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11 OS TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS E AS SUAS PROBLEMÁTICAS NOS PLANOS TEÓRICO E PRÁTICO * LUÍS FELIPE SPINELLI ** Sumário: 1 – Introdução; 2 – Títulos de crédito eletrônicos: estudo dos argumentos favoráveis; 2.1 A informatização dos títulos de crédito; 2.2 Portas de entrada dos títulos de crédito eletrônicos no ordenamento jurídico pátrio; 3 – Análise crítica dos títulos de crédito eletrônicos; 3.1 Os problemas no plano teórico; 3.2 A inexistência dos títulos de crédito eletrônicos na prática comercial: o caso da duplicata virtual; 4 – Considerações finais; 5 – Referências bibliográficas. 1 I NTRODUÇÃO É cediço que o Direito Comercial, por sua própria origem e natureza, está intimamente atrelado às mudanças da estrutura econômico-social, normalmente sendo a porta de entrada para posteriores modificações em outros ramos da Ciência Jurídica 1 ; está ele, por sua própria lógica interna, * Trabalho originalmente apresentado na disciplina Direito de Informática, do Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, cursada no semestre letivo 2007/2 e ministrada pelo Professor Dr. CÉSAR VITERBO MATOS SANTOLIM, a quem agradeço pelo auxílio prestado. Agradeço, também, as sempre procedentes críticas e sugestões dos amigos Pedro Guilherme Augustin Adamy e Fabiano Menke. ** Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Especialista em Direito Empresarial pela UFRGS. Professor de Direito Societário do Centro Universitário Ritter dos Reis. Advogado em Porto Alegre/RS. 1 Sobre a origem do Direito Comercial e sua essencial natureza de acompanhamento das necessidades daqueles que desenvolvem a atividade econômica, ver ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale: introduzione e teoria dell’impresa. Terza edizione. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore S.p.A, 1962, p.1-143; no que tange às alterações atuais pelas quais passa o Direito Comercial, diante da globalização e das novas tecnologias da informação, recomendamos GALGANO, Francesco. La globalización en el espejo Del derecho. Tradución de Horacio Roitman y María de La Colina. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2005. E bem demonstrando que o

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OS TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS E AS SUAS PROBLEMÁTICAS

NOS PLANOS TEÓRICO E PRÁTICO∗∗∗∗ LUÍS FELIPE SPINELLI**

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Títulos de crédito eletrônicos: estudo dos argumentos favoráveis; 2.1 A informatização dos títulos de crédito; 2.2 Portas de entrada dos títulos de crédito eletrônicos no ordenamento jurídico pátrio; 3 – Análise crítica dos títulos de crédito eletrônicos; 3.1 Os problemas no plano teórico; 3.2 A inexistência dos títulos de crédito eletrônicos na prática comercial: o caso da duplicata virtual; 4 – Considerações finais; 5 – Referências bibliográficas.

1 – INTRODUÇÃO

É cediço que o Direito Comercial, por sua própria origem e natureza, está intimamente atrelado às mudanças da estrutura econômico-social, normalmente sendo a porta de entrada para posteriores modificações em outros ramos da Ciência Jurídica1; está ele, por sua própria lógica interna,

∗ Trabalho originalmente apresentado na disciplina Direito de Informática, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, cursada no semestre letivo 2007/2 e ministrada pelo Professor Dr. CÉSAR VITERBO MATOS SANTOLIM, a quem agradeço pelo auxílio prestado. Agradeço, também, as sempre procedentes críticas e sugestões dos amigos Pedro Guilherme Augustin Adamy e Fabiano Menke.

** Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Especialista em Direito Empresarial pela UFRGS. Professor de Direito Societário do Centro Universitário Ritter dos Reis. Advogado em Porto Alegre/RS.

1 Sobre a origem do Direito Comercial e sua essencial natureza de acompanhamento das necessidades daqueles que desenvolvem a atividade econômica, ver ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale: introduzione e teoria dell’impresa. Terza edizione. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore S.p.A, 1962, p.1-143; no que tange às alterações atuais pelas quais passa o Direito Comercial, diante da globalização e das novas tecnologias da informação, recomendamos GALGANO, Francesco. La globalización en el espejo Del derecho. Tradución de Horacio Roitman y María de La Colina. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2005. E bem demonstrando que o

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sempre atento às necessidades da economia, apresentando soluções e abrindo-se ao recebimento das mais diversas influências. Neste sentido, por óbvio que a disciplina dos títulos de crédito, tida como uma das maiores contribuições do Direito Comercial à economia moderna2, acaba por sofrer a influência dos novos tempos, como a dos recursos disponibilizados pela evolução tecnológica.

Um dos pilares da ordem econômica é o crédito, sendo imperiosa a sua circulação, considerando-se os títulos de crédito como instrumentos essenciais para tal estrutura3. E tendo em vista a primazia da finalidade de circulação da riqueza que os títulos de crédito sempre permitiram, em conjunto com a agilidade que seria viabilizada com a informática, tem-se que, intuitivamente, a possibilidade de emissão e circulação dos títulos de crédito eletrônicos vai ao encontro dos interesses empresariais; tal conjunção permitiria, sem dúvida, ganhos em eficiência. Destarte, diante do cenário que se apresenta, necessário seria, como afirma a doutrina, repensar a disciplina dos títulos de crédito, a fim de adaptá-la aos novos recursos

Direito Comercial é um fenômeno cultural e está atrelado ao desenvolvimento econômico-social de um povo, remetemos a FORGIONI, Paula A. A evolução do direito comercial: da mercancia ao mercado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

2 TULLIO ASCARELLI leciona que os títulos de crédito, a sociedade anônima e o contrato de seguro são as três maiores contribuições do Direito Comercial para a humanidade (cf. ASCARELLI, Tullio. Panorama do direito comercial. São Paulo: Saraiva e Cia., 1947, p.143); e, em outra obra, ressalta a importância dos primeiros, dizendo que foram os que mais ajudaram na formação da economia moderna (cf. ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.3: “A vida econômica moderna seria incompreensível sem a densa rêde de títulos de crédito; às invenções técnicas teriam faltado meios jurídicos para a sua adequada realização social; as relações comerciais tomariam necessàriamente outro aspecto. Graças aos títulos de crédito pôde o mundo moderno mobilizar as próprias riquezas; graças a êles o direito consegue vencer tempo e espaço, transportando, com a maior facilidade, representados nestes títulos, bem distantes e materializando no presente as possíveis riquezas futuras.”). Ver, também, BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p.7.

3 ASCARELLI, Tullio. Panorama do direito comercial. São Paulo: Saraiva e Cia., 1947, p.99-100. À p.101, anota: “(...) o característico da sua circulação deve ser frisado e constituir o real ponto de partida das pesquisas a êles relativas: os títulos de crédito, preenchendo, antes de mais nada, a função de facilitar a circulação dêle”. No mesmo sentido, leciona JOÃO EUNÁPIO BORGES: “Os títulos de crédito, geralmente considerados como a mais notável criação do direito comercial moderno, constituem o instrumento mais perfeito e eficaz da mobilização da riqueza e da circulação do crédito” (BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p.7). Logo, tem-se que esta é a função econômica dos títulos de crédito e o que concorre para determinar a tipicidade de tal instituto (cf. D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.292-294).

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hoje existentes4. E é nesta perspectiva que se centra a primeira parte deste ensaio: trataremos, então, inicialmente, dos argumentos atualmente utilizados e que fundamentariam a informatização dos títulos de crédito, além de pontuarmos as “portas de entrada” de tal fenômeno no ordenamento jurídico nacional.

Entretanto, cumpre salientar que nem tudo é tão simples Os avanços tecnológicos muitas vezes aparentam maior atratividade para o mundo do Direito do que realmente o são; assim, no afã de recepcionar eventuais alterações e estruturas, acaba-se por aceitar qualquer argumento que minimamente possa ter algum sinal de procedência, mesmo que não guarde lógica com nosso sistema e não suporte análises mais profundas. Nestes termos, muito se exalta a evolução promovida pela informática, gastando-se rios de tinta sobre o funcionamento de soluções tecnológicas (como ocorre no caso da assinatura digital, por exemplo), mas pouco se reflete sobre sua adaptabilidade à disciplina, no caso em comento, dos títulos de crédito. Desta forma, na segunda parte do presente estudo, nos deteremos na verificação dos principais pontos teóricos que consideramos controvertidos no que tange aos títulos de crédito eletrônicos, realizando-se, por fim, um estudo crítico do que se convencionou chamar “duplicata virtual” – a qual, desde já se frisa, de duplicata não se trata.

Esboçado o quadro que será desenvolvido nesta oportunidade, ressaltamos, antes de iniciarmos a análise a qual nos propomos, que o cerne do presente trabalho passa longe de prender-se em aspectos técnico-informáticos. Como já deve ter sido vislumbrado, nosso escopo é o de jogar dúvidas sobre o tema dos títulos de crédito virtuais, lançando dificuldades que, para nós, parecem intransponíveis, apesar de serem mencionadas no debate jurídico somente de modo superficial; objetivamos, então, verificar a real compatibilidade da clássica disciplina legal e doutrinária dos títulos de crédito com os instrumentos fornecidos pela informática.

4 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Considerações sobre os títulos de crédito no projeto de Código Civil e notas sobre o Código de 2002. In.: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.348; do mesmo modo, entre outros, defende REZENDE, José Carlos. Os títulos de crédito eletrônicos e a execução da duplicata virtual. 2003. 164 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, p.58.

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2 – TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS: ESTUDO DOS ARGUMENTOS

FAVORÁVEIS

Frente ao importante papel cumprido, na economia, pelos títulos de crédito, e a avalancha de mudanças que a informática acarreta nos mais diversos ramos, não seria nada mais lógico que acreditar na digitalização de referido sistema circulatório e na própria desmaterialização do título, visto que a agilidade – cada vez mais importante em nossa sociedade – gerada iria ao encontro da referida disciplina, disponibilizando a transmissão do crédito de maneira mais eficiente. Os títulos de crédito eletrônicos constituiriam, assim, uma adaptação da disciplina clássica aos novos tempos – sendo mais uma comprovação da historicidade e adaptabilidade do Direito Comercial –, pois permitiriam a circulação do crédito de maneira rápida e segura, sem a necessidade de transmissão física da cártula5.

Nesse sentido, cumpre analisar quais argumentos computam a favor dos títulos de crédito eletrônicos, o que faremos nesta primeira etapa, além de verificar como o ordenamento jurídico pátrio supostamente recepciona tal novidade.

2.1 A Informatização dos Títulos de Crédito

Quando se fala em títulos de crédito eletrônicos, é lugar-comum mencionar sua descartularização ou desmaterialização, tendo em vista a noção de cártula ser essencial para a teoria dos títulos de crédito (juntamente com a autonomia e a literalidade), a qual ocorreria em dois momentos6: primeiramente, teríamos a desmaterialização da circulação

5 Afinal, por óbvio, nada mais obsoleto que a circulação da cártula, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo mencionado no título: “L’attenzione verso la possibilità di un titolo di credito elettronico sorse, cioè, non per esigenze ricostruttive o sistematiche, o per influenza del dibattito teorico generale sul documento informatico, bensì per cercare una risposta a problemi pratici: se, infatti, l’espediente giuridico dell’incorporazione di un diritto in un documento era stato lo strumento affermatosi storicamente per assicurare al diritto stesso una circolazione più celere e sicura, lo sviluppo moderno dei traffici, l’evoluzione dei mercati, la complessità degli odierni rapporti commerciali avevano e hanno finito per rendere obsoleto, per molti aspetti, quel meccanismo dalle remote origini”, Cf. GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia, il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII, p.311-312. Ver, também, D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.313.

6 Cf. FERREIRA, Amadeu José. Valores mobiliários escriturais: um novo modo de representação e circulação de direitos. Coimbra: Almedina, 1997, p.73. Tivemos acesso a tal obra a partir da referência feita por DUTRA, Marcos Galileu Lorena. Os títulos normativos: considerações gerais

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(quando a cártula ainda existe, mas não mais circula); posteriormente, faríamos referência à desmaterialização do próprio título de crédito (ou seja, a cártula deixa de existir), passando a ser substituído por registros em contas de depósito em nome de seus titulares.

Toda a problemática, então, dos títulos de crédito eletrônicos refere-se, basicamente, à cartularidade (não residindo, portanto, nas características da literalidade e da autonomia – nem se falando, aqui, na abstração, existente apenas em alguns títulos), ou seja, na necessidade de o título de crédito apresentar um suporte material. O foco central encontra-se na desnecessidade de o próprio título circular fisicamente e no questionamento de ele realmente existir em documento corporificado – duas etapas da descartularização que, neste ensaio, trataremos conjuntamente7.

Nesse sentido, iniciamos nossa análise com o conceito de títulos de crédito de CESARE VIVANTE (o qual foi adotado, no art. 887, pelo novo Código Civil8, apesar de pequeno defeito redacional), para quem título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado9. E como já dissemos que nem a literalidade e muito menos a autonomia importam para a discussão que ora se analisa, restringe-se nosso estudo à cartularidade, a qual resta consubstanciada, na referida definição, no termo documento, que é elemento basilar do clássico instituto10. Assim, passa-se a discutir o conceito de documento, que sempre foi encarado como algo material, corpóreo, palpável.

sobre sua forma eletrônica, face ao Código Civil de 2002. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.315-330. Igualmente, podemos assim verificar em D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.314.

7 Deste modo, a doutrina tende a afirmar que “[o] princípio da cartularidade, basilar no direito cambiário, necessita ser repensado para atender à economia moderna, pois novos paradigmas estão se formando a partir da desmaterialização dos títulos de crédito.” Cf. REZENDE, José Carlos. Os títulos de crédito eletrônicos e a execução da duplicata virtual. 2003. 164 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, p.80.

8 “Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.”

9 “Il titolo di credito è un documento necessario per esercitare il diritto letterale ed autonomo che vi è menzionato.” Cf. VIVANTE, Cesare. Tratatto di diritto commerciale. 5.ed. Milano: Dottor Francesco Vallardi, 1935, v.III, p.123.

10 Neste sentido, usamos as palavras de JOÃO EUNÁPIO BORGES: “Fonte de obrigação para os devedores e de direito para o seu proprietário, o título de crédito é, antes de tudo, um documento. O documento com que se legitima o titular para o exercício de seu direito.” Cf. BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p.30.

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Então, para tentar viabilizar a ideia de título de crédito eletrônico, a doutrina11, por exemplo, tende a adotar o conceito de documento dado por FRANCESCO CARNELUTTI (ou a definição de outros juristas renomados que desenvolveram a teoria do documento), o qual afirma ser documento alguma coisa que faz conhecer um fato12. Nesse sentido, o próprio conceito de CESARE VIVANTE, quando interpretado o termo documento de acordo com o aqui referido, abarcaria as hipóteses dos títulos de crédito eletrônicos, inexistindo qualquer outra necessidade de adaptação; basta aceitar que a noção de documento também abrange os documentos em meio digital (não se esquecendo que a Medida Provisória nº 2.200/02 considera documento público ou particular para todos os fins legais os documentos eletrônicos dos quais ela trata13, além de o próprio Código Civil, no art. 225, os reconhecer14), pois estes também são capazes de reproduzir acontecimentos da nossa realidade.

Em tal direção assevera LIGIA PAULA PIRES PINTO:

“Pela denominada ‘Teoria do Documento’, o ‘documento’ representa qualquer base de conhecimento fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizá-la para extrair cognição do que está escrito. Assim, é toda representação material destinada a reproduzir determinada manifestação do pensamento. Neste sentido, GIOVANNI PELIZZI ainda completa com a seguinte expressão: ‘Il documento, come si è detto, specchio del diritto (...)’,

11 Entre outros, ver: CASTRO, Raphael Velly de. Notas sobre a circulação e a literalidade nos títulos de crédito eletrônicos. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.383-386; GARDINO, Adriana Valéria Pugliesi. Títulos de crédito eletrônicos: noções gerais e aspectos processuais. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004. p.16-20; PESSOA, Ana Paula Gordilho. Breves reflexões sobre os títulos de crédito no novo Código Civil. In.: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.31-43; PINTO, Ligia Paula Pires. Títulos de crédito eletrônicos e assinatura digital. Análise do art. 889, § 3º, do Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.192-195.

12 “(...) il significato di documento si restringe alla cosa che fa conoscere un fatto”, cf. CARNELUTTI, Francesco. Documento – teoria moderna. Nuovíssimo Digesto Italiano. Turim, 1960, v.VI, p.86.

13 MP nº 2.200/02: “Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.”

14 “Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.”

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ao explicar que muitas vezes o documento é o espelho do direito criado pelo negócio subjacente.”15

Na mesma esteira vão as observações de ANA PAULO PESSOA, ao obtemperar que:

“Apoiando-se na definição de documento de CARNELUTTI, é fácil inferir que a teoria dos documentos não apresenta qualquer restrição à sua desmaterialização. Mesmo considerando que a ideia de documento tende a identificar-se com um texto redigido por escrito, não mais subsiste a necessidade de base física papel. Quando VIVANTE adotou a remissão a documento, abriu a possibilidade para que o direito pudesse ser contido em qualquer suporte material – desde que represente uma coisa que possa fazer conhecer um fato. Aí está a grandeza da definição de VIVANTE, capaz de manter a vanguarda, inobstante a mudança dos paradigmas perpetrada nas últimas décadas, desde sua concepção.”16

Assim, a princípio, a cartularidade dos títulos de crédito em nada seria afetada, apenas modificando-se o meio em que é expressa, pois passa o documento a ser eletrônico; o suporte cartáceo cederia lugar, então, para o suporte virtual17. Portanto, partindo de tal premissa, todos os elementos clássicos da disciplina dos títulos de crédito (cartularidade, literalidade e autonomia) restariam contemplados pelos títulos de crédito eletrônicos:

“(...) é limpidamente visível que os três elementos fundamentais do conceito de VIVANTE estão plenamente contemplados pela disciplina dos títulos de crédito eletrônicos, especialmente ao notar que o elemento da ‘cartularidade’ do título

15 PINTO, Ligia Paula Pires. Títulos de crédito eletrônicos e assinatura digital. Análise do art. 889, § 3º, do Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.193.

16 PESSOA, Ana Paula Gordilho. Breves reflexões sobre os títulos de crédito no novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.36.

17 “Quer nos parecer de meridiana clareza, assim, que a novidade trazida pelos títulos de crédito eletrônicos concerne apenas à inovação da matéria pela qual se representa o documento. A cartularidade, cuja feição mudou pela modernização do meio de representação, deixou de ser física (papel), e passou a ser eletrônica (cibernética)”, Cf. GARDINO, Adriana Valéria Pugliesi. Títulos de crédito eletrônicos: noções gerais e aspectos processuais. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.19.

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de crédito torna necessária a constituição de um ‘documento’, mas não o atrela a um suporte específico, podendo este ser papel ou outro, eletrônico inclusive (...).”18

Ademais, a desmaterialização restaria plenamente fundamentada tendo em vista a existência de mecanismos também para a circulação dos títulos de crédito de maneira virtual, uma vez que possível seria a identificação das partes envolvidas por meio da assinatura digital (regulamentada, no Brasil, pela MP nº 2.200/02)19-20.

Assim, criado eletronicamente ou por meio técnico equivalente, e preenchendo os requisitos de qualquer título de crédito típico (ou os estabelecidos no Código Civil, art. 889, como melhor veremos no próximo item), teríamos um título de crédito eletrônico, com todos os efeitos decorrentes de tal qualificação, o qual teria sua circulação possibilitada pela disciplina da assinatura digital.

18 PINTO, Ligia Paula Pires. Títulos de crédito eletrônicos e assinatura digital. Análise do art. 889, § 3º, do Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.192.

19 Entre outros, ver: CASTRO, Raphael Velly de. Notas sobre a circulação e a literalidade nos títulos de crédito eletrônicos. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.387 e ss.; GARDINO, Adriana Valéria Pugliesi. Títulos de crédito eletrônicos: noções gerais e aspectos processuais. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.19-20; PANTANO, Tânia. A circulação dos títulos de crédito à ordem regulados pelo novo Código Civil. Análise sistemática do Título VIII, Livro II. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.417-419; PESSOA, Ana Paula Gordilho. Breves reflexões sobre os títulos de crédito no novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.43-46; PINTO, Ligia Paula Pires. Títulos de crédito eletrônicos e assinatura digital. Análise do art. 889, § 3º, do Código Civil. In.: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.187-205. Igualmente, lecionando que a subscrição (assinatura) das partes envolvidas na circulação de determinado título de crédito é essencial, mas que, diante do desenvolvimento da assinatura digital (e da consequente regulamentação legal), tal requisito não pode ser utilizado como instrumento para questionar a hipotética existência dos títulos de crédito eletrônicos, ver GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia: il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII, p.319-322.

20 Aqui não nos deteremos em estudar os tipos de assinatura digital e muito menos sua segurança, pois acreditamos que tal análise cabe aos técnicos de informática. Ademais, alguns juristas já realizaram estudos adequados sobre o tema e seus reflexos no mundo do Direito; sobre o assunto, remetemos ao excelente trabalho de MENKE, Fabiano. Assinatura eletrônica: aspectos jurídicos no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

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2.2 Portas de Entrada dos Títulos de Crédito Eletrônicos no Ordenamento Jurídico Pátrio

Com base nos argumentos acima levantados, a doutrina e a jurisprudência passaram a admitir a existência dos títulos de crédito eletrônicos (sendo o caso das duplicatas virtuais o mais conhecido – mesmo por algumas particularidades da Lei nº 5.474/68 –, títulos estes que analisaremos detalhadamente mais adiante), desde que preenchidos os elementos dos títulos de crédito, nos termos de cada lei específica. E, neste sentido, problema não haveria, pois, por exemplo, a assinatura digital e outras formas de reprodução eletrônica supririam as exigências legais com facilidade. Assim, não apresentando as leis mais antigas qualquer restrição quanto aos títulos de crédito eletrônicos, a evolução da informática não deveria encontrar empecilho, mesmo porque tal mecanismo circulatório iria ao encontro do escopo da disciplina do direito cambiário.

Mais recentemente, o novo Código Civil admitiu, no art. 889, § 3º21, a criação dos títulos de crédito eletrônicos, constituindo, conforme ensinamento doutrinário, porta de entrada expressa na legislação pátria para uma imposição da realidade já reconhecida pelos Tribunais. Todavia, tal regra não deve ser examinada singularmente, mas sim de acordo com as outras inovações trazidas pela codificação civil, a qual também regulamenta uma teoria geral dos títulos de crédito e viabiliza a criação dos títulos atípicos22.

Nesse sentido, estabelece o nosso Código Civil uma teoria geral dos títulos de crédito, que teria aplicação supletiva, nos termos do art. 90323, à disciplina dos títulos de crédito. De acordo com uma interpretação literal, o referido dispositivo faz com que se aplique o previsto no nCC a todos os títulos de crédito, inclusive aqueles já tipificados e mesmo que façam

21 “Art. 889. Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente. (...) § 3º. O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.”

22 A doutrina salienta, além destas três inovações introduzidas pelo nCC, uma quarta, a qual seria a tutela do possuidor de boa-fé, cf. PENTEADO, Mauro Rodrigues. Considerações sobre os títulos de crédito no projeto de Código Civil e notas sobre o Código de 2002. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.360.

23 “Art. 903. Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código.” O referido dispositivo teria inspiração no art. 2001 do Código Civil italiano, o qual dispõe: Le norme di questo titolo si applicano in quanto non sia diversamente disposto da altre norme di questo codice o di leggi speciali.

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remissão a outras leis também já existentes e ainda em vigor (apesar de a lógica interna do Código Civil não ser consentânea com a Lei Uniforme de Genebra). Entretanto, o elaborador do Título VIII do Livro I da Parte Especial do Código Civil, Professor MAURO BRANDÃO LOPES, afirmou que sua intenção, ao fazer tal remissão, era que a teoria geral incidisse apenas aos títulos criados a partir do novo Código Civil (e não aos já típicos e com remissões a outras leis já existentes); desse modo, a I Jornada de Direito Civil, promovida pela Justiça Federal, tendo em vista as divergências entre o disposto nas disciplinas dos títulos de crédito típicos e as normas que constam no referido Título VIII, proferiu o enunciado de nº 52, o qual afirma que, por força da regra do art. 903 do Código Civil brasileiro, as disposições relativas aos títulos de crédito não se aplicam aos títulos já existentes24-25.

Salienta-se, contudo, que tal controvérsia não acaba aqui. Isso porque existe quem proponha, ainda, uma terceira via interpretativa, afirmando que os regramentos dos títulos de crédito existentes no novo Código Civil são aplicáveis aos títulos já tipificados quando sejam “(...) respeitadas as remissões acaso feitas pelas respectivas leis de regência, se ainda remanescerem lacunas ou omissões a serem supridas (...), e desde que a norma que se pretenda aplicar não conflite com o espírito e a lógica do

24 I JORNADA DE DIREITO CIVIL DA JUSTIÇA FEDERAL, 2002, Brasília. Enunciados aprovados. Brasília: Justiça Federal. Disponível em: <www.jf.gov.br>. Acesso em: 13 jun. 2007.

25 Muitos argumentos existem a favor de tal posicionamento: “De fato, seria totalmente temerário considerar revogadas todas as remissões feitas pelas leis especiais e entendê-las automaticamente substituídas por remissões à disciplina geral, a não ser que esta fosse, no seu conteúdo, minimamente assemelhada às primeiras. Do contrário, do dia para noite, a maior parte dos títulos de crédito típicos sofreria mudanças radicais na sua disciplina. O endossante de duplicata, por exemplo, deixaria de garantir a liquidação da mesma, salvo se dela fizesse constar disposição expressa em contrário. Para ficar só no exemplo da duplicata – considerado o título de crédito mais difundido na prática comercial brasileira e que, de acordo com o art. 25 de sua lei de regência (Lei 5.474/68), se remete à legislação da letra de câmbio no que concerne às disposições sobre emissão, circulação e pagamento – o aval parcial nela consignado passaria a reputar-se nulo, do dia para a noite, com a simples entrada em vigor do novo Código Civil”. Cf. ENEI, José Virgílio Lopes. O caráter supletivo das normas gerais sobre títulos de crédito. Comentários ao artigo 903 do novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.152. Às p.152-153, complementa o autor: “Quer nos parecer, portanto, que a primeira interpretação – segundo a qual a disciplina geral não revoga as remissões feitas pelas leis especiais que a precederam – é a que melhor se afina à lógica dos títulos de crédito e ao sistema vigente”.

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título de crédito considerado, tal como talhado pela sua lei especial de criação”26.

Destarte, adotando-se ou a interpretação literal do art. 903, ou a última forma interpretativa aqui referida, tem-se que a regra do art. 889, § 3º, é aplicável a todos os títulos de crédito existentes no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive aos já tipificados, pois em nenhuma legislação é prevista a viabilidade de circulação ou criação digital de tais documentos. Assim, diante da omissão legislativa, aplicar-se-ia o regramento do nCC, existindo, a partir de então, regra explícita que permitiria a confecção dos títulos de crédito eletrônicos; tal dispositivo constituiria, portanto, verdadeiro mecanismo de atualização da disciplina dos títulos de crédito, como anota JOSÉ VIRGÍLIO LOPES ENEI:

“Nesse sentido, podemos ver no artigo 889, § 3º, do novo Código Civil – o qual autoriza a emissão de títulos de crédito por via eletrônica ou outros suportes tecnológicos disponíveis – norma (e talvez única) que aproveitará amplamente todos os títulos de crédito, inclusive os títulos típicos preexistentes ao Código. Como se sabe, dada a natural dificuldade que a lei enfrenta em acompanhar a rápida evolução da tecnologia, as leis especiais em matéria de título de crédito não tiveram a oportunidade de enfrentar o tema e, portanto, não autorizam nem proíbem o emprego de tal tecnologia, simplesmente omitem-se. Ora, no silêncio da lei de regência e da própria lei por ela eleita como fonte supletiva ‘de primeiro grau’, não pode haver dúvida quanto à aplicação do novo Código Civil como fonte supletiva secundária.”27

De qualquer modo, o art. 3º da Convenção que disciplina o conflito de leis em matéria de letras de câmbio e notas promissórias, última das Convenções promulgadas pelo Decreto nº 57.663/1966, dispõe que “a forma das obrigações contraídas em matéria de letras de câmbio e notas promissórias é regulada pela lei do país em cujo território essas obrigações

26 ENEI, José Virgílio Lopes. O caráter supletivo das normas gerais sobre títulos de crédito. Comentários ao artigo 903 do novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.153.

27 ENEI, José Virgílio Lopes. O caráter supletivo das normas gerais sobre títulos de crédito. Comentários ao artigo 903 do novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.153.

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tenham sido assumidas”. Assim, como o aludido § 3º do art. 889 do nCC refere-se à forma, não se poderia dizer que exista regra jurídica oposta28.

Por fim, cumpre frisar que, mesmo que não se considere aplicável a regulação supletiva do novo Código Civil em relação à legislação especial, tem-se que, a princípio, os títulos de crédito eletrônicos continuariam a ser admitidos no ordenamento jurídico pátrio. Isso porque o novo Código Civil permite a criação de títulos atípicos (desde que cumpridos os requisitos previstos no caput do art. 889 e dentro dos limites impostos pelo legislador)29-30, tendo em vista que a declaração cartular (distinta, como todos sabem, do negócio fundante) é negócio jurídico unilateral31-32. Destarte,

28 Cf. PESSOA, Ana Paula Gordilho. Breves reflexões sobre os títulos de crédito no novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.48; no mesmo sentido, ver ENEI, José Virgílio Lopes. O caráter supletivo das normas gerais sobre títulos de crédito. Comentários ao artigo 903 do novo Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.153, em nota de rodapé.

29 “A disciplina tratada nos artigos 887 a 926 do Código Civil, portanto, incorpora um novo conceito na medida em que introduziu, no sistema jurídico pátrio, uma nova categoria de Títulos de Crédito. Trata-se dos títulos de crédito atípicos, cujas formalidades essenciais de existência e validade, previstas nos artigos 888 e 889, admitem excepcional e extraordinária elasticidade em sua criação, como uma grande ‘caixa vazia’, apta a abrigar qualquer espécie de relação jurídica, sob a óptica da ampla liberdade da autonomia privada, até então mitigada pelos títulos típicos.” Cf. GARDINO, Adriana Valéria Pugliesi. Títulos de crédito eletrônicos: noções gerais e aspectos processuais. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.6.

30 Para MAURO RODRIGUES PENTEADO, o Código Civil teria instituido “(...) uma categoria intermédia de documentação de direitos creditícios, a meio caminho entre os chamados ‘créditos de direito não-cambiário’ – oriundos de negócios jurídicos celebrados por instrumento particular ou público – e os títulos de crédito típicos” (PENTEADO, Mauro Rodrigues. Considerações sobre os títulos de crédito no projeto de Código Civil e notas sobre o Código de 2002. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.359). Sobre os títulos atípicos e sua natureza intermédia entre os meros documentos comprobatórios de obrigações e os títulos de crédito, cumpre salientar o que o referido autor leciona, à p.360: “Atentou-se, assim, para a tendência atual e irreversível, verificada sobretudo no campo empresarial, de tornar mais célere e fácil a assunção e a circulação de direitos e obrigações, o que será propiciado (...) por essa categoria intermédia de documentos, que terão, no Projeto, apoio e corretivo, como esclarece a sua exposição justificativa: ‘apoio, porque terão maior força jurídica do que os créditos de direito não-cambiário, embora menor força do que os títulos regulados em leis especiais, como a letra de câmbio e a nota promissória; corretivo, porque se evitarão títulos sem requisitos mínimos de segurança, os quais ficarão desautorizados pelo Código Civil’”.

31 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.254; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, t.34, 1961, p.42. Neste sentido, com razão leciona NEWTON DE LUCCA, ao asseverar que o só fato de o legislador ter optado por alocar, no Código Civil, as regras dos títulos de crédito no Título VIII (‘Dos Títulos de Crédito’) de seu Livro I (‘Do Direito das Obrigações’) da Parte Especial, ou seja, em seguida ao Título VII (‘Dos Atos Unilaterais’), não significa que tenha

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a viabilidade da criação de títulos atípicos é fundamento jurídico para a admissibilidade dos títulos de crédito eletrônicos: caso não incidente o disposto no art. 889, § 3º, sobre os títulos típicos, tem-se possível que aqueles circulem virtualmente e também sejam constituídos em suporte desmaterializado33.

Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro apto estaria a reconhecer, de maneira plena, os títulos de crédito eletrônicos, uma vez que admite os documentos eletrônicos (por meio do art. 10 da MP nº 2.200/02 e do art. 225 do Código Civil) e apresenta regulamentação atinente às assinaturas digitais que permitiria a circulação virtual de tais títulos (nos termos como também previsto na MP nº 2.200/02), além, é claro, da previsão expressa do art. 889, § 3º, do Código Civil (cujo alcance, todavia, como foi observado, varia dependendo da interpretação que se realize do disposto no art. 903 do regramento civil e do art. 3º da Convenção que disciplina o conflito de leis em matéria de letras de câmbio e notas promissórias, última das

tido a intenção de negar o caráter unilateral das declarações cambiárias (cf. DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo Código Civil (arts. 854 a 926), Rio de Janeiro: Forense, 2003, v.XII, p.117).

32 CHATEAUBRIAND FILHO, Hindemburgo. Liberdade de criação de títulos de crédito atípicos e fattispecie cartular. Revista dos Tribunais, n.85, v.723, p.99-106, p.99, jan. 1996. Às p.99-100, leciona: “Quanto à liberdade de criação de títulos de crédito atípicos, pode-se afirmar, desde logo, que esta não só é concebível como, em verdade, é princípio acolhido por diversos ordenamentos, tanto de família romano-germânica como da common law. O que prevalece, de fato, é uma ampla tendência à negação do numerus clausus; quer no direito francês, onde vigora o conceito de effet de commerce, quer no inglês, e sobretudo no italiano, o acolhimento de novos tipos de documento criados pela práxis comercial é uma possibilidade comum”. Do mesmo modo, ANTONIO MERCADO JÚNIOR afirma: “A favor do princípio milita a consideração de que os títulos de crédito são fruto da prática, sistematizada na doutrina, e se destinam a resolver o problema do contraste entre as exigências da circulação e as regras do direito comum; sendo, pois, prejudicial ao desenvolvimento econômico estabelecer um numerus clausus desses títulos, impedindo a criação de outros que, embora não previstos em lei, o trato dos negócios torne necessários à satisfação de novas exigências” (cf. MERCADO JUNIOR, Antonio. Observações sobre o anteprojeto de Código Civil, quanto a matéria dos “títulos de crédito”, constante da Parte Especial, Livro I, Título VIII. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.9, p.113-142, p.116, 1973). E, ainda, sobre a possibilidade de criação de títulos de crédito atípicos (especialmente ao comentar sobre a sua viabilidade no ordenamento jurídico italiano, especialmente diante do art. 2004 do Codice Civile), remetemos a D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.148-149, p. 225 e ss.

33 “Ora, ante o fato novo da informática, uma fórmula legislativa mais aberta talvez seja a solução para compatibilizar as grandes conquistas da teoria dos títulos de crédito com a instrumentalização eletrônica, conforme a conveniência das partes. A legislação de títulos de crédito teria, assim, a plasticidade que a informática está forçando surgir, dentro de um figurino eletrônico cuja elaboração final longe está de ser alcançada.” Cf. FRONTINI, Paulo Salvador. Títulos de crédito e títulos circulatórios: que futuro a informática lhes reserva? Rol e funções à vista de sua crescente desmaterialização. Revista dos Tribunais, a.85, v.730, p.50-67, p.64, ago. 1996.

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Convenções promulgadas pelo Decreto nº 57.663/1966). Teríamos, assim, os argumentos que viabilizariam a entrada, no direito brasileiro, dos títulos de crédito eletrônicos34.

3 – ANÁLISE CRÍTICA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO ELETRÔNICOS

Como observamos, existe forte tendência, em boa parte imposta pela difusão da informática, em defender-se a descartularização (desmaterialização) dos títulos de crédito. Entretanto, são a criação e a circulação virtual de tais documentos viáveis? Apesar de todos os benefícios aparentes, como demonstramos, consideramos que os títulos de crédito eletrônicos não apresentam respostas suficientes para uma série de dificuldades, acabando por colidir frontalmente com a disciplina clássica da matéria. Neste sentido, em um primeiro momento, refutaremos, no plano teórico, os argumentos vistos na primeira parte deste ensaio; posteriormente, analisaremos a realidade econômica, buscando demonstrar a inexistência, no cotidiano, da cambial informatizada, o que será feito por meio da análise do caso daquilo que se convencionou chamar de duplicata virtual.

