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1 OS MODOS DE PERCEPÇÃO DA ARTE E DA CIÊNCIA E AS POSSÍVEIS LEITURAS DO MUNDO NO MUSEU DO IMAGINÁRIO Marília Papaleo Fichtner 1 Na infância, todos nós brincamos de fazer coleções: coleções de tampinhas, figurinhas, pedras, conchas, bichinhos, santinhos, carrinhos, entre outras. Fazer uma coleção significa que a mente está tentando inserir um objeto dentro de uma série. Assim, quando colecionamos borboletas, uma borboleta passa a pertencer à família ou classe de todas as borboletas. Quem faz isso está criando categorias lógicas para ordenar o mundo. A idéia de ordenar o mundo do ponto de vista da ciência teve uma origem, uma gênese: os herbários criados pelos europeus, a partir do século XVII, tendo por inspiração a natureza do Brasil. Ana Maria Belluzzo (1999), em O Brasil dos viajantes, destaca o quanto a curiosidade de formar coleções propiciou o nascimento da história natural como a ciência da ordem. O modelo de pensamento criado pela classificação na botânica, no século XVIII, serviu, inclusive, como paradigma para a ordenação do mundo. Como na cultura é possível acumular e transmitir conhecimento, hoje, até as crianças sabem colocar borboletas e plantas em suas respectivas categorias lógicas. E isso torna o mundo um lugar compreensível porque cada coisa ocupa o seu lugar como é o caso das borboletas na pintura abaixo: 1 Psicóloga. Doutora em Teoria da Literatura. Professora substituta da disciplina “Leitura e Literaura 0 a 6 anos” e professora e supervisora de estágio da disciplina”Prática e Análise de Prática”, na FACED/UFRGS. Membro do GEIN – Grupo de Estudos de Educação Infantil – A leitura, a escrita e a produção narrativa auto-biográfica em sala de aula.

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OS MODOS DE PERCEPÇÃO DA ARTE E DA CIÊNCIA E AS POSSÍVEIS LEITURAS DO MUNDO NO MUSEU DO IMAGIN ÁRIO

Marília Papaleo Fichtner 1

Na infância, todos nós brincamos de fazer coleções: coleções de

tampinhas, figurinhas, pedras, conchas, bichinhos, santinhos, carrinhos, entre

outras. Fazer uma coleção significa que a mente está tentando inserir um

objeto dentro de uma série. Assim, quando colecionamos borboletas, uma

borboleta passa a pertencer à família ou classe de todas as borboletas. Quem

faz isso está criando categorias lógicas para ordenar o mundo. A idéia de

ordenar o mundo do ponto de vista da ciência teve uma origem, uma gênese:

os herbários criados pelos europeus, a partir do século XVII, tendo por

inspiração a natureza do Brasil. Ana Maria Belluzzo (1999), em O Brasil dos

viajantes, destaca o quanto a curiosidade de formar coleções propiciou o

nascimento da história natural como a ciência da ordem. O modelo de

pensamento criado pela classificação na botânica, no século XVIII, serviu,

inclusive, como paradigma para a ordenação do mundo. Como na cultura é

possível acumular e transmitir conhecimento, hoje, até as crianças sabem

colocar borboletas e plantas em suas respectivas categorias lógicas. E isso

torna o mundo um lugar compreensível porque cada coisa ocupa o seu lugar

como é o caso das borboletas na pintura abaixo:

1 Psicóloga. Doutora em Teoria da Literatura. Professora substituta da disciplina “Leitura e Literaura 0 a 6 anos” e professora e supervisora de estágio da disciplina”Prática e Análise de Prática”, na FACED/UFRGS. Membro do GEIN – Grupo de Estudos de Educação Infantil – A leitura, a escrita e a produção narrativa auto-biográfica em sala de aula.

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Fonte: O Brasil dos viajantes, Ana Maria Belluzzo (1999). Um lugar no Universo, p.30. Quadro do naturalista inglês Henry Walter Bates, Batterflies, realizado no século XIX. O perfil de um taxonomista revela também os prazeres da mente, pois ordenar os objetos do mundo em um pequeno cosmos gratifica a inteligência e já pode ser considerado prazer estético.

Porém, nem sempre percebemos as borboletas como seres que

pertencem à família das borboletas. Conforme a cor ou a luminosidade, elas

podem virar bruxas. Aí a idéia ou conceito de borboleta é destituído do atributo

de categoria lógica e volta a habitar o reino da fantasia e do imaginário infantil

retratado nos contos de fadas e nas histórias de Monteiro lobato. Por isso, um

museu deve ser um lugar em que o visitante encontre fantasia e realidade, pois

a inteligência organiza o mundo organizando-se a si mesma. E, neste sentido,

o intelecto é apenas um setor ou segmento da imaginação.

