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Comecemos por duas imagens que levam o mesmo título: Tufa Domes, Pyramid Lake, Nevada. A primeira é uma famosa fotografia de Timothy O’Sullivan recentemente divulgada. Ela data de 1868 e opera apoiando-se especialmente nos códigos da fotografia de paisagens no século 19, tal como os construiu a história da arte. A segunda, realizada em 1878 para a publicação da obra de Clarence King, Systematic Geology (Geologia Sistemática), é uma cópia litográfica da fotografia. 1 Um olhar do século 20 reconhece no original de O’Sullivan um modelo de beleza misteriosa e silenciosa como o que a fotografia podia produzir nos primeiros decênios de existência dessa mídia. Na imagem fotográfica, vemos três rochedos maciços parecendo avançar sobre uma espécie de tabuleiro de xadrez abstrato e transparente, cujas diferentes posições indicam uma trajetória que vai se afastando em direção ao horizonte. A extrema precisão descritiva dessa imagem confere às pedras uma riqueza de detalhes alucinante, de modo que cada fissura, cada rugosidade deixada pelo calor vulcânico original nela se encontra registrada. Entretanto essas pedras dão a impressão de ser irreais, e o espaço parece onírico. Os domos de tufo estão como que suspensos em meio a um éter luminoso, ilimitado e sem referências. O resplendor dessa base indiferenciada, onde água e céu se encontram num contínuo quase ininterrupto, submerge os objetos materiais que ali estão, a ponto de as pedras parecerem flutuar ou planar e acabarem nada sendo, senão formas. O fundo luminoso do horizonte suprime o poder que seu tamanho lhes confere e as transforma em elementos de uma composição gráfica. É nesse achatamento opulento do espaço da imagem que reside sua misteriosa beleza. A litografia, por sua vez, é de uma insistente banalidade visual. Tudo o que era misterioso na fotografia nela se encontra explicado em detalhes agregados e supérfluos. Puseram um amontoado de nuvens no céu, deram uma forma precisa à margem do lago ao fundo e materializaram a superfície da água com pequenas rugas e ondulações; finalmente, o que é o mais importante nesse processo de banalização da imagem, os reflexos das rochas na água foram cuidadosamente recriados, restabelecendo o peso e a orientação nesse espaço que, em sua versão fotográfica, estava banhado por aquela vaga luminosidade TEMÁTICA • ROSALIND KRAUSS 155 Os espaços discursivos da fotografia Rosalind Krauss Neste texto, publicado em O fotográfico (Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002), tradução (Anne Marie Davée com revisão técnica de Maya Hantower e Lane de Castro) revisada do original Le photographique. Pour une théorie des écarts (Paris: Editions Macula, 1990), Rosalind Krauss observa como, em seus primórdios – em O’ Sullivan , Atget, Salzmann e outros –, a fotografia participava de espaços discursivos muito mais ligados ao conhecimento do mundo do que à arte. Mas, à medida que essa produção vai sendo incorporada a seus arquivos, esses traços se vão paulatinamente apagando em favor de outros mais congruentes com as categorias estéticas sobre as quais se apóia o sistema da arte: as noções de autor, obra e gênero passam a ser parâmetro de avaliação de uma produção para a qual, anteriormente, não possuíam nenhum valor constitutivo. Fotografia; museu; arte.

Os espaços discursivos da fotografia Rosalind Krauss

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Comecemos por duas imagens que levam omesmo título: Tufa Domes, Pyramid Lake,Nevada. A primeira é uma famosa fotografia deTimothy O’Sullivan recentemente divulgada. Eladata de 1868 e opera apoiando-seespecialmente nos códigos da fotografia depaisagens no século 19, tal como os construiu ahistória da arte. A segunda, realizada em 1878para a publicação da obra de Clarence King,Systematic Geology (Geologia Sistemática), é umacópia litográfica da fotografia.1

Um olhar do século 20 reconhece no originalde O’Sullivan um modelo de beleza misteriosa esilenciosa como o que a fotografia podiaproduzir nos primeiros decênios de existênciadessa mídia. Na imagem fotográfica, vemos trêsrochedos maciços parecendo avançar sobreuma espécie de tabuleiro de xadrez abstrato etransparente, cujas diferentes posições indicamuma trajetória que vai se afastando em direçãoao horizonte. A extrema precisão descritivadessa imagem confere às pedras uma riqueza dedetalhes alucinante, de modo que cada fissura,cada rugosidade deixada pelo calor vulcânicooriginal nela se encontra registrada. Entretantoessas pedras dão a impressão de ser irreais, e oespaço parece onírico. Os domos de tufo estão

como que suspensos em meio a um éterluminoso, ilimitado e sem referências. Oresplendor dessa base indiferenciada, onde águae céu se encontram num contínuo quaseininterrupto, submerge os objetos materiais queali estão, a ponto de as pedras pareceremflutuar ou planar e acabarem nada sendo, senãoformas. O fundo luminoso do horizontesuprime o poder que seu tamanho lhes conferee as transforma em elementos de umacomposição gráfica. É nesse achatamentoopulento do espaço da imagem que reside suamisteriosa beleza.

A litografia, por sua vez, é de uma insistentebanalidade visual. Tudo o que era misterioso nafotografia nela se encontra explicado emdetalhes agregados e supérfluos. Puseram umamontoado de nuvens no céu, deram umaforma precisa à margem do lago ao fundo ematerializaram a superfície da água compequenas rugas e ondulações; finalmente, o queé o mais importante nesse processo debanalização da imagem, os reflexos das rochasna água foram cuidadosamente recriados,restabelecendo o peso e a orientação nesseespaço que, em sua versão fotográfica, estavabanhado por aquela vaga luminosidade

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Os espaços discursivos da fotografia

R o s a l i n d K r a u s s

Neste texto, publicado em O fotográfico (Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002),tradução (Anne Marie Davée com revisão técnica de Maya Hantower e Lane de

Castro) revisada do original Le photographique. Pour une théorie des écarts(Paris: Editions Macula, 1990), Rosalind Krauss observa como, em seus primórdios– em O’ Sullivan , Atget, Salzmann e outros –, a fotografia participava de espaços

discursivos muito mais ligados ao conhecimento do mundo do que à arte. Mas, àmedida que essa produção vai sendo incorporada a seus arquivos, esses traços se

vão paulatinamente apagando em favor de outros mais congruentes com ascategorias estéticas sobre as quais se apóia o sistema da arte: as noções de autor,obra e gênero passam a ser parâmetro de avaliação de uma produção para a qual,

anteriormente, não possuíam nenhum valor constitutivo.

Fotogra f ia ; museu; a r te .

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produzida pelo colódio nos lugares em que aexposição foi rápida demais.

A diferença entre essas duas imagens, entre afotografia e sua interpretação, não se deveobviamente à oposição entre a inspiração dofotógrafo e a falta de talento do gravador. Aocontrário, fica claro que elas pertencem a doiscampos culturais distintos, pressupõemexpectativas diferentes por parte do espectadore veiculam dois tipos distintos de saber. Parautilizar um vocabulário ainda maiscontemporâneo, poderíamos dizer que,enquanto representações, elas operam em doisespaços discursivos distintos que se originam emdois discursos diferentes. A litografia pertence aodiscurso da geologia e, portanto, ao da ciênciaempírica. Para poder funcionar no interior dessediscurso, era preciso restabelecer na imagemregistrada por O’Sullivan os elementos habituaisda descrição topográfica, quer dizer, reconstruir,ao longo de um plano horizontal inteligível, ascoordenadas de um espaço homogêneocontínuo e estruturado – não tanto pelaperspectiva, mas pela grade cartográfica –, sob aforma de uma fuga coerente em direção a umhorizonte bem definido. Era preciso enraizar,estruturar, levantar o plano dos dadosgeológicos desses domos de tufo. Comoformas flutuando sobre um contínuo vertical,teriam sido inúteis.2

E a fotografia, em que espaço discursivo opera?O discurso estético desenvolvido no século 19organizou-se cada vez mais em torno daquiloque se poderia chamar de espaço de exposição.Quer se trate de museu, salão oficial, feira

internacional ou exposição particular, esseespaço era constituído em parte pela superfíciecontínua da parede, uma parede concebida cadavez mais para expor arte, exclusivamente. Mas,para além dos muros da galeria, o espaço deexposição podia apresentar-se sob muitasoutras formas, como, por exemplo, sob oponto de vista da crítica, que é, de um lado, olugar de uma reação escrita perante a presençade obras em seu contexto específico e, deoutro, o lugar implícito da escolha (inclusão ouexclusão), em que tudo o que é excluído doespaço de exposição acaba sendomarginalizado no plano do estatuto artístico.3

Dada sua função de suporte material daexposição, a parede da galeria tornou-se osignificante de inclusão e pode, portanto, serconsiderada per se uma representação do quepoderíamos chamar de “exposicidade” – o quese desenvolvia então como vetor fundamentalde intercâmbio entre artistas e patrocinadoresna estrutura em plena evolução da arte noséculo 19. Depois, na segunda metade doséculo, a pintura – principalmente a depaisagens – reage com seu próprio sistemacorrespondente de representações. Elacomeçou a interiorizar o espaço de exposição(a parede) e a representá-lo.

