os espaços literários e suas expansões

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    Teorias do Espao

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    ESPAOSLITERRIOSESUASEXPANSES

    Luis Alberto Brando

    UFMG

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OEste trabalho define os principais modos segundo os quais acategoria espao tem sido utilizada em anlises literrias. Estesmodos so: representao do espao; espao como estruturaotextual; espao como focalizao; espao da linguagem. Tambmaborda algumas tentativas de expandir o conceito de espao ediscute possveis conseqncias para os Estudos Literrios.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V EEspao. Espao literrio. Literatura. Teoria da Literatura.

    O termo espao possui relevncia terica em vrias reas de conhecimento.Constata-se a vocao transdisciplinar da categoria tanto em estudos que articulamdistintas reas como Geografia, Teoria da Arte, Fsica, Filosofia, Teoria da Literatura,Urbanismo, Semitica quanto naqueles que necessitam delimitar o grau de adequao,para determinada rea de conhecimento, de sentidos pressupostos em outras reas. Deve-se enfatizar que a feio transdisciplinar do conceito de espao fonte no somente deuma abertura crtica estimulante, j que articulatria, agregadora, mas tambm deuma srie de dificuldades devidas inexistncia de um significado unvoco, e ao fatode que o conceito assume funes bastante diversas em cada contexto terico especfico.

    Tal multifuncionalidade tambm se demonstra na posio varivel ocupada pelacategoria espao no mbito da Teoria da Literatura. Segundo um prisma abrangente,observa-se que as oscilaes dos significados vinculados ao termo so tributrias dasdistintas orientaes epistemolgicas que conformam as tendncias crticas voltadaspara a anlise do objeto literrio, orientaes que se traduzem na definio dos objetos

    de estudo, nas metodologias de abordagem e nos objetivos das investigaes. Assim, ascorrentes formalistas e estruturalistas tendem a no considerar relevante a atribuiode um valor emprico, mimtico, noo de espao como categoria literria; e adefender a existncia de uma espacialidade da prpria linguagem. Na direo oposta,as correntes sociolgicas ou culturalistas interessam-se justamente por adotar o espaocomo categoria de representao, como contedo social portanto reconhecvelextratextualmente que se projeta no texto.1 Cabe ressaltar, pois, que h, no escopo daTeoria da Literatura, diferentes concepes de espao, as quais nem sempre revelam,

    1 Para o panorama, por ns proposto, da relao entre espao e algumas correntes da Teoria da Literatura,ver BRANDO. Breve histria do espao na Teoria da Literatura.

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    explcita e contrastivamente, suas idiossincrasias, mesmo em casos em que estas geramperspectivas tericas conflituosas ou incompatveis.

    O presente trabalho2 um primeiro esforo de sistematizao das principais formassegundo as quais a categoria espao tem sido utilizada em anlises literrias. Alm disso,busca-se uma avaliao inicial da produtividade terica da noo de espao, em especial

    no campo das Humanidades. Isso corresponde a indagar em que medida tm sido eficazes,teoricamente, tentativas de expandir o conceito de espao; e a questionar quais so asconseqncias, quanto aos desdobramentos cabveis aos Estudos Literrios, de tais tentativas.

    1. E1. E1. E1. E1. ESPSPSPSPSPAOSAOSAOSAOSAOS LITERRIOSLITERRIOSLITERRIOSLITERRIOSLITERRIOS

    Em uma sistematizao preliminar, possvel definir quatro modos de abordagemdo espao na literatura, tendo-se como escopo os Estudos Literrios ocidentais do sculoXX. So eles: representao do espao; espao como forma de estruturao textual;

    espao como focalizao; espao da linguagem.

    1.1 R1.1 R1.1 R1.1 R1.1 REPRESENTEPRESENTEPRESENTEPRESENTEPRESENTAOAOAOAOAO DODODODODO ES PES PES PES PES PAOA OAOA OAO

    O primeiro modo, provavelmente o mais recorrente, o que se interessa pelarepresentao do espao no texto literrio.3 Nesse tipo de abordagem, com freqncianem se chega a indagar o que espao, pois este dado como categoria existente nouniverso extratextual. Isso ocorre sobretudo nas tendncias naturalizantes, as quais atribuemao espao caractersticas fsicas, concretas (aqui se entende espao como cenrio, ou

    seja, lugares de pertencimento e/ou trnsito dos sujeitos ficcionais e recurso decontextualizao da ao). Mas h tambm os significados tidos como translatos: o espaosocial tomado como sinnimo de conjuntura histrica, econmica, cultural e ideolgica,noes compreendidas segundo balizas mais ou menos deterministas; j o espao psicolgicoabarca as atmosferas, ou seja, projees, sobre o entorno, de sensaes, expectativas,vontades, afetos de personagens e narradores, segundo linhagens variadas de abordagemda subjetividade, entre as quais so bastante comuns a psicanaltica e a existencialista.