O importante, entretanto, é distinguir o seguinte aspecto: quando alguém

olha uma borboleta e, mesmo sem pensar, a insere na família das borboletas

esse alguém está usando o olho que pensa e reflete. Logo, esta pessoa esta

fazendo valer em seu sistema de orientação e definição do real o modo de

percepção da ciência. Agora, quando uma pessoa vê uma borboleta e,

subitamente, a borboleta se transforma em uma bruxa, esta pessoa está

fazendo valer o modo de percepção da arte. E o que está sendo dramatizado

em sua mente é o confronto com um mundo mágico e encantado e esta

transformação dá prazer, o chamado prazer estético. A mente se pergunta com

alegria: Isto é uma borboleta ou uma bruxa? Isto é um coelho ou um pato?

Brincar com a instabilidade das formas e tomar uma decisão, mesmo que

provisória, nos dá alegria porque nos sentimos autores, criadores de algo,

criadores do mundo, mesmo que o mundo esteja representado nas miniaturas

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do brinquedo infantil. Esta é a alegria que podemos observar no jogo da

criança que explora, durante toda a infância, a transformação do objeto.

Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 35). Frente a essa imagem, a pergunta que a mente se faz é a seguinte: Isto é um coelho ou um pato?

Por serem um lugar para colocar o mundo em ordem – tal como os

armários e gavetas de nossas casas –, os museus guardam a nossa memória

através de documentos e registros, chamados, na cultura letrada, de fontes

primárias. Antes de existirem museus, bibliotecas e fontes primárias, o homem

aprendeu a guardar a memória contando histórias. A figura do contador de

histórias é de certa forma a primeira biblioteca ou museu ambulante que o

homem inventou. Então, vou aproveitar a ocasião e contar uma história para

vocês guardarem uma coisa na memória. Que coisa é essa? Eu quero que

vocês guardem na memória que tipo de processo mental ocorre na mente

quando se armazena informação.

Um viajante vai a uma Terra Desconhecida e vê que lá existe um

elefante e um gato, quanto ele volta pra casa, ele conta que viu um elefato. Os

pesquisadores, cientistas e artistas, ouvem o relato do viajante, desenham,

pintam e bordam as coisas da imaginação e cria-se o senso comum de que na

Terra Desconhecida habita uma estranha criatura chamada Elefato.

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ELEFATO

Fonte: Livro da com-fusão. Ilan Brenman; Fé (2004).

Assim é a mente humana, ela inventa coisas que inventam outras

coisas. Não se pode subestimar o papel desempenhado pelas primeiras

histórias que ouvimos e pelas primeiras imagens divulgadas em livros (hoje

também a televisão e o computador) na formação das impressões, idéias e

visões que formamos da paisagem, da natureza e do homem enquanto

imagem mental. Vamos inventar mais imagens: o que surge da mistura entre

demônio e índio? Dá um demíndio.

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DEMÔNIO + ÍNDIO = DEMÍNDIO

Fonte: O Brasil dos viajantes. Ana Maria Moraes Belluzzo (1999). O Imaginário e o Desconhecido (p. 25). Detalhe do quadro, anônimo,O Inferno, pintado na primeira metade do século XVI. Na versão apresentada o Inferno é comandado pelo índio demonizado.

Segundo Belluzzo, este quadro registra o esforço do conquistador

português de inserir um novo ser no imaginário da cultura cristã. O jogo

estabelecido pela representação tira proveito da correlação direta entre pecado

carnal e castigo corporal. O quadro apresenta o demônio com os atributos do

índio, fazendo com que o índio passe a ter os atributos do demônio. Esta

analogia revela o teor fictício deste retrato. Logo, o pintor deste quadro não

está preocupado em conhecer o índio e sua cultura, mas, distorcendo a

compreensão, o pintor apenas expressa o que o índio significa para a cultura

cristã ao confrontar os valores de ambas.

A força ontológica do imaginário, ou seja, sua capacidade de inserir os

seres em uma ordem maior, a do universo, nos escapa, pois, hoje, o

pensamento científico (e a lógica em sentido amplo) já nos são familiares; por

isso mesmo, parece que sempre é mais difícil penetrarmos no âmbito da

palavra imagem. Assim, antes de tudo gostaria de esclarecer em que contexto

estou usando o termo imagem, tendo em vista que é a imagem que faz com

que nossas mentes criem elefatos e demíndios. Para tanto, cito o estudo de

Ana Maria Belluzzo, O Brasil dos viajantes, que aborda essa questão:

