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Os Conquistadores do Inútil Lionel Terray

Volume 1

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Texto Capa: não tive a menor sensação de medo. Á ideia de que ia morrer dentro de instantes não me dava qualquer espécie de angústia. Senti um violento choque no peito. E tive de me render à evidência: eu não estava morto, mas apenas suspenso em pleno vazio na ponta da corda.

Texto Contra-capa: Com risco da própria vida, há homens que escalam cumes e glaciares, travando com a montanha uma luta sem tréguas, em que o menor erro pode ser fatal. A estes homens é preciso mais do que coragem: é preciso paixão. Lionel Terray descreve essa paixão através da sua aprendizagem da montanha, das suas travessias nos Alpes e das suas vitórias nos cumes mais difíceis, e a sua amizade com Gaston Rebuffat, Louis Lachenal... guias que, como ele, eram conquistadores do inútil.

Nascido em Grenoble em 1921, Lionel Terray revela-se desde os dez anos um esquiador extremamente dotado; mais tarde fará parte dos melhores esquiadores da França. Mas era no alpinismo que devia fazer uma carreira excepcional. Aos catorze anos consegue já uma ascensão do Grépon, e toda a sua vida será dedicada à montanha. Em 1942, entra no "grande alpinismo" e em companhia de Rebuffat, consegue a conquista do corredor nordeste do colo do Caimão. Em 1944-1945, combate corajosamente na frente dos Alpes. Ao regressar à vida civil, torna-se guia profissional; continuando a série das suas grandes ascensões como "amador", vencerá a escalada da maior parte das grandes paredes dos Alpes ocidentais, nomeadamente com Louis Lachenal, a quarta ascensão do pico norte da ponta Walker e a segunda da vertente norte do Eiger. Em 1950, é seleccionado para a expedição francesa ao Annapurna onde tem um papel capital e salva da morte os companheiros Herzog e Lachenal. A partir daí, lança-se ao assalto dos grandes cumes do Mundo. Participa em quatro expedições nos Andes onde consegue vencer dois dos picos tecnicamente mais difíceis jamais escalados: o Fitz-Roy e o Chacraraju. Volta três vezes ao Himalaia, vence o Chomo-Lonzo (7800m) e sobretudo o Makalu (8490m). Em 1962, conduz à vitória a expedição francesa ao Jannu, um dos cumes mais difíceis do Himalaia. Dirige depois expedições ao Peru e ao Alasca. Lionel Terray morreu durante uma escalada no Vercors, a 19 de Setembro de 1965.

Descoberta da montanha

Nascido à beira dos Alpes, antigo campeão de esqui, guia profissional, alpinista de longa travessia, membro de oito expedições aos Andes e ao Himalaia, dediquei toda a minha vida à montanha e, se esta palavra pode ter algum sentido, sou o que se chama um montanhês.

Em contradição aparente com este modo de vida, os caprichos do destino levaram-me a fazer um grande número de conferências ilustradas com projeções. Certa noite, quando depois de uma dessas sessões fui convidado a tomar uma bebida em casa de uma persona-lidade local, um respeitável professor, vestido com sobriedade, aproximou-se de mim e, olhando-me com atenção, disse com voz branda:

- A sua conferência interessou-me muito, sabe?...

E quando agradeci, conforme as conveniências, acrescentou:

Lionel Terray ainda criança.

O alpinismo é um esporte difícil que exige o conhecimento de si próprio e da montanha.

- Mas, que faz normalmente na vida? É engenheiro? Professor?

O bom homem não pôde esconder um certo espanto quando lhe respondi:

- De maneira nenhuma! Sou simplesmente guia de montanha.

Mais tarde, quando no meu triste quarto de hotel tentava conciliar o sono, que fugira devido ao nervosismo de duas horas de concentração intensa perante o público, recordei as palavras do professor. Então, compreendi pela primeira vez que a existência romanesca que eu vivera tinha forjado em mim uma personagem de uma duplicidade insólita. Verifiquei que para quem me vê pela primeira vez, de gravata, o corpo apertado num terno completo, dissertando com verve acerca da geografia humana do Himalaia, eu não me pareço nada, por detrás desta aparência mundana, com o homem que sou na realidade: um montanhês, essa personagem que a literatura ultraconvencional fixou nos espíritos com os traços rudes de um aldeão de modos grosseiros. Pela primeira vez compreendi toda a ironia do destino que transformara uma criança nascida de uma família de burgueses intelectuais num profissional do alpinismo e conquistador das mais altas e mais difíceis montanhas do Mundo.

Esta aventura começou em Grenoble, numa espécie de castelo rodeado de vinhas bravas, encostado ao flanco de uma montanha que domina a cidade. Foi nesse lugar que eu nasci. Assim que abri os olhos, pude admirar os belos cumes nevados do maciço de Belledonne que, em frente das janelas da enorme e confortável habitação familiar, se erguem como uma reluzente muralha.

Os meus pais eram aquilo a que se costuma chamar pessoas de boa família, isto é, burgueses abastados, descendentes em várias gerações de magistrados e industriais, até mesmo de militares de alta patente.

Para falar verdade, sob a sua aparência burguesa, esta família tinha mais originalidade e fantasia do que poderia imaginar-se à primeira vista. Tanto do lado paterno como do materno, os meus antepassados tinham contado com um número importante de personagens fora do comum: homens de negócios empreendedores, grandes viajantes em busca de fortuna e aventuras, militares e políticos audaciosos. Estes antepassados tinham transmitido aos meus pais um espírito mais aberto e uma concepção de vida menos tradicional do que é habitual no seu meio. Alto, forte, a cabeça larga e o queixo quadrado, os olhos de um azul muito intenso quase escondidos por detrás de óculos grossos, o meu pai possuía um tipo germânico bastante acentuado. Violento, entusiasta, austero e obstinado, mas igualmente amável e de espírito penetrante, era um homem dotado de faculdades intelectuais raras e com uma memória quase fenomenal.

Tivera uma vida acidentada: depois de estudos brilhantes de engenharia química, partira para fundar uma indústria no Brasil; a guerra de 1914 surpreendeu-o quando acabava de se instalar naquele país longínquo. Abandonando tudo sem hesitar, voltou a França, onde o chamava o seu dever de soldado.

Aos quarenta anos, farto dos negócios, largou a indústria para tirar o curso de Medicina, e, após cinco anos de esforços, abriu um consultório médico.

Na sua juventude, o meu pai manifestara gostos esportivos pouco correntes naquela época. Praticara a subida em balão livre e a corrida de automóveis e, sobretudo, fora um dos primeiros franceses a calçar esquis. Foi de qualquer forma o primeiro a dominar a elegante técnica do telemark, único processo de viragem que existia naqueles tempos heróicos.

De pequena estatura, feições clássicas, olhos muito escuros, cabelos cor de ébano, a minha mãe tinha o físico de uma italiana.

Dotada de um temperamento de artista, tinha estudado pintura; apaixonada e ativa, deu prova de muita originalidade no seu tempo. Já em 1913 guiava automóvel e foi a primeira francesa a atrever-se a fazer esqui com calças vestidas. A grande paixão da sua juventude fora a equitação, em que era exímia, principalmente em alta escola. Durante a sua estada no Brasil, fizera a cavalo viagens de várias semanas, visitando assim regiões ainda muito selvagens onde poucas mulheres brancas se haviam aventurado. Apesar de nitidamente marcados, os gostos aventureiros e esportivos dos meus pais nunca haviam atingido um ponto extremo e, principalmente no meu pai, nunca tinham ocupado um lugar importante na sua vida. É indiscutível que se os meus antecedentes familiares e a educação que recebi me podiam conduzir para uma existência de esportista e homem de ação, seria exagero ver nisso os princípios de uma vida apaixonadamente dedicada ao esporte e à aventura.

Uma coisa é certa: não foi com os meus pais que eu podia ter tomado gosto pelo alpinismo. Embora tendo passado a maior parte da vida nas montanhas, nunca tinham praticado esse esporte e, quando muito, a pretexto de passeio, talvez fizessem a ascensão de alguns cumes fáceis sem verdadeiras escaladas. Não só os meus pais nunca tinham praticado alpinismo, como reprovavam esta atividade, considerando-a uma loucura estúpida. Lembro-me perfeitamente de, quando eu era ainda um rapazinho de sete anos, a minha mãe me dizer um dia:

- Não me importo que pratiques todos os esportes, menos a moto e o alpinismo.

E quando lhe perguntei o que significava esta última palavra, respondeu-me:

- É um esporte estúpido que consiste em trepar às rochas com as mãos, os pés e os dentes!...

Se a minha mãe reprovava o alpinismo, sobretudo por o ignorar, o meu pai, pelo contrário, atacava-o com sarcasmo e desprezo. Para ele, o esporte era principalmente um meio de nos mantermos em boa forma a fim de conservar e aumentar a capacidade de trabalho necessária ao triunfo social e financeiro e, acessoriamente, uma forma de seguirmos à frente na grande marcha da vida. Uma pessoa dedicar-se a um exercício tão esgotante, perigoso e secreto como o alpinismo parecia-lhe o cúmulo do absurdo, e ouvi-o dizer centenas de vezes:

- É preciso ser completamente idiota para ter o trabalho de subir a uma montanha, com risco de partir a cabeça, quando nem sequer há uma nota de cem francos lá em cima para ir buscar.

Um dos meus primos, que ficara aleijado devido a uma queda na montanha, era constantemente citado como exemplo das consequências funestas da loucura de trepar. Às vezes, na rua, com um gesto de desprezo, apontavam-me alguns dos estudantes alemães que, nessa época, enchiam as crônicas da região devido aos seus inúmeros acidentes de montanha, e nunca deixavam de acrescentar:

- Olha para aqueles imbecis que trepam às montanhas. Hão-de ganhar muito quando tiverem que andar com muletas como o teu primo René...

A tradição de família garante que, desde a mais tenra infância, eu fui uma criança de um vigor excepcional. Pesava mais de cinco quilos quando nasci e tinha, segundo parece, uma cabeleira tão abundante que, com quatro dias só, tiveram que me levar ao barbeiro... Os que sabem que aos vinte e um anos eu tinha a cabeça tão lisa como uma bola de bilhar podem ver toda a injustiça e ironia do destino...

Durante a minha infância, consta que eu era dotado de uma independência quase doentia. As façanhas que o provam são ainda hoje inesgotável assunto de conversas familiares para os longos serões de Inverno. Uma delas parece-me que merece ser contada: quando eu tinha quatro ou cinco anos, a minha mãe gostava de me vestir com elegantes terninhos de veludo preto com colarinho branco. Cada vez que me obrigavam a vestir estes trajes pouco práticos para brincar, segundo os meus gostos turbulentos, eu ficava de muito mau humor. Um dia, na praia, neguei-me a tomar banho, com irredutível obstinação. A minha mãe, já farta, acabou por me vestir precisamente um dos ternos de principezinho que eu odiava. Assim que me apanhei vestido, precipitei-me com entusiasmo para o meio das ondas... A maior parte das pessoas pensarão que eu era não apenas independente mas muito mal educado...

Tinha três anos e meio quando o meu pai me pôs em cima de um par de esquis pela primeira vez. A tradição oral comporta algumas contradições no relato deste primeiro contato com a neve. Para alguns, o meu comportamento foi brilhante; para outros, pelo contrário, foi antes medíocre. A preocupação da objetividade obriga-me a pensar que deve ter sido semelhante ao da maioria das crianças desta idade e se limitou a algumas pequenas escorregadelas, entremeadas de quedas e lágrimas.

Lionel Terray tinha uma grande paixão pelo esqui. Foi, aliás, um esquiador de categoria internacional.

Mas o que é certo é que o esqui não tardou a apaixonar-me extraordinariamente e, com vinte anos de idade, este esporte devia absorver uma grande parte do meu tempo, da minha energia e dos meus sonhos.

A nossa casa estava rodeada por um vasto parque, compreendendo, além de vinhas e culturas, uma densa floresta, uma charneca coberta de arbustos espinhosos e também ruínas e rochedos. Esta natureza selvagem constituía um mundo ideal para realizar os sonhos de uma criança apaixonada pela liberdade e pelo maravilhoso. Foi naquele ambiente que cresci, quase sem peias, a correr pelos bosques, a trepar os rochedos, a pôr armadilhas para coelhos, raposas e ratos, a atirar nos melros, pardais e gaviões.

Exceto no Inverno, em que empregava todos os dias feriados a praticar esqui, eu passava no parque quase todas as horas livres que me permitia a vida escolar. Para mim não havia quase cinema, futebol ou tardes em casa dos amigos. Não só ficava no parque todas as quintas-feiras e domingos, fosse qual fosse o tempo que fizesse, mas ainda caminhava para lá todos os dias de manhã, antes de ir para a escola, e à tarde, quando voltava. Às vezes, até na Primavera, quando a temperatura era amena e o ar estava carregado de uma espécie de fluido excitante, escapava-me mesmo de noite. Errando nos bosques e nos campos, tentava penetrar os mistérios da vida quando a sombra desce sobre a Natureza e tudo parece ficar em silêncio. Horas seguidas, agachado entre os arbustos, ficava imóvel a ouvir o estalar dos ramos, o grito da coruja, o cantar de um melro e todos os ruídos quase imperceptíveis que indicam intensa atividade. Aqueles anos da juventude, passados no contato íntimo com a Natureza, marcaram profundamente a minha personalidade física e moral.

Como quase todas as crianças, gostava de brincar de cowboy, de caçadores e de índios. Mas, ao contrário dos outros, eu dispunha para estes jogos, não do acessório, mas do essencial. Não tinha um chapéu de aba larga, nem camisa de cores vivas, nem plumas multicolores, nem medalha de sherif, mas espingardas verdadeiras, punhais verdadeiros e uma floresta verdadeira com animais verdadeiros. A maior parte das crianças possuem o gosto inato de trepar às árvores, às paredes e às rochas. Assim, os muros de pedra calcária que rodeavam a nossa propriedade eram para mim um lugar de brincadeira ideal; graças a esses muros, cedo me familiarizei com os rudimentos técnicos das escaladas. Ainda não fizera cinco anos quando tive o meu primeiro acidente, que foi aliás o mais grave de toda a minha vida. Ao trepar a um rochedo do parque, dei uma queda que me abriu uma brecha profunda na testa. A lenda assegura que voltei para casa coberto de sangue, sem derramar uma lágrima!... Mas sabe-se como se fazem as lendas. O filho do nosso padeiro tinha feito algumas escaladas nos maciços secundários perto de Grenoble. Falador e gabarola, gostava de contar as suas explorações, e com certeza as exagerava um pouco. Enlevado nas suas narrações, eu tinha por esse rapaz, absolutamente insignificante, uma admiração sem limites. Aos meus olhos, ele era uma espécie de semideus, e eu passava horas a pedir-lhe que me contasse as suas fabulosas aventuras. Suplicava-lhe que me levasse com ele numa das suas escaladas, mas ele respondia com desdém:

- É impossível, tu és uma criança. Para subir à montanha é preciso ser forte e ter um sangue-frio a toda a prova.

Eu era muito amigo da filha do nosso porteiro, que se chamava Georgette. Tinha quinze para dezesseis anos e todos os domingos partia para a montanha com os sócios da Sociedade de Escaladores dos Alpes. As escaladas destes grupos limitavam-se à ascensão dos cumes dos Pré-Alpes, por caminhos apenas um pouco mais difíceis do que carreiros escarpados. Certamente, devido ao pouco perigo destas excursões, não tive dificuldade em convencer Georgette a levar-me com ela, às escondidas dos meus pais. Foi fingindo que dava inocentes passeios de bicicleta que eu consegui escalar os meus primeiros cumes. Estas ascensões encantaram-me extremamente, e a impressão que senti foi tão profunda que ainda hoje guardo a recordação viva dessas horas de entusiasmo.

Contudo, estes cumes eram dos mais modestos que possam chamar-se. O primeiro foi a Agulha de Quaix, uma minúscula torre calcária que a lenda de Rabelais assegura não ser mais que um dejeto de Gargântua!... A ascensão apaixonava-me cada vez mais. Na subida, a caravana enganou-se no corredor e foi preciso lutar durante muito tempo entre as silvas e os ramos secos. A minha experiência do parque de casa tornara-me mestre no assunto, e com um

ingênuo orgulho senti-me feliz por mostrar aos meus companheiros esse talento.

Descida em chamada: uma corda dupla é amarrada a uma saliência.

Quando atinge o chão, o alpinista recupera a corda puxando-a.

A própria escalada não me pareceu difícil, mas terrivelmente vertiginosa. Uma das raparigas, muito impressionada, teve quase uma síncope, e foi preciso animá-la com um cordial. Na descida, o chefe da caravana conduziu-nos, sem o menor erro, por entre o que me pareceu um labirinto de paredes lisas, de curvas e de chaminés. Um tal sentido de orientação na montanha enchia-me de admiração. Como é maravilhosa a imaginação de uma criança de onze anos, que pode transformar numa aventura apaixonante uma escalada tão simples!...

Tinha eu doze anos quando se deu um acontecimento que ia desempenhar um papel decisivo no desenvolvimento da minha vocação de alpinista que começava a nascer. O meu irmão mais novo adoeceu e o médico aconselhou umas férias de altitude. A minha mãe resolveu então levar-nos a passar as férias no vale de Chamonix, onde já estivera alguns anos antes.

Até aí eu só conhecera as montanhas dos Pré-Alpes, de paredes de rocha cinzenta dominando os vales verdes. Só tinha admirado de longe os picos eternamente brancos dos altos maciços de Belledonne e de Oisans. Este primeiro contato com as grandes montanhas foi uma revelação. Fiquei entusiasmado e conservei intacta a recordação do meu fascínio perante essas massas de gelo, cintilando sob o céu de um azul quase irreal, da minha emoção perante essas agulhas que parecem lançar um desafio à audácia dos homens.

Nesse tempo eu era um rapaz de uma estatura e de um vigor físico tão excepcionais que me davam com facilidade quinze ou dezesseis anos. Mas debaixo desta capa de jovem atleta escondia uma alma atormentada e uma extrema sensibilidade. A baixeza, a vulgaridade e a monotonia da vida apresentavam-se já aos meus olhos com grande clareza e eu sonhava apaixonadamente com uma existência mais nobre, mais livre e mais generosa.

Perante o espetáculo das altas montanhas, “adivinhei imediatamente quantas alegrias a sentir, quantos sonhos a realizar, quanta glória a atingir”. De maneira inconsciente mas segura entrevi todas as possibilidades que me oferecia esse mundo de rocha e de gelo onde não há nada a recolher senão perigos e cansaços; previ o preço elevado que teria de pagar por esses louros inúteis, que não se colhem na lama, mas num jardim de beleza e de luz.

Passado o primeiro deslumbramento, em breve procurei ver de perto essas maravilhas e fazer a ascensão desses picos de sonho. Com alguns rapazes da minha idade, escalei alguns dos terraços das Agulhas Vermelhas, depois atravessei o Mar de Gelo, conduzido por um daqueles velhos guias que nessa época “pirateavam” à beira do glaciar, propondo aos turistas inexperientes fazê-los passar para a outra margem.

No glaciar de Bossons, encorajado pela minha experiência, recusei com desdém os serviços do “pirata” barbudo e condecorado que, com uma insistência interessada, nos avisava dos perigos a que nos expúnhamos atravessando a língua de gelo sem a sua ajuda.

Estes modestos passeios não satisfaziam suficientemente o meu gosto da aventura e as minhas ambições de alpinista em embrião. O que eu desejava com toda a minha alma era penetrar no coração dessas montanhas maravilhosas e escalar-lhes os cumes. A paixão com que defendi a minha causa convenceu a minha mãe a deixar-me participar em expedições organizadas pela Companhia dos Guias de Chamonix. A minha primeira travessia foi a subida do Couvercle, pela parede dos Egralets, com regresso pelo glaciar de Talèfre e pela Pedra de Béranger. A emoção deliciosa que senti ao saltar a minha primeira brecha e ao atravessar a minha primeira ponte de neve foi sem dúvida quase tão forte como a experimentada mais tarde

ao atingir o cume do Fitz-Roy ou do Makalu.

O meu orgulho no regresso, quando mostrei à minha mãe um postal representando a parede dos Egralets que acabava de vencer!... Foi a empresa mais medíocre que se possa imaginar, visto a passagem ser dotada de cabos e escadas! As travessias coletivas dos guias de Chamonix depressa me pareceram de pouca envergadura para acalmar as minhas aspirações. O que eu queria fazer eram verdadeiras escaladas, com corda, piolets, pitons, descidas em rapel e tudo o mais!

Mas apesar da sua fraqueza e bondade, a minha mãe recusava-se obstinadamente a deixar-me expor a vida em tais aventuras. Felizmente, nessa época um dos meus primos, militar de carreira, estava colocado na Escola Militar de Alta Montanha. Bom alpinista, tinha fama de ser seguro e prudente. Convencida pelas qualidades de semelhante guia, ela acabou por ceder às minhas súplicas e autorizou-me a acompanhar o meu primo numa escalada à Agulheta de Argentière.

Foi nesta minúscula ponta, que nem sequer merece o título de cume, que fiz a minha primeira descida em corda. Apesar de fácil, este exercício é impressionante para um neófito. A tal ponto que, no momento de se deixarem escorregar para o abismo, muitas crianças e mulheres choram com medo. Claro que não chorei, mas devo confessar sinceramente que tinha o coração à boca e os músculos paralisados de medo. Foi a primeira vez de uma longa série que a minha vontade me impelia para onde o corpo se recusava a segui-la. Perante a alegria profunda que me davam as ascensões, o meu primo verificou que nada podia vencer a minha paixão pela montanha, e que era preferível educá-la do que contrariá-la. A seu conselho, a minha mãe decidiu-se finalmente entregar-me a um guia de confiança. Este levou-me a fazer uma primeira tentativa nos Clocher e Clochetons de Planpraz. Tendo realizado rapidamente esta escalada curta mas bastante difícil, ele obrigou-me a escalar, nesse mesmo dia, a vertiginosa parede da vertente sudeste do Brévent. Durante esta primeira estação de alta montanha, ainda fiz a ascensão dos Grandes Charmoz e da Petit Vert.

De regresso a Grenoble, após estes princípios prometedores, julguei estar capaz de conseguir fazer escaladas sem a ajuda de qualquer guia. E, quando chegou a Primavera, consegui convencer a minha amiga Georgette a tentar comigo a ascensão do Dente Gérard, das Trois-Pucelles, pelo corredor Grange.

Esta escalada, situada num maciço de pouca altitude perto de Grenoble, sem ser verdadeiramente difícil, exige contudo uma certa técnica que, segundo parece, eu ainda não dominava suficientemente.

De qualquer maneira, a experiência foi uma das mais dramáticas de toda a minha carreira, e talvez nunca tenha estado tão perto da morte como nesse dia. Íamos muito mal equipedos, entre outras, por uma razão que hoje me parece inexplicável; apesar das agulhas do maciço do Vercors serem formadas por um calcário extremamemente liso e escorregadio, escalávamos com botas muito mal ferradas, e a nossa aderência podia comparar-se à de um cavalo a subir uma ladeira íngreme!...

A primeira travessia efetuou-se no meio de horríveis guinchos de pregos, cujas derrapagens soltavam enormes faíscas. Por várias vezes fiquei pendurado pelas mãos, e só por milagre não me estatelei nos pedregulhos a cerca de vinte metros abaixo de mim. Quando, sem fôlego, cheguei finalmente a uma plataforma acolhedora, um grupo de cinco alpinistas que tinham observado a minha ascensão cheios de angústia, pensando que mais valia fazer subir vivos até ao cume do que ter de descer mortos, ofereceram-se para atar a minha corda à deles. Esta proposta começou por ferir o meu amor-próprio, mas lembrei-me de quanto a minha subida fora duvidosa e, por fim, o instinto de conservação triunfou da vaidade.

A partir daí, graças à segurança da corda, segui com facilidade os que iam à minha frente. eInfelizmente, a sua equipe, pouco numerosa, compreendia três raparigas quase prin-cipiantes. A cada enfiada de corda, o guia era obrigado a içá-las como se fossem sacos. Esta ação de reboque levava muito tempo e a espécie de centopéia formada pela nossa equipe de sete só avançava muito lentamente. O dia já ia adiantado quando chegamos ao pé de duas brechas verticais. O guia meteu-se pela da esquerda, chamada Dalloz e com fama de ser muito difícil. Excelente escalador e, além disso, calçado com solado de sisal, agarrando-se como um

gato, chegou ao alto da passagem. Mas quando foi preciso fazer subir os desajeitados companheiros, começaram os problemas!...

A brecha erguia-se numa ligeira diagonal ao longo de uma laje vertical tão lisa como uma pista de dança. Logo no princípio da escalada, a primeira rapariga, incapaz de se segurar, largou-se e ficou pendurada junto da muralha. Depois de se debater uns momentos como uma grande carpa na ponta do anzol, ficou com os braços pendentes, e o guia teve que puxar por uns sessenta quilos de carne inerte. O desgraçado, depois de suar as estopinhas, conseguiu finalmente elevar a rapariga para junto dele. Mas, após esta façanha, ficou quase sem forças e foi incapaz de içar a segunda companheira, cujas redondezas faziam prever um peso respeitável. E foi necessário fazer subir o último da cordada para lhe dar uma ajuda...

Tudo isto levou ainda bastantes minutos, e o guia acabou por verificar que, com todas aquelas demoras, corríamos o risco de sermos apanhados pela noite antes de sairmos das paredes da montanha.

Na esperança de ganhar tempo, perguntou-me se eu me sentia com forças para subir sem ajuda a brecha da direita, chamada Sandwich, assegurando-me que ela era menos difícil do que a de Dalloz. Esta prova de confiança nas minhas capacidades de escalador foi um bálsamo para o meu amor-próprio, e sem hesitar um instante meti-me à frente da cordada pela estreita chaminé vertical.

A passagem, sem ser muito difícil, exigia contudo uma técnica que eu não possuía. Além disso, as minhas botas ferradas incomodavam-me terrivelmente, escorregando a cada momento. Apesar disso, graças a uma energia desesperada e a uma tenacidade inflexível, agarrando-me com todas as forças, quase sem fôlego, eu elevava-me lentamente, fazendo guinchar os pregos das botas. Cheguei assim a alguns metros de uma plataforma; infelizmente, naquele lugar, a brecha, em vez de vertical, passava a ser ligeiramente em cornija, o que dificultava ainda mais a minha ascensão. Cansado de todos os esforços, hesitei muito tempo antes de me decidir. Finalmente, reunindo toda a minha coragem, lancei-me com a energia do desespero. Mas, no momento preciso em que atingia o ponto desejado, os pés escorregaram-me e fiquei suspenso pelas mãos. Nunca tive depois disso uma sensação tão nítida de que me ia soltar e cair no abismo inexoravelmente. Só as forças incalculáveis que descobrimos nas situações desesperadas me permitiram restabelecer o equilíbrio salvador. É verdade que tinha conseguido passar, mas a partida ainda não estava ganha! Quando se brinca de guia, é preciso fazer subir também os clientes. Como fazer subir até mim a minha companheira que, pesada e sem experiência, não conseguia erguer-se um centímetro? Problema angustiante para um rapaz com menos de treze anos, quase no limite das suas forças! Felizmente, uma pequena árvore tivera a excelente ideia de crescer a poucos metros do alto da brecha e, graças ao seu tronco robusto, consegui sair desta situação que não teria outra solução senão bivacar e esperar pela caravana de socorro.

Cada vez que, empregando todas as minhas energias, conseguia içar a Georgette alguns centímetros, bloqueava a corda em volta da árvore. Assim, tinha a possibilidade de recuperar as forças antes de a puxar mais alguns centímetros para cima. Centímetro a centímetro, apesar dos gritos e lágrimas da minha companheira, meio estrangulada pela corda, consegui finalmente içá-la até junto de mim. Terminadas as dificuldades, o resto da cordada juntou-se a nós e a descida efetuou-se sem problemas.

Esta infeliz experiência de chefe de cordada deixou-me dominado por uma falta de confiança em mim, que prejudicou durante muito tempo a minha carreira de escalador. Depois desta travessia, fiquei convencido de que o alpinismo estava reservado a homens extraordinários, dotados de uma coragem, de uma força e de uma agilidade quase sobre-humanas. Pensando que a minha falta de habilidade era devida em parte à minha falta de força, comecei a fazer diariamente musculação de maneira intensiva. Adquiri assim braços enormes para um rapaz de treze anos, sem conseguir por isso mais facilidade nas minhas escaladas.

Durante o Inverno seguinte, as qualidades de esquiador que mostrara na minha primeira infância começaram a confirmar-se. Nas competições regionais nenhum rapaz da minha idade podia competir comigo. Em virtude dessa superioridade, tive autorização para correr nas provas de juniores e até de seniores; apesar disso, conseguia às vezes classificar-

me entre os primeiros. Algumas pessoas garantiam que eu tinha o estofo de um campeão internacional, e o que era mais grave é que eu começava a acreditar. O esqui ocupou a partir daí um lugar cada vez mais importante na minha vida. Passado o Inverno, continuei a sair todos os domingos para subir à montanha e praticar o esqui de Primavera. No Verão voltei ao vale de Chamonix, onde minha mãe mandara construir um modesto chalé junto do encantador Hameau des Bois.

"Perante o espectáculo das altas montanhas, eu adivinhei imediatamente quantas alegrias

a sentir, quantos sonhos a realizar, quanta glória a atingir."

O muro do colégio

Havia muito tempo que os meus pais estavam separados devido a uma incompatibilidade de gênios fortemente vincada. Foi por essa época que resolveram finalmente divorciar-se. Eu fui entregue ao meu pai, que decidiu mandar-me continuar a estudar num colégio interno. A instituição respeitável que ele escolheu era um pequeno seminário que a proximidade de Grenoble afastara a pouco e pouco da sua missão inicial, para o transformar num estabelecimento de ensino de vistas bastante largas. Apesar disso, as regras e tradições da casa tinham mudado pouco desde a sua origem. A sua rigidez, austeridade e arcaísmo tinham um caráter incrivelmente pronunciado. As instalações do colégio eram constituídas por uma espécie de antigo convento com uma situação magnífica, sobre uma colina dominando o vale do Isère. Aquelas velhas paredes rodeadas de árvores enormes tinham certo encanto. Do exterior, o estabelecimento causava uma impressão verdadeiramente agradável, mas quando se entrava perdia imediatamente o encanto.

O interior, desprovido do conforto mais elementar, era velho e poeirento. Apenas as classes eram aquecidas com fogões a carvão. As camaratas, enormes, albergavam quarenta e cinquenta alunos ao mesmo tempo. As instalações esportivas resumiam-se a dois pátios de recreio, de tamanho regular, munidos apenas com alguns jogos.

Neste cenário de velha caserna, a vida era absolutamente espartana. Os alimentos, sumariamente cozinhados, eram servidos em pratos de metal que nunca se lavavam. Os cuida-dos higiênicos limitavam-se a uma vaga lavagem com água fria, das extremidades do corpo (parece que havia uma sala onde era possível os alunos regarem-se uns aos outros com uma mangueira, mas em dois meses nunca ouvi dizer que alguém se tivesse servido dela).

Afinal de contas, a vida espartana não é tão má como isso, e a antiguidade das instalações e a rudeza de hábitos deste colégio não teriam inconvenientes de maior se os alunos não fossem obrigados a um horário sobrecarregado, imposto por uma disciplina militar. A cerca de dez horas de aulas e estudo vinham juntar-se todos os dias uma ou duas horas de práticas religiosas. Os exercícios físicos limitavam-se a uma hora de recreio diário, uma hora de cultura física semanal e um curto passeio nas tardes de domingo e de quinta-feira.

Habituado a uma vida física intensa, educado com muita liberdade, em contato permanente com a Natureza, eu estava muito mal preparado para viver naquela espécie de prisão para crianças. Logo nas primeiras horas que passei no colégio, senti-me tão infeliz como um pássaro dentro de uma gaiola. Todavia, esperando que, graças àquela vida monástica, poderia recuperar parte do atraso que tinha nos estudos, decidi fazer uma tentativa leal para me adaptar. Durante dois meses esforcei-me de forma louvável por respeitar a disciplina e absorver a dose maciça de conhecimentos que me davam.

Mas a vida fortemente sedentária que levávamos e o ambiente de bajulação baixa, de intrigas mesquinhas e simulações sujas que dominavam toda a nossa existência, pareciam-me cada dia mais insuportáveis. Por fim, compreendi que era fisicamente incapaz de ficar assim fechado durante meses. Escrevi ao meu pai a pedir-lhe para me tirar daquele estabelecimento. Acrescentei que, devido à minha falta de tendência para os estudos ser cada vez mais evi-dente, queria acabar com aquela perda de tempo inútil, a fim de aprender uma profissão manual. Este, cego pelo seu orgulho de grande burguês intelectual, não podia de forma nenhuma admitir que o filho fosse incapaz de seguir estudos superiores, e, como era de esperar, levou muito a mal a minha carta e informou-me tacitamente de que eu ficaria no colégio e não se punha a hipótese de me mandar aprender um ofício. Respondi-lhe que, já que não queria tirar-me do colégio a bem, seria obrigado a fazê-lo pela força das circunstâncias.

No domingo seguinte, tendo sido autorizado a sair até à cidade, comprei uma pistola de rolha e algumas munições; à meia-noite, soava o primeiro tiro sob as arcadas do imenso dormitório. Seguiram-se outros dois, provocando um pânico sem precedentes no venerável estabelecimento. No dia seguinte, logo às dez horas da manhã, era chamado ao gabinete do diretor; o meu pai esperava-me ali, vermelho de cólera: eu era expulso do colégio. Após este golpe espetacular, esperei as piores represálias, inclusivamente ser metido numa casa de correção. Mas tal não aconteceu, antes pelo contrário. O meu pai, mais psicólogo que de costume, passando de um extremo ao outro, decidiu, depois desta experiência desagradável num colégio de ideias arcaicas, meter-me num colégio de métodos ultramodernos. Aquele que

escolheu ficava situado em Villard-de-Lans, estação do maciço de Vercors, a mil metros de altitude. Ali, pensei, poderia, ao mesmo tempo que continuava os estudos, encontrar no esqui e na montanha o derivativo indispensável ao meu equilíbrio físico e moral.

"... encontrando-me livre como um pássaro e aureolado com uma coroa de glória em plena ascensão".

Este estabelecimento, de pequenas dimensões, era dirigido por uma mulher de grande inteligência e cultura, que soubera criar, num ambiente de alegria amigável, um ensino eficaz apesar do horário bastante rígido. Os cursos, com pequenas classes de oito ou dez alunos,

eram organizados de maneira a permitirem a prática do esporte e do ar livre todos os dias entre as duas horas e as quatro e meia. Graças a isso, durante todo o Inverno, eu pude treinar-me no esqui quase diariamente, e todos os domingos tive a oportunidade de participar em competições. Foi assim que, com treze anos, ganhei pela primeira vez o título de Campeão do Dauphiné e me classifiquei em terceiro na categoria de seniores.

Durante o Outono e a Primavera, o esqui era substituído por passeios nos bosques e até meia montanha. Como as minhas capacidades de marcha eram muito superiores às da maior parte dos outros alunos, a diretora autorizou-me a formar um grupo selecionado que, sob a minha responsabilidade, podia levar comigo para longos passeios e até ascensões fáceis. Deu-me também autorização para praticar a escalada, com um dos professores. Este, por um feliz acaso, era membro do G.H.M. e excelente escalador. Devo-lhe muito e foi com ele que consegui enfim vencer o corredor Grange das Trois-Pucelles, em condições satisfatórias.

Eu encontrava naquele estabelecimento condições de vida perfeitamente adaptadas aos meus gostos e ao meu temperamento, e passei ali dois anos extremamente felizes, durante os quais me desenvolvi bastante, física e moralmente. No piano escolar, apesar da minha aplicação, foi-me impossível recuperar suficientemente o meu atraso em certas matérias para poder terminar o curso do liceu com êxito.

Mas consegui elevar consideravelmente o meu nível intelectual e até adquirir uma cultura literária maior do que é costume naquela idade.

Quando me apresentei a exame, as minhas notas, exceto em inglês e francês, foram tão más que parecia fora de dúvida que eu não tinha a menor possibilidade de vir um dia a passar no exame. Apesar disso, o meu pai resolveu fazer-me repetir o ano. Mas para eu ficar mais perto da minha mãe, que havia alguns anos vivia definitivamente no vale de Chamonix, resolveu meter-me como interno num colégio de luxo, instalado na capital do alpinismo. Infelizmente, este colégio era muito mais mal dirigido do que o de Villard-de-Lans e o ambiente não era agradável. Além disso, eu não tinha ilusões acerca da utilidade dos estudos que me obrigavam a seguir.

Nestas condições, depressa me desinteressei completamente do meu trabalho e empenhei apaixonadamente todos os meus esforços na única atividade que me dava alguma satisfação na vida: o esqui.

Por sorte, o horário do colégio, apesar de mais sobrecarregado do que o de Vollard, permitia-me treinar todas as quintas-feiras e participar em competições de domingo. Contudo, como não estava autorizado a ausentar-me antes de domingo de manhã, a minha participação limitava-se às únicas corridas disputadas no Vale. Pela mesma razão, era-me impossível fazer deslocações para longe. Esta restrição da minha liberdade deu origem a acontecimentos de comédia. Tendo sido selecionado para disputar os campeonatos de França em Luchon, nos Pirenéus, pedi autorização para sair do colégio durante uma semana, a fim de concorrer a essas provas. Mas como isso não era costume, o meu pedido foi recusado. Nessa época nada me parecia mais importante, a meu ver, do que disputar esses campeonatos. Por isso, tomei a decisão de fugir do colégio. Durante vários dias preparei clandestinamente a minha evasão. Na noite prevista para a partida, deixando um bilhete em cima da almofada, só tive que abrir a janela do corredor do primeiro andar, atirar o saco e saltar sobre a neve. Um quarto de hora mais tarde tomava o comboio, sem problemas, e quando, às primeiras horas da manhã, deram pela minha ausência eu estava na planície, rodando alegremente para os Pirenéus longínquos. O meu pai telefonou-me para Luchon, dizendo que por aquela vez passava uma esponja sobre o assunto, mas que contava com o meu rápido regresso assim que as provas fossem disputadas. Em Luchon, obtive uma boa classificação e fui convidado a participar, com todas as despesas pagas, no Grande Prêmio da Provença em Barcelonnette. Sem hesitar um segundo dirigi-me para a estaçãozinha meridional. Portei-me brilhantemente, alcançando um terceiro lugar na classificação de todas as categorias. Mas quando, cheio de alegria, me preparava para ir à distribuição dos prêmios, vi chegar dois guardas, um pouco embaraçados, que me explicaram, com o sotaque da terra, que o meu pai tinha avisado a polícia, e eram obrigados a meterem-me no primeiro comboio.