3.1 Os Problemas no Plano Teórico

Apesar de, em um primeiro exame, ser atraente e mesmo apresentar os argumentos favoráveis à existência dos títulos de crédito eletrônicos verdadeira racionalidade, cumpre ressaltar que tal defesa não escapa de algumas contradições se relacionada à disciplina da teoria geral do Direito Cambiário. Assim, a fim de lançar dúvida sobre sua real existência, e não apenas concordar com o que maciçamente é reproduzido pela doutrina, partimos, agora, para a contraposição das questões anteriormente levantadas.

E aqui fazemos tal choque porque, atualmente, muito se fala na inerente natureza do Direito Comercial como captador das necessidades econômicas da sociedade, sendo flexível e constituindo-se em porta de entrada das novidades para os demais ramos da Ciência Jurídica, como já

34 Existe quem afirme que a legislação pátria já teria admitido os títulos eletrônicos em outras oportunidades, com a criação da SELIC, em 1972, o surgimento da CETIP, em 1986, e o regime das ações escriturais, com base na Lei nº 6.404/76 (cf. DUTRA, Marcos Galileu Lorena. Os títulos normativos: considerações gerais sobre sua forma eletrônica, face ao Código Civil de 2002. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.319 e ss.).

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afirmamos. Assim, seria maleável, se comparado ao Direito Civil. Entretanto, é imperioso ter em mente que, apesar de esta realmente ser uma característica do Direito Comercial, tal não ocorre com todos os seus ramos, pois, como TULLIO ASCARELLI e PONTES DE MIRANDA, dentre outros, bem demonstraram, o formalismo é essencial à disciplina dos títulos de crédito35, não sendo prudente simplesmente inserir, sem maiores cuidados, as novidades trazidas pela informática aos regramentos que com tanta dificuldade foram construídos: beira o leviano lançar mão da mutabilidade da Lex Mercatoria sem respeitar as particularidades de cada espécie que dela faz parte.

Deste modo, primeiramente, surge a questão da aplicação do conceito de documento dado por FRANCESCO CARNELUTTI à definição de título de crédito criada por CESARE VIVANTE, o que viabilizaria, conceitualmente, a admissibilidade dos títulos de crédito eletrônicos. Por mais que hoje realmente não se negue (nem nós o fazemos) que os documentos produzidos eletronicamente constituem verdadeiros documentos (nos termos da legislação vigente no País), a utilização de obras de juristas que em outra época viveram, a fim de justificar a existência dos títulos de crédito eletrônicos, foge da boa técnica interpretativa. Isso porque, como é cediço, se devem vislumbrar as obras de acordo com o período em que escritas, atentando-se à realidade na qual o autor estava atrelado, sendo equivocado usar categorias e escolhas valorativas resultantes de uma

35 “A par da simplificação da espécie jurídica está o formalismo jurídico, que domina em matéria de títulos de crédito, impondo formas rigorosas para a constituição, a transferência e o exercício do direito.” Cf. ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.5; e, na mesma página, complementa: “Os que julgam ser o formalismo jurídico um fenômeno que só ocorreu no direito primitivo não notaram, talvez, o renascimento do formalismo que se pode observar no direito moderno e, especialmente, no direito comercial”. Do mesmo modo, assevera PONTES DE MIRANDA: “Na economia das delimitações entra por muito a formalística das relações jurídicas tipicamente cambiário-formais. O rigor dito cambiário distingue-as das outras relações jurídicas e dos outros negócios jurídicos comerciais. Rigor material e rigor formal, em que se ultima certa evolução para a perfeição técnica, para a maior segurança do público e para satisfação das necessidades estáveis, precisas, do comércio”, cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1961, t.34, p.50. Igualmente, e entre os autores mais consultados na matéria, ver MARTINS, Fran. Títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v.1, p.12. Por fim, ALBERTO STAGNO D’ALCONTRES obtempera que a formalidade possui relevância fundamental na matéria cartular (D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.319).

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aplicação realizada no presente para julgar textos passados36. Assim, remetemos à noção de senso histórico, descrita por HANS-GEORG GADAMER:

“Ter senso histórico é superar de modo consequente a ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual, adotando a perspectiva de nossas instituições, de nossos valores e verdades adquiridos. Ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico coextensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo.”37

Ora, se tanto o conceito dado por FRANCESCO CARNELUTTI para documento quanto o conceito de título de crédito construído por CESARE VIVANTE, hoje se adaptam à era digital, tal não constitui mais que mero acaso ou simples consequência das definições extremamente abertas por eles construídas. É difícil que os mencionados juristas, pela época em que viveram, tivessem pensado na existência de documentos eletrônicos e nos seus desdobramentos. Logo, o mais provável é que, quando falam em documento, assim se referem àqueles tangíveis, corporificados; neste sentido, basta a citação de TULLIO ASCARELLI, abaixo colacionada, o qual, em período histórico próximo ao dos autores anteriormente mencionados, refere-se à cártula como papel38. Por conseguinte, apesar da utilização de

36 Cf. MARTINS-COSTA, Judith. Ação indenizatória – dever de informar do fabricante sobre os riscos do tabagismo. Revistas dos Tribunais, a.92, v.812, p.75-99, p.82, jun. 2003.

37 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.18. Neste sentido, o autor, na p.49, afirma que o saber hermenêutico deve recusar um estilo objetivista de conhecimento, sendo que a própria compreensão (pertencimento que caracteriza o intérprete e a tradição) constitui um momento do devir histórico; e, desta forma, leciona, nas p.58-59, o seguinte: “Por um lado, todo texto pertence, em primeiro lugar, ao conjunto das obras do autor e, em seguida, ao gênero literário de onde provém. Por outro lado, se quisermos apreender o texto na autenticidade de seu sentido original, devemos percebê-lo como manifestação de um certo momento num processo de criação e inseri-lo na totalidade do contexto espiritual do seu autor. Somente a partir do todo, que se forma não apenas por meio de fatores objetivos, mas, em primeiro lugar, pela subjetividade do autor, pode surgir a compreensão”.

38 TULLIO ASCARELLI define os títulos de crédito da seguinte forma: “O título de crédito é, antes de mais nada, um documento. (...) Caráter constante [dos ordenamentos jurídicos nacionais sobre títulos de crédito] (...) é que constituem um documento escrito, assinado pelo devedor; formal, no sentido de que é submetido a condições de forma (...)”, cf. ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.21, grifo do autor. Do mesmo modo, e apenas para pararmos por aqui, fazemos remissão a PONTES DE MIRANDA, quem reiteradamente utiliza o termo papel para referir-se à cártula, cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, t.34,; e, na p.42, por exemplo, ensina o autor: “Ao subscrever a letra de câmbio ou a nota promissória, ou o título

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uma mesma palavra – documento –, resta claro que esta, hoje, abarca outras formas de manifestação de fatos que, no passado, não eram por ela englobados39.

Por outro lado, e superada esta questão (admitindo-se, mas não com base nos autores mencionados, que o atual conceito de documento também abrange os constituídos eletronicamente, o que é a mais pura verdade), cumpre afirmar que, mesmo assim, é difícil desvincular o título de crédito do suporte cartáceo, ou seja, de um bem móvel e corpóreo40. Toda a disciplina da teoria geral dos títulos de crédito é baseada na cártula, visto que a circulação se dá com base em normas de direito real e que só a partir dela é que se pensa nos efeitos de direito obrigacional: “(...) a transmissão do direito cartular não é mais dominada pelas regras que disciplinam a transferência dos direitos, mas decorre da ‘circulação’ do título, dominada, portanto, em princípio, pelas regras que disciplinam a circulação das cousas móveis”41; a materialidade da cártula justifica-se pela necessidade de

cambiariforme, o subscritor insere no papel a sua declaração unilateral de vontade; e essa declaração unilateral de vontade perfaz o negócio jurídico unilateral da criação do título”.

39 “O caráter situado do conhecimento e da compreensão, próprio dos fenômenos culturais, recobre a ciência jurídica, na medida em que essa constitui o resultado de um processo extraordinariamente laborioso e complexo de integração entre fatos e valores”, cf. MARTINS-COSTA, Judith. Ação indenizatória – dever de informar do fabricante sobre os riscos do tabagismo. Revistas dos Tribunais, a.92, v.812, p.75-99, p.79, jun. 2003.

40 PONTES DE MIRANDA deixa clara a necessidade de a cártula ser bem móvel e tangível (não necessariamente papel): “Quanto à forma, a letra de câmbio sói ser, de regra, retângulo de papel, escrito, ou em parte impresso ou dactilografado e em parte escrito, na frente (anverso), no sentido do comprimento, e por trás (verso), no sentido da largura. Mas nada obsta a que, para a feitura, se empregue outra matéria que o papel (pano, madeira, metal, pergaminho, marfim, celulóide).” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, t.34, p.110); igualmente, ver GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia: il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII, p.313-315. Neste sentido, o art. 521 do Código Civil de 1916 assim dispunha: “Aquele que tiver perdido, ou a quem houverem sido furtados, coisa móvel ou título ao portador, pode reavê-los da pessoa que os detiver, salvo a esta o direito regressivo contra quem lhos transferiu”; da mesma forma, entendemos que a disciplina referente aos direitos reais do nosso novo Código Civil também se aplica aos títulos de crédito, apesar de o Título VIII estar inserido no Livro I da Parte Especial (o qual dispõe sobre o Direito das Obrigações). E a doutrina vai ao encontro do aqui exposto: “Portanto, quando os títulos são nominativos (ou seja, quando há menção, no título, ao titular ativo da relação jurídica) o nosso direito os considera como coisa, na categoria de bem corpóreo. Coisa móvel porque se desloca no espaço; coisa corpórea porque toca nossos sentidos”, cf. BOITEUX, Fernando Netto. Títulos de crédito: em conformidade com o novo Código Civil. São Paulo: Dialética, 2002, p.21.

41 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.220. Na p.215, afirma: “É assim que o direito cartular pode, verdadeiramente,

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circulação do direito – que se dá pela disciplina dos direitos reais –, finalidade própria (e, ressaltemos, essencial) dos títulos de crédito42. Ocorre, então, verdadeira coisificação do crédito43. Assim, parece evidente que a cártula deve ser documento tangível, corpóreo, como o papel:

“Com os títulos de crédito (...) a propriedade começa a ter por objeto não só bens materiais, normalmente gozados por um sujeito e por ele mesmo administrados com o auxílio de prepostos seus, mas... pedaços de papel, que, por seu turno, corporizam direitos a bens materiais, dos quais depende, naturalmente, em caráter definitivo, o seu valor econômico.”44

Logo, a disciplina dos títulos de créditos pressupõe a existência física do documento45.

Ademais, a cártula, justamente documento palpável, é algo único, sem viabilidade de reprodução, o que dá a segurança que se precisa para a circulação/mobilização do crédito (garantindo-se, assim, a autonomia das obrigações e a literalidade da declaração cambial, o que conduz à inoponibilidade das exceções); a referida coisa circula de acordo com a disciplina dos direitos reais e quem a possui de acordo com as leis de circulação tem legitimidade para o exercício do direito nele mencionado

‘circular’, quero dizer, transferir-se, de acordo com as regras peculiares às cousas móveis e não com as do direito comum relativas à transferência dos direitos; com efeito, a circulação refere-se diretamente ao título e é da propriedade do título que decorre a titularidade do direito”. Neste sentido, e não por menos, a exposição de CESARE VIVANTE sobre os títulos de crédito encontra-se no volume III de sua obra, justamente aquele destinado às coisas, cf. VIVANTE, Cesare. Tratatto di diritto commerciale. 5.ed. Milano: Dottor Francesco Vallardi, 1935, v.III, (o qual, na p.130, leciona o seguinte: “(...) nel linguaggio comune il titolo di credito è trattato come una cosa”). Por fim, remetemos a D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.39, 53, 95 e ss.

42 “(...) a differenza di qualsiasi altro documento, nel caso del titolo di credito il profilo della materialità è strettamente legato alla peculiare funzione del titolo di entificare il diritto a fini circolatori, rendendolo suscettibile di apprensione e traslazione nella maniera delle cose mobili”, cf. GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia: il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII p.323.

43 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, t.34, p.213. Logo, podemos dizer que a lei de circulação dos títulos de crédito é aquela que cuida diretamente da circulação do título de crédito (que é documento móvel e corpóreo); apenas indiretamente é que se pode falar em circulação de direitos mencionados no título.

44 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.335, grifo nosso.

45 D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.308-325.

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(posse ad legitimationem) (sendo que quem tem a propriedade do bem – a qual decorre da posse de boa-fé e obedecida a lei de circulação do título – é titular deste direito, o qual surge de maneira autônoma e originária)46. É assim que se fazem presentes os elementos dos títulos de crédito: cartularidade, autonomia e literalidade! “Portanto, em matéria cambial, sem documento não há direito literal e autônomo que se transmita e possa ser exercido, pois o crédito, para circular, tem que estar corporificado na cártula.”47

Entretanto, no que tange ao suposto título de crédito eletrônico, inexiste nenhum documento móvel corpóreo, tangível. Ainda, cada nova transmissão digital (e aqui, para análise, nos deteremos, especialmente, nos títulos à ordem, ou seja, transmitidos por endosso e mera tradição da cártula, tendo em vista a posição central que ocupam entre os demais) dele efetuada, a fim de realizar a circulação do crédito, acaba por reproduzir, indistintamente, tal documento, ficando tanto o endossante quanto o endossatário com um documento idêntico (não existindo cópia e original, mas sim dois títulos totalmente iguais, pois todo documento eletrônico é sequência de bits, e, sempre que seja reproduzida a mesma sequência, teremos o mesmo documento), não havendo, assim, uma relação entre sujeito e coisa com caráter de exclusividade48, o que acarreta grande insegurança:

“(...) não podemos deixar de considerar que uma das principais causas do princípio da cartularidade está na garantia jurídica que oferece a singularidade ou a individualidade do documento. O documento físico onde a informação está inscrita constitui documento original único, que podemos fotocopiar, reproduzir por meio de scanner ou de qualquer outra forma, mas sempre

46 Ver ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.163 e ss.; D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.38 e ss. Assim, a legitimação ativa é uma situação de fato (posse) qualificada (pois a posse deve ser de acordo com as leis de circulação – ao portador, à ordem ou nominativa) e que é desvinculada da necessidade de prova da efetiva titularidade do bem.

47 BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.34. 48 Cf. GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In.: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia: il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII, p.323 ss.

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existindo um original apenas. Essa distinção é inexistente no meio eletrônico”49.

Sempre que se transmite um documento eletrônico, ele é duplicado (logo, o documento eletrônico nunca será único), sendo ingenuidade crer que a transmissão de um documento digital seja equivalente à tradicional transmissão de uma cártula50. Portanto, sendo viável a reprodução do documento, justamente o que ocorre quando ele é endossado a outrem, tem-se que sua matriz é exatamente igual ao documento transmitido; inexiste diferença entre o documento que fica com o endossante e o repassado ao endossatário, salvo a existência de uma assinatura (digital) a mais, referente ao endosso. Todavia, tal não satisfaz a necessidade de segurança, essencial à disciplina dos títulos de crédito51, visto que, à medida que o endossante permanece com o documento “original”, pode ele também cobrar o débito do(s) devedore(s) cambiário(s). Da mesma forma, o título pode ser endossado a diversas pessoas, sendo que cada uma, nesta última hipótese, receberia o título como se original fosse e com o mesmo endosso (ou seja, com a mesma assinatura digital do endossante), mudando-se somente o destinatário; assim, o mesmo título pode ser transmitido para diversas pessoas – o que é impossível com sua circulação física52-53. Nestes termos,

49 BATELLO, Silvio Javier. O Código Civil brasileiro e os títulos de crédito eletrônicos. Cadernos do

Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, n.IV, p.237-249, p.243, set. 2005. 50 “È altresì erroneo pensare che la trasmissione d’un documento elettronico equivalga alla tradizionale trasmissione di un documento cartaceo, perché, mentre in questo secondo caso si realizza una diversa dislocazione nello spazio del medesimo oggetto, trasportato da un luogo all’altro, viceversa la trasmissione di un messaggio informatico consiste sempre (anche) in un’operazione di duplicazione: inviare a qualcuno un documento elettronico significa infatti creare un altro documento identico presso la risorsa fisica o logica del destinatario; e la circostanza che, più o meno contemporaneamente, il primo originale possa essere distrutto, nulla toglie all’osservazione testé svolta”, cf. GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia: il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII, p.328-329.

51 JOÃO EUNÁPIO BORGES muito bem comenta a necessidade de resguardar a segurança da circulação dos títulos de crédito, a qual, segundo ele, justifica a origem do instituto e é condição básica para sua subsistência e prestígio, sem a qual seria inconcebível a economia moderna (cf. BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p.24 e 29). Ver, também, entre outros, D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.10-11, p. 19 e ss.

52 Aqui, afirmamos que quem adquire eletronicamente um título de crédito pode estar adquirindo uma caixinha de surpresas, justamente a expressão que TULLIO ASCARELLI utiliza para ressaltar as dificuldades que existem para a circulação do crédito com a disciplina da cessão de direitos e que justificou a origem dos títulos de crédito (cf. ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.6); a distinção e os benefícios dos títulos de crédito, em relação à cessão de crédito, são bem resumidos pelo autor, na p.240, em nota

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dificuldade existe para, eletronicamente, viabilizar-se a sequência de endossos presentes no título de crédito (e contar a história deste)54 sem que isso possa significar duplicação do documento55; logo, caso não se crie algum mecanismo que possibilite a “destruição” do original toda vez que o

de rodapé: “Nas transferências de direito comum, portanto, será tanto menor a segurança do adquirente quanto mais longa for a cadeia dos precedentes cessionários, pois a multiplicidade das transferências acarreta uma multiplicação de exceções. Nos títulos de crédito, ao contrário, não somente o adquirente se encontra na posição de um terceiro, invulnerável, portanto, às exceções pessoais referentes aos portadores anteriores, mas, nos títulos cambiários, sua posição é, além disso, tanto mais segura, quanto mais numerosas forem as transferências anteriores do título, pois cada transferência traz mais um obrigado, responsável solidário pelo pagamento do título”. Todavia, quando se fala em títulos de crédito eletrônicos, quanto maior a rede de endossos, o risco a que fica submetido o último endossatário tende a crescer, não pelos mesmos motivos existentes no caso da cessão de crédito, mas sim porque o mesmo título pode ter sido endossado para diversas pessoas.

53 Semelhantemente, surge o problema de eventual transmissão/endosso digital do título e sua concomitante impressão, ocorrendo a tradição física do mesmo título mas para outrem (ou várias outras pessoas, caso tenham sido realizadas diversas cópias da cambial); assim, à diferença do exemplificado no texto, o título também é transmitida para várias pessoas, mas por meio virtual e físico. Todavia, para esta questão aqui colocada (mas não a problemática no texto levantada), a doutrina afirma que um título de crédito eletrônico somente poderia circular virtualmente (nunca fisicamente): “As notas promissórias eletrônicas somente podem circular no ciberespaço e, consequentemente, somente podem ‘viver’ no ciberespaço. Uma nota promissória somente é retirada do ciberespaço, para ser executada, uma vez que os tribunais não aceitam ‘ações judiciais eletrônicas’”, cf. ROHRMANN, Carlos Alberto. Notas promissórias eletrônicas: uma análise do endosso eletrônico. Berkeley, CA, fev. 2000. Disponível em: <http://www.direitodarede.com.br/NotasProm.pdf>. Acesso em: 21 maio 2007; mais adiante, complementa: “Por outro lado, não se admite a conversão de uma nota promissória tradicional num título eletrônico, o que também se constituiria numa porta aberta para as fraudes. Alguém que pudesse ‘escanear’ uma nota promissória tradicional poderia ser tentado a convertê-la numa nota promissória eletrônica, descontando-a num banco após o endosso. Em seguida, poderia tentar negociar o documento original (em papel) com outro banco”.

54 Assim salientarmos porque, como PONTES DE MIRANDA, leciona: “É da natureza e do caráter da cambial que a sua história conste do seu texto”, cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, t.34, p.17, grifo do autor.

55 Portanto, em nada se questiona sobre a segurança da assinatura digital, mas sim como se pode assegurar a circulação eletrônica de um único título de crédito sem que qualquer membro da cadeia adote conduta oportunista e coloque em xeque o sistema. Neste sentido: “No que se refere aos títulos de crédito e sua circulação, considerando-se adequada e segura a utilização da assinatura digital certificada, para criação do título e seu envio ao credor originário, o problema que se impõe diz respeito à segurança de sua circulação e a criação de técnicas visando a evitar fraudes e garantir que o documento não seja duplicado e que um de seus titulares não o endosse e transmita diversas vezes”, cf. PANTANO, Tânia. A circulação dos títulos de crédito à ordem regulados pelo novo Código Civil. Análise sistemática do Título VIII, Livro II. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.419.

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título é colocado em circulação56 (o que, até agora, não temos conhecimento de sua existência) ou que somente se permita única e exclusivamente a criação de títulos eletrônicos nominativos (existindo, então, alguma autoridade gestora)57 (apesar de as outras dificuldades até aqui mencionadas serem de difícil, ou impossível, superação), não enxergamos qualquer possibilidade em se admitir, com segurança, a possibilidade de criação eletrônica dos títulos de crédito e da respectiva circulação virtual.

Além disso, e andando no mesmo sentido (e ressalvados os casos em que ou se encontra algum mecanismo de destruição do título ou se permita somente a circulação de títulos eletrônicos nominativos, como visto no parágrafo anterior), temos que, uma vez pago, o devedor tem o direito de exigir a entrega do título com a respectiva quitação e evitar que ele continue circulando (Lei Uniforme de Genebra – Dec. 57.663/66, art. 3958; Código Civil, art. 901, parágrafo único59) – podendo recusar o pagamento caso o credor não devolva o título e não passe a respectiva quitação, pois o título pode continuar em circulação e caso terceiros de boa-fé adquiram o documento, podem eles buscar o seu pagamento (fazendo valer sua própria situação possessória qualificada). Entretanto, caso o título de crédito seja eletrônico (e não um documento móvel e corpóreo), como cumprir tal formalidade? Não se tratando de um bem corpóreo e restando duplicado, como comprovar a efetiva quitação do débito e, ao mesmo tempo, tutelar os terceiros de boa-fé?

56 Cf. GUARRACINO, Francesco. Titolo di credito elettronico e documento informatico. In: RICCIUTO, Vicenzo; ZORZI, Nadia. Trattato di diritto commerciale e di diritto pubblico dell’economia: il contratto telematico. Milano: CEDAM, 2002, v.XXVII, p.329-330.

57 “Talvez a única alternativa seja a criação de títulos eletrônicos nominativos. A circulação, para ser considerada válida e segura, deverá ser autenticada por uma entidade certificadora, encarregada de registrar a circulação do título. Contudo ficam muitas perguntas: somente poderão criar títulos eletrônicos os cadastrados em tais instituições? Será cobrada uma taxa por cada título emitido? Será um valor fixo ou um porcentual do valor documentado? Aqueles que não possuem cadastro, como farão para receber tais documentos? As instituições terão algum tipo de responsabilidade? Somente podemos responder, e reafirmar, que ainda não existe no Brasil entidade certificadora específica para títulos de crédito eletrônicos, e tampouco regulamentação especial para que a atividade possa ser exercida pelas entidades que certificam os documentos em geral” (BATELLO, Silvio Javier. O Código Civil brasileiro e os títulos de crédito eletrônicos. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, n.IV, p.237-249, p.247, set. 2005).

58 “Art. 39. O sacado que paga uma letra pode exigir que ela lhe seja entregue com a respectiva quitação.(...).”

59 “Art. 901. Fica validamente desonerado o devedor que paga título de crédito ao legítimo portador, no vencimento, sem oposição, salvo se agiu de má-fé. Parágrafo único. Pagando, pode o devedor exigir do credor, além da entrega do título, quitação regular.”

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Portanto, como observado, muitos problemas de ordem teórica derramam dúvidas tanto sobre a viabilidade de existirem títulos de crédito eletrônicos quanto à própria circulação virtual destes. Podemos, sim, é vislumbrar a cessão de crédito por meio digital60, que é o que ocorre, efetivamente, na prática, como veremos a seguir.

3.2 A Inexistência dos Títulos de Crédito Eletrônicos na Prática Comercial: O Caso da Duplicata Virtual

Para demonstrar nossa tomada de posição, detemo-nos, a partir de agora, na análise da denominada duplicata virtual (ou duplicata escritural), a qual, apesar de seu procedimento constituir prática comum entre os empresários nacionais, longe passa de ser um título de crédito.

A Lei nº 5.474/68, que regula as duplicatas mercantis, deu uma boa gama de abertura ao sistema, visto que, em situações bem delimitadas, viabiliza a instrução de processo executivo sem o próprio título e também prevê a extração da triplicata. Neste sentido, e partindo de tal liberdade fornecida, a rotina comercial foi flexibilizando o sistema, surgindo a ideia – desvirtuada, diga-se desde já – de que a própria extração (em papel) da duplicata restaria injustificada, visto que poderia ser suprida pelas ferramentas que a referida lei disponibiliza61.

Assim, os agentes econômicos, na prática, após a realização de uma atividade abarcada pela Lei nº 5.474/68, simplesmente encaminham aos bancos os chamados borderôs (de maneira eletrônica, nos tempos mais recentes) com os números das notas fiscais-faturas – não extraindo as duplicatas, portanto –, os valores e a data de vencimento, além da identificação do sacado; em sequência, as instituições financeiras emitem, com os dados recebidos pelos sacadores, os boletos de cobrança (que são um aviso bancário para tornar a obrigação portável e que se basearia na duplicata que, supostamente, existiria em meio magnético), destinados aos

60 Sendo que, devemos salientar, os títulos de crédito existem para viabilizar a circulação de direitos de modo diverso, mas, sobretudo, alternativo, à cessão de crédito (cf. D’ALCONTRES, Alberto Stagno. Il titolo di credito: ricostruzione di una disciplina. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999, p.9 e 28; ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito. 2.ed. Tradução de Nicolau Nazo. São Paulo: Saraiva, 1969, p.6).

61 Cf. BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.178, jul.-set. 1999; BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.33 e ss.

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devedores a fim de que estes efetuem o pagamento na rede bancária62. Quando tal débito é pago, todo o círculo acaba, não gerando problemas (apesar de a operação não ocorrer de acordo com a legislação em vigor). Entretanto, se o boleto “(...) não é pago, os bancos utilizam sua primeira via como instrumento que contém as informações necessárias para se requerer o protesto por indicações do portador (art. 13, § 1º, Lei de Duplicatas63)”64: então, efetuado o protesto da suposta duplicata remetida ao sacado (o qual é feito por meio eletrônico, nos termos do art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 9.492/9765), sua certidão em conjunto com o comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação do serviço (que, segundo FÁBIO ULHÔA COELHO, também poderia ser eletrônico)66 seriam suficientes para instruir o processo executivo, nos termos do art. 15, II e § 2º da Lei nº 5.474/6867-68-69.

62 Cf. TOMAZETTE, Marlon.A duplicata virtual. Revista dos Tribunais, v.92, n.807, p.725-740, p.738, jan.2003; BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.178, jul.-set. 1999; BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.40; COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 12.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v.1, p.469.

63 “Art. 13. A duplicata é protestável por falta de aceite de devolução ou pagamento. § 1º. Por falta de aceite, de devolução ou de pagamento, o protesto será tirado, conforme o caso, mediante apresentação da duplicata, da triplicata, ou, ainda, por simples indicações do portador, na falta de devolução do título. (...)”.

64 BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.179, jul.-set. 1999; ver, também, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 12.ed. rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v.1., p.469; e BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.35 e ss. Normalmente o protesto se dá por falta de devolução cumulado com o protesto por falta de pagamento e aceite (sendo que este último só pode ser feito antes do vencimento da obrigação, nos termos do art. 21, § 1º, da Lei nº 9.494/97).

65 “Art. 8º. Os títulos e documentos de dívida serão recepcionados, distribuídos e entregues na mesma data aos Tabelionatos de Protesto, obedecidos os critérios de quantidade e qualidade. Parágrafo único. Poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas.”

66 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. 12.ed. rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v.1, p.470-471. E eventuais controvérsias quanto à prova da entrega das mercadorias seriam, segundo o autor, discutidas em embargos (uma vez que se trataria de questão de fato).

67 Lei nº 5.474/68: “Art. 15. A cobrança judicial de duplicata ou triplicata será efetuada de conformidade com o processo aplicável aos títulos executivos extrajudiciais, de que cogita o Livro II do Código de Processo Civil, quando se tratar: (...) II – de duplicata ou triplicata não aceita, contanto que, cumulativamente: a) haja sido protestada; b) esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria; e c) o sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e pelos motivos previstos nos arts. 7º e 8º desta Lei. (...) § 2º. Processar-se-á também da mesma maneira a execução de duplicata ou triplicata não aceita e não devolvida, desde que haja sido protestada mediante indicações do

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credor ou do apresentante do título, nos termos do art. 14, preenchidas as condições do inciso II deste artigo.”

68 Cf. BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.179, jul.-set. 1999; BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.37. Sobre o protesto por indicação e a instrução do processo executivo, no caso da duplicata virtual, leciona FÁBIO ULHOA COELHO: “O instrumento de protesto da duplicata, realizado por indicações, quando acompanhado do comprovante da entrega das mercadorias, é título executivo extrajudicial. É inteiramente dispensável a exibição da duplicata, para aparelhar a execução, quando o protesto é feito por indicações do credor (LD, art. 15, § 2º). O registro magnético do título, portanto, é amparado no direito em vigor, posto que o empresário tem plenas condições para o protestar e executar. Em juízo, basta a apresentação de dois papéis: o instrumento de protesto por indicações e o comprovante da entrega das mercadorias”, cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 12.ed. rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v.1, p.470.

69 Todo o procedimento das duplicatas virtuais (ou escriturais) é bem resumido por CELSO BARBI FILHO: “Pela conjugação desses dispositivos legais, conclui-se que o documento original da duplicata pode, juridicamente, estar ausente da execução ou do pedido de falência. Emitida a nota fiscal-fatura e não pago o débito no vencimento aprazado, o credor, ou o banco encarregado da cobrança, comparece ao cartório de protestos – ou mesmo envia simples comunicação eletrônica, como permite a nova Lei de Protestos – fornecendo os dados da nota fiscal-fatura e do comprador, alegando que o título foi remetido para aceite ou pagamento, não tendo sido aceito, pago nem devolvido. E, assim, requer-se o protesto da duplicata, por indicações do portador, como permite o citado § 1º do art. 13 da Lei nº 5.474/68”. “Protestada a duplicata supostamente remetida ao sacado – mas em verdade inexistente –, mediante indicações do apresentante, tem-se por suprida sua ausência, ficando o título executivo constituído pela certidão de protesto junto ao comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação do serviço, comumente o canhoto da nota fiscal-fatura. E, assim sendo, torna-se possível o ajuizamento de execução judicial (art. 15, II e § 2º, da Lei nº 5.474/68) ou mesmo pedido de falência (art. 1º, § 3º, do Decreto-Lei nº 7.661/45), sem a presença do título de crédito, mas com o título executivo constituído na forma da lei.” “Com isso, os empresários passaram a não mais emitir as duplicatas, encaminhando borderôs aos bancos, com os números dos supostos títulos, correspondentes aos das respectivas notas fiscais-faturas, seus valores e vencimentos, juntamente com a identificação dos sacados. Os bancos, por sua vez, emitem boletos de cobrança com os dados recebidos dos sacadores, encaminhando-os pelo correio aos sacados para pagamento na rede bancária. Se determinado boleto não é pago, os bancos utilizam sua primeira via como instrumento que contém as informações necessárias para se requerer o protesto por indicações do portador (art. 13, § 1º, da Lei de Duplicatas). Tirado o protesto, a certidão deste juntamente com o comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação do serviço presta-se adequadamente à execução ou ao pedido de falência na forma do art. 15, inciso II e § 2º, da Lei nº 5.474/68” (BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.37-40). Da mesma forma, recomendamos a leitura de COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. 12.ed. rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v.1, p.468-471; TOMAZETTE, Marlon.A duplicata virtual. Revista dos Tribunais, v.92, n.807, p.725-740, p.738-739, jan.2003; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Reflexões sobre a informatização da atividade bancária e a desmaterialização dos títulos de crédito. Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n.20, p.226-236, p.232, abr.-jun. 2003; BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, jul.-set. 1999; BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.33-64.

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Diante de tal realidade, grande parte da doutrina70 e da jurisprudência71 posiciona-se favoravelmente à duplicata virtual: existiria

70 Entre os diversos doutrinadores que defendem tal rotina (TOMAZETTE, Marlon. A duplicata virtual. Revista dos Tribunais, v.92, n.807, p.725-740, p.738-739, jan.2003; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Reflexões sobre a informatização da atividade bancária e a desmaterialização dos títulos de crédito. Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n.20, p.226-236, abr.-jun. 2003; BOITEUX, Fernando Netto. Títulos de crédito: em conformidade com o novo Código Civil. São Paulo: Dialética, 2002, p.53; DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo Código Civil (arts. 854 a 926), Rio de Janeiro: Forense, 2003, v.XII, p.140-143), citamos, exemplificativamente, a posição de FÁBIO ULHÔA COELHO, a qual consideramos emblemática tendo em vista sua convicção: “O direito em vigor dá sustentação (...) à execução da duplicata virtual, porque não exige especificamente a sua exibição em papel, como requisito para liberar a prestação jurisdicional satisfativa. Institutos assentes no direito cambiário nacional, como são o aceite por presunção, o protesto por indicações e a execução da duplicata não assinada permitem que o empresário, no Brasil, possa informatizar por completo a administração do crédito concedido”, cf. COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. 12.ed. rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v.1, p.469.

71 Neste sentido, podemos colacionar os seguintes julgados: “EMENTA: DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DUPLICATA VIRTUAL, CONSTITUÍDA POR NOTAS FISCAIS, BOLETOS BANCÁRIOS E COMPROVANTES DE ENTREGA DE MERCADORIA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. CASO EM QUE A EXECUTADA NÃO NEGA A RELAÇÃO DE DIREITO MATERIAL HAVIDA ENTRE AS PARTES, CONSUBSTANCIADA NA COMPRA DE PEÇAS AUTOMOTIVAS E NO RECEBIMENTO DESTAS. TAMBÉM NÃO ADUZ O PAGAMENTO OU QUALQUER JUSTIFICATIVA LEGAL PARA O INCUMPRIMENTO, ARRIMANDO OS EMBARGOS UNICAMENTE NA AUSÊNCIA DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. MANTIDA A SENTENÇA QUE TEVE POR HÍGIDA A EXECUÇÃO E POR IMPROCEDENTES OS EMBARGOS. NEGADO PROVIMENTO À APELAÇÃO” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 19ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70024994329. Porto Alegre, 25 de novembro de 2008. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009); “EMENTA: EMBARGOS À EXECUÇÃO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. Viável a propositura de execução quando embasada em boleto bancário que contenha todas as especificações de duplicata e conste demonstração da entrega da mercadoria bem como o protesto por indicação. Apelação provida. Sentença reformada. Decisão unânime” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 10ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70016075798. Porto Alegre, 14 de setembro de 2006. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009); “EMENTA: AÇÃO DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. PROTESTO DE BOLETO BANCÁRIO. POSSIBILIDADE. Considerando que a parte autora não nega a existência de relação comercial com a empresa sacadora, bem como confessa a sua inadimplência, advém a possibilidade de emissão de duplicata. Título que surge de lançamento contábil, sendo desnecessária, portanto, a impressão via papel da cártula. Indicações presentes no boleto bancário confirmadas pelo sacado, autorizando, como decorrência, o seu aponte. Existência da chamada duplicata virtual. Protesto por indicação válido. APELO PROVIDO” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 20ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70015229149. Porto Alegre, 24 de maio de 2006. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009). Do mesmo modo, fazemos referência, ainda que exemplificativamente, aos seguintes precedentes: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 20ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70019965987. Porto Alegre, 20 de junho de 2007. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

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uma circulação de crédito sem a existência da impressão em papel da duplicata. Tal entendimento, todavia, resta equivocado, pois defender que, na situação acima descrita, houve circulação de crédito com base em uma duplicata não passa de deturpar a lógica e o formalismo exigido pelos títulos de crédito, visto que todo o procedimento na prática realizado colide frontalmente com os dispositivos da Lei nº 5.474/68. A única coisa que não existe, nesta rotina comercial, é uma duplicata (quiçá virtual), como agora passamos a demonstrar.

