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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
Música como Instrumento de Propagação
da Dominação Masculina
Rogério Zanetti¹
Resumo
A música mudou, em sua concepção artística, no decorrer do tempo
(mudança), mas a dominação masculina não (permanência). A música já foi
utilizada como instrumento de dominação masculina, notadamente nos Anos
30 e 40, objeto de nosso estudo. E hoje, Isso ainda acontece? Nossos jovens
agem de forma violenta, e se tornam adultos que engrossam a estimativa de
violência contra a mulher, mostrada em pesquisas. A música ajuda a legitimar
essa violência, ou não interfere e a violência acontece de forma natural? O
presente artigo pretende auxiliar na reflexão sobre o tema.
Palavras-chave: violência, mulher, cinema, música
1 Introdução
“A história da mulher é a história da pior tirania
que o mundo conheceu: a tirania do mais
fraco sobre o mais forte.”
(Oscar Wilde)
O presente artigo é o resultado do trabalho desenvolvido no PDE – Programa
de Desenvolvimento Educacional, efetivado no Colégio Estadual Santa Rosa,
em Curitiba, entre 2013 e 2014, na disciplina de História. No ano de 2013 foi
desenvolvido o Projeto e o Material Didático-pedagógico, e em 2014 foi
realizada a práxis, com alunos de duas turmas de terceiro ano do Ensino
Médio.
A problemática que foi desenvolvida no trabalho teve sua origem numa
reportagem veiculada no jornal Gazeta do Povo, em 2012, intitulada “Paraná
é o terceiro estado no ranking da violência contra a mulher”. Nessa
reportagem, o Brasil é colocado em sétimo lugar, num ranking de 84 países,
de assassinato contra mulheres. O Paraná é colocado em terceiro lugar, entre
os 27, e Curitiba é colocada em quarto lugar, entre as 27 capitais onde as
mulheres mais são assassinadas, em nosso país. Além de Curitiba, outras
cidades próximas, como São José dos Pinhais, Pinhais e Piraquara, também
estão no ranking. Como nossos alunos são oriundos dessas localidades,
optamos por analisar a origem dessa violência, a chamada violência
simbólica, ou psicológica.
O objetivo do Projeto passou a ser, então, o de compreender a origem dessa
violência, como ela se dá e como combatê-la. Finalmente, optamos por
trabalhar com letras de músicas que contivessem uma ideologia violenta, em
relação à mulher, a fim de servir de exemplo de como a violência pode ser
sutil, mas nem por isso menos destrutiva.
Foi assim que nasceu o trabalho intitulado Música como instrumento de
Propagação da Dominação Masculina, que foi dividido em cinco etapas: a)
leitura e análise dos textos do Caderno Didático-pedagógico, que apresenta
um histórico da violência feminina, que culmina com os anos 30 e 40 (Era
Vargas ou Era do Rádio); b) trabalho de pesquisa, envolvendo músicas atuais,
em conformidade com a proposta e artigos, textos e reportagens relacionadas
ao tema; c) debate sobre o tema, de acordo com o material pesquisado; d)
apresentação organizada pelos alunos, de acordo com o tema pesquisado e
discutido, para outras turmas do colégio; e) feedback, em forma de relatório,
sobre os resultados do trabalho como um todo.
Procurou-se realizar um trabalho de conscientização dos alunos, e cada etapa
foi pensada de forma a formar uma ideia a respeito dele, a ponto de mudar a
visão dos alunos que acreditam que a violência só existe na agressão física, e
o procuramos, no presente texto, realizar uma síntese do que foi feito e dos
resultados obtidos, apresentando algumas teorias analisadas, bem como um
relato da experiência.
2 Teoria da História
Para compreendermos a origem e a construção histórica da violência contra a
mulher, recorremos à Antropologia e à Sociologia, além da História.