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Em que consiste a dimensão vaga do imaginário? O estudo da imagem apreende, das obras, o seu caráter de representação mental e não de representação do mundo. A dimensão do imaginário não é considerada como uma ocorrência exclusiva do discurso artístico. Todos os documentos apresentam ao historiador a sua cota de imaginário, à medida que este dirige sua atenção para o teor simbólico neles contidos e não somente para o que reproduzem. A dimensão do imaginário, mais orientada para o mundo interior do que exterior, poetiza mais do que aponta. A obra artística constitui um campo especialmente fértil para esse tipo de especulação. (p. 14)

Mais uma vez, é necessário deixar bem claro que quando falo em

imagem associada à memória, penso na imagem como uma representação

mental e, nesse caso, uma representação mental fugidia que não está sujeita à

verificação empírica, a nenhum dado da experiência que envolva os sentidos, a

percepção, sempre estando sujeita a se desligar do contexto original e passar a

gravitar livremente, podendo, em algum momento, vir a se cristalizar sob forma

de evidência sensível. Laura de Mello e Souza (1986), em O diabo e a Terra de

Santa Cruz, nos dá um exemplo que esclarece essa questão:

Colombo acreditava em monstros, leitor da Imago Mundi do cardeal Dáilly. Este falava de povos “cujos costumes decaíram da natureza humana”, de “homens selvagens antropófagos, com feição disforme e horrível, nas duas regiões extremas da Terra [...]: trata-se de seres acerca dos quais é difícil precisar se são homens ou bestas”. Colombo pensava que, mais para o interior da terra que descobrira, depararia com homens de um olho só, e outros com focinho de cachorro. Em 8 de janeiro de 1492, viu três sereias pularem fora do mar, decepcionando-se com seu rosto: não eram tão belas como pensara. Na direção do poete, escrevia a Santágel, as pessoas nasciam com rabo. (p. 50)

As idéias de Colombo relatadas acima, exemplificam de forma magistral

em que sentido e como a imagem se constitui em representação mental

(individual) que acaba se cristalizando em evidência sensível. No caso de

Colombo, essa evidência sensível se cristaliza porque, como aponta Laura de

Mello e Souza, ele vivia “numa época em que ouvir valia mais do que ver, os

olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via era filtrado

pelos relatos de viagem, de terras longínquas, de homens monstruosos que

habitavam os confins do mundo conhecido” (p. 22). Tudo faz crer que Colombo

ouvira relatos da Odisséia de Homero.

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Ao ver sereias no mar, Colombo criou, a seu modo, um elefato, ou seja,

ele misturou o peixe real com a imagem da sereia descrita na literatura dos

tempos de Homero. Então, quando alguém diz que viu um elefato, esse alguém

está usando uma estratégia cognitiva que o homem inventou pra guardar a

imagem das coisas na memória, trazendo à presença, ou seja, trazendo ao

presente coisas que não existem mais ou simplesmente pararam de acontecer,

de durar. Por exemplo, quando o ser humano começa a enterrar os mortos esta

é uma forma de demonstrar a presença ou permanência do outro através da

imagem mental ou memória. Este “saber” define o vínculo com a vida e com os

objetos, gerando, inclusive, no homem, a necessidade de cuidar das coisas

que existem ou existiram no passado e, portanto, se manifestam no presente

através da memória.

Logo, guardar informações na memória não é importante apenas para

responder as perguntas da prova ou para marcar a questão certa no vestibular.

Historicamente, a memória existe para que o homem crie estratégias de

sobrevivência. As estratégias ou ferramentas mais interessantes que o homem

inventou foram a leitura, a fala e a escrita. A linguagem permite a comunicação

do pensamento. Voltando à memória do elefato, observem que esta forma de

guardar informação é esquemática e funciona quase como uma caricatura.

Como nos desenhos infantis que trabalham com a simplificação da forma,

Picasso, por exemplo, consegue desenhar um touro em um só traço.

À luz da razão essa forma de ver as coisas pode parecer absurda e

distorcida. Todavia, queiramos ou não, só existe o que podemos guardar na

memória e transmitir às outras gerações. Quando o ser humano consegue isso

ele cria a cultura. Dentro da cultura, o cientista estuda, por exemplo, o elefato e

passa a ser um especialista em elefatos. Isso significa que só ele entende

deste assunto, mais ninguém. Com o desenho ou o molde do elefato em sua

mente, ele volta ao habitat desta estranha criatura e aprende agora a

reconhecer e a descriminar da imagem do elefato, a singela existência de um

elefante e de um gato. Surpreendido, o cientista escreve e divulga que elefatos

não existem são apenas seres fictícios, frutos da imaginação prodigiosa do

homem. Quando alguém consegue esse intento – ou seja, descrever o fato em

si, o fato de que na Terra Desconhecida não existem elefatos e sim apenas

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elefantes e gatos – esse alguém transita do modo de percepção da arte

(vinculado à imagem) para o modo de percepção da ciência (que produz

conhecimento).