Após 1860, a transformação da paisagem emvisão aplainada e comprimida do espaçoestendendo-se lateralmente por toda asuperfície foi rápida ao extremo. Começou pelaevacuação sistemática da perspectiva na pinturade paisagem, anulando o efeito de profundidadeda perspectiva mediante uma série de

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mecanismos (um contraste fortementepronunciado, entre outros), que tinham comoresultado transformar a penetração ortogonal daprofundidade (proporcionada, por exemplo, poruma alameda de árvores) em uma organizaçãodiagonal da superfície. Assim que foi aceita essacompressão, que permitia representar todo oespaço de exposição no interior de uma únicatela, outras técnicas foram utilizadas com amesma finalidade. Trata-se, por exemplo, daspaisagens seriais, penduradas umas ao lado dasoutras, imitando a extensão horizontal daparede, como os quadros de Monet da catedralde Rouen; ou então das paisagens comprimidase sem horizonte, que se estendiam até ocupartodo o comprimento de uma parede. Asinonímia entre paisagem e parede (umarepresentando a outra) nas Nympheas tardias deMonet apresenta-se como um momentoparticularmente avançado de uma série deoperações, em que o discurso estético encontraresolução na representação do próprio espaçoque funda sua instituição.

Nem é preciso dizer que a constituição da obrade arte como apresentação de seu próprioespaço de exposição é, de fato, o quechamamos de história do modernismo. Por essemotivo é fascinante hoje em dia olhar oshistoriadores da fotografia integrando sua mídiana lógica dessa história. Pois se perguntarmosmais uma vez em que espaço discursivofuncionava a fotografia original de O’Sullivan domodo como eu a descrevi no começo desteartigo, só se pode responder: o do discursoestético. E se nos perguntarmos então o queela representa, forçosamenteresponderemos que, no interior desseespaço, ela se torna uma representação doplano de exposição, da superfície do museu,da capacidade da galeria para erigir em arteo objeto que ela decidiu exibir.

O’Sullivan, em sua época (nas décadas de 1860e 1870), terá acaso produzido suas fotografiaspara o discurso estético e o espaço daexposição? Ou terá sido para o discursocientífico e topográfico, que serviu com relativaeficácia? Na realidade, a interpretação de suasimagens como representação de valoresestéticos (ausência de profundidade, construçãográfica, ambigüidade – e, além disso, intenções

estéticas tais como o sublime e atranscendência) não será uma elaboraçãoretrospectiva concebida para afirmá-las comoarte?4 Afinal essa projeção não será injustificada,não constituirá uma falsa história?

Essa questão apresenta hoje um interessemetodológico especial, uma vez que umahistória da fotografia que se estabeleceurecentemente com grande vitalidade tenta fazerum histórico dos primeiros anos dessa mídia. Omaterial de base do histórico é justamente essetipo de fotografia, de essência topográfica pornatureza e empreendida originalmente emfunção das necessidades de exploraçãogeográfica, das expedições e dos levantamentostopográficos. Montadas, emolduradas e dotadasde um título, as imagens entram hoje pelo viésdo museu no terreno da reconstrução histórica.Podemos agora ler na parede da exposiçãoesses objetos sabiamente isolados de acordocom uma certa lógica, lógica essa que, paralegitimá-los, põe ênfase em seu caráter derepresentação no espaço discursivo da arte. Otermo “legitimar” é utilizado por Peter Galassi, ea questão da legitimação estava no cerne daexposição de que foi curador no Museu de ArteModerna de Nova York. Em uma fraseretomada por todos os comentaristas, Galassilevanta a questão da posição da fotografia emrelação ao discurso estético: “O objetivo aqui émostrar que a fotografia não era umabastarda abandonada pela ciência na soleirada arte, e sim uma filha legítima da tradiçãopictórica ocidental”.5

O projeto que sustenta essa legitimação nãopretende simplesmente confirmar que algunsfotógrafos do século 19 tinham a pretensão deser artistas, nem provar que as fotografias eramde qualidade igual – senão superior – à daspinturas. Tampouco pretende mostrar que associedades fotográficas organizavam exposiçõesnos moldes dos salões de pintura oficiais.Operar uma legitimação nos pede queultrapassemos a simples exposição da filiaçãoaparente a uma mesma família: exige ademonstração da necessidade interna e genéticade tal pertença, e Galassi quer portanto dirigirseus ataques às estruturas internas e formais, emvez de aos detalhes conjunturais externos. Comesse objetivo, espera provar que a perspectivatão marcante na fotografia de exteriores do

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século 19, perspectiva essa que tende a aplainar,fragmentar, produzir recobrimentos ambíguos eque qualifica de “analítica” (por oposição àperspectiva de construção “sintética” doRenascimento), já estava plenamentedesenvolvida no final do século 18 na artepictórica. Galassi sustenta, portanto, que a forçadessa prova está em refutar a idéia segundo aqual a fotografia seria essencialmente “filha detradições mais técnicas do que estéticas”; nessamedida, então, era alheia aos problemasinternos do debate estético; ela mostra que afotografia, ao contrário, é produto desse mesmoespírito de investigação nas artes, queintegraram e desenvolveram ao mesmo tempoa perspectiva “analítica” e a visão empírica. Osesboços de figuras encurtadas, radicalmenteelípticas de Constable (e até de Degas) podemportanto servir de modelo para a práticafotográfica posterior que, na exposição deGalassi, se encontra representadaessencialmente pela prática topográfica: SamuelBourne, Felice Beato, Auguste Salzmann,Charles Marville e, claro, Timothy O’Sullivan.

E as fotografias reagem tal como se lhes pede. Ade uma estrada no Caxemira, de autoria deBourne, com sua nítida repartição entre luzesaltas e baixas, esvazia a perspectiva de seusignificado espacial e a reinveste com umaordem bidimensional tão eficaz quanto umMonet da mesma época. Uma fotografia deSalzmann que registra com extrema precisão atextura de um muro de pedra preenchendo oquadro de um espaço tonal quase uniforme,assimila a descrição dos detalhes empíricos eopera uma representação da infra-estruturapictórica. Quanto às imagens de O’Sullivan comos seus rochedos marítimos perdidos naquelecéu de colódio vazio, não têm nenhumaprofundidade e formam o mesmo tipo desistema, visto de maneira hipnótica, maspercebido como bidimensional, como aqueleque caracterizava a fotografia dos Tufa Domes.Quando se vêem essas “provas” nas paredesdos museus, não se duvida de que o fotógrafonão só tenha desejado fazer arte, mas tambémrepresentá-la, e isso pelo desenho unificador,decorativo e sem efeito de profundidade criadopela perspectiva “analítica”.

Aqui, porém, a demonstração começa a ficarproblemática, porque as fotografias de Thimothy

O’Sullivan não forampublicadas no século19, quando a únicadifusão pública queganhou evidênciaaconteceu sob a formade vistasestereoscópicas. Amaioria de suasfotografias maisfamosas (as ruínas docanhão de Chelly,tiradas com aexpedição deWheeler, porexemplo) existe de fato sob forma de vistasestereoscópicas, e, no caso dele, como no deWilliam Henry Jackson, é a elas que o grandepúblico tinha acesso.6 Então será possível, damesma maneira que havíamos começado poruma comparação entre duas imagens (afotografia e a litografia tirada a partir dela),prosseguir com uma comparação entre doistipos de máquinas: a câmara com placas de23 x 30cm e a máquina para tomadas devistas estereoscópicas, esses doisequipamentos simbolizando dois domíniosdistintos de percepção.