Primeiramente, tentamos compreender a ideia da “inveja do útero”,
desenvolvida por Rose Marie Muraro e a de “dominação masculina” e
“violência simbólica” de Pierre Bourdier. Essas teses foram importantes para
termos uma visão de como enfocar a uma construção histórica de uma
violência específica contra o sexo feminino. Segundo MURARO, é no
decorrer do neolítico que, em algum momento, o homem começa a dominar a
sua função biológica reprodutora, e, podendo controlá-la, pode também
controlar a sexualidade feminina. (1995, p. 7). Da compreensão de que o
biológico determinou o cultural, veio a compreensão de que o homem
dominou a mulher assim como dominou outros homens, no decorrer da
História, e isso muitas vezes se deu de forma violenta, seja mandando
“bruxas” para a fogueira ou criando mitos onde a mulher fosse culpada por
alguma coisa, como Eva e Pandora. O arquétipo da “femme fatale” pareceu
justificar toda uma literatura científica ou mesmo literária, e personagens
como a Fantine de Victor Hugo, a Marguerite de Alexandre Dumas ou mesmo
a Lucíola de José de Alencar pareciam cada vez mais justificar essa
construção. Assim, as sociedades patriarcais teriam sido construídas de forma
a criar e manter um “controle” dos homens sobre as mulheres, a fim de
assegurar-lhes uma forma de poder, em contrapartida a outra. Seria o “poder
cultural” em oposição ao “poder biológico”. Mas, longe de discutirmos a
necessidade da obtenção desse “poder”, nos fixamos mais na ideia de
comprová-lo, em outras fontes. Assim, recorremos ao trabalho realizado por
Bourdieu, que aponta a “naturalização” dessa dominação masculina,
afirmando que a divisão entre os sexos parece estar 'na ordem das coisas',
como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser
inevitável. (2010, p. 17). Ele afirma ainda que essa experiência apreende o
mundo social e suas arbitrárias divisões, a começar pela divisão socialmente
construída entre os sexos, como naturais, evidentes, e adquire, assim, todo
um reconhecimento de legitimação. E essa legitimação foi sendo reforçada,
no decorrer dos séculos, com a inserção do cristianismo enquanto instituição
nesse processo de construção. DUBY, BARTHÉLEMY e LA RONCIÈRE, em
sua História da Vida Privada, afirmam que as mulheres precisavam ser
estreitamente vigiadas, subjugadas pois eram portadoras do veneno, dos
sortilégios, da cizânia (2009, p.87). Por isso, o dever primeiro do chefe da
casa era vigiar, corrigir, matar, se preciso, sua mulher, suas irmãs, suas filhas,
as viúvas e as filhas órfãs de seus irmãos, de seus primos e de seus vassalos
(2009, p. 88). A ideia da mulher como “portadora dos sortilégios” remete à
perseguição feita durante séculos às “bruxas”, e a mulher lutou e luta até hoje,
para mudar essa imagem que lhe foi imposta por essa sociedade patriarcal
que a relegou a segundo plano no decorrer da História, sobrevivendo até
mesmo ao Século XVIII e seu ideário de “liberdade” e “igualdade”.
HOBSBAWM afirma que não havia nada de novo na estrutura da família
patriarcal baseada na subordinação da mulher e filhos e o direito de dominar,
a inquestionável superioridade do burguês como espécie, implicava não
apenas inferioridade mas idealmente uma inferioridade aceita nas relações
entre homens e mulheres (que mais uma vez simbolizavam muito sobre a
visão burguesa do mundo). Os trabalhadores, como as mulheres, deveriam
ser leais e satisfeitos. (2005, p. 343). O Século XIX significou a ascensão
desse pensamento burguês, e o resultado disso foi as personagens
femininas, que eram pecadoras e só obtinham a redenção com a morte, como
Fantine, Lucíola, Marguerite e tantas outras, que povoaram as mentes
daqueles tempos. E o Brasil, como “importador” de culturas europeias,
reproduzia a mesma mentalidade nas relações de gênero de então. LAGE e
NADER (2012, p. 287) informam que, desde o Brasil Colônia, a dominação
masculina fez do espaço do lar um locus privilegiado para a violência contra a
mulher, tida como necessária para a manutenção da família e o bom
funcionamento da sociedade. Nesse contexto, assim como na Europa
Medieval, acreditava-se que era correto que o homem “controlasse” a mulher,
muitas vezes utilizando-se da violência física. Apenas no século XX é que
houve mudanças nessas relações e, mesmo assim, com avanços e recuos.
