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Os miseráveis tormentos da linguagem e as ... - Jornal de Poesia · arranco de mim alguns estranhos vícios, os espectros do múltiplo olhar do Um. O amor é também O amor é também

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© Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna, Floriano Martins, 1998, 2013 © Fotografias, Floriano Martins, 2012 © ARC Edições, 2013 Abraxas | Biblioteca Virtual Floriano Martins, VI Caixa Postal 52817 - Ag. Aldeota | Fortaleza CE 60150-970 BRASIL [email protected] | [email protected] | [email protected]

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OS MISERÁVEIS TORMENTOS DA LINGUAGEM E AS SEDUÇÕES DO INFERNO NOS INSTANTES

TRÁGICOS DO AMOR DE BARBUS & LOZNA

1998

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I. PRIMEIRAS VOZES Onde cresce a árvore de nosso amor esfera semeada de sol e vento e mar como versos do ar tremem seus braços respiração do fogo por entre os ramos Onde cresce o amor sobre o mundo toda a idade perdida pousa em teus olhos mulher acariciada pelo esquecimento cujo corpo se deita sobre a dor do tempo e nós de espelhos silenciosamente caem de suas sombras no segredo da paisagem Trago um sonho um sonho oculto no passado nas ruínas da memória reconheço os sinais do amor, os suores do que sou enquanto o tempo desconhece por que sangram as dores que crescem em tua pele o mistério de nádegas dançando na expressão invisível de umas tristezas fugindo de teu riso e uns sorrisos voando a caminho de tua tristeza Onde morre a noite flutua uma canção quem sabe é teu nome que traz soando os dizeres da porta frondosa que se abre no centro de cinzas de nosso sonho tu fulgurante tronco de seios e presença lavrada os velhos elementos da realidade o sopro queimante de teus desejos – as invisíveis chamas palavra que inventa um ninho de assuntos e secreta aventura de beijos por toda a noite – são o tributo do tremor e a sede do universo

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Música de tua carne oh amor rochas de teu ser que me falam da imagem desnuda do abismo cadência de quedas que descalça a memória as mãos abertas do obscuro em seus ventos molhados resvalam os sonhos oh amor no compasso redondo da agonia – uma água espantada – corrente rompida – a mesma música que cresce dentro do tempo e voa dispersa por entre nossos suores de terra e espelho – eis teu novo mistério a dor que vamos buscar

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II. VÍTIMAS DO ESPELHO 1.

Teu nome é morte. Até o princípio caminham todas as formas de minha existência. O que há entre teu olhar e o meu é a paixão com que se tocam. O que é a ausência? Uma sombra sem limites. Um fulgor de trevas cai dentro de tua imensidão. Adentrarei em teu espírito pela rua de suas órbitas vazias, pelo gozo de tumbas que cresce na transparência de teus caminhos. Sei que és a morta, o palco de cinzas que me desgarra do mundo. Guia-me os passos a trêmula suavidade da solidão. És a maldita terra que adivinha meu infortúnio. Muito desejaria outra falta, outra náusea no desastre vazio de nossa existência. Até o princípio caminham todas as mortes. És o inferno das transfigurações, um abismo de ossos em tua nudez de guarda-fogos. Teu nome é Lozna. 2.

Nome de morta: Inumerável: por alguma razão deixei cair em meu destino esse funeral, o mistério granítico de tua ausência e Tanatos, uma sombra mortal que rasga meus versos. Por alguma razão uma torre de silêncios avança até à asfixia proverbial de minha solidão. Queres me retirar de circulação, profanado amor, com teu nome de cinzas e os papéis em desuso. Somente por ti os sobressaltos, por ninguém mais, as perfeitas diferenças de haver perdido os passos, o reino dos alentos simulados, seus gestos impotentes diante do amor, somente por ti. Depois de tudo: Inumerável: que lugar ocupas entre as vítimas dessa lâmpada de trevas?

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3.

Os amores expõem sua nudez sob a luz do tempo, afiam suas páginas com um indestrutível ardor, ninguém pode julgar ou condenar o amor, a figueira sagrada de seus rituais, o latejo selvagem do universo, os lauréis do absoluto, ninguém pode tramar contra a pele do amor, a assombrosa claridade de seus desdobramentos e prejuízos, mesmo na vastidão de suas ruínas há um sentido de larga intempérie, uma diferença diante da morte, um brilho que fixa a astúcia do acaso, onde o esplendor do tempo é uma vertigem porém não o declínio absoluto, onde a memória é uma transparência do futuro, onde o mistério é um decifrar escuridões, a imagem de uns olhos refletida no próprio instante de seu desvanecimento, os amantes vão cobrindo o torvelinho de seus desastres passionais, os desenraizamentos de suas visões e o arroubo do esquecimento, enquanto apenas o vento sopra e o amor persiste: 4.

Onde persiste o amor? No branco, nos desenhos do desconhecido, cicatrizes da ausência, extravios de páginas, ondulações dos calendários, no úmido fulgor de seu próprio florescimento. O amor trama sempre seu retorno, a vertigem de suas transparências, os reflexos de seus fogos, corpos de sua voracidade. Tudo em Lozna descansa na caligrafia de meu ser. Esvaziar o sentido do verbo, sua pretérita sensação, não é senão gastá-lo até o oco de sua fundação. As inflexões do amor não estão fora do que escreve em nossa carne. Uma palavra é seu destino. Seu destino são todas as palavras. Paixão das contradições. O amor de uma árvore por um pássaro. O movimento do tempo é uma estação tremente de inquietudes, cuja verdadeira distância do princípio até a perplexidade de suas ramificações não se estende além de seu próprio revés. Onde persiste o amor? Não chegaremos nunca a nos reconciliarmos com seus impulsos? Devastados no tempo sem memória, acaso desconhecemos nossa sede de errâncias? 5.

Labirintos desfeitos. Uns fantasmas visíveis exploram meu encontro com o vazio. Jogo de sombras, o que converte o desejo em um esbarro sem fim: o espaço cheio de palavras enraizadas em sua tumba, umas noções precárias do futuro, as deliberações da história, os átomos,

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o flerte do acaso. Os encontros com a morte tomam o homem pelo centro, o que não deveria ser possível. Um fantasma sob o sol é um teatro muito singular porém desprezível. A morte é outra. Meu amor é o centro de todo o mundo, a única claridade possível, a iminente tangibilidade do sonho e a mais grave condição de recuperação do ser. Lozna é a um só tempo perda e resgate: o mar que falta aos desenhos do rio e a presença de cinzas na alma de toda árvore que cresce. A história é um desprendimento. O imprevisível é também o nome do amor. 6.

