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JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO OS “HOMENS” DA ADMINISTRAÇÃO E DA JUSTIÇA NO IMPÉRIO: ELEIÇÃO E PERFIL SOCIAL DOS JUÍZES DE PAZ EM MARIANA, 1827-1841 UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS JUIZ DE FORA, MG 2010

OS “HOMENS” DA ADMINISTRAÇÃO E DA JUSTIÇA NO …livros01.livrosgratis.com.br/cp156223.pdf · Os “homens” da administração e da justiça no Império: eleição e perfil

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JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO

OS HOMENS DA ADMINISTRAO E DA JUSTIA NO

IMPRIO: ELEIO E PERFIL SOCIAL DOS JUZES DE PAZ

EM MARIANA, 1827-1841

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

JUIZ DE FORA, MG

2010

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JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO

OS HOMENS DA ADMINISTRAO E DA JUSTIA NO

IMPRIO: ELEIO E PERFIL SOCIAL DOS JUZES DE PAZ

EM MARIANA, 1827-1841

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao em

Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora para a

obteno do grau de Mestre em Histria.

Orientadora: Prof. Dr. Carla Maria Carvalho de

Almeida.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

JUIZ DE FORA, MG

Nascimento, Joelma Aparecida do.

Os homens da administrao e da justia no Imprio: eleio

e perfil social dos juzes de paz em Mariana, 1827-1841 / Joelma

Aparecida do Nascimento. 2010.

188 f. : il.

Dissertao (Mestrado em Histria)Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.

1. Juizes - Brasil. 2. Eleies. I. Ttulo.

CDU

347.962(81):324

AGRADECIMENTOS

Nesta etapa de finalizao de mais uma das fases da vida e que integra a opo

de dedicar-me ao estudo, pesquisa e ensino de Histria, enfim, ao ofcio de historiador,

tenho muito a agradecer. Agradeo, primeiramente, Deus e dedico esta conquista, aos

meus pais, Joo e Elionora, e minha irm Jnia, que sempre me apoiaram.

Agradeo minha orientadora Prof. Dr. Carla Maria Carvalho de Almeida que

sempre com todo cuidado me atendeu. Sua orientao, ininterruptamente, atenciosa e

precisa me deu nimo para continuar nessa empreitada. Agradeo-lhe por ter

acompanhado e acreditado na concretizao deste trabalho.

Ao Prof. Dr. lvaro de Arajo Antunes, amigo e idealizador desta investigao

desde a graduao, na Universidade Federal de Ouro Preto. Foi ele quem me apresentou

este objeto de pesquisa pelo qual pude me inquietar e me apaixonar. Por isso, agradeo-

lhe por me abrir estes novos horizontes e por estar sempre disposto a me atender.

Aos professores, Dr. Maria Fernanda Vieira Martins e Dr. Wlamir Silva

agradeo a participao na banca examinadora. Foi fundamental poder contar com a

atenta leitura destes profissionais, autores de pesquisas que me entusiasmam e pelas

quais tenho imensa admirao.

Da Universidade Federal de Juiz de Fora agradeo ao Prof. Dr. Alexandre M.

Barata pelas importantes observaes, momentos de discusso e, ainda por suas

riqussimas sugestes e reflexes pesquisa, ao participar do meu exame de

qualificao. Agradeo ainda Ana Mendes, sempre to compreensiva e pronta a nos

atender.

Aos amigos, que desde a graduao, auxiliaram-me em minhas indagaes e nos

meus momentos de leve desespero, Simone Cristina de Faria, Denise Maria Ribeiro

Tedeschi, Maykon Rodrigues dos Santos, Dejanira Resende, Tatiana da Costa Senna e

Rodolfo Chaves.

Aos amigos, em especial, pelas aproximaes dos nossos trabalhos e

semelhantes inquiries, companheiros de pesquisa pelos arquivos de Mariana e que por

diversas vezes me acudiram, Leandro Braga de Andrade, Pedro Eduardo de Andrade e

Thiago Enes.

Em Juiz de Fora, lugar onde por muitas vezes me senti muito s, tambm ganhei

amigos. Agradeo s queridas Paula Ferrari e Adriana Carvalho, sempre muito

atenciosas, e que primeiro me acolheram naquela cidade. s tambm queridas Lvia

Badar e Gislene Lacerda por me asilarem em sua casa e me oferecem o seu amparo.

Agradeo Luigi C. Barbosa pelo aprendizado de vida que nunca se apagar.

Aos amigos que de outras formas me ajudaram, me apoiando e tentando sempre me

animar, Maria Emlia C. Barbosa, Maria Marina C. Tavares, Maria Helena, Renata

Perrout e Franois F. Moreira e seu filhinho, meu afilhado, Francisco. Agradeo

tambm s antigas amigas, da minha cidade natal, que se preocuparam comigo e me

ofereceram apoio, de Itambacuri-MG, Las Aparecida de Melo Freire e Emanuele

Rodrigues.

Ao Diretor do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana Prof. Dr.

Marco Antnio Silveira e aos funcionrios Olinda, Felipe e Rafael, agradeo por to

prontamente me atenderem e com muita afeio participarem das minhas aflies. Aos

funcionrios do Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana: senhor Antero,

Cssio, Consola e Fabrcio pelo apoio.

Enfim, a todos que torceram por mim, obrigada!

RESUMO

O Juizado de paz representou uma das mais importantes instauraes do novo

paradigma de organizao poltica e social que angariou as inovaes mais ilustradas e

liberais do ordenamento jurdico europeu, indo ao encontro de uma vasta tradio e

institucionalizao em primeira instncia. Estabelecido no Brasil na Constituio de

1824, e regulamentado em 1827, o Juizado de paz, apesar das amplas funes denotadas

seu cargo e de ser um marco do desenvolvimento da administrao e da justia no

Brasil, trata-se de tema pouco visitado na historiografia brasileira. A presente pesquisa

tem por objetivo investigar os indivduos eleitos para juiz de paz, no extenso municpio

de Mariana, provncia de Minas Gerais, entre 1827-1841. Os propsitos foram abordar a

inaugurao desta instituio to ainda incgnita e, analisar as eleies locais que

elegiam aqueles homens e as funes desempenhadas pelos mesmos. Alm disso, e

paralelamente, procurou-se traar o perfil e insero social desses homens que, alm de

juzes de paz, compunham a to economicamente diversa sociedade mineira da primeira

metade do sculo XIX.

Palavras-chave: Juiz de paz, eleies e funes locais, perfil socioeconmico.

ABSTRACT

The Judge of peace represented the major new paradigm instauration of political and

social organization that raised the most learned and liberal innovations of the European

legal system to suit a wide tradition and institutionalization in the first instance.

Established in Brazil in the 1824 Constitution and regulated in 1827, the Judge of peace,

despite the broad functions denoted his position and be a milestone in the development

of administration and justice in Brazil, it is little visited theme in the historiography

Brazil. This research aims to investigate the individuals elected to justice of the peace in

the vast city of Mariana, in the province of Minas Gerais, between 1829-1841. The

purpose was addressing the inauguration of this institution as yet unknown, and

examine the local elections that elected the men and the functions performed by them.

Furthermore, and in parallel, we tried to trace the profile and social integration of those

men who, in addition to justices of the peace, made up as economically diverse mining

company in the first half of the nineteenth century.

Keywords: Justice of the Peace, elections and local functions, socioeconomic profile.

LISTA DE ILUSTRAES E FIGURAS

FIGURA 1 Organograma sumrio das funes e dos assistentes do cargo de juiz de

paz............................................................................................................................................52

FIGURA 2 Quantidade de eleies por localidade. Mariana, 1829-1841............................95

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 Registro nominal para juzes de paz em processos-crime . Mariana, 1830-

1841..........................................................................................................................................63

TABELA 2 Correspondncias de juzes de paz remetidas para a Cmara Municipal de

Mariana, 1829-1841.................................................................................................................76

TABELA 3 Nmero de Juzes de paz eleitos por ano e Freguesia.......................................90

TABELA 4 Outros cargos e funes dos indivduos eleitos................................................97

TABELA 5 Obrigaes especficas aos juzes de paz. Mariana, 1829-1841.....................107

TABELA 6 Juntas de paz presididas pelos juzes..............................................................110

TABELA 7 Listas do Jri cumpridas pelos juzes..............................................................111

TABELA 8 Fontes indicadoras da insero social dos juzes de paz.................................125

TABELA 9 Informao de ocupao para todos os votados. Mariana, 1832.....................129

TABELA 10 Informao de ocupao para todos os eleitos. Mariana, 1832.....................131

TABELA 11 Informaes agrupadas para os eleitos e de ocupaes predominantes.