Primeiramente, cumpre dizer que a duplicata ali nunca foi extraída, nos termos do art. 2º da Lei de Duplicatas72. Há nota fiscal-fatura decorrente Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 15ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70020453569. Porto Alegre, 13 de agosto de 2008. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 19ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70022069975. Porto Alegre, 01 de abril de 2008. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 16ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70018092759. Porto Alegre, 07 de fevereiro de 2007. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun.2009; BRASIL. Tribunal de Alçada do Estado do Paraná. 1ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 69.065-5. Curitiba, 06 de setembro de 1994. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009; BRASIL. Tribunal de Alçada do Estado do Paraná. 1ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 67.649-3. Curitiba, 20 de junho de 1994. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 27 jun.2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 13ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 0566629-7. Curitiba, 29 de abril de 2009. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 14ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 0491010-5. Curitiba, 30 de julho de 2008. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 13ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 0444969-0. Curitiba, 02 de abril de 2008. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 10ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível nº 84.643-4. São Paulo, 02 de junho de 1998. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 20 jul. 2007; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 20ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível nº 1331144700. São Paulo, 13 de outubro de 2008. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 27 jun. 2009; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 21ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível nº 7085994800. São Paulo, 12 de setembro de 2007. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 27 jun. 2009; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 40078. Brasília, 10 de dezembro de 1997. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 jul. 2007.

72 “Art. 2º. No ato da emissão da fatura, dela poderá ser extraída uma duplicata para circulação como efeito comercial, não sendo admitida qualquer outra espécie de título de crédito para documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador. § 1º. A duplicata conterá: I – a denominação ‘duplicata’, a data de sua emissão e o número de ordem; II – o número

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de uma compra e venda (ou prestação de serviço) e o crédito é transmitido ao banco (verdadeira cessão de crédito) ou este é contratado apenas para prestar o serviço de cobrança – mas de forma alguma houve endosso de duplicata, pois esta não existe73; a duplicata nunca foi extraída e muito menos encaminhada ao aceite do sacado (o qual recebeu unicamente um boleto bancário – os quais não são padronizados – e que os bancos nem sequer possuem comprovante de entrega)74, outro pressuposto indispensável, nos termos do art. 6º75-76. Duplicata não existe, então, porque

da fatura; III – a data certa do vencimento ou a declaração de ser a duplicata à vista; IV – o nome e domicílio do vendedor e do comprador; V – a importância a pagar, em algarismos e por extenso; VI – a praça de pagamento; VII – a cláusula à ordem; VIII – a declaração do reconhecimento de sua exatidão e da obrigação de pagá-la, a ser assinada pelo comprador, como aceite, cambial; IX – a assinatura do emitente. § 2º. Uma só duplicata não pode corresponder a mais de uma fatura. § 3º Nos casos de venda para pagamento em parcelas, poderá ser emitida duplicata única, em que se discriminarão tôdas as prestações e seus vencimentos, ou série de duplicatas, uma para cada prestação distinguindo-se a numeração a que se refere o item I do § 1º dêste artigo, pelo acréscimo de letra do alfabeto, em seqüência.”

73 Assim afirma JOSÉ CARLOS REZENDE que não se trata de endosso a transmissão dos dados referentes à uma compra e venda, por parte do vendedor ao banco, por meio do borderô eletrônico, cf. REZENDE, José Carlos. Os títulos de crédito eletrônicos e a execução da duplicata virtual. 2003. 164p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, p.92. E, no mesmo sentido, obtempera CELSO BARBI FILHO: “Nas operações de desconto bancário de duplicatas, os títulos são transferidos às instituições financeiras por endosso translativo ou pleno. Assim, o endossatário torna-se efetivamente o proprietário da duplicata, podendo exercer todos os direitos dela decorrentes, inclusive o de regresso, contra o endossante”. “Fica óbvio, portanto, que nessas operações de desconto de duplicata a cártula tem que ser efetivamente emitida e entregue ao banco, pois só nela pode ser aposto o endosso translativo que transfere sua propriedade ao endossatário. Descabe falar aqui na hipótese de supressão documental da duplicata, porquanto o que o emitente do título faz não é simples cobrança bancária de seu crédito, mas recebimento antecipado do mesmo mediante contração de um débito junto ao banco pelo desconto da duplicata” (cf. BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.131).

74 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo Código Civil (arts. 854 a 926). Rio de Janeiro: Forense, 2003, v.XII p.139; DE LUCCA, Newton.Títulos e contratos eletrônicos: o advento da informática e seu impacto no mundo jurídico. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (coord.). Direito e internet: aspectos jurídicos relevantes. Bauru: Edipro, 2000, p.42-43.

75 Lei nº 5.474/68: “Art. 6º. A remessa de duplicata poderá ser feita diretamente pelo vendedor ou por seus representantes, por intermédio de instituições financeiras, procuradores ou, correspondentes que se incumbam de apresentá-la ao comprador na praça ou no lugar de seu estabelecimento, podendo os intermediários devolvê-la, depois de assinada, ou conservá-la em seu poder até o momento do resgate, segundo as instruções de quem lhes cometeu o encargo. § 1º. O prazo para remessa da duplicata será de 30 (trinta) dias, contado da data de sua emissão. § 2º. Se a remessa fôr feita por intermédio de representantes de instituições financeiras, procuradores ou correspondentes êstes deverão apresentar o título, ao comprador dentro de 10 (dez) dias, contados da data de seu recebimento na praça de pagamento”.

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não foi extraída nem remetida para aceite do devedor, como determina a legislação vigente!

Ademais, outros pontos restam grosseiros na defesa da duplicata virtual. Acaba-se por aceitar, caso não pago o boleto bancário, o protesto por indicação de uma duplicata inexistente; esta espécie de protesto foi criada, entretanto, para o caso de retenção da duplicata por parte do sacado, quando este a recebe para apor seu aceite (art. 13, § 1º). Nestes termos, admitir-se o protesto (seja por falta de aceite, devolução ou pagamento) por meio da indicação do borderô ou boleto bancário, sendo que nunca nenhuma duplicata foi remetida ao devedor para aceite (não retendo nenhum documento, consequentemente), é deturpação enorme do objetivo da lei, ficando este último subordinado ao arbítrio tanto do suposto credor quanto da instituição financeira; não deve ser acatado, logo, o protesto por indicação sem o cumprimento das exigências legais77. Todavia, poucas são

76 Sobre a necessidade de remessa da duplicata ao sacado para aceite, já se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo, acatando o previsto em lei: “Ementa. Falência – Ação pré-falimentar – Duplicata escritural sem aceite – Remessa ao sacado – Prova – Necessidade – Requisito cuja falta descaracteriza título executório – Carência decretada – Improvimento ao recurso – Interpretação dos artigos 6º, 7º e 15, caput, II, letras a, b e c, § 2º, da Lei nº 5.474/68 – Voto vencido. Porque se caracteriza como título executório, não basta que, emitida sob a inovação da modalidade escritural, a duplicata tenha sido protestada e esteja acompanhada de documento comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria, sendo necessária prova de remessa ao sacado para aceite” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2ª Câmara de Direito Privado. Apelação Cível nº 91.701-4. São Paulo, 01 de dezembro de 1998. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 20 jul. 2007). Andando no mesmo sentido, remetemos ao seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: “Ementa. DUPLICATA. Aceite. Protesto. Não pode ser protestada por falta de aceite duplicata que não foi enviada ao aceite do sacado, especialmente se este, tomando conhecimento de um boleto bancário, comunica que não recebeu a mercadoria a que se refere o título. Recurso conhecido e provido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 499516. Brasília, 17 de junho de 2003. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 27 jun. 2009).

77 “(...) o protesto por indicação somente pode ser feito nos casos em que o título é enviado para aceite ou pagamento e não é devolvido. É condição sine qua non que o título tenha sido emitido e enviado ao sacado (...).”, cf. REZENDE, José Carlos. Os títulos de crédito eletrônicos e a execução da duplicata virtual. 2003. 164p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2003, p.118. Igualmente, ver BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.41 e ss.; BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.115, p.171-183, p.178-179, jul.-set. 1999, v.37. Neste mesmo sentido, já se posicionaram os Tribunais pátrios em alguns precedentes (dos quais colacionamos, nesta oportunidade, alguns deles a título exemplificativo): “AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUSTAÇÃO DE PROTESTO. BOLETO BANCÁRIO. 1. Em que pese já ter transcorrido o prazo de aponte, provavelmente tendo havido o protesto, o agravo de instrumento sob análise foi interposto antes da efetivação da medida. O recurso não está prejudicado. Precedente desta Corte.

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as Corregedorias de Justiça estaduais que impõem aos cartórios de protestos

2. Em tese, trata-se de duplicata virtual, cujo boleto bancário, enviado para que o sacado pague, ficou com o mesmo. É descabido o protesto por indicação feita por meio eletrônico ou gravação eletrônica de dados, vez que a medida deixa o sacado ao livre-arbítrio do banco. Precedentes do STJ e desta Corte. 3. No caso, a cobrança de dívida existente do cooperado para com a cooperativa, decorrente de prejuízo operacional da sociedade, não é causa que justifique a emissão de duplicata. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 14ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 70010791382. Porto Alegre, 22 de fevereiro de 2005. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009); “EMENTA: DUPLICATA. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO. Não se tratando, na espécie, de retenção de duplicata, não poderia a empresa/apelante, nos termos do § 3º do art. 21 da Lei 9.492/97, proceder no apontamento por indicação mediante boleto bancário, já que não trata de retenção de duplicata. Apelo improvido” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 19ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70003966942. Porto Alegre, 11 de março de 2003. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun.2009); “Ementa. Falência – duplicata mercantil – comprovação – remessa para aceite – protesto de boletos bancários – impossibilidade – extração de triplicatas fora das hipóteses legais. I – Para amparar o pedido de falência, é inservível a apresentação de triplicatas imotivadamente emitidas, eis que não comprovados a perda, o extravio ou a retenção do título. II – A retenção da duplicata remetida para aceite é condição para o protesto por indicação, inadmissível o protesto de boletos bancários. Recurso não conhecido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial nº 369808. Brasília, 21 de maio de 2002. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 jul. 2007); “Ementa. Direito Comercial. Duplicata mercantil. Protesto por indicação de boletos bancários. Inadmissibilidade. I – A retenção da duplicata remetida para aceite é conditio sine qua non exigida pelo art. 13, § 1º, da Lei nº 5.474/68 a fim de que haja protesto por indicação, não sendo admissível protesto por indicação de boletos bancários. II – Recurso não conhecido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 827856. Brasília, 28 de agosto de 2007. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 27 jun. 2009); “Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CANCELAMENTO DE APONTAMENTO DE TÍTULO A PROTESTO CUMULADA COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DUPLICATA MERCANTIL. BOLETO BANCÁRIO REPRESENTATIVO DA DÍVIDA. IMPOSSIBILIDADE DE PROTESTO. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. CANCELAMENTO DO ATO NOTARIAL QUE SE IMPÕE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Ausente a comprovação do preenchimento dos requisitos estabelecidos no art. 21, § 3º, da Lei nº 9.492/97 – prova de envio do título ao sacado para aceite e a sua não devolução no prazo legal –, não há falar em protesto por indicação” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. 1ª Câmara de Direito Comercial. Apelação Cível nº 2008.063806-1. Florianópolis, 02 de abril de 2009. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Disponível em: <www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 28 jun. 2009). Ademais, entendemos por inviável o protesto de boleto bancário, uma vez que, apesar de a Lei nº 9.492/97 autorizar, em seu art. 1º, o protesto de títulos e de documentos representativos de dívidas, temos que os boletos bancários, por si sós, porque emitidos unilateralmente pelos bancos, e sem qualquer anuência do devedor ou previsão contratual, não se reputam títulos ou documentos representativos de dívida, mas mera declaração unilateral do credor; neste sentido, remetemos, exemplificativamente, ao seguinte julgado: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 18ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70009880071. Porto Alegre, 18 de novembro de 2004. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009.

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a exigência obrigatória do comprovante de remessa da duplicata ao devedor/sacado para se tirar o protesto por indicações – o que dificultaria a prática desta operação78 (e mais raros são os sacados, quando intimados do protesto a ser lavrado por indicações, reclamarem e fazerem constar da certidão respectiva, como é seu direito pelo art. 22, inc. IV, da Lei nº 9.492/9779, que não receberam ou retiveram nenhuma duplicata, sendo também reduzido o número daqueles que arguem o não recebimento e a não retenção do título quando judicialmente executados)80.

Do mesmo modo, considerar suficiente tanto o borderô remetido à instituição financeira quanto o boleto bancário (juntamente com o comprovante da entrega das mercadorias ou da prestação de serviço e o protesto por indicação ilicitamente realizado) para a instrução do processo

78 “Os bancos, como se sabe, não possuem meios de comprovação adequados para que o boleto enviado aos sacados possa constituir-se numa apresentação legal do título a pagamento. Recentes Provimentos emanados das Corregedorias dos Tribunais de Justiça de alguns dos estados de nossa Federação, v.g., o do Estado de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, de São Paulo e de Rondônia, recomendaram aos Oficiais de Protestos de Títulos que se abstivessem “... de receber para apontamento duplicatas não aceitas, ou indicação de duplicatas não aceitas, da espécie de venda mercantil ou de prestação de serviços, quando desacompanhadas da prova do vínculo contratual que autorize, respectivamente, a entrega do bem ou a prestação dos serviços (§ 3º do art. 20 da Lei nº 5.474, acrescentado pelo Decreto-Lei nº 436, de 27.01.69)” [Circular nº 49, de 15 de abril de 1996, asssinada pelo Desembargador João Martins, Corregedor-Geral da Justiça. Em igual sentido, a Circular 32/93, do Rio Grande do Sul]”, cf. DE LUCCA, Newton.Comentários ao novo Código Civil (arts. 854 a 926). Rio de Janeiro: Forense, 2003, v.XII, p.139, grifo do autor; na p.140 ensina, portanto, que, aos poucos, o sistema de cobrança que prescinde da existência do título tradicional (documento corpóreo) passa a encontrar sério óbice à sua operacionalização pois, para que se efetive o protesto por indicação, tende-se a exigir declaração da instituição financeira apresentante no sentido de que ela, efetivamente, enviou ao sacado a duplicata correspondente. Igualmente, ver DE LUCCA, Newton. Títulos e contratos eletrônicos: o advento da informática e seu impacto no mundo jurídico. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (coord.). Direito e internet: aspectos jurídicos relevantes. Bauru: Edipro, 2000, p.42-43.

79 “Art. 22. O registro do protesto e seu instrumento deverão conter: (...) IV – certidão das intimações feitas e das respostas eventualmente oferecidas; (...).”

80 Cf. BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.43-44; BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.178-179, jul.-set. 1999. Com efeito, hoje a prática descrita é difundida, a qual, segundo profícua lição de CELSO BARBI FILHO, sedimentou-se em decorrência de duas omissões: “A primeira dos cartórios de protestos, que não exigem dos apresentantes dos títulos a comprovação da remessa e entrega da duplicata ao sacado para realizarem o protesto por indicações.” “E a segunda é dos próprios sacados que, quando intimados do protesto por indicações ou mesmo citados da execução judicial, não argúem a falta de emissão, remessa e recebimento da duplicata original”, cf. BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.178, jul.-set. 1999; e BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.41.

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executivo também colide com o art. 15, II, § 2º, da Lei de Duplicatas, o qual reconhece como título executivo apenas o conjunto formado pela certidão de protesto por indicações legalmente efetuado e pelo comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação de serviço. O borderô eletrônico ou o boleto bancário não constituem títulos executivos extrajudiciais81.

Ainda na questão de instrução do processo executivo, muitos defendem, diante da já suposta existência da duplicata em meio eletrônico, a extração (física) do título posteriormente à data da emissão da nota fiscal-fatura (mas com a mesma data desta), o que, entretanto, é ilegal, afrontando o art. 2º da Lei de Duplicatas82. Igualmente, sustentar a criação de triplicata 81 Cf. BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.180-181, jul.-set. 1999; BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.48-49. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu neste sentido: “Ementa. Execução. Título executivo extrajudicial. Borderôs de desconto de duplicatas. Os “borderôs de desconto de duplicatas” (relação de títulos que emitente-cedente leva ao banco para desconto), ainda que acompanhado dos protocolos de remessa dos documentos para aceite, não constituem títulos de crédito hábeis a embasar o ajuizamento da execução. Recurso especial conhecido mas desprovido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 58075. Brasília, 19 de maio de 1998. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 jul. 2007); no mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 146327. Brasília, 18 de novembro de 1999. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 jul. 2007. Também colacionamos a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “EMENTA: AÇÃO DE ANULAÇÃO DE CAMBIAL. BLOQUETO BANCÁRIO. DOCUMENTO INEXISTENTE COMO DUPLICATA DE SERVIÇOS. COMPROVAÇÃO TESTEMUNHAL DA RELAÇÃO CAUSAL NA AÇÃO DE ANULAÇÃO. 1. Bloqueto emitido pela apelada não se constitui como duplicata de prestação de serviços; não se mostrando como título cambial passível de execução nos termos do art. 585 do CPC, não podendo ser levado a protesto mediante indicação. 2. A existência de vinculação contratual não pode vir a ser suprida, para fins de protesto, por prova testemunhal em face do formalismo a que estão adstritos os títulos cambiários. Apelo provido. Unânime” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 2ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70004619433. Porto Alegre, 11 de dezembro de 2002. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2009); e, por fim, remetemos ao seguinte precedente: “Ementa: EXECUÇÃO. BOLETOS BANCÁRIOS. Triplicatas. Embargos acolhidos. Extinção decretada. Sentença confirmada. Recurso desprovido. Boletos bancários não se tipificam como documentos de crédito nem se prestam a, de forma válida, substituir duplicatas mercantis. Ainda que levados a protesto, mesmo que comprovados o fornecimento e a entrega das mercadorias faturadas, ausentes provas da efetiva emissão do título de crédito correspondente – a duplicata mercantil –, título executável não se tem” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. 2ª Câmara de Direito Comercial. Apelação Cível nº 2006.007395-3. Florianópolis, 04 de maio de 2006. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Disponível em: <www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 28 jun. 2009).

82 Ademais, a emissão de duplicata após o prazo estabelecido em lei pode representar a própria confissão da irregularidade do procedimento do sacador, uma vez que, diante do procedimento da “duplicata virtual” anteriormente descrito, normalmente o sacado é protestado também por

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para instrução da execução colide com o disposto no art. 2383, o qual prevê tal mecanismo apenas quando a duplicata, originalmente extraída, é perdida ou extraviada84-85.

Além de toda a problemática até aqui exposta, outra questão é merecedora de análise. Ora, remetendo o vendedor (ou o prestador de serviço) o borderô eletrônico ao banco, nos termos anteriormente expostos, e enviando a instituição financeira o boleto bancário ao devedor para que este efetue o pagamento, nada impede que o credor extraia, tempestivamente, a duplicata, enviando-a para aceite do sacado; aqui, receberia este tanto o boleto quanto a duplicata e, deixando de pagar um

não ter devolvido o título (protesto por falta de devolução, normalmente cumulado com o protesto por falta de pagamento e aceite, quando possível – uma vez que este último só pode ser feito antes do vencimento da obrigação, nos termos do art. 21, § 1º, da Lei nº 9.494/97); neste sentido, como instruir um processo de execução com a duplicata, sendo que o protesto que legitima a execução é, justamente, o por não ter o devedor devolvido o documento? Como instruir o processo executivo com a duplicata que deveria estar na posse do sacado? Neste sentido, ver BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.50-51; BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, jul.-set. 1999, p.181: “Se a duplicata não aceita surge, então, instruindo a inicial, ou é emitida no curso do processo, evidenciar-se-á que o portador fez declaração falsa quando encaminhou o título para protesto por falta de devolução”.

83 “Art. 23. A perda ou extravio da duplicata obrigará o vendedor a extrair triplicata, que terá os mesmos efeitos e requisitos e obedecerá às mesmas formalidades daquela.”

84 Cf. BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.53-56; BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.182-183, jul.-set. 1999.

85 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Considerações sobre os títulos de crédito no projeto de Código Civil e notas sobre o Código de 2002. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues (coord.). Títulos de crédito. São Paulo: Walmar, 2004, p.367-368: “O problema se põe quando o sacado não paga, tornando-se inadimplente quanto ao negócio subjacente. Exsurge, então, a necessidade da constituição da obrigação cartular, e do título respectivo, tanto para o protesto quanto para aparelhar a execução (Lei 5.474/68, art. 13 e art. 15, inc. II, c.c. CPC, art. 585, inc. I), esbarrando sua emissão a posteriori, no entanto, na letra do art. 2º da Lei de Duplicatas, segundo a qual ‘no ato da emissão da fatura, dela poderá ser extraída uma duplicata’ (art. 2º). Esse óbice tem sido contornado na prática mediante a criação física da duplicata, posteriormente à data da emissão da nota fiscal-fatura (porém com a mesma data desta), com base em três ordens de argumentos, todos precários. De um lado, destaca-se que cabe ao sacado provar a diversidade entre as duas datas, e, assim, o descumprimento da lei e a eventual nulidade do título, ‘prova diabólica’ que sequer pode ser subsidiada com o indício de que o título inexistira porque não foi remetido, para aceite (Lei 5.474/68, art. 6º). De outra parte, sustenta-se que a impressão dos caracteres em computador já atende ao disposto no art. 2º da Lei de Duplicatas, constituindo sua emissão física mera reprodução do que já se acha criado e escriturado, pelo computador (Lei citada, arts. 2º e 19, notadamente o § 3º deste). Chega-se mesmo ao extremo de afirmar, por fim, que não é defesa a emissão, no caso, de triplicata, a despeito do disposto no art. 23 da lei.”

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deles na data do vencimento, sujeitar-se-ia ao protesto daquele que não teve seu crédito satisfeito (instituição financeira ou sacador-tomador)86. Voltamos, então, para a questão da possibilidade de cobrança dupla, tal qual na situação descrita acima (item 3.1), o que, como já vimos, dificulta a aceitação dos títulos eletrônicos.

Como observamos, portanto, o que hoje se chama de duplicata virtual ou escritural longe passa de constituir título de crédito, visto que duplicata não existe, nunca é enviada para aceite e todo o procedimento de protesto e execução é realizado à revelia da lei87. E, nota-se, nossa posição apenas respeita a formalidade legal exigida nas relações cambiárias, o que de modo algum vai contra a utilização dos instrumentos disponibilizados pela informática quando realmente permitidas – o que ocorre com a Lei de Protestos (Lei nº 9.492/97, art. 8º, parágrafo único), a qual admite que as indicações para protesto das duplicatas sejam feitas por meio eletrônico (meio magnético ou de gravação eletrônica de dados); ora, respeitado o disposto na Lei nº 5.474/68, nada impede que, realmente, enviem-se dados

86 Algo semelhante aconteceu no precedente a seguir referido, no qual o devedor pagou diretamente ao vendedor a quantia que já havia sido “endossada” para o banco, o qual, não recebendo o montante, acabou por protestar por indicação o boleto bancário (sendo que, apesar de toda a problemática gerada pela prática difundida no mercado, o eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul reconheceu, de modo expresso, a legalidade da denominada duplicata virtual). Ver: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. 20ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70021686027. Porto Alegre, 14 de novembro de 2007. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 27 jun. 2008.

87 Nesse sentido, CELSO BARBI FILHO, por exemplo, também não reconhece a existência de um título de crédito quando a cártula é suprimida da relação comercial, vislumbrando somente a possibilidade de reconhecimento de um título executivo: “A vigente Lei de Duplicatas criou um mecanismo que permite exatamente isso. É possível, no seu sistema, que se opere com o regime creditício das duplicatas entre vendedor e comprador, no plano comercial e judicial, sem que as cártulas sejam emitidas, inexistindo título de crédito, mas havendo título executivo, por meio do suprimento do aceite (...)”, cf. BARBI FILHO, Celso. A duplicata mercantil em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.34; e, nas p.60-61, assevera: “A essência do título de crédito é o atributo de poder fazer circular o crédito para terceiros, estranhos à relação que o originou. Na duplicata sem aceite, em que esteja provada a entrega da mercadoria ou a prestação do serviço, não sendo emitido o documento cartular, inexistirá título de crédito, pois é impossível que o crédito circule na forma cambial para terceiros estranhos à relação fundamental.” “Todavia, por força do art. 585, inciso VII [atual inciso VIII], do CPC, são títulos executivos todos aqueles que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva. E no caso das duplicatas remetidas ao devedor e não devolvidas nem pagas, o art. 15, inciso II e § 2º da Lei de Duplicatas atribui o caráter de título executivo à certidão de protesto por indicações do portador, acompanhada do comprovante de entrega das mercadorias ou da prestação dos serviços. Assim, embora não haja título de crédito, haverá título executivo”. Da mesma forma, ver BARBI FILHO, Celso. Execução judicial de duplicatas sem os originais do título. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v.37, n.115, p.171-183, p.176, jul.-set. 1999.

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ao Cartório de Protestos de maneira digital, por exemplo. A disciplina dos títulos de crédito apresenta caráter extremamente formal, não se podendo aplicar, como quer boa parte da doutrina e alguns precedentes judiciais, a flexibilização a que está sujeita o restante do Direito Comercial, sob pena do surgimento de grandes incertezas na circulação do crédito, o que se transforma em maiores dificuldades nas relações econômicas88.

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

No intuito de buscar-se maior eficiência na circulação do crédito propiciada pelo Direito Cambiário, a informatização tanto do meio circulatório quanto do próprio título angariou adeptos no mundo jurídico. Neste sentido, o grande debate tende a restringir-se, quanto à disciplina clássica dos títulos de crédito, ao elemento cartularidade (pois a literalidade e a autonomia seriam mantidas no ambiente virtual), centrando-se a querela, com base na clássica definição vivanteana, no conceito de documento, o qual, então, abarcaria não apenas os bens móveis corporificados, mas também aqueles digitalizados.

A princípio, não há como negar tais assertivas, visto que o ordenamento jurídico pátrio reconhece, na atualidade, os documentos eletrônicos. Ademais, além de a jurisprudência já acatar a nova realidade, existe previsão expressa no novo Código Civil da criação e circulação de títulos de crédito eletrônicos (art. 889, § 3º), sendo que, ainda que não incidente sobre a legislação já existente (com a ressalva das discussões sobre a abrangência do art. 903 do nCC e sempre se levando em consideração o art. 3º da Convenção que disciplina o conflito de leis em matéria de letras de

88 Nesse sentido, não concordamos, por exemplo, com a posição de MARLON TOMAZETTE, quem, por exemplo, ao defender a necessidade de adequação da disciplina dos títulos de crédito às novas necessidades e tecnologias – acreditando ser pacífica e sem causadora de problemas a existência da duplicata virtual –, vislumbra no cheque pós-datado (ou pré-datado, para aqueles que assim preferirem) uma demonstração destes novos tempos (cf. TOMAZETTE, Marlon. A duplicata virtual. Revista dos Tribunais, v.92, n.807, p.725-740, p.738, jan. 2003); ora, resta simplória tal alegação e constitui mais uma demonstração de que algumas novas criações sociais não podem, por mais que se queira, modificar a formalidade exigida dos títulos de crédito, posto que a inscrição de data diferente da real data de emissão, no cheque, em nada altera sua natureza de ordem de pagamento à vista: ou seja, o possuidor do título pode depositar o título em data anterior àquela nele inscrita, no caso do cheque pós-datado, constituindo tal ato um mero inadimplemento contratual (nestes termos, coloca-se a avença de depósito em data diversa da emissão do cheque no plano extracartular), como amplamente sedimentado na jurisprudência pátria (cabendo, inclusive, a condenação do apresentante ao pagamento de danos morais, como restou consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça na Súmula 370).

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câmbio e notas promissórias – última das Convenções promulgadas pelo Decreto nº 57.663/1966), acaba por refletir nos títulos de créditos atípicos.

Entretanto, fazendo-se estudo mais criterioso, tem-se que, por uma série de razões, a ideia de informatização não é plenamente compatível com a clássica disciplina dos títulos de crédito. No plano teórico, é equivocado adotar o conceito de título de crédito de CESARE VIVANTE e de documento dado por FRANCESCO CARNELUTTI, como boa parte da doutrina faz, para dizer que tais definições abarcariam o “documento eletrônico”, já que estes juristas viveram em época diferente da nossa, nunca imaginando o fenômeno da informática e suas consequências. Mas as críticas vão mais adiante, pois, ainda, é difícil desvincular o título de crédito da cártula, ou seja, de um documento corpóreo, já que toda a disciplina da teoria geral dos títulos de crédito é nela baseada: a circulação se dá com base em normas de direito real e só a partir dela é que se pensa nos efeitos de direito obrigacional. E, como consequência, tem-se a insegurança gerada pela circulação eletrônica, visto que em cada nova transmissão ocorre verdadeira duplicação do documento digital, podendo existir replicação de destinatários de um mesmo título – o que é totalmente impossível quando se fala em suporte cartáceo.

Da mesma forma, na prática, o que se costuma denominar duplicata virtual passa longe de ser qualquer título de crédito, pois a duplicata, no referido procedimento, nunca foi extraída nem enviada para aceite do sacado. Assim, todo o procedimento realizado afronta a Lei nº 5.474/68 porque se acaba por permitir o protesto por indicação fora dos casos previstos, além da instrução do processo de execução sem os documentos minimamente exigidos – isso para não salientar, aqui, outros desvirtuamentos aceitos pela prática mercantil.

Diante de todo o exposto, demonstramos que a disciplina dos títulos de crédito não é tão facilmente compatível com os meios disponibilizados pela informática, devendo-se ser mais criterioso ao aplicar os mecanismos eletrônicos ao Direito Cambiário. Apesar da agilidade e eficiência que tende a gerar – e isso fica patente na pouca contestação que sofre o procedimento da duplicata virtual –, deve-se atentar que a incerteza que acarreta vai contra os objetivos que deram origem aos títulos de crédito. Assim, “(...) consideramos que a tecnologia informática ainda não criou mecanismos suficientemente seguros para viabilizar a existência de Títulos de Crédito

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Eletrônicos e que respeitem os requisitos mínimos exigidos por lei”89. Ou seja: de forma alguma consideramos, a priori, totalmente inviável a utilização de meios eletrônicos como ferramentas jurídicas90 (e, portanto, não aceitamos a pecha de conservadores), mesmo porque não há como saber quais os desdobramentos da tecnologia daqui em diante; entretanto, com os recursos hoje existentes, falar-se em títulos de crédito eletrônicos é grande impropriedade.

Por outro lado, reconhecemos que o mundo evolui e hoje seria mesmo inviável exercer qualquer atividade econômica sem a utilização da informática, a qual fornece outros meios para a realização de pagamentos e transações financeiras. Neste sentido, substitutos aos títulos de crédito tendem a surgir (como já surgiram) e, diante das objeções que neste ensaio levantamos, talvez tenhamos de concordar com PAULO SALVADOR FRONTINI, que afirma que os títulos de crédito não deixarão de existir, mas que terão sua utilização reduzida91.

5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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89 BATELLO, Silvio Javier. O Código Civil brasileiro e os títulos de crédito eletrônicos. Cadernos do

Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, n.IV, p.237-249, p.248, set. 2005. 90 BATELLO, Silvio Javier. O Código Civil brasileiro e os títulos de crédito eletrônicos. Cadernos do

Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, n.IV, p.237-249, p.248, set. 2005. 91 FRONTINI, Paulo Salvador. Títulos de crédito e títulos circulatórios: que futuro a informática lhes reserva? Rol e funções à vista de sua crescente desmaterialização. Revista dos Tribunais, a.85, v.730, p.50-67, p.62, ago. 1996.

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O DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL PROVOCADO PELA ALTERAÇÃO

SUPERVENIENTE DA BASE NEGOCIAL: A RESOLUÇÃO E A REVISÃO CONTRATUAL

POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL E NO CÓDIGO DE

DEFESA DO CONSUMIDOR FERNANDO COSTA DE AZEVEDO*

Sumário: Introdução; 1 – Desequilíbrio contratual e alteração superveniente da base negocial: aspectos relevantes; 1.1 O princípio do equilíbrio contratual; 1.2 A alteração da base do negócio; 2 – A revisão e a resolução dos contratos por onerosidade excessiva: análise no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor; 2.1 A revisão e a resolução contratual no Código Civil; 2.2 A revisão e a resolução contratual no Código de Defesa do Consumidor; 3 – Conclusão; Referências bibliográficas.

Resumo: O presente trabalho analisa os temas da resolução e da revisão contratuais motivadas por alteração superveniente da base negocial, quer nas relações obrigacionais em geral, reguladas pelo Código Civil de 2002, quer nas relações obrigacionais de consumo, reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor. Para tanto, dois são os momentos nos quais se divide a pesquisa: em primeiro lugar, uma análise do princípio do equilíbrio contratual no contexto do direito contratual contemporâneo, seguida da análise acerca do que seja a alteração superveniente da base negocial, razão das pretensões de revisão

* Doutorando em Direito – PPGD/UFRGS. Mestre em Direito – CPGD/UFSC. Professor Assistente nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da UFPel e UCPel. Professor convidado no Programa de Pós-Graduação em Direito – UFRGS (Curso de Especialização em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais). Membro de Diretoria Nacional do Brasilcon (biênio 2010-2012). Ex-Conselheiro Estadual de Defesa do Consumidor/RS (biênio 2006-2008).

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e resolução contratuais por onerosidade excessiva; em segundo lugar, a apresentação, por análise comparativa entre Código Civil de 2002 e Código de Defesa do Consumidor, das matérias acerca da revisão e da resolução contratuais motivadas por alteração superveniente da base negocial (revisão e resolução contratuais por onerosidade excessiva).

Abstract: The present work analyses the themes of contractual resolution and review motivated by subsequent change of the based bargaining, either in the obligational relations in general, regulated by the Civil Code from 2002, or in the consumption obligational relations, regulated by the Code of Consumer Protection. In order to do so, two are the moments in which the research is divided: firstly, an analysis of the principle of contractual balance in the context of the contemporary contractual law, followed by the analysis concerning what the subsequent change of based bargaining is, reason for the assumption of contractual review and resolution due to excessive burden; secondly, the presentation, based on the comparative analysis between the Civil Code of 2002 and the Code of Consumer Protection, the subjects concerning the contractual review and resolution motivated by subsequent change of based bargaining (contractual review and resolution due to excessive burden).

Palavras-chave: Desequilíbrio contratual – base negocial – onerosidade excessiva – Código Civil – Código de Defesa do Consumidor

Keywords: Contractual imbalance – based bargaining – excessive burden – Civil Code – Code of Consumer Protection

INTRODUÇÃO

O objetivo principal do presente trabalho consiste na análise do desequilíbrio contratual provocado pela alteração superveniente da base negocial, que pode dar ensejo à revisão ou à resolução (extinção) de determinados tipos de contrato – chamados bilaterais (comutativos) e de execução prolongada no tempo – por onerosidade excessiva.

Para a realização desse objetivo, o trabalho será desenvolvido do seguinte modo: em primeiro lugar, serão apresentados os aspectos mais relevantes das duas realidades fundamentais desta pesquisa: a do desequilíbrio contratual e a da alteração da base negocial. Nesse sentido, o

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primeiro esforço é o de analisar o princípio do equilíbrio contratual como norma fundamental para as pretensões de revisão e resolução contratual nas relações civis e de consumo; o segundo esforço é o de analisar o efeito provocado pela quebra do equilíbrio contratual: a alteração superveniente da base negocial1 (tópico 1).

Por fim, serão apresentados os instrumentos jurídicos (pretensões) destinados à correção do desequilíbrio contratual gerado pela alteração superveniente da base negocial: a revisão e a resolução contratual por onerosidade excessiva. A análise dessas pretensões jurídicas é feita em estudo comparativo das duas codificações do Direito Privado brasileiro: o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor (tópico 2).

1 – DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL E ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE DA BASE NEGOCIAL: ASPECTOS RELEVANTES

1.1 O Princípio do Equilíbrio Contratual

A concepção liberal do Estado de Direito, dominante entre o Século XIX e a primeira metade do Século XX, foi construída a partir de determinadas ideias (“dogmas”), que se refletiram profundamente em todos os setores da vida humana e social, como o próprio direito. Nesse sentido, interessa a reflexão de NORONHA:

“A teoria jurídica construída pela ideologia liberal assentava em alguns dogmas, que hoje estão em crise: a irredutível oposição entre o indivíduo e a sociedade (o Estado seria um mal necessário, cujas atividades era necessário restringir ao mínimo); o princípio moral da autonomia da vontade (a vontade humana seria o elemento essencial na organização do Estado, na assunção de obrigações, etc.); o princípio da liberdade econômica (laisser faire, laisser passer) e, finalmente, a concepção formalista, meramente teórica, da igualdade e da liberdade política (afirmava-se que os homens eram livres e iguais em direitos, sem se curar de saber se a

1 Cumpre observar que o trabalho faz um recorte, analisando apenas a alteração superveniente da base negocial provocada por situação não imputável à conduta de qualquer dos contratantes. Isso porque o desequilíbrio contratual pode ser gerado, também, por situação imputável ao contratante, como, p. ex., o inadimplemento do devedor. O trabalho foca a atenção na onerosidade excessiva do contrato, gerada por evento alheio à participação de qualquer um dos contratantes, que será analisada no tópico 2.