O espaço estereoscópico é um espaçoperspectivo que teria sido transformado em algomais potente ainda. Estruturado como umaespécie de visão sem campo lateral, a sensaçãode fuga na profundidade é permanente einevitável, ainda mais porque o espaço querodeia o espectador é dissimulado pelo sistemaóptico que ele tem que pôr diante dos olhospara visualizar as imagens, sistema que o colocaem um isolamento ideal. Tudo o que o rodeia,paredes e chão, fica excluído de seu olhar. Oaparelho estereoscópico concentramecanicamente toda a atenção do espectadorsobre o tema das imagens e proíbe todos osdesvios que o olhar se permite nas galerias dosmuseus, quando passa errante de um quadro aoutro e pelo espaço físico que o rodeiatambém. Aqui, ao contrário, o‘recentramento’ do olhar não se podeproduzir senão no campo de visão impostopela máquina óptica ao espectador.

A imagem estereoscópica parece compostade múltiplos planos escalonados ao longo de

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um declive acentuado, que vai do espaço maispróximo até o mais afastado. A operação dedecifrar visualmente esse espaço implica queo olho varra o campo da imagem deslocando-se do canto esquerdo inferior ao canto direitosuperior, por exemplo. Até aí não hánenhuma distinção da pintura, mas a formacomo se percebe essa varredura é totalmentediferente. Quando o olhar se desloca de umprimeiro plano para um plano intermediárioao longo do túnel estereoscópico, temos asensação de estar refazendo nossaacomodação visual. O mesmo fenômeno sereproduz quando nos “deslocamos” emseguida para o plano de fundo.7

Esses microesforços musculares correspondemno plano cinestésico à ilusão puramente ótica daimagem estereoscópica. De certa forma sãorepresentações – mas em escala muito reduzida– do fenômeno produzido quando se abre umamplo panorama diante de si. O reajuste dosolhos de um plano a outro produzidoefetivamente no campo estereoscópicocorresponde a uma representação por umórgão do corpo, mais do que outro órgão, ospés, faria ao atravessar o espaço real. Nem épreciso dizer que da travessia fisiológica e ópticado campo estereoscópico decorre outradiferença com relação ao espaço pictórico, masessa diz respeito à dimensão temporal.

Os relatos de época que descrevem acontemplação de vistas estereoscópicas insistemtodos enfaticamente no tempo gasto no examedetalhado do conteúdo das imagens. Para OliverWendel Holmes Sr., férreo defensor daestereoscopia, essa leitura atenta era a reaçãoapropriada perante a “inesgotável” riqueza dedetalhes oferecida pela imagem. Quando abordaesse ponto em seus escritos sobre aestereoscopia, ao descrever sua “leitura” de umavista da Broadway por E. & H.T. Anthony, porexemplo, Holmes conta a seus leitores o longocontato necessário para usufruir o espetáculodesse tipo de vistas. Os quadros, ao contrário,não pedem essa dilatação temporal da atenção,essa longa e minuciosa exploração do menorespaço de terreno (e eles incitarão cada vezmenos a isso ao se tornar modernistas).

Quando Holmes quer definir essa modalidadeparticular do olhar em que “o espírito se dirige

tateando às profundezas da fotografia”, recorreà evocação de estados psíquicos extremoscomo a hipnose, os “efeitos semimagnéticos”e o sonho. “Pelo menos a supressão de tudoque rodeia o espectador e a concentração detoda a atenção que daí decorre produzemuma exaltação comparável à do sonho”,escreve ele, “em que parece queabandonamos nosso corpo para trás evagamos de uma estranha cena para outra,como se fôssemos espíritos desencarnados.”8

O tipo de percepção proporcionado peloestereoscópio cria uma situação comparável àdo cinema. As duas implicam o isolamento doespectador com uma imagem apartada dequalquer intrusão do mundo exterior. Nos doiscasos, a imagem transporta o espectador pelosolhos, enquanto seu corpo permanece imóvel.Em ambos os casos, o prazer provém daexperiência do simulacro, essa aparência derealidade cujo efeito de real não pode serverificado por qualquer deslocamento físico realna cena. Nos dois casos, enfim, o efeito de realoutorgado pelo simulacro é reforçado peladilatação temporal. O que chamamos dedispositivo do processo cinemático teve portantouma certa proto-história na instituiçãoestereoscópica, por sua vez oriunda dodiorama, também ele, lugar escuro que isolava oespectador enquanto lhe oferecia, ao mesmotempo, um espetacular9 efeito de real. No casoda estereoscopia, tornou-se um instrumentoinstantânea e formidavelmente popular emfunção do prazer específico produzido e dodesejo que gratificava, sob todas as aparências, aexemplo do que ocorreu posteriormente com ocinema. A difusão da estereoscopia como meioreal de comunicação de massa tornou-sepossível graças às técnicas de reproduçãomecânica. Os números das vendas de vistasestereoscópicas, primeiro na década de 1850,mas sem diminuição significativa até a década de1880, provocam vertigem: a LondonStereoscopic Company tinha vendido 500.000estereoscópios desde 1857 e em 1859 podiaoferecer em seu catálogo uma lista de mais de100.000 vistas estereoscópicas diferentes.10

O próprio termo “vista” era utilizado pela práticaestereoscópica para designar seu objeto epermite localizar a especificidade desse tipo de

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imagem. De início, a palavra “vista” evocava aespetacular profundidade que acabo dedescrever, organizada segundo as leis daperspectiva. Esse fenômeno foi freqüentementereforçado ou simplesmente levado em contapor aqueles que faziam vistas estereoscópicas,em sua maneira de estruturar as imagens emtorno de um ponto de referência vertical noprimeiro ou segundo plano – o que tinha porefeito centrar o espaço representando, dentrodo próprio campo visual, a convergência dosolhos em direção ao ponto de fuga. Um bomnúmero de imagens de Timothy O’Sullivan seorganizam em torno de um centro como esse,como o eixo constituído por um tronco deárvore desnuda, por exemplo, ou a beira toscade uma formação rochosa. Dada a tendência deO’Sullivan para construir sua imagem sobre adiagonal de fuga e sobre o elemento que servede centro para a vista, não é surpreendente vê-lo falar, no único texto em que relata seutrabalho de fotógrafo no Oeste, das “vistas” quefaz e do que faz quando as compõe como“vistas”. Quando fala da expedição a PyramidLake, ele descreve o material que leva consigo eque compreende, entre outros, “osinstrumentos e produtos químicos necessáriospara que nosso fotógrafo possa ‘realizar’ suasvistas”. Logo depois, quando comenta sobre oHumbolt Sink: “Era um belo lugar para trabalhare fazer vistas (viewing), era a atividade maisagradável que se pudesse desejar”.11 A palavra“vista” era onipresente nas revistas defotografias: era cada vez mais sob esse vocábuloque os fotógrafos apresentavam suas obras nosSalões fotográficos da década de 1860. Assim,mesmo quando entravam conscientemente noespaço da exposição, os fotógrafos tinham atendência de utilizar como categoriadescritiva de seus trabalhos a palavra “vista”,em vez de “paisagem”.

A palavra “vista” remete além disso a umaconcepção de autor em que o fenômenonatural, o ponto notável, apresenta-se aoespectador sem a mediação aparente nem deum indivíduo específico que dele registre otraço, nem de um artista em particular, deixandoa “paternidade” das vistas a seus editores e nãoaos operadores (como eram chamados naépoca) que haviam tirado as fotografias. Dessemodo, a noção de autoria estava vinculada de

forma significativa à publicação, o copyrightpertencendo a diversas sociedades (porexemplo C. Keystone Views), enquanto ofotógrafo permanecia no anonimato. Nessesentido, as características perceptíveis da “vista”,sua profundidade e nitidez exageradadesembocavam sobre um segundo aspecto, oisolamento de seu objeto. Efetivamente, oobjeto é um “lugar extraordinário”, umamaravilha natural, um fenômeno singular quevem ocupar essa posição central da atenção.Essa forma de apreender a natureza dosingular se apóia sobre uma transferência danoção de autor da subjetividade do artista àsmanifestações objetivas da Natureza, comodemonstrou Barbara Stafford em um estudosobre a “singularidade” enquanto categoriaespecífica, surgida ao final do século 18, eque está associada aos relatos de viagem.12 Épor esse motivo que a vista não reivindicatanto a projeção da imaginação de um autor,mas somente a proteção legal depropriedade do copyright.