Depois desta fuga, o colégio não me quis admitir novamente, e o meu pai, certamente furioso por ter dado ao mundo semelhante monstro, pareceu nunca mais ligar grande

importância ao meu destino.

Encontrando-me livre como um pássaro e aureolado com uma coroa de glória em plena ascensão, pude corresponder aos inúmeros convites que recebia dos organizadores de corridas de esqui. Participei em todas as grandes provas de fim-de-estação, ganhando alguns prêmios lisonjeiros, nomeadamente a descida da Brecha de Ia Meije, onde triunfei numa competição que incluía o campeão mundial James Couttet e vários outros membros da equipe nacional. Quem ler estas aventuras de mau aluno pode imaginar que eu era nessa altura um daqueles filhos-família a nadar em dinheiro, um play-boy insuportável que, imaginando que tudo lhes é permitido porque os pais dispõem de uma grande fortuna, vivem insolentemente ao sabor dos seus prazeres, da sua fantasia e preguiça.

Tal ideia seria absolutamente errada. Eu dispunha de muito pouco dinheiro, a tal ponto que partir um par de esquis era para mim um verdadeiro drama. Além disso, se os desentendimentos entre os meus pais favoreciam uma liberdade excessiva de que muitos rapazes poderiam aproveitar para levar uma vida desregrada, não era de forma nenhuma o meu caso, antes pelo contrário. Dotado de uma natureza reservada e tímida, levava uma existência quase ascética e, apesar das facilidades que me dava um físico excepcionalmente vantajoso, só raramente participava nos prazeres da minha idade. Com uma espécie de misticismo, dedicava-me inteiramente ao esqui, ao seu treino e ao esporte em geral; longe de me entregar a uma vida despreocupada, preocupava-me, pelo contrário, com o meu futuro, que me parecia dos mais sombrios.

Durante o Verão de 1939, o Mundo foi abalado por uma catástrofe que todos julgavam impossível: a guerra. Durante os meses que se seguiram, eu senti-me muito desamparado e, de fato, a minha situação era realmente crítica. Aparentemente o meu pai tinha-se desinteressado de mim e eu não podia esperar nenhuma ajuda desse lado. A minha mãe, tendo comprometido grande parte da sua fortuna em especulações desastrosas, só com dificuldade podia sustentar-me. De qualquer forma, não possuía os meios suficientes para me criar uma situação independente. Após estudos deficientes e incompletos, eu não tinha qualquer possibilidade de ganhar a vida numa profissão intelectual e, não tendo aprendido nenhum ofício, a não ser por amadorismo, as profissões manuais estavam-me interditas. A única atividade em que eu podia dar um rendimento razoável era o esqui. Mas nessa época a profissão de monitor estava longe de ser tão rendosa como hoje. Eu não ignorava que ela me permitiria apenas viver pobremente durante os seis meses de Inverno e que, para alcançar dentro do esqui uma situação decente, era preciso vir a ser um grande campeão. Os meus êxitos recentes podiam com justiça dar-me a esperança de me incluir um dia entre os raros eleitos, mas como me parecia incerto um futuro baseado em tais previsões!...

Para cúmulo de desgraça, a guerra reduzira em extremo todas as atividades ligadas ao esqui. A afluência de ivernantes diminuíra de nove décimos, e todas as competições tinham sido proibidas.

Passei a primeira parte do Inverno em Luchon, a trabalhar na loja de esportes de um camarada. Tinha que consertar os esquis e ajudar a vendê-los. Mas a atividade era praticamente nula, e em breve tive de voltar a Chamonix. Ali, pelo menos, pude continuar a treinar-me, e tive a consolação de ganhar a única corrida que foi disputada durante esse triste Inverno.

Estava a ponto de me alistar como voluntário no exército quando se deram as perturbações da derrocada de 1940. Ainda por alguns meses, a escolha do meu futuro era adiada. Depois da desastrosa ascensão do Grépon, eu renunciara a chegar um dia às grandes travessias, mas nem por isso deixava de praticar o alpinismo. Em Villard-de-Lans tinha percorrido várias vezes a montanha e feito numerosas pequenas escaladas, por vezes difíceis. Em Chamonix, além de algumas ascensões fáceis, praticara intensamente o esqui de

Primavera e de Verão, exercícios que por vezes se relacionam muito com o alpinismo.

Ambicionava poder conseguir escaladas de maior envergadura, mas não me julgava capaz de as realizar sozinho. Além disso, os poucos companheiros que poderiam conduzir-me no segundo lugar da cordada eram escaladores de classe, que não estavam para se preocupar com um principiante como eu. E foi assim até uma bela manhã de Julho de 1940, uma daquelas manhãs cheias de sol e de luz, em que, através do ar de uma pureza cristalina, a montanha resplandece de beleza fascinante.

Com a janela aberta sobre o monte Branco, eu estava ainda a ler no meu quarto quando recebi a visita de um alpinista, oficial do exército, que, apenas desmobilizado, fora a Chamonix na esperança de encontrar nas montanhas distração para a amargura de uma derrota sem glória. Procurava um companheiro de escalada, e um amigo comum dissera-lhe que eu podia desempenhar esse papel. E aceitei com prazer.

Começamos imediatamente a fazer projetos, mas, com grande espanto meu, o visitante propôs-me para a primeira travessia o caminho Mayer-Dibona no Dente do Tubarão. Esta escalada tinha fama de ser muito difícil, e só as cordadas homogêneas de alpinistas consumados ousavam tentá-la. Era escusado o meu visitante dizer-me que pertencia ao G.H.M. e que com ele eu passaria por onde quisesse. Eu tremia à ideia de me lançar numa aventura que me parecia superior às minhas forças. Recusei-me obstinadamente, propondo a aresta sul do Moine, muito menos ambiciosa. Por fim, não conseguindo convencer-me, o membro do G.H.M. aceitou com ar resignado guiar-me nessa ascensão pouco gloriosa.

Os vários anos de alpinismo intermitente e de esqui de montanha, pelos quais começara a minha carreira, não me tinham dado uma técnica de escalada perfeita, mas tinha adquirido uma excelente segurança de pé naquilo que se chama "o terreno médio", isto é, as rochas fáceis, mas muitas vezes partidas e soltas, as vertentes de neve e os glaciares de espessura média.

Durante toda a primeira parte da escalada da aresta sul do Moine não tive assim a menor dificuldade em seguir o meu companheiro, e a subida efetuou-se rapidamente. Mas quando chegou ao diedro que forma a passagem-chave, o meu companheiro, já destreinado, e tendo-se esquecido além disso de levar sapatilhas de solado de sisal, parou de repente. Fez várias tentativas corajosas, a tremer freneticamente. Com os olhos dilatados pela angústia, eu esperava vê-lo cair a cada instante no abismo. À terceira tentativa, ainda sem fôlego depois de todos aqueles esforços, declarou-me com ar compungido que, visto não conseguir ultrapassar o obstáculo, não havia outro remédio senão descer. A perspectiva desta retirada prematura pôs-me na maior consternação e senti uma verdadeira revolta subir dentro de mim. Não! O dia estava demasiado bonito e fervia demasiada força nos meus músculos para que eu me considerasse vencido com tanta facilidade. Afinal, aquele diedro não metia assim tanto medo. Porque não havia eu de tentar escalá-lo? Com verdadeiro espanto, ouvi o meu outro eu pedir-me licença para tentar a passagem.

O primeiro salto sobre o vazio foí para mim tanto mais desagradável, porquanto alguns metros mais abaixo havia uma camada de rochas agudas, que pareciam ali dispostas pela Natureza para castigar os imprudentes que fossem perturbar aquelas solidões. Pouco desejoso de morrer de morte tão horrível, senti-me tomado por uma energia formidável; com alguns movimentos rápidos, encontrei-me no alto da passagem.

Envaidecido com este êxito, continuei a escalada no primeiro lugar da cordada. Mais acima tive algumas dificuldades para ultrapassar uma parede de quatro ou cinco metros, vertical e muito escassa de apoios, mas, graças às qualidades adesivas da minha roupa, acabei por triunfar!... Pouco depois deste último obstáculo, com o rosto radiante de alegria, pisei o modesto cume do Moine. Nenhuma nuvem manchava o azul resplandecente do céu e o dia estava tão claro que parecia impossível que tanto esplendor pudesse alguma vez ensombrar-se. Ficamos durante muito tempo no alto da montanha, a admirar as severas muralhas orladas de renda fina que, desde o Dru até aos Charmoz, nos envolviam num círculo sem igual em todos os Alpes.

"Com verdadeiro espanto, ouvi o meu outro eu pedir-me licença para tentar a passagem."

Naquele tempo em que a França começava a voltar a um equilíbrio instável após uma das piores convulsões da sua história, éramos as únicas pessoas na montanha. Penetrava-nos um silêncio mineral. Naquela grande paz, senti de maneira confusa que a partir de então nada mais contaria verdadeiramente para mim do que essa terra de grandeza e sinceridade, da qual cada recanto era a promessa de horas de exaltação.

Esta ascensão da Agulha do Moine foi de uma importância decisiva na orientação da minha vida. Semelhante a Guido Lamer, "vítima desde a infância de todos os sofrimentos mais cruéis, de todos os conflitos de desordens do pensamento da vida moderna, estendi os braços, louco de desejo, para a harmonia e paz interiores, e encontrei-as na solidão dos Alpes".

O êxito fácil que eu acabava de conseguir naquela escalada dera-me a confiança nas minhas forças físicas e morais indispensável para iniciar as grandes ascensões, fora das quais o alpinismo não passa de uma forma de turismo esportivo, porque se "desde a infância encontrei as minhas delícias nos inúmeros espetáculos da natureza misteriosa das grandes altitudes e lutei até hoje com fervor crescente para compreender a sua linguagem muda, foi na ascensão e na escalada, na rude aventura e na vitória sobre os perigos, que residiu sempre para mim a áspera suavidade e o melhor do alpinismo... Porque, não seria ridículo esforçar-se por atingir os cumes à custa de longas lutas e mil sofrimentos, no meio dos mil perigos mortais e pelos caminhos mais extraordinários, se não se procurasse mais do que uns instantes de contemplação e de recolhimento calmos? Para conseguir isso, não temos o funicular que nos leva lá diretamente? Oh, não, desde as minhas primeiras travessias reconheci que a prática apaixonante do alpinismo e a ameaça constante do perigo que nos revolve as entranhas são a origem de fortes emoções morais, e até religiosas, e talvez de elevada espiritualidade".

Fiz durante esse Verão numerosas ascensões, a maior parte delas com o meu companheiro do Moine. Entregava-me com entusiasmo a essa vida de ação intensa e de aventuras gratuitas, sempre renovadas, e isso dava-me completa felicidade porque "nos cumes que se erguem no meio dos elementos desencadeados é a taça de espumante que se bebe a longos tragos na embriaguez da ação que não conhece obstáculos".

Para falar verdade, se no intervalo das travessias eu lia Lamer com paixão, encontrando nessa linguagem romântica a expressão luminosa do que sentia confusamente, não tinha nada de um alpinista intelectual. Era antes uma espécie de jovem animal fogoso, saltando de rocha em rocha como um cabrito-montês. Não ambicionava qualquer glória, e as mais modestas escaladas deixavam-me louco de alegria. Para mim, a montanha não era mais do que um reino maravilhoso onde, por qualquer mistério, eu me sentia mais feliz. Com a repetição das experiências, progredia rapidamente na técnica, passando por fases de prometedora facilidade e de terror paralisante.

Na aresta norte do Chardonnet, sendo a última vertente de gelo duro, o meu companheiro talhava pequeníssimos degraus que, além da sua pequenez, tinham o inconveniente de uma extrema propensão para se inclinarem para o vazio. Convencido de que eram degraus normais, apoiando-me nas duas pontas anteriores dos meus grampos, eu subia tranquilamente. Teria decerto continuado até ao cume com a mesma descontração se não tivesse reparado que, atrás de nós, uma cordada célebre pelas suas ascensões de grande envergadura picava furiosamente o gelo para triplicar a superfície dos nossos degraus. A dúvida insinuou-se na minha alma... e, a seguir, a inquietação. Verifiquei depois como a nossa progressão era perigosa sobre aqueles degraus minúsculos, pelos quais subíamos sem a menor segurança. Bastava um pé em falso de qualquer de nós, ou um degrau que abatesse, para escorregarmos irremediavelmente para o precipício aberto debaixo de nós!... De repente, senti-me paralisado por uma vertigem intensa, e recusei-me a dar mais um passo naquelas condições aventurosas. Foi preciso talhar verdadeiras banheiras para me fazer voltar um pouco de confiança e permitir continuar a ascensão.

Naquela época, a mentalidade e as concepções da maior parte dos alpinistas franceses eram muito diferentes das de hoje. A travessia de Grépon era considerada ainda como uma ascensão séria, necessitando dons de escalador e muitos anos de prática de montanha. Ninguém teria ousado, como se tornou corrente, lançar-se a ela sem ter realizado

antes uma progressão séria.

O Grépon pela vertente do Mar de Gelo, o caminho Mayer-Dibona do Dente do Tubarão, o caminho Ryan na Agulha do Plan, a travessia das Agulhas do Diabo, passavam por grandes incursões, e a ambição que eu acalentava no fundo do meu coração era conseguir fazê-las um dia. A face norte dos Grandes Jorássios e até a dos Drus eram geralmente consideradas como inacessíveis a indivíduos normais. Julgava-se que para tentar aquelas vertentes era preciso ser ou fanático - e esta classificação era dada sobretudo aos grandes escaladores alemães e italianos -, ou um super-homem, um supercampeão como aparecem em todos os esportes um ou dois em cada dez anos. Não me sentindo animado por nenhuma espécie de fanatismo, e não me achando de forma nenhuma um ser de exceção, a ideia de tentar um dia as maiores escaladas nem sequer me passava pela cabeça, e considerava os raros fenômenos que se arriscavam a tais empresas com a mesma admiração compassiva que vejo hoje na cara de alguns dos meus interlocutores.

No fim do Verão de 1940 tinha conseguido uma boa série de travessias clássicas e, se não me tivesse deixado impressionar pela auréola de lenda que nessa época envolvia a menor travessia e o menor alpinista, teria sido já capaz de conseguir ascensões de envergadura e dificuldades superiores.

Tinha uma boa experiência geral da montanha e um excelente "sentido do itinerário". Era extremamente rápido no "terreno médio". Em contrapartida, a minha técnica da rocha e do gelo difícil era ainda rudimentar. A bem dizer, preocupava-me mais o lado subjetivo da dificuldade do que a dificuldade em si própria. A simples ideia de escalar uma passagem considerada melindrosa apertava-me o coração como se eu fosse um gladiador que entra na arena, e para vencer esta apreensão tinha que me encher da maior força de vontade.

Assim, devido a uma má interpretação do texto dos Guias Itinerantes, aconteceu-me várias vezes atravessar com a maior desenvoltura a passagem-chave de uma travessia, enquanto noutro sítio mais fácil, que por engano eu julgava ser a passagem-chave, tremia como varas verdes. Tinha por vezes atitudes de audácia que hoje me espantam, e quando penso no que fazia para atravessar certas passagens sinto arrepios na espinha.

Numa das ascensões ao Cardinal, tendo-me metido por engano numa chaminé lisa e inclinada, consegui atravessar o obstáculo apoiando-me mal numa placa de rocha que consegui agarrar entre as duas paredes. Muitos anos mais tarde, tendo chegado por acaso à mesma montanha, afastei-me voluntariamente do caminho para escalar novamente a chaminé da minha juventude. Apesar das solas Vibram e cerca de dez anos de experiência nas paredes mais difíceis do maciço do monte Branco não fui capaz de percorrer os últimos dez metros!... O maior perigo do alpinismo é certamente a inconsciência da juventude!... Durante os meses que se seguiram a esse Verão de 1940, em que na quietação dos Alpes desertos pude finalmente saborear à vontade a rocha e o gelo, a vida parecia organizar-se no meio da desordem mundial. Para os homens dos altos vales, nada ou quase nada parecia ter mudado. Os turistas tinham voltado, o dinheiro corria de novo, tilintando alegremente. As competições de esqui, que todos os domingos reúnem em volta dos cronômetros uma juventude ardente ávida de emoções fortes e de glória fugidia, tinham voltado a disputar-se com o mesmo ardor do passado. Aqueles meses de Inverno marcaram o apogeu da minha carreira de esquiador. Em Dezembro, fui selecionado para treino preparatório na formação da equipe nacional. A minha época de Verão tinha-me dado uma forma física excepcional e tinha ganho a confiança em mim, indispensável para abrir o caminho para a vitória. A minha qualificação parecia muito provável quando, numa queda desastrosa, me feri gravemente num joelho. Tinha apenas acabado de me curar para disputar os campeonatos da região do Dauphiné onde estava inscrito. Apesar de tudo ganhei a prova de descida, o slalom e até o combinado das quatro provas. Com efeito, nessa época espalhara-se a ideia alienante de obrigar a disputar aos mesmos concorrentes não só as provas afins da descida e do slalom, mas ainda especialidades de uma técnica muito diferente, como o salto e a corrida de fundo em todos os terrenos. Alguns dias depois, no campeonato de França, graças a um golpe de sorte, classifiquei-me em segundo no "combinado descida e slalom", e em terceiro no "combinado de quatro provas". No resto da época, quando no Grande Prêmio do Alpe de Huez, a cem metros da meta, levava vários segundos de avanço sobre toda a equipe de França, fui incomodado por espectadores e perdi o primeiro lugar por 1/5 de segundo.

Quando, nos campos encharcados, as últimas neves deram lugar às delicadas corolas do açafrão, eu tinha fortes razões para acreditar que o sonho que acalentara de atingir um alto lugar no esporte não era a ilusão de uma criança insensata. Como teria rido na cara de quem me dissesse então que, durante muitos anos, só de longe em longe conheceria a sensação embriagadora de força sobre-humana que dá a intensa concentração necessária à luta contra o tempo.

Tendo em casa da minha mãe cama, mesa e roupa lavada, e um pouco de dinheiro para pequenas despesas, há muitos meses que vivia tão livre como um cabrito-montês nos Alpes. Não tinha nenhuma obrigação social, nenhum outro trabalho senão aquele que me apetecia. Animado de um amor ao esforço próximo do misticismo, levava uma vida extre-mamente ativa, em condições praticamente ascéticas. Desde o dia 1 de Dezembro até ao fim de Maio, o treino de esqui e as inúmeras competições em que participava a maior parte das vezes nas quatro provas não me deixavam quase tempo nenhum livre, e mal conseguia às vezes dar algumas lições de esqui para aumentar o meu pouco dinheiro. No Verão, fazia ascensões ao ritmo de um guia profissional e, no meio de toda esta intensa atividade, encontrava ainda maneira de dar enormes passeios de bicicleta, praticar natação, atletismo e cultura física.

As minhas ocupações intelectuais eram, na verdade, muito mais moderadas e limitavam-se à leitura de alguns livros, cujo caráter sério contrastava com o lado essencialmente físico da minha existência. Foi por essa época que, entre outros, li uma parte importante da obra de Balzac, e quase todo Musset, Baudelaire e Proust. Se, compreendendo como este modo de vida assentava em bases tão frágeis, não me preocupasse com o meu futuro, esta existência cheia de ação ter-me-ia satisfeito completamente. Porque, tal como hoje, eu já pensava que uma ocupação não é mais nobre por ser lucrativa. Pelo contrário: o dinheiro é uma coisa suja e suja tudo à sua passagem. Então, como hoje, o que me interessava era a ação, e não o seu prêmio, porque a ação vale por si própria. Só os espíritos vulgares podem pretender que o "trabalho" do acrobata de circo, que recebe dinheiro por cada gesto, tem mais valor do que o esforço do ginasta que, com risco de comprometer o seu futuro, a saúde e até a vida, dedica gratuitamente o melhor de si mesmo na busca do ideal de inigualável mérito que escolheu.

A minha vida não foi mais do que um longo e delicado jogo de equilíbrio entre a ação gratuita, por meio da qual perseguia o ideal da minha juventude, e uma espécie de prostituição honesta que me garantisse o pão de cada dia. Que espírito vulgar ousará pretender que a prostituição útil valia mais do que as empresas gratuitas? Aliás, excetuando as sociedades primitivas em que cada gesto tem a sua razão de ser no instinto de sobrevivência da espécie, o que é uma ação útil? Se, a fim de esquecer o vazio da sua existência, muitos se embebedam com palavras e falam da sua "missão", do seu "papel", da sua "utilidade social", como todas estas palavras são convencionais e desprovidas de sentido! No nosso mundo anárquico e superpovoado, quantos podem gabar-se de serem verdadeiramente úteis?... São úteis os milhões de intermediários cheios de títulos honoríficos que invadem a economia? Os milhões de funcionários públicos condecorados, titulares de sinecuras que arruinam o Estado e paralisam a administração, e os milhões de amanuenses, de cronistas, advogados e faladores

de todos os gêneros, que poderiam ser suprimidos amanhã para bem de todos?... E serão até úteis os médicos que, nas grandes cidades, disputam a clientela como cães esfomeados enquanto por toda a parte morre gente por falta de cuidados?... Neste século em que ficou provado mil vezes que a organização racional permite reduzir em proporções fantásticas o número de homens necessários a cada tarefa, quantos podem garantir que são uma das engrenagens verdadeiramente úteis à grande máquina do mundo?

No fim do Inverno de 1941, verifiquei que os frágeis fundamentos da minha livre e maravilhosa existência se tornavam de dia para dia mais instáveis. Era evidente que, apesar da sua enorme bondade, a minha mãe não podia sustentar-me eternamente como se eu fosse um cavalo de raça. Foi nessa altura que me apareceu uma bóia de salvação.

Primeiras conquistas

Em favor do ideal de virilidade, de civismo, de espírito de equipe e de amor ao esforço exaltado pelos dirigentes da época, o serviço militar tradicional fora substituído por um serviço chamado "civil", cujo objetivo oficial era a formação cívica, moral e física da juventude. A instituição do Estado encarregada de obrigar os jovens de vinte e um anos a cumprirem este serviço de oito meses chamava-se Estaleiros da Juventude, mas paralelamente formara-se uma instituição similar, muito menos importante, denominada Juventude e Montanha, a J.M., como se dizia nessa altura, para simplificar.

Neste corpo de elite, onde só podiam servir os voluntários, pretendia-se elevar o valor humano dos jovens pela prática do alpinismo, do esqui e, de uma maneira geral, da vida áspera na montanha.

A J.M. era dotada de um quadro de instrutores de esqui e de alpinismo, composto de guias e monitores profissionais, assim como de rapazes bons esquiadores e alpinistas admitidos após exames especiais, aliás bastante difíceis. Os salários eram modestos, mas esta existência dedicada inteiramente à montanha parecia-me apaixonante. Eu tinha todas as capacidades necessárias para passar sem dificuldade nos exames de admissão a este quadro de instrutores, e achava que podia encontrar ali um meio de satisfazer as minhas necessidades materiais, levando ao mesmo tempo uma existência que satisfazia as minhas aspirações. Como, de qualquer forma, ia ser chamado daí a alguns meses ao cumprimento do meu "serviço civil", resolvi adiantar-me à chamada inscrevendo-me na J.M. como simples voluntário. Fui incorporado nos primeiros dias de Maio e integrado no centro de Beaufort. Durante aquele período de guerra, em todos os setores de atividade a instabilidade das condições de existência provocava um estado permanente de desorganização, ou, mais exatamente, de organização improvisada, dando à vida um ambiente de fantasia que na época da produção só muito raramente vivemos.

A J.M. estava ainda na fase de formação, e uma desordem descabelada aliava-se a uma rígida disciplina militar. Durante os dias que se seguiram à minha chegada, na companhia de mais trinta "calouros", mandaram-me semear batatas. Depois, por um daqueles mecanismos misteriosos que parecem articular-se automaticamente, cada vez que se organiza uma coletividade, enquanto um bom terço dos recrutas eram camponeses, fui designado para condutor de mulas!... Desde a infância, estava familiarizado com as vacas, mas nunca, em toda a vida, tinha lidado com mulas! Tendo ouvido dizer que esses animais eram traiçoeiros, manhosos e dotados de um coice temível, sentia por eles um santo e legítimo terror.

Quando o chefe me anunciou as minhas novas funções, com o rosto crispado de inquietação, perguntei-lhe em que consistia o meu lugar. Ele respondeu-me com aquela precisão que caracteriza os verdadeiros chefes:

- É muito simples. Vai à cavalariça, leva as mulas a beber na fonte da praça, dá-lhes de comer, um fardo de palha para cada quatro, e limpa a cavalariça. Por enquanto, é só isto.

O que ele se esqueceu de me dizer foi que, tendo a nomeação do novo guarda das mulas seguido os seus trâmites administrativos, os animais tinham ficado sem comer nem beber durante dois dias!

Um passeio fácil nas Agulhas Vermelhas. Mas no horizonte, o Dente do Gigante e os Grandes Jorássios espreitam o neófito.

Eu entrei na cavalariça com a inocência de um catecúmeno que vai receber o batismo. E mal dei conta de que os animais se agitavam de maneira pouco normal. "É porque não me conhecem", pensei eu. Depois de evitar por um triz um coice de ir parar às estrelas, consegui meter-me entre dois dos animais e desamarrá-los. Depois, escorregando ao longo da manjedoura, consegui desamarrar os outros quatro. Só então dei conta de que acabava de cometer uma imprudência mais grave do que subir o corredor Whymper às quatro horas da tarde. As mulas, completamente desvairadas pela fome e pela sede, começaram a dar coices

para todos os lados, e uma delas, com os olhos injetados, mostrando os dentes amarelos, tentou morder-me com toda a força. Apenas a minha agilidade, que num instante me permitiu subir para cima de uma das manjedouras, evitou que fosse espezinhado até à morte. Teria com certeza ficado para ali horas seguidas se, encontrando a porta aberta, os animais não tivessem acabado por sair um a um, para se espalharem pela aldeia, numa cavalgada desenfreada.

Felizmente, depressa fui dispensado das minhas funções de guarda de mulas para ser integrado numa equipe encarregada de construir um novo aquartelamento nas pastagens de Roselend, a 1800 metros de altitude. A vivenda onde devíamos instalar-nos era uma construção bastante primitiva. Todo o material indispensável à vida de um grupo, mesmo nas condições mais rústicas - forno, camas de campanha, colchões, cobertores, etc. -, faltava completamente. Tudo isto tinha que ser montado com a maior urgência. Mas como a Primavera vinha atrasada, Roselend estava ainda meia coberta pela neve e a estrada completamente impraticável nos últimos quatro ou cinco quilômetros. Nestas condições, o único meio de transporte possível era o transporte às costas.

A ocupação da minha equipe consistia essencialmente em efetuar este trabalho. Só éramos obrigados a fazer uma "viagem" por dia, o que, com uma carga média de 40 quilos, levava cerca de três horas para ir e voltar. Este esforço era relativamente curto, mas exigia um vigor físico acima da média, tanto mais que, obrigados a dormir mesmo no chão, com uma alimentação rudimentar, a nossa própria subsistência exigia um esforço permanente. Foi nessa época que conheci Gaston Rebuffat. Estava integrado numa equipe aquartelada no pitoresco vale de Arèche, cheio de espessas florestas de pinheiros, de densas e verdejantes pradarias semeadas de velhos chalés rústicos. Não existia nenhum monte naquela zona bucólica para praticar a escalada, e o grupo não tinha outro recurso senão subir até às nossas "escolas" de Roselend. Um dia em que ia treinar-se, tendo sido surpreendida pela chuva, essa equipe foi refugiar-se no nosso chalé. Disseram-me que entre aqueles rapazes havia um marselhês, excelente escalador, que pretendia ter feito algumas grandes ascensões. Tendo ouvido muitas vezes falar naquele maravilhoso terreno de escaladas formado pelas enseadas de Marselha, a notícia entusiasmou-me extraordinariamente e quis ser apresentado ao fenômeno.

Nessa época, Rebuffat era de contato difícil. Alto, magro, direito como um pau, tinha uma cara seca, animada por dois olhos pretos e pequenos, de olhar penetrante. Os seus modos afetados e a sua linguagem de frases rebuscadas contrastavam comicamente com um sotaque marselhês bastante acentuado. Esta personagem surpreendeu-me um pouco, mas depois de um primeiro contato difícil estabeleceu-se em breve uma simpatia recíproca, e passamos a tarde inteira a passear na chuva, falando da montanha.

Como é de calcular, cada um perguntou ao outro quais tinham sido os seus êxitos. Eu fiquei muito espantado ao saber que, sem outra experiência além da técnica de escalada acrobática adquirida nas enseadas, Rebuffat conseguira realizar ascensões de alta montanha de uma dificuldade que correspondia ao limite das minhas ambições. A conversa levou-nos a falar dos nossos projetos; os dele pareceram-me muito extravagantes!... A sua concepção do alpinismo, hoje corrente, estava bastante avançada para a sua época, e para mim era completamente nova. Para todos os alpinistas que conhecera até então, a escalada das montanhas era uma espécie de arte religiosa, com tradições, hierarquias e tabus. Dentro desta capela, o racionalismo tinha muito pouco lugar. Tendo crescido entre os praticantes, eu seguira cegamente todos os ritos e aceito todos os postulados.

Para Rebuffat, tudo isso não era mais do que bagatelas e manias antiquadas. O seu espírito cético estava livre de todos os preconceitos. Na sua opinião o que importava em alpinismo era possuir um grande virtuosismo na escalada de rochas, a vontade e a coragem suficientes para tudo o mais. Para apoiar a sua teoria, citava-me os nomes de alguns escaladores ilustres alemães e italianos que, sem outra experiência além dos Dolomitas e dos

Alpes calcários orientais, tinham conseguido as ascensões mais formidáveis de alta montanha. Seguindo uma lógica impecável, ele garantia que o que era possível aos alemães e aos italianos também o era aos franceses. E, levando o seu raciocínio até ao fim, chegara à conclusão de que, como (a justo título) se achava dotado de uma força de vontade notável, de grande coragem e excelente habilidade, triunfaria em breve na escalada das mais altas paredes alpinas; tencionava mesmo tentar a ascensão do Esporão Walker dos Jorássios e até o lado norte do Eiger, com justiça consideradas as duas escaladas mais importantes dos Alpes.

Algum tempo depois deste encontro fui escolhido para seguir um estágio de chefe de cordada no centro escolar da J.M. em La Chapelle-en-Valgaudemar, no sul do maciço do Oisans. Carlos, o meu rival, e Rebuffat deviam também tomar parte. Em Roselend, o nosso chefe fora transferido e a bela vida que tínhamos levado fora-se embora com ele. Comandados por um bruto de ideias estreitas, mal distribuídos por trabalhos aborrecidos e desorganizados, arrastávamos uma existência sem objetivo que começava a pesar-me horrivelmente. A notícia desta partida para a alta montanha encheu-me de alegria, e os camaradas asseguraram-me que, quando o chefe nos leu a ordem designando-me, apesar da continência rígida, o meu rosto ficou tão radiante de satisfação que todos repararam. Na aldeia de La Chapelle, a estrada alcatroada e algumas pequenas vivendas constituíam a guarda avançada do mundo moderno, mas à medida que se subia os vestígios de civilização iam desaparecendo a cada passo. Lá ao fundo, a aldeola de Rif-du-Sap, apertada entre dois corredores de avalanches, vivia uma vida mais primitiva do que muitas aldeias do Himalaia.

Esta natureza selvagem e esta vida rústica do Valgaudemar era cheia de uma poesia severa. Logo nos primeiros dias fiquei profundamente penetrado pelo encanto áspero dessa terra no fim do Mundo. Muitos anos mais tarde, quando tive a sorte de visitar as montanhas longínquas da Ásia e da América, foi com entusiasmo que tornei a encontrar o mesmo ambiente dos altos vales perdidos. A escola de quadros da J.M. ocupava alguns edifícios velhos no centro da aldeia de La Chapelle. Fazendo ao mesmo tempo um estágio de chefe de equipe e de chefe de cordada, levávamos uma vida tão dura e tão ativa que hoje, se não tivesse as minhas notas dessa época, seria tentado a acreditar que a passagem do tempo me faria exagerar.

As travessias de montanha que fazíamos todas as semanas eram de gênero muito diferente das ascensões do maciço do monte Branco a que eu estava habituado. Comportavam muito poucas escaladas e estas nunca eram verdadeiramente difíceis. Em contrapartida, eram enormes terrenos escorregadios que exigiam intermináveis marchas de aproximação através dos pastos de erva molhada, as tocas e os pedregulhos rolantes.

A regra da escola era fazer-nos subir aos refúgios afastados, carregados como burros, e quase sempre a uma cadência de competição. Da mesma forma, as ascensões faziam-se a tal velocidade que a maior parte dos estagiários as terminavam completamente esgotados. Devido à alimentação precária que nos davam naqueles tempos de restrições, estas saídas para a montanha eram extremamente fatigantes, mesmo para os mais robustos e quando, após dois ou três dias, às vezes quatro, regressávamos ao centro, estávamos todos mais ou menos arrasados.

Mas, em vez de nos deixarem descansar o resto da semana, uma disciplina de ferro impunha-nos diariamente de dez a catorze horas de trabalho. De pé às seis horas, acontecia-nos normalmente voltar para os nossos colchões à meia-noite, sem outro repouso do que a hora das refeições. Mas poderia classificar-se de refeição comer alguns legumes mal cozidos, cujo elemento mais nutritivo era constituído pelas muitas moscas que vinham pousar nos pratos?... Estes longos dias começavam por alguns quartos de hora de educação física dirigida a uma cadência dos demônios. O resto da manhã era geralmente ocupado por diversos trabalhos manuais: apanhar lenha, reparar o caminho, etc.,... A tarde começava por uma sessão de escola de escalada e continuava com várias horas de conferências e estudos. Depois do jantar tínhamos ainda que assistir a serões culturais ou sessões preparatórias para uma espécie de representação de music-hall chamada "descontração", pela qual devia terminar o estágio.

Naturalmente, todos estes trabalhos decorriam a um ritmo de competição desportiva e a menor deslocação fazia-se a passo de marcha e a cantar.

Após uns vinte dias, cerca de metade dos estagiários estavam esgotados, e os restantes num estado físico mais ou menos deficiente; quase sem exceção, éramos atacados por uma doença muito desagradável, devida sem dúvida ao empobrecimento do sangue. A menor arranhadela infectava-se ao ponto de se transformar numa espécie de chaga purulenta, rebelde a todos os tratamentos externos e tendo, pelo contrário, uma tendência para se alastrar de dia para dia. Em diversos graus, todos tínhamos as mãos, os braços, as pernas e até os pés cobertos destas chagas dolorosas. Finalmente o estágio terminou. Eu tinha feito muito pouco alpinismo e não aprendi praticamente nada neste domínio. Todavia, apesar do sofrimento, não lamentava o tempo passado em Valgaudemar, pelo contrário. Os meus horizontes tinham-se alargado, conhecera outras montanhas e outros homens e, sobretudo, tinha-me enriquecido com uma extraordinária experiência que tivera a alegria de suportar até ao fim. "Ah, não peçam a graça de uma vida fácil! Peçam para se tornarem homens mais fortes! Não peçam para terem tarefas proporcionais às vossas forças! Peçam para que as vossas forças estejam à altura das vossas tarefas!" Tinha também a satisfação mais medíocre de ter sido o primeiro classificado nas provas técnicas e o segundo na classificação geral, porque Rebuffat, mais estudioso, conseguiu bater-me em alguns pontos.

Durante estas cinco semanas de rude existência lado a lado, eu e Gaston tínhamos aprendido a conhecer-nos e, apesar da diferença profunda de temperamento, tínhamo-nos tornado grandes amigos. As canseiras do estágio não conseguiram acalmar o nosso amor à montanha e o desejo de fazer grandes escaladas. Por isso, assim que saíram as notas, Gaston quis levar-me à célebre vertente norte do Olan. Com a condição de voltarmos ao nosso centro com algum atraso e de aceitarmos o castigo severo que não deixariam de nos aplicar, tínhamos a possibilidade de realizar esta ascensão. A proposta de Rebuffat era bastante tentadora, e eu não lamentava o castigo da J.M., que consistia a maior parte das vezes em nos obrigarem a carregar com um saco de pedras de trinta ou quarenta quilos num percurso de vinte ou trinta quilômetros. Mas eu não estava bastante amadurecido para escaladas daquela envergadura e tinha ficado muito impressionado com o relato da primeira ascensão. A prudência foi mais forte do que o desejo e não quis dar ouvidos a nada.