Uma primeira ideia verdadeira da morte: montagem das resignações, um filme de martírios. Os cenários incompreendidos: monólogo sobre as quedas? De que falamos? Monumentos de fantasmas? Sombras de glórias? A voz de outro tempo é uma imensa gruta desprezada pela doçura satírica do presente. As imagens do sonho são a razão de minha própria dor, sua luz desgarrada de todas as coisas. Ocupo-me do ar raivoso, dos campos abandonados e da nostalgia do espanto. Sou a voz anônima que guarda meu coração. Tudo é faminto em nosso destino. Um sorriso? A certeza existencial do homem é sua máscara. Eis uma história que não tem fim. Nosso mundo cultiva a idade da indiferença. A dor da morte logo há de ser a mesma de sua própria vida. Que me está sucedendo, meu amor? Os fonemas sujos de teu corpo, uma obsessão insular, nascida mais acima, nos mundos das turvas aparências, tudo isso é a carne de meus dias? A condição de meu ser: Inumerável: é a ferida resplandecente de tua indiferença. Teu silêncio me arrasta com rigorosa imprecisão.

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7.

Quanto resta ainda de nosso corpo? O vento desfez-se de tudo, do fulgor de espelhos terríveis, do desconhecido que se faz sangue na memória. Desfez-se de tudo a alma violenta, em suas chagas de luz e solidão, poço sem fim onde o profundo se esgota, em pleno gozo, vitalidade desesperada. Quem é suficiente para afastar-se de tudo, das lágrimas amorosas e até de si mesmo? Faça-se absoluto o tormento do amor! O que há na outra margem do rito, que salta sobre nós golpeando a alma? Faça-se ânimo tal ordem de erosões! 8.

Palavras que fazem o mundo com seu passo: passamos por tudo, meu amor, porém há sempre que viver. Somente é possível arrancar alento da existência. A morte não compreende a voz do vazio, não pode desfigurar seu rosto. Perdeu o horror todos os dons, os encantos de sua própria paixão. A suavidade é a mais profunda queimadura. É o enigma do grande incêndio que alimenta a história de nosso declínio. A língua sobre o fogo, canções de cinzas com peixes derramados. Sob a casca de tanto aniquilamento, os amantes se supõem também em seu fim. A poesia indicava seus pesadelos, entrava nos céus de tanto delírio, no fundo de Deus,

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onde detinha o amor secretos esquecimentos. Saímos já do fulgor das evidências, cruzamos a linha de fosforescências do tempo. Tu és a mulher mais bela! Tristeza e alegria são uma única senha para abrir teus lábios: estou terrivelmente só, Barbus, onde salta o tempo para cair uma vez mais em si próprio. É um mundo sem reflexo. A noite é apenas noite. Quase nada nos chega ali das imagens silenciosas de nosso desejo. Não esqueças, meu amor, até mesmo para os mortos a morte é um inferno. Quem liberou o sortilégio em suas chamas? As palavras do poeta também necessitam um pouco de amor, do encontro em seu jardim de ilusões, onde o beijo absoluto é um beijo e outro e outro beijo e outro mais até o êxtase vomitar seus tenebrosos anjos e suas quedas. 9.

Lozna é uma ferida que não cicatriza: são palavras com que o tempo quer despedir-se de nós. A língua tocando o sal em seu primeiro dia de esquecimento, a escuridão tomando o pulso de uma alma sem regozijos. Tudo foi inutilmente: Inumerável? Sob a chuva, o peso de nossa inflamada alegria. Estivemos nos livros mais afastados do mundo. Barbus e Lozna. No amor as loucuras todas são brancas, até mesmo o fundo da própria alma, a alma da loucura em si. Cheguei a pensar em purificação, iluminações, ascensão… Enquanto o dia caía em meu olho. A serenidade dos tormentos recobrou o sentido único de tua morte: a preciosa jóia da poesia. Nada mais é capaz de romper o ânimo da árvore das ressurreições. Ao percorrer o alfabeto de tua ausência, Lozna, arranco de mim alguns estranhos vícios, os espectros do múltiplo olhar do Um. O amor é também uma balança de insignificados. À sua esquerda, as tensões do paraíso. À direita, os sorvos do inferno. O que são os crimes passionais? Um intercâmbio de luzes em meio ao escuro de cada estação? Uma inveja de conhecimentos? O amor é somente para o uso de anjos? Creio que o desejo se adere ao ser, que é um ato sagrado, que extingue o esquecimento e todas as letras do

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tempo. O que houve conosco? Dançávamos enquanto o mundo culminava em desastres, enquanto o homem não esperava nada do homem, enquanto o assombro ficava só. 10.

Graças a uma leitura de Enrique Gómez-Correa: Os espelhos piedosos seguem retocando as imagens, porém os espelhos malignos continuam distorcendo-as até os próprios ossos. Muito de nossa moral não compreende a diferença possível entre os espelhos. As imagens perdidas são amiúde pertencentes ao mundo dos espelhos piedosos. A lembrança é um bem em si mesmo. Os caminhos tortuosos não terão salvação. É uma ação de espelhos? As ideias passam por nós como pronúncias inquebrantáveis do abismo. O amor goteja suas paisagens de fogo. A morte de um sonho é um dado que enfebrece o insólito. Tudo é muito familiar. O tremor se renova com as enfermidades. Conhecemos os contrastes, a linguagem morrendo de si mesma, os gozos vulcânicos da solidão, as vozes de pedra da serpente. Meu amor, me deste as reverberações. 11.

BARBUS – Somente ao tocar tua ausência: Inumerável: a noite engendra sua inextinguível

resplandecência, sol dos santos, raiz do fogo. A destruição de seus corpos semeia na memória uma cidade de imagens indecifráveis.

LOZNA – Sem a perfeição de teu esquecimento nada em mim poderá morrer o bastante. Tua

memória é uma violação de meus resíduos mais secretos. Uma obscura trama do tempo para que não se vá de todo a matéria de suas letras.

BARBUS – A penumbra acolhe a maré em fuga dos corpos, é uma expansão do eterno labirinto.

Desvario de signos andarilhos, reflexo até onde os arcanos perpetuam nosso abismo. LOZNA – Não estou de regresso, meu querido. Não é a morte um refúgio temporário. Não há

plenitude redentora nem convulsão dos tormentos. Que caos pode livrar-se de si esquecendo sua origem? Divindade de escombros, o deus da morte. Há um frescor rompente de reveses e fraturas em tudo quanto toca a morte. Não alcança nosso amor outra firmeza.

BARBUS – Onde afundam as formas fiéis à superfície? Onde o acaso da vazia acuidade dos

sentidos? Na possessão do viver, o que escapa da dispersão da consciência? O que é um abismo tangível? De quais extremos faz falta a respiração da inocência?