    Nos Estudos Literrios contemporneos, a vertente mais difundida dessa tendncia, possivelmente, a que aborda a representao do espao urbano no texto literrio.4

    Outra vertente bastante significativa a que, com maior ou menor afinidade com osEstudos Culturais, utiliza um lxico espacial que inclui termos como margem, territrio, rede,

    2 Este trabalho vincula-se ao projeto de pesquisa Conceitos de espao literrio, desenvolvido com oapoio de bolsa de produtividade do CNPq.3 No Dicionrio de termos da narrativa, l-se que a representao do espao questo dominante numareflexo de ndole narratolgica. Em: REIS; LOPES. Dicionrio de termos da narrativa, p. 206.4 Cf. PECHMAN. Cidades estreitamente vigiadas; GOMES. Todas as cidades, a cidade; LOBO; FARIA(Org.).A potica das cidades; PESAVENTO. O imaginrio da cidade; LIMA; FERNANDES (Org.). Oimaginrio da cidade. Em geral, tais abordagens tm como base terica privilegiada a obra de Walter

    Benjamin (ver, sobretudo, BENJAMIN. The arcades project; BENJAMIN. Charles Baudelaire;BOLLE.Fisiognomia da metrpole moderna;SARLO. Paisagens imaginrias;ROUANET.A razo nmade) e, emescala mais reduzida, a de Angel Rama (RAMA. La ciudad letrada).

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    fronteira, passagem, cartografia,5 buscando compreender os vrios tipos de espaos representadosno texto literrio em funo do fato de se vincularem a identidades sociais especficas.

    No mbito da representao se encontram algumas das chaves analticas maisfreqentes em estudos crticos, quais sejam: o debate sobre as funes, os tipos e efeitosgerados por procedimentos descritivos em contraposio a procedimentos narrativos (a questo

    espacial tende a ser vista, predominantemente, como um problema relativo descrio);6o reconhecimento de polaridades espaciais e a anlise de seu uso, tomando-se o espao comoconjunto de manifestaes de pares como alto/baixo, aberto/fechado, dentro/fora, vertical/horizontal, direita/esquerda;7 e o estudo, em motivos considerados intrinsecamenteespaciais, de valores que se confundem com o prprio espao, definindo-o; valores cujaressonncia simblica, por vezes essencializada em arqutipos, julga-se relevante.8

    1.2 E1.2 E1.2 E1.2 E1.2 ESTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAO ESPESPESPESPESPACIALACIALACIALACIALACIAL

    O segundo modo de ocorrncia do espao na literatura concerne a procedimentosformais, ou de estruturao textual. Mais especificamente, tende-se a considerar de feioespacial todos os recursos que produzem o efeito de simultaneidade. A vigncia danoo de espacialidade vincula-se, nesse contexto, suspenso ou retirada da primaziade noes associadas temporalidade, sobretudo as referentes natureza consecutiva(e tida, por isso, como contnua, linear, progressiva) da linguagem verbal. Dois estudosclssicos sobre a relao entre espao e literatura adotam tal premissa. No artigo Spatialform in modern literature, Joseph Frank aps debate com a obra de Lessing, a qual responsvel por consolidar a distino entre artes espaciais e artes temporais9 afirma:

    A forma esttica na poesia moderna baseia-se, pois, numa lgica espacial que requer acompleta reorientao na atitude do leitor com relao linguagem. J que a refernciaprimeira de qualquer grupo de palavras a algo interno ao prprio poema, a linguagem napoesia moderna realmente reflexiva. A relao do sentido completada somente pelapercepo simultnea, no espao, de grupos de palavras que no possuem nenhumarelao compreensvel entre si quando lidos consecutivamente no tempo.10

    5 Cf. JOHNSON et al. O que , afinal, Estudos Culturais?;BHABHA. The location of culture;HALL.Aidentidade cultural na ps-modernidade;SAID. Cultura e imperialismo; PEREIRA; REIS (Org.). Literaturae Estudos Culturais; ABDALA Jr. Fronteiras mltiplas, identidades plurais; HALL. Da dispora; SAID.Orientalismo; BITTENCOURT et al. (Org.). Geografias literrias e culturais; MATTELART; NEVEU.Introduo aos Estudos Culturais.6 Importante obra para o debate sobre a relao entre narrao e descrio no texto literrio a deLUKCS. Narrar ou descrever?7 Levantamento bibliogrfico sobre o uso, no mbito dos Estudos Literrios, de tais noes espaciaisencontra-se em ZUBIAURRE. Hacia una metodologa del espacio narrativo.8 A obra capital, aqui, indubitavelmente a de BACHELARD.A potica do espao.9 Cf. LESSING. Laocoonte.10 FRANK. The idea of spatial form, p. 15. Aesthetic form in modern poetry, then, is based on a space-logic that demands a complete reorientation in the readers attitude towards language. Since the

    primary reference of any word-group is to something inside the poem itself, language in modern poetryis really reflexive. The meaning-relashionship is completed only by the simultaneous perception in spaceof word-groups that have no comprehensible relation to each other when read consecutively in time.