Enfim, a palavra “vista” indica a singularidade,esse ponto focal, como sendo um momentoparticular em uma representação complexa domundo, uma espécie de atlas topográfico total.O lugar onde eram guardadas as “vistas” erasempre um móvel com gavetas em que eraarquivado e catalogado todo um sistemageográfico. O móvel guarda-arquivo é umobjeto muito diferente da parede ou docavalete. Ele oferece a possibilidade dearmazenar informações e de remetê-las umas àsoutras, assim como cotejá-las por meio degrade especial de um determinado sistema deconhecimentos. Os arquivos de vistasestereoscópicas, móveis rebuscados que noséculo 19 faziam parte do mobiliário das casasburguesas e das bibliotecas públicas, abarcavamuma representação complexa do espaçogeográfico. A impressão de espaço e sua fortepenetração proporcionada pela “vista”funcionam portanto como modelo sensorialde um sistema mais abstrato, cujo tematambém é o espaço. Vistas e levantamentostopográficos estão intimamente ligados e sedeterminam mutuamente.

O que se depreende desta análise é portanto aexistência de todo um sistema de exigênciasligadas à história, que foram satisfeitas por esse

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gênero particular e com relação ao qual oconceito de “vistas” formava um discursocoerente. Espero também ter ficado evidenteque este discurso não corresponde ao que odiscurso estético entende pelo termo“paisagem”. De fato, da mesma maneira como éimpossível assimilar, no plano fenomenológico, aconstrução do espaço que a vista opera aoespaço fragmentado e comprimido do que échamado “perspectiva analítica” na exposiçãoBefore Photography,13 também não é possívelcomparar a representação que forma o conjuntodessas vistas tomadas coletivamente àquelaproduzida pelo espaço da exposição. Umacompõe a imagem de uma ordem geográfica, aoutra representa o espaço de uma Arteautônoma e de sua História idealizada eespecializada, constituída pelo discurso estético.As representações coletivas complexas dessevalor a que damos o nome de estilo (estilo deum período, estilo pessoal) dependem doespaço de exposição. Poderíamos dizer queestão ligadas a ele. Nesse sentido, a história daarte moderna é produto do espaço deexposição mais rigorosamente estruturado doséculo 19, ou seja, o museu.14

Foi André Malraux quem nos explicou como omuseu, por sua vez, organiza coletivamente arepresentação dominante da Arte pela sucessãode estilos e representações que oferece. Osmuseus se modernizaram com a instituição dolivro de arte, e os museus de Malraux setornaram hoje em dia "museus imaginários, semparedes", encontrando-se o conteúdo de suasgalerias amontoado num vasto conjunto coletivopela reprodução fotográfica. Contudo isso nãofaz senão reforçar o sistema dos museus:

AAoo ppaassssaarr ddaa eessttááttuuaa aaoo bbaaiixxoo--rreelleevvoo,, ddoobbaaiixxoo--rreelleevvoo àà mmaarrccaa ddoo sseelloo ccuunnhhaaddoo,,ddeessssaa mmaarrccaa ààss ppllaaccaass ddee bbrroonnzzee ddoossnnôômmaaddeess ppoorr mmeeiioo ddaa eeqquuíívvooccaa uunniiddaaddee ddaaffoottooggrraaffiiaa,, oo eessttiilloo bbaabbiillôônniiccoo ppaarreeccee aaddqquuiirriirruummaa eexxiissttêênncciiaa pprróópprriiaa,, ccoommoo ssee ffoossssee aallggoommaaiiss qquuee uumm nnoommee:: uummaa eexxiissttêênncciiaa ddeeaarrttiissttaa.. UUmm eessttiilloo ccoonnhheecciiddoo eemm ssuuaaeevvoolluuççããoo ee eemm ssuuaass mmeettaammoorrffoosseess ttoorrnnaa--sseemmeennooss aa iiddééiiaa ddoo qquuee aa iilluussããoo ddee uummaaffaattaalliiddaaddee vviivvaa.. AA rreepprroodduuççããoo ee aappeennaass eellaaffeezz eennttrraarr nnaa aarrttee eesssseess ssuupprraa--aarrttiissttaassiimmaaggiinnáárriiooss qquuee ttêêmm uumm nnaasscciimmeennttooccoonnffuussoo,, uummaa vviiddaa,, ccoonnqquuiissttaass,, ccoonncceessssõõeess

aaoo ggoossttoo ddaa rriiqquueezzaa oouu ddaa sseedduuççããoo,, uummaaaaggoonniiaa ee uummaa rreessssuurrrreeiiççããoo,, ee qquuee sseecchhaammaamm eessttiillooss.. AAoo aauuffeerriirr--llhheess vviiddaa,, eellaa oossccooaaggee aa ppoossssuuiirr uumm ssiiggnniiffiiccaaddoo..15

Quando decidiram que o lugar da fotografia doséculo 19 era dentro dos museus, que a ela erapossível aplicar os gêneros do discurso estéticoe que o modelo da história da arte muito bemlhe convinha, os especialistas contemporâneosda fotografia foram longe demais. Para começar,concluíram que determinadas imagens erampaisagens (em vez de vistas) e, desde então, nãotiveram mais qualquer dúvida quanto ao tipo dediscurso a que essas imagens pertenciam e aoque elas representavam. Em seguida (mas éuma conclusão a que chegaram ao mesmotempo em que a precedente), elesdeterminaram que era possível aplicar outrosconceitos fundamentais do discurso estético aoarquivo visual. Entre eles o conceito de artista,com a idéia subseqüente de uma progressãoregular e intencional que chamamos de carreira.Outro conceito é a possibilidade de umacoerência e de um sentido que surgiriam dessecorpus coletivo e que constituiriam assim aunidade de uma obra. Podemos todaviaresponder que esses são termos que afotografia topográfica do século 19 nãosomente não permite utilizar, mas cujavalidade parece questionar.

O conceito de artista implica algo mais que asimples paternidade das obras. Ele sugeretambém que se deva passar por um certonúmero de etapas para ter o direito dereivindicar um lugar de autor: a palavra artistaestá de alguma forma semanticamente ligada ànoção de vocação. Em geral, a palavra vocaçãoimplica iniciação, obras de juventude, umaaprendizagem das tradições de sua arte e aconquista de uma visão individual por umprocesso que implica ao mesmo tempofracassos e sucessos. Se isso deve estar presenteem parte ou por inteiro na palavra artista, pode-se então imaginar um artista simplesmente porum ano? Não seria uma contradição lógica(alguns diriam gramatical), como no exemplocitado por Stanley Cavell a propósito dojulgamento estético, em que repete a perguntade Wittgenstein: "Será possível sentir um anseioou um amor ardente durante o espaço de umsegundo, seja qual for o que antecede ou sesegue a esse instante?"16

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No entanto, esse é o caso de AugusteSalzmann, cuja carreira fotográfica teve início em1853 e chegou ao fim menos de um anodepois. Poucos fotógrafos no século 19 tiveramuma passagem tão rápida pela cena fotográfica.Outras figuras importantes nessa históriaabraçaram o ofício e o deixaram menos de umadécada depois, como Roger Fenton, Gustave LeGray e Henri Le Secq, três "mestres"conceituados nessa arte. Deixar a fotografiaesteve relacionado em alguns casos a umretorno às artes mais tradicionais; em outros,como o de Fenton, que se tornou advogado, auma mudança completa de ramo de atividade.Quais são os significados da duração e danatureza de tais práticas para o conceito decarreira? Pode-se aplicar a essas carreiras osmesmos pressupostos metodológicos, a mesmaidéia de estilo individual e contínuo que àscarreiras de outros tipos de artistas?17

Quanto à obra, essa outra grande unidadeestética, o que resta dela? Nos confrontamosmais uma vez com práticas aparentemente dedifícil assimilação ao que o termo abarca esubentende habitualmente, o fato de que a obraseja resultado de uma perseverança na intençãoe o fato de que tenha um vínculo orgânico como esforço daquele que a produz. Em umapalavra, que ela seja coerente. Uma prática deque já falamos é a utilização autoritária docopyright, que faz com que determinadas obras,como as de Matthew Brady e de Francis Frith,sejam em grande parte resultado do trabalho deseus funcionários. Outra prática, ligada ànatureza das encomendas fotográficas, fazia comque se deixassem grandes porções da "obra"inacabadas. Podemos citar o exemplo da Missãoheliográfica de 1851, no âmbito da qual Le Secq,Le Gray, Baldus, Bayard e Mestral (quer dizer, asmaiores figuras do início da história da fotografiana França) fizeram inventários fotográficos para acomissão dos Monumentos Históricos. Oresultado de seus trabalhos, algo em torno de300 negativos representando construçõesmedievais que deveriam passar por obras derestauração, não somente nunca foi publicadonem exposto pela comissão, como nem mesmofoi copiado. Isso se compara a um realizador decinema que rodasse um filme cujo negativo nãorevelasse e cujos rushes nunca chegasse a ver.Qual seria o lugar desse trabalho na sua obra?18