Todavia, é importante destacar que a mente faz essa com-fusão –

entendida como a fusão ou mistura das coisas entre si – porque o tempo passa

e, ao longo de milênios, o ser humano precisa se lembrar de que existe (ou

existiu) uma infinidade de outros seres e outras coisas no mundo. Se alguém

consegue guardar na memória um elefato ou desenhar um touro em um só

traço, esse alguém está produzindo um pensamento criador. Então, quando

valorizamos a cooperação entre os modos de percepção da arte e da ciência,

estamos valorizando ou falando, na verdade, sobre a origem do pensamento

criador. E este pensamento fica registrado no livro da com-fusão.

Agora, vamos brincar com o ponto de vista da ciência. Vamos

desencantar a lua e percebê-la com objetividade. Em A descoberta da sombra,

de Platão a Galileu, a história de um enigma que fascina a humanidade,

Roberto Casati (2001) descreve a primeira vez em que observou um eclipse

total da Lua pouco depois da meia noite em Paris. Segundo ele, a Lua estava

bem enquadrada pela janela (ele morava em um arranha-céu) e brilhava

magnífica, apesar da poluição visual da ville lumière. Baseado na descrição

científica do eclipse, Casati achava que o aspecto interessante deste fenômeno

fosse o lento deslizar da sombra da Terra sobre a Lua. Sua expectativa era a

de acompanhar o traço no céu de um feixe de luz negra projetado por um farol

negativo. Qual não foi o seu susto, porém, quando, com olhos de quem

descobre pela primeira vez um objeto, viu a Lua como ela verdadeiramente é:

A Lua é um pedregulho tenebroso, bastante grande, que está a certa distância acima da minha cabeça e estranhamente não cai em cima de mim. Naturalmente, eu conhecia as leis que a mantém firme em sua órbita, mas meus olhos, não acostumados a ver pedras suspensas no céu, não queriam ouvir a voz da razão. Como de resto, havia escapado dos meus olhos a idéia, aliás velha conhecida minha, de que a Lua é uma grande pedra escura, pois de costume a luz diáfana da superfície lunar regala o olhar com a ilusão de uma lanterna delicada e leve. (p. 8)

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Casati relata que a experiência de observar o eclipse serve não só para

mudar nossa maneira de pensar a Lua – expelindo-a definitivamente do

universo mitopoético para confiná-la apenas no mundo mineral – mas,

sobretudo, para nos dar a dimensão da natureza do intelecto em sua tarefa de

corrigir percepções enganosas. Através da brincadeira de observar o eclipse

em um confortável arranha-céu de Paris, Casati faz referência ao jogo de

ilusões e aparências com que nos deixamos envolver no pretenso

conhecimento dos objetos que nos cercam.

Como no relato de Casati, na maioria das vezes, agimos com certas

suposições sobre a natureza dos objetos tendo em vista informações

perceptuais. Então, se vemos alguém se afastando, a imagem na retina se

torna menor, e o espectador, tomado pelo jogo das ilusões e aparências do

real, vê a pessoa ficando menor. O pensamento lógico, todavia, nos informa

que a pessoa continua do mesmo tamanho: ela está apenas se afastando. Só

consegue fazer isso quem construiu a noção de constância do tamanho de um

objeto, mesmo que a imagem na retina tenha mudado de escala. Existem

outras constâncias que lidam com a capacidade de reconhecer que a forma

dos objetos é a mesma, ainda que o espectador o esteja olhando de ângulos

diferentes. A capacidade lógica de corrigir distorções perceptivas com que os

objetos são enquadrados na mente é chamada de constância da forma. O

mesmo tipo de constância vale para as cores, para a luz, etc. As várias

constâncias juntas determinam o conceito mais amplo de constância do objeto.

Tal constância envolve o reconhecimento de que os objetos continuam os

mesmos embora se nos afigurem outros através de aparências e estados

enganosos como Casati relata que percebemos a Lua no cotidiano. O mundo

nos escapa com suas formas aparentes, mutáveis e enganosas. Aliás, a figura

da página 3 é um coelho ou um pato?

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Ernest Gombrich (1987) destaca que, “sabedouros” das instabilidades

dos objetos que crescem ou diminuem, se aproximam ou se afastam a revelia

de nossas vontades, os seres tiraram proveito do disfarce e da máscara para a

sobrevivência da espécie. A seguir veremos uma mariposa-folha disfarçada de

folha, a mariposa-esfinge, por sua vez, pintou uma máscara horrenda em suas

asas, criando a ilusão, frente ao predador, da presença do rosto de um animal

feroz e enorme. Por fim, a máscara humana denota o quanto o artefato

chamado máscara adquire valor estético na decoração do alojamento tribal na

Nova Guiné. A razão nasce quando o pensamento “corrige” as percepções

enganosas, apresentando à mente a aparência de um mundo estável. Ou seja,

o intelecto decide que a imagem é um pato e nunca mais ela será lida como um

coelho, criando, desta forma, a noção de um mundo estável, em que as coisas

se comportam de forma previsível. O dono da mente que faz isso, já pode ser

considerado um pequeno cientista. Agora, quando a cabeça que comanda essa

mente sente imenso prazer em brincar e criar o jogo das ilusões (isto é um

coelho ou um pato?), certamente, essa cabeça é a de um artista. Lidar com as

aparências e estados enganosos do real, antes de tudo, faz parte das

estratégias de sobrevivência de todos os seres no planeta e, portanto, possui

um sentido vital. Observemos as imagens que seguem:

