que nos leve a estranhar as propostas teóricas peirceanas. Se

ajustarmos o foco e aproximarmos nossa atenção de temas dos quais Peirce tratou de

forma mais direta em seus escritos, como questões epistemológicas, notaremos que esta

noção geral de fluxo (à qual viemos nos referindo) está associada dentro do pensamento

peirceano à noção de incerteza e à doutrina do falibilismo. Por este mesmo motivo, as

concepções de conhecimento, cognição e ciência que emergem dos escritos peirceanos

também parecem se desenvolver à margem daquelas teorias e reflexões epistemológicas

produzidas pela maioria dos filósofos modernos. O posicionamento filosófico de Peirce,

sobretudo, em questões epistemológicas, lembra muito a decisão de um personagem de

um conto do escritor brasileiro Guimarães Rosa. Neste conto, intitulado "A terceira

margem do rio", Guimarães Rosa nos relata a história de um pescador que, após ter

decidido morar numa canoa, posta a flutuar sobre as águas de um rio, nunca mais voltou

a por o pé em terra firme. O motivo que nos leva a considerar (no mínimo) inusitada a

decisão deste pescador parece ser o mesmo que nos leva a ficar incomodado com a

proposta teórica Peirce. É uma espécie de "terceira margem" que cria dentro da

semiótica peirceana e da semântica que lhe é peculiar uma noção de fluxo da qual não

parece haver um traço sequer nas demais teorias que tentam explicar os mesmos

fenômenos. Ao introduzir este terceiro elemento, a solução teórica peirceana torna-se

não somente estranha ou anti-natural, mas parece essencialmente falha, pois é uma

teoria semântica que, para explicar a relação de representação, recorre à noção de

processo inacabado, incompleto, sem um norte pré-definido. Como no conto, a terceira

margem não pode ser vista. É uma solução que parece não solucionar.

Page 454: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

439

Entretanto, há na filosofia peirceana um contraponto à noção de fluxo instalado no

coração da semiótica pela caracterização recursiva de representação e esperamos que

nossa tese tenha contribuído para explicitá-lo. Este contraponto é a ideia que a verdade

ou a realidade é um ponto de fuga de um processo interpretativo que só pode ser levado

adiante por um sujeito cognoscente supra-individual, a comunidade indefinida de

investigadores ou, na feliz expressão de Haack (1982, p. 156), a "comunidade

cognitiva". Se levarmos às últimas consequências as teses elementares da semiótica (e

nossa tese a respeito da recursividade na semiótica peirceana tentou ir nesta exata

direção), notaremos que o conceito de comunidade cognitiva e este processo de

convergência previsto pela teoria peirceana da cognição tendem a construir um conceito

de linguagem (uma espécie de sistema [de signos] compartilhado por uma comunidade)

como um ponto de estabilidade em contraposição ao caráter inacabado, incessante,

incompleto dos processos cognitivos entendidos como processos individuais, privados.

A estabilidade da linguagem é o anverso do fluxo sígnico.

Se, por um lado, Peirce, para cortar a incognoscibilidade pela raiz (uma vez que ela

tornaria irremediavelmente inexplicável a possibilidade dos raciocínios sintéticos),

precisou eliminar as intuições como pontos fundantes do processo de conhecimento

(para tornar assim explicáveis os raciocínios sintéticos), por outro lado, ao descartar as

intuições nestes papéis fundantes, ele acabou por criar sobre sua epistemologia uma

atmosfera de incerteza, probabilidades, flutuações. A saída teórica peirceana para

contrabalancear esta atmosfera de incerteza é propor a existência de critérios externos

de validação para o processo de conhecimento. É como se os pensamentos "ocorressem"

fora da cabeça dos indivíduos. De acordo com a semiótica peirceana, o acesso que

temos a nossos próprios pensamentos é indireto, i.e., este acesso é mediado por signos.

Como Peirce insinua em mais de uma ocasião (cf. CP 5.266 [1868] e também 5.245

[1868]) que este acesso indireto só pode ser realizado por um signo entendido como

algo externo ou, ao menos, como algo que se supõe externalizável, então só podemos ter

acesso aos nossos pensamentos porque nossa atividade cognitiva funciona pressupondo

a possibilidade de externalização de nossos pensamentos. Se esta interpretação estiver

correta, então os chamados estados internos de nossa mente só podem ser identificados

e acessados a partir de elementos externos, públicos. Os critérios que nos permitem

identificar um pensamento e, em última análise, validar um raciocínio são externos.

Então, o conceito de linguagem pode emergir como uma espécie de plataforma cuja

função é criar alguma estabilidade no fluxo de signos. Neste caso, entendem-se por

signos tanto aqueles expedientes sensíveis externos, as palavras, por exemplo, como

aqueles internos, as ideias. A linguagem funciona como uma base compartilhada que

permite o desenvolvimento do pensamento dirigido à representação da realidade.

Nossa tese (a respeito do tipo de caracterização do conceito de representação na

semiótica peirceana) se encaminha para a demonstração de que, dentro do sistema

filosófico peirceano, o conceito de linguagem (entendido como uma espécie de sistema

[de signos] compartilhado por uma comunidade) tem a função de contrabalancear o

efeito perturbador do estabelecimento de uma epistemologia sem fundações. A

Page 455: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

440

estabilidade da linguagem (que é garantida por um conjunto de normas de uso, regras

gramaticais, hábitos interpretativos e estruturas relativamente duráveis) é o contraponto

da instabilidade e fluidez de um sistema de crenças para o qual não pode ser encontrada

fundação completamente segura, inabalável. De acordo com nossas análises dos

movimentos argumentativos mais gerais do pensamento peirceano desenvolvido ao final

da década de 1860, o sujeito do conhecimento é necessariamente coletivo, ao menos

daquele conhecimento do qual se espera um dia poder afirmar ser válido, verdadeiro,

genuíno. Na epistemologia apresentada por Peirce, a possibilidade (ou esperança) de

validação lógica do pensamento foi depositada nas mãos da comunidade. A semiótica é

a lógica observada de uma perspectiva social. Para Peirce, esta é a única perspectiva que

nos permite explicar como são possíveis os raciocínios sintéticos ou ampliativos,

explicar como é possível haver crescimento do conhecimento. Em poucas palavras,

semiótica é a lógica no seio da vida social.

Page 456: Os conceitos de representação e recursividade na obra do

441

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