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todos eles seriam proporcionadas as condições necessárias para exercitarem tais liberdades.”2

No período histórico referente à passagem supra, o direito privado foi explicado pelo voluntarismo jurídico, que atribuía à vontade individual o papel de fonte exclusiva da criação dos negócios jurídicos, chegando a ignorar a existência anterior do direito objetivo3. No contexto do voluntarismo jurídico, o princípio da autonomia da vontade – manifestado tanto no direito público (regramento da organização e atuação do Estado) como no direito privado (regramento das condutas dos particulares – representou, no campo das relações privadas, o reconhecimento do poder de autodeterminação racional como condição essencial da dignidade humana, ideia própria à filosofia kantiana: o indivíduo é livre quando pode submeter-se a leis que ele mesmo se dá4.

Por essa razão, o contrato passou a ser visto, no campo das relações privadas, como o principal instrumento jurídico de expressão da autonomia da vontade5, campo próprio ao exercício do poder de autodeterminação dos indivíduos entre si. Nesse sentido, a afirmação de PONTES DE MIRANDA: “O autorregramento da vontade, a chamada autonomia da vontade, é que permite que a pessoa, conhecendo o que se produzirá com o seu ato, negocie ou não, tenha ou não o gestum que a vincule”6. A proteção da

2 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994, p.64.

3 GOMES, Orlando. Transformações Gerais no Direito das Obrigações. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.09. Observa o autor que: “O voluntarismo clássico atribuía à vontade o papel de fonte exclusiva da criação do Direito, a tal ponto que ignorava a existência anterior do direito objetivo, somente mais tarde se vindo a reconhecer que a vontade individual não passa, como disseram os MAZEAUD, de um comutador que dá passagem a uma corrente cuja fonte se encontra alhures. Nessa fonte reside, porém, a causa geradora dos direitos, visto que os interesses individuais exteriorizados numa declaração de vontade são protegidos apenas na medida em que o direito positivo os reconhece” (idem, p.09-10). Na sequência, o autor discorre sobre a passagem da Teoria da Vontade (SAVIGNY, WINDSCHEID) – que sustentava a primazia da vontade sobre o direito objetivo (lei) – para a teoria da declaração (LIEBE, BULOW) como reação dos juristas à ideia segundo a qual a primazia da vontade individual sobre a lei poderia conduzir ao arbítrio. Ressalta, por fim, que em ambas as teorias não se foge ao voluntarismo, pois a segunda teoria (da declaração) é apenas um abrandamento da primeira (idem, p.10-12). As principais modificações, de rompimento do voluntarismo clássico, surgiram, um tempo depois, com as teorias da base do negócio e da confiança.

4 Idem, p.112. 5 NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A Teoria Contratual e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.47-48.

6 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 2.ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, t.XXXVIII, p.39. Segundo ROPPO, o contrato é instrumento jurídico que formaliza uma

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vontade se justificou em razão da concepção de indivíduos livres e iguais perante a lei, capazes de escolher uma vinculação jurídica por meio dos contratos7.

A autonomia da vontade, nesse contexto jurídico de matriz liberal, apresentou como reflexos os princípios da liberdade contratual, da força obrigatória dos contratos, da relatividade dos efeitos contratuais e do consensualismo8. Por meio da liberdade contratual, foi assegurado aos indivíduos o poder de vincular-se a determinados contratos e, ao mesmo tempo, o de estipular o conteúdo (efeitos) desses vínculos jurídicos9. A força obrigatória dos contratos, sintetizada na máxima pacta sunt servanda, representou a impossibilidade de modificação dos efeitos contratuais ante a vontade declarada pelos indivíduos, ideia positivada no art. 1.134 do Código Civil francês: “Les conventions légalment formées tiennent lieu de loi à ceux qui les on faites”10. Pela relatividade dos efeitos contratuais sustentou-se que o contrato só poderia gerar efeitos àqueles que manifestaram vontade de se vincular a ele, não podendo, portanto, alcançar terceiros11. Por fim, o consensualismo sustentou a primazia da vontade declarada sobre o formalismo, partindo da visão de que é o consenso (o

operação econômica, sendo esta uma atividade de circulação ou transferência de riqueza. Sobre o termo “riqueza” entende o autor que “... não nos referimos só ao dinheiro e aos outros bens materiais, mas consideramos todas as ‘utilidades’ susceptíveis de avaliação econômica, ainda que não sejam ‘coisas’ em sentido próprio: nestes termos, até a promessa de fazer ou de não fazer qualquer coisa em benefício de alguém, representa, para o promissário, uma riqueza verdadeira e própria” (ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p.13).

7 Na verdade, pode-se dizer que a lei estabelecia, no contexto do Estado de Direito Liberal, pouquíssimas restrições à proteção da vontade, sendo a mais significativa o controle da validade das declarações de vontade (negócios jurídicos) por meio dos critérios gerais de validade (capacidade do agente, licitude do objeto, obediência a determinada forma prescrita em lei, ausência de vício na declaração da vontade, como o dolo, a coação, o erro, etc.). Nesse sentido, ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo Código Civil. Revista CEJ, Brasília, n.25, abr.-jun. 2004, p.60.

8 NOVAIS, Alinne Arquette Leite, op. cit., p.53-63. 9 Idem, p.54-58. Para NORONHA, a liberdade contratual subdivide-se em dois aspectos: a liberdade

contratual (em sentido estrito) e a liberdade de contratar. No último caso, significa a faculdade de realizar ou não determinado contrato; no primeiro caso, a faculdade de estipular o conteúdo contratual. Por fim, observa que: “O interesse da distinção estaria fundamentalmente em enfatizar que, enquanto a liberdade de contratar tem sido mantida, em termos gerais, a liberdade contratual tem sofrido amplas restrições” (NORONHA, Fernando, op. cit., p.117).

10 Idem, p.59-62. 11 Idem, p.62.

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acordo de vontades) o elemento fundamental à existência e à validade dos contratos12.

Já o direito privado contemporâneo – construído ao longo da passagem da concepção liberal para concepção social do Estado de Direito13 – caracterizou-se pela crítica e redimensionamento do princípio da autonomia da vontade e seus reflexos. Nesse sentido, a reflexão de ORLANDO GOMES:

“A partir do momento em que se passou a sustentar que ‘a força da vontade deriva do direito objetivo e não da própria vontade’, tornando-se indiscutível que todo efeito jurídico se reconduz à lei e só se produz na medida em que o autoriza, a noção de Privat autonomie se constitui no conceito básico do direito privado (...). Sempre, portanto, que os particulares podem, através de um negócio jurídico, suscitar os efeitos jurídicos correspondentes ao seu intento empírico, buscando um fim próprio admitido e tutelado pelo ordenamento jurídico, estão a exercer um ato de autonomia privada.”14

A autonomia privada (Privat autonomie), em substituição ao conceito de autonomia da vontade15, representou a poder de autorregulamentação

12 Observa ALINNE NOVAIS, a propósito, que “... é na época do liberalismo que o princípio do consensualismo ganha relevo e se firma como a regra para a formação dos contratos. No Direito Romano, como antes já aludido, a materialidade era da essência da formação do contrato, como já tivemos a oportunidade de ver, somente mais tarde vindo os romanos a admitir contratos consensuais (...) Desse modo deu-se, então, a transição da necessidade da materialidade, vigente em Roma, para a adoção do princípio do consensualismo, o qual culminou no Século XIX (...) ao contrário dos demais princípios ora analisados como reflexos do dogma da autonomia da vontade, o princípio consensualista não tende a ser superado pelos novos tempos, ao contrário, tende a se firmar cada vez mais, inclusive fazendo desaparecer aqueles infundados resquícios romanistas” (Idem, p.62-63).

13 Sobre o tema: NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: Universidade de Coimbra, v.XXIX, p.257-496, 1986. No campo do direito privado, pode-se dizer que essa transformação representou uma mudança de foco: antes na liberdade contratual, centrada na proteção absoluta da autonomia da vontade; agora, na justiça contratual, centrada na proteção do equilíbrio contratual, que passa a ser condição para obrigatoriedade dos efeitos contratuais estabelecidos a partir das vontades declaradas. Sobre o tema: NORONHA, Fernando, op. cit., p.63-73.

14 GOMES, Orlando. Contratos de adesão – Condições Gerais dos Contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p.30-31.

15 LUIGI FERRI, em obra sobre o tema, observa que: “Igualmente criticable me parece la opinión que prefiere hablar de autonomía de la voluntad mejor que de autonomía privada. Las dos expresiones podrían parecer a primera vista sinônimas, pero no lo son (...). Todo esto explica la imprecisión y el uso indiscriminado de las expresiones ‘autonomía privada’, ‘autonomía de la

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dos interesses por meio de negócios jurídicos (contratos, p. ex.), submetido aos limites do ordenamento jurídico (direito objetivo)16. Esses limites, distintos dos poucos que já existiam no contexto liberal17, refletiram a postura do Estado de Direito Social, de intervenção no âmbito das relações privadas para coibir os desequilíbrios excessivos gerados pelas características da sociedade capitalista pós-Revolução Industrial18.

Nesse contexto, de verdadeiro dirigismo contratual19, reformulou-se a própria concepção do contrato20. Como bem observa CLÁUDIA LIMA MARQUES:

“A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.”21

O princípio da autonomia privada revelou, nos ordenamentos jurídicos próprios a esse modelo social e interventor do Estado de Direito, a

voluntad’, ‘liberdad contractual’, etc., pero sobre todo explica la nula utilidad constrictiva del concepto de autonomia privada así configurada” (FERRI, Luigi. La Autonomía Privada. Tradução de Luis S. Mendizábal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1969, p.5 e 7).

16 Idem, p.42. 17 Segundo ALINNE NOVAIS “A evolução do Estado liberal para o Estado social, preocupado em garantir a igualdade real dos contratantes e em realizar a justiça contratual e social, trouxe consigo uma redução do papel e da importância do princípio da autonomia da vontade, pois, para minimizar as desigualdades na relação contratual, em virtude das contratações cada dia mais massificadas, objetivadas, este Estado passou a ter de intervir em tais relações, impondo determinadas condutas, ocorrendo, então, o chamado dirigismo contratual” (NOVAIS, Alinne Arquette, op. cit., p.89-90).

18 No campo contratual, as transformações sociais comprometeram, consideravelmente, a interpretação tradicional sobre a autonomia da vontade na medida em que puseram em discussão a premissa segundo a qual os contratos seriam acordos de vontade entre indivíduos livres e iguais. O surgimento dos contratos de adesão, ao longo do Século XX, demonstrou que a liberdade contratual (em sentido estrito) praticamente deixou de existir para um dos contratantes e, com isso, a preconizada igualdade mostrou-se abstrata, desvinculada da realidade social. Sobre o tema: MANDELBAUM, Renata. Contratos de Adesão e Contratos de Consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p.126-128.

19 NOVAIS, Alinne Arquette, op. cit., p.89-96. 20 Sobre a necessidade de “objetivação” na análise do fenômeno contratual (desvinculação de aspectos psicológicos, relacionados à vontade dos indivíduos, e vinculação a aspectos sociais, relacionados, em especial, à dinâmica dos mercados de massa). v. ROPPO, Enzo, op. cit., p.308-311.

21 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.210.

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existência de novos princípios, conformadores da aplicação dos tradicionais princípios da liberdade contratual, força obrigatória dos contratos e relatividade dos efeitos contratuais: a função social do contrato, a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual (ou equivalência material do contrato)22. Em que pese a estreita relação entre estes novos princípios jurídicos do direito contratual, o presente trabalho pretende centrar a atenção apenas no princípio do equilíbrio contratual, tecendo considerações sobre os demais princípios na medida em que sejam necessárias à compreensão do primeiro23.

O princípio do equilíbrio contratual (ou da equivalência material do contrato) evidenciou a ideia segundo a qual o critério de justiça contratual, no Estado de Direito Social, deixa de ser o consenso de indivíduos abstratamente livres e iguais e passa a ser a manutenção do equilíbrio inicial dos efeitos oriundos desse consenso. Como observa PAULO LÔBO:

“Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial de direitos e obrigações, seja para corrigir desequilíbrios supervenientes (...). O princípio clássico pacta sunt servanda [refere-se ao princípio da força obrigatória dos contratos] passa a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.”24

Segundo a passagem supra, a principal função do princípio do equilíbrio contratual é relativizar a aplicação do princípio da força obrigatória dos contratos, pelo que o contrato “faz lei entre as partes” desde que seja possível manter o equilíbrio inicial entre direitos e obrigações25. Trata-se, em essência, da revitalização do tradicional princípio (ou cláusula)

22 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.42, p.188-194, abr.-jun. 2002. ALLINE NOVAIS acrescenta ainda o “princípio da tutela do hipossuficiente” (NOVAIS, Alline Arquette, op. cit., p.84-87).

23 Sobre o princípio da boa-fé objetiva, v. MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. A Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984, v.II. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

24 LÔBO, Paulo Luiz Netto, op. cit., p.192. 25 É verdade que há situações onde o desequilíbrio pode existir já no momento da celebração do contrato (desequilíbrio concomitante à celebração do vínculo contratual). Em tais situações, surge o instituto da lesão, caracterizado pela desproporção entre as prestações contratuais (CC, art. 157; CDC, art. 6º, V, 1ª parte). A matéria foi analisada no trabalho entregue para a disciplina Jurisdição Constitucional (tópico 4).

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rebus sic stantibus26, esquecido no contexto liberal pelo fato de que seria forma de desprestígio à força obrigatória dos contratos, fonte de insegurança nas relações contratuais27.

1.2 A Alteração da Base do Negócio

O principal critério de justiça contratual, no contexto do Estado de Direito Social, é a manutenção do presumido equilíbrio28 entre direitos e obrigações contratuais. Com efeito, em contratos bilaterais e de execução prolongada no tempo, esse equilíbrio pode se perder em razão de fatos supervenientes, havendo a alteração das “circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar”29. Surge, assim, a necessidade de compreender o conceito de “base negocial” (ou base do negócio) cuja modificação pode fundamentar a extinção (resolução) ou a revisão do contrato em causa.

As teorias que se desenvolveram em torno do conceito de base do negócio – atribuídas, em especial, a juristas alemães (OERTMANN, LARENZ) – devem-se a contribuições anteriores, ainda do período liberal, como as de WINDSCHEID e PISKO. Com efeito, é do pandectista WINDSCHEID o conceito original de pressuposição subjetiva como critério capaz de flexibilizar o princípio da força obrigatória dos contratos30. O austríaco PISKO, com o

26 Sobre as origens da cláusula rebus sic stantibus, v. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.

Tratado de Direito Privado. 3.ed, 2. reimpr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t.XXV, p.216-218. 27 Idem, ibidem. 28 Afirma-se que o equilíbrio é “presumido” porque, como já foi dito, o desequilíbrio pode ser concomitante à formação do vínculo contratual, tal como ocorre, p. ex., nas situações de lesão nos contratos (CC, art. 157; CDC, art. 6º, V, 1ª parte).

29 ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.60. 30 Sobre a teoria da pressuposição, de WINDSCHEID, observou PONTES DE MIRANDA: “A teoria da

pressuposição de B. WINDSCHEID (Die Lehre des römischen Rechts von der Voraussetzung, passim; Lehrbuch, I, § 97) tentou mostrar (1850) poder haver restrição da vontade negocial, do jeito que, tendo-se admitido que exista, apareça ou persista determinada circunstância, posto que não se haja considerado condição, a falha torna inadequadas à verdadeira vontade as consequências jurídicas. Seria determinação inexa, sem ser termo ou condição” (PONTES DE MIRANDA. Tratado... t.XXV, p.220). RUY ROSADO DE AGUIAR JR., a seu turno, observa: “A primeira reação ao princípio da inderrogabilidade dos contratos por efeito de fatos novos veio de WINDSCHEID que, em 1850, lançou a teoria da pressuposição, segundo a qual o contratante se obriga com a certeza da permanência de uma situação ou da ocorrência de um fato sem o qual não teria contratado. Falhando esse pressuposto, o interessado poderia resolver o contrato” (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor – Resolução. 2.ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004, p.144). Na teoria de WINDSCHEID, oriunda do contexto liberal e do voluntarismo jurídico, a pressuposição é elemento subjetivo (psicológico), relacionado a uma representação mental do contratante, fator de insegurança na apreciação concreta pelo magistrado.

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conceito de pressuposição típica, buscou atenuar o excesso de subjetivismo da teoria de WINDSCHEID, sem obter grande êxito31. Surgem, então, as construções teóricas em torno do conceito de “base do negócio”.

PAUL OERTMANN, partindo também da teoria de WINDSCHEID, admitiu a existência do conceito de pressuposição bilateral, distinto dos conceitos anteriores pelo fato de ser circunstância (motivo) conhecida e aceita, expressa ou tacitamente, por ambos os contratantes32. Nesse sentido, ainda que não tenha sido estipulada como condição resolutiva no contrato – por não haver necessidade em razão do mútuo conhecimento pelos contratantes – admitiu OERTMANN a possibilidade de resolução contratual em razão do desaparecimento dessa pressuposição bilateral, compreendida por ele como elemento essencial à existência do contrato e, portanto, a base subjetiva do negócio33. A teoria foi alvo de críticas, em especial, por não conseguir trazer, como nos casos anteriores, um pressuposto objetivo para a revisão ou resolução contratual34.

31 Segundo ORLANDO GOMES “A teoria da pressuposição típica, elaborada pelo austríaco PISKO, toma de WINDSCHEID, como ponto de partida, o conceito original que, sem maior êxito, tentou introduzir na dogmática do Direito Civil (...). A pressuposição individual imaginada por WINDSCHEID é uma representação no ânimo das partes, enquanto a pressuposição típica, de PISKO, se objetiva numa situação de fato, igual para todas as pessoas que, em dado momento, querem obrigar-se mediante contrato do mesmo tipo. Alterando-se essa situação, desaparece a relação de equivalência ínsita em todo contrato comutativo (...). Não obstante o cunho objetivo que PISKO procurou infundir em sua interessante construção doutrinária, padece de dois defeitos capitais. A noção de pressuposição típica é vaga e não se liberta inteiramente do elemento psicológico próprio do conceito de WINDSCHEID, pois apesar de ter tentado objetivá-la, qualificando-a, importa sempre numa representação de condições de fato, que, na prática, não ocorre. Por outro lado, tem amplitude que levaria, se aceita, à instabilidade das relações obrigacionais, determinando a resolução, ou o reajustamento, de todos os contratos nos períodos de inflação. Compreenderia ainda situações que se resolvem tranquilamente com a aplicação do princípio pelo qual o devedor se exonera se ocorre força maior” (GOMES, Orlando. Transformações... cit., p.96-97).

32 OERTMANN, Paul. Introducción al Derecho Civil. Barcelona: Labor, 1933, p.305. 33 Idem, ibidem. Comentando a teoria da base subjetiva do negócio, v. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado..., cit., t. XXV,p.222-224.

34 Nesse sentido, ORLANDO GOMES: “Para OERTMANN, a base do negócio é a representação mental de uma das partes de um contrato, conhecida e admitida pela outra, ou a comum representação das duas, sobre a existência ou o aparecimento de certas circunstâncias que condicionam a vontade negocial. Não obstante exigir OERTMANN como requisito para a base do negócio que a outra parte conheça e não repila o condicionamento da vontade à permanência de certas circunstâncias, padece sua teoria do defeito de origem, proveniente como é da concepção voluntarista do negócio jurídico. Não se liberta, com efeito, do subjetivismo de que está impregnado o conceito de pressuposição. O critério adotado para a formulação do novo conceito é meramente psicológico porque leva em conta a representação mental de uma das partes, ou das duas (...) a teoria de OERTMANN não escapa à objeção de LENEL ao conceito de WINDSCHEID, eis

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KARL LARENZ, ao contrário, foi quem, por primeiro, conseguiu trazer a necessária objetivação ao conceito de base do negócio35. Sua teoria parte da distinção entre os conceitos de base subjetiva e objetiva do negócio jurídico, sendo o primeiro a representação mental dos contratantes sobre determinadas circunstâncias que representariam os motivos da contratação, e o segundo, o conjunto dessas circunstâncias, concretamente consideradas, sem as quais o contrato deixaria de ter sentido em razão da destruição da relação de equivalência entre as prestações36.

que, no fundo, a base do negócio é a mesma pressuposição, para a qual se exige apenas o reconhecimento pela outra parte” (GOMES, Orlando. Transformações... cit., p.100).

35 A teoria de LARENZ também foi alvo de muitas críticas, em especial dos que compreenderam que ela esvaziava demais a importância da vontade (elemento psicológico) como elemento integrando do conceito de base do negócio. Nesse sentido, foi LEHMANN que elaborou uma teoria eclética, reunindo aspectos subjetivos da teoria de OERTMANN e objetivos, de LARENZ, a fim de buscar corrigir as faltas de ambos os autores. Em razão das delimitações deste trabalho, e pelo fato de que a teoria de LARENZ apresenta o conceito principal de base objetiva do negócio, utilizado no Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, V, in fine), não será analisada a teoria de LEHMANN. Sobre esta, v. GOMES, Orlando. Transformações... cit., p.104-107; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado... t.XXV, cit., p.225-226.

36 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Tradução de Jaime Santos Briz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958, t.I, p.314-319. ORLANDO GOMES, comentado a teoria de LARENZ, observa que, segundo o jurista alemão “... é possível acolher a noção de base do negócio nos dois sentidos, uma vez que se reconheça que são distintos os seus pressupostos de fato, do que resulta a necessidade de regulá-los separadamente. A base subjetiva do contrato há de ser inserida na teoria do erro, disciplinada, portanto, pelas regras atinentes a esse vício do consentimento. Se é uma representação mental que a configura, diz respeito, em última análise, aos motivos do contrato, devendo a lei dizer se são relevantes para autorizar sua anulação. A base objetiva há de ser dogmaticamente conduzida, segundo LARENZ, à teoria da impossibilidade superveniente. (...) Como, porém, a destruição da base objetiva pode originar-se de pressupostos de fato diversos, distintas são as consequências que acarretam. Há, portanto, que examinar as principais. São, segundo o mesmo LARENZ, a destruição da relação de equivalência e a impossibilidade de alcançar o fim do contrato. (...) Segundo, pois, a teoria de LARENZ, o contrato se desfaz se fica desprovido de sua base, ou perde o sentido, em consequência de uma alteração das circunstâncias, previsíveis, ou não” (GOMES, Orlando. Transformações..., cit., p.103). A teoria da base objetiva do negócio distingue-se, pois, das teorias da imprevisão e da excessiva onerosidade, recepcionadas no direito francês e italiano, sendo este fonte legislativa para o direito brasileiro, haja vista a influência do Código Civil italiano, de 1942, na elaboração do Código Civil de 2002 (arts. 317 e 478). O tema será abordado mais adiante. Contudo, cumpre registrar as inúmeras críticas que essas teorias, em especial a da imprevisão, sofreram por parte da doutrina brasileira, relacionadas ao excessivo subjetivismo (ou “sentimentalismo”) do magistrado na decisão sobre a revisão/resolução do contrato, posto que apoiado na noção de equidade. Sobre o assunto, v. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado..., cit., t.XXV, p.246-252; GOMES, Orlando. Transformações..., cit., p.96-97.

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Sobre as causas e consequências da alteração da base objetiva do negócio, entende a doutrina serem distintas37. Nesse sentido, ensina RUY ROSADO DE AGUIAR JR. que:

“A ação de resolução por incumprimento parte do pressuposto de que o credor já perdeu o interesse pelo adimplemento, enquanto na onerosidade excessiva – assim como regulada na Itália e no Código Civil brasileiro – esse interesse ainda pode existir, tanto que permita a simples modificação do contrato. Também a circunstância de fato que fundamenta o pedido de extinção é, na onerosidade excessiva, estranha às partes, enquanto no incumprimento decorre de fato atribuível ao devedor.”38

A passagem supra traz uma observação de grande importância, porque a partir dela é possível perceber a distinção entre duas consequências da alteração da base negocial: a impossibilidade superveniente da prestação e a inexigibilidade da prestação. No primeiro caso, é o incumprimento (inadimplemento) do devedor a causa da resolução39; já no segundo caso, é o fato superveniente e não imputável à conduta de qualquer dos contratantes40. Em outros termos, a resolução tem fundamento,

37 Na análise precisa de PONTES DE MIRANDA: “Quando se tenta fixar a base objetiva do negócio jurídico, percebe-se que se entra ou no campo da doutrina da impossibilidade superveniente, ou no campo da doutrina do atingimento do escopo” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado..., cit., t.XXV, p.232).

38 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.154. E ROPPO, por sua vez, observa que “A resolução do contrato, em geral, pode acontecer por três causas: quando a prestação devida por uma parte se torna impossível, quando a prestação devida por uma parte se torna excessivamente onerosa e quando a prestação devida por um dos contratantes não foi (exactamente) cumprida” (ROPPO, Enzo, op. cit., p.254). Na afirmação do jurista italiano é possível identificar, na primeira e na terceira hipóteses, a resolução por inadimplemento do devedor (na primeira hipótese, inadimplemento total do contrato; no segundo, apenas parcial ou o cumprimento imperfeito do contrato); na segunda hipótese – que interessa para este trabalho – a resolução ocorre por onerosidade excessiva da prestação.

39 GIOVENNE, em obra clássica na doutrina italiana, sustentou a diferença entre impossibilidade subjetiva e objetiva da prestação. Nesse sentido: “Per impossibilità obbietiva noi intendiamo quella la quale ha il suo fondamento nell’obbieto, in sè considerato, dell’obbligazione (...); per impossibilità subiettiva quella il cui fondamento riposa o nei rapporti semplicemente personali del debitore, o nel rapporto dell’obligato com la cosa dovuta” (GIOVENNE, Achille. L’impossibilità della prestazione e la “sopravvenienza” – La dottrina della clausola rebus sic stantibus. Padova: Cedam, 1941, p.05). Situações de impossibilidade objetiva são as dos arts. 234 a 236 do Código Civil (impossibilidade de cumprimento de prestação de coisa por perda ou deterioração do seu objeto); situação de impossibilidade subjetiva, a dos arts. 247 e 248 (impossibilidade de cumprimento de prestação de fato intuitu personae).

40 Essa distinção entre impossibilidade e inexigibilidade foi bem observada por PONTES DE MIRANDA “O conceito de inexigibilidade distingue-se do conceito de impossibilidade da prestação em que

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no primeiro caso, porque o cumprimento da prestação se torna impossível, em razão do inadimplemento do devedor, havendo a perda de interesse do credor no contrato; no segundo caso, a resolução tem fundamento em razão da perda do sinalagma funcional (equilíbrio de prestações no momento da execução do contrato)41, havendo a frustração do fim contratual pela perda do seu elemento característico42. Em ambos os casos (resolução por incumprimento e resolução por onerosidade excessiva), há perda da base do negócio, porque desaparecem as circunstâncias que tornam possível a eficácia do contrato43.

Assim sendo, quando se analisam pretensões de revisão e resolução contratual por onerosidade excessiva, está em discussão o fato de que a alteração superveniente da base do negócio é causa de inexigibilidade da prestação, posto que ainda é possível o adimplemento, mas não é razoável exigi-lo.

impossível se diz a prestação que não pode ser feita, objetivamente (...) e inexigível e o que, pôsto que seja possível, não se pode obrigar o devedor a prestar” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado... cit., t.XXV, p.235). Segundo ORLANDO GOMES “A frustração do fim do contrato não deve ser incluída entre os casos de impossibilidade superveniente. A prestação continua possível, deixando apenas de ser interessante, por ter perdido o sentido seu cumprimento, ou recebimento” (GOMES, Orlando. Transformações... cit., p.103).

41 ALDO BOSELLI, analisando a matéria da resolução contratual por onerosidade excessiva no direito italiano, observou que o tema precisa ser corretamente delimitado e que essa delimitação se faz a partir da aplicação do instituto aos contratos sinalagmáticos “... cioè a quello le cui prestazioni, secondo la più recente dottrina, risultano vincolate da um rapporto di recíproca interdipendenza genética e funcionale (...). Dal fatto che il sinallagma si precisa e qualifica come rapporto di corrispettività temporale, teleologica ed economica fra le prestazioni, può trarsi argomento per la soluzione de taluni problemi pratici che interessano da vicino Il nostro instituto” (BOSELI, Aldo. La rizoluzione del contratto per eccessiva onerosità. Torino: Editrice Torinese, 1952, p.99-100; p.102-103). Na doutrina brasileira, JUDITH MARTINS-COSTA observa que: “O sinalagma é a característica principal dos contratos que se classificam como bilaterais, configurando a dependência recíproca das obrigações. Esta dependência recíproca, verificando-se desde a formação do contrato, diz-se genética. Nos contratos de longa duração, de modo especial, transmuda-se em dependência funcional, ou sinalagma funcional, o qual acompanha as vicissitudes provocadas nos contratos que se projetam no tempo, a fim de manter a relação original de interdependência recíproca das obrigações” (MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p.465).

42 É importante ressaltar que a onerosidade excessiva pode se referir à prestação do credor. Nesse sentido, observa AGUIAR JR. Que: “Pode ser excessivamente oneroso para o credor ter de suportar uma prestação que se tornou irrisória, em relação a sua própria obrigação, assim como ter de eventualmente cumprir com uma contraprestação extremamente dificultada ou supervalorizada” (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Op. cit., p.156).

43 Na análise precisa de PONTES DE MIRANDA: “Quando se tenta fixar a base objetiva do negócio jurídico, percebe-se que se entra ou no campo da doutrina da impossibilidade superveniente, ou no campo da doutrina do atingimento do escopo” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado... cit., t.XXV, p.232).

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Por fim, um ponto merece, ainda que brevemente, alguma atenção. Uma questão importante na teoria de LARENZ é o fato de que ele atribuiu ao princípio da boa-fé objetiva a função de possibilitar a liberação do devedor em razão do desaparecimento da base do negócio44. Nesse sentido, sendo a boa-fé uma cláusula geral – e com o considerável grau de abstração que caracteriza esta espécie de norma jurídica45 –, importa saber se pode ser utilizada como critério para averiguação da onerosidade excessiva nos contratos46. Ocorre que a análise da onerosidade excessiva, além de ser feita por meio de “... avaliação objetiva da prestação, em si e por si, em confronto com a contraprestação”47, deve estar relacionada a fatos supervenientes “...

44 Segundo LARENZ “También es contrario a la buena fe sujeitar a uma persona al cumplimiento de un contrato y derivar de éste derechos cuando, a consecuencia de sucesos imprevistos que escapan a la influencia de la outra parte y no pertenecen al riesgo asumido por ninguno de los contratantes, desaparece de tal forma la base del contrato que éste conforme a la intención de las partes, no puede subsistir” (LARENZ, Karl, op. cit., p.154).

45 Sobre o conceito de cláusula geral, v. MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p.273 et seq. Cumpre observar que esse entendimento, de adoção da boa-fé objetiva como critério para análise da alteração da base do negócio, sofreu fortes críticas doutrinárias. No Brasil, v. a crítica de PONTES DE MIRANDA (Tratado... cit., t.XXV, p.226-228).

46 Segundo CLÓVIS DO COUTO E SILVA “... configura-se a base objetiva como um modelo jurídico próprio e independente, de formação jurisprudencial, deixando de constituir-se mero elemento de outros institutos, como da teoria da impossibilidade. A sua fundamentação sistemática está no princípio da boa-fé, podendo o juiz, no caso de rompimento da base objetiva do contrato, adaptá-lo às novas realidades, ao mesmo tempo que atribui ao contratante prejudicado o direito de resolver o contrato” (COUTO E SILVA, Clóvis V. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.655, p.10, maio 1990). RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR, por sua vez, entende que a cláusula geral de boa-fé objetiva pode ser aplicada como principal critério para a resolução contratual por onerosidade excessiva, em detrimento dos critérios específicos, porém “muito restritivos”, da lei – CC, art. 478 (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.148). Já ASCENSÃO tem entendimento contrário à aplicação da cláusula geral de boa-fé objetiva nos casos envolvendo onerosidade excessiva das prestações. Afirma o jurista lusitano: “A boa-fé foi trazida para fora do seu âmbito próprio. No plano objetivo, a boa-fé traduz-se em regras de conduta. Mas aqui não se traçam regras de conduta, faz-se uma valoração do conteúdo, tomado por si. A nosso ver, continuar a recorrer à boa-fé havendo preceito legal é anacrônico. (...) Não se regula a conduta, valora-se diretamente o conteúdo, e é em decorrência da valoração negativa deste que se cria a impugnabilidade da relação, no sentido da resolução ou modificação desta (...). O que está em causa é, diretamente, o gravame ao equilíbrio ou justiça do conteúdo” (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.65).

47 LIRA, Ricardo Pereira. A onerosidade excessiva nos contratos. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: FGV, n.159, p.11, jan.-mar. 1985. CLÁUDIA LIMA MARQUES, por sua vez, sustenta que a boa-fé objetiva é a base mínima de qualquer negócio jurídico, em razão de que está ligada, pela teoria da confiança, à proteção das expectativas legítimas dos contratantes, em especial nos contratos envolvendo sujeitos em desequilíbrio de posição jurídica, como forncedores e consumidores (MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., p.291). Sobre a teoria da confiança, v. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. A proteção das expectativas legítimas derivadas das situações de confiança:

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que não se manifestem só na esfera individual de um contraente, mas operem, ao invés, com carácter de generalidade”48 .

A questão é interessante porque a cláusula geral de boa-fé objetiva, enquanto fonte de deveres anexos (laterais ou instrumentais) de conduta49 – entre os quais o dever de cooperação50 –, pode ser fundamento para a imposição de um dever de renegociar a dívida do contratante que, em razão de fatos supervenientes e manifestados apenas na esfera pessoal deste (p. ex. a perda do emprego, uma doença grave, etc.) não consiga, sem risco de ruína econômica pessoal e familiar51, adimplir sua prestação, porque excessivamente onerosa52. Se aceito esse entendimento53, cumpre delimitar elementos formadores do princípio da confiança e seus efeitos. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.12, p.177 et seq., out.-dez.2002.

48 ROPPO, Enzo, op. cit., p.262. Exemplos seriam atos de governo, como planos econômicos ou mesmo crises econômicas regionais ou globais.

49 MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p.437-454. 50 MARQUES, Cláudia Lima, op. cit., p.233-238. 51 Essa situação de ruína pessoal e familiar, verdadeira insolvência civil, vem sendo denominada

sobreendividamento ou superendividamento. Trata-se de fenômeno social gerado pela cultura contemporênea de facilidade no acesso ao crédito associada a uma publicidade consumista em larga escala e à renda escassa da grande maioria da população. Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES: “Podemos definir este fenômeno como a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos). Mencione-se também que crédito e endividamento dos consumidores são dois lados da mesma moeda e serão aqui analisados em conjunto, como causa e efeito deste novo modelo de sociedade endividada e globalizada de consumo” (MARQUES, Cláudia Lima. Introdução. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Endividado – Superendividamento e Crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.14).

52 Nesse sentido, CLÁUDIA LIMA MARQUES: “Por fim, mencione-se que a doutrina atual germânica considera ínsito no dever de cooperar positivamente o dever de renegociar (Neuverhandlungspflichte) as dívidas do parceiro mais fraco, por exemplo, em caso de quebra da base objetiva do negócio. Cooperar aqui é submeter-se às modificações necessárias à manutenção do vínculo (princípio da manutenção do vínculo do art. 51, § 2º, do CDC) e à realização do objetivo comum e do contrato. Será dever contratual anexo, cumprido na medida do exigível e do razoável para a manutenção do equilíbrio contratual, para evitar a ruína de uma das partes e evitar a frustração do contrato: o reflexo será a adaptação bilateral e cooperativa das condições do contrato” (Idem, p.236). Com efeito, sustenta a professora da UFRGS que a boa-fé objetiva deve ser compreendida como a base mínima de qualquer negócio jurídico, em razão de que está ligada, pela teoria da confiança, à proteção das expectativas legítimas dos contratantes, em especial, nos contratos envolvendo sujeitos em desequilíbrio de posição jurídica, como fornecedores e consumidores (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos... cit., p.291). Sobre a teoria da confiança, v.BRANCO, Gerson Luiz Carlos. A proteção das expectativas legítimas derivadas das situações de confiança: elementos formadores do princípio da confiança e seus efeitos. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.12, p.177 et seq., out.-dez.2002.

53 Na jurisprudência brasileira, a título exemplificativo: STJ, 4ª T., REsp 293778/RS, Rel. Min.Ruy Rosado de Aguiar, j. 20.08.2001; STJ, 4ª T., REsp 469522/PR, Rel. Min.Ruy Rosado de Aguiar, j.