Existem no arquivo outras práticas e outrasmodalidades que questionam a legitimidade doconceito de obra. É por exemplo o caso de umcorpus excessivamente parco ou extenso pararesponder a essa definição. Seria possível falar deuma obra que se limitasse a uma única peça? É oque procura fazer a história da fotografia como único trabalho fotográfico realizado porAuguste Salzmann, uma única compilação defotografias arqueológicas (de grande belezaformal), das quais se sabe que várias foramtiradas por seu assistente.19

Inversamente, será possível imaginar uma obraque abarcasse 10.000 fotografias? Eugène Argetproduziu um corpus considerável, que iavendendo à medida que produzia (grosso modoentre 1895 e 1927) para diversas coleçõeshistóricas, como a da Bibliothèque de la ville deParis, o do Musée de la ville de Paris (MuseuCarnavalet), a Bibliothèque Nationale, osMonuments Historiques, bem como paraempresas de construção e para artistas. Aassimilação desse trabalho de documentação porum discurso especificamente estético iniciou-seem 1925, quando seu trabalho chamou aatenção dos surrealistas, que o publicaram. Em1929, foi incorporado à sensibilidade fotográficada Nova Visão alemã.20 Assim, começaram asurgir olhares parciais dirigidos a esse arquivo de10.000 documentos, cada olhar sendo resultadode uma seleção destinada a demonstrar umdeterminado aspecto formal ou estético.

Nessas fotografias, podiam-se isolar os ritmos deacumulaçãorepetitivos que tantointeressavam a NeueSachlichkeit ou aindaos "collages" caros aossurrealistas,particularmenteatraídos pelasfotografias de vitrinasdas lojas, que fizerama celebridade deAtget. Outras seleçõesreforçam outrasinterpretações docorpus. As freqüentessobreimpressõesvisuais de objeto e deagente, como a

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silhueta de Atget refletida no vidro reluzente davitrina de um café que ele está fotografando,autorizam uma leitura reflexiva da obra comorepresentação de seu próprio processo defabricação. Outras leituras são mais formais noplano da composição: Atget conseguindolocalizar um ponto em torno do qual astrajetórias espaciais completas do lugar se irãomostrar com uma simetria particularmentereveladora. Na maioria dos casos, imagens deparques e cenas rurais servem de palco paratais demonstrações.

Porém cada uma dessas leituras é parcial, comopequenos espécimes geológicos extraídos comoamostra de um terreno, cada um revelando apresença de um minério diferente. Dez milfotografias é muito para cotejar. Contudo, se otrabalho de Atget deve ser considerado arte eAtget tido como artista, esse cotejar deve serlevado a cabo. É preciso que possamos ver queestamos diante de uma obra. A exposição emquatro partes do museu de Arte Moderna deNova York, reunida sob o título de per setendencioso de “Atget e a arte da fotografia”,avança rápido demais na direção de umaresolução do problema, considerando sempreque o modelo unificador desse arquivo é oconceito de obra de artista. Poderia ser deoutro modo?

John Szarkowski, depois de reconhecer que asfotografias de Atget são extremamente desiguaisdo ponto de vista da invenção formal, sepergunta por que razão:

EExxiisstteemm vváárriiaass mmaanneeiirraass ddee iinntteerrpprreettaarr eessssaaiinnccooeerrêênncciiaa aappaarreennttee.. PPooddeemmooss ccoonnssiiddeerraarrqquuee AAttggeett ttiinnhhaa aa aammbbiiççããoo ddee ffaazzeerrbbeellííssssiimmaass ffoottooggrraaffiiaass ppaarraa nnoossssoo pprraazzeerr eeeennccaannttoo ee qquuee,, nnaa mmaaiioorriiaa ddooss ccaassooss,,ffrraaccaassssoouu nnoo sseeuu iinntteennttoo.. OOuu eennttããooppooddeemmooss ccoonnssiiddeerraarr qquuee eellee iinnggrreessssoouu ccoommoouumm nnoovviiççoo nnaa ffoottooggrraaffiiaa ee qquuee,, ppoouuccoo aappoouuccoo,, ggrraaççaass aaoo vvaalloorr ppeeddaaggóóggiiccoo ddoottrraabbaallhhoo,, aapprreennddeeuu aa ddoommiinnaarr eessssee mmeeiioottããoo ppaarrttiiccuullaarr ee rreeccaallcciittrraannttee ccoommsseegguurraannççaa ee eeccoonnoommiiaa,, ddee ffoorrmmaa qquuee sseeuussttrraabbaallhhooss ffoorraamm mmeellhhoorraannddoo ccoomm oo tteemmppoo..PPooddeemmooss ttaammbbéémm oobbsseerrvvaarr qquuee eelleettrraabbaallhhaavvaa ppaarraa eellee mmeessmmoo ee ppaarraa oossoouuttrrooss aaoo mmeessmmoo tteemmppoo ee qquuee sseeuu ttrraabbaallhhooppeessssooaall eerraa mmeellhhoorr ppoorrqquuee pprroodduuzziiaa ppaarraa

uumm ddoonnoo mmaaiiss eexxiiggeennttee.. OOuu aaiinnddaa qquueeAAttggeett ttiinnhhaa ccoommoo mmeettaa aa eexxpplliiccaaççããoo eemmtteerrmmooss vviissuuaaiiss ddee uumm pprroobblleemmaa ddee ggrraannddeerriiqquueezzaa ee ccoommpplleexxiiddaaddee:: oo eessppíírriittoo ddee ssuuaapprróópprriiaa ccuullttuurraa;; ee,, nneessssaa bbuussccaa,, eessttaavvaapprroonnttoo aa aacceeiittaarr ooss rreessuullttaaddooss ddoo qquueetteennttaavvaa ffaazzeerr ddaa mmeellhhoorr ffoorrmmaa ppoossssíívveell,,mmeessmmoo qquuee eesssseess rreessuullttaaddooss nnããoouullttrraappaassssaasssseemm ààss vveezzeess oo ppaattaammaarr ddeessiimmpplleess ddooccuummeennttooss..

AAccrreeddiittoo qquuee ttooddaass eessssaass eexxpplliiccaaççõõeess ssããoovveerrddaaddeeiirraass eemm ddiiffeerreenntteess ggrraauuss,, mmaass aaúúllttiimmaa éé qquuee nnooss iinntteerreessssaa ppaarrttiiccuullaarrmmeennttee,,ppoorr sseerr mmuuiittoo ddiiffeerreennttee ddoo qquuee ccoossttuummaammoosseenntteennddeerr ppoorr aammbbiiççããoo aarrttííssttiiccaa.. NNããoo nnooss ééffáácciill aacceeiittaarr sseemm pprrootteessttaarr oo ffaattoo ddee qquuee ooaarrttiissttaa ppoossssaa eessttaarr aa sseerrvviiççoo ddee uummaa iiddééiiaammaaiiss vvaassttaa ddoo qquuee eellee.. EEnnssiinnaarraamm--nnooss aappeennssaarr,, oouu mmeellhhoorr,, aa aaddmmiittiirr qquueenneennhhuumm vvaalloorr ttrraannsscceennddee oo ddoo ccrriiaaddoorr,, ooccoorroolláárriioo llóóggiiccoo sseennddoo qquuee nneennhhuummaassssuunnttoo aalléémm ddee ssuuaa pprróópprriiaasseennssiibbiilliiddaaddee ppaarreeccee vveerrddaaddeeiirraammeenntteemmeerreecceerr aa aatteennççããoo ddoo aarrttiissttaa..21

Essa passagem progressiva das categoriashabituais de descrição da produção estética(sucesso formal/fracasso formal,aprendizagem/maturidade, encomendapública/expressão pessoal) para uma posiçãoque Szarkowski define como "muito diferente doque entendemos por ambição artística" (paraqualificar obras "a serviço de uma causa maisampla que a simples expressão pessoal")incomoda Szarkowski, evidentemente. Poucoantes de interromper o fio dessa reflexão, ele sepergunta que razão levou Atget a retornar – porvezes anos depois – aos lugares que já haviafotografado, como fez quando refotografou umaedificação por vários ângulos, por exemplo. Aresposta apresentada pelo crítico – umaoposição entre sucesso formal e fracasso formal– se reduz às categorias da maturação artística,corolário da noção de obra. Sua obstinação empensar as fotografias em sua relação com essemodelo estético pode ser encontradanovamente em sua decisão de seguir tratando asfotografias em termos de evolução estilística:"Suas primeiras imagens mostram a árvorecomo objeto inteiro e discreto, recortado sobreum fundo, colocado no centro doenquadramento da imagem, iluminado

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frontalmente por uma fonte proveniente de trásdo ombro do fotógrafo. As imagens de fim decarreira mostram a árvore nitidamente cortadapelo quadro, descentrada e, de forma aindamais evidente, modificada em sua aparência pelaqualidade da iluminação".22 É isso que produz aatmosfera "elegíaca" de determinadas imagensdo final de sua carreira.

Porém toda essa questão de intenção artística eevolução estilítica deve ser integrada a "essa idéiamais ampla que ele mesmo" à qual Atget teriasupostamente servido. Se as 10.000 fotografiasformam a imagem que ele tinha dessa "idéiamais ampla", então essa poderá nos informarsobre as intenções estéticas do fotógrafo, poishaverá entre as duas uma relação recíproca,uma interna ao artista, a outra externa a ele.

Por muito tempo acreditou-se que bastariadecifrar o código que fornecia o número dosnegativos de Atget para conseguir dominarsimultaneamente a "idéia mais ampla" e osmotivos misteriosos que o levaram a constituiresse imenso arquivo ("É difícil encontrar umartista importante do período moderno cuja vidae intenções nos foram mais veladas que as deEugène Atget", escreve Szarkowski). Cada umadas 10.000 placas recebeu um número. Todaviaos números não são estritamente consecutivos,não organizam o corpus cronologicamente e porvezes retrocedem.23

Para os pesquisadores do problema colocadopela obra de Atget, os números, supostamente,forneceriam a chave fundamental das intençõese do sentido da atividade do autor. Maria MorrisHambourg decifrou afinal esse código demaneira definitiva e descobriu que se tratava dasistematização de um catálogo de temastopográficos divididos em cinco grandes séries enumerosas subdivisões e grupos.24 Os nomesatribuídos às diferentes séries e classes, taiscomo documentos de Paisagens, Paris pitoresco,Arredores, França histórica e assim por diante,revelam que a idéia mestra da obra de Atget erao retrato coletivo do espírito da cultura francesa,o que não deixa de lembrar o empreendimentode Honoré de Balzac em La comédie humaine (Acomédia humana). Em relação com essa idéiamestra, é portanto possível organizar a visão deAtget em torno de um conjunto de intençõessocioestéticas. Ele se transforma então no

grande antropólogo visual da fotografia.Podemos agora entender a intenção unificadorada obra como pesquisa perseverante de umarepresentação desse instante da inter-relaçãoentre natureza e cultura – como é o caso najustaposição da videira que sobe ao longo dajanela de uma casa no campo, cujas cortinasrendadas representam folhas estilizadas. Masessa análise, por mais interessante e amiúdebrilhante que seja, não deixa de ser parcial, maisuma vez. O desejo de representação doparadigma natureza/cultura só pode serrastreado em um número limitado deimagens; depois desaparece, como as pegadasde um animal misterioso, deixando asintenções do fotógrafo tão mudas emisteriosas como sempre.

O interessante nessa história é que o Museu deArte Moderna de Nova York e Maria MorrisHambourg detêm a chave do problema, chaveque nem chegará a revelar o segredo dosistema de intenções estéticas de Atget, e sim olevará a desaparecer. Aliás, esse exemplo éainda mais instrutivo, por demonstrar aresistência da museologia e da história da artede fazer uso dessa chave.

O sistema de códigos aplicado por Atget a suasimagens deriva do catálogo das bibliotecas e dascoleções topográficas para as quais trabalhava.Seus temas eram freqüentementeestandardizados, porque eram ditados pelascategorias estabelecidas da documentaçãohistórica e topográfica. A razão pela qual bomnúmero de imagens de rua se parececuriosamente às fotografias de Charles Marville,tiradas meio século antes, é que tanto umascomo outras foram produzidas de acordo como mesmo plano diretor de documentação.25 Umcatálogo não é tanto uma idéia quanto umamathesis, um sistema de organização queprocede menos da análise intelectual do quesociocultural. E parece muito claro que otrabalho de Atget é produto de um catálogo queo fotógrafo não inventou e para o qual oconceito de autor não tem objeto.

O estatuto normal de autor que o Museu desejaconservar tende a desabar depois de umaobservação dessa ordem, e isso nos leva a umareflexão algo surpreendente: o Museu se lançoua decifrar o código dos números dos negativos

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de Atget para descobrir uma consciência estéticae, em seu lugar, encontrou um catálogo.

Ora, se mantivermos essa reflexão presente,obteremos respostas muito diferentes para asdiversas perguntas colocadas anteriormente,como a de saber por que Atget fotografoudeterminados temas de maneira fragmentada,como a imagem de uma fachada fotografada deforma isolada da imagem da porta, das traves deuma janela ou dos detalhes em ferro forjado damesma casa com o espaço de meses, senãovários anos entre elas. Parece que a resposta aessa pergunta está menos nas condições desucesso ou fracasso estético e mais nasexigências do catálogo e de suas categorias.

Em tudo isso, o tema* é central. Os pórticos ebalcões de ferro forjado serão os temas deAtget? Serão suas escolhas manifestaçõespessoais como sujeito ativo, pensante, de suasintenções e criatividade? Ou serão simplesmente(embora nada haja de simples nisso) objetosdeterminados por um catálogo de que o próprioAtget é objeto? Que preço estaríamos dispostosa pagar em matéria de exatidão histórica paraapoiar a primeira interpertação contra asegunda?

Tudo o que foi adiantado aqui sobre anecessidade de abandonar – ou pelo menos desubmeter a uma crítica séria – as categoriasderivadas da estética, tais como autor, obra egênero (como no caso da paisagem), consiste, éclaro, no esforço de conservar a fotografia antigaem seu estatuto de arquivo e em pedir que seexamine esse arquivo de forma arqueológica, deacordo com a teoria e o exemplo que Foucaultnos forneceu. Ao descrever a análise a que aarqueologia submete o arquivo a fim derevelar o estatuto de suas formaçõesdiscursivas, ele escreve:

[[EEllaass]] nnããoo ddeevveemm sseerr eenntteennddiiddaass ccoommoo uummccoonnjjuunnttoo ddee ddeetteerrmmiinnaaççõõeess iimmppoonnddoo--ssee ddooeexxtteerriioorr aaoo ppeennssaammeennttoo ddooss iinnddiivvíídduuooss oouuhhaabbiittaannddoo--oo eemm sseeuu iinntteerriioorr ee ccoommoo qquuee ddeeaanntteemmããoo;; ccoonnssttiittuueemm aanntteess oo ccoonnjjuunnttoo ddaassccoonnddiiççõõeess sseegguunnddoo aass qquuaaiiss ssee eexxeerrccee uummaapprrááttiiccaa,, sseegguunnddoo aass qquuaaiiss eessssaa pprrááttiiccaapprrooppiicciiaa eennuunncciiaaddooss ppaarrcciiaall oouu ttoottaallmmeenntteennoovvooss ee sseegguunnddoo aass qquuaaiiss,, eennffiimm,, eellaa ppooddeesseerr mmooddiiffiiccaaddaa.. TTrraattaa--ssee mmeennooss ddooss lliimmiitteess

ccoollooccaaddooss àà iinniicciiaattiivvaa ddooss ssuujjeeiittooss ddoo qquuee ooccaammppoo eemm qquuee eellaa ssee aarrttiiccuullaa ((sseemmccoonnssttiittuuiirr sseeuu cceennttrroo)),, ddaass rreeggrraass qquuee aaddoottaa((sseemm aass tteerr iinnvveennttaaddoo nneemm ffoorrmmuullaaddoo)),, ddaassrreellaaççõõeess qquuee llhhee sseerrvveemm ddee ssuuppoorrttee ((sseemmqquuee ddeellaass sseejjaa oo rreessuullttaaddoo ffiinnaall nneemm ooppoonnttoo ddee ccoonnvveerrggêênncciiaa)).. TTrraattaa--ssee ddee ffaazzeerraass pprrááttiiccaass ddiissccuurrssiivvaass aappaarreecceerreemm eemm ssuuaaccoommpplleexxiiddaaddee ee ssuuaa eessppeessssuurraa:: mmoossttrraarr qquueeffaallaarr éé ffaazzeerr aallgguummaa ccooiissaa –– ddiiffeerreennttee ddeeeexxpprreessssaarr oo qquuee ssee ppeennssaa [[......]]26

Hoje, em todo lugar, tenta-se desmantelar oarquivo fotográfico, quer dizer, o conjunto daspráticas, instituições, relações das quais surgiuinicialmente a fotografia do século 19, parareconstruí-lo no quadro das categorias jáconstituídas pela arte e sua história.27 Não édifícil imaginar quais os motivos de semelhanteoperação, mas o que é mais difícil de entender éa indulgência para com o tipo de incoerênciaque isso produz.