De passagem por Grenoble, no caminho de regresso a Beaufort, as tentações do mundo civilizado pareceram-nos demasiado fortes, e decidimos uma paragem de vinte e quatro horas para descansar um pouco e, sobretudo, comer comida decente. Depois de um opíparo jantar e uma noite bem dormida, estávamos novamente cheios de força e de entusiasmo. Apesar da perspectiva do saco de pedras, em vez de retomarmos o caminho de Beaufort, decidimos adiar a nossa partida mais um dia, não para nos entregarmos de novo às volúpias da gastronomia e do repouso, mas para ir escalar o Dente Gérard das Trois-Pucelles. A nossa intenção era subir primeiro ao corredor Grange e ver depois se conseguíamos descobrir algum itinerário mais interessante. Tendo-me tornado um alpinista com verdadeira experiência, esta nova ascensão do corredor Grange pareceu-me muito fácil, ao ponto de perguntar a mim próprio como pudera ter quase encontrado ali a morte. Em contrapartida, a difícil variante que naquele dia experimentamos nas paredes que separam a brecha Dalloz da chaminé Sandwich foi para mim uma verdadeira iniciação aos processos de escalada altamente acrobática que até então nunca praticara verdadeiramente.

Gaston, depois de efetuar a primeira enfiada de corda com a ajuda de numerosos pitões, teve de parar devido a um teto. Fez sem êxito várias tentativas para o vencer em escalada livre. Por minha vez, tentava a passagem. Qual não foi a minha surpresa quando, apesar de um incômodo cascalho, consegui passar o obstáculo! A partir, daí, abriam-se para mim novos horizontes!...

Chegados a Beaufort com cerca de quarenta e oito horas de atraso, o chefe Testo Ferry, comandante do centro, recebeu-nos de maneira bastante inesperada. Este homem ainda muito jovem, que se distinguira pela sua coragem nos combates aéreos, tinha o gosto das competições e da glória, e era evidente que simpatizava com a nossa equipe. Com olhar divertido, um leve sorriso nos cantos da boca, disse-nos mais ou menos isto:

- Devo em primeiro lugar felicitá-los pelos vossos primeiros lugares no estágio de chefe de cordada. É graças a homens da vossa têmpera que construiremos uma França corajosa. E, como chefe do Centro Paturaud-Mirand, sinto orgulho em vocês. Mas lamento informá-los de que são esperados há dois dias em Chamonix, onde devem ser enquadrados num campo de

alpinismo de alta montanha. O vosso atraso prejudicou consideravelmente o bom funcionamento do estágio, que já começou. Para não prolongar esta situação, vão partir para Chamonix daqui a uns minutos, mas, visto que seria um péssimo exemplo deixar sem castigo a grave falta de disciplina de que são culpados, sou obrigado a proceder e aplico-lhes como pena raparem o cabelo! Rapado à escovinha, evidentemente. Mas devido à hora tardia, não é possível aplicar este castigo antes da vossa partida. Ordeno-lhes, portanto, que parem no barbeiro, quer à passagem por Annecy, quer à chegada a Chamonix. Escusado será dizer-lhes que, se esta ordem não for cumprida, serei obrigado a agir com mais severidade. Este discurso, cheio ao mesmo tempo da maneira empolada da época e de um certo humor, longe de me encher de consternação, encheu-me da maior alegria. Nenhuma notícia podia encantar-me mais do que a de uma partida para as minhas queridas montanhas do monte Branco. Quanto aos cabelos, ser condenado a cortá-los era para mim mais uma recompensa do que um castigo. Com efeito, embora apenas com vinte anos, para meu grande desgosto, começava a ver esses ornamentos caírem às mãos-cheias, e tinham-me dito que rapando a cabeça podia adiar a perda desses acessórios estéticos. A vida não tardou a ensinar-me que, nesse como em muitos outros assuntos, eu era de uma ingenuidade sem limites!...

Na passagem por Annecy, tendo que esperar algumas horas para a partida do carro de Chamonix, fomos ao barbeiro mais próximo. Perante o carrasco, Gaston, que ao ser-lhe anunciada a sanção, como idealista que despreza o que dirão os outros e as vaidades deste mundo, mostrara o maior desinteresse pelo seu sistema capilar, perdeu de repente toda a sua soberba. À ideia de que daí a momentos ia ver a seus pés a sua bela e farta cabeleira encaracolada, teve uma espécie de ataque. Com a voz levemente estrangulada, os lábios apertados num sorriso contrafeito, sugeriu-me timidamente:

- Talvez o chefe se contente com um corte em escova, de três ou quatro centímetros?

Mas eu, como um infame hipócrita, gritei-lhe:

- O quê? Não tens vergonha de querer fazer batota? Ordens são ordens, e o nosso dever é cumpri-las até ao fim... Rapaz, traz a navalha e rapa-nos!...

Enquanto, cheio de alegria e de maldade, eu via o meu crânio tomar o aspecto de uma bola de bilhar, o rosto já de si comprido e triste de Gaston ficava ainda mais comprido vendo o seu transformar-se numa espécie de tubérculo cheio de altos e baixos.

Felizmente, voltando ao seu bom humor natural, o meu amigo não tardou a rir da sua desventura. Nos dias seguintes, obrigava todos o passarem-lhe os dedos nas bossas, afirmando com toda a seriedade que uma era a bossa das matemáticas e a outra a dos negócios!... No outro dia, o guia André Tournier, que comandava o campo de Montenvers, ficou muito inquieto durante alguns minutos: ao ver subirem a correr dois homens cujo crânio rapado brilhava à luz do Sol matinal, julgou que se tratava de soldados alemães!... Nessa época, semelhantes visitas eram sempre inquietantes...

O campo de Montenvers terminou nos últimos dias de Setembro. Após cerca de três meses de ausência, com os olhos ainda cheios do esplendor dos altos cumes, eu voltava para as modestas montanhas do Beaufortin. Como anteriormente, fui incorporado em Roselend. Rebuffat acompanhava-me, porque as nossas duas equipes tinham-se juntado.

A existência que tivemos ali durante os últimos meses do ano de 1941 reclamava sem dúvida esforços menos prolongados e menos espetaculares do que os que acabávamos de ter. Mas era extremamente rude e muito menos entusiasmante!... A partir daí, acabaram-se as aventuras diárias, a camaradagem de todos os instantes, a alegria de vencer uma luta honesta!

A J.M. iniciara em Roselend a construção de dois importantes chalés destinados a albergar cada um cerca de trinta pessoas. Todos os trabalhos eram executados pelos jovens, sob a direção dos seus chefes habituais. Apenas dois ou três pedreiros profissionais davam instruções e tomavam a responsabilidade dos acabamentos finais. Apesar do meu título de "chefe de cordada", como os meus oito meses de serviço ainda não tinham terminado, eu continuava a ser um simples "voluntário", e como tal fui mandado para a construção a título de manobra normal. Bem dirigida e organizada, a construção destes chalés podia ter decorrido na atmosfera alegre e entusiasmante da criação. Infelizmente, o ambiente que reinava era tão

triste e degradante como o de uma prisão. Vivíamos empilhados em grupos de doze, dentro de instalações do tamanho de um quarto vulgar, sem falar no desconforto que daí resultava, do respirar desagradável de uma atmosfera de toca, sendo impossível qualquer momento de vida privada.

Na escalada, a precisão do gesto é indispensável.

Pés e mãos suportam alternadamente todo o peso do escalador. A descida em chamada ao longo das paredes verticais é particularmente segura

se for bem executada.

Lionel Terray, guia nos Alpes.

A nossa alimentação era quase exclusivamente composta de pão e legumes cozidos em água, principalmente talos de couve, alimento energético por excelência! Estas condições dietéticas bastante inconvenientes para rapazes de vinte anos a trabalharem a 1800 metros de altitude cerca de onze horas por dia, numa temperatura muitas vezes inferior a zero graus, mantinha-nos num estado de meia sonolência muito prejudicial tanto a um bom ambiente como a um bom rendimento.

Além disso, as enormes quantidades de legumes que ingeríamos tinham um efeito altamente diurético e era vulgar termos de nos levantar quatro, cinco e, até, seis vezes de noite.

O refeitório estava instalado num celeiro com as paredes feitas de tábuas desconjuntadas. O vento entrava pelas gretas à vontade e, naqueles meses de Outono, o frio era de rachar pedras. A situação deste refeitório a cerca de um quilômetro dos dormitórios e a mais de dois quilômetros das obras forçava-nos a percorrer todos os dias uns dez quilômetros a pé, simplesmente para comer e irmos para o local de trabalho.

É certo que as terríveis condições materiais que o país atravessava podiam desculpar em parte este desmazelo, mas, então, como se explicava que noutros centros da J.M. o ambiente fosse bom, a comida suficiente e o trabalho produtivo? Mais do que às circunstâncias, a responsabilidade deste desastre competia ao chefe que dirigia os trabalhos: um bruto arrogante, de um egoísmo feroz, incapaz de dirigir e organizar semelhante obra.

Levava o seu sadismo até ao ponto de nos fazer levantar ainda de noite para praticar educação física sobre a neve, com as pernas e o torso nus, enquanto ele, vestido com uma canadiana quente, nos dirigia da janela do seu quarto. Lembro-me de que um dia em que ele nos obrigava a rastejar em cerca de vinte centímetros de altura de neve, a minha raiva foi tão grande que, pela primeira vez na minha vida, senti vontade de matar.

Passados três meses desta existência, cheguei finalmente ao termo do meu tempo de serviço. Como se pode imaginar, estava nessa altura completamente desgostoso com a J.M. Ainda por cima, a minha saúde deixava muito a desejar. Longe de pensar em assinar um contrato de monitor, como tinha resolvido fazer, só pensava em voltar para casa o mais depressa possível.

Nos primeiros dias de Janeiro, estava de regresso a Chamonix. Enquanto esperava poder executar um projeto que imaginara, retomei o treino do esqui. Durante esse Inverno participei novamente em algumas competições. Infelizmente, as minhas classificações não foram tão brilhantes como as do ano anterior. Depois dos trabalhos por que acabava de passar, precisei de dois meses para ganhar condições físicas satisfatórias, e quando me sentia quase em forma feri-me seriamente num joelho.

Quando chegou a Primavera, o problema do futuro voltou outra a vez a dar-me que pensar, e a sua urgência era tanto maior, quanto desejava casar com uma das minhas companheiras de competição. Passei então à execução de um audacioso projeto que elaborara durante os últimos meses.

Graças a um modesto capital entregue pela minha mãe, aluguei uma quinta e alguns terrenos na aldeia dos Houches, a uma dezena de quilômetros a jusante de Chamonix. Comprei algum gado e estabeleci-me como agricultor. Apesar da utopia da minha instalação naquelas condições, foi só com a Libertação, em Setembro de 1944, que, não sem desgosto, abandonei aquela difícil e nobre ocupação. Tendo vivido sempre no campo, tinha alguns conhecimentos de agricultura, mas estava longe de ser um camponês inato. Como era de esperar, o período de adaptação foi difícil. Durante a primeira época de exploração, a minha inexperiência e o meu idealismo levaram-me quase à falência. Só consegui evitá-la graças à ajuda e aos conselhos dos meus vizinhos, o senhor e a senhora Tairraz, e julgo que também a um trabalho pessoal como até os rudes camponeses dos nossos vales raramente executam.

"Comprei algum gado e estabeleci-me como agricultor."

Por sorte, o meu vigor físico, o meu amor ao trabalho e o meu hábito dos esportes e do trabalho manual permitiram-me assimilar rapidamente a maior parte dos métodos agrícolas usados no vale. Apenas o trabalho da ceifa e sobretudo a debulha e o amolar das foices me deram realmente dores de cabeça.

Graças às minhas capacidades de adaptação, a par de um trabalho encarniçado, consegui compensar em grande parte a falta de técnica contra que tinha de lutar, e ter-me-ia sem dúvida portado à altura da situação se não fosse demasiado ingênuo e ainda por cima não estivesse animado de concepções idealistas difíceis de adaptar ao sentido prático. Foi assim por exemplo que um almocreve me conseguiu impingir, por um preço exorbitante, um burro com uma doença nos cascos, e que, em vez de contratar um agricultor profissional para me ajudar, contratei para capataz o meu amigo Gaston Rebuffat. Este, apesar da maior boa vontade, que eu sou obrigado a louvar, revelou-se muito pouco dotado para os trabalhos agrícolas, ao ponto de ser incapaz de mexer em estrume sem sentir náuseas... E o seu rendimento não chegou com certeza a um terço do que faria um homem com prática.

Além disso, como é compreensível, ele tinha uma grande tendência para desaparecer na montanha durante dois ou três dias, e a sua produtividade diminuía em proporção. Naquele ano, o trabalho da colheita do feno foi absolutamente dramático. Eu tinha que trazer para casa o alimento necessário para quatro vacas e duas ou três cabras. Este trabalho, que, para um camponês mecanizado da planície, pode parecer quase nada, tornava-se penoso nas condições em que eu era obrigado a fazê-lo; cerca de um terço da forragem era constituído por uma erva rasteira que cresce nos taludes abruptos cheios de moitas e de pedras, o que exigia muito esforço com pouco rendimento. Mas, sobretudo, tínhamos que ceifar, pôr a secar e fazer toda a colheita sem outros instrumentos além de foice" e ancinhos, e para armazenar o feno era preciso carregá-lo à cabeça em meadas até celeiros que ficavam por vezes a centenas de metros de distância, ou puxá-lo em trenós ao longo das vertentes da montanha, para depois tornar a carregá-lo à cabeça para o levar até ao abrigo.

Este trabalho é já de si bastante duro para montanheses treinados desde a infância; para nós, que não tínhamos experiência, apesar do nosso vigor, era absolutamente extenuante.

A nossa falta de técnica era uma limitação enorme, e perdíamos um tempo considerável. A ceifa, sobretudo, era muito trabalhosa e exigia-nos quase o dobro do tempo normal. Era escusado levantar-nos antes das quatro horas da manhã, às vezes mesmo às três, e trabalhar até à noite, sem outro repouso além do tempo necessário para nos alimentarmos, com a ajuda do mau tempo e das fugas de Gaston, o trabalho não tinha fim.

Quando finalmente pus à cabeça a última meada, o feno estava quase tão seco como palha, mas eu sentia a vaidade de ter saído vencedor de uma batalha que quase todos me tinham assegurado perdida desde o princípio. Depois das canseiras do primeiro ano, tendo adquirido a técnica e o sentido prático necessários, fiz rápidos progressos na arte de cultivar a terra e criar gado, e, por um singular mimetismo, tornei-me tão duro e sagaz como o mais rude aldeão!

Quando em 1944 as circunstâncias me obrigaram a abandonar a quinta, estava perfeitamente adaptado. Apenas o ordenado que me dava o lugar de diretor da Escola de Esqui dos Houches, que ocupava durante o Inverno, vinham completar o lucro que tirava do trabalho da terra.

Os meus métodos agrários, menos tradicionais do que os dos meus vizinhos, provocavam às vezes sarcasmos, vindos em parte do ciúme. Mas os meus rendimentos eram excelentes e o meu gado exemplar. Uma vaca que eu criara foi a que deu mais leite em toda a pastagem de Charamillon, à frente de uma centena de outros animais. Esta existência de camponês das montanhas fazia-me completamente feliz, e é quase certo que, se ela conviesse à minha mulher, eu nunca a teria abandonado. Conhecera-a alguns meses antes da minha instalação, quando era instrutora em Saint-Gervais-les-Bains, e casamo-nos no fim do Verão

de 1942. Muito loira, os olhos de um azul de porcelana, era jovem e alegre. Como é natural, tinha o gosto da elegância e aspirações bastante intelectuais. Aquela vida dura do campo, que já conhecera na infância, não a entusiasmava. Por isso, com aquela paciente obstinação que dá às mulheres a vitória de todas as batalhas, não deixava de me convencer a procurar outros meios de subsistência. Quando finalmente surgiu a ocasião, a minha capacidade de resistência gastara-se, e ela não teve dificuldade em triunfar. Durante os quatro Verões que passei nos Houches, apesar da canseira do trabalho do campo e do pouco tempo que ele me deixava, nunca desisti de praticar regularmente o alpinismo. Foi durante esse período que passei da fase das grandes travessias clássicas à das ascensões excepcionais. Esta evolução, ao contrário da outra mais progressiva que eu seguira até então, fez-se quase de repente e, para ser mais exato, numa única travessia. Durante a época de 1942, eu tinha feito duas ou três ascensões, nos meses de Abril e Maio, mais importante a primeira: a da curta e difícil vertente oeste da Agulha Purtscheller, mas em Junho e Julho, a minha adaptação à vida do campo absorvia-me de tal forma que me foi impossível dispor de um único domingo. Em meados de Agosto, pude finalmente ter alguns dias de liberdade. O meu desejo das grandes ascensões, durante muito tempo recalcado, tinha-se exacerbado com a contemplação diária dos cumes, e eu tinha atingido um estado de exaltação propício a todas as loucuras. Rebuffat, muito satisfeito por me ver finalmente na disposição de espírito favorável à realização destes projetos grandiosos, arrastou-me para uma das aventuras mais incertas da minha carreira: a primeira ascensão da vertente nordeste da garganta do Caimão com regresso pela ponta de Lepiney e pela aresta sul do Louco.

Como nunca mais repetimos o itinerário do Caimão, não me é possível calcular qual a parte devida à nossa inexperiência nas dificuldades formidáveis que tivemos. Todavia, quando hoje olho de longe o estreito corredor de gelo quase vertical que subimos, o seu aspecto é tão medonho que tudo leva a crer que, apesar dos progressos da técnica e do material, mesmo para os alpinistas mais experimentados seria ainda uma empresa de grande classe. Uma coisa é certa: nessa época, nem eu nem Gaston tínhamos uma experiência do alpinismo, e em especial de escaladas no gelo, que nos permitisse conseguir semelhante ascensão nas condições de segurança satisfatórias. "Mas quem vence tem sempre razão", e nós vencemos. Naquele tempo, eu tinha o hábito de tomar nota de algumas das minhas recordações e das minhas impressões. Às vezes chegava mesmo a redigir verdadeiros discursos relatando os acontecimentos que mais me impressionavam. É em grande parte graças a essas notas que posso agora narrar, na sua frescura quase intacta, não só os acontecimentos que vivi, mas as ideias e os sentimentos que me animavam... Foi assim que, entre outros, conservei um relato completo da primeira ascensão da garganta do Caimão. Este documento, redigido de um fôlego, sem ideia prévia de o publicar, é de um estilo pesado e às vezes estranho, que torna a sua leitura um pouco difícil, mas o seu tom de um lirismo ingênuo e a paixão que exprimem as palavras permitem, a meu ver, compreender melhor em que estado de espírito empreendi as minhas primeiras grandes ascensões. É por isso que o reproduzo aqui, apenas com algumas modificações.

O Dente e a garganta do Caimão. À esquerda, o estreito corredor usado para a primeira ascensão da vertente nordeste da garganta.

O Dente do Caimão

Onde vão esses estranhos alpinistas que depois de terem atravessado rapidamente o glaciar dos Pèlerins, subido às rochas geladas de assalto, galgado os primeiros metros do carreiro, se afastam de repente para seguirem de pedra em pedra numa direção que não leva

a parte nenhuma?... Carregando com um saco enorme, o primeiro, alto e forte, caminha com passo irregular; vestido com umas calças remendadas cem vezes e com um camisolão mais miserável ainda, levanta no ar uma picareta extremamente curta; nos seus olhos claros brilha uma luz estranha. O seu companheiro, pelo contrário, com a roupa mais apurada, segue em largas passadas, com andar nobre e calmo. Contudo, no seu olhar brilha a mesma chama... Onde vão esses dois estranhos companheiros? Sabe-lo-ão eles próprios? Partem à aventura; partem para viver horas ardentes, para sofrerem e serem felizes, para lutarem e vencerem. Longe dos abrigos e dos cumes conhecidos, vão reviver a existência exaltante e incerta dos primeiros conquistadores da montanha.

Quando praticada com técnica, a escalada artificial usada para atravessar tectos e cornijas não é tão difícil como se imagina.

O tempo está extraordinariamente bonito e um sentimento secreto diz-lhes que continuará assim. É um pouco tarde, mas eles não receiam bivacar em condições desfavoráveis. Sentem-se felizes... Vão finalmente poder realizar um dos fabulosos projetos sonhados na toca durante os serões do último Outono.

A escura e imponente face norte da Agulha dos Pèlerins ergue-se agora diante dos seus olhos; irão atacá-la? Não é esta uma das mais altas e mais belas paredes que falta conquistar? Não, após uma rápida conversa prosseguem a marcha. Depressa atingem o sopé do glaciar suspenso de Blaitière; ali também alguns fragmentos de muralha escaparam à ambição dos homens e, da garganta do Caimão, um fino fio de gelo raiando as paredes verticais de granito parece lançar um desafio ao mais ousado. Foi ali que ao fim e ao cabo decidimos atacar com as nossas picaretas. Porque, esqueci-me de lhes dizer, os companheiros dos Alpes não são outros senão Gaston Rebuffat e este vosso criado.

Atamo-nos com uma corda dupla de 60 metros que conseguimos por milagre naqueles tempos de penúria; eu sigo à frente, é o que está combinado quando temos que enfrentar a neve e o gelo, como é hoje o caso. Sem encontrar dificuldades de maior, atingimos a base do primeiro ressalto de gelo. Na nossa frente, o Peigne parece uma elegante agulha dolomítica.

Depois de uma enfiada de corda sobre uma vertente de rigidez média, sou obrigado a parar devido a uma seção vertical de sete a oito metros. Algumas pedras passam a zumbir por cima da nossa cabeça, como para nos avisarem de qual é o ambiente das vertentes norte. A parede de gelo que me domina está semeada de inúmeros buracos de todos os tamanhos, que lhe dão a aparência de uma enorme fatia de queijo. Raciocinando com tanta facilidade como falta de exatidão, parece-me que todos aqueles buracos devem proporcionar outros tantos apoios naturais que me evitarão ter de abrir muitos degraus. De fato, graças a estas cavidades, elevo-me sem grande dificuldade até meia altura, mas ali verifico que os talhes no gelo, já de si muito escorregadios, estão mal postos para a escalada. Além disso, a verticalidade da parede empurra-me incomodamente para trás. Começo a sentir-me bastante mal e tento tirar a picareta da cintura para abrir alguns degraus e pontos de apoio suplementares, mas num movimento desajeitado deixo cair o utensílio, que desaparece no abismo com um tilintar que parece um riso sarcástico.

Não há nada a fazer, tenho que descer novamente. Consigo fazê-lo com bastante dificuldade, e encontro-me junto de Gaston, cujo rosto impassível não deixa transparecer a menor inquietação que lhe devia causar este miserável espetáculo.

Temos agora uma picareta a menos, e a sua falta vai prejudicar-nos imensamente, fazendo-nos talvez falhar a travessia. Felizmente dispomos de um martelo-picareta, que poderá talvez substituí-la. Consigo finalmente passar, atravessando pela esquerda com a ajuda de um piton para gelo e atravessando um diedro difícil entre gelo e rocha. O segundo ressalto parece tão difícil como o primeiro, mas uma intuição misteriosa leva-me a atravessar para a direita uma vertente bastante acentuada que conduz a grandes blocos de gelo muito inclinados. No alto de um deles, vejo com alegria que estou ao nível de uma cavidade de fundo liso formada pela parte superior do glaciar. Mais alguns saltos sobre fendas, e pronto.

O espetáculo perante os nossos olhos é tão grandioso que sinto uma espécie de choque. Olho fascinado o conjunto de muralhas e agulhas que se erguem em semicírculo à minha volta. Este caos mineral, último vestígio das primeiras idades da Terra, tem uma certa harmonia no contraste das sombras e das luzes, no feliz equilíbrio das massas de neve e de rochas. Nunca vi nada comparável. Seria o mais belo sítio da Terra se os ruídos do vale não chegassem até ali para nos lembrarem o mundo a que procuramos fugir durante algumas horas.

Mas é preciso pensar em seguir o nosso caminho. A rigidez, em princípio medíocre, aumenta rapidamente. Apesar disso, para ganhar tempo, subimos um atrás do outro sem analisarmos o terreno e sem talhar degraus. Nestas condições, o menor movimento em falso de qualquer dos dois causaria, com toda a certeza, a queda da cordada, e já se sabe que prestávamos a maior atenção a cada gesto. Utilizo a picareta que nos resta... E Gaston tem de se governar com o martelo-picareta, mas ele parece acomodar-se perfeitamente.

Em breve a vertente de gelo se torna mais dura do que qualquer das outras que atravessamos antes; os grampos guincham no gelo e eu sinto os meus nervos tensos até ao extremo. Tomamos altitude; a nossos pés a concavidade do glaciar cintila como um lago gelado. Entre as minhas pernas vejo a cara severa de Gaston com uma expressão quase patética devido à intensa concentração. Como é estranho! Estamos ali suspensos entre o céu e a terra em duas pontas de grampos, e a menor falha do meu companheiro levar-me-ia à morte; todavia, receio mais o meu desleixo do que o dele. A confiança é uma bela coisa!...

A vertente é agora tão rija que o bico da minha picareta não me dá um ponto de apoio suficiente. Tenho que talhar pequenas fendas para apoiar a mão esquerda. Por vezes a neve acumula-se nas pontas dos meus grampos e sinto um arrepio de angústia. Começo a sentir cãibras nas barrigas das pernas. Meu Deus, como tudo é difícil!... Finalmente, vejo a alguns metros acima de mim um minúsculo socalco de vinte centímetros formado na base de uma ponta de rocha. Aquilo basta para descansar um pouco. É mais que tempo, aliás, porque me sinto no limite das minhas possibilidades de equilíbrio. Com um golpe de rins quase desesperado consigo equilibrar-me. Que alívio!... Gaston chega logo a seguir e temos dificuldade em arranjar lugar para os dois naquele sítio tão apertado.

Agarrado a uma pequena ponta de rocha, começo a atravessar para a esquerda. Alguns buracos e uma lasca saída da muralha permitem-me avançar sem ter de abrir talhes, à custa de uma ginástica verdadeiramente acrobática, mas que alívio quando nos sentimos seguros, mesmo que essa segurança seja fraca!... Após alguns metros, consigo elevar-me nas rochas, mas todas as cavidades estão cobertas de gelo e é preciso retirá-lo com a picareta. Sinto imenso frio nos dedos e o meu avanço é extraordinariamente lento. Por fim, consigo cravar uma cavilha para gelo numa fenda rochosa horizontal e aproveito esse apoio para fazer subir Gaston.

O nosso avanço continua sobre uma vertente de gelo duro, entremeada de pequenas paredes rochosas; não temos onde descansar, e por mais de uma vez sou obrigado a talhar degraus. O gelo é tão duro como vidro e a nossa ascensão processa-se a passo de tartaruga.

Temos de continuar por aqueles carreiros inclinados, cobertos de gelo, mas que frio nos dedos! Já nem os sinto! De dois em dois metros tenho que parar para tentar aquecer as mãos geladas. Trabalho com a picareta, rastejo, ando de gatas, agarro-me desesperadamente à menor aspereza. Junto de uma chaminé encontramos finalmente uma minúscula plataforma, onde, à custa de mil acrobacias, conseguimos desamarrar o nosso saco e tomar o alimento indispensável para manter as forças. A chaminé só se deixa vencer depois de uma batalha encarniçada. Mais longe, um carreiro íngreme por onde seguimos ergue-se numa espécie de rampa oblíqua muito inclinada. Apesar de ser formada de rocha medíocre e bastante atulhada de neve e gelo, esta rampa parece munida de bastantes cavidades e o seu aspecto não tem nada de aterrador. Subo alguns metros, limpando a rocha com a ajuda da picareta, mas à medida que subo torna-se cada vez mais difícil largar uma das mãos mais do que uns escassos segundos, e a picareta incomoda-me extraordinariamente. Por fim, consigo cravá-la numa fenda. Procuro enterrar uma escápula, mas já tenho muito poucas; descer para as pedir a Gaston levava muito tempo, e há que resolver o assunto sozinho. Consigo finalmente enterrar um ferro para gelo que se aguenta menos mal. Que importa? Continuo, mas a neve e o gelo

que não consegui tirar com a picareta incomodam-me terrivelmente. Empenho-me em aplicar toda a minha técnica. Centímetro a centímetro aproximo-me de uma plataforma; mais um metro e domino a situação, mas as cavidades estão cheias de gelo. Tento todos os meios possíveis, mas sinto-me cansado. Tenho tremuras inquietantes; mais alguns segundos e sei que vou cair. Tento tudo por tudo. Na falta de cavidades sólidas, agarro-me a uma agulha de gelo... Por milagre, ela aguenta-se!... Alguns movimentos frenéticos, e passei!... Mas as coisas não tardam a complicar-se: o corredor torna-se nitidamente vertical, e a parede rochosa com a qual formava um ângulo bastante fechado transforma-se numa laje lisa, fugidia e impossível de utilizar. Vou ser vencido quando estou tão próximo do fim? Não, a quatro ou cinco metros mais à direita vejo, do outro lado do corredor, uma nova possibilidade de avanço. Mas, para a atingir, tenho que atravessar a parede de gelo vertical de oito ou nove metros. Esta passagem parece-me de uma extrema dificuldade.

Uma cordada no Inverno. A marcha sobre a neve pode ser perigosa:

oculta fendas e placas de gelo.

Não podendo fazer mais nada, resolvo tentar. Prego a última escápula na rocha e, com a ajuda do martelo-picareta, começo a cavar degraus para os pés e aberturas para as mãos, mas ainda não avancei dois metros quando a corda fica presa não sei onde abaixo de mim; volto à escápula e grito para Gaston que vá soltar a corda. Esta operação dura tempos sem fim. A inação arrefece-me, bato os dentes contemplando o vazio que abre as fauces a meus pés. Tenho ocasião de meditar nos encantos do alpinismo!... Finalmente, alguns gritos indicam-me que posso continuar a travessia, mas o gelo é rijo e luzidio, a verticalidade da vertente empurra-me para trás e é preciso atuar com o maior cuidado.

É impossível conservar as luvas para me agarrar às aberturas feitas no gelo, e o frio nos dedos é atroz. Depois de alguns metros, tenho uma dolorosa sensação de insegurança. É verdade que nunca pratiquei tais acrobacias no gelo e a última escápula está agora a cerca de dois metros mais abaixo!...

Nunca imaginara que a escalada de uma cascata de gelo fosse tão difícil! É-me impossível continuar assim, tenho por força que espetar um ferro; mas a mão esquerda que mantém o meu equilíbrio está tão gelada que vou perder a força nela... Por fim o ferro enterra-se no gelo. Mas... bate na rocha que está por baixo. Não importa, parece aguentar e os meus dedos vão poder sair da algema de gelo. Dou um salto rápido. Uf!... foi a tempo!...

Preciso de mais de um quarto de hora para fazer voltar uma circulação normal às minhas pobres mãos. Depois deste repouso, o resto da travessia parece-me uma brincadeira de crianças. Consigo meter-me entre o gelo e a rocha e espetar uma sólida escápula. Abro uma verdadeira plataforma para permitir uma pausa. Puxo o maior dos nossos dois sacos. Gaston junta-se a mim içando-se numa das cordas enquanto eu o ajudo com a outra. Por cima de nós as lajes de pedra lisa formam, com a parede de gelo, um diedro muito aberto, de aspecto temível; a partida ainda não está ganha, tanto mais que a noite desce e a escuridão não facilita as coisas. Todavia, nem por um instante penso na possibilidade de bivacar. Sei que acabo de vencer o maior obstáculo desta muralha, a confiança em mim próprio centuplicou com esta vitória, e a partir de agora nada pode deter-me!...

Para a multidão de profanos, a escalada de uma montanha difícil não passa de uma série de acrobacias dramáticas cujos heróis só escapam à morte devido a uma energia sobre-humana combinada para sorte deles com acasos milagrosos. Na verdade, este gênero de odisséias acontece às vezes a principiantes temerários destinados às "primeiras páginas" dos grandes diários, mas nunca a verdadeiros alpinistas. Se o alpinismo fosse tão perigoso como as lendas o querem fazer crer, a lei das probabilidades nunca teria permitido a homens como Heckmair, Solza ou Cassin sobreviverem a dezenas, e até a centenas, de escaladas de extrema dificuldade que marcam a sua carreira.

O público ignora completamente que, em primeiro lugar, como o atletismo e o ciclismo,

o alpinismo comporta numerosas especialidades bastante diferentes uma das outras e de perigo desigual; depois, todas estas especialidades comportam uma técnica complexa e de demorada aprendizagem. É certo que, só em França, os acidentes de montanha causam todos os anos a morte de trinta a cinquenta pessoas, o que, aliás, se considerarmos que existem cerca de quinze mil alpinistas praticantes, não é um número excessivamente elevado.

Mas o que se ignora é que nove décimos dos acidentes acontecem a principiantes temerários ou a escaladores que ultrapassaram as suas possibilidades técnicas. É tão estúpido e imprudente lançar-se numa ascensão sem ter primeiro aprendido a técnica necessária como querer conduzir um avião sem ter aprendido a pilotar. Da mesma forma, quando se é um alpinista mediano, é tão arriscado realizar uma escalada de alta escola como querer tentar um looping quando só se sabe descolar.

O público pensa que a queda no vazio é o maior perigo. Puro engano. Entre os alpinistas qualificados, a maior parte dos acidentes são provocados pela deslocação dos blocos de pedra ou de gelo que, caindo sobre os flancos da montanha, lhes batem à passagem. Se a escalada não for de grande dificuldade, um bom escalador não corre praticamente o risco de cair. Quando a dificuldade se torna maior, isto é, quando os pontos de apoio são pequenos e raros, a parede é vertical ou em cornija, o alpinista espeta então no gelo, ou a maior parte das vezes nas brechas da rocha, um ou mais pitons metálicos munidos de sólidos estribos nos quais passa a corda que o liga ao companheiro. Estes pitons destinam-se a evitar a queda do escalador no caso de ele se soltar. Como é raro subir mais de dez metros sem encontrar uma brecha na rocha ou espetar um piton, as quedas são geralmente de cinco a dez metros, e muito excepcionalmente de vinte metros, ou seja, dez metros acima e dez metros abaixo do piton. Pessoalmente, em cerca de vinte anos de prática intensiva tive uma dezena de quedas sérias entre os quatro e os vinte metros. Este número é aliás considerado elevado. Mas só um destes "voos" me ia custando a vida. Foi em 1942, algum tempo depois da escalada da garganta do Caimão. Quando a batata recolhida estava já guardada na cave e rachada a lenha para o Inverno, dispunha de alguns dias de liberdade antes da estação fria. Deixando a quinta entregue aos cuidados de minha mulher, parti com Gaston em direção à única zona normalmente acessível naquela estação: as enseadas de Marselha. Como já sabemos, Rebuffat nasceu na capital da Provença; a mãe ainda lá vivia e deu-nos pousada. Todas as manhãs partíamos para escalar algumas das elegantes agulhas brancas e das imponentes falésias que, às portas da cidade, permitem ascensões em miniatura, por vezes de extrema dificuldade. Havia três dias que nos entregávamos a este divertimento agradável, quando atacamos um itinerário chamado La Boufigue. A parede era vertical e eu encontrava-me à cabeça da cordada, a uns 60 metros de altura. De repente, o piton a que me segurava desencravou-se e, antes que tivesse tempo de compreender fosse o que fosse, encontrei-me em pleno vazio, de cabeça para baixo. O segundo piton, que estava a quatro ou cinco metros abaixo de mim, foi arrancado pelo choque sem me suavizar a queda. Vendo o chão aproximar-se a uma velocidade vertiginosa, julguei que ambas as minhas cordas se tinham partido e que ia esmagar-me no sopé da falésia; o espírito começou a trabalhar a uma velocidade fantástica e, em poucas fracções de segundo, consegui pensar na minha mãe, na minha mulher e em muitas outras coisas.

Não tive a menor sensação de medo. A ideia de que ia morrer dentro de instantes não me dava qualquer espécie de angústia. A minha personalidade assistia à queda mais como espectador do que como ator. Senti um violento choque no peito. E tive de me render à evidência: não estava morto, mas apenas suspenso em pleno vazio na ponta da corda. O regresso à vida pareceu-me doloroso; sentia uma forte dor abaixo dos rins e a corda abafava-me. De repente senti-me assaltado por todos os problemas da existência, mesmo os mais mesquinhos: como ia eu conseguir livrar-me daquela situação? Não estaria gravemente ferido? Poderia esquiar no próximo Inverno? Que descompostura não ia apanhar da minha mulher?... Só mais tarde compreendi que não tinha morrido por um cabelo. Uma das duas cordas de cânhamo com que eu estava amarrado tinha-se partido e o mosquetão, de um metal muito leve, tinha-se aberto. Se a corda que ficou inteira não se tivesse prendido na porca do fecho, era um homem morto!

Se em toda a minha carreira só dei uma queda em que vi a morte de perto, nove vezes, pelo menos, estive quase a morrer devido a desabamentos e quedas de pedras e blocos de gelo. Com efeito, as avalanches de neve e a queda das agulhas de gelo são os

grandes perigos do alpinismo de alta montanha em que me especializei.

"Quando a parede é vertical ou em cornija, o homem cai em pleno vazio e não encontra nada à sua passagem."

A primeira destas terríveis experiências deu-se no mês de Junho de 1943. Tendo ido passar alguns dias a Grenoble, onde tinha ainda família e muitos amigos, aproveitei essa viagem para tentar uma escalada no maciço do Oisans. Parti com três companheiros: o meu

saudoso amigo Pierre Brun, o meu primo Michel Chevalier e um alpinista parisiense com quem já tinha feito alpinismo várias vezes, Roger Endewell, que, devido à sua pequena estatura, era mais conhecido pela alcunha de "Micro".