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LOZNA – Até o esquecimento improvisa seus limites, a caminho da origem inabitável. A caminho da dimensão propícia aos extremos. O que nos leva a dizer que alguém se desespera? A coisa visível é a morada do amor, sua obstinada conjectura. Barbus, é inútil dizer o silêncio sem a vertiginosa confluência de seus ruídos. Não quero ser o balbucio de tuas inquietudes.

12.

O que será da palavra sem que ninguém a repita? Os diários de morte são algo incríveis, estrondo de danos sob incertas inscrições das misérias. Ali não há má fé, porém este grande fantasma necessita ir mais longe em seus lamentáveis aspectos de solidão e desespero. Quais os verdadeiros excessos da alma? Quanta vezes necessito amar até cair na asfixia das perdas? Morro de meu amor ou da espantosa tragédia de seu curso? Algumas palavras ocultam seu significado. Assim é com o amor, o sonho, o fogo e os materiais que esmaltam o cenário da existência humana. A mesmíssima flor do mundo é sempre nada: não há pausa, somente uma palavra decepcionada. 13.

De onde vem a dor? Encontram-se nossos atos viciados em tal ordem de queixumes que a felicidade é um desespero. Cada um fala de si mesmo, em nome de seu amor. Condenados pelo tempo, rimos do doce Gautama, da miséria de Juno, da cegueira de Borges. Rimos de nosso próprio amanhecer, sem saber acerca dos argumentos dos salvo-condutos da espécie. Tudo é provável. Entre nós a morte necessita de caráter. Egos e vermes padecem da mesma gravidade humana. Tudo é um alento de palavras, os termos da mídia ou os regozijos do Papa. A morte é um câncer.

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Temos aqui as limitações cruéis da linguagem. 14.

Sangras de mim, conjurada memória de um assombro a mais do mundo. Sou a tormenta que escreve os estalos em tua pele, que anota o que ditam suas estridências. Quem vai escrever-te, milenária heresia, sem o bosque em chamas da poesia, sem o assalto ao inferno onde afinal estava impresso quase tudo? Nossa crença não é a mesma. Não tem o homem como retornar das páginas de seus velhos diários de tanta injustiça. A morte começa com a verdade de cada coisa, com seus vôos dentro do ser e a elétrica asfixia que atravessa os lares e abraços da espécie. Errante e Barbus, meu amor desce ao vazio, porém o que é seu nessa viagem redonda? O que fomos já não somos. O que é meu senão o nada, o ilusório? 15.

Contra a dor prosseguem os amantes. A dor da morte e seus arquivos de silêncio. Deve o amor ser tão tremente, uma loucura cintilante de espectros? Quais suas marcas não fatais? Reconstruímos em versos os espelhos de outros tempos, uma ópera de serpentes, a cidade perdida das alucinações, último dia da inocência. O poema não pode, no entanto, reconstruir uma morte sem dor. Vivem os amantes em eterna escuridão, na noite infinita. Seu esplendor de raízes não é senão um salto no vazio, nos jardins invisíveis de suas apostas. Saudação, Barbus! Saudação, Lozna! Que dor pode haver na queda de um amor tão desprezado? Somente as omissões são imortais. A forma governa o amor. Muda a identidade das contradições. Os mortos seguem sendo os mesmos. Barbus e Lozna se acariciam na escuridão de seu espólio. Como pode cair o amor sem o amor? 16.

O repartido na tempestade define nossa nudez diante do sol. O que terá sido de Lozna contra os dias de sua inquietude? Um beijo é uma maré de desejos, estrela arrancada ao enigma da intimidade com a rocha dos sonhos. Mãe dos delírios,

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uma mulher é a possessão implacável do desamparo e do furor do ser. Ninguém soube decifrá-la. A poesia é nosso estro possível. O mundo começou a morrer quando não mais tocava as pernas da mulher a sabedoria. Chorarás a pântanos, disse o tempo ao homem restado sem seu revés. O mundo sem a presença da mulher é a conhecida parábola de uma cidade em sua plena destruição. Os espelhos da frivolidade são a virtude de tal cidade. Não há drama. Os prazeres ilusórios são a corrente de chagas, os prazeres meus, os teus. Lozna é a atriz buscada pelas cinzas de todo um império. E então, amor, que drama? Suas irmãs velozes devoradas por fantasmas? O fulgor do sangue em suas carnes tão jovens e a tempestade confluente das ruas? Algo mais que os dentes do horror. Seus corpos famintos comeram a morte, meninas de orgasmos sem fim, pétalas de Deus e seus beijos sempre fora do mundo. A dor de Lozna é uma aventura convertida em cadáver. Reflexos? Já não há esquecimento na dentada de sua alma. Os espelhos são a fortuna dos regozijos. Os deuses encomendam estrelas ao declínio de um corpo. Sem tua chama, meu amor, o mundo não terá sua forma: não pode a noite com tanto abismo. Tudo quanto existe toquei, meu sangue é sua ausência. Que haverá sido de seu enigma terrestre? Não há clausura. Nada de lágrimas. Os mortos conhecem a graça da paixão recíproca. A morte permite respirar a gosto. O que mais te rompera por dentro, poesia, rocha do frescor de minha imensidade, pernas da vertigem? Lozna é uma parte de nós cheia de sombras e sua corrente mutante, gema do ar, desnuda sempre, sempre. 17. Tornará o amor a sentar-se entre ramos, imagens e febres? A morte não é culpada das coisas perdidas em lábios de amantes. Lozna não quer que Barbus faça tantas perguntas. Para ela não há mais êxitos ou fracassos. Todas as misérias mudaram de curso. É possível que Deus haja morrido de sua fome infinita. Barbus é uma fonte provocativa. Como poderia fazer para tocar sua amada inacessível? Como abrir as portas desse enigma arborescente? Acaso não é uma tarefa como tirar da noite o molde do vazio? Não há insulto, mas sim espanto. O silêncio estremecido que Barbus quer descobrir no rosto modelado do cadáver de sua amante é o mesmo zênite de sua própria existência. Os elementos

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essenciais que firmam o caráter das paixões. O jogo do amor no alto do abismo como a chaga de uma ideia fixa. Nossos queridos têm sua própria noção dos nascimentos e seus arrebóis. Um: morrer é apenas um hábito? Outro: como falar de beleza quando já não havia ninguém em tua memória? O tempo gira louco no conhecimento de cada um. Não há o grande dia dos mortos. Não há o terror nem a claridade inútil. Não é somente uma desilusão de René Daumal. Diante da calorosa ausência de quem se ama a beleza terá mesmo que ser um terrível desespero. Sempre são fatais os caminhos traçados. Não há nisto, meu querido René, nada de trágico. Nem demônio ou força ilimitada. O desejo perfura a carne de suas ardências. Os amantes são esboços quase perfeitos do acaso. Barbus e Lozna apoderam-se do centro de nossos sonhos. Uma tempestade que se alarga sob as buscas de sombras. Os amantes impõem ao tempo as misérias mais secretas e também as belezas mais interiores. Não há rua tão despida quanto aquela da graça indescritível das destruições do amor. 18.

