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Os desafios do movimento negro hoje Fábio Nogueira* É necessário relacionar o atual momento vivido pelo movimento negro com o que a retomada das lutas dos afro-brasileiros e a formação do MNU (Movimento Negro Unificado) nos estertores da ditadura militar. Apesar de não apresentar um programa socialista,o MNU assumiu a vanguarda do processo de conscientização do povo negro e aliou a isso uma radical revisão dos cânones de integração do negro à sociedade nacional. Não foi pouca coisa. Tratou-se de uma verdadeira revolução cultural da qual até hoje colhemos os frutos. Deslocar o imaginário nacional de pretensa “docilidade” e “masoquismo” do negro em relação à escravidão e o racismo e construir uma identidade baseada no orgulho racial,na defesa dos valores afro-brasileiros e na experiência do Quilombo dos Palmares,é um enorme ganho às atuais e futuras gerações de afro- brasileiros. Apesar das diferenças com a “esquerda branca” as reivindicações do MNU,nos anos 80,tinham um forte sentido classista e aliancista com os movimentos populares. É no final da década de 80,que a experiência do MNU começa a colapsar (sem que necessariamente ele tenha atingido o seu objetivo de ser um movimento unificado dos negros brasileiros):suas dissensões internas darão origem a grupos e entidades independentes (algumas,aliás,que já existiam,ao largo do MNU). O dilema do MNU foi o de todas as organizações de caráter popular,surgidas com o fim da ditadura:agir por dentro dos partidos de esquerda,por fora ou se converter em uma espécie de partido-movimento? O fato,no entanto,é que ao contrário de outras organizações como a CUT,MST e CMP surgidas neste período,o MNU não chegou a ter uma base de massas. Com a crise do MNU que foi também uma crise ideológica e de destino as entidades negras (cada vez mais minúsculas,especializadas,profissionalizadas e sem base social definida) passaram a se apresentar na arena política como “representantes da sociedade civil”. Num contexto de

Os Desafios Do Movimento Negro Hoje.circulo Palmarino

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Os Desafios Do Movimento Negro Hoje.circulo Palmarino

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  • Os desafios do movimento negro hoje

    Fbio Nogueira*

    necessrio relacionar o atual momento vivido pelo movimento negro com o que a

    retomada das lutas dos afro-brasileiros e a formao do MNU (Movimento Negro

    Unificado) nos estertores da ditadura militar. Apesar de no apresentar um programa

    socialista,o MNU assumiu a vanguarda do processo de conscientizao do povo negro e

    aliou a isso uma radical reviso dos cnones de integrao do negro sociedade

    nacional. No foi pouca coisa. Tratou-se de uma verdadeira revoluo cultural da qual

    at hoje colhemos os frutos. Deslocar o imaginrio nacional de pretensa docilidade e

    masoquismo do negro em relao escravido e o racismo e construir uma identidade

    baseada no orgulho racial,na defesa dos valores afro-brasileiros e na experincia do

    Quilombo dos Palmares, um enorme ganho s atuais e futuras geraes de afro-

    brasileiros. Apesar das diferenas com a esquerda branca as reivindicaes do

    MNU,nos anos 80,tinham um forte sentido classista e aliancista com os movimentos

    populares. no final da dcada de 80,que a experincia do MNU comea a colapsar

    (sem que necessariamente ele tenha atingido o seu objetivo de ser um movimento

    unificado dos negros brasileiros):suas dissenses internas daro origem a grupos e

    entidades independentes (algumas,alis,que j existiam,ao largo do MNU).