Nesses tempos ainda heróicos, a técnica delicada que permite escalar as vertentes de gelo em equilíbrio nas pontas dos ganchos só era usada por um pequeno número de alpinistas. Quando as vertentes ultrapassavam 30 a 35 graus, a regra era talhar degraus com a ajuda da picareta, método fatigante e demasiado lento. Por mim, praticava normalmente este método em vertentes já bastante diretas, mas sem utilizar a picareta, na posição chamada "picareta em âncora", que me ensinou mais tarde o professor Armand Charlet. Esta má posição da picareta não me permitia atingir o limite das possibilidades. No gelo rijo, espetar grampos em vertentes de 45 graus era praticamente o máximo onde se podia chegar. Foi por isso, com um equilíbrio bastante precário, que comecei a elevar-me na ponta dos grampos. Os meus companheiros, menos treinados neste gênero de exercício, olharam-me com admiração, mas recusaram-se a imitar-me. Tive portanto que me resignar a abrir degraus ou, quando muito, a subir, metade pelos degraus, metade com a ajuda dos grampos. O nosso avanço foi muito lento e, quando os raios do Sol começaram a bater na vertente, não tínhamos subido mais de um quarto do caminho. Em breve algumas pedras isoladas começaram a cair no largo corredor em graciosas cabriolas. Sabíamos que com um pouco de ligeireza e de sangue-frio é quase sempre possível evitar um calhau e que, além disso, um corpo humano ocupa pouco lugar numa vertente de cerca de 200 metros de largura!... Seria muito pouca sorte se um daqueles malditos projéteis viesse bater nalgum de nós. Apesar de um pouco inquietos, continuávamos a nossa lenta ascensão. Daí a pouco, as pedras tornaram-se mais numerosas e algumas vieram na nossa direção. Transformados em toureiros dos Alpes, fugíamos-lhe com movimentos rápidos do corpo. Este exercício, repetido a cada instante, punha-nos os nervos em pé. Tão perigosas acrobacias não podiam prolongar-se por muito tempo sem haver uma catástrofe, mas que fazer?... Descer de novo? Tínhamos aberto degraus muito espaçados e até espetado grampos em várias seções curtas do nosso itinerário. Ora, espetar grampos na descida é muito mais difícil do que na subida. Seria preciso, portanto, abrir degraus durante horas, e a nossa possibilidade de chegarmos lá embaixo sãos e salvos era bem pequena. Em vez de recorrer a esta solução desesperada, decidi tentar chegar a um espigão de rocha bastante próximo, onde estaríamos meio abrigados daquela saraivada. O mais depressa que pude dirigi-me para aquele abrigo, quando da parede rochosa que nos dominava partiu um ruído de trovão. Com os olhos abertos de terror, vimos então dois ou três blocos do tamanho de baús que, no meio de toda aquela metralha, se dirigiam a nós dando saltos fantásticos. Parecia impossível que aquela enorme avalanche não nos esborrachasse como se fôssemos simples fardos de palha. Perfeitamente conscientes da sorte que nos esperava, deitados de encontro à vertente, víamos desabar sobre nós aquela torrente de pedras, quando, bruscamente, apenas a uns trinta ou quarenta metros, sem razão visível, a avalanche se dividiu em duas. Os grandes blocos passaram a uns quinze metros à nossa esquerda, e os outros contornaram-nos pela direita. Apenas um pouco de cascalho nos atingiu sem gravidade. Foi por um acaso quase tão milagroso como este que alguns meses mais tarde, em companhia de René Ferlet, fui novamente poupado.

A fim de evitar os riscos das quedas de pedras, tínhamos atacado o pico norte da Agulha do Midi mais de duas horas antes do nascer do Sol. A noite estava escura e um pouco fria. Após algumas semanas passadas na medíocre e por vezes mesquinha luta pela vida, eu sentia-me feliz por poder uma vez mais enfrentar um combate leal no esplendor das alturas.

Trepar no escuro é desagradável, mesmo em terreno fácil, por isso este fastidioso exercício nos levara rapidamente ao corredor de neve situado à nossa direita. Apesar de esse lugar estar exposto às quedas de gelo e de pedras, parecera-nos cômodo subir aquele corredor uns trinta metros. Mas não tínhamos percorrido metade desta distância quando o barulho de uma enorme queda de pedras se fez ouvir por cima das nossas cabeças. Apenas tinha compreendido o que se passava quando senti uma pancada na barriga da perna e escorreguei pela vertente abaixo dando saltos formidáveis. Como acontecera nas enseadas de Marselha, o meu espírito começou a trabalhar a uma velocidade fantástica e, num instante, lembrei-me de todos os acidentes de que os protagonistas deles tinham conseguido sair: Gréloz e Valluet no corredor Couturier, Boulaz e Lambert no Whymper, Belin e Rouillon nos Rouies, etc. Pensando que não tínhamos subido mais de cem metros de corredor, sentia um otimismo total a respeito do desfecho desta queda. Deu-se um choque mais brutal: "É um glaciar!", pensei eu de

repente; rolei ainda algumas dezenas de metros e encontrei-me sobre um cone vulcânico. A pele das minhas mãos estava em parte arrancada, mas não tinha nenhum ferimento grave. Ao meu lado, Ferlet estava igualmente ileso.

Expor-se aos perigos não é o objetivo do jogo, mas faz parte desse jogo. Só uma longa experiência, pela quantidade de observações que permite recolher, não apenas na memória, mas no subconsciente, dá a certos alpinistas a possibilidade de adquirir uma espécie de instinto que lhes permite detectar o perigo, mas sobretudo avaliar a importância da sua ameaça.

Com 80 quilos de peso, limitado por braços demasiado curtos e por uma musculatura rija, sou morfologicamente mal feito para as escaladas rochosas arriscadas e, de fato, nunca fui excepcional nessa especialidade. Apesar da minha relativa inferioridade física, levado por uma audácia natural e pelo amor ao êxito, consegui muitas vezes realizar a escalada de paredes rochosas de grande dificuldade. Consegui, efetivamente, mas à custa de alguns riscos, e foi por isso que dei bastantes quedas durante toda a minha carreira. Em contrapartida, foi principalmente durante os meus primeiros anos de prática de alta montanha que vivi acontecimentos durante os quais as forças da Natureza quase me deram a morte. Nessa época, todavia, a minha atividade era menos intensa do que foi mais tarde, e as incursões realizadas teoricamente menos aventurosas. Não é impossível que uma série de acasos esteja na origem desta acumulação de acontecimentos dramáticos, mas sou levado a crer que a falta de experiência fazia expor-me a múltiplos perigos que pouco a pouco aprendi a eliminar. Hoje, não me admirava nada que me acontecesse dar uma queda grave numa escalada pura, mas quase não existe possibilidade de viver novamente aventuras semelhantes à da garganta do Diabo e da vertente norte da Agulha do Midi. Conforme já disse, é possível praticar intensamente o "grande alpinismo" durante vinte ou trinta anos e morrer de velhice. Nesta longa aventura, o mais difícil é atravessar a barreira dos primeiros quatro ou cinco anos.

As dramáticas experiências que vivi durante os Verões de 1942 e 1943 - só aqui registrei as mais notáveis - foram-me infinitamente salutares. Durante as épocas seguintes, dei provas da maior prudência e, em certa medida, limitei o nível técnico das minhas ascensões.

Ao contrário, Rebuffat, sempre animado daquela maravilhosa confiança no seu destino que eu já lhe conhecia quando era ainda um principiante, não parecia de forma nenhuma preocupado pelo receio de se aventurar em travessias acima das suas forças. Aliás, treinado pela sua profissão de instrutor de montanha, dispondo de bastante tempo livre, dava prova de uma notável atividade e conseguira numerosas incursões de categoria.

Simples, calmo e reservado no dia-a-dia, perante a montanha, revelava uma singular falta de modéstia. Na sua opinião, as ascensões que realizava não passavam de exercícios de treino preparatório para maiores demonstrações e, para vencer as vertentes mais formidáveis, só precisava de um companheiro capaz de o seguir.

Dando-me uma grande honra, considerava-me digno de ser esse companheiro, e moía-me o juízo para que eu tentasse com ele repetir a exploração dos italianos que, dirigidos por Riccardo Cassin, tinham em 1938 conseguido vencer a vertente norte dos Grandes Jorássios pela agulha do pico Walker.

Esta parede extraordinária, onde o gelo e a rocha se equilibram harmoniosamente, é sem dúvida a rainha do maciço do monte Branco. Visível de muitos lados, parece desafiar os escaladores, pelo seu aspecto inacessível, e ao pé dela as vertentes mais soberbas parecem quase mesquinhas. Nenhum alpinista digno deste nome pode deixar de sentir o desejo de a conquistar.

Como Rebuffat, o meu grande sonho era subir o Walker; para mim ele era a mais grandiosa, a mais pura e a mais desejável das vertentes. Mas parecia-me que conseguir a sua ascensão não passava de um sonho!... Achava-a tão formidável, tão superior a tudo o resto, e não me sentia à altura de tal empresa. Continuava persuadido de que só super-homens como Cassin ou Heckmair podiam realizar tais feitos, e parecia-me que nem eu nem Gaston éramos seres de exceção.

Deixei, portanto, Rebuffat entregue aos seus projetos grandiosos e continuei o meu

modesto destino. De fato, Rebuffat conseguiu convencer um dos melhores alpinistas da geração seguinte, Édouard Frendo, a acompanhá-lo ao Walker; mas, aparentemente, também ele ainda não estava apto para tal aventura, porque, embora a sua cordada tenha sido prejudicada pelo mau tempo, um pouco depois do primeiro quarto de muralha, o horário extremamente longo que empregara para subir até ali mostra claramente que não dominava a situação. Apesar deste malogro tão aborrecido, Rebuffat não ficou de forma nenhuma desencorajado. Com a extraordinária tenacidade que soube demonstrar em todas as circunstâncias, decidiu tentar de novo a aventura na primeira ocasião.

Dois anos mais tarde, sempre na companhia de Frendo, depois de três paragens e cerca de três dias de escalada muito violenta, conseguiu a segunda ascensão do pico do Walker, contando assim no seu ativo com a primeira exploração de grande classe do alpinismo francês.

A guerra dos Alpes

Durante estes dois anos, acontecimentos históricos vieram transtornar profundamente a minha existência: a libertação da França e o fim da guerra.

Desde 1942, a região de Chamonix tinha sido um importante centro de resistência; os maquis invadiam a montanha, e uma quantidade importante de homens do vale pertenciam a organizações clandestinas.

Pessoalmente contribuía para o abastecimento dos maquis, dos quais muitos chefes eram meus amigos, alguns até mesmo íntimos. Vivia em contato permanente com a Resistência e não ignorava quase nada da sua atividade, mas não fazia verdadeiramente parte de nenhuma organização. Pelos primeiros dias de Outubro, recebi a visita de um camarada da J.M., chamado Beaumont. Pertencia a uma companhia de maquis do Isère que se tornara célebre pelos seus feitos, sob o nome de Companhia Stéphane, sendo este o pseudônimo do seu chefe e animador, o capiton Étienne Poiteau, natural de Saint-Cyr.

Para os habitantes destas pequenas aldeias, a montanha era um refúgio inexpugnável; foi ali que se desenvolveram os primeiros focos de resistência.

Stéphane, cujo grupo contava com numerosos monitores alpinos, saídos da J.M., assim como bons esquiadores e alpinistas do Dauphiné, queria constituir uma companhia de alta montanha, capaz de enfrentar os alemães nas cristas dos Alpes e eventualmente desalojá-los. A fim de reforçar a sua equipe de técnicos alpinos, tinha enviado Beaumont a Chamonix para que ele tentasse persuadir alguns guias e monitores da terra a irem juntar-se às suas fileiras.

A Companhia Stéphane não era, evidentemente, tão perfeita como Beaumont a descreveu; era uma instituição humana e como tal contava com muitas deficiências de pormenor, mas era um grupo extraordinário, e sobretudo o seu chefe era um homem excepcional cujo entusiasmo e fé naquilo que empreendia tinham um poder de comunicação que nunca encontrei em ninguém. Na origem, esta companhia era um simples maquis cujo quartel-general estava situado em Prabert, em pleno coração do maciço de Belledonne. Em vez de deixar apodrecer os seus homens mais ou menos na inatividade, que era o mal de que sofria a maior parte dos maquis, Stéphane obrigava-os a um treino militar intensivo. Deu-lhes uma verdadeira formação de comando, treinando-os sobretudo a confundirem-se com a Natureza e a deslocarem-se rapidamente nas condições mais difíceis. Quando me juntei à Companhia Stéphane, ela tinha saído apenas havia alguns meses de uma atividade intensa e fora pouco enfraquecida pelos elementos novos que vieram alistar-se após a Libertação. Era uma equipe muito treinada e animada de um espírito de corpo extremamente desenvolvido. Reinava ali um entusiasmo, um espírito de camaradagem e um calor humano que lembravam os mais belos dias da J.M.

Inútil será dizer que encontrei lá condições psicológicas altamente favoráveis ao meu bom moral. Desde as primeiras horas, circulava naquele ambiente como peixe na água. Muito alto, loiro, os cabelos cortados em escova, a pele fresca e rosada como a de uma rapariga, o

rosto um pouco largo iluminado por olhos cinzentos e cândidos, Stéphane escondia sob esta aparência de jovem tímido e desajeitado a coragem e energia de um condottiere associadas a muita inteligência, psicologia e humanidade; procurava manter na sua companhia as virtudes que tinham feito a sua glória: um moral a toda a prova, uma grande simplicidade e um excepcional desembaraço na maneira de agir. Para isso impunha-nos uma vida muito dura. Quaisquer que fossem as condições atmosféricas, dormíamos em tendas primitivas. Por vezes até, durante as manobras, acampávamos vestidos, ao abrigo de um simples pinheiro. Não possuíamos qualquer espécie de roulotte ou de cozinha coletiva. Cada grupo de combate, ou seja doze homens, constituía uma unidade quase independente que fazia a sua cozinha conforme podia numa fogueira ao ar livre. O treino, além dos exercícios de tiro, a leitura de mapas e comunicados por Morse, consistia sobretudo em manobras constantes nas florestas e montanhas do maciço de Belle-donne.

O Vercors, perto de Grenoble. Deram-se ali violentos combates durante a II Guerra Mundial.

Estas manobras efetuavam-se por vezes com balas verdadeiras e o emprego de granadas de ataque. Evidentemente que recebíamos ordem para atirar muito acima da cabeça do suposto adversário e nunca lançar a granada no meio de um grupo. Mas alguns dos nossos velhos maquis sentiam um prazer cruel em nos fazerem assobiar as balas aos ouvidos, ou rebentarem granadas a poucos metros de nós, coisas bastante impressionantes para um aprendiz de soldado como eu. Lembro-me sobretudo de um dia em que, ao atravessar uma clareira, fui apanhado pelo fogo de uma espingarda-metralhadora emboscada num plano superior. Uma rajada veio arrancar alguns tufos de erva a poucos metros à minha frente e precipitei-me a correr para a esquerda; os assobios das balas ouviram-se desse lado e procurei então fugir para a direita, mas novamente as balas fizeram suspender a minha fuga nessa direção. Sem outra solução, não sabendo já o que fazer, deitei-me no chão, muito quieto, à espera que os meus pseudo-adversários resolvessem deixar-me em paz. Estas manobras com balas verdadeiras podem parecer estúpidas, mas, de fato, nunca houve qualquer acidente e a verdade é que este sistema nos permite adquirir o treino da guerra com surpreendente rapidez. Se no fim do nosso treino, tivéssemos que participar em combates difíceis, certamente muitas vidas humanas teriam sido poupadas graças ao nosso relativo hábito ao fogo. Quanto a mim, embora me parecesse fisicamente bastante penosa, esta vida de ação intensa, de contatos com a Natureza e de fraternidade humana agradava-me extraordinariamente e entregava-me a ela de alma e coração. Em meados de Novembro, os 6.°, 11.° e 15.° batalhões de caçadores alpinos subiram a montanha para substituir as unidades bastante heterogêneas que, havia dois meses, guardavam a fronteira dos Alpes de Maurienne, do monte Tabor até à garganta do Mont-Cenis. A neve tinha embranquecido as montanhas e a sua camada espessa dificultava qualquer atividade militar, mas o setor estava muito calmo.

O grosso do nosso batalhão guardava as aldeias e as obras de arte, enquanto as seções de esquiadores defendiam os pontos avançados.

O capitão Stéphane achava que a melhor forma de não ser atacado era atacar primeiro, e mandou efetuar uma série de ataques-surpresas mais ou menos espetaculares, destinados teoricamente a dar aos alemães uma demonstração impressionante das nossas capacidades guerreiras. A primeira missão que cumpri é um exemplo significativo. Recebi ordens para estudar com o ajudante-chefe Bouteret se era possível realizar uma ação de fustigação sobre as posições alemãs da garganta de Roue.

Para uma tropa normal, esta depressão bastante estreita, situada entre dois cumes muito abruptos, teria sido completamente impossível de atacar. Mas para alpinistas era evidente que, conseguindo escalar a Grande Bagne, uma elevação de 3200 metros dominando a garganta, por uma vertente ao abrigo dos olhares inimigos, do alto da crista seria possível atirar sobre os teutões, que não deixariam de ficar extremamente surpreendidos e impressionados por este ataque vindo de um ponto que eles com certeza julgavam inacessível naquela estação.

Dentro do alpinismo, semelhante empresa exigia grande habilidade, porque estávamos no pino do Inverno, fazia muito frio e a parede escarpada que era preciso escalar estava completamente coberta de neve. Felizmente, a minha seção contava com vários guias e alpinistas de valor, e eu sabia que com tais homens era possível levar a bom termo atuações que profanos teriam julgado irrealizáveis. Eu assegurava ao capitão que podíamos de certeza atingir o cume da Grande Bagne e atirar sobre os alemães de uma distância de cerca de 700 metros. Apesar de, nestas condições, as nossas probabilidades de abater alguns inimigos serem bastante escassas, o capitão deu ordem para executar o projeto. A ascensão decorreu com mais facilidade do que pensávamos, graças a um rijo corredor de neve gelada e a uma aresta pontiaguda um pouco melindrosa; o mais difícil foi decidir Bouteret a atravessar a última passagem, para falar verdade, bastante vertiginosa. Era um meridional alegre e simpático, mas mais inclinado a correr atrás de saias do que a escalar montanhas. Com o seu inimitável sotaque bordelês, gritava-nos: "Com as vossas escaladas ainda me fazem partir a cabeça. Davam muito bem cabo desses boches sem a minha ajuda. Por mim, não lhes quero mal, coitados."

Alguns puxões de corda bastante pouco respeitadores da hierarquia militar conseguiram fazer subir o nosso ajudante, depois do que nos encontramos oito ou dez reunidos no cume estreito. Dali, víamos perfeitamente os almeães quase na vertical abaixo de nós. Parecia reinar entre eles a maior despreocupação: alguns tomavam banho de sol, outros praticavam esqui. A mais de 700 metros em fogo flagelante a eficácia da espingarda-metralhadora é muito diminuta, e tínhamos pouca possibilidade de atingir algum. Bouteret, tendo retomado o seu papel de chefe, mandou todavia disparar algumas rajadas. O efeito foi espetacular. O inimigo, sem compreender de onde vinha o fogo, ficou desvairado. Os homens corriam em todas os sentidos sobre as vertentes nevadas, mas, aparentemente, nenhum foi

atingido. Após alguns minutos desta brincadeira cruel, um pouco enojados de atirar a homens incapazes de se defenderem, e satisfeitos por termos cumprido a nossa missão, tomamos novamente o caminho do vale.

A caminhada na montanha proporciona por vezes a vista de paisagens grandiosas.

Em fins do mês de Dezembro de 1944, foi a vez de a minha seção tomar posições num posto avançado, muito difícil de manter e até de abastecer: Challe-Chalet, situado a 2200 metros sobre uma crista em pleno Norte. Sem ser heróica, a vida em Challe-Chalet era francamente desagradável. Dia e noite, fazia um frio de rachar, e nalgumas noites o termômetro descia a 33 graus negativos. Não tínhamos um único fogão de aquecimento para trinta homens e havia tantas correntes de ar que a dois metros dali o vinho gelava nas pipas. Como só dispúnhamos de um equipamento bastante sumário, é evidente que o frio quase permanente nos fazia sofrer bastante. Com excepção de um pouco de esqui numa vertente má, a única ao abrigo dos olhares alemães, e naturalmente o abastecimento em madeira, alimento e munições que era preciso carregar às costas num trajeto de mais de duas horas de esforços, não tínhamos absolutamente nada que fazer.

Passados alguns dias, começamos a sentir o peso de um grande tédio, e o tédio aliado ao frio é uma combinação difícil de suportar.

A direita da garganta do Arondaz elevavam-se dois pequenos cumes rochosos cotados em 2601 e 2590. No de 2601, o mais Próximo da garganta, os alemães tinham instalado um posto de observação graças ao qual não só podiam seguir tudo o que se passava em Challe-Chalet, mas também regular os tiros de artilharia pesada que, de longe em longe, desen-cadeavam sobre a aldeia do Charmaix, onde o batalhão tinha instalado o seu quartel-general, e até os bombardeamentos de morteiros com que "rasavam" as colunas de abastecimento do forte do Lavoir. É incontestável que este observatório de 2601 era uma séria vantagem estratégica para os nossos inimigos, mas devo dizer que eles só se serviam dela com bastante moderação. No fim de contas, este posto não nos incomodava muito e, em todo o caso, parecia completamente impossível fazer qualquer coisa para impedir os alemães de se servirem dele. Um dia em que, para estarmos ocupados, tínhamos passado a manhã a atirar morteiradas sobre a garganta do Arondaz e sobre a 2601, os alemães fizeram rebentar algumas granadas de obuses em volta do nosso acampamento. O meu primo Michel Chevallier gritou:

- Ah, se pudéssemos subir lá acima, os boches não se faziam engraçados conosco.

Por graça, respondi-lhe:

- E porque não havemos de ir?

- Que pensas fazer? Aquele posto é completamente impossível de tomar - continuou o meu primo. Mas eu voltei à carga:

- Nem por isso! A parede de 2590 está fora do alcance da vista dos boches, podemos portanto escalá-la. Do primeiro ao segundo cume a crista não é difícil e podemos percorrê-la de noite. Basta subir à 2590 de tarde e atacar o posto de observação no princípio da noite, antes que os Fritz da garganta do Arondaz tenham subido para lá; teríamos tempo de descer em chamadas colocadas previamente. Seria realmente um ataque sensacional! Enrugando a testa com espanto, os olhos cinzentos iluminados por um vivo interesse, Chevallier não pôde deixar de dizer:

- Evidentemente, seria formidável; mas achas que se possa realmente escalar essa parede? Ela parece tão difícil, e com o frio que faz agora não deve ser possível escalar rochas tão rijas.

Mas, imperturbável, eu afirmei:

- Para escalar a parede, cá estou eu. Tenho a certeza de que consigo. O outro dia andei por lá a passear; há um corredor que não se vê daqui, que permite subir com facilidade dois terços da muralha. Quanto ao resto, com um pouco de tempo, hei-de chegar. Confessa que é mais divertido do que morrer de tédio aqui, e depois, estás a ver a cara dos boches? Ficavam de boca aberta!...

A ideia de atacar a 2601 estava lançada. Partindo de uma brincadeira e do desejo de ação de dois alpinistas atormentados pelo espírito de aventura, foi a pouco e pouco tomando corpo. Na primeira visita do capitão Stéphane, Chevallier, que tinha o posto de primeiro-sargento, falou-lhe do nosso projeto. Stéphane não tinha nenhuma noção do alpinismo, por isso mostrou primeiro um certo ceticismo sobre a possibilidade de escalar o pico 2590, mas como eu e Chevallier tínhamos na companhia uma grande reputação de bons montanheses e lhe garantíamos que por esse lado não haveria problema, acabou por se entusiasmar com a nossa ideia e prometeu falar ao tenente-coronel Le Ray. Este, ainda muito novo, era um alpinista com verdadeira experiência e companheiro de montanha de Michel Chevallier. O nosso projeto pareceu-lhe interessante e, depois de pesar os prós e os contras, deu o seu acordo. Após mais de três horas de marcha bastante difícil, em esqui, atingimos a base de um corredor com cerca de 45° de inclinação. Como não se podiam usar os esquis numa vertente tão íngreme, foi necessário seguir a pé, enterrando-nos até à cintura numa neve poeirenta que, se não fosse o frio intenso que fazia com que os cristais se pegassem uns aos outros, teria certamente caído em avalanche. Mais acima, algumas passagens de rochedos cobertos de neve e gelo obrigaram-nos a uma escalada bastante melindrosa. A última, uma placa lisa dominada por um pico prestes a desmoronar-se, era francamente perigosa. Numa primeira tentativa dei uma queda de dois ou três metros que felizmente consegui travar antes que a corda que Chevallier segurava tivesse que entrar em ação. Foi só por volta do meio-dia que terminou esta escalada, dificultada pela neve que cobria as rochas e pelo frio absolutamente polar que fez naquele dia. A 2590 só estava separada da 2601 por uma depressão muito pouco acentuada, e a 150 metros víamos muito bem o posto de observação inimigo. Ao princípio, tomávamos grandes precauções para não nos arriscarmos a sermos vistos pela sentinela, mas, passados alguns minutos, pareceu-nos que não havia qualquer sinal de vida naquela posição e, pensando que os guardas estavam abrigados no interior, esperamos ainda um grande bocado. Apesar de os raios brilhantes do Sol iluminarem perfeitamente o cume, o vento glacial que soprava com força tornava a nossa situação quase intolerável. Estávamos gelados de frio e os pés começavam a ficar insensíveis. Incapazes de esperar mais tempo e convencidos de que os alemães tinham abandonado provisoriamente o posto, sem dúvida para prepararem a passagem do ano, aprontávamo-nos para descer quando a sentinela apareceu, não na 2601, mas na garganta do Arondaz. O soldado encontrava-se a mais de 300 metros e as nossas probabilidades de o atingir eram duvidosas. Chevallier decidiu, todavia, mandar-lhe uma rajada, mas, quando carregou no gatilho, o percutor não funcionou com força suficiente para disparar o tiro. A despeito de todas as precauções tomadas, a espingarda-metralhadora tinha gripado com o frio de 30 graus negativos. Apesar de terem os dedos entorpecidos e da dificuldade em desmontar uma espingarda-metralhadora numa aresta onde o vento forte levantava turbilhões de neve, durante cerca de uma hora Chevallier e Cretton esforçaram-se por desencravar a arma; mas não deu resultado. Não podendo suportar mais o frio, finalmente decidimos voltar.

Havia muito que tínhamos percebido a pouca utilidade militar desta guerra dos Alpes. Para nós, a vida nos postos avançados tinha deixado de ser uma missão patriótica para se transformar numa espécie de grande jogo de cowboys, que se tornava mais entusiasmante porque se desenrolava no mundo maravilhoso das alturas que amávamos. Depois de passar uns três meses a defender as montanhas que separam Modane de Bardonnèche, a Companhia Stéphane foi enviada para outro setor onde a esperavam tarefas mais difíceis e sérias.

No princípio de Março, um período de bom tempo permitiu iniciar uma série de operações de alta montanha onde as minhas qualidades de alpinista e de esquiador foram novamente postas à prova.

As montanhas da alta Maurienne ultrapassam por vezes 3500 metros e os colos que as separam são muito altos e escarpados, e por isso as fracas tropas ítalo-alemãs que nos faziam frente neste setor não tinham achado necessário defender a linha de cristas, julgadas sem dúvida militarmente intransponíveis naquela estação. Estas unidades, compostas sobretudo por italianos, mais ou menos recrutados à força, tinham-se contentado em entrincheirar-se nas

últimas aldeias dos três vales de Stura. Em face deste ponto fraco da linha de defesa inimiga, o comando supremo, provavelmente inspirado por Stéphane, decidiu fazer-nos tomar posição, não apenas nas gargantas, mas nalguns pontos da vertente italiana.

A missão mais notável em que participei nessa época foi um raid de quatro dias de ida e volta. Por um imenso desvio onde foi preciso acampar conseguimos chegar junto de um grupo de partisans italianos escondidos nas redondezas próximas da pequena cidade de Susa, a cerca de 20 quilômetros atrás da "frente" do Mont-Cenis. Graças a estes resistentes, Stéphane pôde levantar com precisão as posições de várias baterias de artilharia pesada. Este raid era realmente audacioso não só sob o ponto de vista militar, mas também sob o ponto de vista alpino, porque tínhamos que atravessar cristas escarpadas e subir vertentes que, à menor queda de neve, seriam teatro de avalanches.

Incidentes dramáticos marcaram esta aventura. Quando estávamos escondidos entre os partisans a menos de dois quilômetros de Susa, onde cerca de oitocentos alemães se encontravam aquartelados, sem dúvida devido a uma denúncia, o inimigo começou a revistar as casas da aldeia. Acordados a meio da noite pelos maquis, conseguimos escapar. Mas, duas horas mais tarde, quando saímos da floresta, para entrar na zona de pastagens de altitude, vimos duas importantes patrulhas que se dirigiam a nós em movimento envolvente. Por sorte, os alemães não nos viram e pudemos escapar-lhes escondendo-nos entre os ramos das grandes árvores. É muito possível que se eles estivessem acompanhados de cães, como acontecia muitas vezes, a aventura se tornasse mais grave.

Na tarde do dia seguinte, meios mortos de fome, esgotados por uma longa marcha forçada carregando armas e munições, chegamos perto da antiga fábrica elétrica do lago da Rousse, que a nossa companhia ocupara na vertente italiana, quando o barulho de uma rajada atraiu a nossa atenção.

O posto acabava de ser seriamente atacado; o meu amigo Robert Buchet fora morto e outros homens ficaram feridos. Em vez do repouso e alimentação que esperávamos, mal chegamos tivemos de participar num contra-ataque, e depois largar em direção ao colo do Arnès, situado a mais de uma hora acima de nós. Durante esta subida, como se o meu saco não fosse já bastante pesado, tive que levar o de um ferido. Quando, a meio da noite, depois de ter passado o colo, consegui chegar à pequena aldeia de Avérole, sabia o que quer dizer andar. Nesse dia, apesar dos sacos de cerca de vinte quilos, tínhamos galgado mais de 5400 metros, perto de 2800 deles em subida, quase sem comer. Durante os primeiros dias de Abril, a Companhia Stéphane foi transferida do setor de Bonneval e Bessan para se instalar em Lansbourg e tomar posição nas florestas situadas abaixo do colo do Mont-Cenis e o forte da Tura. Em face desta pressão num setor nevrálgico, os alemães reagiram com tiros de artilharia e manobras por vezes muito audaciosas. Esta guerra de canhões, de minas e emboscadas no interior dos bosques pareceu-me deprimente, mas não suspeitava que ia assistir a outra ainda mais abominável. Na península da Itália, os exércitos aliados atacavam renhidamente a Wehrmacht. A fim de fixar o maior número de tropas ao longo da fronteira dos Alpes e, se possível, fazer avançar esta frente até então secundária, o comando supremo ordenou uma violenta ofensiva geral. O primeiro exército enviou-nos importantes reforços de artilharia e, mais a sul, elementos de infantaria vieram reforçar as unidades alpinas. No setor de Maurienne, o primeiro ponto estratégico em que se deu a ofensiva foi o colo de Sollières e os picos montanhosos que o cercam: ponta de Bellecombe, Mont Froid e ponta de Clairy. Tornando-se senhor do conjunto destas posições, o nosso exército tornaria indefesos o colo e o planalto do Mont-Cenis.

Na noite de 5 de Abril, graças a ataques audaciosos, as seções de reconhecimento do 11.º B.C.A. conseguiram tomar de surpresa a ponta de Bellecombe e o Mont Froid. Mas a S.E.S. 3 do 15.°, impedida por um terreno muito difícil, falhou na ponta de Clairy. Mal apoiados por tropas em número muito reduzido, na maior parte insuficientemente treinadas e sem aptidão técnica conveniente para combates de montanha tão difíceis, os conquistadores de Bellecombe e do Mont Froid, apesar de uma defesa heróica, não puderam resistir aos contra-ataques dos alemães. Com efeito, estes, saindo do seu relativo marasmo, puseram à provas todas as qualidades guerreiras próprias da sua raça, combinadas com uma técnica de combate adquirida durante longos anos de uma guerra impiedosa. Só uma defesa impecável poderia resistir aos seus assaltos. Em vez disso, os soldados, sem experiência, encarregados de

reabastecer e substituir as tropas de reconhecimento colocadas nas posições das nossas novas conquistas, cansavam-se, enterrando-se até à cintura na neve amolecida das primeiras pastagens de altitude, ou escorregavam nos corredores das escarpas transformadas em pistas de toboggans pelo gelo que descia dos cumes. As colunas não chegavam ao seu destino ou, quando chegavam, os homens estavam tão fatigados que não conseguiam bater-se convenientemente. Sem reforços válidos, os corajosos S.E.S. acabaram por ceder. Logo no dia seguinte à sua conquista, Bellecombe foi retomada pelo inimigo. No dia 11, uma nova tentativa para tomar a crista da ponta de Clairy foi rechaçada após uma violenta batalha. Finalmente, a 12, o Mont Froid sucumbiu a um impetuoso contra-ataque. A queda desta posição foi uma verdadeira tragédia. A crista do Mont Froid, com cerca de um quilômetro de comprimento, era defendida por três fortins bastante primários, colocados respectivamente a oeste, a leste e no centro. Já nos dias 6 e 7, o bloco E fora teatro de combates sangrentos: tomado a 6, depois de um feroz assalto, fora retomado a 7, mas, nesse mesmo dia, os franceses conseguiram conquistá-lo.

Todos estes combates quase corpo a corpo tinham custado muito sangue. Mas isto era apenas o princípio. No dia 12, com uma forte ofensiva, os alemães apoderaram-se dos blocos W e E, onde morreu em combate a maior parte dos homens. Finalmente, após uma resistência desesperada, o bloco do centro rendeu-se.

Como o 15.° B.C.A. não tomara parte nesta operação, eu tive a sorte de não assistir à carnificina do Mont Froid.

Em contrapartida, embora de bastante longe, participei no segundo ataque contra a ponta de Clairy, que foi também uma batalha heróica e mortífera.

A ponta de Clairy projeta no colo de Sollières uma longa aresta pouco inclinada, eriçada de rochas de pequena dimensão. Os alemães ocupavam solidamente várias posições espalhadas ao longo desta crista; assim, para ficar senhor da situação, era preciso não só conquistar o cume, mas todos os pontos de resistência.

Da minha posição, assisti de bastante perto a grande parte da batalha. De ambos os lados, tinham sido instaladas muitas peças de artilharia. Pareceu-me que as tropas francesas utilizavam perto de oitenta canhões de diversos calibres, e que os alemães dispunham de um poder de fogo quase igual. Calcule-se o barulho produzido por cerca de cento e cinquenta peças disparadas numa área de algumas centenas de metros; era um verdadeiro inferno. Até aí, eu tivera pouco contato com a artilharia e confesso que estava aterrado. Apesar de pouco entendido em estratégia, parecia-me que, tanto de um lado como do outro, estes bombardeamentos tinham como objetivo reduzir ao mesmo tempo os pontos de resistência da crista e impedir o reabastecimento que poderia surgir-lhes pelas costas. Mas fosse qual fosse a sua origem, estes tiros eram de uma imprecisão espetacular. Não consegui ver nem fogo de barragem nem concentração em nenhum ponto do combate. Os tiros perdiam-se numa profundidade de várias centenas de metros, e alguns obuses franceses dirigidos à vertente italiana, ou talvez mesmo ao cume de Clairy, vieram explodir a umas dezenas de metros de mim. O barulho ensurdecedor destas explosões e a desagradável impressão que eu sentia por estar sujeito ao arbítrio de uma força descontrolada causaram-me um pânico como nunca sentira em toda a minha vida.

Entretanto, as tropas de reconhecimento do 11.º e do 15.° batiam-se heroicamente na aresta para tentarem expulsar os alemães dos pontos que eles defendiam; houve muitos mortos e feridos.

Apesar destes sacrifícios e da coragem das nossas tropas, o inimigo continuava senhor da ponta de Clairy e de mais de metade da aresta de Sollières. Era evidente que não conseguiriam eliminá-los das suas posições; pior, os nossos homens, começando a faltar-lhes munições, corriam o risco de ser dominados por um contra-ataque e era de temer um desastre total.

Esta batalha da ponta de Clairy, em que tomei parte mais como espectador do que como combatente, fez-me uma profunda impressão, e foi com uma desagradável sensação de repugnância que desci para o vale, por entre as florestas calmas.

Louis Lachenal

Encontro com Lachenal

Nas planícies italianas, a Wehrmacht, submersa, estendia-se para norte na esperança de se juntar às montanhas da Áustria, e até mesmo de pedir asilo à Suíça. Os combatentes da frente dos Alpes, desejosos de se reunirem ao grosso do exército, tinham abandonado subitamente as suas posições. Sem esperar sequer por ordens superiores, Stéphane lançou a sua

companhia em perseguição dos fugitivos. Marchando muito à frente do resto do exército francês, combatendo ao lado do partisans italianos, conseguimos manter contato com o inimigo praticamente até Turim. Para mim, a guerra acabou a poucos quilômetros desta cidade, mais exatamente na aldeia de Robasomero.