A língua é uma maré de refluxos. Não há retorno do poema se acaso não é com proveito do sangue derramado. Quem poderá dizer que o amor passou há tanto tempo que não cabe mais sua herança sobre a terra? Onde termina o homem começa o inferno de sua memória. É uma chave sem fim. Não é tarde. A memória é um rio desgraçado? Acaso não são os sepulcros melhor considerados, moedas do tempo, seus ovos andarilhos? Quem persegue meus desejos, senão a dor de um homem envelhecido em meu sonho? Quantas vezes girar a língua na boca?

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19.

Sílabas esgotadas na noite. Um teatro de quedas multicores, onde a paz do crime é um fantasma irônico. Não há tumbas para tantos mortos. Também os amantes ficarão sem poemas. Reduzem-se a nada as ilusões: golpe das perdas, os tetos abandonados e as cinzas de cristal de seus desamparos. Não há como reconhecer o rosto de meu semelhante no bosque dos espelhos. Quem é meu amor? Já que dormes, que não me venha mais sua constelação de sobressaltos! É um prazer resplandecente da vertigem, de seu ritmo mágico de rompimentos. Sílabas dos insultos traídos, desvios de suas direções. Brancura desumana, nosso encontro com a ensangüentada alucinação dos extremos. Tragédia inaudita: já não haverá nunca mais um amor seguinte. Não é um calendário cuja fadiga faça descarrilar o tempo. Para viver melhor tenho que matar a ausência de Lozna. Sua sombra é meu rastro. Os duelos de seu silêncio são minha própria voz. Ressoa-me nas vísceras a herança de seus prazeres. Lozna é um tipo indivisível de grito. A morte é algo hermeticamente aberto, graças aos traslados insólitos da poesia de Ghèrasim Luca. É o ventre da mulher que não tocamos jamais. Quem é meu amor? A estação subterrânea dos horrores, a vivenda dos delírios, hotéis de minhas escuridões. O terror não sabe de onde vem o vento. As gravitações do poente são o deslumbramento de suas entranhas,

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perfeição conflitante dos fulgores. O poema, convém lê-lo todo em suas palavras: a vida não reterá jamais o amor em cubículos de esquecimento. 20.

Vás desnuda: Inumerável: até a desolação final. O rigor de morrer move teus passos. Como poderia saber os limites dos escombros, os juramentos secretos do desterro? O amor não regressou jamais do reino indelével de seus sacrifícios. Oh tempo, tratei de ocupar os abismos de meu coração! Tudo é tão grave. Lozna, és minha mulher. Vou a teu encontro, sem que a morte surpreenda minha presença, bem longe de uma emboscada de relâmpagos. Não há refúgio, a não ser no manancial da imaginação. Saberás ainda captar, meu amor, os rumores e indícios de meu corpo a caminho do teu? Buscarei a desterrada unidade do verbo até a umidade mais profunda do silêncio, sob o lodo da asfixia, sob a dimensão do exílio. 21.

A solidão estraçalha a alma, devora seus resíduos. Deusa da ira, torna-te chama, torna-te a ressurreição das palavras. Saberás assim por que nos amamos, Barbus e Lozna. Saberás por que sofrem por nós os ventos da terra, por que sofrem os homens e não se sustentam as tormentas sem nosso amor. Quem canta entre os ermos do tempo? Quem decifra as confidências do vazio, do nada, os pontos frágeis da alma humana? Como queima o coração se acaso não está presente o amor? Quem saberá a incontida sabedoria do silêncio? O que seremos nós quando o mundo restar sem tremores? Deusa da ira, tornada o clamor do fogo, perene ressurreição do amor e da poesia.

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22.

Há que se ler em teus lábios as últimas palavras de amor. O poema dirá tudo o que dizias, o que ias buscar com tua voz. A morte não se cansa de morrer em meus braços? Mesmo no fundo da noite os mortos chamam sem que lhes responda a terrível anciã. Há que adorar a morte, irmãos? É possível nos vermos junto a Deus? O amor é uma árvore que anda e canta e dança. Cada fruto, uma porta imensa. A tatuagem de fogo na pele da eternidade. Como nos sustentarmos à borda de tanta luz e suas visões ardentes? Eis a tarefa dos amantes na terra. Onde o centro de nossa errância? No vazio onde se apóiam os significados das coisas. Não há lugar para morrer. Toda palavra deve sair de um vazio pleno e seu corpo haver caminhado entre a luz e a sombra. Única forma de conhecer o sagrado. Ninguém pode chegar até esse ponto sem que lhe tenha queimado o amor. Os enigmas flutuantes, nômades, estão feitos da verdade dos mundos atados a suas erráticas crenças. Uma imagem convertida em fonte de si mesma. A beleza contraditória das escrituras. Seus fragmentos são como um terreno baldio. Os gestos absurdos pendem da insistência de seus sentidos. O poema é um transbordamento do olhar e suas combinações com o acaso. Haverá em seus domínios indivisíveis algo que desvele a mesma vibração de seu antípoda? É como indagar se há mesmo uma única vida. Os vazios da razão são a perpetuidade dos mitos. Até quando durarão os inumeráveis corpos da árvore de nossos sonhos? Até quando a morte se canse de morrer em meus braços. 23.

Meu amor, estou simplesmente morta. Não há um centro ilimitado das coisas, nem eqüidistância possível entre vida e morte. Não se resolve a história em seu repertório de agonias. O Calvário não é o centro de nada. Descarnar as descrições não conduz ao lugar de sua ação. Não há milagre prescrito pela linguagem. Recordo umas palavras de Enrique Lihn: A vida necessita muito pouco da linguagem / esta é uma das causas mais poderosas do Ego / da morte. Este seu Diário de Morte é uma prova bem rigorosa da gravidade desentoada da poesia. A exatidão de suas palavras muda a noção que temos da irrealidade e seus conflitos com a morte e a memória. É uma espécie de outra relação a que tem o enfermo com a vida. Seus temores do vazio restam solitários e abrem outras conexões com as intuições renegadas.