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Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 25). Mariposa disfarçada de folha = MAFOLHA

Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 26). Mariposa com cara de mau = MARIMAU

Fonte: La imagen y el ojo. E.H. Gombrich (1987). El descubrimiento visual por el arte, (p. 27). Máscara decorativa = prazer estético

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O mistério da transformação dos objetos une antropologia, arte e ciência

por diferentes motivos. O artista se compraz com o jogo com ilusão; o cientista

quer saber como as coisas são e funcionam, promovendo, à revelia de nossos

desejos, o conhecimento. O conhecimento gera desilusão que, enfim, provoca

o desencantamento do mundo. Logo, o jogo com a ilusão-desilusão é

fundamental para a descoberta do ambiente e a orientação dos seres no tempo

e no espaço. Nessa perspectiva, a vida (o estar vivo) assume o viés de um

jogo, cujo ritual envolve os caprichos e surpresas de um baile à fantasia. Como

a mariposa-folha ou a mariposa-esfinge, o homem também tem que saber

dançar neste baile de máscaras. O homem descobriu um jeito muito especial

de lidar com a instabilidade dos objetos: ele transformou o que surpreende e

assusta em jogo e prazer estético. Vejamos as imagens que seguem:

Fonte: Registros do trabalho da arte-terapeuta Marise Zimmerman.

As fotos acima nos permitem indagar em um sentido concreto: Qual é o

tamanho do mundo para o homenzinho? E para o gigante? Mas alto lá, a

definição de o que é um gigante ou um anão depende de como vemos,

interpretamos e posicionamos o corpo em relação às coisas. O boneco em sua

escala absoluta é a mesmo, não varia de tamanho. O que se transforma é o

contexto ou a figura-fundo em que ele é percebido, fato que altera a percepção

do próprio boneco. O mesmo raciocínio é válido para a bola pequena dentro da

caixa grande que pode representar a grandeza do universo ou a pequenez do

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planeta Terra e de seus habitantes em um universo que, como propõe William

Shakespeare, flutua ao sabor dos deuses em uma casca de noz.

Na primeira caixa, a grande, o boneco pode ser percebido como um

anão ou, ao contrário, pode ser apresentado como Ulisses, um herói que

desafia as forças do destino em um mundo vasto e ilimitado como na epopéia.

Na terceira caixa, a pequena, o boneco pode ser visto como um gigante ou

como alguém que se sente apertado em um mundo opressivo e pequeno –

igual a como se sente um adolescente quando começa a questionar os pais e a

se rebelar contra a família. Também podemos criar com a linguagem novas

realidades. Podemos dizer que na caixa grande mora o menor gigante do

mundo e que, na pequena, habita o maior anão do mundo. Tudo depende de

como vemos, nos posicionamos e interpretamos as coisas. Nesse sentido, a

linguagem transfigura a natureza dos objetos, criando, redefinindo e nomeando

o real. Ou seja, a linguagem também cria o real, pois ela é uma forma de

operar sobre o mundo.

Gombrich, na seção El descubrimiento visual por el arte, argumenta que

a realidade nos mostra uma diversidade de imagens que confundem e

atordoam. Para combater tal desorientação criada pela diversidade do real, o

homem inventou o símbolo e com ele a arte. Nesta perspectiva, a arte

apresenta formas esquemáticas que nos permitem recordar e reconhecer algo

familiar, estável. O discurso artístico permite que o observador/leitor crie mapas

mentais e simbólicos e, a partir deles, estime na língua das imagens e do afeto

o tamanho das coisas que nos assustam e das coisas que nos fascinam, entre

as quais está a perplexidade com a grandeza do universo e, dentro dele, não

raro, com a pequenez de nosso mundo interior. Antes de pensarmos com

lógica, as primeiras idéias ou imagens que fazemos das coisas ficam

registradas em nossas mentes numa espécie de grande livro da com-fusão. A

este livro pertence, por exemplo, a história de O pequeno príncipe. Esta história

apresenta a riqueza do mundo interior através do desenho infantil, entendido

como as imagens mentais que fazemos do mundo.