Mariana, 1831-1832...............................................................................................................132

TABELA 12 Quantidade de eleies por localidade. Mariana, 1829-1841.......................134

TABELA 13 Perfil de Antnio Martins da Silva................................................................135

TABELA 14 Composio da riqueza dos juzes de paz por faixa de fortuna....................151

TABELA 15 Monte-Mor dos juzes de paz mais ricos de Mariana, 1829-1841................153

TABELA 16 Nmero de juzes de paz proprietrio e da faixa de escravos por faixa de

fortuna....................................................................................................................................155

TABELA 17 Percentual de inventrio com presena de dvidas ativas.............................157

TABELA 18 Naturalidade dos juzes de paz......................................................................161

TABELA 19 Pertencimento Irmandades e ordens religiosas e pedidos de celebrao de

missas.....................................................................................................................................162

TABELA 20 Perfil de Antnio Jos de Souza Guimares.................................................165

TABELA 21 Perfil de Joo Carvalho de Sampaio.............................................................168

TABELA 22 Bens listados no inventrio de Antnio Lus Soares.........................170

SUMRIO

INTRODUO......................................................................................................................13

CAPTULO 1 FUNDAMENTOS E FORMAS DA ADMINISTRAO DA JUSTIA:

APONTAMENTOS SOBRE ANTIGO REGIME E LIBERALISMO

POLTICO.............................................................................................................................24

1.1 Monarquia e oficialato: consideraes histricas acerca da administrao da Justia .....24

1.1.1 A administrao da Justia no Brasil oitocentista: desafios para a historiografia

brasileira?................................................................................................................................ 32

1.2 A implementao do Juizado de paz no Brasil e em Portugal: breve histrico ................43

1.2.1 Entre a lei e o costume....................................................................................................43

1.2.2 O Juizado de paz no Brasil..............................................................................................47

1.2.3 O Juizado de paz em Portugal.........................................................................................67

CAPTULO 2 AS ELEIES E FUNES DOS JUZES DE PAZ EM MARIANA,

1829-1841................................................................................................................................80

2.1 Das eleies locais: continuidades e mudanas na virada do sculo XVIII para o sculo

XIX..........................................................................................................................................80

2.2 Das funes dos juzes de paz: governabilidade local......................................................99

CAPTULO 3 INDCIOS DO PERFIL SOCIOECONMICO DOS JUZES DE PAZ

EM MARIANA....................................................................................................................115

3.1 Herana e adaptao em uma vila do Imprio: hierarquias sociais em Mariana............117

3.1.1 Diversidade econmica e regional na primeira metade do sculo XIX.......................118

3.1.2 Setores ocupacionais e atividades dos juzes de paz....................................................124

3.2 Distribuio e composio da riqueza: bens e fortunas..................................................149

3.3 Estratificao social e circulao dos juzes de paz........................................................159

CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................172

REFERNCIAS...................................................................................................................174

ANEXOS...............................................................................................................................181

13

Introduo

Uma nova organizao poltica e administrativa era intentada pelo governo do

Brasil perante a situao especfica aps a independncia de 1822. Neste contexto,

estavam em voga mudanas situadas entre a transio de uma estrutura administrativa

colonial e a implantao de um novo sistema jurdico-administrativo. Tal temtica

logo muito conhecida. Porm, a regulamentao do Juizado de paz em 1827, tema,

quando no relegado, seguido apenas a escolta daqueles processos maiores. este aqui

o propsito, distinguir a inaugurao desse Juizado e um pouco dos que nele serviram

no Termo de Mariana - provncia de Minas-Gerais, entre os anos de 1829-1841.

De origem constitucional a criao do Juizado de Paz no Brasil foi decretada na

Constituio outorgada por D. Pedro I em 1824. Sua regulamentao ocorreu anos

depois, pela Lei regulamentar das atribuies, da competncia e jurisdio dos Juzes de

Paz, em 15 de Outubro de 1827. Esta Lei determinou a obrigatoriedade da conciliao

das partes nos processos judiciais, sendo esta a principal funo, de incio, a ser

desempenhada pelos juzes de paz.1

Vrias alteraes cunharam o seu funcionamento, especialmente no primeiro

Reinado (1822-1831) e no perodo Regencial (1831-1840). O Cdigo do Processo

Criminal de 1832, por exemplo, muito debatido e com clara preferncia pelas

instituies locais, modificou significativamente as atribuies dos juzes de paz. Este

continha, com a Disposio provisria acerca da administrao da Justia Civil a ele

anexada, 27 artigos dispostos somente sobre a conciliao. O Cdigo foi modificado

posteriormente, com a proclamao da maioridade de D. Pedro II quando foram

distribudas, para outras autoridades, funes antes exercidas pelos juzes de paz.2

Este pretende ser ento um estudo desta instituio o Juizado de Paz e dos

ocupantes do cargo, e do mesmo modo, das relaes delineadas nos espaos poltico-

sociais entre estes e a instncias do governo local, em especial a Cmara Municipal de

Mariana. Por outro lado, nos consente ainda apreender as discusses e debates acerca da

formao do Estado no Brasil. Entendemos aqui esse Estado como um constante

1 VIEIRA, Rosa Maria. O Juiz de Paz: do Imprio a nossos dias. Braslia: Editora da Universidade de

Braslia, 2002, pp. 73-77. 2 Idem.

14

normatizador do poder e da construo da sua prpria autoridade, mas que esbarrava,

por vezes, nas instncias locais representativas como foi o caso do Juizado de Paz ,

no alcance da Lei e da concretizao das suas prticas centralizadoras.

Neste sentido, so muitas as indagaes concernentes a esta fase da ordem

jurdica e da atuao da justia do Brasil Imperial. Entre o alcance do poder do Estado e

a repercusso local de suas medidas h um tortuoso caminho que sinaliza vrias

problemticas. Um dos questionamentos liga-se ao desenrolar da relao entre o

funcionamento da Cmara Municipal uma instituio impregnada das prticas

anteriores da governabilidade colonial e o novo processo eleitoral, instaurado a partir

da criao do Juizado de Paz.

De acordo com Russel-Wood as alteraes econmicas e sociais nos territrios

do Imprio portugus, aliadas s diversidades locais tornavam a tarefa do governo

municipal cada vez mais complexa nos sculos XVII e XVIII. Nesse contexto, as

Cmaras assumiram amplas responsabilidades concomitantemente ao aumento da

burocracia ao nvel local.3 Para a regio das Minas Gerais em decorrncia das

descobertas e intensas exploraes aurferas foi estabelecido um considervel aparelho

administrativo no sculo XVIII encabeado e, muitas vezes, organizado pela Cmara

Municipal.4

A importncia da estruturao da Cmara em Mariana antiga Vila do Carmo

e em geral na Amrica Portuguesa5, responsvel pela organizao administrativa e

manuteno da ordem judiciria nas comunidades, instiga a compreender como se

situou a organizao camarria aps as subsequentes mudanas na administrao da

justia que serviram ao Imprio Constitucional do Brasil. Russel-Wood j indicara que

em meados do sculo XVIII existia autonomia das instncias de poder local para o

exerccio da justia e como os juzes, na poca os juzes ordinrios, influenciavam no

controle do governo local.6 neste sentido que buscamos perceber como se

3 RUSSEL WOOD, A. J. O governo local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural.

In: Revista de Histria. So Paulo: v.55, ano XXVIII, 1977, pp.25-79. 4 Idem, pp.26-28.

5 Esta importncia j foi evidenciada na historiografia brasileira. Alguns exemplos so: VENNCIO,

Renato Pinto. Estrutura do Senado da Cmara (1711-1808). In: Termo de Mariana. Histria e

Documentao. Mariana: Imprensa Universitria da UFOP, 1998. FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria

F.; GOUVA & Maria de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa

(sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. 6 RUSSEL WOOD, Op. Cit., p.49.

15

desenvolveram as relaes entre os oficiais camarrios e os juzes de paz que

constantemente se corresponderam como a Cmara de Mariana.

Neste interstcio de modificaes polticas vrias questes vem tona, como as

das relaes dos juzes com outros grupos representantes do poder e o interesse do

indivduo em permanecer no cargo de juiz de paz, sendo este no remunerado. Por outro

ngulo, como demonstrado por uma historiografia j firmada, das adequaes

econmicas por que passou Minas Gerais no sculo XIX aps a queda da produo

aurfera e o crescimento das atividades agropastoris,7 importante atentarmos, em

especfico, para os reflexos no perfil econmico dos homens que participaram da

administrao da justia.

Como no sculo XVIII, tambm no XIX havia um sistema de Leis criado a partir

do centro para atender s necessidades emergenciais de um governo local, representado

pelas Cmaras Municipais. Tal sistema foi ainda caracterizado e corroborado no sculo

XIX por uma crescente descentralizao poltica pautada na negociao entre as esferas

local e central.8 Buscou-se manter a ordem mediante as novas mudanas institucionais

definidas aps 1822, pautadas por propostas de descentralizao poltica por um lado e

concentrao de poder para o governo, por outro.9

Tratamos assim de um perodo circunscrito a amplas reformas liberais, para as

quais, de uma forma geral, o poder visando o interesse geral e apoiado na lei teria de

ser nico, embora se admitisse que a administrao pudesse ser empreendida em nvel

local. Esta distino entre o poder do centro e o da periferia far curso durante todo o

sculo XIX. Para as correntes revolucionrias, o poder das cmaras tradicionais era um

dos alvos a serem vencidos, no que se depara com dois resultados distintos: pela poltica

centralizadora desarticula-se este plo perifrico de poder, mas, por outro lado, cria-se

um dispositivo poltico que, ao tornar disponveis para o governo vrios cargos pblicos

distritais, atribui ao mesmo a possibilidade de comprar fidelidades e alargar a rede da

sua influncia social. No plano do poder judicial, aponta-se para a funo de julgar, que

dependente de critrios mais alargados do que a simples observncia da lei. Para a

organizao judiciria liberal os juzes eletivos localizam-se entre duas correntes: por

7 Destaque para: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens Ricos, homens bons: produo e

hierarquizao social em Minas Colonial: 1750-1822. 2001. Tese (Doutorado)-UFF, Niteri, 2001. 8 VELLASCO, Ivan de Andrade. As sedues da ordem: violncia, criminalidade e administrao da

justia Minas Gerais, sculo 19. So-Paulo: Edusc/Anpocs, 2004. 9 Idem.

16

um lado, era o corolrio de uma plena democratizao do direito e da vida judiciria,

porm, por outro, eram restos suspeitos do pluralismo poltico pr-estatal.10

O estabelecimento do novo modelo de Estado foi assim marcado pelo confronto

do discurso da descentralizao caracterizada pela distino entre o sistema pluralista do

Antigo Regime e o sistema monista descentralizado. Tais oscilaes vo ao encontro

dos objetivos que por ora se apresentam em situar a movimentao de juzes eletivos

os juzes de paz na estrutura jurdico-administrativa do governo Monrquico

Constitucional brasileiro. Portanto, procuraremos identificar os indivduos inseridos

nesse contexto e compreender sua representao e deslocamentos nesse processo de

mudanas.