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seu campo de aplicação, isto é, se apenas aos contratos de consumo – onde há desequilíbrio intrínseco da relação jurídica54 – ou também nas relações contratuais civis, onde se presume o equilíbrio inicial entre os contratantes.

Em suma, entende-se que a base do negócio, no seu aspecto objetivo (LARENZ), representa um conjunto de circunstâncias fáticas que, desaparecidas em razão de fatos supervenientes não imputáveis à conduta de qualquer dos contratantes, podem produzir a perda de equivalência das prestações, situação de resolução ou revisão contratual por onerosidade excessiva. Sobre o tema, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 trataram-no de modo distinto. Com efeito, o CDC adotou a Teoria da Base Objetiva do Negócio (art. 6º, V, in fine), onde se exige a demonstração do fato superveniente e não imputável à conduta do consumidor, pouco importando se esse fato era extraordinário e imprevisível à época da contratação55. Já o Código Civil de 2002 acolheu orientação teórica diversa, referente à Teoria da Imprevisão (arts. 317 e 478)56. O assunto será abordado na sequência.

2 – A REVISÃO E A RESOLUÇÃO DOS CONTRATOS POR ONEROSIDADE

EXCESSIVA: ANÁLISE NO CÓDIGO CIVIL E NO CÓDIGO DE DEFESA DO

CONSUMIDOR

2.1 A Revisão e a Resolução Contratual no Código Civil

A entrada em vigor do novo Código Civil brasileiro, em 2003, estabeleceu o que alguns juristas denominam um direito das obrigações

25.02.2003). As referências a estes julgados encontram-se em MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., cit., p.237).

54 No sentido de que a relação jurídica de consumo é desequilibrada em razão da própria dinâmica do mercado de consumo. O Código de Defesa do Consumidor não pretende ser um conjunto de normas jurídicas destinadas à correção do desequilíbrio intrínseco da relação de consumo, mas, reconhecendo esse desequilíbrio (CDC, art. 4º, I), pretende coibir o desequilíbrio excessivo, que se manifesta, p. ex., nas situações de abusividade provocadas pelos fornecedores (práticas e cláusulas contratuais abusivas) e na perda do equilíbrio contratual por alteração superveniente da base negocial.

55 Na observação de ORLANDO GOMES: “Segundo, pois, a teoria de LARENZ, o contrato se desfaz se fica desprovido de sua base, ou perde o sentido, em consequência de uma alteração das circunstâncias, previsíveis, ou não” (GOMES, Orlando. Transformações..., cit., p.103).

56 ORLANDO GOMES, a respeito, observou que: “Nessas teorias [da imprevisão e da onerosidade excessiva], o que legitima o afastamento do princípio da força obrigatória do contrato é, no fim de contas, a equidade, a consideração de que constitui injustiça deixar-se que alguém se arruíne porque se obrigou a satisfazer prestação que se tornou, em razão de circunstâncias, extremamente gravosa. Levam em conta, portanto, a situação do devedor” (idem, p.96).

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tripartite, isto é, subdividido em direito civil comum (relações jurídicas entre particulares não empresários), direito empresarial (relações jurídicas entre particulares empresários) e direito do consumidor (relações jurídicas entre fornecedores e consumidores)57. Com efeito, cumpre observar que a partir de 2003 o Código Civil passou a ser a lei geral das relações jurídicas entre sujeitos iguais (empresários e não empresários) e o CDC, a lei geral das relações jurídicas entre sujeitos diferentes (fornecedores e consumidores)58.

Além dessa distinção quanto à finalidade das normas civis e consumeristas, interessa também a diferença quanto ao momento histórico de elaboração das duas leis. Com efeito, os projetos de lei que originaram o Código Civil de 2002 surgiram em momento de desafio quanto à adaptação de tradicionais institutos civilistas – em especial o contrato e a responsabilidade civil – a uma sociedade de produção e consumo massificados, cujos traços característicos, sentidos nos dias atuais, eram ainda incipientes (décadas de 60 e 70 do século passado)59. Ao contrário, os projetos de lei que resultaram na promulgação do Código de Defesa do Consumidor estão relacionados a momento histórico mais recente, no qual os traços característicos da sociedade de consumo já eram bem mais perceptíveis60. Essas razões podem auxiliar o jurista a entender por que o Código Civil deu pouca atenção às relações de consumo61 e, no tema da revisão e resolução contratual por onerosidade excessiva, optou por pressupostos normativos mais rígidos que os estabelecidos pelo CDC62.

57 MARQUES, Cláudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.32.

58 PASQUALOTTO, Adalberto. O Código de Defesa do Consumidor em face do Código Civil de 2002. In: PASQUALOTTO, Adalberto; PFEIFFER, Roberto A. C. Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 – Convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.145.

59 SODRÉ, Marcelo Gomes. Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.52-54.

60 Idem, p.56-66. 61 Há os que discordam desse posicionamento, afirmando que as cláusulas gerais da função social do contrato (art. 421), da boa-fé objetiva (arts. 113, 187 e 422) e da responsabilidade civil objetiva (art. 927, parágrafo único) representam inovações significativas do Código de 2002 em relação ao Código anterior (1916), atuando diretamente nas relações entre diferentes. Além disso, há normas específicas no CC que revelam a preocupação do legislador, já nas décadas de 60 e 70, de regular as relações massificadas de consumo (arts. 423, 424, 429, 931, etc.). Certos ou não os adeptos desta corrente, o fato é que a promulgação do CDC em 1990 supriu a lacuna deixada na legislação brasileira em razão abandono, no Congresso Nacional, das discussões sobre os projetos de lei do que viria a ser o novo Código Civil.

62 Segundo ASCENSÃO: “O regime geral do Código Civil é intencionalmente mais exigente que o do Código do Consumidor (...). Só é pois relevante, no regime comum, a onerosidade excessiva que

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Sobre a resolução por onerosidade excessiva, o Código brasileiro inspirou-se no Código italiano de 1942 (arts. 1.467 a 1.469)63, acolhendo a chamada Teoria da Imprevisão, segundo a qual é necessária, para obtenção da pretensão de resolução contratual, a demonstração de que o fato superveniente, causador da excessiva onerosidade contratual, era também extraordinário e imprevisível ao tempo da celebração do contrato (CC, art. 478)64.

tiver origem em acontecimentos extraordinários e imprevisíveis” (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.62).

63 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado, op. cit., p.152; GOMES, Orlando. Transformações..., cit., p.108. Dispõem os arts. 1467 e 1468 do Código Civil italiano: “Art. 1467. Contratto con prestazioni corrispettive – (§ 1º) – Nei contratti a esecuzione continuata o periódica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione de una delle parti è divenutta eccesivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, com gli effetti stabiliti dall’art 1458; (§ 2º)- La risoluzione non può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell’alea normale del contratto; (§ 3º) – La parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitarla offrendo di modificare equamente le condizioni del contratto. Art. 1468. Contratto con obbligazioni di una sola parte – Nell’ipotesi prevista dall’articolo precedente, se si trata di un contratto nel quale una sola delle parti ha assunto obbligazioni, questa può chiedere uma riduzione della sua prestazione ovvero uma modificazione nelle modalità de esecuzione, sufficienti per ricondurla al equità. Art. 1469. Contratto aleatorio – Le norme degli articoli precedenti non si applicano ai contratti aleatori per loro natura (1879) o per volontà delle parti (1448, 1472)”. Dispõem os arts. 478 a 479 do Código Civil brasileiro (2002): “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

64 Na doutrina italiana, ALDO BOSELLI, em análise desses pressupostos (extraordinariedade e imprevisibilidade), observou: L’avvenimento produttore della eccessiva onerosità ha da essere inoltre imprevedibile e straordinario. Questi due concetti – della imprevedibilità e straordinarietà – si integrano a vicenda, eppertanto è bene trattarne qui congiuntamente” (BOSELLI, Aldo, op. cit., p.132). No mesmo sentido, FRANCESCO MESSINEO: “Es acontecimiento extraordinário el que no es normal que se verifique y el que las partes no pueden haber pensado porque está fuera de su imaginación; por lo que al carácter extraordinário del acontecimiento debe ligarse además su imprevisibilidad” (MESSINEO, Francesco. Doctrina General del Contrato. Tradução de R. Fontanarrosa. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, t.II, p.375. Na doutrina portuguesa, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO: “Há inteira harmonia entre os dois qualificativos, porque é por ser extraordinário que o acontecimento é imprevisível; e como traduz uma marcha dos fatos que não se pode prever, o acontecimento é extraordinário” (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.63).

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Sobre a noção de imprevisibilidade (e, portanto, de fato extraordinário), vale transcrever a observação RUY ROSADO DE AGUIAR JUNIOR:

“A imprevisibilidade deve acompanhar a ideia de probabilidade: é provável o acontecimento futuro que, presentes as circunstâncias conhecidas, ocorrerá, certamente, conforme o juízo derivado da experiência. Não basta que os fatos sejam possíveis (a guerra, a crise econômica sempre são possíveis), nem mesmo certos (a morte). É preciso que haja notável probabilidade de que um fato, com seus elementos, atuará eficientemente sobre o contrato, devendo o conhecimento das partes incidir sobre os elementos essenciais desse fato e da sua força de atuação sobre o contrato. Para esse juízo, devem ser consideradas as condições pessoais dos contratantes, seus conhecimentos e aptidões (previsibilidade em concreto). A probabilidade, para ter relevância jurídica, deve ter um certo grau (notável probabilidade), porque o conhecimento deve abranger os elementos essenciais do fato futuro causador da onerosidade e a força de seus efeitos sobre o contrato. Assim, a desvalorização da moeda é um fato provável num regime de câmbio flexível, mas poderá haver imprevisibilidade do seu grau, a ser determinado pela própria evolução do processo de desvalorização (...). Assim, a taxa de câmbio, que pode ser variável, mas a maxidesvalorização da moeda nacional poderá ser um fato imprevisível. Se o contratante, atendendo ao cuidado que dele se poderia exigir, não teve condições de pensar o fato e seus elementos (a inflação e o grau de inflação; a crise política e a sua duração; a crise política e os seus efeitos sobre o contrato; a alteração das regras de câmbio, etc.), o fato é imprevisível.”65

A passagem supra sugere que a análise da característica imprevisível e extraordinária do fato gerador da onerosidade excessiva deve ser feita pelo juiz, no caso concreto, a partir de um juízo de ponderação sobre as circunstâncias particulares da contratação (quem eram os contratantes, qual a espécie e finalidade contratuais, qual o grau provável de ocorrência do fato gerador da onerosidade excessiva, qual a possibilidade de previsão, à

65 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.155-156.

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época da contratação, desse provável grau de ocorrência do fato gerador da onerosidade excessiva, etc.)66.

Além da necessidade de demonstração da característica imprevisível (extraordinária) do fato gerador da onerosidade excessiva, há ainda outras situações, previstas expressamente na lei (CC, art. 478) ou apontadas pela doutrina, para a resolução contratual por onerosidade excessiva. São elas: a) a aplicabilidade da resolução por onerosidade excessiva aos contratos de execução continuada ou diferida67; b) a inaplicabilidade da resolução por onerosidade excessiva aos contratos aleatórios68; c) a necessária relação entre

66 Segundo AGUIAR JR. “O fato previsto, em princípio, exclui a arguição de onerosidade excessiva. Porém, se não integrar o risco normal do negócio e não tiver sido regulado no contrato, tendo a parte justo motivo para esperar sua não ocorrência, a defesa apresentada pelo interessado deve ser examinada pelo juiz, de acordo com o princípio da boa-fé” (Idem, p.156). A afirmação do jurista sugere a importância da cláusula geral de boa-fé nas ações de resolução contratual por onerosidade excessiva. Com efeito, a boa-fé objetiva surge como critério de interpretação sobre as circunstâncias que envolvem a contratação (CC, art. 113), orientação que não se coaduna com a que sustenta ser a análise do juiz apenas uma verificação de perda do valor econômico da prestação (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.65).

67 Na doutrina italiana, esses contratos são chamados contratti di durata. Segundo ALDO BOSELLI: “Altro presupposto del rimedio che stiamo studiando è che Il mutamento dello staqto di fatto, che è caratteristico della eccessiva onerosità, sopravvenga alla constituzione del vincolo contrattuale. Intende soddisfare a questa esigenza la norma che limita l’applicazione della tutela ai ‘contratti ad esecuzione continuata o periódica ovvero ad esecuzione differita (...). Ritenuto poi che la durata della esecuzione (nei contratti di durata) può dare luogo tanto ad una pluralità di atti de esecuzione scaglionati nel tempo, quanto ad ‘un contegno continuativo di esecuzione propratta nel tempo’” (BOSELI, Aldo, op. cit., p.109-110). Segundo ENZO ROPPO “O primeiro e óbvio pressuposto para que ela [a resolução por onerosidade excessiva] possa operar é que se trata de contratos chamados ‘de duração’, nos quais a completa execução do contrato não se siga imediatamente à sua conclusão, sendo da mesma separada por um intervalo de tempo: e, portanto, de contratos de execução continuada ou periódica (como um contrato de trabalho, ou uma locação, ou uma empreitada, ou um fornecimento) ou então de contratos com execução diferida (como uma venda de coisas genéricas, em que a individualização e a entrega são postergadas para um momento posterior, ou um transporte estabelecido para o mês subsequente ao da estipulação)” (ROPPO, Enzo, op. cit., p.260).

68 O Código Civil italiano dispõe expressamente sobre tal proibição no art. 1469. Já o Código Civil brasileiro omitiu essa vedação. Na doutrina italiana, esclerece DELFINI que nos contratos aleatórios “... il sinalagma contrattuale presenta sostanzialmente un carattere di incertezza, dato che lo scambio non si attua tra due prestazioni certe, ma tra uma prestazione certa e un’altra che è in definitiva o si teme che sia incerta o semplicemente da un punto di vista quantitativo o addirittura da un punto di vista qualitativo, precisandosi che il contratto riveste carattere aleatorio se la possibilità di verificazione o non dell’evento futuro esiste e non è eliminabile all’altro della formazione del contratto, divenendo allora l’alea momento essenciale dello stesso” (DELFINI, Francesco. Autonomia Privata e Rischio Contrattuale. Milano: Giuffrè, 1999, p.200-202). ROPPO, comentando o art. 1469 do Codice Civile, afirma que: “Se o fundamento do instituto do qual nos ocupamos consiste na justa e racional repartição entre os contraentes dos riscos conexos com a verificação de circunstâncias futuras, é compreensível que o remédio da resolução não deva

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a onerosidade excessiva na prestação do devedor e a obtenção de extrema vantagem para o credor69; d) a exigência de que se tenha ultrapassado a álea normal do contrato70; e) a exigência de que o devedor da prestação

operar para os contratos que as partes tenham inteiramente moldado sobre o risco (art. 1469º Cód. Civ.): são os contratos aleatórios (...) (é o caso do seguro, do jogo, da aposta, da renda vitalícia, etc.)” (ROPPO, Enzo. op. cit., p.263). No Brasil, em face da omissão legislativa, há entendimentos contrários aos do direito italiano. Nesse sentido, RUY ROSADO DE AGUIAR JR. adverte que “... a lei italiana exclui a apreciação do princípio ao contrato aleatório (art. 1.469). No Brasil, no entanto, o contrato de renda vitalícia admite a resolução (art. 810 do Código Civil), e os contratos de seguro têm regulação própria quanto ao inadimplemento. Em princípio, pois, não seria de excluir a onerosidade excessiva nos contratos aleatórios” (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.157); e ASCENSÃO, por sua vez, observa que “... se o contrato é aleatório, a parte aceitou o risco. Mas a alteração das circunstâncias pode ser relevante mesmo no domínio dos contratos aleatórios, porque o que estiver para lá do risco tipicamente implicado no contrato pode ser atingido. Assim, que joga na Bolsa está sujeito aos riscos da oscilação das cotações. Mas o encerramento das Bolsas é uma ocorrência extraordinária, que deve levar à revisão ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.62).

69 Trata-se de pressuposto previsto apenas no Código Civil brasileiro, alvo de pesadas críticas por parte da doutrina. Nesse sentido, AGUIAR JR.: “Entre os seus requisitos, além da extraordinariedade dos acontecimentos imprevisíveis e do ônus excessivo para ambas as partes, figura o da extrema vantagem para outra, o que limita ainda mais o âmbito de abrangência da cláusula. Os fatos modificativos extraordinários incidem, quase sempre, de modo igual sobre as duas partes, tornando inviável a prestação, sem que disso decorra vantagem para a outra; assim a guerra, as revoluções, os planos de intervencionismo econômico etc. Portanto, o último requisito é absolutamente inadequado para a caracterização da onerosidade, que existe sempre que o efeito do fato novo pesar demais sobre um, pouco importando que disso decorra ou não vantagem ao outro” (idem, p.152). É importante ressaltar que esse conceito de “extrema vantagem” do Código Civil (art. 478) em nada se equipara ao conceito de “vantagem manifestamente excessiva” do CDC (art. 39, V, c.c. art. 51, § 1º). Com efeito, trata-se, no primeiro caso, de situação não imputável à conduta do contratante; no segundo caso, ao contrário, a vantagem é imposta pelo fornecedor ao consumidor, configurando-se o instituto da lesão pela desproporção manifesta entre a vantagem imposta e o sacrifício da outra parte. A análise desse conceito de “vantagem” no CDC é o objetivo central do trabalho apresentado para a disciplina Jurisdição Constitucional.

70 Segundo AGOSTINO GAMBINO “Com la nozione dell’alea normale, Il legislattore, como si è innanzi osservato, ha inteso limitare la rilevanza giuridica dell’eccessiva onerosità della prestazione – determinata a norma dell’art. 1.467, Iº comma cod. civ. – richiedendo la valutazione del complessivo risultato economico contrattuale. Se l’onerosità di una delle due prestazioni non abbia provocato uma variazione anormale dell’equilibrio di valori stabilito originariamente dalle parti, viene negato al contraente il potere di risoluzione del rapporto: il rischio del mutamento di valore rimane cioè a carico di ciascuna parte (GAMBINO, Agostino. Eccessiva onerosità della prestazione e superamento dell’alea normale del contrato. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni. Milano: Casa Editrice, Gruppo 4º, anno LVIII, n.1-2, p.445, gennaio-febraio 1960). Como bem observa ROPPO: “... cada contrato comporta, para quem o faz, riscos mais ou menos elevados; a lei tutela o contraente face aos riscos anormais, que nenhum cálculo racional económico permitiria considerar; mas deixa a seu cargo os riscos tipicamente conexos com a operação, que se inserem no andamento médio daquele dado mercado” (ROPPO, Enzo, op. cit., p.262).

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excessivamente onerosa não esteja em mora no momento da propositura da ação71.

Por fim, é importante mencionar ainda, conforme observa RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR, que a resolução contratual por onerosidade excessiva não interessa apenas ao devedor. Nesse sentido:

“A onerosidade pode atingir o devedor ou o credor, a prestação ou a contraprestação. Pode ser excessivamente oneroso para o credor ter de suportar uma prestação que se tornou irrisória, em relação à sua própria obrigação, assim como ter de eventualmente cumprir com uma contraprestação extremamente dificultada ou supervalorizada; de igual modo para o devedor em vias de receber do credor uma contraprestação já insignificante. Quando a modificação das circunstâncias supervenientes reduzir de tal forma o valor da prestação, o desgaste não está em prestá-la, mas

71 ENRICO QUADRI, a propósito, considera que diante da extrema dificuldade em adimplir a prestação que se tornou excessivamente onerosa o devedor tem, em tese, duas alternativas: “Da un lato si potrebbe, evidentemente, sostenere che, in conseguenza degli eventi straordinari ed imprevedibili, il debitore sai facultato a sospendere senz’altro l’esecuzione della prestazione dovuta, lasciando, senza attivarsi, transcorrere il termine stabilito per l’adempimento e semplicemente attendendo che il creditore assuma l’iniziativa, com il chiedere giudizialmente la risoluzione del contratto per inadempimento (ed il conseguente risarcimento dei danni), solo allora facendo, cioè, valere l’eccessiva onerosità sopravvenuta. Dall’altro si potrebbe, invece, ritenere che in nessun caso (e neppure, quindi, nel corso del giudizio diretto alla risoluzione del contratto per eccessiva onerosità) il debitore sia ammesso a sospendere la prestazione nonostante il sopravvenire delle circostanze previste dall’art. 1467 c. c., dato che, cosí facendo, egli si renderebbe inadempiente e non gli potrebbe giovare il successivo accertamento dell’esistenza delle condizioni previste da tal norma” (QUADRI, Enrico. Il comportamento del debitore nella dinâmica della resoluzione per eccessiva onerosità. Rivista di Diritto Civile. Padova: Cedam, anno XXII, n.4, p.335-336, luglio-agosto 1976); MESSINEO, por sua vez, observa: “De igual modo, la demanda no es proponible si la parte que hace referencia a la excesiva onerosidad se hubiese hecho incumpliente y el aconteciminento extraordinário e imprevisible se hubiera verficiado después del incumplimiento” (MESSINEO, Francesco, op. cit., p.384); ROPPO, corroborando os argumentos anteriores, afirma que “... a resolução por excessiva onerosidade não pode ser invocada pelo contraente que se encontrava em mora (por ter atrasado o cumprimento para além do devido) no momento em que aquela se manifestou. É uma consequência do princípio geral, segundo o qual o devedor em mora suporta todos os riscos que se concretizam no período da mora (cfr. o art. 1221º Cód. Civ.)” (ROPPO, Enzo, op. cit., p.264). Na doutrina brasileira, AGUIAR JR., sustentando o mesmo raciocíni de ROPPO, observa que “Se a parte já estiver em mora quando dos fatos extraordinários, não lhe cabe a defesa. O devedor em mora responde pelos riscos supervenientes, ainda que decorrentes de caso fortuito e força maior (art. 399 do Código Civil). A onerosidade é uma aspecto da teoria da superveniência, e nela se afirma o princípio da responsabilidade do devedor moroso, pela impossibilidade posterior” (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.157). Por fim, é importante apontar a existência de posições contrárias sobre a exigência desse pressuposto. Nesse sentido, v. ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.66.

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sim em recebê-la, com a quebra da equivalência entre as prestações correspectivas, pelo ônus resultante do recebimento de uma prestação ou de uma contraprestação já insignificante ou inútil.”72

Esses são, portanto, os principais aspectos da resolução contratual por onerosidade excessiva no Código Civil de 2002. A aplicação dos pressupostos legais e doutrinários (CC, art. 478), segundo breve análise jurisprudencial, parece apontar para uma certa dificuldade no provimento de ações dessa espécie, aplicada aos contratos civis73.

Sobre as hipóteses de revisão contratual por onerosidade excessiva, cabe mencionar, na esteira de ASCENSÃO74, que podem configurar uma modificação quantitativa (correção do valor econômico da prestação, supressão de cláusulas contratuais) ou qualitativa (mudança no conteúdo

72 Idem, p.152-153. 73 Nesse sentido: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. CASO CONCRETO. TEORIA DA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INAPLICABILIDADE. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. Termo inicial dos juros moratórios com a apresentação aos sacados, constituindo-se em mora o devedor de pleno direito. Teoria da imprevisão que pressupõe, na lição de CAIO MÁRIO, a) vigência de um contrato com execução deferida ou sucessiva; b) alteração radical das condições econômicas objetivas no momento da execução, em confronto com o ambiente objetivo no da declaração; c) onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exagerado para o outro; d) imprevisibilidade daquela modificação. Caso concreto que não preenche tais requisitos. A função social, nesse caso, deve ser vista por dois enfoques, o da requerida, que foi abatida pela estiagem da lavoura, mas, sobretudo, pelas dezenas de produtores agrícolas que ficaram sem receber pelos produtos que venderam à demandada, prejudicando, inclusive, o sustento da própria família. Negaram provimento ao apelo. Unânime” (TJRS, Ap. Civ.70022386148, 9ª Câm. Civ., Rel. Desemb. Tasso Caubi Soares Delabary, j. 18.07.2008); e “APELAÇÃO CÍVEL. CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. CHEQUE. INEXIGIBILIDADE DE TÍTULO. REVISÃO DA DÍVIDA. INSUMOS AGRÍCOLAS. QUEBRA DE SAFRA POR ADVENTO DE CONDIÇÕES CLIMÁTICAS ADVERSAS E DOENÇA NA LAVOURA. TEORIA DA IMPREVISÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. REQUISITOS NÃO CONFIGURADOS. Hipótese dos autos em que o recorrente buscava a sustação de protesto de cheque emitido em renegociação de dívida decorrente de compra de insumos agrícolas. Indemonstração dos aludidos encargos ilícitos incidentes à dívida, nem da ilicitude. Não comprovados a alegada quebra de safra nem sua relação com fatores climáticos e a doença ‘ferrugem asiática’. Inexistência de condição ao pagamento da compra dos insumos relacionada ao desempenho da safra do autor. Inaplicável a teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva à espécie. Entre os requisitos propostos pela doutrina que viabilizariam a resolução do contrato estão a onerosidade excessiva para um dos contratantes em detrimento do outro e a imprevisibilidade do fato que causou o desequilíbrio na relação contratual. No caso em exame, apesar de indicar seu prejuízo, não restou demonstrado o lucro excessivo da empresa recorrida. Da mesma forma, condições climáticas adversas e praga na lavoura não podem ser consideradas como fator de imprevisão. Recurso improvido” (TJRS, Ap. Cív. 70029255247, 9ª Câm. Cív., Rel. Desemb. Tasso Caubi Soares Delabary, j. 19.08.2009).

74 ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.64.

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das cláusulas contratuais, além da mera alteração dos valores das prestações) dos efeitos contratuais. No Código brasileiro, as hipóteses de modificação quantitativa encontram-se, p. ex., nos arts. 184 (redução do negócio inválido)75 e 317 (correção do valor da prestação)76; já as hipóteses de modificação qualitativa estão previstas nos arts. 479 e 48077.

O art. 317 do Código Civil78, referente ao adimplemento de dívidas pecuniárias79, destina-se à correção do valor da prestação em razão de sua desvalorização ou valorização excessiva provocadas por fato superveniente e imprevisível à época da contratação80. Um aspecto importante na análise dessa norma jurídica é o de que ela dispõe sobre fatos imprevisíveis, sem mencionar, como na hipótese do art. 478, que devam ser extraordinários, o que poderia suscitar dúvida quanto à adoção, neste dispositivo legal, da Teoria da Imprevisão. Contudo, essa dúvida não parece ter fundamento, pois como bem observa ASCENSÃO “... esta qualificação está implícita na da imprevisibilidade, porque é por serem extraordinários que os acontecimentos são imprevisíveis”81.

Sobre as situações de modificação qualitativa do contrato, cumpre analisar, inicialmente, a que se encontra no arts. 479 do Código Civil (art. 75 Dispõe o art. 184 do Código Civil: “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”. No Código de Defesa do Consumidor, a redução do negócio inválido está prevista no art. 51, § 2º: “A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo para qualquer das partes”. Sobre o tema, v. BELMONTE, Cláudio. Proteção Contratual do Consumidor – Conservação e redução do negócio jurídico no Brasil e em Portugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.23 et seq. Na obra referida, o autor faz referência ao art. 153 do Código Civil de 1916 (correspondente no Código Civil de 2002 – art. 184). Não obstante sua importância, tais situações não serão analisadas neste trabalho pelo fato de que a invalidade não é causa superveniente da alteração da base do negócio.

76 ASCENSÃO, José de Oliviera, op. cit., p.64. 77 Idem, ibidem. 78 Dispõe o art. 317 do Código Civil: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, o quanto possível, o valor real da prestação”.

79 Uma interpretação sistemática do Código Civil permite essa conclusão, pois a norma do art. 317 é uma sequência da norma do art. 315, que dispõe: “As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes” (grifou-se).

80 A correção do valor da prestação, em tese, é de interesse do credor, por causa da desvalorização daquela. Contudo, pode ocorrer situação de valorização excessiva, caso em que será do devedor a iniciativa da ação judicial. Sobre o tema, v. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.152-153.

81 ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.63.

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1467, § 3º, do Código Civil italiano). Trata-se do que o direito italiano denomina l’offerta di riduzione del contratto ad equità (ou reductio ad aequitatem)82, isto é, da proposta (oferta) de revisão contratual, no curso da ação de resolução por onerosidade excessiva, por iniciativa da parte ré. Uma vez aceita a proposta e estabelecido o acordo entre as partes, a decisão judicial não põe fim ao vínculo contratual, mas o constitui sob novas condições83.

Em segundo lugar, tem-se a situação do art. 480 do Código Civil (art. 1468 do Código Civil italiano), que se destina aos chamados contratos unilaterais, onde apenas um dos contratantes assume obrigações84. Trata-se

82 BOSELLI, Aldo, op. cit., p.293-310. Sobre o tema, afirma ASCENSÃO: “O Código Civil brasileiro não aponta diretamente o critério a suar para a decisão sobre a resolução ou modificação do contrato. Já o art. 437/1 do Código Civil português prevê a resolução do contrato, ou a modificação segundo juízos de equidade. Será aceitável o critério da eqüidade também no Direito brasileiro? Sabe-se que a equidade não é critério de aplicabilidade universal, só podendo ser usada quando a lei, direta ou implicitamente, a ela apelar. Há uma previsão que aponta nesse sentido: a do art. 479, relativa à hipótese de a contraparte se prontificar à modificação equitativa das condições (cláusulas) do contrato (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.66).

83 ALDO BOSELLI, sobre a espécie de ato jurídico que caracteriza essa oferta em juízo, afirma que “Discende dalla natura dianzi tratteggiata della offerta, concepita como potere unilaterale di modifica della lex contractus esercitabile mediante uma controdomanda diretta al giudice ma non diretta a provocare la accettazione della contrparte (como sarebbe se l’offerta potesse effettivamente riguardarsi come una proposta contrattuale), che questa accettazione, ove sopravvenga nel corso del giudizio, non è affatto vincolativa per il convenuto o proponente” (BOSELI, Aldo, op. cit., p.300). E sobre a interpretação judicial da oferta realizada pelo credor, observa que: “L’intervento del giudice si riduce pertanto a compiere due volte lo stesso esame, una prima volta sul contratto quale si presenta nella sua originaria formulazione a seguito degli eventi sopravvenuti, ed una seconda volta sul contratto quale risulterebbe dalla eventuale introduzione delle modifiche proposte” (idem, p.303).

84 Naturalmente, o vocábulo “obrigações” refere-se apenas aos deveres estritamente contratuais, isto é, estabelecidos no conteúdo do contrato. Em qualquer contrato, seja bilateral ou unilateral, os contratantes estão sujeitos aos deveres anexos (laterais ou instrumentais), oriundos do princípio da boa-fé objetiva (CC, arts. 113, 187 e 422; CDC, arts. 4º, II, e 51, IV). Outro aspecto importante a considerar diz respeito à distinção entre negócio jurídico unilateral e contrato unilateral. Os contratos, como se sabe, são espécies de negócios jurídicos. Nesse sentido, um negócio jurídico unilateral não é um contrato, mas uma declaração de vontade a que a lei permite, dentro de certos limites, a produção de determinados efeitos (ex.: a oferta contratual, o testamento, etc.). O negócio jurídico será contrato quando se qualificar como “bilateral”, isto é, quando sua existência estiver baseada em duas declarações de vontade (proposta/oferta e aceitação/adesão). Já no campo dos contratos, vale dizer que a distinção entre contratos unilaterais e bilaterais não está baseada no número de declarações de vontade, mas ao número de sujeitos aos quais se imputam obrigações. Nesse sentido, a compra e venda é contrato bilateral e a doação pura (sem encargos ou condições), contrato unilateral. A resolução por onerosidade excessiva (CC, art. 478) aplica-se apenas aos contratos bilaterais, pois apenas nestes casos se pode falar em sinalagma (equivalência de prestações).

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de modalidade de revisão contratual onde se busca a modificação equitativa das condições contratuais85, seja pela redução do valor da prestação (como na hipótese do art. 317)86, seja pela alteração do modo de executá-la87,88.

2.2 A Revisão e a Resolução Contratual no Código de Defesa do Consumidor

A defesa do consumidor, estabelecida na ordem jurídica brasileira como direito fundamental e princípio geral da ordem econômica (CF, arts. 5º, XXXII, e 170, V), tem, como ponto de partida, o reconhecimento do desequilíbrio intrínseco existente nas relações de consumo (CDC, art. 4º, I)89. A partir desse reconhecimento jurídico, a garantia constitucional de defesa dos consumidores, de responsabilidade do Estado (CF, art. 5º, XXXII), ocorre por meio de ações voltadas para a prevenção e a coibição do excessivo desequilíbrio (para além do desequilíbrio intrínseco) da relação entre fornecedores e consumidores90, cujas causas podem ser condutas abusivas dos fornecedores (exercício abusivo da posição jurídica dominante)91 ou a 85 ROPPO, Enzo, op. cit., p.263. 86 Salvo melhor juízo, parece que as ações judiciais têm a mesma natureza, isto é, são ações revisionais. Contudo, no art. 317, o contrato que forma a relação jurídica material tem natureza bilateral, ao passo que no art. 480 tem natureza unilateral.

87 Importa ressaltar o disposto no Código Civil, art. 313 c.c. art. 356: “Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida ainda que mais valiosa; Art. 356. O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”. Assim, em contrato de doação, após a aceitação do donatário, o doador pode ajuizar ação no sentido de modificar as condições do contrato (p. ex.: a entrega de outro imóvel ao donatário, com valor idêntico ao do imóvel prometido, em razão de que precisará do imóvel objeto da doação para estabelecimento comercial, tendo em vista a súbita valorização do local onde esse se encontra, provocada por fato extraordinário e imprevisível à época da contratação).

88 Ao contrário da pesquisa jurisprudencial sobre decisões envolvendo resolução contratual por onerosidade excessiva nos contratos regidos pelo Código Civil de 2002, uma segunda pesquisa, realizada no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não encontrou decisões sobre a matéria da revisão contratual segundo os dispositivos do Código Civil de 2002.

89 Ver, a propósito, os comentários da nota de rodapé nº 55. 90 Em outra oportunidade, observamos que: “A defesa do consumidor, a partir do Código de Defesa do Consumidor, organiza-se em quatro espécies de tutela jurídica. A primeira delas é a tutela civil, que se concentra em dois temas fundamentais: a) a prevenção (CDC, art. 6º, I, III, VI, VII, VIII e X, c.c. arts. 8º a 10) e a repressão de danos extrapatrimoniais (CDC, art. 6º, I, III, VI, VII, VIII e X, c.c. arts. 12 a 17 e 27) e patrimoniais ao consumidor (CDC, art. 6º, I, III, VI, VII, VIII e X, c.c. arts. 18 a 26); e b) a coibição de abusos dos fornecedores no mercado de consumo (art. 6º, I a X, c.c. arts. 29 a 54 do CDC)” (AZEVEDO, Fernando Costa de. Uma introdução ao direito brasileiro do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.69, p.77-79, jan.-mar. 2009). O presente trabalho, como se percebe, analisa apenas um dos aspectos da tutela jurídica civil e, no que for necessário, da tutela jurisdicional.

91 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha, op. cit., p.661-901.

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excessiva onerosidade dos contratos de consumo, provocada pela ocorrência de fatos supervenientes cuja existência não se pode imputar à ação dos fornecedores no mercado.

Na sociedade de consumo92, a importância do contrato torna-se evidente93 pelo fato de que este instrumento jurídico formaliza e traz a necessária segurança jurídica para as trocas ocorridas no mercado de consumo94, permitindo aos consumidores o acesso a produtos e serviços que, não raras vezes, revestem-se do caráter de essencialidade, isto é, se apresentam como necessários ao exercício de determinados direitos fundamentais como saúde, educação, segurança, habitação, etc.95

Nesse sentido, a preocupação com o equilíbrio da relação de consumo96 revela-se na opção do legislador ordinário com a manutenção,

92 A sociedade de consumo é um fenômeno complexo e, de certa forma, contraditório, pois o acesso ao mercado de consumo representa, para os seres humanos, a possibilidade de acesso a bens essenciais à sua dignidade humana e, ao mesmo tempo, a possibilidade de acesso ao supérfluo, ao que representa a cultura do descartável e do desperdício. Há, portanto, aspectos positivos e negativos da sociedade de consumo cuja análise, por óbvio, não cabe dentro das limitações deste trabalho. Como breve registro, porém, tem-se a reflexão de JEAN BAUDRILLARD que, em instigante e profunda análise das características da sociedade de consumo, observou o que se pode chamar de aspecto negativo desse modelo de sociedade: “À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objectos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objectos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com os seus semelhantes quanto, no plano estatístico segundo uma curva ascendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens...” (BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2007, p.15). ZIGMUNT BAUMAN, importante sociólogo contemporâneo, distingue os conceitos de “consumo” (atividade humana presente em todas as épocas da história) e “consumismo” (aspecto da cultura contemporêna, marcado pelo culto ao momentâneo, ao descartável e ao abundante, pela ação irrefletida e altamente emocional). Sobre o tema, v. BAUMAN, Zigmunt. Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2008, p.37 et seq.