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Até os seis anos, o pequeno príncipe gostava de desenhar e com

orgulho mostrava seus trabalhos aos adultos que, por sua vez, não

compreendiam o que ele havia feito. Um dos momentos mais encantadores da

narrativa é a perplexidade do narrador-criança ao perceber que os adultos

pensavam que o desenho mais importante de sua vida – uma jibóia comendo

um elefante – fosse apenas um chapéu. Inconformado com a não

compreensão dos adultos, nosso herói desenhou o elefante dentro da cobra

em transparência.

Para o adulto, o desenho representa um chapéu (“Isto é um chapéu/Por

que eu ia ter medo de um chapéu?”); para o Pequeno Príncipe o desenho é

uma jibóia engolindo um elefante. Di Leo (1985) observa que o realismo

intelectual é marcado pela apresentação dos objetos a partir de um modelo

interno e não pelo modo como o objeto é visto realmente. A respeito das coisas

do mundo, a criança desenha o que sabe (ou deseja) que deveria estar ali. Os

desenhos infantis mostram as pessoas vistas através de paredes e de todos os

tipos de transparências. Os desenhos infantis revelam uma visão subjetiva do

mundo, pautada por uma vívida imaginação, cheia de fantasia, curiosidade e

criatividade.

O Pequeno Príncipe seria uma criança mais feliz e até, talvez, um

pequeno cientista, se, frente a suas inquietações existenciais, viajasse na

esteira do pintor naturalista Eckout que veio ao Brasil, no século XVII, com a

missão holandesa comandada por Mauricio de Nassau. Enquanto o pequeno

príncipe usa a transparência para revelar que seu desenho não é um chapéu,

mas uma cobra engolindo um elefante; Eckhout corta o invólucro de alguns

frutos com a intenção de lhes revelar o interior. Como Bobi-pai e Bobi-filho,

ambos lançam mão da transparência: o menino para dar asas à imaginação; o

artista para pintar a natureza, buscando também descrever o objeto. As

pinturas de Eckhout retratam os alimentos e por isso apresentam ao europeu a

fecundidade das terras brasileiras, criando em seu gesto descritivo uma nova

visualidade para a compreensão do mundo. No dizer de Ana Belluzzo, essa

nova visualidade – ao contrário da aparição de monstros e bestas vagando

pelo Novo Mundo, como foi o caso das imagens que Cristóvão Colombo viu na

América tendo em mente as narrativas de Homero –, surge, na pintura de

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Eckhout, da informação dos sentidos e da observação criteriosa e direta do

objeto.

Quando olhamos alguma coisa com os olhos da imaginação a mente

registra ou anota no nosso cérebro a realidade observada e mais a realidade

inventada. Di Leo (1985) observa que o realismo intelectual é marcado pela

apresentação dos objetos a partir de um modelo interno e não pelo modo como

o objeto é visto realmente. A respeito das coisas do mundo, a criança desenha

o que sabe (ou deseja) que deveria estar ali. Os desenhos infantis mostram as

pessoas vistas através de paredes e de todos os tipos de transparências. Os

desenhos infantis revelam uma visão subjetiva do mundo, pautada por uma

vívida imaginação, cheia de fantasia, curiosidade e criatividade. É nesse

domínio que surge a imagem como modo de figurar o real através da arte, este

modo, mais poetisa do que aponta, sendo, entretanto, a fonte de todo o

pensamento criador, na arte ou na ciência.

Sempre que o ser humano se vê frente ao impensável, ao desconhecido,

a mente produz analogias e metáforas em que predominam conteúdos poéticos

e fictícios que ocupam o lugar da pretensa observação e descrição do real. Por

quê? Para termos a ilusão de que compreendemos o que está ocorrendo a

nossa volta. Com isso, criamos outra ilusão: a de que o mundo é estável e

permite que possamos controlar as coisas que nos assustam, tornando-as

amigáveis. Assim, a força do imaginário configura antes de tudo as imagens

mentais daquele que imagina. E aquele que imagina coloca no outro, nos

objetos e na paisagem, o que teme em si mesmo. Logo, as produções

imaginárias dão pouco crédito às observações descritivas do real, pois

apresentam como no desenho do Pequeno Príncipe – uma cobra engolindo um

elefante – antes que a visão realista do objeto o modelo interno ou imagem

mental do pintor.