Quando um dos meus companheiros me levou a notícia do armistício, eu errava, com o pensamento perdido, na orla de um bosque. O ar estava cheio de odor um pouco abafado daquela campina italiana onde o esplendor da Primavera raiava por todos os lados. Mil ruídos apenas perceptíveis se ouviam na noite e, lá em cima, as estrelas infinitas piscavam suavemente. Ao contato daquela grande paz da Natureza que fizera as alegrias da minha infância, eu procurava acalmar o meu coração, que os acontecimentos do dia tinham perturbado profundamente. Com o meu grupo, eu fora levar auxílio a um forte contingente de Garibaldini que tivera uma escaramuça com uma companhia da S.S. Mas havíamos chegado no fim da batalha e a nossa intervenção não influenciara em nada o seu desfecho. Todos os alemães tinham sido mortos em combate ou fuzilados. Entre os prisioneiros, os partisans tinham encontrado dois rapazes entre os doze e os catorze anos; eram, segundo parece, filhos de um oficial dos Camisas Negras que, perseguidos, tinham ido procurar refúgio junto dos S.S. Quando eu cheguei, estas duas desgraçadas vítimas da loucura do mundo acabavam de ser lançadas ao furor histérico de algumas megeras; estas puxavam-lhes os cabelos, davam-lhes bofetadas e atiravam-lhes pontapés selvagens. Todavia, as duas crianças lançavam olhares de animal perseguido que teriam abrandado corações de pedra. Revoltado com estas brutalidades indignas de pessoas que se batiam em nome da civilização, comecei a protestar. Mas alguns homens tisnados e com bigode, o pescoço atado com lenços vermelhos, com o cinturão pesado de granadas, pistolas e punhais que chegavam para meter medo a um exército, invetivaram-me com dureza. Pelo seu ar ameaçador, compreendi que me aconselhavam a meter-me na minha vida. Após um longo conciliábulo, sem fazerem o menor caso dos meus gritos de indignação, aqueles heróis de opereta agarraram os dois rapazes pelos ombros, obrigaram-nos a andar à força de pontapés, encostaram-nos a uma parede e descarregaram sobre eles várias rajadas de metralhadora. Este assassínio fora tão rápido e selvagem que eu não chegava a acreditar. Estava gelado de horror. Até ao fim da minha vida guardarei a redordação dos olhos esgazeados daquelas vítimas irresponsáveis. Naquele dia compreendi bem que, apesar de todo o seu luxo e todas as suas máquinas, o mundo moderno ainda não saiu da barbárie.

Sempre humano e psicólogo, Stéphane compreendeu que muitos de nós perdíamos no exército um tempo que podíamos empregar noutras tarefas mais úteis. E fez os possíveis por libertar os mais velhos.

Eu tinha então apenas vinte e quatro anos e era ainda muito jovem para ter a sorte de ficar livre, mas Stéphane, apesar do seu desejo de me conservar para o treino alpino da sua companhia, transferiu-me como instrutor para a Escola Militar de Alta Montanha que acabava de formar-se em Chamonix. Assim, podia satisfazer completamente a minha paixão pela montanha e voltar para a companhia da minha esposa, grande vítima daquele interlúdio militar. Aquele Verão de 1945 marcou um caminho decisivo no meu destino. O alpinismo, até aí o amor dominante de uma existência que procurava o seu norte, tornou-se a razão da minha própria vida: a minha paixão, o meu tormento e o meu ganha-pão.

O tempo estava excepcionalmente bom e seguro. Durante a semana, com os meus camaradas instrutores, conduzíamos todos os dias os alunos a uns quantos cumes. Sem serem de grande classe, estas travessias eram já compridas e difíceis, e aos sábados, depois de quatro ou cinco ascensões sucessivas, eu deveria ambicionar um justo repouso. Mas não; estas escaladas, longe de satisfazerem a minha paixão, exaltavam-na, e as minhas energias

intatas aspiravam aplicar-se em combates mais incertos. No fim da semana, às vezes sem arranjar tempo de passar por casa, com o primeiro camarada que estivesse disposto a seguir-me, tornava a partir para os cumes. Foi durante essa época de 1945 que fiz as minhas primeiras travessias com aquele que viria a ser o companheiro maravilhoso das minhas maiores ascensões alpinas: Louis Lachenal. Tinha-o conhecido no princípio da Primavera, quando, durante uma licença, parei em Annecy entre dois comboios. Sem saber como ocupar o tempo, caminhava pelas ruas quando um jovem pobremente vestido, empurrando um velho carrinho com uma das mãos e um pote de leite na outra, se aproximou de mim e olhando-me descaradamente perguntou:

"Na nossa frente, os Grandes Jorássios erguiam-se como uma cidadela gigante."

- O senhor não é Lionel Terray?

Aquele rosto magro e pálido onde brilhavam dois olhos muito vivos não era meu conhecido, e o aspecto miserável daquele rapaz deu-me por momentos a ideia de um vagabundo. Depois de responder afirmativamente, perguntei-lhe como se chamava. Respondeu que se chamava Lachenal e lembrei-me de súbito que, dois ou três anos antes, me tinha sido apresentado numa rua de Chamonix, mas o uniforme e o grande boné da J.M. davam melhor ar à personagem. Além disso, tinha ouvido falar muito nele ao meu amigo Condevaux de quem fora companheiro de alpinismo. Sabia que era um escalador excepcionalmente dotado, tendo sido o primeiro classificado no estágio de chefe de cordada em 1942, mas que depois se refugiara na Suíça para escapar ao S.T.O.

Convidei-o a tomar uma cerveja num bar próximo da estação. De espírito vivo e curioso, a resposta rápida, por vezes repassada de humor, Lachenal era bastante falador. O meu comboio só partia muito mais tarde e conversamos bastante. Fiz o elogio da vida apaixonante que levávamos na frente dos Alpes. Ele, pelo contrário, com um leve sotaque empregando um vocabulário bizarro, mistura de calão de Lausana e de dialeto da Sabóia, clamava com veemência o seu horror à guerra e ao exército. Explicou-me que estava sem trabalho e, enquanto esperava, ia "roendo uma pequena herança". A sua situação material, visivelmente penosa, parecia não o afetar muito.

- Tudo acabará por se arranjar - dizia ele -. Enquanto espero, vou poder fazer montanha. Tenho um companheiro que possui um carro e alguma massa. Todos os domingos fazemos uma travessia a Chamonix. Ah, se conseguíssemos as Agulhas do Diabo, isso é que era bestial.

O que mais o contrariava era a falta de material. Tinha um velho par de botas ferradas que ele próprio remendara:

"Tenho um amigo que é remendão, e vi como ele fazia. O trabalho não ficou nada mau." - Mas o seu maior problema eram as espadrilhas: só tinha uma. - "Não lhe podias arranjar uma irmãzinha?" -, exclamava ele com um riso alegre tirando de um cabaz das compras um velho sapato de tênis reforçado com alguns pedaços de couro.

Para falar verdade, durante este primeiro contato, Lachenal não me seduzira, porque, embora a sua paixão simples e ingênua pela montanha me parecesse simpática, o seu antimilitarismo e a sua maneira de falar irritavam-me. Depois disso, encontramo-nos muitas vezes. Sempre que atravessava a aldeia, ia visitar a velha quinta onde Lachenal alugara um quarto. Vivia ali com a mulher, chamada Adela, uma jovial filha de Lausana, de boa família, que casara por amor com aquele rapaz de tão modesta origem, e o filho pequeno, Jean-Claude, um bebê magnífico, cheio de vida e excepcionalmente barulhento. Descobri que, por detrás da sua fachada trocista, Lachenal escondia enormes qualidades, e em breve uma sólida camaradagem começou a formar-se entre nós. Uma sexta-feira anunciei-lhe que partia com J. P. Payot para fazer, no dia seguinte, a vertente norte da Agulha Verde e no domingo tentar a segunda ascensão da vertente leste da Agulha do Moine. Os seus olhos iluminaram-se com aquela chama de paixão de que só ele era capaz e gritou:

- Ah, mas que programa tão "legal". Importas-te que eu vos siga com o Lenoir? Também estamos livres e acho que somos capazes.

Lenoir era também monitor na U.N.C.M. Eu tinha feito uma escalada com ele alguns anos antes e aceitei de boa vontade fazer a travessia a quatro. Nessa época, eu não era certamente um bom escalador de rochas. Escalava menos mal em força e, à falta de um estilo elegante, era rápido e eficaz. Além disso, era do tipo desenrascado, como se diz em calão de alpinista, isto é, não perdia tempo com precauções e usava muito poucos pitões para me segurar em caso de queda. Nesse dia estava em ótima forma e subia muito depressa, mas Lachenal não parecia incomodar-se com a minha cadência. Mostrava-se tão brilhante nas rochas como no gelo. Muito descontraído, com uma agilidade de gato, trepava sem apoios e eu não podia deixar de admirar a sua facilidade. Chegados ao cume muito antes do que contávamos, fizemos uma longa pausa. Banhados pela luz no alto daquele extraordinário miradouro, não nos cansávamos de admirar o círculo sem rival que nos rodeava por todos os lados. Na nossa frente, os Grandes Jorássios erguiam-se como uma cidadela gigante, em desproporção com o resto do cenário. O nosso entusiasmo era sobretudo pelo espigão Walker, cujas muralhas negras e lisas se lançavam com um ímpeto de titã contra o céu, num pilar de

1100 metros de altura. Sabíamos que nesse mesmo dia Frendo e Rebuffat o tinham atacado. Parecia ainda coberto de neve e discutíamos apaixonadamente as suas probabilidades de êxito.

Lionel Terray atravessando uma cornija, para o filme Estrelas do Meio-Dia.

- Achas que com toda aquela neve eles conseguem passar?

- Com neve ou sem ela, não me parece que consigam; não têm classe para semelhante aventura. Quando me lembro de que Cassin levou três dias com tão boas condições, calcula tu! De qualquer forma, Cassin era outra coisa, era um dos tipos mais fortes que se viram nas Dolomitas. Basta ver o tempo que levaram quando fizeram uma tentativa há dois anos!... Um dia inteiro para subir pouco mais de um quarto da parede e ainda por cima porque partiram do caminho já feito pela tentativa Allain. Mas se tivessem seguido o caminho Cassin desde a base, tinham levado dois dias; a esse ritmo, para saírem, levam uma semana e, à menor surpresa, estão "tramados".

- Então parece-te que eles não passam?

- Nunca se sabe, com tempo tudo se consegue, e o Gaston, lá isso, tem fibra, mas a mim parece-me que a Walker é uma travessia três pontos acima de tudo o que há no maciço.

- Afinal, tu não sabes nada. Todas essas histórias dos conquistadores das Dolomitas podem ser conversa. Já lá foste ver alguma vez?

- Não, nem tenciono ir nunca.

- Mesmo que eles consigam?

- Ah, nesse caso, muda tudo de figura; mas o problema era encontrar um companheiro à altura... Estavas interessado em ir comigo?

- Que pergunta! Isso era ótimo; fazer a Walker é o meu sonho. Mas achas que eu podia? Ainda não fiz nada de verdadeiramente sério.

- Claro que não tens muita experiência, mas eu vi-te durante estes dois dias; tens qualidades que até parece impossível. De acordo, se eles conseguirem, vamos.

Foi assim que naquele modesto cume se formou a associação fraterna que nos daria a vitória nas grandes paredes dos Alpes.

Durante o Outono, o exército resolveu dispensar-me, e encontrei-me em enormes dificuldades materiais. Havia um ano que vivíamos do dinheiro da venda do meu gado, e fora só graças a uma economia rígida que o tínhamos feito durar até aí, mas havíamos gasto os últimos recursos. Com a chegada do Inverno, retomei o meu lugar de monitor de esqui nos Houches. O pós-guerra trouxera uma clientela bastante numerosa, e as minhas qualidades de esquiador sensivelmente superiores às de um monitor vulgar permitiam-me ter muitos alunos. Mas o preço das lições não tinha sido aumentado o suficiente, por isso, apesar de todo o meu trabalho, ganhava muito mal.

Já não morava nos Houches, onde tive de entregar a quinta aos proprietários, mas num pobre apartamento de Chamonix e tinha tão pouco dinheiro que, para ir de uma aldeia à outra, nem sequer podia tomar o comboio. Todavia, lembro-me de que o preço da passagem era apenas de 10 francos antigos - mas nesse tempo 10 francos ainda era muito dinheiro.

Apesar do frio e da neve, de manhã e à noite percorria de bicicleta os nove quilômetros de estrada gelada que separam Chamonix dos Houches. Nos dias em que o tempo estava pior, tomava o comboio, mas para não pagar, sobretudo no regresso, quando fazia escuro, saltava para a carruagem em andamento, à saída da estação e, para descer, deixava-me rolar para um valado de neve no momento em que o comboio começava a abrandar. O U.N.C.M., onde

Lachenal trabalhava, mudara para a aldeia dos Bossons, a uns dois quilômetros abaixo de Chamonix. Todas as noites, no regresso, passava por lá e parava no velho palácio onde fora instalado o centro. No pequeno quarto onde vivia o meu amigo, em monte com a família, discutíamos durante horas os nossos projetos para o Verão.

A escalada do espigão norte da Walker ficara firmemente decidida e todas as nossas conversas giravam à volta da célebre muralha. Desde o princípio, pareceu-nos que, nas grandes ascensões, uma das principais perdas de tempo era devida às manobras de sacos. Era evidente que uma cordada que conseguia trepar normalmente sem nunca ter de içar os sacos à corda diminuía o seu horário pelo menos em 20 por cento. Mas como fazer para transportar material de bivaque suficiente, víveres e bebidas para três dias e trinta pitons sem que o peso dos sacos fosse tão grande que seria impossível fazer a difícil escalada conservando-os às costas? À primeira vista, parecia que encontrar a quadratura do círculo não era mais difícil. Estudando a coisa mais de perto, descobrimos que essa impossibilidade era apenas aparente e que uma preparação minuciosa permitiria reduzir consideravelmente o peso das cargas. Pesamos cada um dos objetos a transportar, eliminamos tudo o que não era absolutamente indispensável e, não sem surpresa, pareceu-nos que cerca de doze quilos permitiriam uma autonomia de três dias. Decidindo, a priori, que a travessia não durava mais de dois dias, poderíamos reduzir ainda o peso de dois quilos.

Mesmo numa escalada difícil, transportar dez quilos é viável para o segundo da cordada, que tem sempre a possibilidade de se auxiliar da corda; mas ainda resulta bastante pesado. Este arriscava-se a cansar-se mais do que seria aconselhável e a velocidade do seu avanço ressentir-se-ia. Que fazer para diminuir ainda este peso, sem expor a cordada a uma grande insegurança? Foi escusado analisarmos a questão sob todos os ângulos, pesar e tornar a pesar cada coisa, pois era evidente que, se quiséssemos conservar roupa suficiente para suportar, sem nos esgotarmos, um ou dois bivaques, comida e bebida bastante para manter as forças durante pelo menos dois dias e bastante material de escalada para fazer face às enormes dificuldades que nos esperavam, dez quilos era verdadeiramente o peso mínimo. A solução, aliás correta, surgiu-nos em breve. Escalar com um saco é extraordinariamente incômodo para o chefe, mas só quando a carga é pesada; três quilos não se sentiam praticamente e esta redução de peso seria muito sensível para o segundo que, com sete quilos, poderia subir normalmente.

O problema das cargas não era o único que nos preocupava. Conforme disse, o costume era ainda marchar com pesadas botas ferradas, que se substituíam por espadrilhas nas passagens de escalada rochosa. Além de estas botas serem pesadas demais para o transporte nas travessias como a Walker, onde alternam as passagens de gelo e de rocha, as mudanças de calçado faziam perder um tempo considerável.

Sabíamos que, já antes da guerra, os italianos tinham tido a ideia de substituir os pregos por sola de borracha moldada que permitia escalar nas rochas difíceis e avançar sobre a neve e o gelo sem mais incômodo do que com as solas antiderrapantes tradicionais. Tínhamos até lido que, colocadas em sapatos leves bem adaptados ao pé, estas solas Vibram permitiam vencer as passagens mais difíceis. Mas a prosperidade do pós-guerra ainda não tinha chegado. Na Itália, onde, como em França, muitas mercadorias de primeira necessidade faltavam, era muito difícil encontrar este artigo. De qualquer forma, não tínhamos dinheiro suficiente para ir comprar sapatos ao outro lado dos Alpes.

Na estação anterior, tinha-se divulgado entre os alpinistas franceses o costume de substituir as solas Vibram por bocados de pneu talhados num molde e aparafusados ao sapato. Apesar de bastante escorregadios no gelo, estes substitutos davam bom resultado. Eu próprio os tinha experimentado, mas, colocados em vulgares botas demasiado pesadas, grossas e mal ajustadas ao pé, estes sucedâneos de Vibram não me tinham permitido a mesma ligeireza que com as espadrilhas. Contudo, parecia-me que este incômodo resultava mais das minhas botas demasiado pesadas e volumosas do que das próprias solas, e ficara com a convicção de que, colocadas numa bota leve, apertando bem o pé, seria possível fazer toda e qualquer escalada de rocha, por mais difícil que fosse, sem ser preciso usar pregos nas passagens de neve ou nas zonas glaciares.

Mas nenhum tipo de botas à venda satisfazia. Eram todas muito largas, muito moles ou pouco sólidas. Foi então que surgiu o talento de sapateiro de Lachenal. Partindo da minha ideia de realizar qualquer coisa entre a espadrilha e a bota que pudesse ser usada com eficácia em todos os terrenos, com uma extraordinária habilidade, fabricou sozinho dois pares de botas que eram mais ou menos iguais às que todos os escaladores usam hoje. Experimentadas nos primeiros dias de Primavera, pareceram corresponder inteiramente à nossa expectativa. Na escalada rochosa, como a maior rigidez da sola tornava possível a utilização das menores asperezas, permitiam até uma agilidade superior à conseguida com as espadrilhas.

Graças aos aperfeiçoamentos acrescentados à tática e ao material, a esperança de vencer a Walker apenas com um bivaque começou a germinar dentro de nós. No Colégio de Praz, Lachenal encontrara possibilidades de treino e condições psicológicas ideais para o desenvolvimento das suas qualidades de alpinista e mesmo da sua personalidade humana. Aperfeiçoava-se depressa e a sua excepcional classe apresentava-se plenamente à vista. No dia 3 de Agosto, quatro dos melhores alpinistas parisienses, animados por Pierre Allain, subiram ao refúgio de Leschaux. Mas, mal preparados moralmente e fisicamente esgotados por uma série de travessias demasiado longas, não pensamos em segui-los. Sem condições para atacar a Walker, voltamo-nos para o pico norte das Droites, mais ao nosso alcance. Esta ascensão tão alta como a Walker só tinha sido feita três vezes, e nenhuma cordada conseguira passá-la num dia. Graças a condições muito favoráveis e à nossa ótima preparação física, oito horas apenas após o ataque pisamos o cume; dali, completamente transportados pela alegria do êxito, precisamos apenas de uma hora para atingir o refúgio do Couvercle.

Todavia, o brilhante triunfo das Droites não nos cegou. Tínhamos perdido a confiança e decidimos empregar os nossos dias de liberdade a ganhar um pouco de dinheiro extra.

O relato que nos fizeram os parisienses no regresso da sua magnífica aventura mudou um pouco as minhas ideias a respeito da travessia. Fiquei com a convicção de que era possível não bivacar senão a poucas horas do cume, talvez até mesmo não bivacar. Estas perspectivas começaram a reanimar a chama quase apagada dentro de mim; as exortações de minha mulher fizeram o resto. Ela tinha então uma confiança tão grande nas minhas capacidades de alpinista que não duvidava um segundo que eu teria um êxito fácil.

Por isso, longe de tentar dissuadir-me, como fez algumas vezes mais tarde, espicaçava-me um pouco para eu me resolver a partir.

Eu tinha nessa altura uma semana de férias e telefonei para Monvers a fim de me encontrar com Lachenal; infelizmente o meu companheiro só estava livre a partir de quinta-feira ao meio-dia. Preparei as cargas com cuidado; conforme estava previsto havia muito tempo, para subir com o saco às costas não levávamos mais de três quilos para o chefe e sete a oito para o segundo da cordada. Na quinta-feira encontrei Lachenal fatigado, e com razão: tinha feito nesse mesmo dia Charmoz-Grápon, e na véspera Blaitière-Ciseaux-Fou. Apesar da minha impaciência, foi preciso conceder-lhe um dia de repouso, dia que quase nos foi fatal. À tarde, o tempo começou a inquietar-nos, mas na manhã seguinte o céu estava de novo calmo. Assim, a subida a Leschaux, na sexta-feira, efetuou-se com um belo sol e numa atmosfera de confiança e de alegria ruidosa. Fazíamos frequentes paragens, a fim de admirarmos demoradamente a nossa vertente, mais bela que nunca naquele dia luminoso. Finalmente, íamos realizar o nosso sonho, viver essa grande aventura tão ardentemente desejada, tão religiosamente preparada. Ela ia ser nossa, essa altiva e selvagem parede que havia anos nos desafiava de todos os lados do horizonte, perseguindo-nos como um remorso. Ah, como é bom viver quando a montanha resplandece sob os raios de Sol e a esperança nos sorri!

Para a tarde, o tempo piorou de novo, mas tinha acontecido tanta vez nos dias

anteriores que nos deitamos com uma inquietação misturada de esperança. Pela primeira vez na minha vida dormi mal na véspera de uma travessia. Não sentia propriamente medo, mas uma ansiedade semelhante à do jogador que arriscou a sua fortuna. Não analisava nada, não pensava nem nos perigos nem nas alegrias, via passar o tempo com impaciência, dizendo para comigo: "Como vai ser?"

À uma hora da manhã, a partida parecia começar mal. O céu apresentava-se negro como tinta, mas para nós não estava perdida toda a esperança. Quantas vezes não tínhamos visto o vento mudar com a aproximação da aurora? Às duas e meia, nada mudara. A impaciência fazia-nos perder a cabeça e a nossa decepção rebentava em blasfêmias. Era melhor abandonar as travessias de amador e ir para a cama! Mas não fazíamos nada. Não podíamos acreditar que todos aqueles cuidadosos preparativos, todos os sacrifícios, desejos e sonhos acarinhados durante tanto tempo não dessem nenhum resultado. Às três horas e um quarto, a sorte mudou: a atmosfera ainda estava pesada, mas as estrelas brilhavam em muitos pontos do céu. Partimos sem demora, andando depressa e sem pensar noutra coisa senão em ganhar o tempo perdido. Quando atingimos a parede, era dia. O tempo fez-nos hesitar. No nosso campo visual, a norte e oeste, o céu estava de um azul puríssimo, mas grandes nuvens pouco simpáticas envolviam a nossa montanha. Que fazer? Renunciar? E se o tempo se mantém, arrependemo-nos: a Walker ficaria perdida para nós naquele ano - na semana seguinte tínhamos que voltar ao trabalho - e quem sabe, talvez para sempre, porque sabe-se lá o que nos reserva o futuro? Subir? Mas se o tempo muda seremos apanhados pela tempestade, imprudência que pode custar-nos cara. Resolvendo pelo meio termo, subimos até à passagem chamada Pêndulo e, se o céu não ficar limpo daqui até lá, atravessá-lo no dia seguinte, se o tempo estiver bom. Às cinco e dez passo o glaciar, com três quartos de hora de atraso sobre o horário previsto. Avançamos depressa em terreno fácil. O diedro de 30 metros atinge-se muito mais cedo do que contávamos. Não sou brilhante nesta parede vertical, com pontos de apoio raros e mal distribuídos. Sinto dolorosamente a falta de treino e as cãibras nas pernas e nos braços incomodam-me muito, obrigando-me a descansar constantemente em cada piton. Quando, após mais de hora e meia de trabalhoso avanço, chego finalmente, estou completamente desmoralizado; por isso proponho a retirada, alegando que não temos nem classe, nem treino para semelhante travessia. Lachenal, mais otimista, explica-me que eu demoro sempre a aquecer, que esta passagem é, em princípio, a mais difícil, enfim, que a escalada exterior na parede vertical nunca foi boa para mim: diz-me tanta coisa que finalmente me resolvo a ir um pouco mais longe.

Apesar de um ligeiro erro de itinerário, como o terreno se tornou mais fácil chegamos rapidamente ao famoso diedro chamado de "noventa metros". Acho que tem um aspecto quase acolhedor: muito alto, formando um ângulo reto, quase nunca é vertical; uma fina brecha que o percorre de alto a baixo garante um avanço certo. A primeira enfiada de corda confirma a minha impressão favorável. Em poucos minutos de uma boa escalada, encontro-me no fim do primeiro troço da subida, onde Lachenal chega imediatamente. Este terreno convém-me e inicio a segunda enfiada de corda, cheio de confiança. No meio, uma pequena cornija precisa de um estribo e da colocação de um piton em posição difícil, mas encontro uma boa cadência, e o obstáculo é ultrapassado rapidamente. O terceiro terço, o mais firme e mais bonito, é subido com entusiasmo, quase em corrida. No espaço de uma hora, atravessamos ambos a passagem. A beleza desta escalada e a alegria um pouco vaidosa do êxito puseram-nos literalmente em transe. Assim, continuamos a tal ritmo que às 11 horas estávamos na passagem do Pêndulo. Enquanto instalávamos o dispositivo, fiz notar a Lachenal que o tempo, sempre na mesma, duraria provavelmente o dia inteiro, mas que não devíamos contar com tempo melhor no dia seguinte e por isso era absolutamente necessário atingir nessa mesma noite o segundo bivaque Frendo-Rebuffat, de onde, segundo Guy Poulet, devia ser possível sair mesmo com mau tempo. Lachenal, sempre otimista, responde que ao ritmo a que vamos já

temos a partida ganha, que levamos avanço em relação aos nossos horários mais optimistas e que não desiste de dormir na cabana dos Jorássios!

A Walker. A esquerda, via Cassin. A direita variante de saída Lachenal-Terray.

Ao meio-dia, chegamos ao primeiro bivaque Frendo-Rebuffat. A partir daí, o resto do itinerário parece-nos impossível. Não somos dos que se assustam com qualquer coisa, mas desta vez é demasiado. Só existe uma parede compacta e lá no alto, o céu. A poucos metros de nós, um piton com um mosquetão parece marcar a fronteira do possível. Atinjo-o com dificuldade, para "dar com o nariz na porta". Tento, sem êxito, atravessar à esquerda.

Finalmente, com esforços inauditos, ultrapasso a rocha em pendor que me domina, para me agarrar a uma estreita cornija inclinada onde consigo espetar um piton. Não me orgulho com isso, porque continuo a não encontrar solução. Finalmente, examinando a parede ligeiramente em pendor que está por cima de mim, vem-me à ideia que talvez, com um pouco de audácia, seja possível subir. Allain falou-me de um pendor muito difícil. É com certeza este. Faço subir Lachenal até o mosquetão, depois, sem hesitar, lanço-me com o corpo atirado para o vazio absoluto. Não sinto qualquer medo, mas a sensação maravilhosa de estar livre das leis da gravidade. Completamente descontraído, escalo com uma facilidade espantosa, agarrando-me confiante a pontos de apoio minúsculos. Não vejo o patético da minha situação. Digo simplesmente: "Se me largasse, as cordas partiam-se e ia esmagar-me lá em baixo, a 400 metros daqui." Penso isto como se não se tratasse de mim, mas de qualquer coisa sem valor. Já não sou o mesmo homem, aquele que, preso à terra por mil laços, me impunha os seus terrores e as suas fadigas com uma vontade constantemente limitada; a minha personalidade abandonou-me, os laços com a terra quebraram-se: já não tenho medo, nem fadiga; sinto-me como levado no ar; sou invencível, nada pode deter-me, atingi aquela embriaguez, aquela desmaterialização que procura o esquiador sobre a neve, o aviador no céu, o saltador no trampolim. Após quinze metros deste voo, consigo parar e espetar um piton. Verifico então que, mesmo por um ângulo, é impossível subir naquele sítio onde não há nenhum apoio ou brecha, porque desta vez é que não há nada... Mas estou enganado. À minha esquerda, aqueles apoios minúsculos vão permitir-me uma travessia digna do próprio Dulfer. Dito e feito. Algumas explicações a Lachenal que, lá em baixo, entre as minhas pernas, olha para mim com ar inquieto, depois, seguro à rocha pela corda tensa e largada devagar, desafiando as leis do equilíbrio, atravesso a parede e consigo finalmente agarrar-me a um bom apoio. Contorno uma pequena aresta e... milagre! Encontro uma plataforma larga como uma cadeira: depois, alguns metros mais acima, um piton. Subo até ele, passo as cordas e torno a descer. Lachenal escala rapidamente até à base, hesita um instante, depois avança para mim num pêndulo audacioso. Um pouco inquietos, observamos o tempo. O nosso horizonte continua limpo, mas as nuvens que envolvem a nossa montanha engrossaram mais e aproximam-se de nós de maneira inquietante. É preciso andar depressa!... Continuamos por um sistema de lajes, cortado por paredes, que se desenvolve da esquerda para a direita e permite contornar a muralha inexpugnável da torre cinzenta. É a mais bela escalada que se possa imaginar. A rocha é magnífica, difícil, mas sem ser invencível. Escalo como nunca escalei antes: rapidamente, sem hesitações, sem um erro. As minhas mãos parecem adivinhar os apoios. O nosso avanço parece mais um bailado bem ensaiado do que uma simples escalada. Às três horas, conseguimos chegar finalmente ao bivaque Allain que, com os seus dois metros de largura, nos parece uma avenida em comparação com as raras e estreitas cornijas que encontramos até aqui.

O desenho que me deu Guy Poulet, infelizmente a única indicação que trouxemos, menciona um leve gancho à direita: "Lajes fraturadas." Examinando o que conseguimos ver através do nevoeiro, concluo que se deve tratar das lajes que ficam à nossa direita. Por um instante não penso escalar a rocha em pendor que nos domina. Duas enfiadas de corda cuidadosas para a direita levam-nos a um sistema de brechas que cortam enormes lajes negras. Não são cômodas aquelas brechas, nada cômodas! Tenho de lutar a fundo, e, contudo,

estou em excelente forma. Elevamo-nos com dificuldade procurando voltar à esquerda. Mas somos constantemente arrastados para a direita. Isto torna-se inquietante, porque o desenho não indica estas dificuldades. Após várias enfiadas de corda, acabamos por chegar a uma laje lisa. Impossível subir mais! Sentimo-nos em maus lençóis. Só nos resta descer, mas que perda de tempo! E encontraremos outra passagem? Bruscamente, o nevoeiro rompe-se e vemos à nossa direita um corredor de aspecto relativamente fácil. De repente, vejo a solução: seguir o corredor e chegar assim à zona de neves que atravessa a parte superior da vertente. Uma descida em chamada pendular leva-nos até ao corredor, e este apresenta-se muito mais fácil do que parecia. A inclinação é de cerca de 60 graus. A rocha, uma espécie de xisto de bicos revirados, pequenos e quebradiços, é tão rija que se torna quase impossível espetar pitons. Apesar de tudo, é preciso subir, e depressa. Iniciamos uma perigosa subida em suspenso naquele terreno onde a segurança é ilusória. Avançamos, mas o tempo avança mais depressa do que nós.

O crepúsculo, juntamente com o nevoeiro, já não nos deixa ver a mais de um ou dois metros. A noite irá surpreender-nos neste corredor? Vamos ter que passar a noite agarrados a apoios de um centímetro quadrado sem ao menos um piton a amparar-nos? Do lado direito da aresta sai uma rocha do tamanho da cabeça de um homem. Aquilo pode, verdadeiramente, servir de assento. Retirando a neve em toda a volta, encontramos uma ranhura para espetar um sólido piton, depois conseguimos deslocar uma pedra que, habilidosamente disposta, duplica a superfície do nosso hotel: este mede agora 40 centímetros por 30! Enfiamos a roupa de bivaque: camisola de penas e capote impermeável.

Lachenal dispõe, além disso, de um pé de elefante que eu substituo por um par de meias por cima das botas e enfio os pés no meu saco.

Mal nos instalamos desencadeia-se uma violenta tempestade, projetando pedras de granizo do tamanho de berlindes, que nos obrigam a proteger a cabeça com as mãos. Felizmente este tamanho anormal diminui depressa. Aproveito para me atirar à comida, absorvendo vorazmente toucinho, manteiga, queijo, ovomaltine e frutos secos. Lachenal não tem fome, mas obrigo-o a alimentar-se um pouco. Verdadeiras torrrentes de granizo correm de ambos os lados da nossa aresta: apesar de estarmos fora da torrente, temos a cada instante que varrer a camada que se acumula nas nossas costas e nos empurra para o vazio. Apesar dos elementos desencadeados, apesar do granizo que não pára, arrastando pedras cujos estalos se juntam ao barulho do trovão, apesar da nossa posição quase insustentável, agarrados um ao outro, sentados numa nádega e os pés pendurados no vazio, a noite avança.

Pela manhã, tendo abrandado a tempestade, apesar do frio intenso, acabamos por dormitar. Quando rompe a aurora sobre um dia sombrio e glacial, a situação aparece-nos pela primeira vez sob um aspecto verdadeiramente dramático. O nevoeiro, envolvendo e deformando tudo, impede de determinar a nossa posição, mesmo de maneira aproximada. A continuação do corredor é do mesmo gênero da parte que subimos na véspera. Mas o granizo ficou ali pegado e o frio intenso da manhã solidificou tudo, formando uma carapaça de gelo. Logo aos primeiros metros, verificamos que é impossível trepar com as solas Vibram. Por sorte, seguindo os conselhos de P. Allain, trouxe um par de grampons. Só há uma solução: escalar aquelas lajes com os grampons, tentando puxar para a esquerda, para encontrar o bom caminho. Sem abandonar o material de bivaque, inicio o combate com a energia que dá o desespero. Apesar de uma noite muito difícil, estou em boa forma. De repente, a escalada torna-se muito melindrosa e perigosa; os pés só se aguentam pelas pontas anteriores dos grampons, colocados em apoios por vezes minúsculos. As mãos, dormentes de frio, soltam-se dolorosamente dos apoios e das fendas necessárias ao avanço. Os pitons nunca se espetam mais de um centímetro e aguentam-se tão mal que Lachenal os arranca negligentemente à mão. O nosso avanço é um esforço contínuo. Tenho que me empenhar a fundo e mal consigo ajudar o meu companheiro a manter o equilíbrio, muitas vezes comprometido pelas derrapagens das suas solas de borracha. É sem dúvida à sua grande classe que podemos atravessar esta zona onde eu não conseguiria resistir à menor queda.

Quando faz bom tempo no vale, os cumes podem estar envoltos em nuvens. As condições de escalada tornam-se excessivamente perigosas pela falta de visibilidade.

Finalmente, acabamos de chocar numa parede vertical, cortada por uma espécie de vasta chaminé. A pequena seção que vemos parece-nos possível de subir, e vamos enterrar-nos no fundo desta brecha. Aproveitando a segurança da nossa posição, lançamos um olhar para trás de nós. Como o nevoeiro se levantou, podemos avaliar o nosso erro e gravar na nossa memória a imagem do mundo fantástico que acabamos de atravessar. A escalada

continua, sempre desesperada. É uma sucessão de chaminés em cornija atulhadas de enormes blocos instáveis e de estreitos corredores de aspecto enganosamente fácil. As chaminés, desagradavelmente inclinadas, exigem grandes esforços e é muitas vezes necessário recorrer à escalada artificial. A rocha desagrega-se e os pitons seguram-se mal. Assim, é preciso às vezes meia hora para fazer alguns metros. Nestas passagens, a situação de Lachenal é de longe menos invejável. A cada instante, ele quase é atingido pelas pedras que, apesar de todos os meus esforços, não consigo impedir que caiam. A sua extraordinária ligeireza permite-lhe evitá-las, mas uma delas, mais grossa do que um punho, atinge-o na cabeça, e só por milagre o deixa inanimado apenas dois bons minutos. Por vezes, é obrigado a passar uma hora agarrado a um piton pela cintura, torcido pelas cãibras e privado do calor moral que o ardor da luta dá ao chefe. Mas é admirável neste papel obscuro e heróico: a tremer de frio, evitando as pedras, sorridente e jovial, encoraja-me constantemente, falando sem cessar de uma certa patuscada que havemos de fazer em breve. Finalmente, o nevoeiro que nos envolve dissipa-se um instante. Alguns metros abaixo de nós vejo deslizar as nuvens empurradas por um forte vento do sul. A crista está portanto ali, acima daquele pendor: mais 20 ou 30 metros e conseguimos. De repente, os meus nervos, tensos demasiado tempo, abandonam-me. Bruscamente, descubro todos os perigos que me cercam e sinto um medo atroz. O cansaço e a vertigem paralisam-me. Estes últimos metros, contudo bastante fáceis, parecem-me os mais difíceis. Só graças a um grande número de pitons consigo içar-me até ao cume. Sob as rajadas de uma ventania violenta, atiro-me à aresta nevada. Não tenho nenhum sentimento preciso, apenas a impressão de viver o fim de um sonho renovado a cada passo. Assim, meses de preparação e de sonhos encontram o seu desfecho nesta aresta anônima, que o meu coração recebe quase com indiferença. Mas não é certo que a felicidade está no desejo e não na posse? A aventura terminou. Voltou-se uma página da minha vida. Cambaleando um pouco, afasto-me, envolto no nevoeiro.

A vertente norte do Eiger

A imensa muralha norte do Eiger, mais conhecida pelo nome de Eigerwand, é a mais alta, a mais célebre e a mais perigosa parede dos Alpes. Situada em pleno coração do Oberland de Berna, numa base de mais de 1600 metros, ela ergue os seus flancos negros e lisos acima das verdejantes pastagens de altitude do vale do Grindelwald. Hoje, à custa da vida de dezessete alpinistas, esta vertente incomensurável foi vencida dezessete vezes.

Em 1946, ela apenas conhecia uma ascensão. Só depois de inúmeras tentativas, durante as quais oito homens encontraram a morte, em 1938, em três dias de luta desesperada, quatro escaladores austro-alemães tinham conseguido vencê-la.

Esta vitória é, sem dúvida, a maior que o homem conseguiu sobre os Alpes.

Finalmente, a perseverança dos homens foi recompensada. Nos dias 21, 22, 23 e 24 de Julho de 1938, os austro-alemães Andreas Heckmair, Ludwig Vorg, Heinrich Harrer e Fritz Kasparek escalavam, pela primeira vez, a gigantesca vertente noroeste do Eiger.

Tendo sabido que Vorg devia partir para o Himalaia, Heckmair entendeu-se com Rebitsch para formar cordada com ele. Finalmente, foi Rebitsch e não Vorg que escolheram para o Himalaia e só muito pouco tempo antes da sua ascensão os dois homens se conheceram e decidiram associar-se. No dia 20 de Junho, encontraram-se no Kaisergebirge e começaram o treino.