93 Segundo CALAIS-AULOY “Le droit de la consommation est, pour une bonne part, un droit des contrats (…) Son but est de rétablir un équilibre naturallement menacé par la puissance économique des professionnels” (CALAIS-AULOY, Jean. L’influence du droit de la consommation sur le droit des contrats. Revue Trimestrielle de Droit Commercial et de Droit Économique. Paris: Dalloz, n.51 (1), p.115, jan.-mars. 1998).

94 Nesse sentido, a importante análise de ROPPO sobre as transformações do contrato na sociedade contemporânea (ROPPO, Enzo, op. cit., p.295 et seq.).

95 Nesse sentido, a análise de TERESA NEGREIROS sobre o chamado “paradigma da essencialidade” aplicado aos contratos (NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato – Novos paradigmas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.335-347; p.459-504).

96 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., cit., p.288-299.

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sempre que mais favorável ao consumidor, dos vínculos contratuais estabelecidos com os fornecedores. Razão disso é a previsão de um direito geral à revisão contratual (CDC, art. 6º, V), que pode ser invocado quando a base do negócio estiver comprometida desde a origem do vínculo contratual ou após, por fatos supervenientes97. Como bem observa BARLETTA:

“... o artigo sob análise concede ao consumidor dois direitos baseados no mesmo fundamento axiológico de preservação do contrato, com base nos princípios do Código do Consumidor e mormente no princípio constitucional de defesa do consumidor. O primeiro direito é o de modificar cláusulas contratuais quando, no momento da formação do ajuste, tiver ocorrido lesão. O segundo direito é o de revisar prestações que, no momento da celebração do contrato, não se mostravam lesivas, mas que, por motivos supervenientes ao contrato, tornaram-se excessivamente onerosas.”98

A revisão contratual por onerosidade excessiva (CDC, art. 6º, V, in fine), como já foi mencionado, adotou posição teórica diversa da que fundamenta a matéria no Código Civil de 2002. Assim, a resolução é cabível, nas relações de consumo, se ficar demonstrada a onerosidade excessiva em razão de fatos supervenientes à celebração do contrato, sendo irrelevante a demonstração de imprevisibilidade desses fatos modificativos da base do negócio. Com efeito, desde a entrada em vigor do CDC (1991), formou-se grande acervo jurisprudencial em torno da matéria, com destaque para as decisões nas ações revisionais dos contratos de leasing a partir de 199999.

97 Como bem observa ASCENSÃO: “... a discrepância entre o negócio e as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar pode ser: originária ou superveniente (ASCENSÃO, José de Oliveira, op. cit., p.62).

98 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002, p.137.

99 Nesse sentido: “REVISÃO DE CONTRATO. ARRENDAMENTO MERCANTIL (LEASING). RELAÇÃO DE CONSUMO. INDEXAÇÃO EM MOEDA ESTRANGEIRA (DÓLAR). CRISE CAMBIAL DE JANEIRO DE 1999. PLANO REAL. APLICABILIDADE DO ART. 6º, INCISO V, DO CDC. ONEROSIDADE EXCESSIVA CARACTERIZADA. BOA-FÉ OBJETIVA DO CONSUMIDOR E DIREITO DE INFORMAÇÃO. NECESSIDADE DE PROVA DA CAPTAÇÃO DE RECURSO FINANCEIRO PROVENIENTE DO EXTERIOR. O preceito insculpido no inciso V do artigo 6º do CDC dispensada a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor. A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por

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Quanto à resolução contratual por onerosidade excessiva, o CDC não a previu expressamente100. Contudo, como bem observa RUY ROSADO DE AGUIAR JR., o consumidor, se preferir, pode ajuizar ação buscando a resolução do contrato em função “... do previsto no art. 83 do CDC: ‘Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela’”101. Nesse caso, pode ser suscitada dúvida quanto aos pressupostos legais para a resolução: seriam os mesmos previstos no Código Civil de 2002? Em outros termos: deve-se aplicar a Teoria da Imprevisão (CC, art. 478)?

Ao que parece, a dúvida é apenas aparente, pois em razão do direito básico à facilitação da defesa dos consumidores em juízo (CDC, art. 6º, VIII), foge à razoabilidade aplicar pressupostos distintos dos que a lei já estabelece para a revisão contratual (CDC, art. 6º, V, in fine). Aliás, parte da doutrina considera cabível a aplicação das ações de revisão ou resolução por

ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas. A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em dólar americano. É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação (art. 6º, III, e 10, caput, 31 e 52 do CDC). Incumbe à arrendadora se desincumbir do ônus da prova de captação de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (art. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o art. 6º da Lei nº 8.880/94 (STJ, REsp 268.661/SP, 3ª T., Relª Min. Nancy Andrighi, j. 16.08.2001, DJ 24.09.2001, p.296). O texto do acordão do recurso supra revela, na opinião de AGUIAR JR., o fato de que a fato superveniente à contratação (alteração da política cambial e desvalorização da moeda brasileira) afetou também o fornecedor (instituição financeira). Segundo o jurista, a teoria da base objetiva do negócio resolve o problema do consumidor frente à instituição financeira, mas não o desta frente ao credor internacional (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de, op. cit., p.146 (nota n.281). Por fim, BARLETTA apresenta, em seu trabalho, o histórico desse episódio de 1999 (BARLETTA, Fabiana Rodrigues, op. cit., p.153-179).

100 Com efeito, o CDC prevê expressamente algumas hipóteses de extinção contratual por inadimplemento do fornecedor (arts. 18, § 1º, II; 19, IV; 20, II; 35, III).

101 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Op.cit., p.154.

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onerosidade excessiva a contratos de consumo aleatórios, como os de seguro102.

Outro aspecto importante é a incidência do princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo, evidenciada na ementa da citada decisão do STJ sobre os contratos de leasing. Com efeito, a finalidade da cláusula geral de boa-fé no CDC (arts. 4º, III, in fine, e 51, IV), assim como ocorre no Código Civil (arts. 113, 187 e 422), é servir de critério para a interpretação dos contratos em geral, de critério para a coibição do abuso no exercício de direitos e de fundamento para a imposição de deveres anexos (laterais e instrumentais) de conduta para os contratantes (em especial aos fornecedores)103.

A partir dessas funções gerais é que MARQUES, com fundamento na doutrina alemã, apresenta específica função do princípio no âmbito das relações de consumo, que seria a

“... de correção e de adaptação em caso de mudança das circunstâncias (Korrekturfunktion), a permitir que o julgador adapte e modifique o conteúdo dos contratos para que o vínculo permaneça (manutenção do vínculo) apesar da quebra da base objetiva do negócio – por exemplo, com a desvalorização do dólar em contratos de leasing – ou imponha deveres de renegociação em face

102 Nesse sentido, observa BARLETTA: “Tradicionalmente, a doutrina entendeu também que somente aos contratos comutativos seria aplicada a teoria da imprevisão com o propósito de resolver o contrato que sofresse ônus de grande monta e que essa possibilidade não afetaria os contratos aleatórios. Porém, mesmo contratos aleatórios, se provenientes de uma relação de consumo, poderão ser revisados na forma prevista pelo artigo 6º, V, 2ª parte, do CDC, se as prestações pagas pelo consumidor forem excessivamente oneradas por motivos posteriores à contratação, gerando profundo e injustificável desequilíbrio contratual para o consumidor. Isso pode ocorrer, por exemplo, no contrato de seguro” (BARLETTA, Fabiana Rodrigues, op. cit., p.145-146). É importante frisar, porém, que a álea no seguro corresponde à incerteza da instituição fornecedora do serviço (a empresa seguradora) quanto ao cumprimento de sua prestação principal (pagar o prêmio ao segurado) por conta do acontecimento futuro e incerto, que é o sinistro. Para o segurado (consumidor) há certeza quanto à exigibilidade de sua prestação principal (pagar o valor do contrato, seja à vista ou em prestações). O que não existe – e por isso se classifica o seguro como um contrato aleatório – é uma equivalência de prestações (sinalagma), caracterizador dos contratos comutativos. Não obstante, a certeza do segurado quanto ao valor e à exigibilidade de sua prestação é motivo mais que suficiente para que possa invocar o direito à revisão/resolução por onerosidade excessiva.

103 MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Organizadora). A reconstrução do direito privado – Reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.640.

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da quebra subjetiva da base do negócio – por exemplo, quando o consumidor perde o seu emprego”104.

Nesse sentido, cumpre observar que a identificação dessa específica função não é algo recente105, mas chama a atenção o fato de que a onerosidade excessiva para o consumidor possa ter, como causa, fato superveniente que alcance apenas a sua situação pessoal, alterando o que a autora denomina base subjetiva do negócio (ex.: perda do emprego, situação de doença grave, etc.). Como já observado, a doutrina tradicional considera que a revisão ou a resolução contratual por onerosidade excessiva tem cabimento apenas em situações genéricas, como as que motivaram as ações revisionais nos contratos de leasing106.

Contudo, justificada pela qualificação da vulnerabilidade dos consumidores (CDC, art. 4º, I) como questão de ordem pública e interesse social (CDC, art. 1º), a posição de alguns doutrinadores parece ser mesmo a de possibilitar a revisão ou a resolução dos contratos de consumo em razão de onerosidade excessiva para o consumidor, provocada por fato superveniente que alterou a base subjetiva – no sentido de ser circunstância relativa à vida do consumidor concretamente considerado – da relação com o fornecedor. Trata-se, salvo melhor juízo, de um retorno à Teoria da Impossibilidade Econômica107, motivada pela constatação do fenômeno típico da sociedade de consumo contemporânea: o Superendividamento (ou Sobreendividamento) do consumidor108,109.

104 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., cit., p.221. 105 Com efeito, Larenz já havia identificado essa função da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais (LARENZ, Karl, op. cit., p.154).

106 Nesse sentido, por todos, v. ROPPO, Enzo, op. cit., p.262. 107 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado..., cit., t.XXV, p.252-253; GOMES, Orlando.

Transformações..., cit., p.109-112. 108 MARTINS DA COSTA, Geraldo de Faria. Superendividamento – A Proteção do Consumidor de Crédito em Direito Comparado Brasileiro e Francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Ensina, a esse respeito, CLÁUDIA LIMA MARQUES, que na sociedade de consumo contemporânea o superendividamento é consequência de abundância de crédito disponível no mercado para o consumidor pessoa física aliada às situações de vulnerabilidade dos consumidores, em especial, a falta de renda e a desinformação sobre condições gerais do contrato de crédito (MARQUES, Cláudia Lima. Introdução. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor Endividado – Superendividamento e crédito, 2006, p.13-22).

109 Uma breve pesquisa jurisprudencial no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul revelou o crescimento do número de decisões nas quais se reconhece a existência de superendividamento do consumidor, demonstrando que não se trata de situações isoladas, mas de um fenômeno social cada vez mais incidente nas relações contratuais de consumo (em especial nas que envolvem outorga de crédito ao consumidor). Nesse sentido, e embora não digam respeito, necessariamente,

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3 – CONCLUSÃO

O objetivo central do presente trabalho foi analisar o desequilíbrio contratual provocado pela alteração superveniente da base negocial, no que diz respeito à modificação (revisão) ou à inexigibilidade (resolução) do contrato em razão da onerosidade excessiva. Nesse sentido, o trabalho foi

a ações de revisão ou resolução contratual por onerosidade excessiva, cumpre apresentar algumas das decisões analisadas na pesquisa: “COMINATÓRIA. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. DÉBITO NÃO AUTORIZADO LANÇADO EM CONTA CORRENTE BANCÁRIA, SOBRE O SALÁRIO DO CORRENTISTA, POR SUPOSTA COMPOSIÇÃO DE DÍVIDA DECORRENTE DA UTILIZAÇÃO DE LIMITE DE CHEQUE ESPECIAL, JÁ CANCELADO. AUSÊNCIA DE PROVAS ACERCA DO MÚTUO CELEBRADO ENTRE AS PARTES, COM AUTORIZAÇÃO DE DESCONTOS EM CONTA CORRENTE. DEVER DE CESSAÇÃO DOS DESCONTOS. Como regra, não pode a instituição financeira apropriar-se de créditos salariais lançados em conta corrente para pagar-se de outros créditos. Porém, em se tratando de conta popularmente denominada de ‘cheque especial’, tal apropriação é possível, diante da própria natureza desse tipo de contrato bancário. No caso em tela, porém, a situação fugiu da normalidade, pois o superendividamento do autor indica que lhe será praticamente impossível fazer frente ao seu débito crescente. Por tal razão, a ré cancelou o limite de cheque especial do autor, o que a impede seguir efetuando descontos para pagar o negativo. No entanto, sem prova do refinanciamento da dívida com autorização do titular, o banco lançou como débito na conta do autor montante superior a 50% do seu salário, a título de ‘composição de dívida’. Considerando a tutela jurídica ao crédito decorrente de vencimentos e salários, bem como a ausência de provas da autorização do desconto, correta a sentença ao determinar à ré que se abstenha de efetuar novos débitos sob essa rubrica. Com isso, não se está negando o direito da credora ao recebimento do valor devido. Para tanto, porém, existem os meios ordinários de cobrança, aos quais todos os credores devem se submeter. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO” (TJRS, Rec. Cív. 71002530806, 3ª T., Rec. Cív., Rel. Desemb. Eugênio Facchini Neto, j. 24.06.2010); “APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. CONSIGNAÇÃO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAÇÃO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, MÍNIMO EXISTENCIAL E SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR. Consoante entendimento sedimentado no Superior Tribunal de Justiça, revela-se válida a cláusula contratual que prevê o desconto em folha de pagamento. A limitação deste ao percentual máximo de 30% dos rendimentos do consumidor, excluídos os descontos obrigatórios, decorre da eficácia também entre os particulares do princípio da dignidade da pessoa humana (mínimo existencial), bem como objetiva evitar o superendividamento do consumidor. Assim, visa-se a assegurar um mínimo de rendimento para sobrevivência digna deste e de sua família. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte. In casu, diante da ausência de recurso do demandante, resta mantida a sentença proferida. APELOS IMPROVIDOS” (TJRS, Ap.Cív. 70035668516, 12ª Câm. Cív., Relª Desemb. Judith dos Santos Mottecy, j. 24.06.2010). “AÇÃO REVISIONAL C.C. EXIBITÓRIA DE DOCUMENTOS. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA DEFERIDA EM 1º GRAU. PEDIDO DE VEDAÇÃO DA INSCRIÇÃO DO NOME DO DEVEDOR NO ROL DE INADIMPLENTES. Necessidade de preenchimento dos requisitos para o deferimento da medida. Ausência de verossimilhança das alegações, no caso concreto. CANCELAMENTO DE DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. DEFERIMENTO NO CASO CONCRETO. HIPÓTESE DE SUPERENDIVIDAMENTO. PREJUDICADO O PEDIDO DE DEPÓSITO JUDICIAL DAS PARCELAS. ASTREINTE. Possibilidade de cominação de multa cuja finalidade é obrigar o cumprimento da decisão judicial. Agravo monocraticamente provido, em parte. (TJRS, Ag. Instr. 70036929156, 19ª Câm. Cív., Rel. Desemb. Guinther Spode, j. 10.06.2010).

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desenvolvido a partir de dois momentos. No primeiro, buscou-se, em primeiro lugar, a compreensão do princípio do equilíbrio contratual enquanto norma fundamental para as pretensões de revisão e resolução contratual nas relações civis e de consumo; e em segundo lugar, a análise do conceito de “base do negócio”, necessária à compreensão do efeito provocado pela perda do equilíbrio contratual: a alteração superveniente da base negocial. No segundo momento, foi analisada a matéria da revisão e da resolução contratual por onerosidade excessiva a partir de sua previsão no Código Civil de 2002 e no Código de Defesa do Consumidor.

Para a realização desse objetivo, foram desenvolvidas determinadas ideias, conforme seguem abaixo:

1. O princípio do equilíbrio contratual é, no contexto do Estado de Direito Social, critério de justiça no campo das relações contratuais privadas, na medida em que considera necessária, em especial nos contratos bilaterais e comutativos, a presença do sinalagma (equivalência de prestações) no momento que se refere ao cumprimento dos efeitos contratuais. Nesse sentido, o tradicional princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), reflexo da autonomia da vontade no contexto do Estado de Direito liberal, tem sua aplicação relativizada (flexibilizada), na análise do caso concreto, toda vez que se verificar que a base do negócio ou já foi estabelecida com desequilíbrio injustificado (ex.: caso dos vícios de consentimento: erro, lesão, etc.), ou tornou-se desequilibrada em razão de fatos supervenientes à contratação (caso da impossibilidade da prestação ou da onerosidade excessiva). Assim, a busca do equilíbrio contratual representa, por força do princípio rebus sic stantibus, a recomposição do equilíbrio perdido (revisão) ou, quando não mais possível ou útil para o contratante, a extinção (resolução) do vínculo contratual.

2. O conceito de base do negócio originou-se de um conjunto de teorias, identificadas inicialmente com estados psicológicos do contratante – influência direta do voluntarismo jurídico que marcou o contexto liberal do direito privado –, destacando-se as contribuições iniciais de WINDSCHEID

(Teoria da Pressuposição Subjetiva) e PISKO (Teoria da Pressuposição Típica). Mais tarde, PAUL OERTMANN, com o conceito de pressuposição bilateral, tentou dar um passo no sentido de objetivar o conceito de base negocial, mas não obteve o êxito necessário em razão de que sua teoria não afastou, de todo, o elemento subjetivo. Apenas LARENZ, não obstante as críticas recebidas e o aprofundamento de sua teoria por LEHMANN,

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conseguiu introduzir um conceito de base objetiva do negócio, como conjunto de circunstâncias fáticas sem as quais o contrato deixaria de ter sentido em razão da destruição da relação de equivalência entre as prestações. A teoria de LARENZ, sobre a base objetiva do negócio, foi acolhida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC, art. 6º, V, in fine). O Código Civil de 2002, ao contrário, optou pela Teoria da Imprevisão (arts. 317 e 478).

3. No Código Civil de 2002, a análise da resolução contratual por onerosidade excessiva, inspirada no Código Civil italiano (de 1942), está relacionada a determinados pressupostos, expressamente previstos na lei (CC, art. 478), ou apontados pela doutrina: a) a exigência de que os fatos supervenientes, causadores da onerosidade excessiva, sejam extraordinários e imprevisíveis à época da contratação; b) a aplicabilidade da resolução por onerosidade excessiva aos contratos de execução continuada ou diferida; c) a inaplicabilidade da resolução por onerosidade excessiva aos contratos aleatórios; d) a necessária relação entre a onerosidade excessiva na prestação do devedor e a obtenção de extrema vantagem para o credor e) a exigência de que se tenha ultrapassado a álea normal do contrato; f) a exigência de que o devedor da prestação excessivamente onerosa não esteja em mora no momento da propositura da ação. Segundo a doutrina, a resolução por onerosidade excessiva também pode ser do interesse do credor, quando este tiver de suportar uma prestação que se tornou irrisória, em relação à sua própria obrigação, assim como ter de eventualmente cumprir com uma contraprestação extremamente dificultada ou supervalorizada. Por fim, cumpre observar que a aplicação dos pressupostos legais (CC, art. 478) e doutrinários, segundo breve análise jurisprudencial, parece apontar para uma certa dificuldade no provimento de ações dessa espécie, aplicada aos contratos civis.

4. Quanto à matéria da revisão contratual por onerosidade excessiva no Código Civil de 2002, parte da doutrina consultada entende que se configura de duas formas: a) como modificação quantitativa (correção do valor econômico da prestação, supressão de cláusulas contratuais); ou b) como modificação qualitativa (mudança no conteúdo das cláusulas contratuais, além da mera alteração dos valores das prestações) dos efeitos contratuais. No Código brasileiro, o disposto no art. 317 representa hipótese de modificação quantitativa; já o disposto nos arts. 479 (reductio ad aequitatem) e 480 (revisão dos contratos unilaterais) representa hipóteses de modificação qualitativa. Por fim, cumpre registrar que pesquisa realizada

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no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não encontrou decisões sobre a matéria da revisão contratual segundo os dispositivos do Código Civil de 2002.

5. A matéria da revisão contratual por onerosidade excessiva no Código de Defesa do Consumidor apresenta-se de modo distinto do regulado no Código Civil de 2002. Com efeito, o CDC não adotou a Teoria da Imprevisão, mas a Teoria da Base Objetiva do Negócio (LARENZ), que permite aos consumidores, por força do art. 6º, V, in fine, revisar os contratos que se tornaram excessivamente onerosos para eles, sendo irrelevante a demonstração de que os fatos supervenientes, causadores da excessiva onerosidade na prestação, eram extraordinários e imprevisíveis à época da contratação. A distinção no tratamento jurídico da matéria se justifica, em especial, pelo princípio da vulnerabilidade dos consumidores (CDC, art. 4º, I) e pelo direito à facilitação da defesa dos direitos dos consumidores (CDC, art. 6º, VIII). Desde a entrada em vigor do CDC, em 1991, formou-se um grande acervo jurisprudencial em torno de ações revisionais de contratos de consumo, sendo paradigmático o caso de onerosidade excessiva nos contratos de leasing, provocada pela modificação da política cambial em 1999.

6. Quanto à resolução contratual por onerosidade excessiva no Código de Defesa do Consumidor, percebe-se que a ausência de previsão expressa dessa matéria no CDC não impede que os consumidores, em razão da onerosidade excessiva, busquem a extinção do vínculo contratual, por força do disposto no art. 83, que dispõe sobre a admissibilidade de quaisquer ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos interesses e direitos dos consumidores. Quanto aos pressupostos da resolução contratual, por óbvio, não devem ser os mesmos do Código Civil (Teoria da Imprevisão), mas os da revisão contratual no CDC (Teoria da Base Objetiva do Negócio), na medida em que mais favoráveis aos consumidores.

7. Por fim, importa considerar as repercussões do princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo (em especial nas ações envolvendo revisão ou resolução por onerosidade excessiva). Nesse sentido, além das conhecidas funções gerais desempenhadas no sistema geral de direito privado, alguns doutrinadores brasileiros, inspirados em parcela da doutrina alemã, sustentam que a boa-fé pode ser critério de correção e de adaptação em caso de mudança das circunstâncias, permitindo ao julgador a

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revisão ou a resolução dos contratos por onerosidade excessiva, não somente quando a onerosidade excessiva tenha sido provocada por fatos de alcance generalizado (inflação, crise política, econômica, cambial, etc.), mas também quando os fatos supervenientes alcancem apenas a esfera pessoal do consumidor (perda do emprego, doença grave, etc.). Ao que parece, esse entendimento – que destoa da posição tradicional na doutrina – sustenta a possibilidade de utilização das pretensões de revisão e resolução contratual por onerosidade excessiva a fim de evitar ou amenizar situações de superendividamento do consumidor, e acolhendo, assim, a chamada Teoria da Impossibilidade Econômica. Com efeito, pesquisa jurisprudencial realizada no site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul revela um expressivo número de decisões nas quais se reconhece a existência de superendividamento do consumidor, demonstrando que não se trata de situações isoladas, mas de um fenômeno social cada vez mais incidente nas relações contratuais de consumo (em especial nas que envolvem outorga de crédito ao consumidor).

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OPERATIVIDADE DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

ROBERTO MEDAGLIA MARRONI *

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Compreensão do princípio boa-fé; 2.1 Boa-fé no direito privado; 2.1.1 Conteúdo; 2.1.2 Vínculo entre boa-fé objetiva, segurança jurídica e confiança; 2.2 Boa-fé no direito público; 2.2.1 Boa-fé no direito administrativo. 2.2.2 Boa-fé no direito tributário. 3 – Obrigação tributária e boa-fé objetiva; 3.1 Conteúdo nas obrigações tributárias; 3.2 Precedentes do STF e do STJ; 4 – Considerações finais; 5 – Bibliografia.

1 – INTRODUÇÃO

Atualmente, muito se tem debatido, no âmbito da ciência jurídica, a respeito de certos deveres instrumentais (acessórios) relacionados às obrigações assumidas reciprocamente entre pessoas, o que foi denominado, pela doutrina, princípio da boa-fé objetiva.

Tal instituto jurídico não é uma inovação, pois já se manifestava no direito romano, onde comportamentos éticos já eram exigidos das partes envolvidas em negócios jurídicos.

Com o advento do Estado Liberal e predominância da autonomia da vontade dos particulares, os deveres advindos do princípio da boa-fé tiveram sua importância mitigada, voltando a revelar-se somente no Estado moderno (Estado Social), no início do Século XX.

Embora fortemente impregnado no âmbito do direito obrigacional civil, atualmente tem-se questionado a respeito de sua aplicação nas relações obrigacionais tributárias.

E é este o objeto do presente trabalho. Visa-se, após a compreensão dogmática do princípio da boa-fé objetiva, a demonstrar sua incidência

* Advogado. Mestrando em Direito Tributário pela UFRGS

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também nas relações obrigacionais entre Fisco e contribuinte, bem como fornecer alguns elementos concretos à sua aplicação.

O estudo centrou-se, em especial, nas obras de CLÓVIS DO COUTO E SILVA, ALMIRO DO COUTO E SILVA e JUDITH MARTINS-COSTA, os quais, embora circunscritos no espectro do direito privado, alinhavaram, com firmeza, os traços da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais, de molde a facilitar uma adequada compreensão de seu conteúdo e alcance, para, desta forma, permitir a transmutação da matéria ao âmbito do direito tributário.

Para cumprir este desiderato, investigar-se-á referido instituto em dois momentos. Em primeiro lugar, será buscada a compreensão do princípio da boa-fé objetiva visando a delimitar seu conteúdo, extensão e eficácia. Para tanto, partir-se-á dos estudos realizados na esfera do direito privado, sua gênese, para, posteriormente, entender como se dá sua extensão ao direito público.

Em segundo lugar, aprofundar-se-á o estudo, buscando fundamentar a operatividade do princípio da boa-fé objetiva no âmbito das obrigações tributárias, partindo-se da análise casuística para, depois, adentrar-se na análise do entendimento esposado pelos nossos Tribunais Superiores.

Ao final, espera-se contribuir à compreensão do instituto estudado no âmbito das relações obrigacionais tributárias, instigando o leitor a pensar a respeito de algumas questões ainda não respondidas pela doutrina e jurisprudência.

2 – COMPREENSÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

2.1 Boa-Fé no Direito Privado

Antes de adentrar no estudo da boa-fé objetiva na esfera do direito público, necessária a análise de seu desenvolvimento no direito privado, ramo do Direito em que teve origem, de molde a permitir a compreensão de seu conteúdo, eficácia e alcance.

2.1.1 Conteúdo

A doutrina, a respeito da gênese do princípio da boa-fé objetiva, tem sido de certa forma vacilante. Mas tal esclarecimento é extremamente importante para a adequada compreensão do objeto ora estudado.

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A boa-fé não é invenção do direito moderno, tendo se desenvolvido já no direito romano, embora não em toda a extensão hoje compreendida.

O Professor CLÓVIS DO COUTO E SILVA ensina que: “A atividade criadora do direito dos magistrados romanos (...) valorizava grandemente o comportamento ético das partes, o que se expressava, sobretudo, nas actiones ex fide bona, nas quais o arbítrio do iudex se ampliava, para que pudesse considerar, na sentença, a retidão e a lisura do procedimento dos litigantes, quando da celebração do negócio jurídico”1.

GABRIEL TEDESCO WEDY, na mesma linha, ensina que “O Corpus Juris Civilis proibia, por exemplo, que o pater familias alegasse a inexistência de emancipação eficaz com relação à filha já falecida, se ela tivesse efetivamente vivido como mater familias e instituído testamento em benefício dos seus descendentes”, bem como que “o Corpus Juris Civilis impedia cada coproprietário de acionar o benefício da servidão pela turbação da posse”2.

Desta feita, percebe-se que o princípio da boa-fé já tinha certa expressão no âmbito do direito romano, onde já se exigiam comportamentos éticos nas relações pessoais. Talvez não se denominasse boa-fé, mas o conteúdo era o mesmo.

Contudo, com o advento do Estado Liberal (Século XIX), tendo havido a separação vertical entre o Estado e a sociedade, assumiu relevo a autonomia da vontade dos particulares, segundo a qual as pessoas podiam regular seus negócios de forma plena, sem qualquer intervenção estatal, em obediência ao princípio da propriedade e da liberdade. Esta realidade relegou a boa-fé a um segundo plano.

Somente no Estado moderno (Estado Social, Estado Provedor) a boa-fé ganhou nova dimensão e ressurgiu como fonte de obrigações. Isso, pois as esferas públicas e privadas, antes radicalmente separadas, passaram a conjugar-se, a coordenar-se e complementar-se.

Atualmente, a vontade negocial das partes sofre restrições, pois o Estado passou a influir no meio econômico e social, mitigando, por assim dizer, a liberdade de contratar. A título exemplificativo, pode ser citado o disposto no art. 173 da CF, que autoriza o Estado a explorar diretamente

1 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo, p.32. 2 O Princípio da Boa-fé Objetiva no Direito Tributário, p.319-350.

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atividades econômicas, quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo.

Outro exemplo, a demonstrar a restrição que a autonomia da vontade sofreu com o advento do Estado Providência, é a existência de determinados direitos inalienáveis, como a crença, direito à vida e à liberdade, os quais não podem ser abolidos pela autonomia da vontade, sob pena de nulidade.

Pois bem, foi neste panorama que o princípio da boa-fé retomou o relevo que primordialmente detinha nos institutos de direito civil.

A doutrina, então, desenvolveu o instituto, de molde a compreendê-lo em dois aspectos: a) boa-fé subjetiva e b) boa-fé objetiva.

A boa-fé subjetiva pode ser entendida como um estado anímico (estado psicológico). Sua antítese é a má-fé. É subjetiva porque o intérprete busca a intenção do agente. Ela inseriu-se no direito há mais tempo que a boa-fé objetiva, estando prevista, no direito brasileiro, desde o Código Civil de 1916, como, por exemplo, na posse ad usucapionem, na responsabilidade civil, em relação aos efeitos do casamento nulo ou anulável, contraído de boa-fé, mantidos até a data da anulação do casamento (art. 1.561 do CC), etc.

No tocante à boa-fé objetiva, pode-se entendê-la como um padrão de comportamento social (um standard), um modelo de conduta, que exige que as pessoas ajam com lealdade, lisura, honestidade, principalmente em relação aos interesses de terceiros. A boa-fé no seu aspecto objetivo impõe “atitude positiva de cooperação”3. Sua primeira aparição em texto legislativo se deu no direito germânico, mais especificamente no § 242 do Código Civil Alemão, que impunha a observância, na efetivação da prestação, dos ditames dos usos de tráfico. No direito brasileiro, somente com o advento do Código Civil de 2002 este instituto se inseriu nos textos legais, em especial no art. 113 (“Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”), no art. 187 (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela

3 MARTINS-COSTA, Judith. Princípio da confiança legítima e princípio da boa-fé objetiva. Termo de Compromisso de Cessação (TCC) ajustado com o Cade. Critérios da interpretação contratual: os “sistemas de referência extracontratuais” (“circunstâncias do caso”) e sua função no quadro semântico da conduta devida. Princípio da unidade ou coerência hermenêutica e “usos do tráfego”. Adimplemento contratual. Revista dos Tribunais, p.95.

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boa-fé ou pelos bons costumes”) e no art. 422 (“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”).

Mas, como bem leciona CLÓVIS DO COUTO E SILVA, a inexistência, no Código Civil de 1916, de qualquer dispositivo legal a respeito da boa-fé objetiva “[...] não impede que o princípio tenha vigência em nosso direito das obrigações, pois se trata de proposição jurídica, com significado de regra de conduta”4. Referido princípio é “[...] considerado fundamental, ou essencial, cuja presença independe de sua recepção legislativa”5. “Quando num código não se abre espaço para um princípio fundamental, como se fez o da boa fé, para que seja enunciado com a extensão que se pretende, ocorre ainda assim a sua aplicação por ser o resultado de necessidades éticas essenciais, que se impõem ainda quando falte disposição legislativa expressa”6.

A doutrina leciona que o princípio da boa-fé objetiva, no direito das obrigações, cria deveres secundários, anexos ou instrumentais, desvinculados da vontade, possuindo, por esta razão, vida autônoma, podendo perdurar mesmo depois de adimplida a obrigação. A medida da intensidade dos deveres instrumentais é dada pelo fim do negócio jurídico (finalidade esta perceptível pela outra parte objetivamente). Ele atua “como fonte normativa impositiva de comportamentos cooperativos que se devem pautar por um específico standard ou arquétipo, qual seja a conduta segundo a boa-fé”7.

E é este último aspecto do princípio da boa-fé que será analisado no desenvolvimento do presente estudo.

2.1.2 Vínculo entre boa-fé objetiva, segurança jurídica e confiança

Compreendido o conteúdo da boa-fé objetiva no âmbito civilista, importante tecer algumas considerações a respeito da confusão terminológica que se faz entre este instituto e os princípios da segurança jurídica e da confiança.

O Professor ALMIRO DO COUTO E SILVA explica que boa-fé, segurança jurídica e proteção da confiança são institutos jurídicos umbilicalmente 4 SILVA, Clóvis do Couto e Silva, idem, p.33 5 Ibidem, p.61. 6 Ibidem, mesma página. 7 MARTINS-COSTA, idem, p.95.

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ligados, ou seja, têm a mesma constelação de valores8, não obstante, nos dias atuais, tenha se chegado a uma relativa separação desses conceitos. Referido jurista esclarece que a boa-fé objetiva (dever de cooperação, de honestidade) dá conteúdo ao princípio da segurança jurídica,

“[...] pelo qual nos vínculos do Estado e os indivíduos, se assegura uma certa previsibilidade da ação estatal, do mesmo modo que se garante o respeito pelas situações constituídas em consonância com as normas impostas ou reconhecidas pelo poder público, de modo a assegurar a estabilidade das relações jurídicas e um certa coerência na conduta do Estado”9.

Em relação ao princípio da confiança, GUILHERME JOSÉ GIACOMUZZI leciona “Irrefutável, no entanto, é que a proteção da confiança é um dos principais elementos materiais decorrentes da boa-fé”10.

Outro não é o entendimento de JUDITH MARTINS-Costa:

“Da valorização da confiança, expressa pelo princípio da boa-fé objetiva – cuja relevância cresce proporcionalmente ao aumento da desagregação dos vínculos comunitários que marca a nossa sociedade –, decorre a sua importância na relação obrigacional que marca nossa sociedade – decorre a sua importância na relação obrigacional, a qual se desenvolve como um processo voltado a uma finalidade, que é o adimplemento com a satisfação do credor.”

Segundo os ensinamentos acima, pode-se perceber que o princípio da segurança jurídica engloba o da boa-fé objetiva, que, por sua vez, engloba o da proteção da confiança.

Veja-se o seguinte: se os indivíduos agirem com cooperação, honestidade, lealdade uns para com os outros, o resultado não será outro senão a ocorrência de certa previsibilidade nas relações intersubjetivas, pois as pessoas, sabedoras da honestidade do próximo, confiarão umas nas 8 Princípio da segurança jurídica (proteção da confiança) no direito público brasileiro e o direito de a administração pública anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do processo administrativo da União (Lei 9.784/99). Revista de Direito Administrativo, p.273.

9 SILVA, Almiro do Couto e. Princípio da segurança jurídica (proteção da confiança) no direito público brasileiro e o direito de a administração pública anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do processo administrativo da União (Lei 9784/99). Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n.237, p.273, jul.-set. 2004.

10 GIACOMUZZI, Guilherme José. A Moralidade Administrativa e a Boa-fé da Administração Pública (Conteúdo Dogmático da Moralidade Administrativa). São Paulo: Malheiros, 2002, p.266.

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outras, criando-se uma relação de segurança. Metaforicamente, pode-se visualizar a relação entre estes três princípios como circunferências que se envolvem mutuamente, onde o círculo maior está caracterizado pelo princípio da segurança jurídica, que englobará o círculo da boa-fé objetiva, o qual, por sua vez, envolverá o círculo da proteção da confiança.

2.2 Boa-Fé no Direito Público

Feita esta retrospectiva das origens civilistas do princípio da boa-fé objetiva, importa, agora, perquirir como este instituto pode ser estendido ao Direito Público.

E é exatamente isso que se pretende responder logo abaixo, partindo-se de seu desenvolvimento no Direito Administrativo até chegar ao Direito Tributário.

2.2.1 Boa-fé no direito administrativo

Leciona JOSÉ GUILHERME GIACOMUZZI, que o princípio da moralidade pode ser compreendido em dois polos: a) objetivo, representado pela noção de boa-fé e confiança, e b) subjetivo, representado pelo dever de probidade11.