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Não há o domínio dos sentimentos nem justificativas nas sensações. Os desejos de uma vida são os ossos acariciados pelos vermes. É o mesmo com o trabalho dos poetas. Não há como tornar tuas as mãos que são minhas, querido Barbus. O labirinto da história não duvida da condição de minha morte. Adoraria aceitar tuas versões da mesma, porém teus versos falam de um paraíso perdido que é um emblema do horror em que vivemos. Não há podridão do corpo nem uma trajetória de anjos. Os que pensam na vida devem entender que a dor é parte da própria alegria, que não há túmulo de plantão nem felicidade prometida. O centro do ser é justamente o que fazemos de nós. 24.

Onde desemboca a ausência da mulher amada? Não há como aceitar os desígnios de uma fonte de jogos, as adivinhações das horas do martírio, fulgurantes esponjas de um delírio de estorvos. Lozna morreu ante a perplexidade desbragada de Barbus. Não houve fruição dos metais de sua morte. Não houve elegância da criação no retábulo de sua retirada. Não sangrava como suas irmãs. Seu corpo não era a sacristia de uma violência carnal. A morte apenas sorria do pedestal vazio de sua própria ideia. Não foi o nascimento de um novo círculo de abismos. Não houve as certeiras lanças cravadas da ironia nem uma opulenta constelação de quedas. Que houve com a morte de Lozna? Que corpo a linguagem recebe agora? Que fazer dos provérbios diante dos deslizamentos da carne? Barbus atravessa o deserto como se fosse um enigma sem configurações. Não há ao que recorrer quando a noite não se deixa tocar. 25.

Quem fala comigo nas colinas febris do vazio? O que é a respiração do inferno por entre as chamas dele próprio? Minha ascensão às vertentes encantadas das trevas é uma lâmpada perdida em suas imagens. Onde está a falha que é minha? Onde sua petrificada obscuridade? Que espaços transpassar sob as tempestades suspensas do viver? O que posso tocar em tanto ermo? É possível reconhecer a morte sob sua própria sombra? Os ruídos das visões querem ser o fogo de Orfeu.

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Que fogo é esse? Quem fala comigo? Detrás de tudo os deuses com suas invisíveis lanternas. Vê-los passar é compreender que não me verão jamais. Tudo em mim é um rompimento de laços. Tudo na vida se afasta de si mesmo. Como reconhecer minha morte no vazio? 26.

As marcas de tua morte: Inumerável: suas trajetórias de regiões abandonadas e submersos hieroglíficos, sobre que corpo se apóia tanta ganância do tempo? Deixaste em cada poema alguns versos apócrifos, em cada túmulo as origens perdidas de tamanha vastidão. Recolher as formas anteriores é um destino que ainda não sei tecer: a matéria de cinzas de tantos vôos, os troncos ocultos de teu bosque, os pássaros mais velhos do mundo… A morte será mesmo um destino? Não creio. A vida não é somente uma terra de sombras, nem a fome uma fonte de ossos golpeados. O que morre em mim afinal morre em todos. Onde começam os mortos de cada um? Leva-me contigo ao inferno de tua língua, para queimar ali as feridas do tempo. 27.

Um homem repetindo o nome da amada até a vastidão de sua vertigem é uma forma sinuosa dos extravios. As raízes de um homem assim fazem ondular as cerimônias do vazio até que suas vozes tenham desfolhado os enxames de assombros que testemunham a presença do desejo. Nada mais transcorre sem que este homem chegue a seu deserto mais perfeito. É uma torrente de centelhas e escamas, uma varanda ardente de desastres. Não há como transformar em palavras os tentáculos do silêncio, nem mesmo em línguas de luz as chagas implacáveis da escuridão. Um homem assim não se converte em nada, até que toque o dulcíssimo rumor florescido de suas tempestuosas aflições. 28.

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Uma mulher caminhando sobre os vestígios ignorados de sua própria linguagem é como um versículo detido para averiguações. Não há jogo de palavras que não reconheça as faíscas de seu exílio, as trêmulas interrogações do carvão dessa cativa caminhada. O que se passa em sua forma intangível é implacável. Uma mulher assim é uma cadeia de pétalas do inexplicável aproximando-se das fibras dos tambores da terra. Sua febre é um estrondo de milagres e também uma chuva de medulas. Nada mais transcorre em seus caminhos sem que o converta em novo enigma. Uma mulher assim é o próprio corpo do sonho. 29.

Há que esquecer tudo sem tornar-se louco. Há um ponto extremo em nossos atos, um horror insondável de adentrar o território sombrio da vontade criminosa. É uma expressão fugidia de nossa vaidade. Tudo se dá em seu ponto extremo, em seu ponto de transfusão. A morte é uma elaboração necessária da vida. Não há outro sentido na separação de nossos corpos. O rigor das perdas é o mesmo do reconhecimento primordial do ser. Nenhuma dúvida acerca das aberrações da razão. É cômica a tragédia do amor? São obscenos os domínios sagrados de seu romantismo? Seja qual for o limite da dor, não há sacrifício possível nem efusão de seus esforços. Quero retornar a teus braços, meu amor, porém não há dissimulação possível de minha condição que não seja a evocação de tua angústia. Não é demasiada tua nudez de sentidos. Não importa a loucura dos esquecimentos. Este livro é o único método de nosso reencontro. 30.

O que é a claridade dos desamparos? Uma chaga saborosa? Há uma secreta fadiga desatada que passa como a dor que vai entrando na carne e segue em seus comentários fundos e uma violência que soluça e faz pensar que os dias difíceis dormem em nossos corações. É uma bondade da dor? Para onde vamos? Gozo de vermes nos ossinhos da memória, vida nova de quedas em toda parte por onde caminhamos. Conhecidas palavras de iguais exílios. Golpear suavidades, lutar com ternura, que a luz escondida no abismo é nossa ainda, é nossa sempre… Somente a morte não cai em desuso. Paciência com os altos ramos da Parca. É fato que o amor é uma árvore castigada pelo tempo.

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31.