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    Frank procura demonstrar, na anlise das obras de Flaubert, Joyce, Proust e DjunaBarnes, que esse mesmo princpio pode atuar no romance, para ento postular que osescritores modernos pretendem, de maneira ideal, que o leitor apreenda suas obrasespacialmente, num lapso de tempo, mais do que como uma seqncia.11

    Georges Poulet, em O espao proustiano, prope que a obra de Marcel Proust

    seja lida, na contramo da tendncia bergsonista, como srie de quadros que se justapem:

    Tal como os quadros de um mesmo pintor exibidos nas paredes de diferentes museus daEuropa, h toda uma srie de locais proustianos que parece proclamar o seu pertencimentoa um mesmo universo. Mas esses locais ou quadros esto separados por grandes distnciasneutras, de modo que o primeiro aspecto sugerido pela obra de Proust o de um conjuntobastante incompleto, onde o nmero de vestgios que subsistem amplamente ultrapassadopelo nmero de lacunas.12

    Poulet sugere, assim, em um primeiro momento, que h um princpio geral dedescontinuidade13 na obra de Proust; em momento posterior, retifica tal princpio, afirmando

    a existncia de uma continuidade que aparece no seio da descontinuidade. 14 Um dosaspectos mais notveis do artigo que, para o desenvolvimento de seu raciocnio, Pouletestabelece a distino entre lugar informaes contextualizadoras responsveis poratribuir concretude s personagens e espao espcie de meio indeterminado ondeos lugares erram, assim como os planetas no espao csmico.15 Tal distino nitidamenteconjuga duas concepes de espao: a concreta, naturalizante, e a abstrata, idealizante.

    Em abordagens como as de Frank e Poulet, o fundamento do texto literrio moderno a fragmentao, seu carter de mosaico, de srie de elementos descontnuos. Pensa-se a literatura moderna como exerccio de recusa prevalncia do fluxo temporal da

    linguagem verbal. Espao sinnimo de simultaneidade, e por meio desta que se atingea totalidade da obra. Em tais abordagens, verifica-se que o desdobramento lugar/espaose projeta no prprio entendimento do que a obra: por um lado, so partes autnomas,concretamente delimitadas, mas que podem estabelecer articulaes entre si (segundo,pois, uma concepo relacional de espao); por outro, a interao entre todas as partes,aquilo que lhes concede unidade, a qual s pode se dar em um espao total, absoluto eabstrato, que o espao da obra. Frank enuncia: Para experimentar a passagem do tempo,Proust descobriu que era necessrio sobrepuj-lo e abarcar tanto passado quanto presentesimultaneamente num momento do que ele chamou de tempo puro. Mas o tempo puro

    no , obviamente, tempo de verdade percepo num momento de tempo, ou seja, espao.16

    11 FRANK. The idea of spatial form, p. 10. ideally intend the reader to apprehend their work spatially,in a moment of time, rather than as a sequence.12 POULET. O espao proustiano, p. 39-40.13 POULET. O espao proustiano, p. 42.14 POULET. O espao proustiano, p. 58.15 POULET. O espao proustiano, p. 17.16 FRANK. The idea of spatial form, p. 26-27. To experience the passage of time, Proust had learned it

    was necessary do rise above it and to grasp both past and present simultaneously in a moment of what hecalled pure time. But pure time, obviously, is not time at all it is perception in a moment of time, thatis to say, space.

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    Poulet, por sua vez, indaga, afirmativamente: No se encontra a, realizado num exemploextremo, o mtodo proustiano por excelncia? Mtodo que consiste em eliminar adurao, suprimir a distncia, reduzir o mundo a um nmero determinado de imagensisoladas, contguas, estritamente delimitadas, as quais, como que expostas numa mesmaparede, se oferecem simultaneamente ao olhar?17

    1.3 E1.3 E1.3 E1.3 E1.3 ESPSPSPSPSPA OA OA OA OA O COMOCOMOCOMOCOMOCOMO FOCALIZAOFOCALIZAOFOCALIZAOFOCALIZAOFOCALIZAO

    O terceiro modo de ocorrncia compreende que de natureza espacial o recursoque, no texto literrio, responsvel pelo ponto de vista, focalizao ou perspectiva,noes derivadas da idia-chave de que h, na literatura, um tipo de viso. Em sentidomais estrito, sobretudo no mbito de narrativas realistas, trata-se da definio da instncianarrativa: da voz ou do olhar do narrador. Em sentido mais amplo, trata-se do efeitogerado pelo desdobramento, de todo discurso verbal, em enunciado (produto do que se

    enuncia, ou aquilo que dito) e enunciao (o processo de enunciar, a ao de dizer),a qual pressupe necessariamente um agente, revestido ou no da condio ficcional.