Marcou-se a data de 10 de Julho para a partida para a Suíça, mas foi-lhes moralmente muito custoso manterem essa decisão, porque as cartas vindas de Grindewald os informavam diariamente que a cordada de Kasparek e várias outras já estavam a manobrar. Quando o treino lhes pareceu suficiente, dirigiram-se a Munique a fim de comprar o material necessário para a expedição e, graças à organização do Orgenburg-Sonthofen, que os subsidiava, puderam equiper-se de forma perfeita.

Finalmente, os nossos dois homens chegaram à base da parede e instalaram o seu acampamento nas pastagens de Alpinglen.

A vertente norte do Eiger. É a parede mais difícil dos Alpes. Muitos alpinistas morrem ali antes de a vencerem.

Depois de esperarem pelo bom tempo durante alguns dias, a 20 de Julho atacaram, mas, devido à pesada carga, tiveram que parar na base da Rote Fluh e bivacaram numa escavação.

No dia seguinte, o tempo estava pouco seguro e os alemães preparavam-se para descer quando viram chegar Kasparek e Harrer, seguidos daí a pouco pelos vienenses Fraisl e Brankowski. A chegada inesperada destes quatro alpinistas não os fez alterar os planos. O

tempo estava demasiado incerto e, além disso, achavam impossível aventurarem-se seis numa parede como o Eigerwand. Mas, para usar a sua própria expressão, "à medida que desciam, o tempo ficava cada vez mais bonito e a cara deles cada vez mais comprida", e foi completamente desesperados que às 10 horas se encontraram na base da parede.

De Alpiglen, puderam seguir a escalada dos quatro vienenses e verificar o seu avanço muito lento, seguido em breve da retirada da cordada de Brankowski, que fora ferido por uma pedra. Tomaram a decisão de atacar de novo. Depois de telefonarem para Berna a fim de saberem as previsões meteorológicas, passaram a tarde a encherem-se de comida, depois deitaram-se até às 2 horas da manhã. Às 3 horas estavam em plena ação, avançando a uma velocidade fantástica. Às 4 horas chegavam ao lugar do bivaque. Às 8, a travessia Hinterstoisser terminara. Às 11, chegaram ao local do bivaque de Kasparek, situado na parte oriental da segunda vertente gelada. Finalmente, graças aos degraus recentemente talhados, juntaram-se aos austríacos às 11.30 h. Após uma curta discussão, as duas cordadas decidiram unir-se e a progressão seguiu regularmente. Às 2 horas da tarde, os nossos quatro homens atingiram o ponto terminal das tentativas, isto é, o espigão rochoso que divide a grande zona de neve endurecida em duas partes distintas. Depois de um pensamento para Sedlmayer e Mehringer, a cordada retomou a sua marcha para a parte oriental da Gelbewand, onde se situa a passagem que lhes parecera, com razão, a mais favorável.

Esta passagem, a que chamaram a Rampa, apresenta-se sob a forma de uma varanda ascendente. Ao princípio, não encontraram dificuldades notáveis. A seguir, a rampa termina numa cova de onde sai uma chaminé vertical que termina em brecha. O lado direito é um pendor amarelo e quebradiço que eles julgaram intransponível. O outro lado da chaminé é liso e vertical. Naquele dia, uma torrente caudalosa corria por essa brecha. Como eram 7 horas da tarde e já não se podia atravessar aquela passagem antes da noite resolveu-se bivacar.

No dia seguinte, às 7 horas, a escalada continuou pela chaminé, onde o gelo substituíra a torrente. Só depois de uma luta desesperada contra o gelo se conseguiu a passagem. Foi apenas graças ao emprego da técnica moderna, em especial a caminhada sobre pitons para gelo, que eles venceram.

Acima da chaminé que os separava em duas zonas bastante distintas, a Rampa continuava sob a forma de uma rija vertente de gelo. Assim que puderam, os escaladores abandonaram-na para atravessarem, na direção oeste, com o fim de atingirem a Aranha. Depois de seguirem por um caminho de rochas extremamente lisas, atravessaram uma parede de vinte metros muito melindrosos, depois outro longo caminho aberto; por fim, atingiram a Aranha. O tempo, que tinha estado bom até então, acabava de ficar encoberto. Daí a pouco começou a tempestade. Ansioso por conhecer a parede até ao ponto mais alto possível antes do mau tempo, Heckmair decidiu separar-se temporariamente dos austríacos que, menos bons no gelo, o atrasavam na marcha.

Escalou a Aranha servindo-se dos ganchos e acabava de atingir o corredor central quando a tempestade se desencadeou. Pouco depois, uma avalanche de granizo varreu toda a nevada.

Os alemães, que só tinham escapado graças a uma posição favorável, pensaram que os camaradas eram arrastados, mas, por milagre, estes tinham-se aguentado com a ajuda de um piton para gelo enterrado oportunamente. A tempestade durou pouco, de forma que, apesar de uma ferida na mão de Kasparek, as cordadas puderam juntar-se e continuar a progressão pelo corredor central, muito rijo e coberto de gelo.

Finalmente, a caravana encontrou uma plataforma bastante má onde se abrigou para bivacar. A noite foi muito difícil. Os homens, alguns dos quais tinham já bivacado duas vezes, começavam a ressentir-se dos esforços terríveis exigidos pela escalada; mas sobretudo sofriam uma grande angústia. A neve caía em grossos flocos e tinham o direito de perguntar se, em tais condições, podiam manter a esperança de saírem vivos daquela parede. A última jornada foi verdadeiramente dramática. Embora o terreno não seja em si próprio de extrema dificuldade, as condições eram tão más que Heckmair escorregou várias vezes. A última queda foi quase fatal, porque torceu o tornozelo e atravessou a mão de Vorg com um dos seus grampons. Às dificuldades da escalada juntava-se o perigo das avalanches que, periodicamente, varriam o corredor. Apesar dos numerosos pitons espetados para segurança e

embora o ritmo das avalanches tivesse abrandado, a cordada esteve quase a ser levada por duas vezes. Por fim, ao corredor seguiu-se a vertente terminal. A inclinação diminuiu. Chegaram ao pico da aresta.

Uma cordada em ação. Repare-se na atitude do alpinista que segura o companheiro.

Graças à coragem e à técnica admirável de quatro homens, o maior problema dos Alpes fora resolvido. Depois dos nossos êxitos da estação de 1946, Lachenal e eu tínhamos tomado consciência das nossas possibilidades. A partir de então, sabíamos que técnica e moralmente estávamos suficientemente aptos para tentar repetir a exploração dos austro-alemães no Eigerwand e tínhamos decidido tentar a aventura na estação seguinte. Mas, no mês de Novembro, tudo foi alterado devido a um estúpido acidente. Eu feri-me gravemente na mão direita com um vidro partido; o tendão do dedo indicador ficou cortado e, tendo surgido uma grave infecção, quase perdi o uso da mão. Após tratamentos enérgicos que me retiveram mais de um mês no hospital, encontrava-me com o dedo quase paralisado e uma capacidade de pressão bastante diminuída. Fora evitado o pior, visto que, apesar desta deficiência, era certo que podia continuar a exercer a minha profissão de guia. Em contrapartida, parecia pouco provável que, assim diminuído, ainda fosse capaz de praticar a escalada de rochas difíceis porque, como é de calcular, estes exercícios de acrobacia exigem uma grande força de dedos. De qualquer forma, se uma paciente reeducação podia tornar a coisa possível após alguns anos, a ideia parecia posta de parte para a estação seguinte.

Fazendo das tripas coração, abandonei todos os projetos das grandes ascensões e decidi aplicar a minha energia na construção de uma vivenda.

Mas Lachenal não era da mesma opinião. Tendo tomado consciência do seu valor e cheio de uma prodigiosa vitalidade, queria a toda a força tentar o Eiger. Sentindo-se capaz de dirigir toda a travessia, pensava que, mesmo com a mão estropiada, eu seria um aceitável segundo da cordada. Começou a convencer-me disso, recebendo aliás ajuda muito eficaz por parte de minha mulher. Com efeito, esta andava muito aborrecida por me ver renunciar, aos vinte e cinco anos, à minha paixão das grandes travessias para me meter na profissão ignorada de guia tradicional. Esperava que um êxito no Eiger - do qual, com admirável inconsciência, não duvidava um segundo - avivaria o meu entusiasmo e me permitiria recomeçar. Não se passava um dia sem que Lachenal ou Marianne e às vezes os dois ao mesmo tempo não procurassem convencer-me a retomar os treinos antes de estar apto para tentar o Eigerwand. Na esperança de me tentar, foram ao ponto de pregar uma fotografia da célebre parede em frente da minha cama.

Quando chegou o mês de Maio, apesar dos exercícios de reeducação, continuava com a mão muito fraca e o dedo indicador extremamente sensível ao frio. Por isso, longe de ganhar um moral de conquistador, dedicava-me com força à construção da minha vivenda. Mas o tempo tornou-se magnífico e as condições da montanha ideais para as grandes travessias no gelo. Quando, ocupado em obscuras e difíceis tarefas de terraplenagem, me levantava um momento para respirar, não podia deixar de ver as agulhas que, como sereias de rocha cintilante no azul diáfano do céu, me faziam misteriosos apelos. A pouco e pouco, a nostalgia do mundo dos cimos penetrou-me no coração e quando, no fim do mês, Lachenal me veio propor tentarmos a terceira ascensão da vertente do Nant Blanc da Agulha Verde não pude resistir à tentação daquela ótima e difícil ascensão glaciar.

Apesar dessa fraqueza, não esquecia a construção da minha vivenda; antes de concordar em acompanhar o Louis, obriguei-o a prometer que, em compensação do dia de trabalho perdido, ele viria depois ajudar-me outras tantas horas. Além disso, só abandonei as obras no fim da tarde de trabalho.

Após uma rápida ceia e uma subida em bicicleta, só às 19.30h saímos da aldeia de Tines, onde começa o caminho. Mais de três horas de marcha aos solavancos por vertentes

abruptas cobertas de rododendros levaram-nos a um local de bivaque muito perto da parede. Cerca de cinco horas mais tarde, foi preciso tornar a partir. Logo aos primeiros passos, as condições apresentaram-se excepcionalmente favoráveis. O corredor de ataque, apesar de ser um dos mais lisos dos Alpes, estava completamente coberto de neve dura, tornando a escalada com piolets segura e rápida. Como quase sempre, Lachenal ia desabalado e subíamos a toda a velocidade, sem tomarmos precauções. Após o primeiro quarto de muralha, uma curta passagem de rocha nevada quebrou por momentos o nosso ímpeto; mas, daí a pouco, uma camada de neve favorável permitiu-nos retomar a nossa louca travessia. A partir daí estávamos seguros de sair de dificuldades antes que o Sol viesse amolecer a neve. Esta ascensão era a primeira do ano. Graças ao esqui de Inverno e aos rudes trabalhos da Primavera, encontrava-me em excelente forma física, mas a falta de treino de alta montanha não me permitia fazer esforços prolongados tão facilmente como em plena estação. Após uma noite quase em claro e mais de duas horas de escalada em passo de marcha, começava a sentir os membros extremamente fatigados. Não vendo a utilidade de trepar à velocidade de um homem perseguido, sugeri que abrandássemos a marcha. Mas, embora também se tratasse da sua primeira travessia, Lachenal, como se fosse de ferro, continuava insensível ao cansaço. Transportado naquela espécie de estado de graça que torna possíveis os milagres, em vez de abrandar, acelerava ainda mais, censurando a minha moleza. Galvanizado por tanta energia, esforçando-me como um animal, consegui seguir menos mal o meu amigo. Naquele ritmo, bastaram-nos pouco mais de quatro horas para atingir a fácil calota terminal. Foi então que se deu um fenômeno curioso. Tendo abrandado a tensão nervosa, os efeitos da altitude fizeram-se sentir subitamente nos nossos organismos insuficientemente preparados. Abateu-se sobre mim uma imensa fadiga e a vitalidade sobre-humana de Lachenal extinguiu-se como uma vela ao vento; ainda mais vencido do que eu, o pobre mal se tinha de pé. Estávamos tão fracos como bebês, não conseguíamos dar mais de vinte passos sem nos afundarmos na neve.

No fim de contas, foi preciso mais de três vezes o tempo necessário para efetuar a última fase da ascensão. Apesar daquela pausa, tínhamos conseguido a escalada em cinco horas e meia, horário verdadeiramente excepcional, que mostra como eram grandes, nessa época, as possibilidades físicas e o domínio da nossa cordada.

Este brilhante feito no Nant Blanc reanimou seriamente a minha paixão das grandes travessias e deu-me um pouco de confiança em mim próprio para abordar ascensões menos glaciares. Com efeito, apesar de não termos senão dificuldades pequenas em matéria de rochas, pudera verificar que a enfermidade da minha mão me incomodara menos do que receara.

Por seu turno, Lachenal, aproveitando ao máximo o tempo esplêndido daquele princípio de estação, acumulara as grandes travessias e os horários sensacionais, conseguindo mesmo a quarta ascensão do pico central dos Grandes Jorássios. A sua forma era espantosa e transbordava de força e jovialidade. Vejo-o ainda chegar às cabanas com o seu andar de felino, o belo rosto magro iluminado por uns olhos alegres e inteligentes. Brincando com um, fazendo troça do outro, lançando a cada momento graças picantes ou ditos inesperados, espalhava uma torrente de vida e num instante aquecia o ambiente.

A nossa tentativa no Eiger anunciava-se portanto sob os melhores augúrios. Só o tempo, que continuava obstinadamente mau, parecia querer estragar tudo. Na véspera do dia previsto para a partida, o céu começou a abrir; tinha caído muita neve nas alturas, mas, mais abaixo, a montanha parecia em boas condições: estavam lançados os dados, era forçoso tentar a aventura.

Naquele mês de Julho de 1947, não ignorávamos que outros além de nós desejavam apaixonadamente experimentar as suas forças na vertente norte do Eiger, e no fundo do nosso coração desejávamos que os acontecimentos permitissem que fôssemos os primeiros a repetir a exploração dos austro-alemães.

A cordada mais perigosa parecia ser a dos quatro escaladores parisienses, que, no ano anterior, se tinham adiantado a nós no pico da Walker. Animada pelo mais notável dos alpinistas franceses da geração anterior à guerra, o veterano P. Allain, composta de escaladores de rocha exímios e bem treinados, provida de material ultramoderno, e, finalmente, dispondo de todo o tempo, esta equipe parecia ter grandes probabilidades de êxito. Só lhe

faltava uma melhor experiência do gelo e de treino mais desenvolvido de alta montanha.

Desde a estação anterior, uma rivalidade amigável opunha-nos aos parisienses, mas parecia que também nesta estação o tempo livre de que dispunham lhes permitiria preceder-nos. A sorte favoreceu-nos: três membros da cordada parisiense tinham chegado a Chamonix havia vários dias, mas Allain, informado das más condições atmosféricas nos Alpes, resolvera adiar a viagem.

O tempo, desanuviando no próprio dia em que podíamos finalmente partir, deu-nos a possibilidade de precedermos os nossos competidores. A viagem para o Oberland efetuou-se muito democráticamente por caminho de ferro. A nossa impaciência de jovens puro-sangue foi posta à prova pelas longas horas de inação necessárias para a travessia da Suíça. Lachenal, sobretudo, achava a viagem interminável; não tendo como eu o gosto da leitura, fumava cigarros atrás de cigarros. No pequeno comboio de cremalheira da Scheidegg, apesar das nossas carteiras profissionais estarem em ordem, negaram-nos a tarifa de guia: onde estava a proverbial hospitalidade suíça? Finalmente, a 14 de Julho, às 10 horas da manhã, estávamos na Klein Scheidegg. Na nossa frente, muito perto, a vertente norte do Eiger erguia-se, negra, feroz e majestosa. Tendo-a admirado tantas vezes em fotografia, julgava que ela me pareceria familiar. Todavia, mal a reconheci, de tal forma me pareceu mais formidável do que tinha imaginado. Por um instante, senti um nó na garganta. Observando com interesse as suas vertentes gigantescas, trocamos impressões. Eu apenas consegui murmurar atrapalhada-mente: "Daqui, parece impossível. É preciso ir ver de mais perto." Lachenal, que já vira o Eigerwand no Inverno, parecia desagradavelmente impressionado pelo aspecto liso e dolomítico que ele apresentava naquele Verão. Coçando o queixo, num gesto que usava muito, gemia de forma cômica: "Mau, mau! Parece mais liso do que o meu rabo! Se a minha mãe visse isto!"

Mas a primeira impressão dissipou-se a pouco e pouco. Em breve, o nosso hábito de abstrair do aspecto vertical e da ausência de relevo que tem uma visão de frente permitiu-nos apreciar mais objetivamente o nosso adversário. Descobrimos mil pormenores e, sem dificuldade, conseguimos encontrar o itinerário dos primeiros escaladores, assim como todos os pontos característicos do seu caminho: a travessia Hinterstoisser, a primeira e a segunda nevada, a Rampa, e a Aranha.

O céu era de um azul intenso e apenas algumas pequenas nuvens vaporosas envolviam os flancos da montanha. Tudo parecia anunciar um longo período de bom tempo. Em contrapartida, as condições da muralha pareciam bastante pouco favoráveis; um carapuço de neve fresca embranquecia o cume e as paredes escorriam umidade. A prudência teria aconselhado esperar um dia ou dois antes de atacar: assim, sob o efeito do calor, a vertente secaria um pouco. Preferindo não perder um só dia do magnífico tempo que a sorte nos proporcionava, resolvemos respeitar o nosso plano original e atacar nesse mesmo dia. Decidido o ataque, tomamos novamente o pequeno comboio de cremalheira do Jungfraujoch para subir até à estação de Eigergletcher que constitui o melhor ponto de partida para o Eigerwand. Ali, comemos uma refeição substancial que trouxemos de França, tanto devido à nossa pobreza como à nossa falta de divisas. Deixamos ficar na pensão um saco contendo vestuário e víveres para o regresso e uma carta; sem lhe dizermos para onde íamos, pedimos ao gerente para abrir a carta no caso de não regressarmos três dias depois. A seguir voltamos resolutamente as costas ao mundo dos homens.

Seguindo ao longo da base da muralha, em marcha curta mas desagradável sobre cascalho fino, à 1:05h atingimos um ponto de ataque de aparência favorável. Começamos imediatamente a escalar. As dificuldades são muito medíocres e a corda fica provisoriamente dentro do meu saco. O fim desta primeira jornada não fica muito longe, e temos tempo. Por isso, a fim de evitar qualquer esforço inútil, subimos sem pressas.

Sempre subindo, falamos quase sem parar. Por um efeito de ótica bem conhecido, vista de baixo a vertente já não parece tão lisa e notam-se os relevos. Assim, esta toma um aspecto quase fácil, o que me leva a dizer por brincadeira: "Isto torna-se mais humano, e até receio que cheguemos ao cume antes da noite."

Apesar do otimismo que nos dá a serenidade do tempo, estamos preocupados com a qualidade da rocha e sobretudo com as inúmeras quedas de pedras que a todo o momento

estalam pela montanha abaixo.

Aqui, a rocha é de calcário muito liso e compacto, apresentando-se sob a forma de pequenas paredes cortadas por carreiros. Devido à pouca altura destes obstáculos, o avanço é fácil, mas é evidente que mais acima vamos enfrentar uma escalada melindrosa, de uma técnica completamente diferente da do granito de Chamonix a que estamos habituados, e receamos não nos entendermos com este terreno. Mas os desprendimentos de pedras são motivo de preocupação muito maior; de momento, limitam-se a calhaus isolados de pequeno calibre e, quando os sentimos assobiar, protegemo-nos facilmente encostando-nos contra a muralha. Apesar de tudo, estes calhaus criam uma certa tensão nervosa; a cada instante, aquele ruído faz-nos recordar que de um momento para o outro a vertente pode ser varrida por avalanches de pedregulhos a que seria difícil escapar. Aliás, quando nos aproximamos da Rote Fluh, ouvimos estalarem detonações acima das nossas cabeças e alguns blocos passam ribombando à nossa esquerda, para se irem despedaçar, com o som do trovão, uns cinquenta metros mais abaixo; a poeira sobe até nós, libertando um cheiro a pólvora. Não parece o odor das grandes batalhas?... Encontramos os primeiros sinais da passagem do homem: um chapéu roto, velhas roupas em farrapos. Pertenceram sem dúvida àqueles que perderam a vida na conquista inútil deste mundo de rochas. Exala-se uma profunda tristeza daqueles despojos. Por momentos, tudo quanto li a respeito dos dramas do Eiger desfila na minha memória. Revejo os retratos dos heróis, com o rosto aureolado, que agonizaram aqui.

Por uma sinistra ironia do destino, ao lado dos vestígios dos que morreram em busca da alegria de ainda se sentirem homens num mundo onde a máquina se tornou senhora, encontramos inúmeros bocados de ferro provenientes das obras de construção do caminho de ferro da Jungfrau!...

Não se atacam paredes como as do Eiger sem uma grande preparação. Na fotografia, Lionel Terray treinando perto de Chamonix.

Procuramos descobrir a "cova do ladrão" para onde foi atirado o entulho do túnel e de onde, um pouco mais tarde, partiram as caravanas de socorro que tentaram em vão salvar Kurz e os companheiros.

A nossa direita vemos enormes varas de ferro pregadas à rocha, mas nada mais...

Finalmente, depois de uma parede mais alta que as anteriores, chegamos junto de uma verdadeira falésia; ali, uma corda enegrecida pelo tempo e pela umidade balouça molemente com a brisa.

Começam as dificuldades. É tempo de nos amarrarmos. Após alguns metros difíceis, Lachenal chega à zona de pendor; a passagem parece difícil, seria conveniente usar a velha corda ali colocada sem dúvida para facilitar as subidas e descidas; mas está verdadeiramente em muito mau estado, e Louis prefere passar em escalada livre. Com esta rocha lisa, de pequenos e raros pontos de apoio, a coisa não vai sem dificuldade. Felizmente, três velhos pitons, de aspecto bastante sólido, vêm facilitar as coisas. Com um saco bastante pesado, este pendor parece-me realmente sério. Um pouco mais longe, a travessia Hinterstoisser começa à nossa esquerda.

Esta passagem é abundantemente regada pelas águas que descem do alto da parede. Várias cordas meio apodrecidas ainda ali se encontram, mas o seu estado de deterioração é tal que nem por um instante pensamos em tocar-lhes. Esta travessia bastante aérea parece melindrosa e Lachenal entrega-me o seu saco; mas os pitons que existem são muitos e, apesar da verdadeira cascata que lhe cai nas costas, Lachenal avança rapidamente.

Mas a nossa corda é demasiado curta e somos obrigados a fazer alto antes do fim da passagem. Amarro um piton na extremidade da corda que trouxemos para ser fixada na travessia a fim de facilitar a retirada em caso de necessidade. Parto, com dois sacos às costas, mas as correias, demasiado curtas para semelhante combinação, apertam-me atrozmente, ao ponto de me cortarem a circulação nos braços. Nestas condições, é com enorme esforço

que chego junto do meu amigo. Mas isto ainda é só o princípio: mais acima, numa espécie de chaminé vertical, esta carga faz-me suar sangue. Que delícia quando fico finalmente aliviado num terraço bastante largo onde Lachenal, já de cigarro aceso, me recebe zombeteiramente com um: "Então, guia? Que tal achas o nosso quarto de dormir?" Como era possível não o achar maravilhoso? É bastante grande para nos podermos estender os dois ao comprido; o chão, certamente arranjado pela mão do homem, é quase desprovido de protuberâncias rochosas: finalmente, pormenor muito importante, uma cornija abriga-o das pedras e da chuva. Não se pode exigir melhor em semelhante local, e naquela noite esse ninho de águias parece-me mais suntuoso do que um hotel de luxo.

São 18 horas; enquanto atravessamos o Hinterstoisser, envolvem-nos brumas vindas do vale. São apenas cúmulos indicadores de bom tempo; por isso essas nuvens, em vez de nos inquietarem, reforçam o nosso otimismo. Agora, com a frescura da noite, transformam-se em flocos vaporosos tintos de cor-de-rosa pela última luz do dia; em breve terão desaparecido, sublimadas no céu infinito. Sem pressa, preparamos o nosso bivaque. Antes de mais, precisamos de pôr em ordem o nosso arsenal espalhado no chão: velhas roupas apodrecidas, caixas de conserva, pitons de toda a espécie abandonados ou esquecidos pelos numerosos alpinistas que, desde a primeira tentativa de Hinterstoisser e Kurz, subiram até aqui, com o coração cheio de louca esperança de forçar o bastião que nos domina. Quantos deles, voltando vencidos, com a alma desesperada e cheia da amargura da derrota, se deitaram aqui, encharcados e a tremer de frio? Quantos morreram por terem querido conhecer por algumas horas a vida ardente dos conquistadores? A um canto encontramos uma caixa metálica cuidadosamente fechada; contém diversas inscrições em alemão... Juntamos-lhe um papel mencionando a nossa passagem e acrescentamos algumas graças para a cordada parisiense que deve seguir-nos.

As abundantes vitualhas que subimos com esforço permitem-nos comer sem restrições; e é completamente satisfeitos que enfiamos a roupa de bivaque: camisola forrada de penas, capuz impermeável e, luxo desusado, sacos de batatas duplos, que nos permitem proteger as pernas. Bem entendido que estes edredons último modelo não irão mais acima! Depois de nos proporcionarem o máximo de conforto nesta primeira noite, ficarão ali abandonados, e será com a menor carga possível que continuaremos a nossa caminhada até ao cume.

As brumas estão agora completamente dissipadas e a noite que desce sobre nós é de uma limpidez maravilhosa. Bem encostados à parede, com ambos os pés de fora, tão descansados como na véspera de uma travessia clássica, deixamo-nos penetrar pela estranha poesia daqueles sítios. No céu cintilam milhares de estrelas; penso nos pastores solitários que, um pouco em toda a parte do Mundo, as olham neste mesmo instante. Não sonhei também ser pastor e dormir à luz das estrelas?

Impressionados com este ambiente insólito, de uma poesia selvagem, falamos pouco. Lachenal perdeu a sua exuberância costumada e fuma em silêncio. Caso excepcional: para festejar este bivaque ideal, acendo um cigarro. Em breve somos vencidos pelo sono, estendemo-nos na nossa cama de pedras e, encostados um ao outro, dormimos como duas crianças.

Às quatro horas acendemos o lume; ainda é noite e a montanha calou-se. Por um instante, lembro-me de que a nossa luz deve intrigar quem, por acaso, voltar os olhos para o Eigerwand; mas imediatamente penso que é pouco provável que àquela hora alguém olhe para nós ou pense sequer que existimos.

De repente, sinto-me dominado pelo peso de uma enorme solidão. Toda a hostilidade daquele mundo, toda a insensatez da aventura, me surgem com uma nitidez apavorante. Para quê continuar esta louca empresa? Ainda estou a tempo de me revoltar, de gritar a Lachenal que está doido, o meu horror àquelas rochas geladas e de fugir para o calor e para a vida.

Mas não faço nada. Uma força misteriosa impede-me de agir; no íntimo do meu coração sei que é demasiado tarde para recuar, e que o meu destino está marcado: vencer ou morrer.

Pés à obra

A madrugada rompe lentamente com uma luz radiosa; daí a pouco, preparados para o combate, partimos. Algumas lajes cobertas de gelo conduzem-nos à vertente da primeira geleira; atravessamo-la rapidamente para irmos esbarrar contra a falésia que nos separa da segunda geleira. Estudando a parede de longe, tínhamos pensado atravessar este obstáculo através de uma estreita abertura no gelo. Agora verificamos que esta fica à nossa direita. Como é desagradável de ver! Para conseguir ultrapassá-la, seria preciso um longo e fastidioso trabalho de escavação. Mas parece ser o único recurso; as rochas que nos dominam são desprovidas de qualquer brecha e parecem invencíveis. Todavia, um pouco à esquerda da abertura no gelo, a parede forma um diedro obtuso; o fundo deste esconderá alguma coisa? Lachenal vai dar uma vista de olhos; daí a pouco faz-me sinal para me aproximar. Trata-se apenas de um diedro em cornija percorrido por uma estreita ranhura! Apesar do seu aspecto rebarbativo, Louis acha que é possível passar e pega rapidamente nos pitons; eleva-se um pouco sobre a aresta esquerda do diedro, depois inicia uma difícil travessia para a direita. Um primeiro piton bastante periclitante permite-lhe manter o equilíbrio suficiente para fazer cair um grande bloco instável. Certamente, ainda ninguém passou por ali! Um segundo piton, mais periclitante ainda, dá-lhe a garantia moral necessária para tentar um passo arriscado. Como não existe qualquer ranhura para receber um terceiro piton, Louis tenta uma saída audaciosa, com a ponta do pé assente sobre um dos apoios minúsculos, o corpo colado à parede, equilibrado na mão esquerda graças a uma pequena saliência. Procura com os dedos da mão direita, enquanto abre lentamente as pernas; finalmente agarra um bom ponto de apoio; alguns movimentos rápidos, e passou!...

"É portanto, no lugar de guia que ataco a lisa vertente de gelo que conduz à Rampa."

Lionel Terray na época da sua primeira tentativa no Eiger.

Carregado com dois sacos, é içando-me à corda que vou ter com o meu amigo.

Atravessamos uma outra passagem difícil na extremidade da qual um velho cravo de olhal, deixado por um dos nossos predecessores, surge mesmo na altura para nos garantir um intervalo de repouso.

Chegamos agora ao lado direito do corredor de gelo. Em condições normais, devíamos calçar os grampons e subir o corredor, mas, na nossa situação, meter os grampons era uma verdadeira acrobacia; além disso, esta vertente parece contar ainda com um número de degraus bastante elevado! À esquerda, a laje que nos domina é muito lisa, mas parece conduzir a um bom carreiro de onde será possível, segundo parece, atingir sem grande dificuldade a parte inferior da geleira. Entusiasmado com o êxito das primeiras passagens, Lachenal lança-se sem hesitar sobre a laje; a rocha é completamente compacta e todas as saliências estão dispostas como as telhas de um telhado. A inclinação, relativamente moderada, permite de qualquer forma o avanço. Grande perito em escaladas difíceis, Louis sente-se muito à vontade neste terreno. Exibindo as suas qualidades de equilibrista, chega com bastante rapidez ao ponto que, visto de baixo, parecia um carreiro. Grita-me:

- Não há carreiro absolutamente nenhum; há só dois apoios razoáveis e nem se pode espetar um piton; experimenta subir, mas, se escorregares, não tenho a certeza de te poder segurar.

Muito mal impressionado com esta notícia, respondo:

- Ouve, Lulu, se é assim tão mau, desce, e passamos pelo gelo, - mas a voz furiosa de Lachenal grita-me:

- Grande medricas, não há tempo a perder; lá em cima, escapa; vá, desenrasca-te.

Quando chego junto do meu camarada, verifico que, na realidade, há ali uma vaga depressão onde alguns apoios permitem que nos aguentemos sem muita fadiga, mas nem a menor brecha onde se possa cravar um piton, nem o menor espigão rochoso que ofereça segurança. Mas o que mais me preocupa é que lá em cima, em vez de ser mais fácil, as lajes endireitam-se nitidamente e, além disso, estão em grande parte cobertas de gelo.

Vejo o pé de Louis subir lentamente para se ir colocar delicadamente entre duas camadas de gelo. Solta uma das mãos, tateia um instante acima da cabeça; encontrou sem dúvida uma saliência, porque se levanta devagar, mas o pé, apenas encostado à rocha, aguentá-lo-á? Num movimento instintivo, agarro-me com todas as forças. Muito devagar, ele levanta a outra mão, depois os pés escalam rapidamente, e passa!... Finalmente, os meus nervos distendem-se um pouco. Ouço o ruído de um piton a ser cravado e a voz de Louis, que me grita:

- Está ganha a partida! Afinal foi fácil; mas este prego não vale nada; posso ajudar-te um pouco, mas faz os possíveis por não te soltares.

Sabendo como a minha habilidade em terreno difícil é inferior à do meu companheiro e também como o peso do meu saco acentua essa inferioridade, inicio a passagem com o sentimento de um condenado à morte. Quando chego ao ponto crítico, preciso de um grande bocado para "sentir" o curioso movimento que permitiu a Lachenal passar; mas o equilíbrio dele nas palmas das mãos parece-me extremamente limitado e grito:

- Aguenta!

Sinto a corda aliviar-me de parte do meu peso, o que facilita muito as coisas!...

Louis não mentiu. A laje seguinte, embora muito rija, é mais abundante em apoios do que as anteriores, mas ainda não se distingue a geleira. Mais acima, outro ressalto liso não nos fará parar?

Com alguns saltos de fera, Louis desaparece rapidamente por cima da minha cabeça. A corda passa na minha frente em ritmo regular, depois pára; passam-se segundos infinitos; começo novamente a inquietar-me quando ouço:

- É um mimo! - E fico mais descansado. Encontro Lachenal alegre e sorridente, sentado num pequeno carreiro, e deixo-me cair a seu lado. Depois de tantas emoções, pre-cisamos de alguns minutos de descanso, e aproveitamos para comentar os acontecimentos.

É certo que, evitando a abertura no gelo, em vez de ganharmos tempo, perdemos bastante, e só os excepcionais talentos de escalador do meu companheiro nos permitiram sair vivos da ratoeira onde nos tínhamos metido. A nossa falta de hábito em seguirmos um itinerário numa parede calcária foi a causa evidente deste grave erro de cálculo. Todavia, a situação não tem nada de dramático; muito perto de nós começa a vertente de gelo da segunda geleira e até à Rampa não parece que encontremos dificuldades de maior; neste terreno de alta montanha, que é a nossa especialidade, poderemos ganhar o tempo perdido. Mas, para isso, não podemos ficar aqui eternamente. Em poucos minutos atingimos o começo da geleira. Tínhamos esperança que depois da seca do mês de Junho ela se teria derretido bastante, deixando à vista um carreiro à beira da rocha. Infelizmente não aconteceu assim, e o gelo pendia sobre o abismo, sem deixar a menor possibilidade de passagem. A vertente, bastante rija, não excede porém os 50 graus. Encontra-se quase totalmente despida de neve, mas o gelo sujo está mole demais para permitir o avanço com escápulas.

Porém, neste terreno difícil, Lachenal faz milagres com as escápulas; mas deve aplicar toda a sua habilidade, e só depois de usar mais dois ferros consegue atingir um ponto para poder descansar. Pouco depois chegamos à ponta do espigão.

São agora treze horas; o tempo passou com uma rapidez inexplicável; temos de nos apressar. Dominado pelo calor da ação, quero continuar sem tomar algum alimento, mas Louis, cheio de fome, insiste para pararmos. Sou obrigado a fazer-lhe a vontade, mas não importa! O céu continua de um azul de sonho, não há receio de qualquer tempestade. Numa pequena plataforma que convida ao repouso abrem-se imediatamente os sacos. Devorando a comida como lobos, discutimos apaixonadamente. A nossa situação sobre um espigão que avança pelo gelo das geleiras médias permite uma vista quase total da vertente e perguntamos se seria possível seguir outro caminho diferente do dos primeiros escaladores. É em vão que o nosso olhar se perde nas muralhas formidáveis de Gelbewand.

A Rampa está agora muito perto e podemos examiná-la melhor. Parece um tronco de árvore inclinado dramaticamente sobre o vazio, e a parte inferior ergue-se numa chaminé vertical, insinuando-se entre duas paredes desesperadamente lisas. Visto daqui, tem um aspecto medonho, mas, habituados a nunca nos fiarmos nas aparências, esperamos lá chegar para julgar.

Se o caminho que devemos abrir através desta feroz muralha preocupa os nossos espíritos, os nossos olhos não podem deixar de voltar-se para a região atraente que se estende diante de nós, a perder de vista. Ali, são apenas cumes de forma arredondada, ricas pastagens de altitude como imensas toalhas de verdura salpicadas de longe em longe pela mancha acastanhada das vivendas. Os mil ruídos desta terra, de um suave encanto, sobem até nós: soam clarins, chamadas dos montanheses. Todavia, de vez em quando, sons mais estridentes vêm perturbar esta agreste sinfonia; o mundo das máquinas, de gritos bárbaros e máscaras horríveis, ainda está próximo. Como é estranha esta parede do Eiger, mais selvagem do que nenhuma outra, avançada como uma proa de navio no marulhar da vida! Sobre a Walker, os alpinistas combatem sozinhos em pleno coração da alta montanha; para onde quer que olhem, só vêem rochas gigantescas erguidas para o céu num gesto trágico, frios glaciares cujas derrocadas ecoam nos montes com um barulho de trovão. Não há sinal de vida; o homem sente-se ali como se noutro planeta, e nada pode quebrar a coragem que impôs a si próprio. Mas como a nossa posição é estranha neste sítio! A nossos pés, quase ao alcance da mão, a terra dos homens chama por nós, e nós estamos ali, no meio daquela natureza mineral onde só as gralhas têm direito de cidadania. Que paixão de grandeza e absoluto nos fez abandonar a doçura de viver para violar a orgulhosa solidão deste deserto vertical? Tal como ontem, algumas nuvens formam-se de longe em longe e sobem lentamente até nós; por vezes, uma delas envolve-nos em bruma, mas depressa um sopro de brisa vem empurrá-las e o vale

aparece-nos de novo banhado de sol.

O estrondo de uma queda de pedras faz-nos sobressaltar; à nossa esquerda uma saraivada de grandes blocos salta sobre a segunda geleira,

exactamente no sítio que atravessámos há poucas horas.

Demoráramos demasiado tempo; é preciso partir o mais depressa possível. Lachenal propõe-me que tome a chefia da cordada; ainda pouco confiante nas capacidades da minha mão direita, sinto-me hesitante entre o receio de me mostrar inferior a mim próprio e o desejo de repetir a entusiasmante sensação de domínio quase sobre-humano que dá a vitória sobre a força da gravidade. Mas ele insiste com tanta gentileza e paixão que acabo por me decidir. É, portanto, no lugar de guia que ataco a lisa vertente de gelo que conduz à Rampa.