SCOTT (2012, p. 20) resgata o Decreto-lei 3.200, de 19 de abril de 1941,
assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, onde se pode ler os objetivos
da educação, onde os homens devem ser educados de modo que se tornem
plenamente aptos para a responsabilidade de chefes de família, enquanto que
às mulheres seria dada uma educação que as tornasse afeiçoadas ao
casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos
e capazes na administração da casa. Após fazermos um pequeno histórico da
dominação masculina e da violência simbólica, fomos compreender um pouco
mais da História da Música, notadamente aquela dita popular. Essa música
sofreu transformações no decorrer da História, passando de “sagrada” a
“elitista” e, finalmente, popular, servindo ao “lazer desinteressado”
(DUMAZEDIER, 2001 apud FERREIRA, 2010, p. 94). Nos utilizamos desse
termo a partir do momento em que definimos que tentaríamos analisar a
“violência simbólica” contida nas letras de música, a fim de criarmos um
momento específico onde ela ocorre, que é quando o ouvinte crê que aquela
letra específica nada mais é que uma “piada” ou “algo inofensivo” (como
ouvimos de alguns alunos). Optou-se, assim, por analisar músicas com
conteúdo de violência contra a mulher como exemplo das diversas formas
como essa violência tem sido legitimada, no decorrer da História. Essa
dominação, segundo Bourdieu (2010, p. 7), que se exerce, essencialmente
pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ainda
está presente na produção cultural de nosso país, mesmo na música.
3 Relato da Experiência
A princípio, apresentamos, aos alunos dos terceiros anos A e B, o Caderno
didático-pedagógico, onde ficou definido, em linhas gerais, o que tínhamos
pesquisado: um histórico da dominação da mulher, culminando num recorte
histórico da Era Vargas (1930 a 1945), que coincidiu com a popularização do
rádio como veículo de comunicação de massas, e o surgimento dos filmes
noir, que exploravam a figura da femme fatale, arquétipo que percebemos
estar ligado à muitas produções culturais dos séculos XIX e XX. Também
foram definidas as etapas do trabalho da práxis: a) apresentação do material
didático-pedagógico e debate da proposta; b) pesquisa de músicas atuais,
com o tema violência contra a mulher; c) análise da Lei Maria da Penha e da
palavra “feminicídio”; d) preparação de uma apresentação com o tema; e)
Feedback do trabalho realizado. Sobre as etapas, é importante ressaltar que
a ideia original foi modificada, devido a problemas estruturais e de calendário,
mas também com o acréscimo de uma etapa sugeridas pelos alunos (a etapa
c).
Para que o tema pudesse extrapolar as duas turmas de terceiro ano a que
nos propúnhamos inicialmente, apresentamos o Projeto na Semana
Pedagógica e discutimos com os membros da Equipe Multidisciplinar, que não
só aceitaram como também propuseram outras atividades correlacionadas,
como uma exposição sobre a violência contra a mulher, que ficou exposta na
Biblioteca do colégio durante dois meses.
Depois, utilizamos duas aulas para apresentar o Projeto e o conteúdo a ser
pesquisado, tendo uma boa aceitação por parte dos alunos, que
imediatamente propuseram a pesquisa sobre a expressão “feminicídio” e a Lei
Maria da Penha, especificamente o Artigo 7º.
Na questão do termo “feminicídio”, que muitos não conheciam e, na busca por
uma definição, encontrou-se o parecer da Comissão de Justiça e Cidadania
(CCJ), de 02 de abril de 2014 que define:
Art. 1º – O art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940,
passa a vigorar com a seguinte redação:
“Homicídio simples
Art. 121....................................................
Homicídio qualificado
§ 2º...........................................................
Feminicídio
VI – contra a mulher por razões de gênero.