Como passa o tempo! Andei pela noite prodigiosa dos artifícios, pela outra metade da alma, os cantos cômicos da opressão. A poesia é uma caravana cuja beleza é terrível e a agonia é uma jóia calcinada. Há lugar para o desafortunado de Gerárd de Nerval e o martelo de Carl Sandburg. Há uns fantasmas que enchem nosso mundo de felicidade e outros que fecham a porta aos nossos projetos futuros. É um mistério o que faz com que certos poetas trafeguem sua visão de um tempo a outro. Malcolm Lowry disse que o êxito é um desastre. Por sua vez, pensa Edward Dorn que somente o abandonado possui vida feita de noite eterna, insuperável. A poesia é uma catástrofe compartilhada? É hora de aceitarmos que poderíamos ser outra coisa. A ruína irreprimível faz do homem um aventureiro da parvoíce, um pária na terra da alegoria. Lembras, poeta, como nos livrávamos sempre de nossas sombras? Uma manhã em Delfos, uma noite no corpo invisível do prosaísmo, os perigos da escrita, a morte não é a palavra, etc. Nos desviamos? Não creio. De alguma maneira a aposta da poesia é a felicidade. Uma das rubaiatas pede que jamais renunciemos às canções de amor. Escreve Horácio, em uma de suas odes: aceita com paciência o que venha. A resignação à morte é um tipo de alimento sagrado da poesia, um tipo de glorificação do horror. Acaso não há uma retórica dos sobreviventes? Há um poema de Günter Kunert que adverte que o poeta morto finalmente alcançou tudo e que já nada lhe alcança. Não posso com o amor em sua lousa sepulcral. Não sei o que faço fora da doçura do mundo. A vida é um resplendor. A poesia, o amor, a liberdade? – umas variedades particulares desse mesmo resplendor. Não se trata do ímpeto das estações. Quiseram os poetas ler na tumba de Lozna que graças à poesia ela não cairá em esquecimento. Que fragmentos nossos é o túmulo de cada um que se vai, dos queridos deixados nas cordas do tempo? Uma vez mais, nos desviamos? A poesia é uma escritura de desventuras, um tipo de alarde que volta a palavra contra quem a escreve. É uma árvore que só regressa graças à queda de suas folhas preciosas. Não posso com o cadáver de minha amada nas visões da poesia. Fecho meus olhos e a agonia volta a ser livre. Não

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há rumores de crônicas, falas comuns, falsos testemunhos, teatro de sombras. Para regressar às estranhas propriedades da vida não é possível repetir o mesmo jogo de alucinações de seus dias. A poesia é uma forma possível da vida ou da morte? Meu amor caiu em meus braços e não me disse adeus. Seu silêncio é finalmente um resplendor, o verdadeiro enigma de toda uma vida? Acaso seu doloroso desaparecimento é a fonte de algum mistério asteca a que todos regressaremos? Não há suavidade no padecer. Lembras, poeta? Voar ao redor da dor não limpa a alma ou transforma sua sequidão em nova lâmpada atormentada. Falemos do fogo e da escuridão sigilosa que haverá de ser o método reconhecido por Lozna. 32.

Quem existe em mim? Um amor que faz encarnar o tempo em sua matéria visível, um doce archote que penetra os sonhos e faz renascer as tábuas de seus atributos extasiados. Uma das sombras dolentes de nossa escrita: a rapidez da eternidade. Como desgarrar o amor do dano terrível do tempo? Uma longitude de quedas, o logro das formas atrozes das reminiscências? O que se passa com a memória do amor? Onde os suores malditos da carne? A luz cheia de teu corpo aos pés de meu gozo? Uma pele crescente de golpes a cada firmamento de teus beijos? O orgulhoso ramo de tuas vertigens dentro de mim? Quem mais? Barbus e Lozna? Não uma sagrada revelação, mas sim a prova do amor reconhecida por Hölderlin. 33.

Tão próxima de mim a mulher de fogo e suas cinzas inconclusas. Estou beijando seus lábios e umas palavras entram em minha alma com sua força de sombras. Despertam então um abismo sucessivo com as vozes desgarradas do ventre flamejante da mulher. É meu coração insondável acreditando-se celebrado. A noite passa por dentro de seu assombro. Não há caminhos decifrados

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ao declínio do anjo. Alguns vôos terríveis e o olhar devorador de sua presença. Tão próxima de mim a verdade sangrenta de seu inferno, a morte visível do mito. A dor arrasta consigo o pesado tronco da árvore de Orfeu. Estou com a memória em sua ruína de sigilos. 34.

Não há sonho: Inumerável: senão a emanação dos tormentos de tua ausência. A poesia não é um simulacro dos instantes em que falamos de amor. Ninguém envelhece se acaso não estremece do mesmo tremor que a morte. É uma imagem abrasada de extinção, um tipo de veneno proverbial. Não conheço os escrivões de nossa aventura, porém maldigo suas repetidas histórias acerca do amor: os escândalos desesperados, o teatro de crimes, umas estúpidas narrações da solidão sem sombras, os filmes de recordações do Paraíso perdido… O amor não cabe em sua própria verdade. As vozes desse drama incessante chegam a seus labirintos e ali ficam sem saber o que fazer. Não há argumento e o filme prossegue sem o pavor de sua culminação. Quem é o suplicante? Barbus? Lozna? O poeta? Em todos estes casos, pode o amor com a rota das transgressões? A eternidade é uma palavra só. Não há cópias de seus descuidos nem faz diferença que Eros tenha sido atormentado até a eclosão de seus últimos suspiros. É uma desprezível mudança de cena. Todas as putas de diretores reconhecem em suas coxas triunfantes as horas de deslocamentos da realidade, a trama que revela uma sediciosa catástrofe em todo amor. Uma mulher caída em meus braços e logo ausente de tudo. Palavra desperta nos lábios e logo o silêncio. Não é uma questão de súplica e sim que não é mais perfeita a inocência.

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35.

Quando encontro teu corpo, doce amor, a vida inteira é uma maldição, é como ausentar-se de seu

drama comum, seu mercado de sentidos, sistema único de quedas. Ninguém poderá decifrar o que sinto, o enigma das horas passadas dentro de ti: Inumerável:

percorrendo ramos e ramos de tua vastidão gozosa. Não há loucura mais perfeita que o desenho de tua árvore. O tempo? Consiste em negá-lo o trabalho da arte. Nada posso sem teu sorriso, confesso. As coisas que não se ajustam a teu reino desgraçadamente não desapareceram. Os signos traçados a fogo na carne respondem agora ao impacto dos danos. Também as páginas

da poesia recolherão suas impossibilidades. Não há imperfeição suficiente nem pesadelo tão funesto que faça desaparecer por completo a

fonte dos desequilíbrios. O amor não fere como uma dor que floresce, mas sim como o grunhido do desconhecido no

centro da noite. Não há o mundo culpável diante das carnes abertas do amor. O que vais escrever, poeta, acerca do ossuário de prejuízos da linguagem? Quem senão Lozna poderia me amar contra a suposta riqueza dos sentidos? Somente na poesia é possível encontrar algo nosso, alguns traços estéticos comuns: o enxame das

representações, umas caixinhas negras de montagem, contrações violentas da verdade interior, o oceano das contradições, pouco mais.