    O dilema do MNU foi o de todas as organizaes de carter popular,surgidas com o fim

    da ditadura:agir por dentro dos partidos de esquerda,por fora ou se converter em uma

    espcie de partido-movimento? O fato,no entanto, que ao contrrio de outras

    organizaes como a CUT,MST e CMP surgidas neste perodo,o MNU no chegou

    a ter uma base de massas. Com a crise do MNU que foi tambm uma crise ideolgica

    e de destino as entidades negras (cada vez mais

    minsculas,especializadas,profissionalizadas e sem base social definida) passaram a se

    apresentar na arena poltica como representantes da sociedade civil. Num contexto de

  • reforma neoliberal,em que o estado deixou de lado os discursos de carter universalista

    e abraou as polticas focalizadas atravs da transferncia de recursos s entidades da

    sociedade civil (primeiro,as ONGs e,hoje,as OSCIPs) foi se fortalecendo

    a desideologizao do movimento negro brasileiro. Sendo mais explcito:houve uma

    incorporao do movimento negro ao jogo poltico do estado neoliberal. Se,por um

    lado,o movimento negro passa a ser reconhecido como um ator poltico;por outro,ele

    incorporado de forma subordinada ao projeto das elites. Este projeto,a meu ver,s se

    concretiza efetivamente quando da eleio de Lula,em 2001.

    Apesar da reao conservadora Seppir e s polticas de ao afirmativa capitaneadas

    pelo DEM e o PSDB sem dvida,hoje,o PT o principal articulador desta

    incorporao subordinada do movimento negro ao projeto das elites,sob a gide do

    consenso neoliberal. Ao contrrio do ncleo duro da direita conservadora (DEM e

    PSDB),a direita liberal petista movimenta-se atravs da mitigao das reivindicaes e

    bandeiras de luta dos movimentos sociais e,de forma combinada,sofistica seus

    instrumentos de controle da autonomia destes movimentos. Este aspecto fica evidente

    quando da aprovao do Estatuto da Igualdade Racial fico jurdica e poltica que,na

    prtica,tornou-se um instrumento incuo dado que resultado de um acordo por cima

    entre PT e DEM. A aprovao do Estatuto da Igualdade Racial foi o ponto mximo das

    possibilidades de um pacto liberal-conservador. Evidentemente,os movimentos sociais

    devem romper com a cortina de fumaa que contribui a sua desorientao estratgica

    que se inaugura com a chegada de um partido de origem popular (PT) ao poder

    central. A hegemonia burguesa e das elites redefiniu-se em termos da ideia de que h

    hoje,para os de baixo,ganhos reais e efetivos (mesmo que insuficientes dadas s

    necessidades histricas de nossa populao) e de que estes participam (mesmo que de

    forma subordinada ou acessria) da diviso do poder poltico. Esta social-democracia

    do subdesenvolvimento,inaugurada pelo PT,combina de forma competente at agora

    o consenso de que vivemos um momento de estabilidade econmica em funo de um

    neodesenvolvimento liberal (calcado no consumo e no endividamento) com doses

    cavalares de coero e desrespeito aos direitos fundamentais (vejamos,s para citar um

    exemplo,o aumento exponencial da populao carcerria e do aprisionamento em massa

    e as poltcas de ocupao militar de morros e favelas UPPs).

    Diante deste quadro,afirmar que entre a direita (liberal ou conservadora) e a esquerda,eu

    sou negro jogar gua no moinho dedesideologizao do movimento. Para

  • alguns,infelizmente,parece no existir problema em tropas da OTAN

    bombardearem,invadirem e assassinarem o presidente da Lbia,Kadafi,desde que o

    presidente dos Estados Unidos seja Obama,um afroamericano. Se calar diante deste

    crime um atentado a soberania dos povos agir da mesma maneira dos que se

    calaram diante da morte de Steve Biko,de Patrice Lumumba e de Maurice Bishop.

    Enquanto os Mapuches morrem em greve de fome,no Chile,o movimento negro

    brasileiro foi facilmente ludibriado pela mquina de propaganda dos cubanos-

    americanos de Miami (financiados pelo Departamento de Estado) quando da morte de

    Orlando Zapata,em Cuba. Quiseram caracterizar a morte de um carter racial que nunca

    teve,pois em Cuba,ao contrrio do que se afirma,no h perseguio aqueles que

    denunciam o racismo presente naquela sociedade. Afinal,a quem interessa que o

    movimento negro brasileiro se torne arete de crtica e movimentos que tem o carter

    exclusivo de desestabilizar a revoluo cubana? Ao mesmo tempo,porque a luta dos

    Mapuches,dos zapatistas,povos originrios e outros grupos tnicos e raciais parecem to

    distantes da realidade do negro brasileiro?