A delimitao espacial do termo de Mariana pertencente Comarca de Vila Rica

foi escolhida para esse trabalho por abarcar uma tradicional regio que se destacou,

desde o incio da ocupao do territrio, devido busca pelo ouro. Essa regio

apresentou intensa movimentao econmica e populacional sendo que, sua sede

constituiu importante centro administrativo, comercial e religioso na segunda metade do

sculo XVIII e para as primeiras dcadas do XIX.11

Alm disso, outra motivao dessa

delimitao espacial tem relao no apenas com a reconhecida importncia

administrativa de Mariana, mas tambm com a riqussima documentao disponvel

para essa localidade.

Enfim, nesta pesquisa pudemos discutir sobre as mudanas no sistema jurdico-

administrativo que tentaram afirmar o poder central e a aplicao da justia. Assim

sendo, nos trs captulos desenvolvidos a seguir propomos o estudo das tentativas da

implantao de um poder local que, ao mesmo tempo em que demonstra a diligncia da

construo de uma mquina administrativa centralizada e o funcionamento da justia,

perpassa o desenvolvimento das relaes destas duas esferas, e em suas mais variveis

contradies. Isso pode ser percebido quando se cria a figura do juiz de paz eletivo no

plano paroquial, com amplos poderes de ao jurdica e policial, (...).12

O Juizado de

Paz, considerado a base do Direito Processual brasileiro, teve o instituto da conciliao

10

HESPANHA, Antnio Manuel. Guiando a mo invisvel: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo

Monrquico Portugus. Coimbra: Almedina, 2004, pp.331-349. Esta obra trata do constitucionalismo

monrquico portugus do sculo XIX com enfoque para a questo poltica do Liberalismo. Apesar de

tratar do Portugal monrquico o autor faz incurses sob o projeto constitucional para a Europa em geral, e

retrata, efizcamente, a impossibilidade da realizao prtica de alguns dos pressupostos do Liberalismo. 11

ALMEIDA, Op. Cit., p. 7. 12

VELLASCO, op. cit.

17

abolido em 1890, entretanto pela Constituio de 1891 os Estados do pas poderiam

ainda legislar sobre os processos e muitos adotaram o instituto Juizado de Paz

mantendo a conciliao espontnea, como Minas Gerais, So Paulo e Rio de Janeiro.13

Para tanto, trabalhamos com fontes de origem administrativa e judicial,

localizadas no Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana, dentre as quais

destacamos os livros de atas de eleies, as correspondncias oficiais, os livros de

censos, os livros de matrcula da Guarda-nacional, as leis e as sries de miscelnea.

Nessa documentao, nossa primeira preocupao esteve em, alm de construir a

listagem dos homens eleitos para o perodo em Mariana, verificar indcios da sua

atuao, suas preocupaes e realizaes, e de acordo com a legislao vigente.

As outras fontes privilegiadas, de origem cartorial, localizadas no Arquivo

Histrico da Casa Setecentista de Mariana so os inventrios post-mortem, os

testamentos e processos-crime. O inventrio um documento cartorial que nos traz,

dentre outras informaes, a relao de bens do falecido o que nos permite identificar a

riqueza dos indivduos eleitos juzes de paz. O cruzamento dos nomes dos eleitos e a

riqueza que detinham contriburam para a descrio do seu perfil social e a atividade

econmica desenvolvida.

J os testamentos, so tambm indicadores de insero social, pois nos revela o

pertencimento Irmandades e Ordens religiosas e foram aqui utilizados para avaliar a

condio de distino social de cada indivduo. Alguns processos-crime foram ainda

utilizados, a partir do cruzamento dos nomes dos juzes eleitos, para demonstrar as suas

participaes, seja como rus ou autores, nos ditos processos.

Tambm primordiais para anlise do perfil dos homens eleitos juzes de paz

foram as listas nominativas. Essas listas nominativas de habitantes, especialmente, as de

1831-1832 foram elaboradas para atender s determinaes do governo provincial de

Minas Gerais para levantamentos eleitorais, para o recrutamento militar ou para a

tributao. Muitas vezes indicava a ocupao do chefe do domiclio relativa atividade

econmica que sustentava a famlia, alm do estado civil, cor, origem e idade.14

Para os

13

Idem, pp. 77-79 14

Vale lembrar os minuciosos tratamentos demogrficos dados a esses conjuntos documentais por

COSTA, Iraci Del Nero. Arraia-mida. Um estudo sobre os no-proprietrios de escravos no Brasil.

MGSP Editores. So Paulo. 1992; LIBBY, Douglas Cole. Transformao e Trabalho em uma economia

escravista. Minas Gerais sculo XIX. So Paulo. Brasiliense: 1988; ANDRADE, Francisco Eduardo de. A

enxada complexa: Roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do sculo XIX. Belo

18

nossos propsitos, tais listas se tornam ainda mais relevantes pelo fato de sua

elaborao ter sido de responsabilidade dos Juzes de Paz de cada distrito dos diversos

municpios mineiros.15

Aliadas aos inventrios, o trabalho com tais fontes contribuiu

para a percepo da principal atividade desenvolvida pelo homem que, alm de eleito

juiz de paz, possua outras atividades, notadamente, as econmicas.

Enfim, neste trabalho, de incio passa-se por uma literatura mais clssica acerca

das anlises que envolvam as relaes entre grupos e indivduos, e como essas relaes

se delineiam para o estudo das sociedades de Antigo Regime e para o sculo XIX.

Traamos um breve panorama sobre a situao da poltica, da justia e da lei no sculo,

mas ressaltando, a posio da administrao e da justia no contexto daquelas

transformaes polticas, bem como, o desempenho de algumas anlises da

historiografia brasileira que realaram tais premissas.

Buscou-se ainda no primeiro captulo delinear, apesar dos poucos trabalhos

existentes, um breve histrico sobre a implementao do Juizado de Paz no Brasil e em

Portugal. Tal escolha partiu-se primeiramente devido a ordem dos acontecimentos, que

acontecera com a inaugurao das Constituies Polticas das duas naes, ambas

propagadas por D. Pedro I, bem como, a criao do Juizado de Paz naquele mesmo

perodo.

No segundo captulo buscou-se esmiuar o processo das eleies para juiz de

paz, abarcando vrias freguesias pertencentes ao termo de Mariana. Deparamo-nos com

uma questo de ordem metodolgica sobre qual deveria ser o encaminhamento, para

identificar corretamente o que havia de essencial, de especfico, de inovador naqueles

processos. Pelo grau de especificidade, a nica sada foi analisar cada eleio, uma a

uma, separadamente. O recorte temporal perpassa a Lei de 1828, que dispunha sobre as

eleies municipais e a administrao das Cmaras Municipais, e ainda o Cdigo

Criminal de 1830 e o Cdigo do Processo Criminal de 1832, considerados de cunho

liberal, at a lei do Ato Adicional de 1834 e sua Lei de Interpretao em 1840, essas

ltimas de carter conservador. Abarca desta forma, o perodo mais premente do

estabelecimento das funes dos juzes de paz, que sofrero uma reduo em 1841, com

Horizonte. Dissertao de mestrado. FAFICH. UFMG, 1995; e ANDRADE, Leandro Braga de. Senhor

ou Campons? Economia e Estratificao social em Minas Gerais no sculo XIX. Mariana: 1821-1850.

Dissertao de Mestrado. PPGH. FAFICH. UFMG. 2007. 15

Um estudo da origem das listas e da sua utilizao como fonte histrica em: PAIVA, Clotilde.

Populao e economias. Minas Gerais do sculo XIX. Tese de Doutorado. USP. So Paulo, 1996.

19

a Reforma do Cdigo. Discute-se assim, o ambiente poltico, as principais alteraes

legislativas e as prticas administrativas exercidas pelos juzes de paz.

Por fim, no terceiro e ltimo captulo analisa-se o perfil econmico-social para o

grupo de indivduos eleitos como juzes de paz no Termo de Mariana. A principal idia

desse captulo vai ao encontro da observao acerca da conservao da comunicao

intra-grupos e a permanncia destes na qualidade de elites econmicas e polticas,

destacando a qualidade de juiz de paz. Busca-se saber enfim, quem foram na sociedade

marianense os juzes de paz, aliando a discusso de cunho mais poltico e administrativo

ao perfil socioeconmico destes homens, na medida em que foram homens abastados e

de alguma forma envolvidos em outras atividades e ocupando outros cargos.

Por sua vez, trata-se de observar a complexidade e diversidade das relaes

interindividuais lembrando sempre da importncia em se considerar a capacidade de

articulao e de adaptao dos indivduos diante da abrangncia de novas conjunturas,

polticas e econmicas. Aspectos estes h muito ressaltados, explorados e trazidos para

a abordagem histrica por anlises que privilegiaram as relaes sociais e as estratgias

individuais formadoras de redes de interaes diversas. Torna-se essencial portanto, o

uso da histria social ajustada a anlises qualitativas e quantitativas na elaborao dos

dados, bem como, das indicaes do mtodo prosopogrfico do rastreamento da vida

dos indivduos e das formulaes para o universo destes atores. 16

Nesse sentido, a maior demonstrao foi apontada pela corrente conhecida como

micro-histria italiana representada por pesquisadores como Carlo Ginzburg e Giovanni

Levi no final dos anos de 1970. Tal corrente nasceu das trocas de um pequeno grupo de

historiadores italianos e pode ser compreendida como uma reivindicao do direito

experimentao em histria. A micro-histria surgia como uma reao a um momento

especfico da histria social, e props reformular certas exigncias.17

A reduo de escala proposta por Carlo Ginzburg, Carlo Poni, e depois Edoardo

Grendi, convidava a outra leitura do social. A histria social dominante refletia sobre

agregados annimos analisados em longos perodos, com dificuldades para apreender os

16

STONE, Lawrence. La crisis de la aristocracia, 1558-1641. Madri: Alianza Editorial, 1985.

Consideraes acerca da histria das elites e o mtodo prosopogrfico ver: CHARLE, Christophe. A

prosopografia ou biografia coletiva: balano e perspectivas. In: HEINZ, Flvio M. (Org.) Por outra

histria das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 17

REVEL, Jacques. Prefcio. In: LEVI, Giovanni. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no

Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.17.