Que máquina produz o amor? Há um processo no mundo acelerado das perdas e ganhos, um salto secreto que atende à

demanda de um selo grave: o paraíso do eterno esquecimento. O amor tem sido tratado ainda como uma metáfora delicada que brota de uns lábios angelicais. Os espelhos persistem: a nostalgia é uma máscara, no que estão certos. É uma abundância, um dispêndio da alma humana, secreto teorema da aniquilação. Não há poema perfeito a tal ponto. A enunciação da irrealidade tem sido a colérica maquinaria que organiza a permanência de seus

termos. Para onde se dirige o futuro? O que vemos? Decerto nosso apego à vida é algo estúpido. Há um livro que indica: o amor é uma atribuição do inferno. Despida como estás: Inumerável: que posso alcançar sem a peregrinação da consciência perdida? Não há riqueza nos signos, nos pincéis de uns lábios e uns deuses. Não há sonho comum nem verdade compartilhada. Não há o que provar nem mesmo o caminho de volta. A poesia tem que descobrir outra fonte em que pôr as mãos.

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Não se trata de sobreviver a seu ofício, mas sim de não esquecer que o desconhecido não é uma máscara dos destroços futuros.

A poesia é uma morte ao natural. Lozna em meus braços. 36.

Há um corpo irretocável e vazio em meus braços, um largo aposento de sombras silenciosas e os belos papiros de tão longínqua devoção. Sob os arcos um caminhante desenha as visões. É um desejo seu alimentar o amor com o coração. Na continuidade da palavra, seus lábios e o verbo iluminado pela sagrada escuridão. Que outras línguas encontro na vastidão severa de tua ausência: Inumerável: nos parágrafos queimantes do nada, em sua errante escritura? Tua alma entrou em uma nova estação, em uma geografia de abismos invisíveis e nas páginas nubladas de outra caligrafia. Não é uma biografia das perdas nem oculto drama de suas fronteiras varridas pela tempestade do mito. Tua alma caminha sem a tradução de seus dias. Em seu mundo interior não pode o caminhante retornar às suas lembranças, não há como deixar: Inumerável: o coração na pele dos caminhos. Como adentrar o passo do vazio e ali respirar o ar de seu movimento de lodos e silêncios? Como viver do ar da obscuridade, de seu trêmulo enigma? Como não sofrer a falta das coisas ou arrancar mais lembranças de cada palavra talhada? Há diversos rostos na ausência do amor, uma escritura minuciosa que não perdoa a certeza.

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A morte não é uma quietude de página desfeita, mas sim a entrada no corpo despossuído da letra, em uma grafia de sombras e cinzas. A linguagem é um equilíbrio de assombros. Também são demoníacos os deuses e sua esfera de gozos. Como adentrar-lhe a casa e viver a eterna renúncia de tua alma? Como fazer o amor sendo eu um homem sobre a terra e tu uma mulher desnuda nas trilhas de uma oração? Como sair de ti se és a impenetrável ausência? Não tem recurso o caminhante senão aceitar os desígnios de seus miseráveis tormentos. Retornar à sua dor não pode, nem mesmo viver sem teu amor. Como então fazer da alma um corpo? Quer a linguagem somente cair? A vida é uma celebração de enigmas, aziaga estação de presságios, uma indiferença gozosa que ilumina os desertos do aventureiro. Não há meditação sem os vãos da queda, o verme de suas ruínas. Há um corpo demasiado vazio em meus braços. Uma ameaça fatal do silêncio que atinge a altura de meu ser. O caminhante é o hóspede do infortúnio. Onde os emissários? Onde os despojos das vítimas da linguagem? Quais as parcelas inomináveis da majestosa dor do caminhante em sua aventura pelo frondoso abismo da morte de sua querida Lozna? Não sonhei com a beleza flamejante, com uma face de lamentos ou a interrupção das vertigens. Uma vez mais os belos papiros de tua devoção. Como fazer de ti a perfeita ausência? O amor não é triunfante, nem há oferenda possível ante sua ruína. Como fazer das novas formas do assombro a casa do peregrino? Quais as verdadeiras páginas da invenção? Tudo é movediço no desejo.

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Não há perfeição possível no gozo. Como fazer um amor retornar à sua tenda na terra? Eis uma senda de inquietudes, abertas as portas de toda incerteza. É teu corpo, Lozna? Tua ruína severa, o romance que busco entre as paredes intangíveis da fatalidade? Não há prodígio no sangue. Os vestígios do tempo não podem mais com a melancolia e o sepultamento do desejo. Não podem conter os poemas somente os indícios das cicatrizes. Ante os rabiscos da agonia torna a tempestade suas proporções saudáveis. O que é a catástrofe? A peregrinação de Barbus sob os arcos do sepulcro de seu amor? Devo escrever um livro tão-somente movido pela falha plena desse amor? Pelo sangue anônimo da escritura? Os danos e sua vastidão crematória fazem da palavra um demônio substantivo. Tudo é real em seu delírio, em suas formas proverbiais. Estamos na mesma ruína de adjetivos, um trâmite idêntico de corroídos vocábulos. Sofrem o amor e o poema de uma mesma falsificação de sua folhagem: por onde irá o sangue de sua confessa violência? Ao descerrar a cortina açoitada pelas luzes em sua festa de suores e proezas verbais? Recordo uns versos escritos ao lado de Lozna: meu coração ficará em tuas mãos como um poema esgotado por suas imagens. Quem haverá de lê-los como uma peça de riscos de seu tempo? Acaso é mera questão de desvios? Uma vez mais a oração diante da porta do ignoto. O que se passa, meu amor, é o triunfo branco do desconhecido, as serpentes do tinteiro, os nomes do inferno e as profecias esgotadas em seus esmaltes cruéis: tudo é um regresso

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de funerais. As escavações do verbo original, a nobreza de um corpo que deu origem a tudo e logo perdeu-se nas sinuosidades de seus dons. Como sair dos sacrifícios da fecundidade? Como superaram a morte os deuses, os espelhos, a paisagem? Uns filhos foram enviados aos arquivos do fogo, os bastardos da beleza, os epônimos da glória. A destruição do mito é o tormento da verdade, mensageiro divino, ante a influência sacerdotal do que a letra encomendara ao corpo. Não há lenda aprazível, a eternidade é a lei. É inegável certa semelhança do peregrino com os perfis das sombras a caminho da escura memória de uma tragédia do corpo. Sua dor é a poderosa chama que move o mundo. Não foram em vão as outras mortes e os versos que reinaram no silêncio úmido das tumbas. A queda do amor é o sobressalto da matéria. 37.