Esta passagem é continuadamente bombardeada por pedras de pequeno calibre, algumas delas do tamanho de um punho; o lugar é deveras perigoso e é com os olhos voltados constantemente para cima que avanço num delicado exercício de aplicação de escápulas.

Felizes por nos encontrarmos finalmente abrigados, chegamos à Rampa; temos uma grande supresa ao encontrá-la tão diferente do que imagináramos; em vez de ser um "canudo" estreito e difícil, é um confortável corredor tão aprazível que ficamos quase desiludidos. Cheios de curiosidade em conhecer a continuação do caminho, subimos a toda a velocidade um atrás do outro. Bruscamente, a Rampa propriamente dita acaba, para dar lugar a uma chaminé alta e estreita formada por uma parede vertical cheia de rochas em pendor. O caminho é por ali! Mas uma torrente de grande caudal desagua furiosamente naquela brecha. É tão volumosa que nos parece impossível conseguirmos trepar contra a força de semelhante queda-d'água. Este obstáculo líquido é completamente insperado e ficamos um momento paralisados de surpresa. Aquela torrente irá impedir-nos a passagem? Estará ali a causa do estúpido insucesso quando tudo anunciava uma vitória próxima? Afastamos apressadamente o desânimo. De qualquer forma, temos que tentar. Enfio o capote impermeável e estoicamente preparo-me para atravessar a cascata. Mas, de repente, mais esperto do que nunca, com o queixo levantado, Lachenal grita:

- Espera um momento: parece que se pode passar à direita. Olha, há uma brecha neste pendor. Tu, que és forte nisso, deves poder passar. Mais acima, parece melhor; podem contornar-se os pendores e chegar ao alto da chaminé! Pouco convencido, resolvo todavia fazer uma tentativa, porque até aqueles horríveis pendores me parecem preferíveis à cascata. Sem dificuldade, atravesso horizontalmente alguns metros à direita para chegar a uma pequena gruta. A abóbada escavada por cima da minha cabeça é cortada por uma brecha de uns vinte centímetros de largura. É por ali que tenho que passar! Depois de espetar solidamente um ferro comprido, tento atingir a brecha, mas a rocha esboroa-se a cada passo. Trata-se de um montão de blocos instáveis percorrido por uma veia de rocha amarelada, que se desfaz com os dedos. Não consigo subir os dois metros que me separam da brecha.

Após várias tentativas, desesperado, preparo-me para voltar junto de Lachenal; observando o local mais uma vez, reparo então que a parede em pendor que se ergue à minha direita, embora formada por uma rocha monolítica, está salpicada de pequenos picos horizontais. De repente, como um relâmpago, surge-me a ideia de que, segurando-me pelas pontas dos dedos àquelas saliências, talvez me seja possível atingir uma espécie de cornija que avança sete ou oito metros mais acima.

Pareceu-me que dali poderia depois voltar à chaminé. Atingi aquele "estado de transe", o furor sagrado que faz esquecer o perigo, que centuplica as forças e torna possíveis os milagres. Noutros tempos, esta parede devia parecer-me intransponível, mas agora sinto-me capaz de um prodígio, e decido imediatamente "tentar o golpe". Mas, no momento de atacar, as cordas puxam-me para trás: o ferro espetado no interior da gruta obriga-as a contornar um ângulo muito grande e prende-as. Procuro uma fenda para espetar outro piton, mas nada! Nem uma pequena abertura! Esta rocha é mais compacta do que uma fortaleza. Finalmente, descubro um buraco de três a quatro centímetros de profundidade. É demasiado estreito para um piton normal, mas lembro-me de que esta manhã, no bivaque, apanhei um prego minúsculo com o bico apenas um pouco maior do que o dente de um garfo. Procuro furiosamente esse piton em miniatura entre a quinquilharia que chocalha no bolso do peito. Lá está ele! Por

casualidade, cabe no buraco, como se tivesse sido feito para ele. Contente com esta segurança relativa, começo a luta: inclinado para trás, aguentando-me nas pontas dos dedos e na ponta das solas, trepo alguns metros; as asperezas são agora mais espaçadas. Crispando as falanges com a maior das energias, elevo-me mais um metro. A cornija já está mais próxima; esticando-me um pouco, podia quase tocá-la com as pontas dos dedos. Mas as saliências a que me seguro são tão minúsculas que não consigo largar uma das mãos sem cair para trás. Começo a sentir a fadiga, e é demasiado tarde para tentar descer. Antes de me deixar cair estupidamente como um fruto maduro, resolvo arriscar tudo por tudo. Lembrando-me de uma técnica empregada nas pequenas rochas de Fontainebleau, subo pondo os pés nas saliências o mais alto possível e, com o corpo violentamente tenso, salto, estendendo o braço direito o mais possível. E apanho o rebordo da cornija; instantes depois, a minha mão direita agarra-o também. Verifico que o apoio é bom e me permite aguentar; de repente, uma enorme euforia domina todo o meu ser. Durante uma fração de segundo, tenho os pés pendurados no vazio, mas, a seguir, com um forte movimento de ginasta, consigo restabelecer-me. Mais uma vez a sorte estava do meu lado. De gatas em cima da cornija, ainda sem fôlego, saboreio durante alguns momentos o prazer de me encontrar em segurança, depois de ter sentido o vazio puxar-me pelos pés. Mas depressa me volta o sentido prático. Examino com inquietação o local onde acabo de chegar. A dificuldade da minha situação apresenta-se-me nitidamente. Encontro-me numa plataforma de pouco menos de um metro quadrado, mas essa vantagem é medíocre; acima de mim apenas vejo um diedro de rocha compacta muito rebarbativo.

Para vencer tal obstáculo, seria preciso, pelo menos, cravar um bom piton. Mas é escusado procurar, não vejo a menor fenda. Talvez pudesse tentar passar com o atrevimento e ousadia de há pouco! Mas a última passagem cansou-me demasiado. Já não sinto a força sobre-humana que me permitiu enfrentar semelhante risco. Que fazer? Descer? Sim, descer, mas como? Não há sítio nenhum onde se possa atar uma corda, nem brecha, nem pico de rocha. Meti-me numa autêntica ratoeira. Sinto grande angústia, e bato com o pé no chão, cheio de raiva. Todavia, retomo depressa o sangue-frio. Será possível talhar com o martelo um pico à beira do terraço? Abaixo-me para examinar: nada!... Ah, mas eis a solução! Ali, no ângulo da parede escondida pela poeira, há uma brecha minúscula; com um pouco de sorte devo poder aguentar ali um piton aguçado; escolho o mais fino da minha coleção, que se enterra apenas até metade!... Não é muito, mas, curvando-o sobre a plataforma, fará bem o serviço. Tem mau aspecto, aquele piton! Mas é bastante sólido. De qualquer forma, não tenho outra solução. Vou tentar o golpe!

Depressa, faço um arco de cordel e coloco uma chamada, segurando uma das pontas da corda. Fico amarrado no meio, e Louis aguenta a outra ponta para eu não correr perigo... faz de conta!

No momento de me suspender neste pobre ponto de apoio, sinto um ataque de revolta em todo o meu ser!... Num violento esforço da vontade, solto-me no vazio: não acontece nada. Decididamente, não é preciso muito para aguentar um homem.

Com o coração aos pulos, deixo-me escorregar ao longo da corda. A parede é de um pendor tão acentuado que fico imediatamente suspenso em pleno vazio. Pareço uma aranha pendurada do fio da teia. Onde irei parar? Após alguns balanços, acabo por atingir a gruta de onde parti. No ardor da luta, o tempo passou como um relâmpago e verifico, de repente, que nos envolve um espesso nevoeiro. Mas de onde vem este crepitar? Parece granizo a bater na rocha, mas não vejo granizo nenhum. Mas sim, no vazio, ali a uns quatro ou cinco metros, ele cai numa espessa cortina, aqui, debaixo da cornija, estamos completamente abrigados. Só nos faltava isto! Deve ser apenas uma pequena tempestade do crepúsculo; o tempo estava demasiado bonito para mudar tão de repente.

Que fazer agora? Voltar para junto de Lachenal e tentar escalar a cascata?... Todavia, se eu chegasse a atravessar aquela cornija que me expulsou há bocado, seria de qualquer forma muito melhor! Depois de tanto tempo perdido, restam-nos apenas alguns minutos; tentemos mais uma vez. Animado de um moral a toda a prova, lanço-me para os blocos instáveis; afundam-se debaixo dos meus pés, mas a rapidez da minha atuação permite-me entalar um braço na brecha. Começo uma luta de morte para me elevar; por momentos, parece-me que o peso do meu corpo vai arrastar-me mas, naquele mesmo instante, um dos meus pés, solto no vazio, encontra um apoio e consigo elevar-me alguns centímetros e agarro

uma boa saliência! A sorte continua do meu lado; com um furioso golpe de rins, chego a uma espécie de pequena gruta.

Sem perder um segundo, puxo para mim os sacos e depois Lachenal, que se auxilia vigorosamente com a corda. Assim que chega, exclama:

- Então, meu velho, que porcaria de cornija! É preciso atrevimento para te segurares a coisas daquelas. Julguei que nunca conseguisses; parecia que não avançavas uma polegada. Tens uma destas "leiteiras"!

Para dois, esta gruta é bastante desconfortável e tenho pressa de sair dali. Após várias tentativas, consigo-o por meio de uma delicada travessia para a esquerda; lá em cima o terreno torna-se mais fácil, e rapidamente chego ao cume da chaminé-cascata.

Mas os sacos encalham numa cornija e é quase impossível soltá-los. Depois de esforços sobre-humanos, consigo trazê-los para junto de mim. Sem mesmo calçar os grampos ferrados, num ímpeto irresistível, atravesso uma parede de uma dezena de metros inteiramente coberta de gelo; este é, felizmente, muito poroso e consigo sem dificuldade talhar a martelo alguns apoios suficientes para me facilitarem a passagem. Encontro-me então ao pé de uma chaminé-cascata de sete a oito metros. Por sorte, formou-se uma enorme massa de gelo no lugar onde a água corre no interior de uma espécie de túnel. Levado pela vontade de atuar depressa, desisto pela segunda vez de calçar os grampos. Graças a grandes buracos onde me posso agarrar, atinjo rapidamente a garganta de saída; mas aqui o gelo é duro e luzidio, e a falta dos grampons incomoda-me terrivelmente.

Tanto pior! Tenho que passar mesmo assim. Elevo-me talhando pequenos buracos com o martelo-picareta. Por várias vezes sinto-me à beira de cair, mas parece que hoje, a Providência está por mim.

Os jatos da cascata inundam-me. Fico meio cego por causa da água. Apesar do capote impermeável, a água infiltra-se pela menor abertura, desce-me pelo pescoço e entra-me nas mangas. Acabo por sair para um largo corredor de gelo. Muito a propósito, encontro um velho piton, graças ao qual posso puxar os sacos e segurar o meu companheiro. Quando Lachenal chega junto de mim, olho para o relógio: são quase 18 horas.

Estamos encharcados como pintos, mas não é altura para lamentações; o lugar está exposto às pedras e ainda não pisamos terreno fácil. Agarrados a minúsculas fendas na rocha, atravessamos para atingir a aresta que forma a margem direita do corredor. Daí a pouco encontramos rochas fáceis, que subimos o mais depressa possível. O granizo cai com violência e ecoa ao longe. Esperamos que seja apenas uma tempestade local. Todavia, ficamos inquietos. Desde a nossa dramática ascensão da Walker, sabemos como é perigoso ser surpreendido pela tempestade numa grande vertente. É preciso, custe o que custar, sair de dificuldades ainda esta tarde. Isso parece-nos possível. Em duas horas deviamos chegar à Aranha e mais duas horas devem permitir-nos sair dos corredores terminais!...

Um carreiro que termina numa parede vertical de uns vinte metros aparece à nossa direita. Começo imediatamente a caminhar avançando lentamente sobre lajes movediças. Mas Louis acha que a travessia para a Aranha é mais alta no corredor e grita-me que volte para trás. Respondo-lhe que esta passagem se parece muito com a que vimos numa fotografia tirada de avião, onde se distingue nitidamente a cordada dos quatro primeiros escaladores executando uma travessia para a direita. Afirma-me que este carreiro tem uma situação tal que deve ser impossível fotografá-lo de avião. Como quase sempre, o meu horror à discussão acaba por me fazer ceder perante os argumentos do meu companheiro. Convencido de que ele não encontrará nada, peço-lhe para subir um pouco mais acima e ver se existe a passagem. Ainda não tinha feito quinze metros já tinha descoberto um piton de duralumínio. Embora este bocado de metal pareça ter servido para uma descida em chamada, Lachenal triunfa ruidosamente e cobre-me de sarcasmos, garantindo ainda por cima que aquele péssimo carreiro nos facilitava a travessia.

Sem me dar tempo a discutir, mete-se resolutamente na passagem. É de fato uma melindrosa travessia ascendente, numa rocha extraordinariamente mole. A noite começa a descer e, quando chega a minha vez, para ganhar tempo, renuncio a arrancar vários pitons.

Parece que uns vinte metros mais acima poderemos atingir um importante terraço. Muito excitado com esta perspectiva, passo adiante, mas, após dez ou doze metros, encontro enormes dificuldades. Lachenal tenta então outra passagem mais à esquerda; eleva-se com a sua habitual agilidade e daí a pouco grita-me:

- Só mais três metros e está ganha a partida! - Mas, no mesmo instante, pára e depois ouço-o gemer e praguejar. Torna a gritar-me:

- Com um bocado de sorte consigo passar, mas, com estes pitons que não se aguentam, é realmente muito arriscado. Vou ver um pouco mais à esquerda; parece que é melhor. Através do nevoeiro e da noite que cai, vejo-o descer um pouco, depois desaparecer atrás de um ângulo de rocha. Cai uma chuva miudinha; a inação arrefeceu-me, e sinto-me gelar dentro da roupa molhada. Passa-se um momento de ansiedade, a corda deixa de escorregar entre os meus dedos: pancadas de martelo e o ruído de pedras a caírem dizem-me que Louis está em dificuldades. O ambiente deprime extraordinariamente. Agarrado a esta parede hostil, naquele crepúsculo brumoso, sinto uma impressão angustiante de solidão: o meu moral desvanece-se como fumo. De repente, ouço um grito rouco seguido de um violento barulho de pedras a caírem. Num movimento reflexo, encolho-me para resistir ao choque, mas não acontece nada. Berro:

- Louis, que se passa? - Espero um momento pela resposta. Ela chega em voz sufocada:

- Apanhei com um grande calhau, mas não há perigo; não te preocupes, desta vez é que vai.

Assim, só a prodigiosa agilidade de Lachenal nos salvou da catástrofe! De repente, o aspecto dramático da nossa situação aparece-me com uma intensidade insuportável. Todo o meu ser se revolta contra a loucura desta escalada noturna e ouço a minha voz gritar suplicante:

- Lulu, pelo amor de Deus, não queiras fazer o impossível; bem vês que vamos dar cabo de nós. Temos que tornar a descer para o corredor antes que seja noite!

Louis ainda discute, dizendo que depois de caírem as rochas que não prestam a passagem se tornou mais fácil e há um carreiro mesmo por cima dele. Mas a sua voz perdeu o entusiasmo habitual e percebo que ele não está muito convencido do que diz.

Desta vez recuso-me a ceder, e grito:

- Grande estúpido, se não voltas depressa, não poderás dar nem mais um passo, e somos obrigados a bivacar aqui. Depois não te queixes!

Este argumento parece decisivo, porque, pouco depois, Lachenal vem ter comigo.

São agora cerca de dez horas da noite. A escuridão é total. Às apalpadelas, procuro uma brecha para espetar um piton; depois de várias tentativas, enterro um que parece seguro. Desamarramo-nos e montamos uma corda em chamada. Lachenal é o primeiro a descer; apresso-me a imitá-lo, mas, no momento em que vou deixar-me escorregar nas cordas, o piton solta-se e agarro-me à rocha. Um arrepio de medo percorre-me da cabeça aos pés. Após um momento de atrapalhação, retomo o sangue-frio e esforço-me por pregar outro piton, mas não vejo quase nada e a rocha é tão mole que a cada tentativa se esboroa e parte. Depois de vários esforços, tenho de voltar à minha primeira brecha. Cravo um novo piton um pouco mais grosso do que o anterior. Parece aguentar, mas já não tenho confiança. Gelado de medo, sem me atrever a confiar todo o meu peso a este ponto de apoio, tento descer em escalada, conservando as cordas atadas em volta de mim, na posição de chamada. É mau sistema, e após alguns metros escorrego e caio pesadamente; numa fração de segundo antevejo o drama, mas, decididamente, hoje a sorte não me abandona... o piton resistiu perfeitamente ao choque e é com a maior naturalidade que me junto a Lachenal.

A meia-noite encontramos finalmente um sítio onde podemos sentar-nos. Estamos arrasados pela fadiga e pelo sono, e temos que fazer um enorme esforço para tomar as

disposições necessárias à segurança e a um mínimo de conforto. Estamos molhados até aos ossos e a tremer de frio; ao abrir os sacos, a perspectiva de vestirmos os casacos forrados de penas reanima-nos. Tiro toda a minha roupa encharcada e, de torso nu, debaixo do chuvisco gelado, com verdadeira volúpia, enfio aquela roupa quente; enrolada no meu pé de elefante forrado de borracha, a roupa ficou seca.

Infelizmente, o Lulu não tomou as mesmas precauções e a sua camisola de penas parece uma esponja mergulhada na água. É escusado torcê-la. Aquela roupa não lhe dará calor algum; não há dúvida de que vai tiritar toda a noite. Depois de retirar algumas pedras, conseguimos encontrar uma posição suportável, e o meu amigo fica um pouco abaixo de mim, a sete ou oito metros à esquerda. Não tenho muita fome, mas esforço-me por comer o mais possível para recuperar as forças. Convido Louis a imitar-me, mas é com grande esforço que ele consegue engolir alguns bocados.

Pelas três horas da manhã, uma violenta tempestade começa a soprar ao longe. De vez em quando o brilho de um relâmpago consegue atravessar o espesso nevoeiro que nos envolve, mas não acontece nada no Eiger. A chuva parou e sente-se mais o frio.

Estamos inquietos e discutimos acaloradamente a situação. Na Walker não podíamos escolher: a retirada era impossível; era preciso subir ou morrer. Aqui, a situação é mais complexa; sabemos que no Verão passado Krahenbuhl e Schlunegger subiram até aqui e, apanhados pelo mau tempo, conseguiram descer, apesar da neve e dos enormes perigos da avalanche e a pouca solidez dos pitons. É portanto certo que, por mais perigosa que seja, a retirada pode salvar-nos. Embora desesperado com a ideia de renunciar tão perto do fim, inclino-me para esta solução. Lachenal, ao contrário, acha que no ponto em que estamos, quando algumas horas de escalada nos podem tirar de apuros, ainda é mais arriscado descer do que continuar a ascensão. No decorrer da discussão, este entusiasmo, esta vontade de vencer a todo o custo, acabam por me dominar. Naquela manhã enevoada, a descida não me parece convidativa e, afinal, não viemos em busca da aventura? Aí está ela, mais apaixonante do que nunca. É preciso vivê-la!

Às cinco horas já fazemos acrobacias sobre as lajes instáveis da travessia. O ar está pesado e tudo indica que não tarda a nevar. É preciso andar depressa e esperar que o céu se aguente algumas horas...

Depois de duas enfiadas de corda neste terreno horrível, onde a cada passo tenho a impressão de que tudo se vai afundar, chegamos a uma plataforma sólida. Ali, uma lanterna abandonada e um piton com um cordel indicam que a tentativa do ano anterior parou aqui. Uma curta travessia de gelo conduz-nos à base de uma parede de aspecto pouco convidativo. O ponto de partida é em pendor e não consigo cravar um piton suficientemente sólido para me aguentar; a única brecha de que disponho é demasiado larga. Por fim, esticando-me o mais que posso, espeto solidamente um ferro para gelo, a que me suspendo à sorte. Com a geada da manhã, a rocha, molhada da chuva, ficou coberta de gelo; os pontos de apoio estão ainda cheios de neve antiga e tenho que subir com grampons nos pés. Além disso, para ganhar tempo, conservei o meu saco. Nestas condições, não me sinto à vontade na parede vertical. É preciso limpar as asperezas uma a uma e só consigo subir lentamente, com grandes esforços.

Após uma dúzia de metros, vejo a borda de um carreiro muito próximo; uma pequena cornija separa-me dele e procuro imediatamente espetar um piton para o atravessar, mas as fendas são demasiado largas. Tanto pior, tenho que tentar sem a ajuda do piton... Uma saliência que atinjo com a ponta dos dedos deve permitir-me passar. Mas estou muito cansado; os dedos ainda fracos da minha mão estropeada abrem-se devido ao esforço e sinto que, se insistir, caio. Tento três vezes e três vezes tenho que voltar ao ponto de partida. Olho para baixo: o último piton está a menos de quatro ou cinco metros, na realidade muito baixo para eu me arriscar a cair. Mas que fazer? De qualquer forma, não vou parar por causa de uma cornija de dois metros. À força de tatear à esquerda, encontro uma fenda favorável e, numa posição muito melindrosa, consigo fazer aguentar um dos grandes pitons que Simond fabricou especialmente para mim. Meu Deus! Que aconteceria se não tivesse podido convencê-lo? Agora, com esta garantia, tento a saída. Reúno as minhas forças e aplico-as todas para atravessar o obstáculo de um só salto. Um segundo mais tarde, encontro-me num bom carreiro. Mas ai, neste movimento, o meu martelo foi de encontro à rocha. Sob a violência do

esforço, a correia de couro partiu-se e ele desapareceu no abismo. Esta perda pode resultar num grande desastre; agora já não podemos praticamente recuperar os nossos pitons e prefiro não pensar no que sucederia se perdêssemos o único martelo-picareta que nos resta.

A travessia para a Aranha apresenta-se muito mais fácil do que pensava: é certo que a rocha é péssima, mas achamos ali alguns antigos pitons que nos oferecem segurança. Subimos a Aranha a toda a velocidade, um atrás do outro, sem nos amarrarmos nem talhar um único degrau. Por sorte, o gelo é bastante mole e em vários pontos as rochas que afloram à superfície facilitam o nosso avanço. Julgando a vitória muito próxima, precipitamo-nos para o corredor soltando gritos de entusiasmo. A vertente pouco inclinada parece confirmar a facilidade desta passagem, prognosticada por Adolphe Rubi. Penetramos numa estreita garganta e imediatamente um piton nos indica que estamos no bom caminho. Mas a passagem é má, e chocamos com um ressalto muito liso, de uns dez metros, cuja rocha compacta está coberta por uma camada de gelo de cerca de três centímetros de espessura. Com as pontas anteriores dos grampos espetadas em apoios minúsculos, elevo-me dois metros, procuro cravar um ferro e quase caio. Não vendo qualquer solução, perco a coragem e tenho que descer. O Louis tenta também; através do gelo consegue introduzir um centímetro de piton numa ranhura superficial; por um milagre de equilíbrio eleva-se num ponto de apoio ridículo, e com mais quatro pitons igualmente pouco sólidos, graças a prodígios de habilidade, acaba por forçar a passagem. Quando subo a seguir, com a forte ajuda da corda, não tenho dificuldade em arrancar toda a ferramenta só com uma das mãos.

A inclinação diminui e, apesar do gelo que cobre completamente a rocha, subimos regularmente. Após algumas enfiadas de corda, somos obrigados a parar por um ressalto de rocha esbranquiçada, cortado por uma brecha em pendor. Numa rocha seca, uma oposição à Dulfer facilitaria a passagem. Mas, infelizmente, com o gelo que cobre tudo, é impossível empregar esta elegante técnica. Com muita dificuldade, elevo-me até à parte em pendor. Ali, consigo meter um enorme ferro para gelo e, afastando as pernas o mais que posso, subo um pouco e espeto um segundo ferro acima do pendor; mas este ficou enterrado numa espécie de pilha de ardósias que não me inspira confiança. Não encontrando nenhum apoio conveniente, não posso equilibrar-me. À falta de outra solução, agarro o ferro com ambas as mãos e tento pôr os pés num grande buraco da rocha. Mas os grampons escorregam loucamente no gelo. Finalmente, com um golpe de rins, quase consigo! Catrapuz!... E encontro-me seis ou sete metros mais abaixo, de pé, atrás de Lachenal. Foi tudo tão rápido que nem sequer tive tempo de sentir medo. Fui caindo aos poucos e "pousei" sem o menor trambolhão. Louis recebe-me com o seu ar trocista, dizendo-me:

- Tens a mania que és pássaro, ou quê? Depois, mais sério, acrescenta:

- Não partiste nada? É preciso eu lá ir meter isso?

Ainda quente da luta, furioso com o descrédito, respondo:

- Não é preciso, eu vou; não te preocupes, agora vou passar.

E, sem descansar, lanço-me novamente ao ataque. Desta vez consigo espetar com mais segurança o segundo ferro e aguentar-me numa boa saliência. Depois tenho de atravessar uma laje à minha esquerda, mas a presença do gelo torna-me a passagem difícil. O tempo está cada vez mais ameaçador e as nuvens carregadas de umidade ainda estão baixas. O nevoeiro já nos envolve e os sons têm uma ressonância abafada. Tudo indica que, de um momento para o outro, vai começar a nevar. Procuro desesperadamente evitar aquela laje coberta de gelo, mas não vejo outra solução: tenho que passar por ela e depressa. Agora, é uma questão de vida ou de morte.

Sem pensar mais, arrisco-me. Com as pontas dos grampos espetadas no gelo, as mãos agarradas a minúsculos apoios, num esforço de todo o meu ser, quase a cair, passo. Os sacos são içados a seguir e, segundo a tática habitual do segundo da cordada, Lachenal sobe à corda. Acima de nós ergue-se um novo pendor. Quando acabará este corredor infernal e estes pendores diabólicos escorrendo gelo? Tudo isto parece verdadeiramente invencível! Por onde teriam passado os alemães?

Vista aérea do cume do Eiger. A fotografia foi tirada durante a tragédia que Lionel Terray conta no fim deste livro. Vêem-se nitidamente na fotografia os dois grupos de salvação.

Talvez exista outra passagem noutro corredor mais à esquerda, por detrás desta aresta! Em poucos movimentos fico por cima de uma saliência. Mas não, o corredor é impraticável.

Nisto, vejo uma velha corda de chamada que ali ficou, certamente por não terem conseguido tirá-la. Agora compreendo. Com aquela corda os alemães desceram até à plataforma e, daí, devem ter chegado ao terceiro corredor. Sem me preocupar com a sua resistência, agarro-me a essa corda e, num instante, fico na base de uma larga chaminé, muito rija e coberta de gelo. A passagem não é nada convidativa, mas, com uma larga oposição lateral e muito otimismo, deve ser possível passar.

Assim que Lachenal chega, elevo-me com um grande afastamento de pernas até ao limite máximo das minhas possibilidades. Por momentos, parece-me que todos os meus músculos vão rebentar com o esforço. A rocha é compacta e praticamente impossível espetar nela qualquer piton. Quando estou quase no limite da enfiada de corda, consigo espetar dois ou três centímetros de um ferro. À falta de melhor, faço subir Lachenal por aquele apoio mais moral do que real. Começa a cair granizo e recebemos os projéteis da saraivada que sai do corredor vizinho. Por felicidade, um pendor protege-nos um pouco.

As dificuldades começam a diminuir, e a pouco e pouco uma alegria intensa começa a ferver em mim. Agora tenho a certeza: estamos salvos. A partir daqui, os grandes obstáculos ficaram para trás e nada poderá deter-nos. O granizo transforma-se em espessos flocos de neve, caindo em cerrada cortina. Mais uma hora e as nossas possibilidades de sair dali ficarão reduzidas a metade!... Daí a pouco atingimos uma rude vertente de rochas instáveis. Sentimos que o cume fica muito próximo. Espicaçados pela impaciência, escalamos a toda a velocidade, um atrás do outro.

Todavia, este terreno ainda é melindroso e verifico rapidamente o perigo de tal precipitação. A fim de termos todas as garantias a nosso favor, decido terminar a ascensão tomando todas as precauções a cada enfiada de corda. Lachenal sujeita-se resmungando, e o nosso avanço recomeça com a lentidão do alpinismo tradicional.

Mas como esta enfiada de corda me parece durar uma eternidade! Verdadeiramente, nunca mais acaba! É sem dúvida o cansaço e a impaciência que fazem com que me pareça mais comprida que de costume. Decididamente, passa-se qualquer coisa de anormal. Talvez Lachenal, levado pelo seu desejo de acabar, esteja a subir ao mesmo tempo que eu! Mas não, ele está ali, imóvel, a segurar a corda... Não se compreende; vou vigiá-lo com mais atenção. O

atrevido está a subir ao mesmo tempo que eu e, quando me volto, imobiliza-se e finge que está apenas a segurar a corda. Mas tudo tem um fim, mesmo estas rochas moles; segue-se uma vertente de neve, e o cume deve estar muito perto, todavia, a fadiga pesa-nos no corpo. Por isso, apesar do nosso desejo de andar depressa, avançamos a passo de caracol.

Bruscamente, desembocamos na aresta de Mittellegi, que o nevoeiro nos escondia. Desta vez é verdade: vencemos o Eigerwand.

Não sinto qualquer emoção violenta: nem o orgulho de ter realizado um feito invejável, nem a alegria de terminar uma tarefa difícil. No alto da vertente perdida no meio do nevoeiro, não sou mais do que um animal cansado e cheio de fome. Experimento apenas a satisfação animal de sentir que acabo de "salvar a pele". Queria parar, mas Louis não me dá tempo. Apoderou-se dele uma grande excitação. O desejo de regressar ao vale a fim de dizer à mulher que tudo correu bem faz-lhe perder a cabeça. Apesar das suas invetivas, é estafado que subo a aresta terminal e às quinze horas pisamos o cume. Mas a aventura ainda não terminou; falta o horrível suplício da descida.

A alegria de Lionel Terray, depois da sua vitória sobre o Eiger.

"Por uns instantes seguimos um vago grreiro que em breve desaparece Cegos pelo vento e pela neve avançamos ao acaso ".

A tempestade

A camada de neve recente atinge agora mais de dez centímetros e, a fim de não escorregarmos a todo o momento, conservamos os grampons nos pés Assim calçados, torcemos os pés nos montes de detritos e o meu tornozelo magoado incomoda-me extraordinariamente

Lachenal, sem a menor fadiga, corre a minha frente estimulando-me Como continuamos amarrados um ao outro, sou obrigado a segui-lo Este ritmo cansa-me e, no fundo do meu coração, começo a detestar aquele tirano frenético Cometemos o erro de não colher informações pormenorizadas sobre o caminho da descida Sabemos apenas que é fácil e corre pela vertente oeste. Uma olhadela num postal revelou-nos que um longo corredor de neve

contorna a sul esta vertente, aliás, segundo parece, bastante pouco inclinada. Muito vagamente, concluímos que o caminho de descida era ali e que, de qualquer forma, numa parede de aspecto tão fácil, não haveria problemas.

No meio do nevoeiro e da tempestade, procuramos agora atingir o corredor. Por uns instantes, seguimos um vago carreiro, que em breve desaparece. Cegos pelo vento e pela neve, avançamos ao acaso.

Perto de nós ruge o trovão e os nossos cabelos crepitam desagradavelmente.

Ser surpreendido na montanha por uma tempestade elétrica é uma coisa aterradora. Os estrondos que ensurdecem, as faíscas por cima da cabeça, possíveis descargas que nos sacodem e nos levantam do chão, tudo dá ao perigo um aspecto palpável que mete medo aos mais valentes. Mais ainda do que à mercê de um tiro de artilharia, o homem sente-se abandonado sem defesa a forças incontroláveis, capazes de o aniquilar num instante. Reduzido ao estado de um animal perseguido, a sua fraqueza e solidão surgem-lhe de repente em toda a sua imensidade. O perigo é aliás muito real, e bastantes alpinistas ficaram fulminados, gravemente feridos ou foram atirados para o abismo.

Mas hoje, ultrapassei o limite do medo. Até a tempestade me deixa insensível. Avanço como num sonho, obcecado pela ideia de chegar o mais depressa possível a um lugar onde possa finalmente parar, comer, beber e dormir. O medo da tempestade aumenta mais o frenesi de Louis, mas nem por instantes ele pensa em abrigar-se. No seu espírito obnubilado, só pensa em descer. A correr, a gritar, a gesticular, parece possesso do demônio. Durante muito tempo, andamos aos ziguezagues por entre as placas de calcário. Depois, de súbito, a vertente branca do corredor surge a nossos pés.

Sobre este terreno fácil, descemos a toda a velocidade e a perspectiva de chegar ao termo dos nossos esforços faz-nos gritar de alegria.

Mas, de repente, o corredor acaba e é substituído por um grande bloco de rocha. É demasiado alto para ser atravessado em chamada e, tanto à direita como à esquerda, não se vislumbra qualquer passagem. Metemo-nos numa ratoeira, ali não há caminho nenhum. Mas onde está ele então? Com certeza mais a norte. É preciso portanto tornar a subir! Mas encontraremos a passagem antes da noite? Novamente mil ideias inquietantes se chocam na minha cabeça. A tarde desce, a tempestade continua a soprar e, no estado em que nos encontramos, bem sabemos que um terceiro bivaque seria dramático.

Por um instante, o fim trágico de Molteni e Valsecchi, mortos de cansaço a menos de três quartos de hora da cabana, quando acabavam de conquistar a vertente norte do Badile, vem-me à memória e não posso deixar de pensar que nos ameaça igual destino.

Há uma pequena abertura e julgo ver uma possibilidade de descida na vertente esquerda, mas Louis prefere tentar a vertente direita. Estou demasiado cansado para discutir e a sua vontade prevalece sobre a minha. Sigo-o, graças a Deus.

Com muita dificuldade, subimos o corredor e, no primeiro carreiro, dirigimo-nos à vertente oeste. Esta parede parece ser um labirinto complicado de placas rochosas, de altura desigual, que separam numerosos carreiros. A rocha continua compacta; já quase não temos pitons. Nestas condições, fazer descidas em chamada seria difícil e em condições nenhumas nos levariam até lá abaixo.

A nossa descida só é possível graças às chaminés e aos estreitos corredores que de longe em longe permitem passar de um andar ao outro. Mas de um momento para outro, uma placa maior que atravesse toda a vertente pode fazer-nos parar, sem remédio. A todo o instante temos a impressão de que vamos ficar bloqueados; depois, à última hora, acabamos sempre por achar uma abertura. Lachenal continua esfusiante. A sua vitalidade e o seu gênio de alpinista são uma coisa maravilhosa. Com uma agilidade incrível, ele corre da direita para a esquerda sobre as lajes cobertas de neve. Parece estar em toda a parte ao mesmo tempo. Graças a ele, apesar da complicação do itinerário, avançamos bastante depressa. Mas uma terrível impressão de drama pesa continuamente sobre nós. Que aconteceria se uma falésia nos obrigasse a parar? Teríamos ainda forças para tornar a subir, resistiríamos a um novo

bivaque?

Depois, de repente, a nossa angústia dissipa-se e tudo se torna simples: ali, a dez metros dos nossos pés, a parede acaba sobre uma vasta geleira. Voltando as costas ao mundo de rochas e tempestade onde acabamos de viver horas exaltantes de que cada minuto ficará para sempre gravado na nossa memória, começamos a descer para a terra dos homens...

Em Eigergletscher, chamadas telefônicas pedindo notícias nossas indicaram que estávamos no Eigernordwand, e começava a reinar a maior inquietação.

Os suíços alemães são frios, por vezes até pouco amáveis; mas devo dizer que, excepção à regra, todo o pessoal do Hotel Gare nos recebeu com muita gentileza. Aqueles lugares só são frequentados durante o dia e nessa noite éramos praticamente os únicos clientes. Todos, livres de tarefas, se esforçavam por nos reconfortar e ser-nos agradáveis. Uma fome atroz fazia-nos doer o estômago e havia horas que sonhávamos com o banquete que íamos comer. Não será essa uma das qualidades do alpinismo: realçar o valor de atos tão banais como comer e beber? Infelizmente, quando nos foi possível sentarmo-nos em frente de uma saborosa refeição, foi com dificuldade que pudemos engolir alguns bocados.

A noite foi agitada; uma sede crônica queimava-nos a garganta. Precisávamos de beber a todo o momento, mas o líquido só provisoriamente nos matava a sede e não conseguíamos dormir.

Nunca percebi porque é que a nossa aventura do Eiger nos marcara assim, a ambos, ao ponto de perdermos o apetite e o sono. A Walker é uma travessia mais atlética e só um pouco menos longa do que o Eigerwand, e abalara-nos muito menos. Depois, fiz outras ascensões ainda mais difíceis, nomeadamente a parede terminal do Fitz-Roy; no regresso sempre consegui comer e dormir quase normalmente.

Tendo-nos levantado cedo, mal havíamos saído do quarto, um jornalista veio falar conosco. Viera de noite e a pé, porque queria ser o primeiro a ouvir o relato da nossa expedição. Daí a pouco chegavam-nos chamadas telefônicas de toda a parte, e o primeiro comboio da manhã despejou uma dúzia de jornalistas e fotógrafos. Este súbito entusiasmo pela nossa aventura causou-nos a maior estranheza. Com efeito, nem por um instante tínhamos imaginado que esta segunda ascensão do Eigerwand despertasse tanta curiosidade por parte da imprensa, e a ideia de que, após o êxito, os nossos nomes iam figurar em grandes títulos nos jornais da Europa inteira nunca nos tinha passado pela cabeça.