Rosalind Krauss é crítica de arte, curadora e professora na ColumbiaUniversity. Alguns de seus textos tornaram-se clássicos como “Aescultura no Campo Ampliado”. Entre os livros publicados figuramCaminhos da Escultura Moderna, Originalidade da Vanguarda e OutrosMitos Modernos, O Fotográfico, O Inconsciente Ótico, além decatálogos e artigos sobre Robert Morris, Richard Serra, David Smith,Donald Judd, Sol Lewitt; Cindy Sherman, Rodin, Marcel Duchamp,Jackson Pollock e Andy Warhol, entre outros. Colaboradora darevista Artforum nos anos 60, é também co-fundadora e co-editorada revista October.

Tradução:?????

NNoottaass

1. O livro de Clarence King Systematic Geology, 1878, é ovolume I da série Professional Papers of the EngineeringDepartement U. S. Army, 7 vol., e atlas (WashingtonD.C., U.S. Government Printing Office, 1877-1878.

2. A grade cartográfica sobre a qual se reconstituiu essainformação não tem por única função a coleta deinformação científica. Como explica Alan Trachtenberg, asexpedições topográficas públicas no Oeste americanotinham por finalidade facilitar o acesso às jazidas deminério necessárias à industrialização do país. Foi,portanto, de um programa científico e também industrialque se originou esse tipo de fotografias, que, “quandovistas fora do contexto dos informes que asacompanhavam, parecem perpetuar a tradição dapaisagem”. E Alan Trachtenberg prossegue: “As fotografiasrepresentam um aspecto essencial da empresa, umaforma de consignar a informação. Elas contribuíram paraa política do Estado federal, que tinha por metaresponder às necessidades fundamentais daindustrialização, às necessidades de informaçõesseguras sobre as matérias-primas, e encorajaram aopinião pública a apoiar a política de conquista,colonização e exploração do Estado federal”. AlanTrachtenberg, The Incorporation of America. New York:Hill and Wang, 1982: 20.

3. Em um importante ensaio, “L’espace de l’art”, Jean-ClaudeLebensztejn analisa a função do museu desde sua criação

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relativamente recente para determinar o que devecontar como Arte: “O Museu desempenha umafunção dupla e complementar: excluir o resto,constituir, por meio dessa exclusão, o queentendemos pela palavra arte. E não é exagero dizerque o conceito da arte sofreu uma profundatransformação quando se abriu e tornou a fechar oespaço destinado a sua definição”. Jean-ClaudeLebensztejn, Zigzag, Paris: Flammarion, 1981: 81.

4. Encontra-se em toda a literatura dedicada ao tema essaassimilação da fotografia topográfica do Oeste àsrepresentações pictóricas da natureza. Barbara Novak,Weston Naef e Elizabeth Lindquist-Cock são trêsespecialistas que consideram esse trabalho uma extensãoda pintura de paisagem do modo como era praticada noséculo 19 nos Estados Unidos, onde o fervor cominclinações transcendentais sempre condicionava amaneira de ver a paisagem. Assim, o argumento agoraclássico quanto à colaboração entre King, o chefe daexpedição geológica de 1867-1870, e O’Sullivan é queesse material visual consiste em provar as teses docreacionismo e a presença de Deus através da fotografia.Segundo nossos autores, King se opunha aouniformitarianismo geológico de Lyell e ao evolucionismode Darwin ao mesmo tempo. Ele era um catastrofista einterpretava as formações geológicas das paisagens doUtah e do Nevada como uma série de atos de criaçãono decorrer dos quais o divino criador teria dado a todasas espécies sua forma definitiva. Os gigantescoslevantamentos de rocha e escarpas, as espetacularesformações basálticas eram sempre produzidas pelanatureza, segundo nossos autores, e fotografados porO’Sullivan como prova da doutrina catastrofista de King.Tendo essa missão a cumprir, a fotografia de O’Sullivanno Oeste situa-se portanto no prolongamento da visãode paisagem pelos [pintores americanos do século 19]Bierstadt on Church. Embora esse argumento não sejatotalmente destituído de fundamento, pode-seigualmente provar o contrário: King era um cientista sérioque, por exemplo, se empenhou com afinco empublicar, no contexto de suas próprias descobertas, ostrabalhos de Marsh em paleontologia, sabendo muitobem que elas fornecem um dos “elos perdidos”importantes e necessários para trazer provas empíricas àteoria de Darwin. Além disso, como já vimos, asfotografias de O’Sullivan sob forma litográfica,funcionavam no contexto do relato de King comotestemunhas científicas neutralizadas. O Deus dostranscendentalistas não habita o espaço visual do livroSystematc Geology. Vide Barbara Novak, Nature andCulture (New York: Oxford University Press, 1980);Weston Naef, Era of Exploration (New York: theMetropolitan Museum of Art, 1975); Elizabeth Lindquist-Cock, Influence of Photography on American LandscapePainting (New York: Garland Press, 1977).

5. Peter Galassi, Before Photography. New York: the Museumof Modern Art, 1981: 12.

6. Vide o capítulo “Landscape and the Published Photograph”,in Naef, Era of Exploration. Em 1871, o GovernmentPrinting Office publicou um catálogo dos trabalhos deJackson sob o título Catalogue of Stereoscopic, 6 x 8 and 8x 10 Photographs by Wm. H. Jackson.

7. Bem entendido, o olho não se acomoda novamente. Narealidade, eis o que acontece: dados a proximidade daimagem e o fato de que a cabeça não se podedeslocar em relação a ela, para varrer com o olhar asuperfície da imagem, o espectador deve reajustar ecoordenar novamente os dois olhos a cada ponto queseu olhar percorre.

8. Olivier Wendell Holmes, “Sun-Painting and Sun-Sculputre”,Atlantic Monthly, VII, julho 1861: 14-15. A discussão

sobre a vista de Broadway encontra-se na p. 17. Os doisoutros ensaios de Holmes foram publicados sob ostítulos “The Stereoscope and the Stereograph”, AtlanticMonthly, III, junho 1859: 738-48 e “Doings of theSunbeam”, Atlantic Monthly, XII, julho 1863: 1-15.

9. Ver Jean-Louis Baudry, “Le Dispositif ”, Communications,23, 1975: 56-72; e Baudry, “Cinéma: effetsidéologiques produits par l’appareil de base”,Cinéthique, n. 7-8, 1979: 1-8.

10. Edward W. Earle. (org.). Point of view: The Stereograph inAmerica: A Cultural History. Rochester: The Visual StudiesWorkshop Press, 1979: 12. Em 1856, Robert Huntescrevia no Art Journal: “Encontra-se hoje oestereoscópio em todos os salões: os filósofos falam delecom sabedoria, as damas estão encantadas pelarepresentação mágica que oferece, e as crianças com elese divertem”. Ibid. p. 28.

11. “Photographs from the High Rockies”, Harper’s Magazine,XXXIX, setembro 1869: 465-75. Trata-se aqui de outrapublicação da imagem Tufa Domes, Pyramid Lake. Aqui,porém, sob a forma de uma gravura bastante tosca parailustrar o relato de aventuras do autor. Um novoespaço imaginativo que se projeta na tela vazia docolódio: correspondendo ao relato do incidente quepor pouco não soçobrou o barco da expedição, ogravador risca com traços-relâmpago as águastenebrosas, furiosas e atulha o céu de tempestades,com nuvens baixas e ameaçadoras.