20

acontecimentos. Apoiados na arquivstica italiana, os autores propunham acompanhar o

nome dos indivduos e dos grupos de indivduos. Tem, portanto, duas faces, usada em

pequena escala e na identificao das estruturas invisveis, nas quais o vivido se

articula.18

Ressaltamos como os emaranhados de situaes do flego ao tema e servem,

antes de tudo, para apresentar o lugar social em que se demarcaram continuidades e

inovaes no palco da ao da justia nas primeiras dcadas do sculo XIX. Assim, fica

evidente a importncia que daremos s formulaes observadoras dos aspectos

relevantes da lgica social como formas adaptadas a novas circunstncias.

Como bem props o italiano Giovanni Levi, os problemas enfrentados pelos

atores sociais e suas aes integram uma racionalidade limitada que abarca os

recursos e as escolhas que, por sua vez, agregam toda a sociedade. E ainda, dentro dos

sistemas normativos e em meio a um cenrio especfico, em que cada sociedade se

encontra, funcionam as estratgias, e o indivduo a inserido tem seu espao de

atuao.

Parece-nos que as leis do Estado moderno se tenham imposto sobre

resistncias importantes e, historicamente, irrelevantes. Mas as coisas

no se deram exatamente dessa forma: nos intervalos entre sistemas

normativos estveis ou em formao, os grupos e as pessoas atuam com

uma prpria estratgia significativa capaz de deixar marcas duradouras

na realidade poltica que, embora no sejam suficientes para impedir as

formas de dominao, conseguem condicion-las e modific-las.19

E essas foram indicaes que frequentemente se manifestaram nos mais variados

trabalhos: a preferncia por fenmenos circunscritos, a aproximao cada vez mais

estreita entre histria e antropologia, o fim da iluso etnocntrica, enfim vrios

caminhos que reforaram estudos mais peculiares.20

Ou seja, os fatores sociais

incidentes sobre o homem e que interferem diretamente em suas aes, nos aspectos das

18

Idem, pp.17-19 19

LEVI, Giovanni. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de

Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.45. O autor evidenciou a importncia em prestarmos ateno aos

diversos fatores que influenciam os comportamentos sociais. Demonstrou como uma sociedade podia

privilegiar as relaes pessoais de solidariedade, de dvida e de reciprocidade. Ao realizar uma anlise

estrutural de dois aspectos fundamentais, como o mercado de terras e as estratgias familiares, sugeriu

alguns dos princpios normativos sobre os quais comunidades, do mundo campons do Antigo Regime, se

organizavam no sculo XVII. 20

GINZBURG, C. & PONI, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiogrfico. In: A

micro-histria e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p.172.

21

mudanas polticas, das estratgias de ao e das relaes sociais. Neste tipo de

abordagem o ator histrico participa de processos e se inscreve em contextos de

dimenses e de nveis variveis

Na verdade, a escolha no alternativa entre duas verses da realidade

histrica do Estado, uma que seria macro e a outra micro. Uma e

outra so verdadeiras (e muitas outras mais em nveis intermedirios

que seria conveniente recuperar de modo experimental), e nenhuma

realmente satisfatria porque a constituio do Estado moderno

precisamente feita do conjunto desses nveis, cujas articulaes ainda

precisam ser identificadas e pensadas. A aposta da anlise microssocial

e sua opo experimental que a experincia mais elementar, a do

grupo restrito, e at mesmo do indivduo, a mais esclarecedora porque

a mais complexa e porque se inscreve no maior nmero de contextos

diferente.21

Deve-se lembrar ademais, que os questionamentos a que Levi se props, bem

como dos autores ligados a micro-histria, nasceram de uma aproximao com a

antropologia. Foi representativa a influncia das idias do antroplogo noruegus

Fredrik Barth para quem os sistemas de normas so repletos de incoerncias e a

sociedade vista como um contexto de aes. Para Barth, os valores e os recursos do

indivduo servem de parmetros realizao de suas escolhas ou estratgias trata-se

de um processo generativo.22

Como chamou ateno Ginzburg, no se deve esquecer o uso do mtodo

prosopogrfico, pois aliado a esse, h possibilidades de selecionar, na massa dos dados

disponveis, casos relevantes e significativos.23

Tal mtodo de pesquisa consiste,

grosso modo, em definir um grupo e estabelecer um questionrio biogrfico de anlise a

partir de um ou vrios critrios que serviro descrio da dinmica social. Foram

representativos, neste sentido, os trabalhos de Lawrence Stone para a Inglaterra do

sculo XVII.24

Partimos, enfim destes preceitos para pensarmos a administrao da Justia do

territrio brasileiro aps a independncia, em meio a um emaranhado de relaes e de

21

REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experincia da microanlise. Rio de Janeiro: Fundao

Getlio Vargas, 1998, p.32. 22

BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Rio de Janeiro: Contra Capa

Livraria, 2000. 23

GINZBURG, Op. Cit. 24

STONE, Lawrence. La crisis de la aristocracia, 1558-1641. Madri: Alianza Editorial, 1985.

22

momentos conflituosos. Trata-se de um contexto especfico daquela realidade em que,

por espaos curtos de tempo, ocorreram mudanas bruscas: marcou-se de incio (1808)

o transplante da realeza e a capital do Imprio, a separao dos reinos e a independncia

da colnia, a implantao da Constituio e a abdicao do imperador, a diviso dos

poderes polticos e a criao de novas autoridades.

O indivduo nesse interstcio, seja ele parte integrante ou no da mquina

centralizada de fazer leis, habituava-se a uma Legislao determinada e passava a

conviver constantemente com inmeros decretos e regulamentaes advindas do centro.

Como este acolheu ou reagiu a tais realidades o que buscamos compreender.

23

Captulo 1 Fundamentos e formas da administrao da justia: apontamentos

sobre Antigo Regime e Liberalismo Poltico

As tramas suscitadas em torno da administrao da Justia e a aplicabilidade da

justia local eram para os to conturbados primeiros anos do sculo XIX, pouco

esclarecidas. No Brasil, isso se dava principalmente pela falta de bases polticas

determinadas, ainda encabeadas nos moldes da dinmica imperial portuguesa.

Assim, o cenrio poltico aps a independncia forma um contexto de intensas

transformaes sociais que se estendem desde um incremento e edificao da

monarquia constitucional at a uma ruptura com o Antigo Regime, identificado ao

Absolutismo despotista.25

A independncia da colnia do antigo Imprio Portugus, em

1822, a Carta Constitucional de 1824, e as transformaes que a partir da se deram,

conjuntamente s heranas que se verificaram so os focos da presente anlise.

Pensando ainda em como, desde pelo menos o sculo XVIII, administrao e justia se

confundiam.

Buscamos enfim, neste primeiro captulo evidenciar como alguns fatores da

composio colonial, relativos administrao e justia, de alguma forma legaram

influncias sobre o aparato de governo posterior independncia e sobre os modos de

governar. Alm disso, procuramos demonstrar a ausncia de, ou os poucos, trabalhos

que na historiografia brasileira contemplaram o cotidiano da administrao e da justia

local para a primeira metade do sculo XIX.

Logo, ao buscarmos analisar tais momentos, assinalados por to importantes

marcos, nos remetemos a um contexto mais amplo, no mbito mesmo da histria do

pensamento liberal europeu, deparando-nos de imediato com tamanha abrangncia.

Logicamente, no nos seria possvel examinar com o devido aprofundamento os

pensadores que dedicaram parte de suas obras ao estudo do Liberalismo poltico do

sculo XIX, o que nos vinculou a limitar nossa anlise a alguns pontos representativos

do tema.

25

MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir

do conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, pp.43-44.

24

1.1 Monarquia e oficialato: consideraes histricas acerca da

administrao da Justia

Em termos amplos, as foras da tradio e dos resqucios do Antigo Regime

mostraram-se presentes no somente pela forma como se organizou a poltica e a

administrao imperial, mas tambm pela herana e pela importao de um modelo de

organizao que circundavam as prticas e os comportamentos dos indivduos que aqui

permaneceram:

(...), certo tambm que, no Brasil, adotou-se um iderio europeu ps-

revolucionrio que havia se esmerado em marcar a ruptura com o

Antigo Regime, identificando o absolutismo ao despotismo e negando

qualquer relao de continuidade entre estes e o novo modelo poltico-

administrativo que ento se instalava. Mas, nem a Monarquia

absolutista europia foi necessariamente desptica, nem a monarquia

constitucional reviveria no sculo XIX totalmente livre dos resqucios

do Antigo Regime. A experincia poltica brasileira demonstraria a

fora dessa tradio ao seguir, em grande medida, a forma como se

organizou e consolidou a monarquia portuguesa e seu modelo de

administrao.26

Quanto ao Brasil, em relao ao modelo de administrao a ser seguido, os

moldes atravs dos quais se estabeleceram a administrao colonial portuguesa podem

ser percebidos quando nos dirigimos ao estudo das bases da governabilidade local. O

exemplo da administrao da justia local demonstra que desde os primrdios da

colonizao do territrio, foi transplantada nos padres da metrpole portuguesa,

regulada principalmente nas Cmaras Municipais. Por meio da atuao dos oficiais

locais possvel perceber as profundas razes fincadas na Amrica Portuguesa e

norteadoras dos seus rumos.

Em relao especialmente justia, no antigo Regime apreende-se que o aparato

dogmtico do direito comum, relativo construo jurdica dos corpos como um

investimento simblico, o meio atravs do qual a auto-representao da sociedade

assegurava a sua reproduo poltica alargada, eram as proposies destinadas a

modelar normativamente estas sociedades.27

26

Idem, p.43. 27

HESPANHA, Antnio Manuel. As Vsperas do Leviathan: instituies e poder poltico, Portugal sc.