§ 7º Considera-se que há razões de gênero em quaisquer das seguintes
circunstâncias:
I – violência doméstica e familiar, nos termos da legislação específica;
II – violência sexual;
III – mutilação ou desfiguração da vítima;
IV – emprego de tortura ou qualquer meio cruel ou degradante”.
Na Lei Maria da Penha, o que chamou a atenção dos alunos foi o Artigo 7º:
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou
a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao
aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.
Os alunos se admiraram, ao ouvir músicas com títulos e letras que
mostravam uma mulher submissa e de acordo com a violência masculina.
Eram mulheres que não choravam por apanhar (Lá Vem Ela Chorando, 1932),
que eram felizes por levar pancadas (Mulato de Qualidade, 1932 e Só Falta
Pancada, 1938), que eram proibidas de sambar (Se Essa Mulher Fosse
Minha, 1946), que apanhavam e não tinham carinho, mesmo assim não
largavam de seu homem (Meu Dono, Meu Rei, 1952), entre outras. Mas
também haviam as amélias e emílias, que eram submissas, e até achavam
bonito não ter o que comer. Não temos dados estatísticos da violência contra
a mulher naquela época, mas pela quantidade de músicas que tratavam do
tema, e sempre feitas por homens, podemos ter uma ideia do quadro
desalentador que a mulher enfrentava. Paranhos (2004, pg. 82) lembra o
quão impressionante a quantidade de canções que viraram muros de
lamentação de mulheres insatisfeitas com seus parceiros sanguessugas e
com sua condição de muro de arrimo da família. E viram que não eram
somente as desconhecidas que sofriam. Dolores Duran, filha de mãe negra,
que foi proibida de convidá-la para seu casamento, pois seu marido não
aceitou, foi uma personagem que chamou a atenção dos alunos, para o fato
de que as mulheres também cometiam atos que legitimavam todo tipo de
violência contra si mesmas.
Após a apresentação do tema e do material, da pesquisa feita e da análise do
material que os alunos trouxeram, definiu-se como seria a etapa de
apresentação do tema. A turma do 3º B, por sorteio, ficou com o histórico da
violência contra a mulher, e decidiram vir a caráter, os meninos de “homem
dominador” e as meninas de “femme fatale”, no intuito de provocar um debate
sobre roupas sensuais e cores berrantes, notadamente o vermelho, nas
roupas e na maquiagem. E o 3º A optou por apresentar a situação da violência
hoje, com exemplos de músicas violentas e a assinatura de um painel de
frases (nomeado “mural de apelo”) e pensamentos, e um abaixo-assinado a
ser encaminhado a autoridades municipais, que foi capitaneado pela
professora de Sociologia.
Concomitante ao trabalho realizado com os alunos, realizou-se o GTR –
Grupo de Trabalho em Rede, do qual participaram dezessete professores de
várias cidades paranaenses. Eles analisaram o Projeto e o Material que
estava sendo trabalhado com os alunos, relataram situações de violência
doméstica em suas cidades, e afirmaram que o material vinha de encontro a
necessidade de se trabalhar temas atuais, notadamente o que fora proposto,
de forma direta mas sem precisar apelar para cenas fortes, antes percebendo
a linha tênue entre a brincadeira da música que se diz inofensiva, ou mesmo
da piada “de mau gosto” (segundo algumas professoras comentaram) e a
realidade de que a violência só aumentava, na maioria dos casos, a partir
dessa “primeira fase”, como alguns disseram.
O “mural de apelo” criado pelos alunos, onde as pessoas que passassem pela
apresentação pudessem escrever sobre o tema, sobre suas angústias e sobre
o que acreditavam que valesse a pena ser comentado. E uma aluna
transcreveu algumas das ideias mais significativas, a fim de mantê-las para
um futuro debate. Algumas delas foram copiadas de algum lugar, mas
percebemos que algumas eram originais, como “mulher não merece chorar”,
“combata violência com ternura” ou “sem mulheres não existiriam homens”.
Percebemos o interesse em participar do evento, por parte da maioria dos
alunos, que demonstraram grande seriedade, no decorrer do processo.