12.Escreve Barbara Stafford: “A idéia segundo a qual averdadeira história seria a história natural que libera osobjetos da natureza do governo dos homens. Para a idéiade singularidade, é significativo (...) que os fenômenosgeológicos, considerados em seu sentido mais amplo paraabarcar espécimes do reino mineral, constituam paisagensonde a história natural encontra uma expressão estética(...). O último estágio nessa historização da naturezaconsidera que os produtos da história passam a sernaturais. Em 1789, o sábio alemão Samuel Witte,apoiando suas conclusões nos escritos de Desmarets,Duluc e Faujas de Saint-Fond, fez das pirâmides do Egitofenômenos naturais, declarando que se tratava deerupções basálticas. Ele também via as ruínas dePersépolis, Baalbek, Palmira, bem como o templo deJúpiter em Agrigente ou o palácio do Inca no Peru comoafloramentos líticos”. Barbara M. Stafford, “TowardRomantic Landscape Perception: Illustrated Travels and theRise of “Singularity’ as an Aesthetic Category”, Art Quartely,n.s. I, 1977: 108-109. A autora conclui seu estudo sobre“o desenvolvimento de um gosto pelos fenômenosnaturais enquanto singularidade” insistindo no fato de que“não se deve interpretar (...) o objeto natural isoladocomo substituto do humano; ao contrário, os monólitosisolados, destacados [pelo pintor romântico de paisagensdo século 19] devem ser situados novamente na tradiçãoestética vitalista que surge do relato de viagem ilustrado eque tinha apreço pelo singular na natureza. Pode-seintitular essa tradição ‘neue Sachlichkeit’, em que aatenção dirigida às características específicas da naturezaproduz um repertório de particularidades humanas eanimais”: 117-118.

13. Para outra discussão da tese de Galassi em relação àsorigens da “perspectiva analítica” na ótica do século 17 ea câmara obscura, ver Svetlana Alpers, The Art ofDescribing: Dutch Art in the Seventeenth Century. Chicago:University of Chicago Press, 1983, cap. 2.

14. Michel Foucault inaugurou uma discussão sobre o museuem "Un 'Fantastique' de Bibliothèque", Cahiers de laCompagnie Renault-Barrault, n. 59, março de 1967. Vertambém Eugenio Donato, "The Museum's Furnace:Notes toward a Contextual Reading of Bouvard etPécuchet", Textual Strategies: Perspective in Post-Structuralism Criticism, Josué V. Haariri (org.), Ithaca:Cornell University Press, 1979, e Douglas Crimp, "Onthe Museum's Ruins", October, n. 13, verão 1980: 41-57.

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15. André Malraux, Psychologie de l'Art, vol. I. Genebra:éditions Skira, 1947: 52.

16. Stanley Cavell, Must We Mean What We Say? New York:Scribners, 1969: 91, n. 9.

17. Os estudantes de história da fotografia não sãoencorajados a questionar a validade ou não dos modelosda história da arte aplicados ao campo fotográfico. Asconferências dedicadas à história da fotografia nocongresso da College Art Association de 1982,anunciadas como fruto de uma verdadeira pesquisafinalmente aplicada a esse campo – até então estudadosem sistematização –, foram o exemplo perfeito do quenão se deve fazer. Na comunicação de Constance KaneHungerford, "Charles Marville, Popular Illustrator: Originsof a Photographic Aesthetic", o modelo da coerênciainterna necessária da obra permite defender a idéiasegundo a qual deveria existir um elo entre a prática deMarville no início de seu trabalho como gravador e suacarreira subseqüente como fotógrafo. As definiçõesestilísticas levadas por esse tipo de comparação (oscontrastes acentuados entre preto e branco, oscontornos nítidos e precisos, por exemplo) eram nãosomente difíceis de localizar de forma sistemática, como– quando era possível aplicar de fato esses critérios – nãodistinguiam Marville de seus colegas da Missãoheliográfica. Para cada uma de suas imagens "gráficas"existe um Le Secq tão gráfico quanto ele.

18. Podemos citar como exemplo dessa situação os cerca de65.000 metros de filme rodados por Eisenstein noMéxico para seu projeto Que Viva Mexico. Esse filme,que havia sido enviado à Califórnia para ser revelado,nunca foi visto pelo realizador, que foi obrigado a deixaros Estados Unidos assim que chegou do México. Doismontadores americanos se apropriaram então do filme,e com ele fizeram dois: Thunder over Mexico e Time inthe Sun. Nenhum desses dois filmes é considerado parteda obra de Eisenstein. Hoje, resta apenas uma sucessãode seqüências da filmagem compilada por Jay Leyda parao Museu de Arte Moderna de Nova York. O seuestatuto com relação à obra de Eisenstein é muitoespecial, claro. Mas como na época da filmagem ele játinha uma prática cinematográfica de quase 10 anos, econsiderando o estado da arte cinematográfica emtermos do corpus existente nos anos 30 e odesenvolvimento da teoria, é provável que Eisensteintivesse uma melhor noção do que havia realizado a partirde seu roteiro e de sua concepção do filme, emboranunca o tivesse visto, do que os fotógrafos da Missãoheliográifca pudessem ter de seu trabalho. A história doprojeto de Eisenstein foi relatada em detalhes no livro:Sergei Eisenstein and Upton Sinclair, The Making andUnmaking of Que Viva Mexico, Harry M. Geduld andRonald Gottesman (org.). Bloomington: IndianaUniversity Press, 1970.

19. Ver Abigail Solomon-Godeau, "A Photographer inJerusalem, 1855: Auguste Salzmann and his Times",October, n. 18, outubro 1981: 95. Nesse ensaio, aautora se questiona sobre determinados pontos tratadosacima sobre a natureza problemática da noção de obraaplicada ao trabalho de Salzmann.

20. Man Ray publicou quatro fotografias de Atget emRevolution surrealiste, três no número de junho de 1926e uma no de dezembro do mesmo ano. A exposiçãoFilm und Foto, que ocorreu no ano de 1929 emStuttgart, abarcava fotografias de Atget, cujo trabalhotambém foi apresentado em Foto-Auge. Stuttgart:Wedeking Verlag, 1929.

21. Maria Morris Hambourg and John Szarkowski, The Workof Atget: Volume I, Old France. New York: The MuseumOf Modern Art, and Boston: New York GraphicSociety, 1981: 18-19.

22. Ibid.: 21.

23. A primeira discussão publicada com relação a esseproblema o define da seguinte maneira: "O sistema denumeração de Atget é misterioso. Suas fotografias não sónão são numeradas cronologicamente, como o são deforma desconcertante. Muitas vezes imagens que portamum número pequeno são posteriores a imagens denúmero maior; com freqüência, também, os números serepetem." Ver Barbara Michaels, "An Introduction to theDating and Organization of Eugène Atget's Photographs",The Art Bulletin, LXI, setembro 1979: 461.

24. Maria Morris Hambourg, "Eugene Atget, 1857-1927: TheStructure of the Work", (Dissertação de doutorado, nãopublicada, Columbia University, 1980).

25. Ver Charles Marville, Photographs of Paris 1852-1878. NewYork: Alliance Française, 1981. Esse livro contém umensaio de Maria Morris Hambourg: "Charles Marville'sOld Paris".

26. Michel Foucault. L'Archéologie du Savoir. Paris: Gallimard,1969: 171-172.

27. Até hoje, os trabalhos de Alan Sekula foram os únicos aencaminhar uma análise coerente da historia dafotografia. Ver Alan Sekula, "The Traffic in Photographs",Art Journal, XLI, primavera, 1981: 15-25; e "TheInstrumental Image: Steichen at War", Artforum, XIII,dezembro 1975. O leitor interessado encontrará umdebate sobre a necessidade de reorganizar o arquivopara proteger os valores da modernidade em: DouglasCrimp, "The Museum's Old / The Library's NewSubject", Parachute, primavera 1981.

* No original, sujet. Nesse parágrafo a autora se utiliza de umjogo semântico possível de se estabelecer em torno dasvárias acepções da palavra sujet, que tanto pode sertraduzida como “sujeito”, referindo-se a um indivíduoespecífico quanto como “objeto”, “tema”, “assunto”.Optamos por fazer variarem as traduções de sujet a fimde tornar mais claros os diferentes sentidos empregados.(n.t.)

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