Meu corpo mascando o teu, seu pasto, uma criação de pernas despertas. Relembro teus rabiscos no cenário transgredido de minha pele: a fragilidade dos equilíbrios morais tem sido o tema preferido dos poetas em sua tarefa maldita de limpar os ossos destroçados da própria humanidade. Tumultuosa vaidade? Por toda a noite a canção atiça vozes: nada nos pertence, meu querido. As palavras de Lozna saíam de seus lábios com uma precisão para mim desconhecida. Não é esta uma técnica aprendida nas oficinas poéticas, nesses cursos de suores sublimados. Teu corpo é uma trégua do inferno. Uma mulher com suas carnes poderosas e sorridentes, uma ronda pelos manuscritos enfebrecidos do gozo. Quando haveremos de alcançar,

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no entanto, uma expressão que não seja dolorosa? Respiras o estremecimento da linguagem, os estragos do tempo na memória delicada e desnuda dos abraços. O amor é muito mais que seu alfabeto. Nele um sistema de quedas contempla a multiplicação dos vazios, a mecânica demoníaca dos verbos e os pronomes coléricos do orgasmo. Durante toda a noite o poeta amavelmente sonha com sua desolação. Corpos e corpos inesgotáveis em seus danos, por entre viciadas metáforas de escombros e obras possuídas pela imortal hipocrisia. Oh perduráveis letras arrancadas de um arbusto de tua pele, úmidas ainda em sua descarga de enigmas, confluem tranqüilas até a escuridão possível que especula a poesia. Aonde vamos? Que sentido há entre ruínas? Que significa viver sem tocar teu corpo? Não posso te oferecer ao vazio enfurecido da dor. Não posso, Lozna, com os calígrafos de tua ausência. Tudo no amor é uma destruição de sua própria linguagem, um tipo de sangradura gramatical que escreve a tensão dos bosques e a perfeição dos processos finais de tuas coxas. Nada no amor [esta noite] é como um florescimento de espelhos nem a elegante harmonia de uns tantos devaneios. Teu corpo é o último crime possível. Acaso é tua morte: Inumerável: a primavera do amor? 38.

Um dos fragmentos de Heráclito: as maiores mortes alcançam as maiores sortes. Quem somos, no

momento em que esgotamos nossa humanidade? Morremos pela beleza? Elege o amor sua própria pena? Barbus acreditou ver em seu coração uma descida até as parábolas fugidias da paixão. Quem poderia indicar-lhe cada minuto de sua brutal fragilidade?

Vi todo o mistério da alma. Andávamos pelas ruas e este homem luminoso e meu, entranhado dos versos de Artaud – a vida sem limites persiste não obstante em ser – preparava com buliçoso rigor cada aventura de nossos dias.

Meu corpo e o seu deslizavam pelos ramos do tempo, suas criaturas de fogo dentro de mim. Ríamos

das novas versões da dor, do nada. Meu amor me dizia: o sofrimento: Inumerável: tem uma pele muito fina. Onde me vês? Atenta que vou estar aqui em todos os goles de nossa existência.

Barbus foi um homem embriagado pela invencibilidade. Por incontáveis vezes éramos os amantes submarinos dos versos de Murilo Mendes. Em seus escritos e beijos toda a miséria do mundo

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decaía. Meu amor e o estrondo da doçura. Porém o que fazer hoje com os despojos da memória? Sempre dirão os amantes desgarrados: não

tivemos tempo para chamar a atenção dos vazios infernais que rondaram nossa intimidade. Agora, há umas palavras de Cesare Pavese que iluminam as entranhas do inferno: verás a morte e terá teus olhos. Pelas noites de inquietude e oferendas carnais Barbus me dizia todo o poema.

Onde vamos? Pela mistura do sangue, pelas vísceras do ar, o que será dos amantes que fomos? Nossas desordens amorosas ilustradas pelos vícios, pelo gozo doloroso dos temores. Tudo na imortalidade, meu querido, é sarcástico.

São banais os estudos da vertigem. E o que será do amor, se não pode ficar entre nós, entre nossa

carne compartilhada? A linguagem putrefacta da memória de suas velhas imagens. Que podem escrever os poetas acerca do desespero fatal das palavras em liberdade? É vergonhoso o serviço que presta o homem a seu próprio abismo. Os infernos arrastam a si mesmos com calcinado rigor.

Que dirão os poetas? Com que indignada inteligência encerrar a aventura da mediocridade? Por quais novas páginas andará a máquina de fazer excessos e tornar possível as relações improváveis? A morta sou eu. Por isto estou nos talhos do vazio.

E estou também com Gonzalo Rojas: Deus não me serve. Não sou o espelho de ninguém, nem

prestígio de sombras ou a pureza dos vãos. Não posso ser, Barbus, teu ideograma preferível da morte. Que podem os poetas contra a velocidade de nossa inércia? Que temos entre as mãos, senão umas miseráveis elegias? O homem chora, bem no centro de sua perfeita agonia.

É um negócio de corpos e soluços, vícios e tumbas. Não é uma questão de justiça. Dorme, meu querido. A morta sou eu.

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III. OUTRAS VOZES Misteriosa árvore da vastidão nosso amor Não há vertigem desabitada em suas escrituras nem haverá revelação sem o frescor da renúncia O amor é uma partilha que acaricia os corpos em sua perplexidade de esplendores uma cidade desnuda de regressos um sopro das cicatrizes da palavra O amor [nosso] não é semelhante à matéria radiante de sua caligrafia de transparências sequer ao ruído da letra na fidelidade prefigurada pelo silêncio e o tropel inumerável de seus alfarrábios sequer ao sacramento das disciplinas do rapto e o marco inatingível da linguagem e seus enigmas e volutas que nada ocultam Este livro não é um reflexo venturoso do olhar [meu] nem o regresso de um parêntese a outro no desamparo do mundo Tudo em nós foi firmando seus sentidos em uma rotação fumegante de intempéries e sua obscura crônica de nostalgias Somente os destroços desvelam a noite inesquecível Não é um desenho injusto dos tormentos e suas seduções Não se trata de dizer: a poesia é uma cisão de mananciais Passamos por tudo, na folhagem de nosso amor – curva dos acidentes – brasas estranhas de umas canções – seus frutos em chamas – bosque queimante – chaga estridente Não há tempo para a poesia recolher todas as dores Por que cantar então a morte do amor? O mundo cai das horas, as coisas mudaram de lugar como os móveis do espírito, uma pedra aberta

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é a um só tempo o tempo de gozar e sofrer, os heróis caídos do muro e suas cicatrizes de diamantes, a vastidão do inferno em uns olhos que simplesmente recolhem as configurações da manhã, os meteoros do sonho Qual é a matéria real do humano? Qual a forma dos vermes da linguagem? Os poetas falam de vigília e sonho e alquimia e liberdade e uma queda seca tem celebrado seus nascimentos e naufrágios Não há provas do amor: tudo é risível nos argumentos

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