XVII. Almedina: Coimbra, 1994, p.306.

25

De acordo com Antnio Manuel Hespanha o que era singular no pensamento

social do Antigo Regime seria a definio organicista da sociedade a partir da

considerao das suas funes: esmiuadas na caracterizao social como uma

qualidade pertencente prpria natureza individual, para qual a sociedade se enxerga

por meio de grupos de indivduos portadores da mesma funo e titulares de um mesmo

cargo; e ainda, pela definio deste enquadramento e destas funes a partir da

constituio tradicional da sociedade definidas pela tradio levando a que o estatuto

social decorresse no tanto da situao atual das pessoas, mas de uma posse estabelecida

pela tradio familiar, pelo uso e pela fama.28

Da a ideia de uma sociedade naturalmente estratificada e desigualmente

ordenada: os estatutos diferentes, cada qual correspondente a uma funo social e

designando um conjunto de pessoas, a este conjunto de pessoas com um mesmo

estatuto que a teoria social e jurdica do antigo regime chamava um estado ou

ordem.29

Caracterizada como uma Monarquia corporativa, a Monarquia portuguesa tinha

como princpios bsicos o poder real partilhado, e em um espao poltico dotado de

poderes com diferentes hierarquias entre os oficiais rgios, sendo estes, gozadores de

uma proteo alargada de seus direitos e com variadas atribuies, sendo estas tambm

estendidas s suas colnias.30

Para essa Monarquia no existiu um modelo ou estratgia

geral de domnio, mas sim variados caminhos para justificar a sua expanso colonial, e

no houve harmonia nas polticas de colonizao, pois estas eram diferenciadas de

acordo com o tempo e com as conquistas dos diferentes espaos.31

Desse modo, prevalecia nessa expanso territorial portuguesa a carncia de uma

constituio colonial unificada, sendo que a heterogeneidade de laos polticos impedia

o estabelecimento de uma regra uniforme de governo, ao mesmo tempo em que criava

limites ao poder da coroa ou dos seus delegados.32

A inconsistncia do direito colonial

28

Idem, pp.307-308. 29

Ibidem, p.308. 30

HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Reviso de alguns

enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria F. & GOUVA, Maria de F. (orgs.).

O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:

Civilizao Brasileira, 2001, pp.166-167. 31

Idem, p.170. 32

Ibidem, p.172.

26

moderno decorria, dentre outros fatores, da disposio do direito comum europeu

baseado nos princpios da preferncia por normas particulares, como tambm:

(...), a incoerncia do sistema jurdico derivava tambm de algo que j

foi evocado a constituio pluralista do Imprio, em que cada nao

submetida podia gozar do privilgio de manter seu direito, garantido por

tratado ou pela prpria doutrina do direito comum, de acordo com a

qual o mbito de um sistema jurdico era marcado pela naturalidade.

Da que o direito portugus s se aplicasse aos naturais (Ord. Fil II, 55),

governando-se os nativos pelo seu direito especfico.33

A Monarquia portuguesa, portanto, vinculava-se ao modelo corporativo,

emergente de um paradigma jusnaturalista, caracterizado pela superioridade da

jurisprudncia sobre a poltica. A ao poltico-administrativa era o fator mais

importante, e o rei teria que manter as jurisdies dos restantes dos corpos polticos

sempre em equilbrio:

Assim, o paradigma jusnaturalista limitava fortemente a capacidade de

aco da coroa. No s ao persistir numa concepo do poder que

apenas parcamente lhe concedia poderes integrveis numa

administrao activa, promotora de novos equilbrios sociais e

polticos, como ao subordinar toda a actividade da coroa s regras de

uma prudentia iuris, norteada pela conservao da ordem estabelecida e

servida por um estamento corporativista e eminentemente conservador

(no sentido mais radical do termo)(...).34

Esse sistema e a organizao poltico-jurdico caracterizou tambm a

administrao colonial na Amrica Portuguesa. Havia diferentes cargos estendidos e/ou

criados na colnia para conduzirem aquela expanso.35

O problema do domnio estava

ligado ao da organizao poltico-administrativa do prprio Imprio portugus. Vrios

modelos administrativos foram ento utilizados correspondentes s solues

encontradas para os diferentes pontos conquistados:

Assim, o imprio portugus no se estrutura sobre um modelo nico de

administrao, antes fazendo conviver instituies muito variadas

(instituies municipais e senhoriais de tipo europeu, capitanias-

donatrias, feitorias-fortalezas, situaes poltico-institucionais

desenhadas, caso a caso, em tratados de paz, de vassalagem e de

33

Ibidem, p.172-173. 34

HESPANHA, Antnio Manuel. As Vsperas do Leviathan: instituies..., p.286. 35

HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio..., pp.170-187.

27

protectorados, simples enquadramento tctico a partir das redes de

relaes comerciais, da aco dos missionrios ou mesmo da presena

de aventureiros portugueses, etc) em territrios tambm eles mltiplos,

de acordo com as intenes e oportunidades de ocupao.36

Nesse contexto, a estrutura do governo colonial, tradicionalmente inspirado nos

modelos administrativos do Reino, foi reservada s zonas de ocupao permanente, e as

restantes instituies e formas de domnio foram adaptadas entre expedientes formais

como os de municpio e capitanias-donatrias s modalidades menos

institucionalizadas, porm:

Esta mistura de poderes no chocava, de maneira nenhuma, o

imaginrio poltico moderno, cuja vertente pluralista bem notria.

Poderes divididos o da coroa, com o da Igreja; ambos com os dos

municpios, da famlia e do patronato constituam a realidade

quotidiana do cenrio poltico europeu. E nem os poderes de facto

eram desconhecidos. Portanto, estas formas de governo misto ou

informal no eram mais que a continuao, agora no ultramar, de

formas de exercitar o Poder na Europa.37

Dessa forma, necessrio reconhecer que no Portugal moderno estavam

presentes rupturas, mas tambm a continuidade de certas prticas de governo e culturais

resistentes. Isto tem sido evidenciado em vrios estudos que se empenharam em

demonstrar a capacidade da Monarquia nos Estados europeus em lidar com as elites,

uma relao que poderia se dar de variadas maneiras.38

36

HESPANHA, Antnio Manuel; SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num imprio ocenico. In:

MATTOSO, Jos (Org.) Histria de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, pp.351-

366. 37

Idem, p.353 38

Neste sentido, podemos nos referir a discusso acerca das chamadas redes clientelares tema muito

recorrente na historiografia brasileira que trata o perodo colonial refere-se s tramas das relaes de

poder no Antigo regime portugus e extensivas s suas colnias, e que com variaes se estenderam ao

sculo XIX. ngela Barreto Xavier e Antnio Manuel Hespanha reafirmaram a ideia de que na

colonizao portuguesa o sistema poltico atuante foi dotado de peculiaridades. Para estes, a pluralidade

das redes de relaes sociais foi responsvel por gerar estratgias e prticas que ultrapassavam os limites

das prticas institucionais do Antigo Regime. A poltica real assumia diversas formas e as chamadas

redes clientelares naquela sociedade no eram um fenmeno exclusivo da corte e dos ambientes

polticos. Os regimentos das relaes entre Rei e sditos no Portugal moderno poderiam ser

transplantados para a Amrica portuguesa e tais aspectos, inclusive, circundaram esforos das anlises de

alguns historiadores brasileiros para o entendimento da conformao das elites coloniais. Essas anlises

para o Portugal do sculo XVII e meados do XVIII clarificam o entendimento do sentimento de lealdade

e amizade que regeram a corte, os sditos e todas as pessoas que compartilhavam de um mesmo

sentimento da naturalidade de um sistema pautado no Rei, como topo e responsvel pelo restante. Ver:

HESPANHA, Antnio Manuel; XAVIER, ngela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, Jos

(Org.) Histria de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

28

A forma mais disseminada de governo local para os domnios portugueses nos

sculo XVII e XVIII foi atravs dos Senados das Cmaras, ou Conselho Municipal.

As alteraes econmicas e sociais do Imprio portugus, aliadas s diversidades locais

e territoriais das suas possesses, contriburam para tornar a tarefa do governo

municipal cada vez mais complexa, e as Cmaras assumiam amplas responsabilidades

concomitantemente ao aumento da burocracia em nvel local.39

A instalao das Cmaras Municipais funcionava como uma resposta direta a

fatores sociais, econmicos, polticos, religiosos, militares e tnicos dos diversos

territrios da expanso portuguesa. Havia constante adaptao da nomeao do pessoal

burocrtico, sua qualidade, nmero, dentre outros critrios, diretamente ligados s

especificidades necessrias - a criao destes rgos tinha como fator condicionante as

modificaes e transformaes locais que por serem variadas interferiam, enfim, na

composio da oficialidade.40

Na administrao colonial a Cmara era regida pela mesma lei da metrpole, as

Ordenaes Filipinas de 1603. Conforme a lei, a Cmara Municipal tinha faculdades

poltico-administrativas, judiciais, fazendrias e de polcia. Apenas nos locais com

estatuto de vila poderiam se instalar as Cmaras. Estas eram compostas pelos homens

bons das localidades, e atravs deles, elegiam-se os juzes, os vereadores, os homens

que serviam administrao das vilas. A Cmara cuidava de administrar os bens da

municipalidade, aplicar a lei, fazer o policiamento, cobrar as multas e arrecadar os

impostos locais, dentre outras diversas atribuies.41

Assim, a instalao das Cmaras Municipais representa em nossa histria uma

das primeiras tentativas de implantao de um governo local, e, por isso,

representativa das diversas experincias de organizao da administrao e da aplicao

da justia local. O aumento de pessoal burocrtico era uma constante. As nomeaes

tambm. E, no sculo XIX com a Legislao imperial tentara-se diminuir o poder de

justia das Cmaras repassando-o ao juiz de paz pela Lei Orgnica das Cmaras

Municipais de 1828.42

39

RUSSEL-WOOD, A. J. O governo local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural.