Com base nesta assertiva, referido jurista leciona que a boa-fé objetiva, no âmbito do Direito Administrativo, pode ser compreendida como sendo um elemento do princípio da moralidade, fundamentando sua aplicabilidade no disposto no art. 37 da CF12.

Acrescenta o ilustre jurista que o princípio da moralidade (que, como se viu, engloba o da boa-fé), no âmbito do Direito Administrativo, teria surgido na doutrina francesa, no início do Século XX, no esforço de ampliar a abrangência do controle de legalidade dos atos administrativos, via instituto do “desvio de poder” (que se restringia, à época, à análise do excesso de poder)13.

HAURRIOU, incentivado pelo dispositivo do Código Civil Alemão – e visando a proteger o administrado contra atos do administrador público que age conforme a lei, mas visando a fins diversos daqueles para os quais foram outorgados seus poderes –, propôs uma equivalência entre a boa administração (ligada à moralidade) e a boa-fé, passando-se a admitir a

11 Ibidem, p.221. 12 Ibidem, p.270. 13 Ibidem, p.39.

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anulação de atos administrativos baseados em causas falsas, mediante a averiguação da vontade jurídica do Administrador.

É com base nestas concepções que, segundo JOSÉ GUILHERME GIACOMUZZI, teria sido construído o princípio da moralidade administrativa e consequentemente o da boa-fé objetiva14.

Desta forma, a aplicação da boa-fé objetiva não pode ser limitada ao direito privado, pois mesmo que não se afastem as estruturas construídas pela doutrina civilista, cabível fundamentar sua incidência também no âmbito do direito público, com base no princípio da moralidade administrativa.

Outra conclusão não alcançou GABRIEL DE JESUS TEDESCO WEDY, quando leciona que o princípio da boa-fé objetiva “tem fundamento constitucional. Assim, sua aplicação não deve ser restringida a relações contratuais ou mesmo a relações privadas, devendo se infiltrar por todos os ramos do direito”15.

Neste diapasão, JUDITH MARTINS-COSTA assevera que a “Administração Pública está sujeita a observar a conduta segundo a boa-fé, restando adstrita a conduzir-se com lealdade no trato com os particulares”, bem como que “[...] a Administração deve respeitar a legítima expectativa criada por sua conduta, nos administrados [...]”. Por assim dizer, no âmbito do direito administrativo, o princípio da boa-fé objetiva expressa deveres à administração, como a) lealdade, colaboração, correção, informação e veracidade, b) manutenção das promessas e c) não revogação de atos que tenham atingido as expectativas legítimas dos administrados16.

Esta realidade não passou despercebida pelo legislador brasileiro, tanto que formalizou o princípio da boa-fé objetiva no texto da Lei nº 9.784/99 (que regula o processo administrativo federal), onde há previsão, no seu inciso IV do art. 2°, do dever de a Administração atuar segundo os padrões éticos da probidade, decoro e boa-fé.

14 Ibidem, p.235. 15 O Princípio da Boa-fé Objetiva no Direito Tributário, p.43. 16 A Proteção da Confiança nas Relações Obrigacionais entre a Administração Pública e os Particulares, p.233.

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2.2.2 Boa-fé no direito tributário

Pois bem, considerando aplicável o princípio da boa-fé objetiva ao Direito Administrativo, não se pode negar sua efetividade no âmbito do Direito Tributário, ante o liame extremo existente entre estes dois ramos do direito, que até pouco tempo se imiscuíam.

Para se ter uma ideia da dimensão que tal princípio tomou na esfera tributária, importante dar evidência ao direito lusitano, que compreende como violador ao princípio da boa-fé objetiva o comportamento do Fisco de interpretar e aplicar normas visando a maximizar suas receitas. Segundo eles, também não poderá o Fisco induzir o contribuinte em erro, mediante perguntas dúbias ou capciosas, a fim de provocar o recolhimento de valores a maior17.

Ademais, mediante leitura dos dispositivos constitucionais tributários, pode ser verificada a inserção dos deveres reflexos do princípio em voga também no âmbito do Direito Tributário. Não se pode negar, por exemplo, que o princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da CF) consubstancia, ao fim e ao cabo, os deveres advindos da boa-fé objetiva, pois elemento do princípio da segurança jurídica, base da legalidade. No mesmo sentido, o princípio da irretroatividade tributária, previsto na alínea a do inciso III, ou o princípio da anterioridade, constante da alínea b do mencionado inciso III, ambos do mencionado art. 150 da CF.

Ora, estes dispositivos constitucionais outra coisa não querem significar senão que o Estado não pode agir com a intenção de prejudicar o contribuinte, criando tributos sem lei que os institua, ou de forma a atingir fatos pretéritos, surpreendendo o contribuinte com exação antes não prevista, ou sem concedê-los um tempo para planejar suas despesas fiscais. Tudo isso pode ser resumido no dever de lisura no tratamento das relações públicas (honestidade).

Assim, considerando as proposições acima, a conclusão mais acertada direciona-se no sentido de que o princípio da boa-fé, na sua asserção objetiva, está, também, intimamente ligado ao Direito Tributário.

17 WEDY, Gabriel de Jesus, idem, p.325.

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3 – OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA E BOA-FÉ OBJETIVA

Foi visto no tópico acima o embasamento teórico-jurídico a dar vazão à aplicação do princípio da boa-fé objetiva no Direito Tributário.

No presente item, passa-se a analisar a eficácia de tal norma jurídica no âmbito das obrigações tributárias, partindo-se de uma perspectiva pragmática, mediante análise de casos em que referido princípio pode e deve ser aplicado, bem como pela averiguação da posição dos nossos tribunais superiores envolvendo o tema em debate.

3.1 Conteúdo nas Obrigações Tributárias

Sabe-se que a causa da relação obrigacional no âmbito do direito tributário, ao contrário do direito privado, não depende da vontade dos envolvidos (no caso o Fisco e o contribuinte). Sua vinculação, exclusivamente, decorre de lei.

Mas tal assertiva não afasta a possibilidade de aplicação do princípio da boa-fé objetiva às obrigações tributárias. Mesmo em se adotando a tese da separação absoluta entre obrigação civil e obrigação tributária, ainda assim cabível a operatividade desta norma ao direito obrigacional tributário.

CARLOS ALEXANDRE DE AZEVEDO CAMPOS leciona que o princípio da boa-fé objetiva atua no âmbito tributário:

“[...] como a proibição de retroatividade das leis que agravam a imposição tributária, as regras de não surpresa e de vedação da imprevisibilidade, a irreversibilidade do ato de lançamento por erro de direito e de valoração dos fatos, o caráter vinculante das informações e respostas das autoridades financeiras feitas aos obrigados tributários, exclusão ou redução de multas em certos casos, a proibição de analogia na fixação do tipo tributário, enfim [...].”18

Eis, abaixo, alguns exemplos a comprovar a eficácia do princípio da boa-fé objetiva neste âmbito obrigacional.

18 A proteção da Confiança legítima e da boa-fé no Direito. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª

Região, p.78.

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a) Benefícios Fiscais e Legalidade não Confirmada

É frequente, na prática fiscal, a edição de Leis Estaduais que, inobservando a exigência contida no art. 155, inciso XII, alínea g, da CF (prévio convênio entre os Estados-membros para concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais), concedem isenções de ICMS, ou, então, a edição de medidas provisórias concessivas de parcelamento sob certas condições a cargo do contribuinte, cuja durabilidade cria certas expectativas nos contribuintes beneficiários, de molde a orientar seu planejamento e estimular certos sacrifícios em prol destes benefícios.

Diante destes casos, surge a questão: poderia o fisco, declarada inconstitucional a lei concessiva de isenção, cobrar retroativamente o tributo, ou, não convertida em lei a medida provisória, revogar o parcelamento?

Ora, não se pode perder de vista que todo o ato normativo possui presunção de legalidade. Não é por outra razão que o contribuinte pautará sua conduta na confiança de que os benefícios sejam válidos e eficazes, o que deve ser protegido pelo Direito19. Somado a isso, temos o fator tempo, que é capaz de consolidar determinada situação fática, em atenção à necessidade de previsibilidade do ordenamento jurídico20.

Desta feita, mesmo que a lei concessiva de isenção de ICMS seja declarada inconstitucional, a decisão não poderá ter efeitos retroativos, ante a eficácia da boa-fé objetiva na espécie, no seu aspecto proteção da confiança legítima. Pela mesma razão o parcelamento concedido pela medida provisória não convertida em lei deverá ser mantido.

b) Normas Antielisivas e Princípio da Boa-fé Objetiva

Outro exemplo da operatividade do princípio da boa-fé objetiva em relação às obrigações tributárias está nas normas antielisivas, as quais, nada mais nada menos, visam a preservar a boa-fé na relação jurídica entre o Fisco e o contribuinte. Tal assertiva pode ser verificada pela leitura do parágrafo único do art. 116 do CTN (com redação da Lei Complementar nº 104/2001)21. Assim, como bem leciona GABRIEL JESUS WEDY,

19 MS nº 24268-1, STF, Tribunal Pleno, DJ 17.09.04, Minas Gerais. 20 RE nº 85.179-1, STF, 1ª Turma, DJ 02.12.77, Rio de Janeiro. 21 Art. 116, parágrafo único, do CTN: A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do

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“[...], a autoridade fiscal deverá, por dever de ofício, e não apenas poderá, como consta infelizmente na redação do artigo, desconsiderar atos ou negócios jurídicos que dissimulem a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação jurídico-tributária”22.

Esta regra leva em conta o dever acessório emanado da norma ora sob exame, que impõe, aos contribuintes, conduta pautada em lisura e honestidade para com o Fisco. Isso deflagra que a boa-fé objetiva não é só exigível em relação à Administração. Ela também se aplica ao administrado, “[...] pois a boa-fé pressupõe a lealdade e a lisura na palavra empenhada pela administração e pelo administrado”23.

c) Programa de Recuperação Fiscal – REFIS

Outra hipótese concreta da aplicação da boa-fé objetiva às relações obrigacionais tributárias está consubstanciada na exigência de deveres para que o contribuinte pudesse poder optar pelo Programa de Recuperação Fiscal – REFIS, previsto na Lei 9.964/00.

Esta lei teve por objetivo recuperar créditos tributários perdidos pela União, permitindo, por outro lado, a regularização das empresas inadimplentes. Mas, ao lado das vantagens, o Fisco impôs uma série de deveres a serem cumpridos pelo contribuinte. “Todavia, estes deveres a serem cumpridos pelos optantes do Refis não podem ser excessivos e abusivos a ponto de violarem o princípio da boa-fé”24.

Ademais, o contribuinte aderente não podia ser surpreendido por decisões administrativas editadas após sua inclusão no sistema, criando novas regras que acabam por excluí-lo do benefício.

d) Mudança da Legislação do PAES

A Lei 10.684/03 instituiu programa de parcelamento de débitos fiscais junto à Secretaria da Receita Federal e à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com vencimento até 28.02.03, em até 180 prestações iguais e consecutivas.

tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

22 WEDY, Gabriel de Jesus, idem, p.347. 23 RIBEIRO, Ricardo Lodi. A proteção da Confiança Legítima do Contribuinte, p.100. 24 WEDY, Gabriel de Jesus, idem, mesma página.

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O inciso I do § 3° do art. 1° da referida lei, por sua vez, previu regime de exceção em relação às micro e pequenas empresas, sendo que no seu § 4° restou estabelecido que em relação a elas “o valor da parcela mínima mensal corresponderá a um cento e oitenta avos do total do débito ou a três décimos por cento da receita bruta auferida no mês imediatamente anterior ao do vencimento da parcela, o que for menor”.

Em 25.05.03, foi editada a Portaria conjunta da Procuradoria da Fazenda Nacional e Secretaria da Receita Federal, de nº 1, prevendo, entre outras coisas, que, em relação àquelas empresas, “o quantitativo total das prestações poderá exceder a cento e oitenta, quando o valor da prestação, calculado com base na receita bruta, não for suficiente para liquidar parcelamento naquele número de parcelas” (art. 4°, § 6°). Por outro lado, no art. 9° da referida Portaria Conjunta, restou estabelecida aos interessados a condição de desistirem de ações judiciais relativas aos tributos objeto do parcelamento, bem como renúncia das alegações de direito sobre as quais se fundam referidas ações. Em vista deste panorama, tal normatividade acabou por gerar confiança legítima nos empresários interessados em um parcelamento com prazo maior do que 180 meses.

Ocorre que, em 26.08.04, foi editada a Portaria Conjunta nº 3, da Secretaria da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que, mediante disposição prevista no seu art. 18, revogou referido § 6° do art. 4° da Portaria Conjunta nº 1, excluindo o direito das micro e pequenas empresas de se beneficiarem de parcelas superiores às 180 previstas no art. 1° da Lei 10.684/03.

A partir daí, pergunta-se: como fica a situação do contribuinte que desistiu de todas as suas ações judiciais e recursos administrativos (art. 9° da Portaria Conjunta nº 1), confessando o débito fiscal (art. 3°, § 2°, da Portaria Conjunta nº 1)?

Tal conduta da Administração Pública, sem sombra de dúvida, viola os ditames do princípio da boa-fé objetiva, pois, após praticamente um ano, revogou benefícios onerosos por ela mesma anteriormente concedida.

3.2 Precedentes do STF e do STJ

Os casos levantados acima certamente auxiliam a compreender a extensão da operatividade do princípio da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais tributárias, mas não se pretende ficar em meras especulações teóricas a respeito do tema. A fim de testar o instituto na prática, importante

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fazer análise de alguns precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

Ocorre que, talvez diante da incipiência da matéria na doutrina, nossos Tribunais Superiores pecam numérica e qualitativamente na aplicação do princípio em estudo. A respeito da boa-fé objetiva, a maioria dos precedentes relaciona-se ao aspecto da proteção da confiança, sem, contudo, desenvolver adequadamente a compreensão de seu conteúdo e extensão eficacial, deixando lacunas a serem ainda preenchidas.

Entre estes julgados, pode-se citar o Agravo de Instrumento nº 944.557-RS25, interposto contra decisão do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que negou seguimento a recurso especial interposto pela Fazenda Estadual. Versava a demanda sobre embargos à execução fiscal em que se discutia a possibilidade de creditamento de ICMS, destacado em notas fiscais, oriundo de operações de aquisição pela empresa agravada de embalagens plásticas personalizadas, para acondicionamento de gêneros alimentícios.

No caso concreto, por ocasião das aquisições das embalagens da empresa vendedora (Mercur), a operação era e foi tributada. Os documentos fiscais foram idoneamente emitidos e o imposto foi devidamente recolhido. O contribuinte lançou nos livros fiscais o crédito que por direito lhe coube e, na contabilidade fiscal, transferiu aos adquirentes a diferença do imposto (débito – crédito).

Posteriormente, adveio decisão judicial que declarou indevida a cobrança de ICMS na saída dos produtos da empresa adquirente das embalagens, razão pela qual o Fisco deu início a procedimento de cobrança fiscal do valor creditado. Entendia a Fazenda que, se o ICMS não era devido quando da aquisição das embalagens personalizadas, não poderia a empresa adquirente ter se creditado no respectivo imposto. O fato é que, ao tempo da aquisição das embalagens, o ICMS foi devidamente escriturado, tendo o próprio Fisco cobrado o imposto.

Em decisão monocrática, o Min. José Delgado ratificou o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, preservando a empresa adquirente das embalagens, pois esta somente teria se creditado no ICMS pago quando da entrada dos produtos de embalagens, em razão de o Fisco ter entendido, à época, ser devido o imposto, não podendo, agora, em ato

25 STJ, Rel. Min.José Delgado, DJ 28.04.08, Porto Alegre.

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contrário ao anterior, pretender restituir o valor creditado. É o teor da fundamentação:

“Se, ao tempo do aproveitamento de créditos do ICMS oriundo da aquisição de embalagens personalizadas, entendia o Fisco que a operação estava sujeita ao ICMS, é ilegal a glosa dos créditos aproveitados pelo adquirente fundada em decisão judicial superveniente ao fato gerador no sentido de não sujeição da saída dos referidos produtos ao ICMS. Exigir o Fisco o estorno de créditos de ICMS aproveitados, oportunamente, pelo contribuinte, quando, à época da escrituração, entendia que as operações que os originaram estavam sujeitas ao ICMS, viola o princípio da boa-fé objetiva, porquanto constitui venire contra factum proprium. Hipótese em que a conduta do Fisco criara, no contribuinte, legítima expectativa quanto à correção do creditamento realizado.”

Outro caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o Recurso Especial nº 438.524/SC26, diz quanto à possibilidade, ou não, de o Governo alterar as regras do chamado Programa de Recuperação Fiscal (REFIS), instituído pela Lei 9.964/00, prejudicando contribuintes que preenchiam os requisitos legais antes da respectiva modificação.

Mencionada lei previa, no § 7° do seu art. 2°, que “os valores correspondentes a multa, de mora ou de ofício, e a juros moratórios, inclusive as relativas a débitos inscritos em dívida ativa”, poderiam ser liquidados, mediante “compensação de créditos, próprios ou de terceiros” (inciso I), e “utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido, próprios ou de terceiros” (inciso II). Esta normatividade gerou, nos contribuintes interessados, expectativa de que poderiam se utilizar de créditos relativos àquelas rubricas, próprios ou de terceiros, para amortizar o débito fiscal a ser parcelado. Acontece que o art. 3° da Resolução CG/REFIS nº 19/0127 impôs que esta transferência de créditos deveria ser antecedida da liquidação dos débitos próprios, para, somente após, transferir os créditos excedentes (resultado da operação de redução dos débitos e créditos) a empresas terceiras.

26 1ª Turma do STJ, Rel. Min.José Delgado, DJ 29.05.06, Santa Catarina. 27 Art. 3º. O valor relativo a prejuízo fiscal ou a base de cálculo negativa da CSLL cedido por pessoa jurídica optante pelo REFIS será utilizado para liquidação de multas e de juros de mora de terceiros apenas quando exceder do seu próprio débito correspondente a multas e a juros de mora (grifo nosso).

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Um dado importante a ser mencionado é que referida resolução foi editada após o término do prazo para protocolar os pedidos de transferências dos créditos decorrentes de prejuízos fiscais e bases de cálculo negativa, do CSLL.

A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu ilegal a resolução, seja por afronta ao princípio da legalidade, seja por violação do princípio da segurança jurídica. Embora não tenha havido expressa menção à boa-fé objetiva, este é um caso legítimo de sua aplicação. Não se pode esquecer que o princípio da boa-fé objetiva, como já evidenciado páginas acima, tem estreita ligação com o princípio da segurança jurídica, que, no caso concreto analisado, serviu de base para a revogação da norma questionada.

Finalmente, para não se ficar restrito somente na análise de casos em que foi reconhecida afronta à boa-fé, importante fazer referência a precedente em que foi afastada qualquer ilegalidade do ato do Fisco.

É o caso do RE nº 231176-128, em que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal reformou o acórdão proferido pelo e. TRF da 3ª Região, cuja decisão havia exonerado o contribuinte de recolher o imposto de importação de veículo adquirido no exterior, com alíquota majorada pelo Decreto nº 1.427/95 de 32% para 70%, ao fundamento de que, não obstante a previsão contida no § 1° do art. 153 da CF, a alteração imotivada da alíquota do imposto de importação caracteriza afronta aos princípios do direito adquirido, da irretroatividade, da lealdade e da boa-fé. Aduziu o Tribunal recorrido que o Fisco deve obediência ao planejamento de desenvolvimento nacional equilibrado por ele enunciado, ao qual aderem os contribuintes com confiança, não podendo, abruptamente e sem qualquer justificativa, desvirtuar-se dele, sob pena de afrontar o princípio da boa-fé objetiva. O Supremo, todavia, posicionou-se em sentido contrário ao colegiado a quo, a um, porque o autorizativo contido no § 1° do art. 153 da CF afasta qualquer exigência de motivação à alteração das alíquotas do referido imposto, e, a dois, porque referida alteração de alíquota havia se dado após a ocorrência do fato gerador (data do registro da declaração na repartição aduaneira – art. 23 do Decreto-Lei nº 33/66).

28 STF, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, 28.05.99, São Paulo.

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Pois bem, pela análise dos precedentes acima explicitados, podem ser extraídos alguns elementos comuns capazes de esclarecer a operatividade do princípio da boa-fé objetiva no âmbito das obrigações tributárias.

Observe-se que em todos os precedentes analisados há menção de ato do Governo capaz de gerar confiança no contribuinte. Nestes julgados, atos administrativos e legislativos foram considerados com tal capacidade. No primeiro (AI nº 944.557-RS), por exemplo, o ato gerador de expectativa foi a cobrança do ICMS na aquisição das embalagens; no segundo (RE nº 438.524/SC), uma resolução da Comissão Gestora do REFIS; e no terceiro (RE nº 231176-1), um decreto-lei (embora tenha sido afastada a incidência da boa-fé ante a existência de regra autorizativa).

Assim, conclui-se que ato capaz de gerar confiança pode ser tanto administrativo quanto legislativo, e este considerando na sua feição ampla, englobando leis, decretos, regulamentos, etc.

Nesta mesma linha de raciocínio, pode-se averiguar que todos estes atos acarretaram certas expectativas nos contribuintes, que, de uma maneira ou de outra, depositaram confiança no Governo, elaborando seus planejamentos fiscais.

E, finalmente, não se pode olvidar que o Supremo Tribunal Federal, no RE nº 231176-1, afastou a aplicação da boa-fé objetiva, diante da existência de regra autorizativa da conduta contraditória (no caso concreto, o disposto no § 1° do art. 153 da CF).

Assim, com base nestes dados, podem-se elencar os seguintes pressupostos mínimos a ensejar a operatividade do princípio da boa-fé objetiva no direito tributário:

a) existência de ato do Governo capaz de gerar confiança no contribuinte, considerando, como tal, leis, decretos, regulamentos, ou seja, leis em sentido amplo;

b) existência de ato administrativo contraditório posterior;

c) confiança do contribuinte no ato administrativo;

d) nexo causal entre o ato administrativo e a confiança gerada;

e) inexistência de regra autorizativa da conduta contraditória.

Certamente, não se pretende exaurir a matéria pelos dados acima apontados. Todavia, tais elementos servem, ao menos, para indicar alguma restrição na aplicação do princípio da boa-fé objetiva, de molde a fornecer

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um primeiro auxílio na busca de dar maior certeza quanto ao conteúdo e à extensão da eficácia da norma contida no referido princípio.

Maiores especificações somente poderão ser vislumbradas mediante análise mais aprofundada de outros casos concretos decididos pelos Tribunais Superiores do país, donde poderão ser extraídos parâmetros e valores a serem adotados como vetores à aplicação da norma estudada, o que é inviável no âmbito do presente trabalho.

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A par do que foi estudado acima, verifica-se que o princípio da boa-fé objetiva tem sua gênese no Direito Romano, tendo ganhando força no direito civil com o advento do Estado Moderno (Estado Social), quando passou a servir de base geradora de obrigações acessórias ou instrumentais e autônomas, a exigir que os indivíduos atuem, nas relações entre si, mediante honestidade e lealdade.

Viu-se, também, que referido princípio foi transplantado ao Direito Tributário, via Direito Administrativo, por intermédio do princípio da moralidade administrativa, normatizada no disposto no art. 37 da CF. Mesmo assim, não se pode esquecer a lição de CLÓVIS DO COUTO E SILVA, segundo a qual a ausência de texto legislativo prevendo o princípio da boa-fé objetiva não impede sua aplicação, precipuamente, pois se trata de direito inerente ao ser humano (um direito fundamental), advindo das necessidades éticas da sociedade.

Desta feita, não se pode negar a existência dos deveres inerentes ao princípio da boa-fé objetiva no âmbito das relações tributárias, incluindo, aí, as obrigações tributárias. Na verdade, todo e qualquer questionamento deve cingir-se ao conteúdo e alcance da referida norma.

No presente estudo, foram trazidos alguns elementos doutrinários e jurisprudenciais objetivando facilitar e impulsionar o desenvolvimento da norma em exame, minorando o ônus argumentativo. Mas uma coisa não se pode perder de vista a boa-fé objetiva insere-se no direito tributário, no mínimo, para impor uma visão ética às relações entre o Fisco e contribuinte.

Na esteira do direito lusitano, não se pode admitir, no Brasil, que o fisco aja somente com o intuito de garantir reservas financeiras para o exercício das atividades inerentes do Estado. Desrespeitando padrões éticos

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de honestidade e lealdade para com o contribuinte, certamente violará o princípio da boa-fé no seu aspecto objetivo.

Além do disso, há que se atentar ao fato de que não só o Fisco deve agir segundo a boa-fé objetiva, mas também o contribuinte. Não há nada no ordenamento jurídico que obstaculize a exigência dos deveres inerentes da boa-fé objetiva ao contribuinte. Por isso, deve este, por exemplo, prestar informações com correção ao Fisco, para fins de cálculo e arrecadação de tributos, bem com não deve, também, agir visando a provocar erro da administração fazendária, de molde minorar ou até mesmo evitar o pagamento de exações efetivamente devidas.

Assim, tanto o Fisco quanto o contribuinte devem pautar-se mediante padrões de condutas éticas, pois somente assim será alcançada a tão almejada segurança jurídica.

5 – BIBLIOGRAFIA

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O MANEJO DO REGISTRO DE PREÇO E O COMPROMISSO COM A EFICIÊNCIA

JESSÉ TORRES PEREIRA JUNIOR* MARINÊS RESTELATTO DOTTI**

Sumário: I – Introdução; II – SRP e fracionamento; III – O perfil do SRP; IV – As hipóteses preferenciais do SRP; V – A adoção do SRP também para serviços; VI – A questão do preço; VII – Defeitos na Ata de Registro de Preços; VIII – Conclusão.

I – INTRODUÇÃO

Superação de contingenciamentos orçamentários, afastamento de fracionamento ilegal de despesas, precato de colaboração entre órgãos administrativos em fraude à licitação, pluralidade de aquisições just-in-time, de modo a prevenir a formação de estoques ociosos, são temas para os quais o adequado manejo do Sistema de Registro de Preços habilita a Administração Pública comprometida com eficiência e eficácia.

Tal o objeto dos apontamentos que se seguem, destinados a realçar, em brevíssima síntese, a relevância desse ainda pouco utilizado instrumento legal de gestão na contratação de bens e serviços, a partir da premissa de que “o princípio da eficiência implica o dever jurídico, vinculante dos gestores públicos, de agir mediante ações planejadas com adequação, executadas com o menor custo possível, controladas e avaliadas em função dos benefícios que produzem para a satisfação do interesse público” (PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. 8.ed. Renovar, 2009, p.64).

* Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Autor, entre outras, das obras

Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública (8.ed.), Controle judicial da Administração Pública: da legalidade estrita à lógica do razoável (2.ed.) e Políticas Públicas nas Licitações e Contratações Administrativas, em coautoria com MARINÊS RESTELATTO DOTTI.

** Advogada da União.

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Ou seja, desde que a Emenda Constitucional nº 19/98 inseriu, na cabeça do art. 37 da CF/88, o princípio da eficiência, ao lado dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da moralidade, os gestores de órgãos da administração direta e de entidades da administração indireta, situados em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, não estão concitados ao exercício politicamente correto da eficiência, mas submetidos ao dever jurídico de gerir segundo padrões de eficiência, cuja inobservância tenderá a constituir vício de ineficiência, tão grave quanto o vício de ilegalidade ou a afronta à moralidade, à impessoalidade ou à publicidade.

“Em resumidas contas” – arrematam os aludidos Comentários à Lei Geral das Licitações –, “tangenciaria a improbidade administrativa um sem-número de práticas enraizadas no cotidiano das licitações administrativas, tais como licitar sem especificar corretamente o objeto, nem planejar os resultados a serem atingidos; deixar de estimar, com apuro, o valor de mercado do objeto a ser contratado, com o fim de evitar a aceitação de preços excessivos ou inexequíveis; criar, artificiosamente, situações que afastem o dever de licitar; aditar contratos sem justificativa plausível, na medida em que foram imperfeitos e superficiais os projetos básicos de obras e serviços. Notem os gestores que, nos termos dos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92, improbidade administrativa não se configura apenas nas hipóteses de enriquecimento ilícito do agente público, mas, também, quando de suas decisões decorrerem prejuízos ao erário ou ofensa aos princípios regentes da Administração” (op. cit., p. 64-65).

II – SRP E FRACIONAMENTO

O fracionamento refere-se à despesa, ou seja, à divisão do seu valor. Caracteriza-se quando a Administração, no mesmo exercício, divide a despesa para a contratação, por etapas, de determinado serviço ou compra mediante a utilização de modalidade de licitação diversa da cabível para o valor da integralidade do serviço ou da compra suficiente para atender às necessidades de todo o exercício, ou para efetuar diversas contratações, no mesmo exercício, com dispensa de licitação, graças ao pequeno valor de cada contrato (art. 24, I e II, da Lei nº 8.666/93).

O contingenciamento de créditos orçamentários e a ausência de planejamento são fatores que levam ao fracionamento de despesas.

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Indevido porque frustra a possibilidade de obtenção de melhor preço, segundo as regras da economia de escala.

A criação da modalidade licitatória do pregão afastou, parcialmente, a problemática do fracionamento de despesas, já que o cabimento dessa modalidade independe do valor estimado do objeto, seguindo-se que nenhum sentido haveria em subdividir-se o quantitativo global do objeto a contratar, apenas com o fim de possibilitar o emprego de modalidade de licitação menos ampla do que seria a legalmente exigida em função do valor estimado (convite no lugar de tomada de preços, ou esta no lugar da concorrência).

Mas a ausência ou a deficiência de planejamento quanto ao quantitativo adequado ao atendimento das necessidades do serviço ou da compra no exercício poderá levar à realização de vários pregões para a contratação do mesmo objeto ao longo do ano, resultando custos pertinentes a publicações, eventuais impugnações e recursos administrativos, bem como à repetição de tarefas para os setores respectivamente competentes, além de expor a Administração à possibilidade de resultar, em cada pregão, preço maior para quantidade menor – como da índole da economia de escala –, preço esse que poderia reduzir-se se maiores fossem as quantidades licitadas num só pregão.

O SRP pressupõe o planejamento do quantitativo adequado ao atendimento da demanda anual do serviço ou da compra, a obter-se por meio de uma única licitação. A Ata do SRP harmoniza, durante o prazo de sua validade, o valor obtido para a integralidade do quantitativo estimado para todo o exercício com a variação do ritmo da demanda de sua execução ou prestação, e com a disponibilidade dos recursos orçamentários. Na vigência da Ata, a Administração efetua as contratações do objeto à medida que os recursos forem sendo liberados ou que as necessidades forem surgindo, traduzindo-se em agilidade nas contratações através de número menor de licitações e de acordo com o fluxo das liberações orçamentárias.

Uma vez que o art. 15, § 3º, III, da Lei nº 8.666/93 estabelece a validade do registro por até um ano, as contratações podem realizar-se no mesmo exercício ou no seguinte, observado prazo de eficácia da Ata.

O Tribunal de Contas da União estimula o emprego do SRP para evitar o fracionamento de despesas:

“j.2) com o intuito de evitar o fracionamento de despesa, vedado pelo art. 23, § 2º, da Lei nº 8.666/93, utilizar-se, na

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aquisição de bens, do sistema de registro de preços de que tratam o inciso II e §§ 1º e 4º do art. 15 da citada Lei, regulamentado pelo Decreto nº 2.743, de 21.08.1998; [...]” (Decisão nº 472/1999, Plenário, Rel. Min. Valmir Campelo, Processo TC 675.048.1998-2).

“3.1.7. Quanto à diminuta disponibilidade orçamentária e financeira da UG 153076, bem como quanto à liberação fracionada dos créditos orçamentários, temos que o gestor poderia contornar essas dificuldades com um planejamento eficiente. Ademais, o Sistema de Registro de Preços, previsto no art. 15 da Lei nº 8.666/93 e regulamentado pelo Decreto nº 2.743, de 21 de agosto de 1998, presta-se bem às dificuldades apresentadas pelos responsáveis” (Acórdão nº 3.146/2004, 1ª Câmara, Rel. Min. Guilherme Palmeira, Processo TC 009.989/2003-1).

III – O PERFIL DO SRP

São algumas características do Sistema de Registro de Preços:

a) a instauração da licitação para a formação do SRP independe da existência de recursos orçamentários1;

b) admissível o ingresso na licitação de outros órgãos e entidades públicas, na condição de participantes (art. 1º, parágrafo único, inciso IV, e art. 3º, § 3º, do Decreto nº 3.931/01);

c) as contratações, com base no SRP, não são obrigatórias e se efetivam a medida que as necessidades do órgão administrativo forem surgindo ou que os recursos forem sendo liberados (art. 15, § 4º, da Lei nº 8.666/93 e art. 7º do Decreto nº 3.931/01);

d) a Ata resultante da licitação registra outros preços, que podem ser considerados, a critério do órgão gerenciador do sistema, quando a quantidade cotada pelo primeiro colocado não for suficiente para atender às demandas estimadas, desde que se trate de objetos de qualidade ou desempenho superior, devidamente justificada e comprovada a vantagem, e

1 “A celeridade fica caracterizada pelo fato de não ser necessário orçamento prévio para a utilização do SRP. Assim, a Administração pode realizar a licitação e aguardar a liberação dos recursos para efetivar a contratação da empresa vencedora do certame. Esta vantagem toma maior relevância ao se considerar que, muitas vezes, o Congresso Nacional não aprova a Lei Orçamentária antes do final do exercício anterior” (Acórdão nº 1.487/2007, Plenário. Tribunal de Contas da União. Relator Min.Valmir Campelo. Processo TC nº 008.840/2007-3).

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as ofertas sejam em valor inferior ao máximo admitido no edital (art. 6º, parágrafo único, do Decreto nº 3.931/01);

e) o edital pode exigir a apresentação de propostas de preços diferenciadas por região, na hipótese de fornecimento de bens ou prestação de serviços em locais diferentes, de modo que aos preços sejam acrescidos os respectivos custos, variáveis por região (art. 9º, § 2º, do Decreto nº 3.931/01);

f) a Ata de Registro de Preços é vinculante para as partes – Administração e licitantes –, dada a sua natureza obrigacional, de que decorre compromisso para futuras aquisições (art. 15, § 3º, III, da Lei nº 8.666/93 e art. 1º, parágrafo único, inciso II, do Decreto nº 3.931/01);

g) a Ata de Registro de Preços gera tantos contratos quantos forem as solicitações da Administração, cada qual observando o disposto no art. 57 da Lei nº 8.666/93 (art. 4º, § 1º, do Decreto nº 3.931/01);

h) outros órgãos ou entidades da Administração Pública, que não tenham participado do certame, podem vir a aderir à Ata de Registro de Preços – são os chamados “caronas” (art. 8º do Decreto nº 3.931/01).

O registro de vários fornecedores para se atingir o total estimado do item e a revisão do preço registrado diante da redução ou aumento daquele praticado no mercado para o mesmo objeto do registro, embora previstos no Decreto nº 3.931/01, não são características exclusivas do SRP, como se depreende do disposto nos artigos 23, § 7º, e 65, II, d, § 5º, da Lei nº 8.666/93, respectivamente2.

2 “Art. 23. [...] § 7º. Na compra de bens de natureza divisível e desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo, é permitida a cotação de quantidade inferior à demandada na licitação, com vistas à ampliação da competitividade, podendo o edital fixar quantitativo mínimo para preservar a economia de escala. [...] Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: [...] II – por acordo das partes: [...] d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. [...] § 5º. Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso.”

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IV – AS HIPÓTESES PREFERENCIAIS DO SRP

O art. 2º do Decreto nº 3.931/01 elenca as hipóteses em que a Administração Pública deve, preferencialmente, realizar licitação para a formação do registro de preços, a saber:

“Art. 2º. Será adotado, preferencialmente, o SRP nas seguintes hipóteses:

I – quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contratações frequentes;

II – quando for mais conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços necessários à Administração para o desempenho de suas atribuições;

III – quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; e

IV – quando pela natureza do objeto não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração.

Parágrafo único. Poderá ser realizado registro de preços para contratação de bens e serviços de informática, obedecida a legislação vigente, desde que devidamente justificada e caracterizada a vantagem econômica.”

A possibilidade de realizar-se a licitação para a formação do SRP, almejando a futura aquisição de um só bem ou a entrega única de bens – situações não previstas no art. 2º do Decreto nº 3.931/01 –, encontra supedâneo no disposto no art. 15, II, da Lei nº 8.666/93, para o qual as compras, “sempre que possível”, deverão ser processadas através do SRP.

A expressão “sempre que possível”, adotada pela Lei Geral, é de maior latitude, quer dizer, a Administração Pública confronta as peculiaridades do SRP com o caso concreto, podendo por ele optar mesmo que a hipótese não se encontre entre aquelas previstas no Decreto nº 3.931/01.