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Fonte: O Brasil dos viajantes, Ana Maria Belluzzo (1999). À direita, detalhe do quadro, anônimo, O Inferno, pintado, na primeira metade do século XVI, em Portugal. Na pintura do demônio transformado em índio (p. 25), predomina o uso da imagem, sobressai, portanto, o olho que imagina. À esquerda, detalhe da natureza-morta pintada por Albert Eckhout em sua vinda ao Brasil com a missão holandesa comandada por Mauricio de Nassau no século XVII. A pintura que apresenta a inflorescência de palmeiras e a cesta de especiarias (p. 116), nela predomina o olhar

Não menos fictícias do que o demônio transformado em índio ou os

episódios da Odisséia que Colombo esperava encontrar no Novo Mundo são

as imagens da natureza e dos animais que revelam o país exótico

“documentado” por Frei André de Thevet. Segundo Belluzzo, as histórias de

viagem e os escritos sobre terras desconhecidas faziam ecoar outros textos,

assim como reaproveitavam as imagens procedentes dos relatos dos primeiros

viajantes que estiveram nas terras do Brasil. O monstruoso insinua-se até

mesmo “numa ave de bico tão grosso e comprido como o resto do corpo“ (p.

36).

Belluzzo destaca que a presença de deformidades e desvios em relação

ao padrão ideal de proporcionalidade entre as partes do corpo dos animais,

provoca a imaginação, instiga a aparição estranha aos olhos do europeu

educado pelo ideal da beleza clássica. O desconcerto da proximidade de

pedaços incongruentes “mina secretamente a linguagem”, como diria Michel

Foucault. Frente ao desconhecido, trata-se efetivamente da impossibilidade do

conhecimento. A supremacia da imagem indica em certos casos que o homem

está diante de um mundo que lhe escapa (p. 36-37).

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O aí ou aití, o nosso bicho-preguiça, é descrito por Thevet como um ser

inacreditável e nunca visto, o animal “mais disforme que se possa imaginar” –

diga-se de passagem mais disforme e assustador do que o nosso simpático

elefato, que surge da mistura de elefante com gato. Thevet conta ter gravado

do natural a imagem de “um ser do tamanho de um mono adulto, apresentando

uma barriga tão grande que chega quase a se arrastar no chão, a cabeça

lembra a de uma criança, como também a cara” (p. 36-37).

Thevet afirma que quando preso, o bicho-preguiça suspira como uma

criança que sente dores. Seu pelo é cinzento e felpudo como o de um ursinho.

Patas compridas com quatro dedos, três com grandes unhas parecendo

grandes espinhas de carpa, com as quais trepa na árvore, onde fica mais

tempo que na terra. Quase sem pelo no cauda com três dedos de

comprimento. Ninguém jamais o viu se alimentando”. E conclui: “Vive de

vento”. Na descrição do bicho-preguiça as analogias parciais suprimem a

integridade do todo. O desconcerto da proximidade de pedaços incongruentes

“mina secretamente a linguagem”, como diria Foucault. Trata-se efetivamente

da impossibilidade do conhecimento. A supremacia da imagem indica em

certos casos que o homem está diante de um mundo que lhe escapa (p. 36-

37).

Assim, o imaginário e o desconhecido colocam o ser humano frente à

produção de analogias e metáforas em que predominam conteúdos poéticos e

fictícios frente a pretensa observação e descrição objetiva do real. A

impossibilidade de conhecimento lógico, substituída pela apreensão intuitiva do

objeto é uma das marcas dos padrões de visualidade propostos pela arte

enquanto expressão da imagem. Esta forma simbólica de ver o mundo será

desconstruída por meio das “correções” que o intelecto faz das aparências e

estados enganosos com que os seres se afiguram a percepção.

Para problematizar as questões apresentadas até aqui, podemos dizer

que a imagem, por meio das ambigüidades e analogias dramatiza à

instabilidade do real (isto é um pato ou coelho?), trazendo como memória mais

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profunda a nossa participação no universo na dimensão ontológica, ou seja, a

arte nos lembra que pertencemos a ordem de todos os seres que usam

máscaras em sua luta pela sobrevivência. A diferença do homem em relação a

outras espécies é o fato de que o homem consegue gratificar o intelecto com o

jogo das ilusões e aparências do real e isto, mesmo que na ordem da

sobrevivência, já constitui prazer estético. Por isso, a máscara pode virar um

objeto decorativo e de embelezamento do ambiente. O que diferencia o homem

do animal é que, a partir da instabilidade das formas dos objetos o homem

construiu narrativas que dão formas a sentimentos e imagens mentais. Logo, o

que se nos afigura disforme como o medo do escuro ou da sombra funciona

como matriz da imagem da bruxa das histórias infantis, dando vida e voz a

outros tantos bichos apavorantes que caracterizam, no folclore e na cultura

popular, o ciclo da angústia infantil.

Dar forma aos monstros é um jeito de criar estabilidades no mundo

interior e, nesse sentido, funciona como um proto-pensamento, um

pensamento imagético que, como o sonho, prepara o nascimento da razão. A

própria Ana Maria Belluzzo não deixa de lembrar a edição infantil dos relatos

de Hans Staden, realizada por Monteiro Lobato (2001) que se apropria do

relato [do conquistador], criando, a partir dele, uma narrativa destinada à

criança. Segundo ela, Lobato encontra “nessa história fabulosa a fantasia e a

realidade do Brasil” (p. 14).