In: Revista de Histria. So Paulo: v.55, ano XXVIII, 1977, pp.25-79. 40

Idem, pp.25-36. 41

SALGADO, Graa (coord.). Fiscais e meirinhos: a administrao no Brasil colonial. 2 ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp.69-71. 42

Para mais detalhes sobre a Lei e o perodo ver Captulo 2.

29

Assim, para o sculo XIX, especificamente, que no contexto do Liberalismo

poltico europeu, a questo se mostra um pouco diferente, o importante no ser se os

preceitos do sistema e se os princpios liberais eram aplicados no dia a dia. Mas, sim, se

estavam presentes na prpria teoria poltica e jurdica da poca, no modo como se

ensinava o direito, nos modelos de como se organizava o Estado, nas leis como estavam

nos livros ou mesmo nas constituies que deveriam reger a organizao do sistema.

O liberalismo neste sentido de uma constituio de liberdades

individuais foi, em Portugal, mais ou menos o mesmo que me parece

ter sido em toda a Europa Ocidental, sem sequer excluir as Ilhas

Britnicas: um projecto constitucional que, alm de teoricamente algo

inconsistente, no podia tambm realizar os pressupostos da sua

realizao prtica. Ou, pondo as coisas, de forma diferente: um projecto

constitucional que, para realizar os seus pressupostos de realizao

prtica, tinha que comear por desmentir alguns dos seus postulados

tericos.43

Na realidade, j havia sinais da ideia de um governo ativo na legislao e na

prtica poltica desde finais do Antigo Regime. Porm, a revoluo liberal portuguesa

precisava de Estado. A eficcia administrativa, cujo modelo vinha da Frana (e depois

da Alemanha) s se atingiria com reformas, e o ponto chave era a ordem. 44

Mas, o discurso constitucional a questo se mostra bem mais complexo ao tentar

perceb-lo na prtica, pois ele constitui um conjunto de mensagens emitidas com

intenes originrias, mas tambm entendido por receptores, diferente de

destinatrios, com diferentes horizontes de leitura e intenes de apropriao, se o

direito no poltica, as solues jurdicas tm inevitveis consequncias jurdicas.45

Em Portugal, novos processos sociais exigiam novas medidas reguladoras, novas

reparties. Os direitos eram agora subordinados ao direito sistemtico. E esse direito

sistemtico conexo lei. O Estado devia atuar em nome de todos. A ruptura

constitucional fundadora distingue o modelo poltico iluminista das anteriores

monarquias de Antigo Regime, o despotismo iluminado traz de novo a constituio das

monarquias de Antigo Regime, o novo impacto da lei. A lei aparece como subsidiria

43

HESPANHA, Antnio Manuel. Guiando a mo invisvel: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo

Monrquico Portugus. Coimbra: Almedina, 2004, p.6. 44

Idem, pp.7-8. 45

Ibidem, pp.25-26.

30

de uma ordem da razo que se ira positivar na criao dos cdigos que circundaram o

sculo XIX.46

Em Portugal destaca-se a conjuntura institucional vintista na dcada de 1820 e

os projetos constitucionais da restaurao joanina com o retorno de D. Joo VI do

Brasil. A carta constitucional de 1826, promovendo prticas poltico-constitucionais

visava a constituio dos aparelhos do governo e modelos jurdicos consubstanciados

por meio do direito e do Estado.47

Em 1820, na sequncia de um movimento militar, apoiado por um grupo de civis

pertencentes burguesia ilustrada, proclamada a Junta de governo do Porto

encarregada de convocar Cortes para se fazer uma constituio. O projeto de Bases da

Constituio promulgado em 1821. Ainda estando no Brasil, D. Joo VI forado a

aceitar a constituio de Lisboa. Quanto fonte do poder constituinte e aos processos

constituintes, quanto natureza da constituio, quanto relao entre direitos e

constituio, em todos estes pontos o argumento da continuidade traduz uma releitura

da tradio, induzida pela preocupao de legitimar a mudana, mas que no oculta

tambm as novidades. Nas ideias de ampliao e de reforma as cortes assumiram um

poder constituinte. Buscou-se dar nova forma ou alargar o mbito das leis fundamentais

histricas da Monarquia. No iderio poltico da poca se revalorizava a tradio poltica

e jurdica como instncia de positivao da ordem jurdico-constitucional.48

As novidades foram muitas quer em relao constituio tradicional do

Reino, quer mesmo em relao constituio reformista a partir da segunda metade do

sculo XVIII. Uma novidade fundamental era a de reconhecer s cortes um papel

constituinte. Algumas dessas novidades estiveram no plano da nova linguagem poltico-

constitucional.

No Antigo Regime e na ordem constitucional americana ou inglesa, os direitos

estavam antes da lei, podendo ser invocados contra esta. Mas, na tradio constitucional

portuguesa, esse ponto de vista, se tinha caracterizado pela constituio monrquica

corporativa. Apesar de se considerar limitado pelos direitos adquiridos, estes eram

estabelecidos no mbito da ordem jurdica positiva.49

46

Ibidem, pp.10-18. 47

Ibidem, pp.19. 48

Ibidem, pp.62-80. 49

Ibidem, pp.71-72.

31

A transio do Estado de polcia para o Estado de direito significou a introduo

de limites ao Estado, porm de limites que no eram os puros direitos individuais, mas

as normas da lei que os tornavam efetivos na sociedade civil. Assim, a lei a vontade

do poder, institudo pelo pacto poltico aparece como a origem dos direitos.50

O que se pretendia era um Estado em que o predomnio da vontade do poder

(materializada na lei) se impusesse. J havia tendido para este modelo o Estado

absolutista ilustrado, agora diferente dele, mudara-se o conceito de lei, da vontade do

soberano para a vontade geral. O projeto poltico liberal preocupara-se em restabelecer a

positividade da ordem poltica restaurando o conceito de nao e resignificando o

conceito de Estado.51

No obstante, a todo o contedo exposto acima, existem diferenas, mas tambm

continuidades entre a constituio do Antigo Regime e a primeira constituio liberal

portuguesa, tais como: a religio catlica continua sendo a religio da nao princpio

de Antigo Regime, como tambm persiste a manuteno da estrutura fiscal (forais,

direitos banais, dzimos), beneficial (bens da coroa, comendas) ou fundiria (morgadios,

capelas). As determinaes de 1821 ficaram servindo provisoriamente como a primeira

Constituio portuguesa em vigor de maro de 1821 a outubro de 1822.52

A Constituio Monrquica aponta para uma definio no geral e no

igualitria da nao. A nao estava longe de ser um conjunto de indivduos com

direitos homogneos, pois era diferenciada quanto possibilidade de participao na

deciso poltica. Como ocorreu, por exemplo, nos artigos da Constituio brasileira de

1824, especialmente, referentes s eleies quando restringe os votantes e os que

poderiam ser eleitos. Ou seja, no momento de se falar politicamente, restringira-se a um

grupo social que, nos seus traos sociais, no se difere muito do mundo poltico do

Antigo Regime.53

50

Ibidem, p.72. 51

Ibidem, pp.74-75. 52

Ibidem, pp.77-78. 53

Ibidem, pp.81-86.

32

1.1.1 A administrao da Justia no Brasil oitocentista: desafios para a

historiografia brasileira?

A afirmao de um poder central, capaz de exercer o monoplio da

jurisdio sobre o territrio nacional, realizou-se atravs de um processo

permanente de luta e negociao com determinados agentes e grupos

sociais de bases regionais que encarnavam tendncias centrfugas, em

grande medida condicionadas pela prpria formao social da poca,

quando, em grande parte do nosso territrio, ainda no se fazia presente,

claramente definido, um quadro mais dinmico de entrelaamento

social.54

A administrao da Justia era um dos fatores a serem organizados aps a

independncia de 1822. O Brasil, politicamente independente de Portugal, tinha como

desafio cunhar o governo do territrio, administrado h muito, nos moldes do

absolutismo portugus. Para a histria poltica do Brasil muitos analisaram o papel das

elites neste contexto. Das anlises mais recentes fica a ideia de que no somente a elite

desempenhou um papel importante na formao do Estado nacional, mas, que as

mudanas implementadas atingiam toda a sociedade.

Nesse sentido, aps a independncia teve incio o que seria depois caracterizado

como o princpio da formao do Estado. Carregada de resqucios coloniais,

especialmente no tocante s mudanas condizentes a administrao da Justia, foi

possvel uma relativa e necessria conciliao entre os poderes do centro e os das

localidades, para a sustentao do Imprio e a adoo do constitucionalismo. Os debates

travados na poca so reveladores das discordncias existentes e dos problemas que

viriam. Porm, para a historiografia brasileira, o tema est longe de se esgotar.

Vrios trabalhos buscaram compreender para a primeira metade do sculo XIX a

formao, a organizao e o desenvolvimento do Estado e da Nao brasileiros. Nesse

sentido, clssicos trabalhos de interpretaes do Brasil tiveram grande repercusso.

Buscamos delinear abaixo alguns daqueles que de alguma forma tentaram considerar as

condies e as respostas de adaptao social para o perodo. Na perspectiva aqui

defendida importa localizarmos a trama que envolve os indivduos localizados entre as

camadas com poder de influenciar decises, e como eles foram incorporados nesse

processo de estruturao do Estado imperial.

54

VELLASCO, Ivan de Andrade. As sedues da ordem: violncia, criminalidade e administrao da

justia Minas Gerais, sculo 19. So-Paulo: Edusc/Anpocs, 2004, p. 16.

33

O ponto central a considerao da gnese dos novos crculos caractersticos

dessa sociedade, de tal maneira, a corroborar com a ideia de que a situao poltica do

perodo possibilitou um diferente raio de ao para ambas as partes envolvidas, o centro

e a periferia. De onde, se torna fundamentalmente importante, uma anlise da atuao

dos novos poderes que foram institudos a partir da independncia de 1822.

Tomando como essencial as relaes entre o Estado e estes novos poderes que

iam surgindo e sendo criados pelo prprio, cabe observar que em meio s mudanas,

essa sociedade conjugou antigas prticas e valeu-se de suas possibilidades. A criao

dos juzes de paz foi exemplar neste sentido ao oferecer recursos pontuais frente a

imposio do Estado queles detentores de representatividade local.