    Assim, o espao se desdobra em espao observado e espao que torna possvel aobservao. Observar pode equivaler a mimetizar o registro de uma experinciaperceptiva. Por essa via que se afirma que o narrador um espao, ou que se narrasempre de algum lugar. Mas observar tambm pode equivaler, bem mais genericamente,a configurar um campo de referncias do qual o agente configurador se destaca (o quejustifica que se enfatize, por exemplo, a auto-reflexividade da voz potica). A viso,entendida mais ou menos literalmente, mais ou menos prxima de um modelo perceptivo,

    tida como uma faculdade espacial, baseada na relao entre dois planos: espao visto,percebido, concebido, configurado; e espao vidente, perceptrio, conceptor,configurador. A relao pode, naturalmente, adquirir distintas qualificaes: mais oumenos isenta, mais ou menos projetiva, mais ou menos autnoma, etc.18

    1.4 E1.4 E1.4 E1.4 E1.4 ESPSPSPSPSPACIALIDADEACIALIDADEACIALIDADEACIALIDADEACIALIDADE DADADADADA LINGULINGULINGULINGULINGUAGEMAGEMAGEMAGEMAGEM

    Como afastamento deliberado da perspectiva representacional, o quarto modo dese entender a feio espacial da literatura se traduz na alegao de que h uma

    espacialidade prpria da linguagem verbal. Afirma-se que a palavra tambm espao.Grard Genette, no artigo La littrature et lespace, chega a advogar que a linguagem[verbal] parece naturalmente mais apta a exprimir as relaes espaciais do que qualqueroutra espcie de relao (e, portanto, de realidade).19 A defesa de tal ponto de vista se

    17 POULET. O espao proustiano, p. 86.18 Cf. TODOROV. Estruturalismo e potica; GENETTE. Discurso da narrativa; BARTHES et al.Anliseestrutural da narrativa. Para um levantamento de tericos que se dedicam a explorar o espao comocategoria de uma sintaxe narrativa, ver ZUBIAURRE. Aspectos semiolgicos y narratolgicos: sintaxis

    narrativa y funciones del espacio.19 GENETTE. La littrature et lespace, p. 44. le langage semblait comme naturellement plus apte exprimer les relations spatiales que toute autre espce de relation (et donc de realit).

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    assenta em duas linhas de argumentao. Na primeira, considera-se que tudo que daordem das relaes espacial. Adota-se novamente o contraste com a categoria temporal:a ordem das relaes, que define a estrutura da linguagem, espacial medida que abordada segundo um vis sincrnico, simultneo, e no diacrnico, histrico. A prprianoo de estrutura considerada prioritariamente espacial. Iuri Lotman observa: Do

    mesmo modo, a estrutura do espao do texto torna-se um modelo da estrutura do espaodo universo e a sintagmtica interna dos elementos interiores ao texto, a linguagem demodelizao espacial.20

    Vale destacar que a duplicidade de concepo de espao relacional e absoluta pode ser observada no par que atribui fala (no sentido saussuriano, ou seja, comomanifestao concreta da lngua) o carter puramente diferencial, correlacional, opositivo;e lngua (como sistema geral de regras) a feio absoluta, universal e abstrata. De fato,Genette afirma que:

    Ao se distinguir rigorosamente aparole (fala) da langue (lngua) e ao se atribuir a esta o

    papel principal nojogo da linguagem, definido como um sistema de relaes puramentediferencial onde cada elemento se qualifica pelo lugar que ocupa no quadro do conjunto,e por relaes verticais e horizontais que estabelece com os outros elementos semelhantese vizinhos, inegvel que Saussure e seus continuadores colocaram em relevo um modode ser da linguagem que se deve denominar de espacial, ainda que a se trate, comoescreve Blanchot, de uma espacialidade da qual nem o espao geomtrico comum nemo espao da vida prtica nos permite recuperar a originalidade.21

    Na segunda linha argumentativa, a linguagem espacial porque composta designos que possuem materialidade. A palavra uma manifestao sensvel, cuja concretudese demonstra na capacidade de afetar os sentidos humanos, o que justifica que se fale da

    visualidade, da sonoridade, da dimenso ttil do signo verbal. Tal premissa, de inspiraonotadamente formalista, ganhou grande destaque a partir, em especial, da obra de RomanJakobson,22 e utilizada sobretudo em teorizaes sobre o texto potico, como aquelasamplamente difundidas por Octavio Paz: A relao entre erotismo e poesia tal que sepode dizer, sem afetao, que o primeiro uma potica corporal e a segunda uma erticaverbal.23 Tambm tomada como base, mas em sentido mais amplo, no final do anos 60e princpio dos 70 do sculo XX, nas teorias sobre a significncia. Em um aforismo, RolandBarthes sintetiza: O que a significncia? o sentido ao ser produzido sensualmente.24

    20 LOTMAN.A estrutura do texto artstico, p. 360.21 GENETTE. La littrature et lespace, p. 45. en distinguant rigoureusement la parole de la langue eten donnant celle-ci le premier role dans lejeu du langage, dfini comme un systme de relationspurement diffrentielles o chaque lment se qualifie par la place quil occupe dans un tableaudensemble et par rapports verticaux et horizontaux quil entretient avec les lments parents et voisins,il est indniable que Saussure et ss continuateurs ont mis en relief un mode dtre du langage quilfault bien dire spatial, encore quil sagisse l, comme lcrit Blanchot, dune spatialit dont ni lespacegomtrique ordinaire ni lespace de la vie pratique ne nous permettent de ressaissir loriginalit.22 Cf. JAKOBSON. Lingstica e comunicao; JAKOBSON.Arte verbal, s igno verbal, tiempo verbal;JAKOBSON. Lingstica. Potica. Cinema.23

    PAZ.A dupla chama, p. 12.24 BARTHES. Le plaisir du texte, p. 257. Quest-ce que la signifiance? Cest le sens en ce quil est produitsensuellement. Ver, tambm, KRISTEVA. Introduo semanlise.