Depois de satisfeita a curiosidade dos jornalistas, ficamos sozinhos com os nossos problemas. Com o rosto pálido, a roupa rasgada e ainda úmida, parecíamos dois desgraçados. Tomamos o comboio como quaisquer turistas. Paga a conta do hotel, quase não tínhamos dinheiro para comprar comida.

Felizmente, em Berna, uma nova onda de jornalistas estava à nossa espera e ofereceram-nos de almoçar. Na rua, um transeunte reconheceu-nos e insistiu em pagar-nos uma bebida. Em Genebra, os companheiros do Androsace fizeram-nos uma recepção triunfal e em casa do meu amigo Pierre Bonnant reunimo-nos com uma dezena deles durante um alegre serão. Esta amizade verdadeira e este calor humano deram-nos maior prazer do que os grandes títulos dos jornais.

No dia seguinte, o nosso amigo Paul Payot, que ainda não era presidente da Câmara de Chamonix, foi buscar-nos a Genebra de carro, acompanhado das nossas esposas.

No dia seguinte, eu subia para o refúgio com os meus estagiários do curso de guias-aspirantes. A vida retomava o seu curso normal. A partir de agora, sabia que a glória não passa de títulos nos jornais, felicitações e a alegria de alguns amigos verdadeiros.

O Eigerwand não era mais do que uma boa recordação. Nos cumes banhados de sol, outras aventuras, outras lutas nos esperavam.

O salvamento

Depois da nossa vitória no Eiger, parecia-me impossível que o destino me levasse algum dia de novo a esse cume. Nas outras vertentes, apenas a via Lauper da face nordeste é verdadeiramente digna de interesse. Mas o Oberland fica muito longe e há tantas travessias a fazer por esse mundo fora!...

Mas nunca se pode ter a certeza de coisa nenhuma. Dez anos mais tarde, eu devia viver nesta montanha uma das aventuras mais apaixonantes da minha carreira. Antes de pôr de parte o Eiger, gostava de a contar. Em 1957, havia entre a minha clientela como guia dois excelentes alpinistas holandeses. Tinha-os ensinado praticamente desde o princípio, havia já sete anos. Com qualidades, tinham-se tornado bons escaladores. Caso raro, saíam-se bem sobretudo nas travessias de glaciares e revelavam uma nítida preferência por este tipo de ascensão. Tínhamos atravessado juntos algumas das vertentes norte mais difíceis do maciço do monte Branco e até, por duas vezes, tinham-me levado ao Peru, onde conseguimos a primeira ascensão de vários picos glaciares temíveis. A vivermos juntos tantas aventuras, tínhamo-nos tornado amigos, como irmãos.

Naquele ano, desejosos de realizar interessantes escaladas glaciares, e sabendo que esse maciço conta com grande número delas, tínhamos partido para o Oberland. O tempo estava magnífico e já havíamos vencido a vertente nordeste do Watterhorn. Satisfeitos com esta primeira incursão, dirigimo-nos a Grindelwald, onde estava instalado o nosso acampamento base. Foi então que se deu o drama.

- Reparem! Eu estou a vê-los!... Além, na grande geleira, perto daquele ângulo de rocha.

- Também os vejo!... Mas são três. Não vêem o terceiro?

Ainda meio a dormir, um pouco aborrecido por ser acordado às oito horas por aquelas vozes com sotaque belga, falando com excitação mesmo ao pé da minha tenda, não tomo atenção às palavras e volto-me dentro do meu saco para tentar adormecer novamente.

Mas as palavras entram no meu subconsciente e fico completamente acordado, perguntando a mim próprio o que estão aquelas pessoas a ver para ficarem tão excitadas. Recordo-me então de que, na véspera, um guia local me disse que uma cordada atacou o Eigerwand. É sem dúvida a vista dos alpinistas em plena muralha que põe o acampamento em alvoroço.

Sacudo Tom e Kees e, munido do binóculo, saio da tenda. Todos os habitantes do acampamento de Grindelwald têm os olhos fixos na falésia escura e sinistra cujos 1700 metros dominam o vale, tão perto que por vezes é possível ver ali um homem a olho nu.

As conversas continuam em todas as línguas. Em poucos minutos, ouço uma quantidade enorme de disparates e suposições. Alguns falam de trinta alpinistas mortos naquela falésia; outros afirmam que ela só foi escalada uma vez!...

Tudo isto seguido de comentários deste gênero:

- "É preciso ser completamente doido... Só um louco tentava uma coisa destas."

Bem encostado à roda de um carro, examino cuidadosamente a falésia. Não tenho a menor dificuldade em ver, não apenas três, mas quatro alpinistas. Atingiram a parte superior da segunda geleira. Subindo muito perto das rochas, dirigem-se para a esquerda para atingirem a agulha onde morreram Sedlmayer e Mehringer. Parecem formar só uma cordada e o seu avanço é de uma lentidão incrível. Por experiência própria, sei que esta geleira tem uma inclinação de pouco mais de 45 graus; não se vê gelo em parte nenhuma e se, devido ao bom tempo, a neve não gelou, com certeza está em ótimo estado para permitir uma ascensão muito mais rápida. Dez anos antes, com Lachenal, apesar do gelo vivo, atravessamos aquela geleira pelo menos em metade do tempo. Porque é que aqueles homens avançam tão lentamente? Não vejo a explicação. O que me parece muito mais inexplicável ainda do que a lentidão daqueles alpinistas é vê-los continuar a ascensão quando o mau tempo se aproxima a passos

largos! Com efeito, o lindo céu azul dos últimos dias foi substituído por grossas nuvens negras anunciadoras de importantes perturbações atmosféricas e, à medida que a manhã avança, a atmosfera torna-se cada vez mais ameaçadora. Em última análise, compreenderia, se a montanha estivesse em ótimas condições, que uma cordada bastante rápida e temerária tentasse dirigir-se para o cume, na vaga esperança de o atingir naquela mesma tarde. Onze anos antes, com o meu amigo Lachenal, tínhamos feito uma coisa parecida no pico Walker, com a diferença de que, nesse dia, o tempo estava muitíssimo menos ameaçador do que naquela terça-feira, dia 6 de Agosto de 1957.

"O homem conseguiu entrar em contato com os prisioneiros da vertente. Parece que se encontram perto do cume da Aranha, e sem demora vamos tentar içá-los."

Mas desta vez não compreendo. O que se passa em frente dos meus olhos ultrapassa cem vezes todas as loucuras heróicas que a própria essência do alpinismo permite desculpar. A montanha está visivelmente em péssimas condições. Aqueles quatro homens gastaram dia e meio a subir a parte mais fácil da parede, que uma boa cordada deve normalmente escalar em meio dia. (Só mais tarde saberia que os italianos atacaram no sábado e os alemães no domingo, o que torna a sua atitude ainda mais insensata.) Agora, numa geleira fácil, só conseguem avançar à velocidade de um caracol. Há todos os sinais de uma tempestade iminente. Ainda é possível bater em retirada sem dificuldades de maior. E, apesar de tudo, aqueles quatro homens continuam a subir com a mesma lentidão desesperante, como se já não fossem seres de carne e osso, mas máquinas inconscientes, insensíveis à dor e à morte.

Impotente sobre a relva de Grindelwald, vejo aqueles homens marchar para uma morte certa. Não compreendo que objetivo os leva a continuarem assim uma ascensão sem esperança. Nenhum ideal, nenhuma questão técnica conseguem explicar semelhante comportamento. Convencidos de que nada podemos fazer por aqueles insensatos, abandonamos Grindelwald para só voltarmos na quinta-feira à noite. Na quarta-feira de manhã, como se o céu quisesse dar uma última oportunidade de retirada aos imprudentes, o tempo está relativamente bom, mas, ao fim da tarde, uma terrível tempestade cai sobre a montanha, seguida de um verdadeiro dilúvio durante todo o dia de quinta.

Na sexta de manhã, como o céu se desanuviou um pouco, observo de novo a parede e vejo nitidamente o rastro que vai do espigão até à Rampa. Os campistas dizem-me que viram os quatro alpinistas na quarta-feira quando parecia que tentavam atingir a via Lauper da vertente nordeste. Os meus amigos holandeses, menos habituados do que eu a estas tragédias da montanha, seguem os acontecimentos com paixão. Tom, que herdou de uma avó irlandesa um temperamento extremamente excitado e generoso, enfurece-se com a ideia de não poder fazer nada para salvar os quatro extraviados. Estabelece-se entre nós uma acalorada discussão sobre o assunto.

- Ouve, Lionel, não achas que poderia ao menos tentar-se fazer qualquer coisa para os tirar dali?

- Com este mau tempo e a neve caída de fresco, seria uma loucura: há todas as possibilidades de lá ficar, e nem uma de sair! Estou de acordo em tentar salvar um tipo quando os riscos são aceitáveis, mas sou contra aventuras loucas, onde as pessoas se matam sem benefício nenhum. Acredita, eu conheço aquela vertente: eles ainda estão muito em baixo. Não é possível fazer nada de útil enquanto não atingirem a Aranha ou, mais propriamente, a via Lauper, e mesmo nessa altura não é brincadeira nenhuma.

- Então, se eles lá chegarem, tentas levar uma caravana de socorro? Se conseguíssemos, era formidável.

- Escuta, Tom. Tu bem sabes o que me aconteceu o Inverno passado. Censuraram-me porque, em vez de conversas, tentei salvar dois rapazes que, três dias antes, podiam ser retirados sem dificuldade. Apesar disso, acho que se o Eiger fosse em França tentava fazer qualquer coisa. Ainda tenho bons amigos que me seguiriam. Mas aqui, que queres que eu faça? Não conheço ninguém, e não falo uma palavra de alemão! E sabes a opinião das pessoas da terra. Disseram e escreveram muitas vezes: para eles, fazer o Eigerwand já não é alpinismo, mas mania das grandezas. Quem quer meter-se nisso, fá-lo por sua conta e não deve esperar socorro nenhum. Depois disto, que pensavas fazer?

- E se outra pessoa qualquer formar a caravana de socorro, vais com eles? Nessa altura ninguém te pode censurar, íamos os três, e assim não te sentias isolado.

- Em primeiro lugar, quem julgas tu que formaria essa tal caravana? Ninguém se rala com os quatro idiotas que vão morrer, e depois, mesmo assim, eu não ia. Só arranjava sarilhos. Não quero que falem mal de mim e, aliás, não sou indispensável. Se eles quiserem, há muitos homens na Suíça capazes de um salvamento difícil.

- Não esperava isso de ti, Lionel! Não tens o direito de pôr as questões pessoais acima do dever. Podes prestar um grande serviço num caso destes, portanto deves lá ir.

- Não vou; não quero que digam mal de mim nas minhas costas. E depois, esses quatro tipos não são como os do monte Branco, rapazes valentes que não tiveram sorte. São loucos, idiotas que continuaram a subir apesar do mau tempo. Podiam ter descido. Não me apetece arriscar-me por causa de semelhantes estúpidos.

- E se te pedissem para ires, mesmo assim não ias?

- Ah, isso era outra coisa. Se me pedirem formalmente, vou. Por espírito de solidariedade, não posso recusar. Mas como só o Rubi é que sabe que eu cá estou, é pouco provável que me venham buscar.

A manhã passa-se sem trazer nada de novo. As nuvens que deslizam ao longo do Eigerwand continuam a esconder-nos os quatro escaladores, mas, acima de nós, muitas manchas azuis abrem-se no céu, e parece que o tempo vai melhorar. Não tendo nada para fazer em Grindelwald, resolvemos partir em excursão. Devido às más condições, escolhemos um objetivo bastante modesto: a aresta do Nollen, no Monch. A meio da tarde, tomamos o comboio da Pequena Scheidegg com o intuito de subir até à cabana Guggi. Na carruagem, todas as conversas giram à volta do destino dos homens perdidos no Eigerwand, e um viajante informa-nos que, por iniciativa de um dos alpinistas da quarta ascensão, Sailer, foi organizada uma equipe de socorro.

Na estação de Eigergletscher chove tanto que decidimos dormir ali e partir à uma hora da manhã se o tempo melhorar.

O jantar decorre em silêncio. Os meus amigos percebem que estou preocupado e eles próprios não suportam a ideia de que a algumas centenas de metros dali quatro homens agonizam. Depois, bruscamente, Kees exclama:

- Acho que o Lionel deve ir juntar-se à equipe de socorro. Lá é que é o seu lugar.

Eu respondo:

- Talvez, mas só vou se o guia da caravana me pedir.

Sem mais discussão, Tom levanta-se, vai ao telefone e liga para Jungfraujoch; passados uns segundos, Sailer atende. Falam alguns minutos em alemão, e só compreendo "Berg-führer", "Terray", "Chamonix", depois, estende-me o auscultador e diz:

- O Sailer quer falar contigo.

Como este domina perfeitamente o francês, a conversa é fácil. Pede-me com insistência que vá. A sua caravana é numerosa mas composta na maioria por elementos tecnicamente bastante fracos e ele precisa urgentemente de guias e alpinistas de valor.

São perto de nove horas e nessa noite já não deve haver nenhum comboio para Jungfraujoch. Consequentemente, resolvemos subir o túnel a pé, ao longo da linha. Mas os empregados da estação Eigergletscher opõem-se terminantemente a este projeto. Tom consegue falar pelo telefone a alguém da direção, mas não obtém autorização... O regulamento é o regulamento e não vai ser modificado para salvar quatro pessoas!...

Perante a invencível estupidez e má vontade da administração daquele caminho de ferro, decidimos partir às quatro horas da manhã pela linha da vertente oeste do Eiger a fim de atingirmos no cume a equipe de salvamento que saiu do Jungfraujoch.

No íntimo do meu coração não creio que, num terreno tão hostil ao homem, escaladores, por mais rijos que sejam, tenham conseguido resistir a uma semana de luta contra o mau tempo. Se me juntei a esta ação de salvamento, foi mais por espírito de solidariedade para com os salvadores suíços, cuja prova de generosidade me é extremamente simpática, do que porque espere verdadeiramente retirar pessoas vivas daquele abismo de apocalipse. Assim, é sem grande convicção que me debruço na parede e, aproveitando uma das raras acalmias do vento, lanço alguns gritos. Conforme esperava, apenas o rugido da tempestade responde aos meus apelos. Estamos prontos para partir quando, com imensa surpresa, nos chega distintamente o som de uma voz. Comovidos perante estes gritos que parecem vir do

outro mundo, perguntamos se não é imaginação nossa; mas daí a pouco outros apelos indicam-nos com segurança que, por mais extraordinário que pareça, do fundo do precipício do Eigerwand alguns homens pedem socorro. Muito excitados com esta situação dramática, persuadidos de que com o bom tempo que parece querer romper poderemos talvez tomar parte numa ação útil, encaminhamo-nos para o cume. Em breve encontramos na aresta do colo do Monch cordadas lutando contra um vento furioso. Convencidos de que nos atrasamos e vamos encontrar uma multidão no cume do Eiger, forçamos a marcha. Quando, às 8 e 45, chegamos ao cume, ficamos surpreendidos por o ver tão deserto como no princípio do Mundo. Não é sem emoção que me encontro sobre esta crista, onde, dez anos antes, esgotado por dois dias de luta, me pus de pé em plena tempestade. Virou-se ali uma das páginas mais ardentes da minha vida e revivo esse instante com extrema intensidade. Trespassa-nos um vento glacial. Para nos aquecermos e realizarmos um trabalho útil, começamos a abrir no gelo uma plataforma que permita aos que vão chegar instalarem-se comodamente. Há cerca de duas horas que estamos entregues a esta tarefa quando surgem no cume dois alpinistas. Com ar decidido, rosto fechado, gestos medidos e poucas palavras, após uma curta saudação, instalam-se ao nosso lado e começam a aquecer chá. Tom, que fala perfeitamente o alemão e até o suíço alemão, começa a fazer-lhes perguntas sem rodeios. É assim que ficamos a saber que, tendo partido à uma hora da manhã do Jungfraujoch, a coluna, constituída por quatro salvadores pesadamente carregados, foi terrivelmente incomodada e até dispersa pelo vento glacial que sopra com extrema violência sobre a delgada aresta do Monch. Foi preciso fixar cordas e arrumar tudo. Mas, apesar deste atraso, a ação continua e não tardam a chegar outras cordadas. Ficamos a saber também que o mais alto dos dois rapagões taciturnos que veio em missão de reconhecimento não é senão Eric Friedli, o fabricante do material de socorro adotado pela C.A.S. Não tardo em reconhecer o valor excepcional deste mecânico de Thoune, certamente um aos melhores especialistas que possa haver para os salvamentos difíceis que exigem a utilização de cabos. Após uma ligeira refeição, os dois suíços alemães começam a trabalhar na instalação de uma plataforma e de um ponto para amarrarem o cabo. Mas, como a rocha é quebradiça, têm de aplicar muitos pitons e até enrolar cabos em volta de um grande bloco de pedra. Pelas quinze horas, instalado o cabo, Friedli pede voluntários para fazerem uma primeira descida de reconhecimento. Sailer, o excelente escalador Perrenoud e eu oferecemo-nos como voluntários. Friedli escolhe Sailer. Após 60 ou 70 metros apenas, este, tendo chegado à beira da parede vertical, declara que o corredor fica mais a leste. É preciso portanto instalar o cabo um pouco mais afastado, e recomeça todo o trabalho.

Enquanto o grupo de Thoune se entrega a esta nova tarefa, começamos a trabalhar na instalação do bivaque. Uma parte da caravana torna a descer até à estação de Eigergletscher a fim de trazer no dia seguinte abastecimentos e mais material. Chegam mais homens a cada instante: primeiro alguns alemães dirigidos pelo velho Gramminger, um dos escaladores que realizou alguns dos salvamentos mais difíceis da história do alpinismo.

Mais tarde vemos, com surpresa, chegar os célebres escaladores italianos Cassin e Mauri, que partiram precipitadamente de Lecco para socorrerem os seus compatriotas. Finalmente, ao cair da noite, aparecem oito jovens com grandes carregos, que ninguém anunciara. É um grupo de polacos que tinham vindo escalar as grandes vertentes norte do Oberland. Num gesto espontâneo de solidariedade, juntaram-se a nós. Neste ambiente de torre de Babel, os talentos de poliglota do meu amigo Tom são muito úteis. Sem contar o holandês, ele fala indiferentemente quatro línguas. Com os olhos brilhantes de inteligência e bom humor no meio da cara redonda, agitando o corpo com um desembaraço muito meridional, fala com uns e com outros. Graças a ele, todos conseguem compreender-se. Ao longo da aresta do Eiger, mais de trinta pessoas trabalham esforçadamente a abrir plataformas de bivaque e até verdadeiras grutas ao abrigo do vento que continua a soprar com força.

O fato de falarmos línguas latinas, junta-nos no mesmo bivaque: Tom, os dois italianos, Eiselin, que é de Lucerna, e eu; o ambiente é de camaradagem. Dizer que não temos frio seria exagero, mas passamos todos por situações bem piores e, apesar do pouco material de que dispomos, o bivaque desta noite é afinal semelhante a muitos outros. Ao romper do dia, quando estamos a aquecer chá e a comer as poucas provisões que nos restam, os alemães mandam um dos da sua equipe em reconhecimento. Passado bastante tempo, a notícia espalha-se como um rastilho na aresta do Eiger: o homem conseguiu entrar em contato com os prisioneiros da vertente. Parece que se encontram perto do cume da Aranha, e sem demora vamos tentar içá-los!... Nessa altura parece que o céu, querendo recompensar o gesto de

generosidade que reuniu todos aqueles homens para uma tentativa que parecia sem esperança, faz com que os seus esforços não sejam inúteis. Mas se é possível agora esperar arrancar ao abismo alguns daqueles quatro imprudentes, ainda estamos longe de os poder abraçar, e mais longe ainda de os levar às famílias. Enormes obstáculos estão por vencer. O fator chave do êxito é o tempo. No alto das montanhas tudo é possível com bom tempo. No meio da tempestade é tudo cem vezes mais difícil. O tempo dá-nos bastantes esperanças, mas também nos causa bastantes receios. O vento da véspera, violento e glacial, que atrasara tanto a coluna vinda do Jungfraujoch, amainou, e a temperatura está até bastante agradável. Em contrapartida, o céu azul foi substituído por um teto de nuvens sombrias. Por enquanto, estão a grande altitude, mas são tão negras, tão pesadas, que vão com certeza deixar cair a neve acumulada nos seus flancos. O êxito ou o insucesso da nossa empresa depende, antes de tudo, do tempo que as nuvens resolverem permanecer lá em cima. Finalmente, Friedli faz descer o jovem alemão Hellepart, escolhido pela sua estatura de Hércules e pelo seu vigor excepcional. Munido de um aparelho emissor-receptor, este pode ficar permanentemente em contato com a aresta e informar-nos do que se passar na descida. Após a difícil camada de neve da calota superior, ele avança sem incidentes ao longo das grandes chaminés que se elevam acima da Aranha. Apenas alguns ressaltos verticais o obrigam a atrasar por uns instantes a descida, que um tambor de madeira, em volta do qual está enrolado o cabo, permite abrandar ou acelerar à vontade. A cada 100 metros, é preciso bloquear o cabo a fim de aparafusar um novo troço de 100 metros. Após 300 metros, Hellepart anuncia que se aproxima de um dos homens em perigo. Este parece muito mais alto do que os outros, que ouve gritar mas que não consegue ver. A 370 metros, o alemão junta-se ao escalador. É o italiano Corti que - por mais extraordinário que pareça - ainda se encontra em boas condições. Demora um bocado antes de Hellepart lhe poder dar injeções de coramina, depois carregá-lo às costas graças a um maravilhoso aparelho semelhante a um alforge.

Para içar os homens dispomos de um guindaste especial, onde basta, em teoria, dar à manivela. Contudo, Friedli, receando que este aparelho não seja bastante forte para resistir a todas as fricções do cabo contra a muralha, preparara já uma espécie de reboque ao longo da crista do Eiger, isto é, sobre mais de 60 metros. Foi uma boa ideia porque, após algumas tentativas sem resultado, verifica-se que o guindaste não tem força para içar até nós os dois homens. Sem se atrapalhar, Friedli estende o cabo ao longo do caminho do reboque e, em cada seis ou sete metros, dispõe garras de mola tão engenhosamente concebidas que se podem retirar rapidamente e colocá-las noutro sítio do cabo. Por meio de uma corda de alguns metros, Friedli põe quatro ou cinco homens em cada uma das garras. Somos assim mais de trinta a puxar pelo cabo. À primeira tentativa, apesar da enorme força desenvolvida, o cabo não se mexe uma polegada. Certamente a ponta de algum parafuso com que se ligaram os troços da corda ficou presa numa ranhura da rocha. A situação é grave e o nosso otimismo começa a dar lugar a um leve pânico. Se não conseguirmos içar os dois homens com o cabo, vamos ser obrigados a abandonar o italiano à sua sorte, e será muito difícil recuperar Hellepart com a ajuda de cordas.

São chamados reforços e um dos homens de Berna, de pé sobre a cornija, comanda a manobra com voz de trovão. Graças a uma melhor coordenação dos nossos esforços, o cabo, depois de se ter esticado de forma inquietante, começa a deslizar lentamente. Quando percorremos sete a oito metros do caminho do reboque, Friedli trava o cabo no tambor, colocamos as garras mais adiante e a manobra recomeça. Temos que puxar assim 370 metros de cabo por seções de sete a oito metros. Como se imagina, vai demorar, tanto mais que Hellepart, com as pernas dobradas de encontro à parede, tem que despender um enorme esforço muscular que o obriga a descansar com frequência. Passada mais de uma hora e meia, os dois homens aparecem finalmente na base da vertente coberta de neve. A partir de agora, nada nos pode impedir de os trazer até nós e o nosso trabalho não terá sido inútil... Contra todos os raciocínios, devido à força dos sentimentos generosos que neste século de egoísmo subsistem ainda no coração do homem, uma vida será salva.

Em breve, Hellepart, quase no limite das suas forças, pode colocar o seu fardo na plataforma da aresta. Apesar do aspecto medonho do seu rosto descarnado, onde os olhos minúsculos se perdem no fundo das órbitas, Corti resistiu de maneira incrível aos oito dias que acaba de passar no Eigerwand. Não parece sofrer de enregelamento grave, e não só consegue manter-se de pé como gesticula, fala, geme e até diz graças. Em contrapartida, não consegue contar o que se passou, e parece menos preocupado com a sorte dos seus companheiros do

que em saber se a sua ascensão será considerada a primeira ascensão italiana do Eigerwand. Cai constantemente em contradição, mas confirma que o homem que ficou na travessia para a Aranha - de quem os observadores da Pequena Scheidegg podem ainda seguir os movimentos - é realmente o italiano Longhi. Era aliás o que nos tinham assegurado Cassin e Mauri, que ontem à tarde conseguiram trocar algumas palavras com ele desde a vertente noroeste Mas é impossível saber que é feito dos dois alemães. No meio das contradições, sabe-se que Corti subiu com eles até ao cume da Aranha; que deu então uma queda e que os alemães o abandonaram com material de bivaque, mais ou menos no lugar onde Hellepart o encontrou. Não tendo este encontrado nenhum rasto dos alemães, deve pensar-se logicamente que aqueles escorregaram e que os gritos que se ouviram eram de Longhi. De qualquer forma, é preciso que alguém desça novamente a parede, pelo menos até à base da Aranha, a fim de tentar encontrar os alemães e ver se é possível socorrer Longhi. Friedli e Gramminger perguntam-me se continuo disposto a descer na ponta do cabo, e eu aceito imediatamente. Põem-me na cabeça um capacete para me proteger da queda das pedras; colocam-me no peito um aparelho de rádio, e o infatigável Friedli dá-me ainda alguns conselhos sobre injeções. Depois, estimulado pelos companheiros, começo a descer ao longo da vertente de neve. Daí a pouco chego à primeira parede de rochas. Quando mudo de vertente, vejo brechas de mais de um centímetro que o cabo abriu no calcário. Depois fico parado durante alguns minutos. O rádio informa que estão a ajustar ao cabo mais uma secção de 100 metros. Finalmente, continuo a descer ao longo das chaminés e dos corredores que, dez anos antes, subi graças à energia que dão as situações desesperadas. Que estranha impressão estar de novo naqueles sítios que não esperava ver nunca mais! Nada parece ter mudado. Como nesse dia, a neve e o gelo cobrem as rochas negras e lisas, e pesadas nuvens pairam sobre a montanha e começam a soltar os seus flocos de neve. Revivo aqueles instantes com extraordinária intensidade. As graças de Lachenal soam-me ainda aos ouvidos. Parece-me estar a vê-lo, ágil como um gato, a sair daquelas chaminés, com os olhos a brilhar de malícia para me gritar: "Então, guia, a viagem pareceu-te interessante?"

De súbito, o cabo deixa de descer. Chamo para cima a fim de saber o motivo, mas a minha pergunta fica sem resposta. Em vez disso, capto uma conversa em alemão, segundo parece, entre a Pequena Scheidegg e o cume. Finalmente, ouço chamarem-me do cume: "Alô, Terray, ouves-me? Responde." Eu respondo: "Ouço perfeitamente. Porque pararam a descida? Ouves-me? Responde." Parece que não me ouvem.

Depois, novamente chamadas em alemão, outras em francês, tudo isto cortado de longos silêncios. A situação eterniza-se. Instalado como num trapézio na ponta do cabo, estou bastante confortável, mas o tempo parece que não tem fim. Para me entreter, faço pêndulo para a esquerda a fim de ver mais de perto a chaminé que em 1947 o gelo me forçou a subir com grampos nos pés e um afastamento de pernas que me deu cãibras terríveis. Encontro mesmo a brecha onde consegui enterrar o piton salvador. Mas, cada vez que o pêndulo regressa ao ponto de partida, o cabo liberta pequenas pedras e, de repente, os seus cinco milímetros de espessura parecem-me demasiado fracos e tensos!...

De vez em quando o cabo vibra e sobem-me ou descem-me algumas dezenas de centímetros. Para passar o tempo, grito em direção a uma cordada cujas silhuetas se perfilam na aresta nordeste, mas a estes gritos outros respondem das profundezas do abismo. É o pobre Longhi que, lá em baixo, se recusa a morrer e espera ainda.

Conseguiremos salvá-lo?... A cada minuto que passa se torna menos provável. São quase quatro horas da tarde e desencadeia-se uma verdadeira tempestade. É demasiado tarde para fazer hoje ainda qualquer coisa de positivo e, se o mau tempo pega, será loucura e humanamente impossível fazer descer mais salvadores à Aranha, chegar junto de Longhi, bloqueado numa das passagens, mais de 100 metros à esquerda, trazê-lo até ao cabo e, por fim, içar toda aquela gente até ao cume. Com bom tempo, esta manobra difícil seria realizável, mas levaria pelo menos um dia. Somos alpinistas suficientemente hábeis e corajosos para a levar a bom termo e tenho a certeza de que, com um tempo razoável, muitos de nós não nos importaríamos de passar vários dias na Aranha para salvar Longhi da morte a que ele resistiu com uma coragem digna de admiração. Mas, no meio da tempestade, ficaremos impotentes. Por fim, sinto o cabo mexer de novo e, com as pernas esticadas de encontro à montanha, subo sem esforço. Achando que a descida em cabo sem visibilidade e sem contato de rádio podia implicar riscos suplementares, Friedli decidiu fazer-me subir. Daí a pouco Tom estende-me os

braços na aresta. Passa das dezesseis horas e estou surpreendido por verificar que Corti continua ali. Apesar dos cuidados recebidos, parece ter menos forças do que quando chegou ao cume. É evidente que temos que lhe poupar um novo bivaque. Em poucos minutos, com Friedli e Gramminger, estabecemos um plano de batalha: a equipe suíça de Friedli ficará ali, de maneira a poder começar uma nova descida no dia seguinte muito cedo, se o tempo o permitir. O resto da equipe de salvamento descerá com Corti nessa mesma noite, pronta para subir às primeiras horas do dia se o tempo melhorar. Alguns momentos depois, Corti está às minhas cavalitas. Depois, no princípio do caminho da aresta noroeste, é enrolado em vários sacos de dormir e atado num trenó. Começa a descida. Ao princípio é difícil. Como os cabos ficaram lá em cima, a descida do trenó é feita por meio de duas cordas de 60 metros; quando estas estão completamente desenroladas, espetamos novos pitões e recomeçamos a manobra.

"...Nessa altura, parece que o céu querendo recompensar o gesto de generosidade que reuniu todos aqueles homens para uma tentativa que parecia sem esperança faz com que os seus esforços não sejam inúteis."

Lionel Terray teve coragem para escalar o Makalu, o Annapurna, e vencer as montanhas mais altas do Mundo. Mas isso será outra história.

Para avançar rapidamente, era preciso que todos os salvadores estivessem à vontade no terreno de alta montanha. Mas não acontece assim.

A maior parte deles não são descontraídos e, apesar da sua boa vontade, deslocam-se muito lentamente. Alguns são até mais incômodos do que úteis. A cada momento receio ver desprender-se uma cordada. Uma delas, composta por três polacos, escorrega, e só é salva graças à presença de espírito e habilidade de Tom. No primeiro lugar apropriado, Gramminger e eu, que dirigimos toda a descida, resolvemos parar. Este novo bivaque é extremamente dificultoso. Estamos muito fatigados de dois dias e uma noite passados a gastar forças e a sofrer o frio, o vento, e tudo isto com poucos alimentos. Estamos todos mais ou menos encharcados e muitos possuem apenas material de bivaque bastante rudimentar. Depois de acomodar Corti num bocado de rocha, mais ou menos horizontal, encontro-me sozinho ao lado dele numa vaga plataforma exposta ao vento. Todos os outros procuraram refúgio atrás das rochas. Tom foi o último a abandonar-me.

Passada uma hora, Corti acaba por adormecer. Tento abrigar-me também da tempestade. Mas ainda não passou meia hora, quando rolo para debaixo de uma pequena cornija, e Corti acorda e começa a gritar. Certamente, encontrando-se de súbito sozinho numa aresta batida pelo vento e pela neve, julgou que o tínhamos abandonado. Tenho de voltar para junto dele a fim de o sossegar e dar-lhe de beber. Por várias vezes, gelado até aos ossos, volto ao meu abrigo, mas novos gritos obrigam-me a voltar para junto do trenó.

Ao romper do dia, vejo várias cordadas que sobem até nós. Quando a primeira chega, estamos prontos para continuar a descida, que começa imediatamente. As vertentes de neve deram lugar a uma série de paredes verticais, por vezes até em pendor. Este novo gênero de terreno não é mais favorável a uma descida em diagonal e o trabalho é duro para os homens que seguram o trenó. Felizmente, após algumas enfiadas de corda, o excelente guia Karl Schlunegger chega e executa a tarefa com a maior das facilidades.

Em breve estamos rodeados por um número incrível de pessoas vindas de toda a parte. Por fim, Friedli e os seus homens vêm substituir-nos com cabos e o avanço continua. Apesar disso, só às três horas da tarde termina a descida dos cerca de 1700 metros que separam o cume do Eiger da estação Eigergletscher.

Na base do glaciar e em redor da estação, um verdadeiro enxame de jornalistas, fotógrafos e curiosos espera numa espécie de histeria. Vão começar outras lutas menos heróicas... O salvamento do Eiger provocou violentas polêmicas na Suíça, Alemanha e Itália. Alguns, que não participaram na empresa, permitiram-se criticar a organização técnica e até o próprio princípio deste salvamento. Claro que nenhum ato humano é perfeito quando é improvisado. Isso não impede que, num impulso de generosidade humana, e apesar de condições aparentemente sem esperança, alpinistas de todas as nacionalidades corressem sem hesitar em socorro de outros mais insensatos, e uma vida se salvasse.

O salvamento do Eiger foi um exemplo magnífico do que é possível realizar com coragem, entusiasmo e força de vontade. Ainda que fosse só por isso, teria sido uma grande vitória. Tudo o mais não passa de vãs palavras.

Índice

Descoberta da montanha 7

O muro do colégio 24

Primeiras conquistas 43

O Dente do Caimão 62

A guerra dos Alpes 81

Encontro com Lachenal 97

A vertente norte do Eiger 121

Pés à obra 138

A tempestade 165

O salvamento 171

COLEÇÃO GIGANTES DA AVENTURA

VOLUMES PUBLICADOS:

1. NO CABO HORN AOS VINTE ANOS

2. A EPOPEIA DO CAVALO DE FERRO

COLEÇÃO GIGANTES DA AVENTURA

PRÓXIMOS VOLUMES:

SOBREVIVER NO MAR CRUEL

Dougal Robertson conta-nos, nesta obra emocionante, como ele, a mulher, três filhos e um amigo sobreviveram ao naufrágio do seu veleiro. É uma extraordinária odisseia que eles enfrentam, desde que o Lucette, atacado pelas orcas, se afundou em segundos ao largo das Galápagos, até que finalmente foram recolhidos, 38 dias mais tarde, por um cargueiro japonês já perto da América Central.

Os seis náufragos, praticamente, dispunham apenas de um minúsculo bote de 2,7 m e de uma faca. Nem cartas geográficas, nem bússola, nem víveres; nada, além das estrelas para se guiarem, da água da chuva, de muita imaginação e engenho para arrancarem ao mar o que haviam de comer; e, acima de tudo, uma enorme vontade de sobreviver.

Esta epopéia, exaltação de coragem e de alegria de viver, é-nos contada por Dougal Robertson numa forma clara, objetiva e serena, que dá à obra, ainda, um autêntico valor didáctico.

OS CONQUISTADORES DO INÚTIL II

Sob a direção de Maurice Herzog, uma expedição francesa parte para o Nepal. O seu objetivo é realizar o que nenhum homem conseguiu: vencer um cume de mais de 8000 metros. Herzog, Terray, Lachenal, Rébuffat e os seus companheiros conquistarão o Annapurna, mas à custa de inúmeros sacrifícios; apanhados por uma tempestade de neve no caminho de regresso, os alpinistas conseguem salvar-se graças à sua coragem e à camaradagem que os une.

Para Lionel Terray esta exploração é a primeira de todas as que o levarão ao alto das montanhas mais difíceis do mundo: o Chomo-Honzo, o Makalu, o Jannu, no Himalaia; o Fitz-Roy, na Patagônia, e o Chacraraju, no Peru...

ORENOCO-AMAZONAS

Alain Gheerbrant, jornalista, cineasta, poeta e explorador, membro da expedição de geólogos encarregada de fazer o inventário das inimagináveis riquezas do subsolo da Venezuela ao sul do Orenoco, descreve-nos, numa narrativa brilhante, não só a floresta virgem amazônica como os seus encontros com os povos primitivos que a habitam.

Diz-se que estes povos estão inexoravelmente destinados a ser vítimas do choque com a civilização. O autor não é da mesma opinião: "Este pessimismo é gratuito e hipócrita, porque é o índio que possui os instrumentos de morte, que invoca a desculpa do fatalismo e julga sempre conhecer o seu adversário". Nós conhecemo-lo? O fato de não ser vulgar a descoberta de uma nova tribo é talvez resposta suficiente. "A Terra é mensurável, mas nos homens haverá sempre qualquer coisa de incomensurável. Doutra maneira seria possível a aventura?"

Copyright by Editions Gallimard, 1974 Colecão dirigida por Pierre Marchand e J. O. Heron N. Ed. - 1088 Direitos reservados para a língua portuguesa Editorial Verbo. Lisboa/São Paulo Composto e impresso na Tipografia Guerra. Viseu em Fevereiro de 1977 Lionel Terray, autor deste livro, foi um dos maiores alpinistas franceses.

OS CONQUISTADORES DO INÚTIL 1/OS ALPES Lionel Terray Tradução de Ricardo Alberty Fotografias de: Charles Picardy - Roger Lyon - Pierre Chevalier - Marcel Ichac - Georges Tairraz - Philippe Gaussot - Dolf Reist - Paris-Match - Rapho - Atlas-Photo. Desenhos de Jean Olivier Héron VERBO