Tudo isso desde a formao histrica inicial e o desenvolvimento poltico do

Estado brasileiro foi alvo de abordagens diversas e, de uma maneira genrica, por

meio de diferentes interpretaes, passou-se a dar maior peso s relaes desenvolvidas

entre o poder central e as elites, ao longo do perodo imperial, em identificaes, por

exemplo, como foram as de Ilmar Rohloff de Mattos.55

A abordagem desse autor estabeleceu que o processo de construo do Estado

monrquico brasileiro pode ser visto como resultado de uma dinmica social ligada

formao de uma classe senhorial e dirigente. Essa classe foi aos poucos sendo

identificada como a elite ascendente ao poder representada pelos fazendeiros da regio

do Vale do Paraba fluminense e reunidos em torno dos dirigentes saquaremas, em

meados dos anos de 1830 at o incio da dcada de 1860.

Para Mattos a construo do Estado Imperial e a constituio da classe senhorial

foram processos inteiramente relacionados, sendo esta uma relao propiciada pela

interveno de uma fora social: os Saquaremas. O tempo Saquarema foi ento o

resultado, bem como, a condio da ao saquarema, os produtores ou controladores do

tempo.56

Para o autor, no perodo colonial existiam duas faces: a face metropolitana

representada pelo Reino, e a face colonial representada sob a forma da regio, esta

ltima guardando uma resistncia prpria. A regio aos poucos se tornou o resultado da

ao colonizadora, dos processos adaptativos dos seus agentes ao territrio americano,

55

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formao do Estado imperial. So Paulo: Hucitec,

1987. 56

Idem, p.12

34

das formas associativas de interesses face metropolitana e das representaes em

permanente elaborao, entre as quais ganharam destaque as de grandeza e opulncia. O

primeiro resultado da produo colonial, e agente gerador de uma opulncia, foi a

transformao do colonizador em colono.57

Esse processo aconteceu na medida em que, os proprietrios eram em condies

coloniais os plantadores escravistas, e ao construrem suas individualizaes

possibilitaram o recorte de sua regio e pareciam constituir uma classe social. Mas, ao

mesmo tempo o isolamento das regies e dos plantadores limitava aquela constituio.

Nas cmaras os plantadores reafirmavam os nexos complementares e contraditrios que

os uniam aos colonizadores. Quase ao mesmo tempo, questionavam o preo do

monoplio e reivindicavam meios para sustentar a ordem escravocrata: 58

Fundar o Imprio do Brasil, consolidar a instituio monrquica e

conservar os mundos distintos que compunham a sociedade faziam

parte do longo e tortuoso processo no qual os setores dominantes e

detentores de monoplios construam a sua identidade enquanto uma

classe social.59

Para Mattos, com a instalao da corte em 1808 houve o estabelecimento de uma

subordinao, e como resultado disso, a inaugurao de uma relao distinta: o

enraizamento dos interesses metropolitanos, ou seja, dos colonizadores no sudeste

brasileiro. Na rea polarizada pela cidade do Rio de Janeiro foi-se constituindo o feixe

de foras polticas concretizadoras do rompimento com as cortes portuguesas. Ligados

ao aparelho do Estado, expandiam seus interesses, procuravam exercitar uma direo e

impunham uma dominao, por fim, levaram a cabo o se forjar enquanto classe. Esta

no se constituiu apenas dos plantadores, mas tambm dos comerciantes que lhes

viabilizavam e com eles se confundiam, alm dos setores burocrticos, articulados entre

a poltica e os negcios. Formou-se ento a classe senhorial, distinguida nesta trajetria

por apresentar o processo no qual ela mesma se forjava no interior da construo do

Estado imperial.60

Para o autor a coroa tornou-se o agente propiciador de uma restaurao e de uma

expanso dos monoplios que fundaram uma classe senhorial a garantia da unidade do

57

Ibidem, pp.20-26 58

Ibidem, p.40 59

Ibidem, p.126 60

Ibidem, p. 50-57

35

Imprio se constitua na garantia de uma continuidade tambm. Essa unidade e

continuidade sublinhavam a relao entre a construo do Estado imperial e a

constituio da classe senhorial. Diferente dos plantadores escravistas, que restringiam

sua atuao quase que ao exerccio de uma dominao nas suas propriedades, a classe

senhorial servia-se do Estado imperial para construir a sua unidade e sua expanso.61

Estar no governo do Estado era, principalmente, a capacidade de se exercer uma

direo poltica, intelectual e moral. Por isso, para alguns, a busca constante em conter

medidas liberais, como a Lei da Guarda Nacional de 1831, de elegibilidade local para os

postos da oficialidade, ou mesmo, a do Cdigo do Processo Criminal de 1832 que

reforava amplamente o papel do juiz de paz. Para outros, as contradies liberais,

incapazes de evitar que a liberdade a qual defendiam fosse atrelada ao princpio da

ordem e Monarquia. Por isso, tambm para os conservadores, o empenho em

caracterizar os distintos poderes polticos e definir-lhes uma hierarquizao, e, por

ltimo, o seu esforo, sobretudo, em articular diferenciao e definio, a essa poltica

determinada.62

Na anlise de Ilmar de Mattos, esse Estado se impunha ao restante do territrio

atravs desta classe dominante a classe senhorial do mundo do governo. Mas, ao

mesmo tempo, o autor no adentrou ao quadro de relaes entre estes polticos daquela

classe e os proprietrios e elites locais de outras regies do pas. Tambm deixou de

lado o funcionamento e a repercusso desse controle exercido pela autoridade central

sobre as demais regies do vasto territrio.

A reflexo de Jos Murilo de Carvalho se diferenciou das consideraes de

Ilmar R. de Mattos. Para Carvalho, a herana burocrtica portuguesa forneceu a base

para a manuteno da unidade e estabilidade na ex-colnia; e possibilitou ainda uma

homogeneidade da elite poltica, treinada em Coimbra e reproduzida aps a

independncia. Na anlise de Carvalho, o processo poltico brasileiro foi concebido por

uma formao tardia, no sofreu grandes mudanas de governo e conservou uma

supremacia civil. O autor ressaltou a necessidade de se analisar os envolvidos nas

decises polticas, qual seja, a elite poltica.63

E, diferentemente do que postulara

61

Ibidem, pp. 91-92. 62

Ibidem, pp. 136-144. Mais detalhes sobre a Guarda-Nacional, e sua eleio, sob presidncia do juiz de

paz, foram demonstrados no Captulo 2. 63

CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial; Teatro de sombras: a

poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, pp.58-59 e pp. 152-159.

36

Raimundo Faoro, a saber, a manuteno de uma elite burocrtico-patrimonial no poder,

a elite, para Carvalho, foi marcada por distines e limites. Havia uma minoria que

influenciava determinados processos: a elite no era um simples representante do poder

rural e o Estado no era um simples executor dos interesses dessa classe. A elite,

juntamente com a burocracia, no funcionava como um estamento rbitro da nao:

A continuidade propiciada pelo processo de independncia, pela

estrutura burocrtica e pelo padro de formao de elite de Portugal

certamente deu ao Estado imperial maior capacidade de controle e

aglutinao do que seria de esperar de simples porta-voz de interesses

agrrios. Mas, em contrapartida, no havia na elite e na burocracia

condies para constiturem um estamento nem podia o Estado ser to

sobranceiro nao. A burocracia era dividida em vrios setores e a

homogeneidade da elite provinha mais da socializao e do treinamento

do que de 'status' comum e de privilgios que a isolassem de outros

grupos sociais. 64

Nessa discusso Carvalho enfatizou uma elite dotada de homogeneidade. Tal

homogeneidade foi fornecida pela socializao dessa elite por via da educao, da

ocupao e do treinamento. A burocracia se confundiu com a elite, mas se dividia

verticalmente e horizontalmente. Para o autor era nessa cpula que Faoro pensou, ou

seja, na burocracia poltica representante de uma parte resumida da elite poltica e de

1% de todo o funcionalismo. Para Jos Murilo existiam setores mais representativos no

interior deste processo, pois:

O segredo da durao dessa elite estava, em parte, exatamente no fato

de no ter a estrutura rgida de um estamento, de dar a iluso de

acessibilidade, isto , estava em sua capacidade de cooptao de

inimigos potenciais. Alm da diviso interna, outra caracterstica da

burocracia imperial contribua para reduzir seu poder de controle e de

direo da sociedade. Trata-se da distribuio dos funcionrios pelos

vrios nveis de poder central, provincial e local. Essa distribuio

acompanhava a prpria estrutura do aparato estatal e revelava, ao

mesmo tempo, aspectos da natureza do Estado.65

Os aspectos que afetaram a formao dessas elites ligam-se s singularidades da

formao de classes e do Estado que se indicava. Nesse sentido, demandas centrais da

histria vem tona, como a fase da histria brasileira de constituio deste sistema,

64

Idem, p. 42. 65

Ibidem, pp. 151-152.

37

traado entre fronteiras geogrficas gigantes e reguladas por resqucios coloniais. A

complexidade do processo de formao e constituio do Estado nas ex-colnias,

especialmente em pases diferentes dos primeiros pases de revoluo burguesa,

caracterizou-se por um processo de prazos temporais muito curtos. Para alguns setores,

como na economia, existiram elementos externos e controladores dos mercados de

exportao e participantes tambm dos arranjos polticos. Alm do fato de que, na

Amrica do sculo XIX existiram modelos de organizao poltica que introduziram

justificativas ideolgicas e incentivadoras de aes entre grupos polticos opostos.66

As maiores decises polticas do perodo ps-independncia foram tomadas por

aqueles que haviam sido educados em Portugal. Os cdigos legais do imprio foram

redigidos por essa gerao, como o Cdigo do Processo Criminal e o Cdigo Comercial,

e mesmo a Constituio de 1824 com suas reformas posteriores.67

Para Carvalho a herana burocrtica portuguesa forneceu a base para a

manuteno da unidade e da estabilidade da ex-colnia no sentido, principalmente, de

possibilitar uma homogeneidade intraclasses dominantes e a regimes de compromisso.