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    O texto literrio espacial porque os signos que o constituem so corpos materiaiscuja funo intelectiva jamais oblitera totalmente a exigncia de uma percepo sensvelno ato de sua recepo. Aqui, o elemento contrapositivo no mais o tempo, mas oaspecto cognitivo, de codificao intelectual, usualmente tido como prioritrio nadefinio do discurso verbal em registros no-literrios. No artigo Smiologie et

    urbanisme, Roland Barthes ressalta:

    os significados so como seres mticos, de uma extrema impreciso, e a um certo momentotornam-se sempre os significantes de outra coisa: os significados passam, os significantesficam. A procura pelo significado no pode ser seno um procedimento provisrio. Opapel do significado, quando se consegue delimit-lo, somente de nos dar uma espciede testemunho sobre um estado determinado da distribuio significante. Alm disso,deve-se notar que se atribui uma importncia sempre crucial ao significado vazio, aolugar vazio do significado. Em outros termos, os elementos so compreendidos comosignificantes mais por sua prpria posio correlativa do que por seu contedo.25

    Assim, considera-se que o texto literrio to mais espacial quanto mais a dimensoformal, ou do significante, capaz de se destacar da dimenso conteudstica, ou do significado.

    2. E2. E2. E2. E2. EXPXPXPXPXPANSESANSESANSESANSESANSES DODODODODO ESPESPESPESPESPAOAOAOAOAO LITERRIOLITERRIOLITERRIOLITERRIOLITERRIO

    O quadro exposto acima no tem a inteno de ser exaustivo, o que significa queos quatro modos delineados no esgotam as possibilidades de abordagem do espao notexto literrio, no mbito da produo terica e crtica desenvolvida ao longo do sculoXX e princpio do XXI. Contudo, em funo de levantamentos realizados, pode-se afirmar

    que tais modos representam as tendncias genricas mais importantes (pelo menos quantoao fator recorrncia), e em relao s quais plausvel situar outras possibilidades.Estas podem, assim, ser tomadas como expanses daquelas, como derivaes, em geralproblematizadoras, do ncleo central constitudo pelas quatro vertentes primrias.

    No presente item, so descritas, sucintamente, algumas dessas expanses. Deve-se ter em mente que estas no chegam a constituir modos plenamente elaborados e,muito menos, consolidados , seja como sistemas tericos voltados especificamente parao texto literrio, seja como conjuntos de procedimentos metodolgicos que garantiriamuma aplicao imediata, capaz de gerar resultados avaliveis com nitidez. A meta ,

    pois, demonstrar a viabilidade de uma investigao prospectiva, muitas vezes tomando-se, como base, sugestes relacionadas em particular categoria espao, e conversveisao campo literrio contidas em obras de autores diversos, obras no necessariamenteenquadrveis como Estudos Literrios. A feio primordialmente especulativa tem como

    25 BARTHES. Smiologie et urbanisme, p. 443. les signifis sont comme des tres mythiques, duneextrme imprcision, et qu un certain moment ils deviennent toujours les signifiants dautre chose: lessignifis passent, les signifiants demeurent. La chasse au signifi ne peut donc constituer quune dmarcheprovisoire. Le role du signifi, lorsquon arrive le cerner, est seulement de nous apporter une sorte de

    tmoignage sur un tat dfini de la distribuition signifiante. En autre, il faut noter quon attribue uneimportance toujours croissante au signifi vide, la place vide du signifi. En dautres termes, les lmentssont compris comme signifiants davantage par leur prope position corrlative que par leur contenu.

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    mritos lanar luz sobre os modos j consagrados de se conceber os vnculos entre espaoe literatura, sublinhando aporias, limitaes e potencialidades, bem como esboar hiptesespara posterior verificao e eventual assentamento de novas veredas tericas e metodolgicas.