O Tribunal de Contas da União interpreta a regra do art. 15, II, da Lei nº 8.666/93 como um comando cogente, não apenas uma faculdade, verbis: “Com efeito, a Lei nº 8.666/1993 não faz vedação à utilização do SRP para a contratação de serviços, em que pese ser expressa quanto à obrigatoriedade

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para a aquisição de compras, sempre que a utilização de tal sistema mostrar-se possível:” (Acórdão nº 1.487/2007, Plenário, Rel. Min. Valmir Campelo, Processo TC nº 008.840/2007-3).

Para MARÇAL JUSTEN FILHO: “Em princípio, o registro de preços apenas apresenta sentido quando for possível realizar uma pluralidade de aquisições. Não teria sentido promover licitação de registro de preços e concretizar uma única aquisição. Não que isso seja proibido – apenas não se caracterizará registro de preços quando se facultar que a Administração esgote todo o quantitativo em uma única aquisição” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Dialética. 13.ed. São Paulo, p.193).

O elenco previsto no art. 2º do Decreto nº 3.931/01 exemplifica3 as situações em que a Administração deva dar preferência à utilização do SRP para a aquisição de bens e serviços. Outras situações em que o sistema mostrar-se compatível podem recomendar sua adoção, entre elas a da inexistência de recursos financeiros para a contratação imediata. Nessa circunstância, mesmo que o interesse seja pela futura aquisição de um só bem, para a entrega única de bens ou para a prestação de um serviço esporádico, incerto ou não contínuo, e não havendo recursos financeiros disponíveis para a contratação imediata ao desfecho do certame, pode a Administração realizá-lo para a formação do registro de preços, permanecendo no aguardo da liberação de recursos para a contratação, dentro do prazo de validade da Ata de Registro de Preços.

Desnecessária seria a apresentação de um rol de hipóteses atrativas da utilização preferencial do SRP, como o fez o art. 2º do Decreto nº 3.931/01, quando a ordem da Lei Geral é, justamente, para que seja utilizado “sempre que possível”. Por ocasião do planejamento da licitação, o administrador público poderá deparar-se com um quadro indicativo de sua utilização para o alcance da eficácia e eficiência da atuação administrativa, e assim o privilegiará.

3 JORGE ULISSE JACOBY FERNANDES, sobre o art. 2º do Decreto nº 3.931/01, leciona: “O artigo contém comando indicativo da aplicação do SRP, servindo como balizador maior de sua aplicação. A norma, de conteúdo meramente exemplificativo, reflete, na verdade, os casos em que, mais freqüentemente, se fará a aplicação do sistema. Exemplificou o Decreto os quatro tipos de aquisições em que é recomendável o uso do SRP” (Sistema de Registro de Preços e Pregão Presencial e Eletrônico. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p.369).

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V – A ADOÇÃO DO SRP TAMBÉM PARA SERVIÇOS

A utilização, sempre que possível, do SRP estende-se aos serviços4, uma vez que todo o respectivo procedimento licitatório já terá sido ultimado quando sobrevier a necessidade da contratação do objeto do registro (serviço) ou o recurso for liberado, bastando convocar o fornecedor registrado para a assinatura, aceite ou retirada do contrato, ou instrumento equivalente, dentro do prazo de validade da Ata de Registro de Preços. Acresce-se o fato de que a Administração não é obrigada a firmar as contratações que do registro poderão advir, sendo-lhe facultada a realização de licitação específica para a aquisição dos serviços pretendidos.

Veja-se, a título ilustrativo, que o Decreto nº 44.787, de 18.04.08, que regulamenta o SRP no âmbito do Estado de Minas Gerais, permite que, a critério da Administração licitante, seja utilizado o SRP mesmo quando não caracterizada uma das hipóteses previstas nos três incisos de seu art. 3º. Leia-se o dispositivo:

“Art. 3º. Será adotado, preferencialmente, o SRP quando:

I – pelas características do bem ou serviço, houver a necessidade de contratações frequentes, com maior celeridade e transparência;

II – for conveniente a compra de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programa de governo; e

III – pela natureza do objeto não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração.

§ 1º. Poderá ser utilizado o SRP em outras hipóteses, a critério da Administração, observado o disposto neste Decreto.”

O compromisso com resultados, conciliado com as vantagens próprias do SRP, tornaram-no forte aliado da Administração Pública. Por isso que, entender-se pela impossibilidade de utilizá-lo, seja para o registro de preços de um só bem, para a entrega única de bens ou para a realização de um serviço, mesmo que incerto, esporádico ou não contínuo, quando justificado pela Administração Pública que sua adoção atende 4 De acordo com a Lei nº 10.520/02: “Art. 11. As compras e contratações de bens e serviços comuns, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando efetuadas pelo sistema de registro de preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, poderão adotar a modalidade de pregão, conforme regulamento específico”.

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superiormente ao interesse público, é negar aplicabilidade aos princípios da finalidade, da legitimidade, da razoabilidade e da eficiência da atuação administrativa.

Ainda que a Lei nº 8.666/93 aluda apenas ao processamento das compras, sempre que possível, por meio do SRP, não se vislumbra óbice ao seu uso, sempre que possível, também para serviços. O silêncio legislativo não pode, por isso, ser interpretado como vedação. Também não seria o caso de se aplicar o princípio da legalidade da atividade administrativa, no sentido de que a ausência de autorização na Lei nº 8.666/93 representa interdição. O Direito Administrativo pós-moderno não se ocupa tão somente com a legalidade estrita. Outros princípios da ordem jurídica podem incidir sobre a situação fática posta ao gestor público.

RAFAEL MAFFINI5 leciona:

“Especialmente após a vigência da Constituição Federal de 1988, doutrina e jurisprudência vêm convergindo num sentido mais amplo da noção de legalidade administrativa enquanto primazia da lei e do Direito. Ocorre que, antes da Constituição de 1988, a compreensão mais usual andava no sentido de que o único vetor da validade da atividade de Administração Pública era a estrita legalidade (ou legalidade stricto sensu), ou seja, tinha-se uma noção meramente formal da validade da ação administrativa, no sentido de que bastaria esta seguir formalmente o texto literal da lei, para que se concluísse pela sua validade. Nos dias de hoje, tem-se por correta uma noção mais abrangente do que seja a legalidade administrativa (aqui legalidade lato sensu). Não se está a defender, por óbvio, a desimportância da legalidade estritamente considerada, mas não se mostra adequado considerá-la o único elemento componente da validade da ação administrativa. Como já decidiu inúmeras vezes o STF (ex. RMS 24.699), exige-se mais do que isso, no sentido de que, para a validade da ação administrativa, não basta que seja formalmente compatível com a lei; é também necessário que esteja substancialmente em consonância com toda a principiologia do Direito Administrativo.”

Reproduz-se, a seguir, excerto de julgado do Tribunal de Contas da União, publicado em 2003, quanto à vantagem de licitar-se a formação do

5 Direito Administrativo. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.43.

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registro de preços para serviços não contínuos, esporádicos ou incertos, em razão da agilidade e da flexibilidade proporcionadas pela adoção do sistema:

“18. Conforme advertido pela Secob, a caracterização dos serviços de sinalização como de natureza continuada é equivocada, visto que as necessidades da administração são esporádicas e incertas, vale dizer, descontínuas. Não se pode profetizar, por exemplo, que a exigência de instalação de placas de sinalização se renove em períodos exatos. Pode ser exigível a qualquer momento ou mesmo não ser exigível no tempo em que o contrato vigorar, dependendo das condições de deterioração a que a sinalização esteja submetida.

19. É certo que para o DNIT, como alegado, essa forma de contratação permite grande agilidade e flexibilidade no uso dos recursos disponíveis. Mas só por isso não deixa ela de ser irregular e de ter os seus inconvenientes, entre os quais o de facultar que as licitações sejam feitas apenas a cada cinco anos (prazo de duração contratual exceptivo, aplicável aos serviços de natureza continuada, nos termos do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93) e o de criar expectativas de serviço e faturamento para a contratada, que podem não se concretizar.

20. Na minha opinião, a sugestão formulada pela Secob, no sentido de que o DNIT passe a adotar o sistema de registro de preços como base das contratações dos serviços de sinalização, além de juridicamente adequada, é consonante com uma ação administrativa eficiente. Em linhas gerais, o sistema, estabelecido no art. 15 da Lei nº 8.666/93 para os casos de compras e regulamentado pelo Decreto nº 3.931/2001, onde passou a ser permitido também para a aquisição de serviços, seleciona preços a cada ano, período em que, havendo necessidade, a empresa vencedora da concorrência para o registro é contratada. Ou seja, somente há contratação diante da efetiva exigência dos serviços.

21. Sendo assim, a contratação pelo sistema atende aos requisitos de agilidade e flexibilidade, como anseiam o DNIT e o interesse público, porquanto todos os atos e prazos requeridos para o processamento de uma licitação já terão sido cumpridos quando surgir a necessidade do serviço de sinalização, bastando

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convocar a empresa para a assinatura do contrato, com objeto e duração perfeitamente demarcados.

22. Ademais, trata-se de um procedimento pertinente com o serviço de sinalização, ao contrário da contratação com fundamento em natureza continuada. A teor do próprio decreto que regulamenta o registro de preços, o sistema se presta a ‘contratações futuras’ de ‘prestação de serviços’ (art. 1º, inciso I) e ‘será adotado, preferencialmente’, ‘quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contratações freqüentes’ ou ‘quando pela natureza do objeto não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração’ (art. 2º, incisos I e IV). Também a Lei nº 8.666/93, ao dispor sobre o sistema, fala que ele deverá ser utilizado ‘sempre que possível’ (art. 15), e sua possibilidade no caso dos serviços de sinalização é manifesta. [...]

Acórdão [...]

9.1.3 – se abstenha de contratar serviços de sinalização rodoviária sob o fundamento da natureza continuada, recomendando-lhe a adoção do sistema de registro de preços nessas contratações, na forma do Decreto nº 3.931/2001; [...]” (Acórdão nº 1365/2003, Plenário, Processo nº 012.835/2002-9, Rel. Min. Marcos Vinicios Vilaça).

VI – A QUESTÃO DO PREÇO

Há, no mínimo, vinte e duas possíveis acepções qualificadas para o termo “preço” na legislação licitatória (preço estimado, preço oferecido, preço aceitável, preço contratado, preço reajustado, preço revisto, preço corrigido, preço atualizado, preço máximo, preço mínimo, preço simbólico, preço irrisório, preço excessivo, menor preço, melhor preço, técnica e preço, registro de preços, preço de mercado, preço baseado nas ofertas dos demais licitantes, preço global, preço unitário, tomada de preços).

Na raiz de todas essas acepções encontra-se a ideia do preço que, por ser competitivo em relação ao de mercado, justifica e exige a licitação como o seu instrumento revelador da proposta mais vantajosa para a Administração. Não poderia ser diferente, como não é, no SRP.

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Por isso que, qualquer que seja a modalidade, o tipo ou o objeto da licitação, haverá, sempre, na fase preparatória de seu respectivo procedimento, o passo de estimar o valor de mercado do bem ou serviço a ser licitado (Lei nº 8.666/93, artigos 4º, parágrafo único, 7º, § 2º, 14 e 38; Lei nº 10.520/02, art. 3º, III e IV, e Decreto nº 3.931/01, art. 3º, caput).

O passo de estimar o preço cumpre três principais objetivos: a) definir a modalidade cabível, se em função do valor estimado (concorrência, tomada de preços e convite, não se aplicando na definição das modalidades que se distinguem em função da natureza do objeto – leilão, concurso e pregão) – Lei nº 8.666/93, art. 23, e Lei nº 10.520/02, art. 1º; b) vincular a aquisição à previsão orçamentária (Lei nº 8.666/93, artigos 7º, § 2º, III, e 14); c) ministrar elementos, à comissão de licitação ou ao pregoeiro, para a formulação do juízo de aceitabilidade das propostas de preço e sua classificação/desclassificação (Lei nº 8.666/93, artigos 7º, § 2º, II e § 7º; 14 e 40, X e § 2º, II; e Lei nº 10.520/02, art. 4º, XI).

A legislação não explicita os critérios de estimação do valor de mercado, mas faz referências balizadoras, em face das quais a jurisprudência das cortes de controle externo examina os casos concretos, em cujo centro de gravidade está, invariavelmente, o valor de mercado, a saber:

a) na Lei nº 8.666/93, artigos 7º, § 2º, II (planilhas que expressem a composição de todos os custos unitários, no caso de obra ou serviço); 15, V e § 6º (preços praticados no âmbito da Administração Pública e incompatibilidade com preço vigente no mercado); 23, § 1º (recursos disponíveis no mercado e economia de escala); 26, parágrafo único, III (justificativa do preço na contratação direta); 40, X (permitido preço máximo, vedados preço mínimo e preços de referência); 43, IV (compatibilidade com preços correntes no mercado, ou fixados por órgão oficial competente, ou constantes do sistema de registro de preços); 45, § 1º, I (preço em correspondência com as especificações); 48, II (custos coerentes com os de mercado);

b) na Lei nº 10.520/02, artigos 1º, parágrafo único (especificações usuais no mercado); 3º, I (critérios de aceitação, estabelecidos na fase preparatória).

O decisório do Tribunal de Contas da União denota permanente preocupação pedagógica – preventiva e punitiva – acerca do valor estimado do objeto a ser licitado, que deve corresponder aos praticados no mercado,

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v.g.: Ac. nº 2.986/06, 1ª Câmara, Rel. Min. Augusto Nardes (“Os processos de dispensa de licitação devem conter documentos que indiquem a prévia pesquisa de preços de mercado, em relação ao objeto a ser contratado/adquirido, e a habilitação do respectivo fornecedor/prestador de serviços”); Ac. nº 1.024/07, Plenário, Rel. Min. Aroldo Cedraz (“Possibilidade de estabelecimento de patamares de remuneração mínima a ser paga aos profissionais empregados de eventual vencedora de licitação... não se mostra irregular regra editalícia desta natureza, que vise a obstar a competição danosa entre os licitantes e a garantir a qualidade e a eficiência dos serviços contratados. Insta frisar, contudo, que, por óbvio, deve ser observado o princípio da razoabilidade no estabelecimento desses valores, os quais devem ser consentâneos com as funções a serem executadas e com os preços praticados no mercado...”); Ac. nº 904/06, Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar (“Na licitação do tipo menor preço deve ser escolhido o melhor preço para a administração, aí entendido preço consentâneo com o praticado no mercado, assegurada a prestação do serviço ou a entrega do bem a contento, não havendo impedimento a que se determinem requisitos de qualidade técnica mínima”).

Igualmente na experiência dos tribunais judiciais se encontra a mesma orientação, v.g.: “A licitação da modalidade menor preço compatibiliza-se com a exigência de preços unitários em sintonia com o valor global... Previsão legal de segurança para a Administração quanto à especificação dos preços unitários, que devem ser exequíveis com os valores de mercado, tendo como limite o valor global” (STJ, ROMS nº 15.051/RS-2002, Relª Min. Eliana Calmon).

VII – DEFEITOS NA ATA DE REGISTRO DE PREÇOS

As vantagens proporcionadas pelo SRP não excluem a possibilidade de defeitos na Ata de Registro de Preços.

Órgãos ou entidades públicas que não tenham participado da licitação para a formação do registro de preços poderão aderir à Ata, com o fim de adquirirem um ou mais itens registrados de que necessitem, desde que demonstrada a vantagem dessa opção. Esse procedimento vulgarizou-se sob a denominação de “carona”.

A adesão à Ata de Registro de Preços exige identidade do objeto, ou seja, o bem ou serviço registrado deve ser exatamente aquele de que necessita o órgão ou entidade “carona”. Valer-se de Ata visando a contratar

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bem ou serviço distinto do registrado constitui burla à regra geral da licitação (CR/88, art. 37, XXI).

É atribuição do órgão gerenciador da Ata, de acordo o art. 3º, § 2º, do Decreto nº 3.931/01, a prática de todos os atos de controle e administração do SRP. A eventual existência de defeitos na Ata de Registro de Preços, tais como a indefinição dos quantitativos do objeto, ou a presença de custos unitários na planilha de formação de preços com valores superiores ou acentuadamente inferiores aos de mercado (“jogo de planilhas”), é motivo bastante para que o órgão gerenciador não autorize a adesão à Ata – devendo anulá-la.

Tão grave e lesiva ao erário é a prática do chamado “jogo de planilhas”, que o Tribunal de Contas da União assim deliberou:

“9.6. encaminhar sugestão às mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, para que as comissões técnicas incumbidas de examinar o Projeto de Lei 7.709/2007, que trata de alteração de dispositivos da Lei 8.666/1993, avaliem a possibilidade de incluir dispositivo que permita à Administração ou ao respectivo Tribunal de Contas, após o devido processo legal, declarar a inidoneidade da empresa para licitar ou contratar com a Administração Pública, em decorrência de cometimento de fraude à execução de contrato administrativo, notadamente o jogo de planilhas; [...]” (Acórdão nº 2408/2009, Plenário, Processo nº 005.991/2003-1, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues).

Outro julgado do TCU sumariou irregularidades em licitação para a formação do registro de preços, impondo-lhe a anulação:

“10. Necessário observar, além do mais, que também foi constatado que não houve, no edital, a devida definição dos quantitativos a serem executados no âmbito da possível contratação em questão. Essa imprecisão na fixação dos quantitativos pode, de fato, resultar na adoção de preços não condizentes com as demandas futuras, vez que o licitante não tem como avaliar a sua capacidade de atender às solicitações do possível contratante.

11. Noto que estes autos tratam de irregularidades verificadas em pregão eletrônico destinado a efetuar registro de preços. Assim, caso autorizada a sua continuidade, esse certame poderá

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ser utilizado mediante ‘carona’ por outro órgão da Administração Pública, o que amplia ainda mais o potencial prejuízo ao erário.

12. Portanto, ante as graves irregularidades verificadas no Pregão Eletrônico nº 2/2009 (preços dos itens licitados em valores muito superiores aos de mercado e fixação de limites mínimos de exequibilidade das propostas) e considerando o aumento no risco de dano ao erário decorrente de novas adesões à ata de registro de preços, concordo com a proposta de determinar ao órgão que adote providências com vistas à anulação do certame, bem como de todos os atos dele decorrentes, inclusive a ata de registro de preços e o Contrato nº 39/2009, celebrado entre o [...] e a empresa [...]” (Acórdão nº 1.720/2010, 2ª Câmara, Processo nº 017.287/2009-2, Rel. Min. André Luís de Carvalho).

VIII – CONCLUSÃO

O SRP é eficaz instrumento posto à disposição da Administração Pública. Simplifica os procedimentos para a aquisição de bens e serviços, diminui o tempo necessário para a efetivação das contratações e aproxima a Administração a conceitos modernos de logística, como o do “just-in-time”6.

Deve ser utilizado sempre que a situação o recomende, em vista de suas inúmeras vantagens, v.g.: a) afasta o fracionamento de despesas; b) evita a contratação emergencial do objeto (art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93), quando de sua necessidade premente, em vista da existência de preço e fornecedor registrados; c) rapidez na contratação e racionalização de gastos, em decorrência da redução do número de licitações; d) não há a obrigação de firmar as contratações que do registro poderão advir, facultada a realização de licitação específica para a aquisição pretendida; e) redução de estoques; f) possibilidade de contratar bens e também serviços além do exercício financeiro em que é realizada a licitação, tendo em vista que o prazo de validade da Ata de Registro de Preços pode ser de até um ano; g) a realização da licitação independe da indicação de recursos financeiros; h) possibilidade de ampliar a economia de escala em vista do agrupamento de vários órgãos e entidades públicas numa mesma licitação; i) do registro de preços pode decorrer um contrato a ser celebrado entre a Administração e o fornecedor registrado, cuja duração subordina-se às regras do art. 57 da Lei

6 O “just-in-time” é um princípio de gestão que se caracteriza pela manutenção de estoques apenas em quantidade suficiente para manter o processo produtivo no momento.

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nº 8.666/93, ou seja, o contrato decorrente da Ata de Registro de Preços pode ter sua vigência pelo período de até 60 meses, caso o objeto do registro seja a prestação de serviços de natureza contínua (art. 57, II) ou até 48 meses, quando se tratar do aluguel de equipamentos de informática e à utilização de programas de informática (art. 57, IV), desde que celebrado dentro do prazo de validade da Ata de Registro de Preços.

Mas não é por tratar-se de eficaz e dinâmica alternativa de gestão de contratos que a Administração Pública cogitará de distanciar-se dos princípios constitucionais e administrativos aplicáveis. São estes inseparáveis de toda atuação administrativa.

Não há um “ranking” entre os princípios, ou seja, todos estão num mesmo plano de importância no sistema jurídico e nenhum deles, “a priori”, terá o condão de esgotar o conteúdo dos demais. Existirão colisões, em termos concretos, entre princípios, as quais deverão ser solvidas através de construções hermenêuticas que buscarão a satisfação do interesse público, conformada por mecanismos de ponderação.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A JORNADA DE TRABALHO DO ATLETA PROFISSIONAL

GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA*

1 – INTRODUÇÃO

A jornada de trabalho é tema de grande relevância, por se referir a valores essenciais à pessoa humana, o que justifica a sua disciplina pelo Direito.

Isso fica nítido tendo em vista a própria relação da matéria com a saúde, a segurança1, o bem-estar e a vida do trabalhador, sabendo-se que o labor excessivo pode acarretar graves danos à sua integridade física, psíquica e psicológica.

Sendo assim, a limitação da jornada de trabalho bem como a previsão de períodos para descanso inserem-se na ordem dos direitos fundamentais, visando à preservação da dignidade da pessoa humana, no âmbito da relação de trabalho2.

O próprio direito ao lazer, previsto como direito social (art. 6º da Constituição da República), para ser efetivamente observado, exige a limitação da duração do trabalho.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XXIV, consagra a previsão de que: “Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas”.

* Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 2ª Região. Ex-Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões. Ex-Auditor Fiscal do Trabalho. Professor Universitário em cursos de graduação e pós-graduação em Direito.

1 Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2010, p.783. 2 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.809.

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No caso de atleta profissional, em razão de diversas peculiaridades presentes em sua relação jurídica, há interesse em saber os limites da duração do seu labor, bem como as possíveis consequências advindas do trabalho em período noturno.

O presente estudo, assim, tem como objetivo analisar as principais questões acima destacadas. Com esse intuito, serão abordadas as disposições gerais sobre os temas em questão, de modo a possibilitar a sua análise especificamente quanto ao atleta profissional.

2 – JORNADA DE TRABALHO

Em termos mais precisos, jornada de trabalho significa o número de

horas diárias de trabalho3.

Por isso, ao se tratar do número de horas de trabalho na semana ou no mês, o correto é utilizar a expressão duração do trabalho.

Ainda como esclarecimento prévio, horário de trabalho refere-se à hora de início e de término do labor, com indicação do intervalo (por exemplo, das 8 às 12 horas e das 13 às 17 horas).

A Constituição Federal de 1988 prevê a duração do trabalho normal não superior a 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) semanais, facultadas a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho (art. 7º, XIII).

Cabe aqui destacar a existência de discussões a respeito da alteração do dispositivo constitucional em questão, no sentido de se reduzir essa duração semanal do trabalho, tema este que, no entanto, não se insere nos limites do presente estudo.

O art. 58 da Consolidação das Leis do Trabalho, por sua vez, assim prevê: “A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite”.

Logo, havendo trabalho acima de algum dos referidos limites (diário ou semanal), verifica-se o labor em horas extras.

Nesse caso, envolvendo “serviço extraordinário”, o art. 7º, XVI, da Constituição da República prevê o direito à remuneração do respectivo período com o adicional de no mínimo 50%. 3 Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 24.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.479.

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Isso significa a possibilidade de previsão do adicional de horas extras em montante superior, por exemplo, em convenção coletiva, acordo coletivo, regulamento de empresa ou mesmo no contrato individual de trabalho, em consonância com o princípio da norma mais favorável, decorrente do princípio de proteção.

Cabe mencionar, ainda, a hipótese de compensação da jornada de trabalho, na qual ocorre a sua prorrogação, mas sem o pagamento de horas extras, tendo em vista a sua dedução (labor reduzido) em dia diverso.

Efetivamente, a Constituição Federal de 1988, no art. 7º, XIII, indica ser facultada “a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.

O art. 59, § 2º, da CLT apresenta a seguinte disciplina sobre essa temática:

“Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.”

Ainda a respeito do acordo de compensação, especialmente quanto à sua forma, a Súmula 85, I, do TST assim estabelece:

“COMPENSAÇÃO DE JORNADA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 182, 220 e 223 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005.

I. A compensação de jornada de trabalho deve ser ajustada por acordo individual escrito, acordo coletivo ou convenção coletiva. (ex-Súmula nº 85 – primeira parte – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

II. O acordo individual para compensação de horas é válido, salvo se houver norma coletiva em sentido contrário. (ex-OJ nº 182 da SBDI-1 – inserida em 08.11.2000)

III. O mero não atendimento das exigências legais para a compensação de jornada, inclusive quando encetada mediante acordo tácito, não implica a repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária, se não dilatada a jornada máxima semanal, sendo devido apenas o respectivo adicional. (ex-

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Súmula nº 85 – segunda parte – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

IV. A prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada. Nesta hipótese, as horas que ultrapassarem a jornada semanal normal deverão ser pagas como horas extraordinárias e, quanto àquelas destinadas à compensação, deverá ser pago a mais apenas o adicional por trabalho extraordinário. (ex-OJ nº 220 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)”

3 – ATLETA PROFISSIONAL E JORNADA DE TRABALHO

Quanto ao tema em questão, a Lei 6.354, de 2 de setembro de 1976, dispondo sobre as relações de trabalho do atleta profissional de futebol, assim previa:

“Art. 6º. O horário normal de trabalho será organizado de maneira a bem servir ao adestramento e à exibição do atleta, não excedendo, porém, de 48 (quarenta e oito) horas semanais, tempo em que o empregador poderá exigir fique o atleta à sua disposição.” (Revogado)

Entretanto, a Lei 9.615, de 24 de março de 1998, a qual institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências, em seu art. 964, revogou expressamente, entre outras disposições, a regra acima transcrita, a partir de 26 de março de 20015.

Com isso, deve-se destacar o art. 28, § 1º, da mencionada Lei 9.615/1998, ao estabelecer que se aplicam ao atleta profissional “as normas gerais da legislação trabalhista e da seguridade social, ressalvadas as peculiaridades expressas nesta Lei ou integrantes do respectivo contrato de trabalho”.

4 “Art. 96. São revogados, a partir da vigência do disposto no § 2º do art. 28 desta Lei, os incisos II e V e os §§ 1º e 3º do art. 3º, os arts. 4º, 6º, 11 e 13, o § 2º do art. 15, o parágrafo único do art. 16 e os arts. 23 e 26 da Lei 6.354, de 2 de setembro de 1976; são revogadas, a partir da data de publicação desta Lei, as Leis 8.672, de 6 de julho de 1993, e 8.946, de 5 de dezembro de 1994.”

5 Cf. JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do trabalho. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, t.2, p.1144.

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Portanto, entende-se que as disposições gerais, relativas à jornada de trabalho, presentes na Constituição Federal e na Consolidação das Leis do Trabalho, são aplicáveis ao atleta profissional6.

O desrespeito das normas trabalhistas em questão, dotadas de natureza cogente, pode gerar consequências diversas.

No plano da relação individual trabalhista, uma vez ultrapassado o limite da duração normal do trabalho, não havendo acordo de compensação de jornada, na forma já exposta, o empregado faz jus à remuneração das horas extras, com o adicional já apontado de no mínimo 50%.

Registre-se que o art. 59, caput, da CLT admite a prorrogação de trabalho, apresentando a seguinte previsão: “A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho”.

Apesar disso, se as horas extras forem prestadas em quantidade superior ao limite permitido por lei, ou mesmo sem a existência de acordo de prorrogação de jornada, o empregado faz jus ao seu regular e integral recebimento.

Essa conclusão é confirmada pela Súmula 376 do TST, com a seguinte redação:

“Horas extras. Limitação. Art. 59 da CLT. Reflexos.

I – A limitação legal da jornada suplementar a duas horas diárias não exime o empregador de pagar todas as horas trabalhadas.

II – O valor das horas extras habitualmente prestadas integra o cálculo dos haveres trabalhistas, independentemente da limitação prevista no caput do art. 59 da CLT.”

Logo, mesmo sendo desrespeitados os limites legais, todas as horas extras prestadas devem ser corretamente pagas ao empregado, com o adicional devido, mesmo porque este não pode ser prejudicado por eventual conduta irregular do empregador, o qual também responde pela

6 Cf. OLIVEIRA, Jean Marcel Mariano de. O contrato de trabalho do atleta profissional de futebol. São Paulo: LTr, 2009, p.75: “O entendimento que tem prevalecido na jurisprudência atual é de que o atleta profissional de futebol está sim sujeito à limitação de jornada de trabalho, tanto diária quanto semanal”.

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respectiva penalidade administrativa, aplicada pelos agentes da fiscalização do trabalho.

Além disso, algumas situações específicas, presentes na relação de trabalho do atleta profissional, merecem maior explicitação.

3.1 Jogos e Treinos

Cabe verificar se os jogos e treinos são computados na jornada de trabalho do atleta profissional.

De acordo com o previsto no art. 34, II, da Lei 9.615/1998, a entidade de prática desportiva empregadora tem o dever de “proporcionar aos atletas profissionais as condições necessárias à participação nas competições desportivas, treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais”.

O art. 35, I, do mesmo diploma legal, por sua vez, estabelece o dever do atleta profissional de “participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas”.

Sendo assim, não há dúvida de que os períodos de participação em jogos e treinos integram a duração do trabalho do atleta profissional.

Ademais, incide ao caso o disposto no art. 4º, caput, da CLT, no sentido de se considerar como serviço efetivo “o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”.

3.2 Intervalos Durante os Jogos

Os intervalos durante os jogos e competições não se confundem com os chamados intervalos interjornada e intrajornada, previstos nos arts. 667 e 71 da CLT8.

Na realidade, por se tratar de tempo à disposição do empregador, os intervalos durante os jogos são computados na jornada de trabalho, na forma do já mencionado art. 4º da CLT.

7 “Art. 66. Entre 2 (duas) jornadas de trabalho haverá um período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso.”

8 “Art. 71. Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas.”

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3.3 Concentração

A Lei 6.354/1976, em seu art. 7º, prevê a obrigatoriedade de o atleta “concentrar-se, se convier ao empregador, por prazo não superior a 3 (três) dias por semana, desde que esteja programada qualquer competição amistosa ou oficial e ficar à disposição do empregador quando da realização de competição fora da localidade onde tenha sua sede”.

Excepcionalmente, o prazo de concentração poderá ser ampliado quando o atleta estiver à disposição de Federação ou Confederação.

Esclareça-se que o dispositivo acima não foi objeto de revogação pelo art. 96 da Lei 9.615/1998.

Embora o tema não seja totalmente pacífico, tendo em vista as peculiaridades envolvidas na relação de trabalho do atleta profissional, pode-se entender que o regime de concentração não deve ser computado para fins de horas extras, desde que respeitado o disposto no art. 7º da Lei nº 6.354/76, ou seja, o limite de 3 (três) dias por semana.

Efetivamente, a concentração do atleta profissional é uma característica especial de seu contrato de trabalho, de modo a afastar o direito a horas extras quanto a esse período.

Nesse sentido, destaca-se a seguinte decisão do Tribunal Superior do Trabalho:

“JOGADOR DE FUTEBOL. HORAS EXTRAS. PERÍODO DE CONCENTRAÇÃO. Nos termos do art. 7º da Lei 6.534/76, a concentração do jogador de futebol é uma característica especial do contrato de trabalho do atleta profissional, não se admitindo o deferimento de horas extras neste período. Recurso de Revista conhecido e não provido” (TST, 2ª T., RR 297/2002-104-03-00.8, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, DEJT 07.08.2009).

4 – TRABALHO NOTURNO

O trabalho noturno, para os empregados urbanos, é aquele realizado “entre as 22 (vinte e duas) horas de um dia e as 5 (cinco) horas do dia seguinte” (art. 73, § 2º, da CLT).

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O labor em horário noturno, por acarretar maior desgaste físico e psíquico ao empregado9, gera o direito ao respectivo adicional, conforme previsão da Constituição Federal de 1988 (art. 7º, IX).

Para o empregado urbano, o adicional pelo trabalho noturno é de 20% sobre a hora diurna, conforme o art. 73, caput, da CLT.

O trabalho noturno de empregado urbano também assegura a chamada redução da hora noturna, prevista no art. 73, § 1º, da CLT, com a redação seguinte: “A hora do trabalho noturno será computada como de 52 (cinquenta e dois) minutos e 30 (trinta) segundos”.

Frise-se que a hora noturna reduzida encontra-se em vigor, mesmo depois da Constituição Federal de 1988, conforme Orientação Jurisprudencial 127 da SBDI-I do TST.

Como se nota, por ficção prevista em lei, cada período de 52 minutos e 30 segundos é considerado uma hora, quando do trabalho no período noturno.

Quanto ao atleta profissional, há entendimento de não ser cabível adicional noturno, pois o trabalho em horário noturno é inerente à sua atividade e profissão.

Com a devida vênia, embora o tema seja controvertido, pode-se defender posicionamento diverso, pois o fato de haver labor em horário noturno como algo inerente a certa função não afasta o direito ao respectivo adicional.

Tanto é assim que em diversas outras situações o trabalho em período noturno também pode ser considerado inerente ou natural à função desempenhada, como ocorre no caso de vigias e vigilantes, mas são normalmente devidos o adicional noturno e a hora noturna reduzida10.

De modo semelhante, é pacífico o entendimento de que o art. 73, caput, parte inicial, da CLT, que excluía o direito de adicional noturno para os casos de revezamento semanal ou quinzenal de pessoal, não foi recepcionado pela Constituição de 1946, não estando, assim, em vigor, até porque violaria os princípios da igualdade e da razoabilidade.

9 Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.1151.

10 Cf. Súmula 140 do TST: “VIGIA (mantida) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. É assegurado ao vigia sujeito ao trabalho noturno o direito ao respectivo adicional”. Cf. ainda Súmula 402 do STF: “Vigia noturno tem direito a salário adicional. (DJ 08.05.1964)”.

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Nessa direção, a Súmula 213 do Supremo Tribunal Federal dispõe ser “devido o adicional de serviço noturno, ainda que sujeito o empregado ao regime de revezamento”.

Da mesma forma, o art. 73, § 3º, parte final, da CLT previa que em relação às empresas “cujo trabalho noturno decorra da natureza de suas atividades” o aumento era calculado “sobre o salário mínimo geral vigente na região, não sendo devido quando exceder desse limite, já acrescido da percentagem”.

Apesar disso, essa vetusta disposição não mais prevalece, como registra a Súmula 313 do STF, ao assim dispor: “Provada a identidade entre o trabalho diurno e o noturno, é devido o adicional, quanto a este, sem a limitação do art. 73, § 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, independentemente da natureza da atividade do empregador”.

No caso do atleta profissional, como já mencionado, o art. 28, § 1º, da Lei 9.615/1998 prescreve a aplicação das “normas gerais da legislação trabalhista e da seguridade social, ressalvadas as peculiaridades expressas nesta Lei ou integrantes do respectivo contrato de trabalho”.

Sendo assim, não há fundamento lógico-jurídico para se afastar, quanto ao atleta profissional, a incidência do art. 7º, IX, da Constituição da República, bem como do art. 73 da CLT, relativos ao trabalho noturno e as suas consequências na duração do trabalho (hora noturna reduzida) e na remuneração (adicional pelo labor noturno).

Logo, defende-se o entendimento de que o atleta profissional tem direito ao adicional decorrente do trabalho noturno11.

5 – CONCLUSÃO

As normas que disciplinam a duração do trabalho apresentam importância diferenciada, pois estabelecem limites que protegem a integridade do trabalhador, evitando prejuízos à saúde, à segurança e ao seu bem-estar.

Os valores assim tutelados remetem à proteção e à promoção da dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho, de modo que a matéria está inserida na esfera dos direitos fundamentais.

11 Cf. BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho. 2.ed. São Paulo: LTr, 2002, p.88.

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No caso do atleta profissional, embora existam peculiaridades a merecer tratamento diferenciado, é relevante a observância das disposições gerais relativas ao trabalho noturno e à jornada de trabalho, inclusive como fator preventivo de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais.

6 – BIBLIOGRAFIA

BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho. 2.ed. São Paulo: LTr, 2002.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 9.ed. São Paulo: LTr, 2010.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do trabalho. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, t. 2.

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 24.ed. São Paulo: Atlas, 2008.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

OLIVEIRA, Jean Marcel Mariano de. O contrato de trabalho do atleta profissional de futebol. São Paulo: LTr, 2009.