A elite portuguesa teve como poltica a reproduo na colnia de uma outra elite

sua semelhana por meio da homogeneidade ideolgica, e com treinamento em

Coimbra. E, principalmente, essa mesma elite se reproduziu em condies idnticas,

aps o processo da independncia. A partir de ento, a burocracia foi o canal essencial

para a mobilidade dessa elite estabelecida na nova situao poltica: 68

O governo trazia para a esfera pblica a administrao do conflito

privado, mas ao preo de manter privado o contedo do poder. Os

elementos no pertencentes camada dirigente local eram excludos da

distribuio dos bens pblicos, inclusive da justia. O arranjo deu

estabilidade ao Imprio, mas significou, ao mesmo tempo, uma sria

66

Ibidem, pp. 13-22. 67

Ibidem, pp. 58-59. Segundo Carvalho o Imprio durou 67 anos podendo ser subdividido em cinco

perodos. O Primeiro Reinado entre 1822-1831 em que seu fim significou o afastamento de polticos

ligados a D. Pedro I e a entrada de nova gerao de lderes. O segundo perodo foi a Regncia (1831-

1840) em que a nova gerao chega ao Senado e ao Conselho de Estado, j dividida entre conservadores e

liberais. Os prximos perodos giraram em torno de dois ministrios geralmente considerados como

pontos de inflexo da poltica imperial. O primeiro foi o do Marques do Paran (1853), conhecido como

Ministrio da Conciliao que significou o fim de uma fase de lutas entre liberais e conservadores

culminando na Revoluo Praiera, ltima de grande porte do Imprio. O segundo Ministrio foi o do Rio

Branco (1871), o mais longo do Imprio; tpico conservador modernizante, fez grandes reformas. Assim

os cinco perodos foram: 1- Primeiro Reinado (1822-1831), 2- Regncia (1831-1840), 3- Consolidao

(1840-1853), 4- Apogeu (1853-1871), 5- declnio e queda do Imprio (1871-1889). 68

Ibidem.

38

restrio extenso da cidadania, portanto, ao contedo pblico do

poder. O governo se afirmava pelo reconhecimento de limites estreitos

ao poder do Estado.69

Dessa forma, a ecloso dos conflitos regionais e a ligao da elite poltica aos

agentes externos propiciaram uma conjuntura especfica e no to distantes das

contradies ainda presentes no seio dessa sociedade. A anlise de Carvalho se

aproximou mais do que aqui perseguimos: em consideraes que se voltem para os

fatores sociais caractersticos de um contexto especfico, e mesmo, a continuidade de

determinados resqucios influenciadores dos comportamentos e das mobilidades

individuais.

Ainda mais presentes no seio das nossas indagaes, em apreciaes mais

recentes sobre a construo do Estado nacional brasileiro, em suas mais prementes

complexidades, ultrapassando, enfim, aquelas abordagens sintetizadas em opor liberais

e conservadores, burocratas e classes senhoriais, autoridade central e provincial e

mesmo Estado e poderes locais, so as anlises de Maria Fernanda Vieira Martins e

Wlamir Silva.

Em abordagem sobre o Conselho de Estado, instituio to importante na

histria da formao do Estado imperial, Maria Fernanda Vieira Martins perpassou

inquiries que s vm a contribuir para os questionamentos dos que se debruam sobre

o tema de como foi possvel a construo do Estado imperial estando em jogo a coeso

da sociedade brasileira naquele perodo da nossa histria.70

O dito rgo foi criado em 1823, com manuteno confirmada com a Carta

Constitucional de 1824 e funcionou ao longo de todo o Segundo Reinado (1842-1889).

O primeiro Conselho atuou junto ao imperador D. Pedro I e foi extinto no conjunto das

medidas liberais presentes na reforma constitucional de 1834, mas sendo recriado

depois em 1841.71

Corria o ano de 1841. Aps o fracasso do sistema de regncias que

havia conduzido proclamao antecipada da maioridade de dom Pedro

II pela Assemblia Geral Legislativa, declarada em julho do ano

anterior, era elaborado o projeto de criao do Conselho de Estado, que

69

Idem, p. 159. 70

MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir

do conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. 71

Idem, p.25.

39

reuniria poltico de vrias tendncias e origens diversas, com o objetivo

de apoiar e consolidar a unidade nacional e a prpria monarquia..72

Ao abordar os agentes que serviram no segundo Conselho de Estado a autora

demonstrou as origens das prticas institucionais e os seus esforos em como conciliar

as heranas de uma concepo poltica e administrativa de influncia portuguesa com as

novas demandas trazidas pelo iderio liberal europeu.

Funcionando como uma instituio estvel no seu perodo de atuao que

somente foi encerrado com o fim da monarquia o Conselho resistiu efizcamente, visto

que sua atuao poltica sempre excedeu as suas atribuies originais. O Conselho de

Estado foi assim uma instncia de relacionamento entre Estado e elites traduzindo o

pensamento do governo, mas tambm representou a adequao deste mesmo governo

aos interesses dos grupos dirigentes e das elites presentes, objeto de pesquisa que

permiti ento a compreenso dos espaos e limites que se davam para a execuo dos

princpios e projetos para o pas a partir dos grupos dirigentes.73

Para tanto a autora analisou a formao socioeconmica, trajetrias, relaes,

redes de sociabilidades e parentesco dos membros do Conselho representados por uma

elite dos principais grupos econmicos do pas, dos grandes negociantes e proprietrios

de terras e escravos, contnuos a oligarquias regionais e antigas famlias influentes. Bem

como, destacou tambm as suas participaes em instncias diversas do Estado e da

sociedade civil para conhecimento das principais diretrizes e prioridades daqueles

componentes, buscando suplantar os limites da Corte como espao exclusivo do poder

imperial. Em relao s suas carreiras a autora pde demonstrar que

Considerando-se em conjunto suas carreiras nos diversos cargos do

Poder Judicirio, importante destacar que essa vasta experincia,

principalmente no nvel local, lhe proporcionaria um profundo

conhecimento da maquina da Justia bem como da prpria legislao,

seus limites e imperfeies e a conscincia das dificuldades de faz-la

funcionar a contento. Suas trajetrias lhes trariam amplo cabedal para a

funo que exerceriam no Conselho de Estado, no somente no que se

refere ao papel da instituio como tribunal de instancia superior da

72

Ibidem, p.23. 73

Ibidem, p.26.

40

Justia, mas ainda por sua atuao na reorganizao e reforma

judiciria.74

Perante uma situao de carter imediatista frente s necessidades prementes da

poltica do perodo as elites perseguiram a formao e o modelo constitucional em

defesa da monarquia e da lei, sendo as inmeras reformas do perodo referncias neste

sentido. Amplas redes polticas e econmicas ligavam assim as diversas regies

caracterizando uma relao dinmica, entre elites governantes e poderes locais, sendo

que o grupo que chegou a cpula da administrao imperial no era um grupo

homogneo que teria assumido o Estado, e por isso a necessidade de se considerar uma

pluralidade e diversidade dos interesses ali representados:

A ao do Conselho de Estado colocou em prtica um amplo programa

de organizao da estrutura de governo, conduzido pelas elites

imperiais, que procurou, aps o processo de Independncia, os

caminhos para adequao do Brasil nova ordem internacional. Nesse

sentido, interagindo com os demais poderes. O Conselho contribuiu

diretamente para o fortalecimento do modelo monrquico e para a

superao das heranas coloniais permanncias de um passado

colonial que estava ainda vivamente presente sob diversos aspectos e

que permeava as relaes sociais e polticas, a forma de entender o

Estado e as prticas cotidianas de controle poltico e econmico -,

processo para o qual inegvel a influencia dos modelos tericos e das

praticas liberais.75

J Wlamir Silva destacou a ao autnoma das elites polticas a partir da

formulao e contraposio de projetos polticos gestados na primeira metade do sculo

XIX. Mais, precisamente, o autor destacou as peculiaridades, aes e idias de um

fragmento da elite poltica brasileira na provncia de Minas Gerais. Buscando as origens

dos membros daquela elite provincial o autor destacou, na dinmica da construo de

um plano nacional o projeto liberal-moderado.76

Se distanciando das anlises que tratam as crises do alvorecer do Imprio

conectado fatores puramente econmicos, de um movimento da estrutura econmica,

ou seja ligadas a uma classe dominante, ou mesmo quelas, ainda mais recorrentes,

linhas de argumentao que tratam a estrutura do Estado e os padres de cultura poltica

74

Ibidem, p.127. Dentre as informaes disponveis para 64 Conselheiros de Estado, 29 ocuparam cargos

no judicirio, de Juzes (de rfos, do crime, de paz, de fora), 19 foram Desembargadores das relaes, 8

Ministros do Superior Tribunal de Justia, 6 Ouvidores e 6 Promotores, entre 1842-1887. Ver Quadro 18. 75

Iidem, p.391. 76

SILVA, Wlamir. Liberais e Povo: a construo da hegemonia liberal-moderada na Provncia de

Minas Gerais (1830-1834). So Paulo: Hucitec, 2009, p.19.

41

como meras tradio herdada de Portugal. Outras vertentes, que para o autor tambm

deixam de lado questes essenciais so as que privilegiaram o controle poltico pelas

elites locais e conectado ao poder socioeconmico dos fazendeiros e proprietrios de

escravos.77

Tais anlises desconsideraram o que para o autor tem de mais peculiar naquele

contexto de importantes mudanas da primeira metade do sculo XIX, e mesmo

proeminente para todo o perodo imperial

Cremos que o estabelecimento de uma dicotomia irredutvel entre

Estado e Sociedade, interagindo apenas de forma isolada, como

cooptao, ou negativa, como entrave, limita as possibilid