    2.1 R2.1 R2.1 R2.1 R2.1 REPRESENTAESEPRESENTAESEPRESENTAESEPRESENTAESEPRESENTAES HETEROTPICASHETEROTPICASHETEROTPICASHETEROTPICASHETEROTPICAS

    Relativamente representao do espao no texto literrio, tem-se como eixo oproblema de quais so os elementos que tornam reconhecvel, no texto, uma dadainstncia extratextual e quais so os limites dessa reconhecibilidade. Trata-se, pois,no de indagar o que espao, mas de interrogar em que medida a literatura capaz defazer uso daquilo que, em certo contexto cultural, identificado como espao. Isso equivale,em certo grau, e utilizando-se o termo proposto por Michel Foucault, a perguntar pelavocao heterotpica da literatura,26 ou seja, a perguntar em que medida, na operaorepresentativa e mantendo-se o horizonte de reconhecimento os espaos extratextuais

    podem ser transfigurados, reordenados, transgredidos. Trata-se, enfim, no de umproblema concernente descrio de espaos, mas proposio destes, ainda que pormeio da subverso, operada no universo ficcional, das funes usualmente a elesatribudas. Trata-se, por exemplo, no de detectar a mera inverso de polaridadesespaciais (alto/baixo, dentro/fora etc.), mas de observar se tais polaridades so colocadassob perspectiva, a partir do emprego de algum elemento, tambm reconhecido comoespacial, que tensiona a estabilidade dos pares opositivos.

    um caminho investigativo promissor a busca de se perceber, no campo da fico,a presena de elementos que atuam sobre os valores convencionalmente associados a

    espaos. Nessa busca admite-se, por um lado, a validade de uma fenomenologiaespacial, um pouco maneira de Gaston Bachelard, j que valores vinculados a certosespaos tendem, de fato, a se cristalizar, gerando a impresso de que so anteriores aqualquer conceptualizao de que so, na terminologia bachelardiana, imagens,definidoras da imaginao potica. Por outro lado, contudo, enfatiza-se que talfenomenologia deve ser compreendida segundo um prisma radicalmente cultural esemitico (ou, se se preferir, hermenutico), no qual so investigadas as condies quetornam vivel o poder de dadas significaes espaciais.27 O tensionamento darepresentao espacial enfim, do efeito obtido pela aceitao tcita de que espaos

    podem ser transpostos do mundo para o texto se d precisamente pela radicalizaodo sentido da ao de transpor, a qual passa a ser vista como de interferncia, dinamizao,provocao, desestabilizao: como ao, portanto, poltica.

    26 Segundo Foucault, as heterotopias impossibilitam o lugar-comum, dessecam o propsito, estancamas palavras nelas prprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramtica; desfazem os mitos eimprimem esterilidade ao lirismo das frases (FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 7-8). Odesenvolvimento da noo de heterotopia se encontra em FOUCAULT. Des espaces autres.27

    Passagem reveladora, emA potica do espao, ocorre quando Bachelard, ao mencionar os arranha-cus, recusa-lhes o estatuto de imagem por consider-los sem cosmicidade. (BACHELARD.A poticado espao, p. 44-45)

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    2.2 O2.2 O2.2 O2.2 O2.2 OPERAESPERAESPERAESPERAESPERAES DEDEDEDEDE ES PES PES PES PES PAAMENTOAAMENTOAAMENTOAAMENTOAAMENTO

    Quanto segunda vertente a que considera a espacialidade de um texto emfuno de seu modo de estruturao , questo inevitvel saber quais modos deestruturao, alm dos j difundidos como espaciais, tambm poderiam ser dignos de

    tal atributo. Para alm do efeito de simultaneidade (portanto, de suspenso da primaziada sucessividade temporal), obtido a partir de recursos de fragmentao, de exercciocombinatrio de elementos textuais dispersos, quais outros efeitos de espacializao sopossveis? Trata-se, aqui, de se considerar que h operaes, especificamente na experinciade leitura, de natureza espacial. Tal via se abre, sobretudo, a partir de certas experinciasda literatura moderna, nas quais a noo de obra d lugar de obra-em-processo. 28

    Nesse sentido, a espacialidade da obra se revela, em especial, no fato de que esta no homognea nem fixa, ou seja, ao fato de que os sentidos, s constituveis na ao fluidae varivel da leitura, podem ser gerados de diferentes modos e esto em constantedeslocamento. A operao de espaamento (ou de intervalizao, distanciamento,diferimento, para se fazer meno ao lxico de Jacques Derrida) costuma no se dissociarda de temporizao.29 Trata-se, pois, de se indagar sobre a validade, agora fazendo ecoa Mikhail Bakhtin, de uma cronotopizao30 generalizada dos procedimentos de escritae leitura, ou seja, de uma maneira de abordar o texto segundo a variabilidade potencial desuas articulaes (o que inclui a atribuio de unidades, lugares minimamente estveisdo sentido, e a possibilidade de desestruturao de tais unidades, da dinamizao dossentidos).

    factvel, assim, que se perscrutem noes tidas como espaciais no no plano doque est semantizado no texto, mas nas operaes formadoras do sentido as quais o

    texto capaz de suscitar: proximidades e distncias, adjacncias e descontinuidades,ptico e hptico, tendncias articulatrias e desarticulatrias, de compactao eextensividade, de convergncia e divergncia. Em perspectiva abrangente, trata-se dese inquirir quais so os vetores de ordenao e de desordenao textual, ou, para utilizaros termos empregados por Gilles Deleuze e Flix Guattari, quais so os espaos estriadose os espaos lisos de um texto.31 Em perspectiva estrita, trata-se de interrogar em que medidaa literatura constitui um arranjo especfico no qual a inevitvel ordenao da linguagemverbal (o irrecusvel poder estriador do espao literrio) pode ser constantementereinventada com efeitos mais ou menos eficazes em determinado contexto de leitura

    pela suspenso dos cdigos ordenadores (pela propenso alisadora do espao literrio).

    28 Blanchot, lendo Mallarm, destaca: O espao potico, fonte e resultado da linguagem, nuncaexiste como uma coisa, mas sempre se espaa e se dissemina. (BLANCHOT. O livro por vir, p. 346).29 Segundo Derrida, o movimento da significao pressupe um intervalo no qual o presente se relacionacom algo diferente de si, no qual o presente no presente. Esse intervalo constituindo-se, dividindo-se dinamicamente, aquilo a que podemos chamar espaamento, devir-espao do tempo ou devir-tempo do espao (temporizao). (DERRIDA. Margens da filosofia, p. 45).30 Bakhtin apresenta o conceito de cronotopo no texto Forms of time and chronotope in the novel. O

    debate que propomos sobre a relao entre o conceito einsteiniano de tempo-espao e o bakhtiniano decronotopo encontra-se em BRANDO. Chronotope.31 Cf. DELEUZE; GUATTARI. O liso e o estriado.

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    2.3 D2.3 D2.3 D2.3 D2.3 D ISTRIBUIESISTRIBUIESISTRIBUIESISTRIBUIESISTRIBUIES ESPESPESPESPESPACIAISACIAISACIAISACIAISACIAIS

    A terceira vertente toma como princpio a associao entre espao e ponto devista literrio, ou seja, o espao, no texto, se define mediante um foco, uma perspectiva,uma viso, os quais tambm tm estatuto de espaos. Esse princpio necessariamente

    conduz questo sobre a validade do modelo deviso

    adotado, o qual usualmente derivado de uma concepo naturalista de corpo humano. Tal modelo pode ser recusadoem nome de outros que expem, de maneira enftica, a instabilidade das categorias dapercepo. Consideravelmente mutveis, passveis de desregulamentaes no acidentais,corpo, mente, mundo podem, no mbito do texto literrio, colocar sob suspeita o prismaperceptivo segundo o qual h dimenses elementares e indiscutveis na realidadeemprica. O espao apriorstico pode ser tratado como conveno. A viso no ,necessariamente, orgnica ou: sua organicidade pode estar em constante processo demutao. A voz literria no possui natureza. Ela atpica, somente um trajeto. Visoe voz literrias podem se descorporificar, desnaturalizando o espao.

    exeqvel considerar o problema do espao na literatura no em termos derelaes entre sujeitos e objetos. Os sujeitos, apesar de ficcionais, tm usualmente comomodelo uma humanidade naturalizada por meio da remisso a um sistema perceptivocujas feies so orgnicas. Os objetos so definidos, com freqncia, segundo um modelode realidade tambm de ndole naturalizante. Diferentemente, pode-se tratar o problemado espao como relaes entre planos, que no so hierrquicos, mas que se determinammutuamente, ainda que segundo modos de determinao distintos e so tais modosque possibilitam a identificao particularizadora dos planos. Assim, interessa no omodo como certo espao ficcional percebido por uma personagem, mas como se d a

    distribuio, em nveis (os quais podem, em textos no realistas, se misturar, colocandoem xeque seus limites), dos elementos que identificam o que a personagem comoespao, o que o espao no qual a personagem se desloca (pressuposto, assim, comoespao da no-personagem), o que o espao referido ou gerado pelas manifestaes detal personagem, o que o espao que refere ou manifesta a personagem (o espao, porexemplo, da fala de um narrador que relata as aes da personagem). Observa-se queespao, nessa conjuntura, no uma noo dada a priori, mas o resultado dadistribuio, necessariamente relacional, dos vrios elementos (ou perspectivas)apreensveis em um texto (ou: atribuveis a um texto segundo certo modo de leitura).32

    2.4 E2.4 E2.4 E2.4 E2.4 ESPSPSPSPSPAOSAOSAOSAOSAOS DEDEDEDEDE INDETERMINAOINDETERMINAOINDETERMINAOINDETERMINAOINDETERMINAO

    A quarta vertente de abordagem do espao no texto literrio a que faz convergiro debate para o cerne da linguagem, afirmando a espacialidade desta tambm sebeneficia da aproximao conflituosa da tradio que concebe o espao segundo umprisma relacional daquela que vincula espao a percepo sensvel (e, por extenso, a

    32 O que se vislumbra, aqui, talvez seja uma espcie de radicalizao sem qualquer feio

    gramaticalizante ou funcionalista do modelo actancial proposto por Greimas, modelo inspirado nosistema de funes narrativas de Vladimir Propp. Ver GREIMAS. Ensaios de semitica potica; GREIMAS.Semntica estrutural; PROPP. Morfologia do conto.