Segundo Ana Maria Belluzzo, desde os relatos de Hans Staden aos

estudos de Humboldt na primeira metade do século XIX a análise das

principais obras produzidas pelos mais importantes viajantes estrangeiros que

por aqui passaram ao longo de quatro séculos configura o modo como o

europeu olhou o Brasil. Segundo ela, o acervo destes artistas e cientistas não

apenas traz registros, mas fundamentalmente configura um “verdadeiro

panorama da formação da identidade brasileira” (p. 11) Este registro é

composto por gravuras, mapas, pinturas, desenhos, tapeçarias e outros

recursos plásticos, que, em conjunto, formam a visão de um país. Segundo

Belluzzo, o exame desse material permite conhecer o caráter imaginário das

primeiras referências visuais sobre o Brasil, “passando pelo esforço do

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conhecimento científico da natureza, e chegando à visão romântica das

paisagens brasileiras do século XIX”. A historiadora destaca que “o olhar dos

viajantes espelha também a condição de nos vermos pelos olhos deles”.

Segundo ela, “as imagens do país de formação colonial européia são

introjetadas como imagens do Brasil, contribuindo para formar nossa dimensão

inconsciente” (p. 13). Ao incluir as aventuras de Hans Staden no projeto

editorial dirigido às crianças, não é outro o objetivo de Lobato do que o de

desconstruir a identidade brasileira forjada pelo olhar do conquistador.

Inserindo a tradição oral dos contadores de história na cultura letrada, Dona

Benta reconta a Pedrinho, Emília e ao Visconde de Sabugosa a história

fundadora do imaginário de nossa cultura, abrindo espaço ao diálogo e dúvidas

da criança.

Na ilustração, ao final do livro, sentada comodamente em uma cadeira

de balanço, vemos Dona Benta, que faz as vezes do velho contador de

histórias, relatando a narrativa fundadora das imagens e representações que o

europeu fez do Brasil e que por nós foram interiorizadas em uma espécie

substrato imaginário ou inconsciente (sócio)cultural. E claro, como fomos vistos

como bichos apavorantes e índios demonizados, a suave voz do narrador traz

consolo e aconchego, possibilitando ao leitor a transformação do objeto, a

transformação da auto-imagem. Por isso, porque o real nasce da possibilidade

de antes ter sido sonhado, um museu (e por que não, a sala de aula) devem

ser lugares em que o visitante ou aluno encontre fantasia e realidade, pois a

inteligência organiza o mundo organizando-se a si mesma. E, neste sentido, o

intelecto é apenas um setor ou segmento da imaginação.

Em síntese, para compreendermos como o homem ordena o mundo,

contando histórias e criando coleções de objetos esquisitos podemos simular a

seguinte situação a partir de objetos criados pela pedagoga Júlia Baptista.

Primeiro:

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O olho que imagina vê tudo em um só golpe de vista. Como as coisas são incongruentes entre si, pois as partes não encaixam com o todo, o olho que imagina cria objetos curiosos, cria elefatos. A seguir o olho começa a focar com mais precisão e a discriminar os objetos entre si.

Aos poucos o olho começa a reconhecer um polvo, uma borboleta e uma raia. Ele dá vida a esses seres imaginários...

O esforço de reconhecer, analisar e nomear os objetos já é uma tarefa do olho que pensa e reflete. Ele diz: Sim, isto é uma raia!

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Agora o olho que pensa e reflete pode pensar na raia fora do contexto onde ele a viu, abstraindo a situação. Ele também pode criar uma família raias.

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O olho que pensa e reflete pode isolar a borboleta de seu contexto também e ressignificar o que viu, dizendo: Isso não é uma borboleta, é só uma folha .

O olho que imagina pode entrar na discussão e dizer: não é uma borboleta sim!

Eu a vi voando pó aí!

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REFERÊNCIAS

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Objetiva, Metalivros, 1999. BRENMAN, Ilan; Fé. O livro da com-fusão. São Paulo: Brique-Book, 2004. CASSATI, Roberto. A descoberta da sombra, de Platão a Galileu, a história de um enigma que fascina a humanidade. São paulo: Companhia das Letras, 2001. DI LEO, Joseph H. A interpretação do desenho infantil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. GOMBRICH, E. H. La imagen y el ojo. Madrid: Alianza, 1987. JORGE, Ana Lúcia Cavani. O acalanto e o horror. São Paulo: Escuta, 1988. LOBATO, Monteiro. Aventuras de Hans Staden. São Paulo: Brasiliense, 2001.

ROCHA, Ruth. Odisséia. São paulo: Companhia das Letrinhas, 2000. SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2000. SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.