    As polticas de ao afirmativa um instrumento eficaz e necessrio de combate ao

    racismo emergem quando da aplicao do projeto neoliberal como a panacia para o

    dilema racial brasileiro e em torno delas se construiu todo o arcabouo institucional

    daquilo que se denomina polticas de promoo da igualdade racial. Parece

    paradoxal,mas hoje assistimos a um refinamento do mito da democracia racial (afinal,as

    elites pensam,ns demos cotas para vocs,o que querem mais?!). A conseqncia deste

    processo a invisibilizao do racismo em nossa sociedade.

    Portanto,o desafio que est colocado ao movimento negro hoje reafirmar a vigncia do

    racismo,em particular,na esfera institucional,colocando-se no apenas na defesa de

    aes afirmativas,mas dos direitos das populaes quilombolas e da juventude negra.

    Quando pensamos a institucionalidade temos que entend-la para alm dos rgos e

    secretarias ligados a atividades sociais (cultura,educao,sade etc),de desenvolvimento

    econmico e infra-estrutura e entender a articulao destas com o brao coercitivo do

    estado e os seus aparatos de represso. Hoje,por exemplo,com a poltica de Mega-

    Eventos (Copa do Mundo e Olimpadas) ocorre uma articulao entre diversos setores

    do poder pblico:ministrio do esporte,infra-estrutura,cidades promoo daquilo que

    entendemos como polticas de faxina tnica.

  • O que faxina tnica? Ns definimos faxina tnica como uma articulao de polticas

    estatais marcadas por seu carter violento e coercitivo em torno de um duplo

    movimento de desterritorializao/reterritorializao da populao negra e pobre deste

    pas. Em linhas gerais,temos uma forte tendncia de segregao especial entre negros e

    brancos que,durante os Mega-Eventos,assumem caractersticas mais dramticas.

    Portanto,ns no acreditamos que polticas focais resolvam o problema do nosso

    povo. Quando o movimento negro critica as polticas universalistas deve entender que

    h um limite a esta crtica,pois no vivemos um estado social,de direitos plenos. No

    podemos ser linha auxiliar a direita conservadora e contribuir a retirada de direitos e

    garantias sociais (at porque,elas tambm beneficiam nossa populao).

    As polticas universalistas no so nossas inimigas:alis,as polticas de ao afirmativa

    reforam o sentido universalista das polticas pblicas,ao corrigir distores. um

    aperfeioamento das polticas pblicas e no se encontra,necessariamente,em oposio a

    estas. Hoje,portanto,o movimento negro tem que recuperar a capacidade de produzir

    contra-ideologias a ordem dominante como o foi,por exemplo,a denuncia do mito da

    democracia racial e para isso,um projeto alternativo de sociedade precisa ser

    construdo,nas lutas concretas,desde um horizonte utpico que recupere o sentido

    universalista inscrito em nossa cosmoviso africana.

    Existe um continente de coisas acontecendo na Amrica Latina s pra citar um

    exemplo,a Constituio da Bolvia que reconhece aquele pas como um Estado

    Plurinacional e ns,do movimento negro,simplesmente no nos apropriamos desta rica

    experincia. No movimento social,ao contrrio de outros espaos da vida em

    sociedade,ns podemos escolher nossos companheiros de viagem:alguns preferem os

    palcios encarpetados e os tapas nas costas de senhores engravatados,negros e

    brancos,que convertem nossa dor e sofrimento em nmeros e dividendos

    polticos;outros,preferem caminhar com os condenados da terra

    proletrios,camponeses,negros,povos originrios que lutam e sonham por uma

    sociedade sem racismo e explorao. So com os condenados da terra que o

    movimento negro deve caminhar!!!

    * Professor universitrio e Coordenador Nacional de Formao Poltica do Crculo Palmarino.