No dia da apresentação, os alunos dos terceiros anos apresentaram suas
reflexões e debateram com seis turmas de nonos anos (cerca de 240 alunos)
e 20 professores e funcionários do Colégio, tendo repetido algumas falas
cerca de 18 vezes. Relatamos esse fato pois serviu de base para futuras
apresentações, como na Semana Cultural, em que os alunos chegam a
exaustão, por não se organizarem nessa apresentação. Eles mesmos
perceberam a necessidade de se fazer um rodízio, onde uns apresentassem
enquanto outros descansavam, de forma a não sobrecarregar apenas alguns.
E foram apresentadas temáticas específicas, como “Femme Fatale”, “A
Mulher na Música”, “A Mulher Ontem e Hoje”, “Lei Maria da Penha”, “Violência
no Entorno do Colégio Santa Rosa” (numa alusão ao trabalho do Instituto
Sangari”) e “Violência Simbólica ou Psicológica”, muito apreciado e visto como
“inédito” por alguns professores, que sempre haviam pensado na violência
física e não naquela outra, definida por uma professora como “linha tênue
entre a normalidade e a doença” ou “violência sutil”, na definição de outra.
Para finalizar, organizamos um debate para o feedback, onde os alunos
relatariam suas experiências com o trabalho como um todo, e como um
retorno ao ponto principal de todo o trabalho, que era o de se perceber o
entendimento dos alunos sobre o tema proposto, bem como uma mudança na
forma como encaravam a música, se de maneira mais crítica, em relação a
violência contida nas letras, ou de forma aleatória. E foi nessa fase que um
aluno trouxe uma música que encontrara, e que não foi apresentada aos
demais, mas que merece destaque pela forma cruel com que apresenta a
mulher. A música em questão era Novinha, de MC Martinho. Nela, o homem
se diz “neuroticão” (sic) e avisa a “novinha” para não provocá-lo pois ele usa
“duas pistola” (sic), tem “sangue bandido” e avisa que se ela “sujar” o nome
dele na favela, irá deixá-la “esticada no chão”, vai dar tiro na mão, quebrar as
pernas, levá-la ao “microondas” (região de favelas onde se executam
desafetos dos traficantes), “rasgar” o corpo dela “na bala”, e deixá-la de forma
tal que a família dela só a reconhecerá pela arcada dentária. Alunos e
professores ficaram estarrecidos com a letra da música: nunca haviam ouvido
essa música, mas perceberam que a violência chegou a níveis absurdos, e
músicas como essas são não só uma afronta à dignidade feminina, mas
também à masculina. Os alunos em geral também concordaram que os
limites têm sido extrapolados e concluíram que sim, a música pode legitimar
uma violência, a partir do momento em que banaliza a vida humana a tal
ponto que uma pessoa precise viver com medo, para que não seja agredida.
Houve um relato em especial, que também chocou os participantes, em que
uma aluna relatou que sua prima, de cerca de 19 anos, namorava um rapaz
de 28, e que quando decidiu acabar com o namoro, foi agredida
violentamente por ele nas proximidades de um posto policial, e que ele bateu
com a cabeça dela no piso cimentado, e disse que buscaria uma arma para
“acabar com a vida dela”, e que se a família se envolvesse, também seria
executada. Segundo essa aluna, a prima e os pais dela mudaram de bairro, a
fim de não mais encontrar com o indivíduo, que permanecia livre.
4 Conclusão
Esses relatos foram, segundo os participantes do debate, os mais chocantes,
mas não os únicos. Relatos de violência por parte dos pais, dos namorados e
mesmo de noivos e maridos se multiplicaram, e a conclusão a que os alunos
chegaram é que a sociedade atual está mais violenta devido a fatores
externos (custo de vida, desemprego, baixos salários, etc.), aliados a
problemas pessoais, como estresse, uso de drogas, ciúme exacerbado, entre
outros, e que a música, nesses casos, serviria apenas como mais um detalhe,
num quadro complexo. E também discutiu-se sobre a necessidade de se
perceberem os “primeiros sinais” de violência, que seriam gestos muitas
vezes imperceptíveis, como falar em voz alta, fazer piadas degradantes, dar
pequenos tapas ou mesmo usar palavras ofensivas a título de “brincadeira”.