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    corpo). De fato, como apontado, estas so as duas linhas principais de argumentao nadefesa de que a linguagem possui seu prprio espao: porque ela um sistema de relaes;porque seus constituintes possuem concretude sensoriamente apreensvel. A aproximao sobremaneira conflituosa (e estimulante, em termos teoricamente prospectivos), jque, por um lado, relaes no podem ser extradas dos dados materiais da linguagem,

    o que equivale a afirmar que, em grau bastante relevante, a operao relacional frutode uma faculdade abstrativa. Isso tambm equivale a afirmar que o espao nunca puramente derivado de quaisquer referncias necessrio que haja alguma instnciaque atribua, a partir de um modelo vlido, os vnculos entre elas. Por outro lado, no seestabelece uma relao entre referncias se se cr que estas so meras projees darelao, se no se aceita que estas possuem, de certa maneira, manifestao prpria, ouseja, que, independentemente daquela relao, possuem algum tipo de realidade, oque no significa entend-las segundo um prisma ontolgico (pelo qual possuiriam umser essencial, um em si, algo que as fundamenta a si mesmas), mas simplesmente que

    so definidas por outras relaes que no a que foi colocada em foco. Trata-se, assim,no de recusar a existncia de uma corporeidade ao espao, mas de ressaltar quecorpo no pode ser considerado nem como manifestao autofundante, nem comonoo auto-evidente.

    Pelo menos duas alternativas tericas so suscitadas por essa aproximao oupassagem entre espao como relao e espao como dado; entre a operaorelacionadora e a realidade que se oferece a tal operao, realidade que, por sua vez, seconfigura por intermdio de outras relaes; entre o estabelecimento de uma relaode determinao e o fato de que este s possvel a partir de elementos j determinados

    por outras relaes (estabelecimento que se d, pois, exatamente medida que ignora,ou considera irrelevantes, essas outras relaes, e assim pretende lidar com os elementosem si mesmos).

    A primeira alternativa aborda o espao a partir da discusso sobre os vnculos entrematria massa corprea indistinta e forma matria culturalizada, semiotizada.Pode-se, na esteira do que sugere Jean-Franois Lyotard,33 assumir que h, em toda paisagem(mas, em especial, em paisagens simuladas, como a que define a linguagem verbal emestado de literatura), a tentativa de insurreio da matria contra a forma. Nesse espao,matria e forma entram em choque, e fundamental averiguar em que medida a primeira capaz de subverter a domesticao que a segunda exerce. O espao literrio apresenta-se como paisagem, mas a irrealidade da paisagem que importa, aquilo que se esquiva doprocesso segundo o qual a forma culturaliza a matria. Importa saber se os recursos quetornam identificvel o corpo das palavras a fora formalizadora destas , se os arranjosque atendem s expectativas dos sentidos humanos podem se desmanchar a si mesmos,podem abdicar de sua capacidade de se fazerem reconhecveis, para que, no espaoinsurrecto, se revele a fora que a indeterminao exerce sobre a determinao.

    A segunda alternativa prope um sistema que procura radicalizar o aspecto duplae contraditoriamente relacional e corpreo da linguagem literria aspecto que define

    33 Cf. LYOTARD. Scapeland. Texto tambm seminal para esse debate o de BAKHTIN. O problemado contedo, do material e da forma na criao literria.

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    sua espacialidade constitutiva. No se trata, porm, de colocar a pergunta sobre relaese dados internos linguagem ou externos a ela. Trata-se, sim, em moldes similares aoque se encontra na obra de Wolfgang Iser, 34 de se inquirir a viabilidade de um modelo,amplamente antropolgico, que conceba a literatura em funo, justamente, de seusfortes laos com a indeterminao (ou seja, com o imaginrio). Assim, abre-se uma via

    que aborda a literatura, simultaneamente, como uma realidade (algo que consolidarelaes vrias, na forma de uma obra), como o processo segundo o qual esta realidadese corporifica (que o processo da fico, por meio do qual a indeterminao doimaginrio ganha algum nvel de determinao, processo pelo qual o horizonte de relaespossveis converge para uma srie especfica de relaes) e como a irremovvel presena dada pela negativa, ou seja, como campo contrastivo desse horizonte difuso, que o imaginrio, campo da indeterminao, a qual tambm a condio de possibilidadede quaisquer determinaes. Nessa conjuntura terica, o espao literrio passa a serinterrogado, ao mesmo tempo, como produto (obra, corpo, dado, referncia), relao

    (operao, atribuio, articulao) e condio (tanto da identificao de produtosquanto do estabelecimento de relaes).

    AAAAA B S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TThis paper defines the main ways according to which thecategory space is used in l iterary analysis. They are:representation of space; space as textual structuration; spaceas focalization; space of language. Also investigates someattempts to expand the concept of space and discusses possibleconsequences to Literary Studies.

    KKKKKE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SSpace. Literary space. Literature. Literary Theory.

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    34 Cf. ISER. O fictcio e o imaginrio; ROCHA (Org.). Teoria da fico.

    AA

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