Segundo professores e alunos, esse seria o início de uma violência que, se
não for tratada e combatida, pode vir a se transformar em violência física e
mesmo em feminicídio.
A etapa final do trabalho foi um relatório individual onde cada aluno deveria
relatar suas experiências a respeito do tema proposto. Vimos que, após
movimentar grande parcela da escola, todos estavam de acordo de que a
violência está muito mais arraigada do que se imaginava, e cabe a todos
combatê-la, sob o risco de perder de controle a relação de gênero que,
segundo eles, deve ser construída de forma harmoniosa, e não através da
violência.
E, dessa experiência, concluímos que o tema foi atual e pertinente, servindo
não só para o engrandecimento e aprimoramento da bagagem cultural dos
professores e alunos envolvidos, como também para uma mudança de
atitude, em relação a várias questões, como as que elencamos a seguir:
* ampliar a percepção de que devemos ser mais críticos em relação ao que
vemos e ouvimos, prestando atenção ao conteúdo ideológico muitas vezes
embutido nessa produção;
* compreender a importância de se mudar a visão que temos, em relação à
mulher, aprendendo a respeitá-la como igual em direitos, sem criar
estereótipos que a diminuam;
* compreender a ideia da violência simbólica, a fim de combater toda e
qualquer forma de intolerância, de gênero, étnica, social, religiosa, etc;
Essas foram algumas das conclusões a que os alunos chegaram, ao final do
trabalho, e que pedimos a permissão para sintetizar aqui. Percebemos, desde
a apresentação do tema e durante as pesquisas, que muitos alunos se
identificaram com o que era apresentado, relatado e pesquisado, e o fato
deles planejarem um abaixo-assinado, que “obrigue” as autoridades a cumprir
a Lei Maria da Penha nos fez ver que a pesquisa que motivou todo esse
percurso até aqui tem muito mais contato com a nossa realidade do que
supunha-se, a princípio. Lemos, diariamente, que pessoas são mortas pelo
tráfico, ou que tiveram algum incidente relacionado a ele, na região onde
nossa escola está situada, e sabemos que muitos outros problemas poderiam
estar relacionados a esse, e que não seria fácil abordá-los, sem “magoar
ainda mais quem já vive na mágoa”, como bem definiu uma professora.
A abordagem através da música parece ter “aliviado” um pouco a tensão,
abrindo espaço que mais pessoas se manifestassem a respeito do assunto,
sem esquecer da seriedade e da importância em combater essa violência,
cada dia mais arraigada e presente na vida de nossos alunos, desde cedo.
Diante disso, cremos que o objetivo do Projeto foi alcançado.
Sabemos que o assunto não se esgotará nesse Projeto, e ainda levará muito
tempo para que se mude uma mentalidade muito mais antiga do que se
pensava a princípio. Mas acreditamos que há muita coisa acontecendo, e
muito mais se fará, não só em nosso colégio, mas nos colégios cujos
professores participaram do GTR, se interessando pelo tema, e se dispondo a
somar esforços pela mudança.
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id=1252143 (Acessado em 11/10/2014, às 9:45)
http://jus.com.br/artigos/31359/o-que-e-feminicidio (Acessado em
11/10/2014 às 10:51)
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
(Acessado em 17/10/2014 às 09:35)
http://www.vagalume.com.br/mc-martinho/novinha.html (Acessado em
17/10/2014 às 10:54)
¹ Professor PDE 2013/2014 em História, lotado no Colégio Estadual Santa
Rosa, sob Orientação do Professor Armando João Dalla Costa, Pós-Doutor
em Economia pela Université de Picardie Jules Verne, Amiens, França (2008).
Doutor em História Econômica pela Université de Paris III (Sorbonne
Nouvelle, 1997). Mestre em História Econômica pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR, 1993). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário
Assunção (UniFai, São Paulo, 1978). Professor Associado no Departamento
de Economia, lecionando no curso de graduação, no Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Econômico e no Mestrado Profissional em
Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná.