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Os tons de cinza do faz-de-conta Os “contos de fada” – tentativa de enfeixar sob uma denominação manifestações de formas narrativas variadas, de origens e épocas distintas – têm apelo e provavelmente seguirão apelando à nossa sensibilidade. O enredo típico associado a eles, marcado pelo que o estudioso búlgaro Tzvetan Todorov classifica como “maravilhoso”, envolve acontecimentos extraordinários que se integram a terras distantes, reis e rainhas, bruxas, elfos, anões e gigantes, animais falantes, bosques misteriosos e um universo de classes populares que, sem nunca se sublevar, respeitam devotadamente seus governantes. A história da “gata borralheira”, a filha de um viúvo às voltas com a nova esposa do pai, contém alguns desses ingredientes. As perseguições da madrasta e de suas duas filhas tormam o cotidiano da heroína um inferno de ocupações domésticas e humilhações. Daí, aliás, o nome: imersa em pó e cinza ao limite da exaustão, em italiano Cinderela atende por “Cenerentola”, em espanhol por “Cenicienta” e em francês, por “Cendrillon”. A montanha de tarefas é deixada em suspenso graças a uma benfazeja intervenção sobrenatural, que concede à protegida a chance única de ir a um baile na corte, trajada para a exibição dos seus ofuscados atrativos naturais, transportada com pompa e provida de impecável séquito. A jovem surge como uma aparição, deslumbrando o filho do monarca; obedecendo às recomendações da fada-madrinha, parte à meia-noite, quando expira a magia. Na fuga, deixa um sapato, espécie de fio de Ariadne com que o amado vai reencontrá-la, em peregrinações pelos lares do reino, não sem levar candidatas afoitas a quase reeditar o mito de Procusto para emular o pezinho da dama. Contradizendo a amiga para quem o príncipe encantado até existe, mas chega apenas quando já nos amarramos no cavalo, digo que a espera do inatingível não compensa não só porque errar é apanágio humano, mas porque açúcar em excesso faz mal. A vida nos desafia, e isso não combina nem com expectativas estáticas (ou extáticas!) nem com a artificialidade de salvações mágicas externas ou coincidências fabulares. Mas, se como modelo feminino Cinderela está ultrapassada (as meninas de hoje lutam como as de ontem, tomam iniciativa e buscam o que querem, a realeza ou a realidade), o desejo de amar e ser amado e a força das escolhas não morrem nunca. É por ensinar pequenos e grandes a ver além das aparências, a aceitar o direito de sonhar e a acreditar também no que não se vê que os contos de fada permanecem eternamente na memória das gerações. Manuela Ribeiro Barbosa Versão revisada de artigo publicado no jornal Estado de Minas em 22 de março de 2015, no caderno Cultura, p. 8.

Os tons de cinza do faz de conta

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Artigo publicado no jornal Estado de Minas (22/03/2015) a propósito da figura de Cinderela, que protagoniza a releitura cinematográfica do famoso conto de fadas.

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Os tons de cinza do faz-de-conta

Os “contos de fada” – tentativa de enfeixar sob uma denominação manifestações de formas narrativas variadas, de origens e épocas distintas – têm apelo e provavelmente seguirão apelando à nossa sensibilidade. O enredo típico associado a eles, marcado pelo que o estudioso búlgaro Tzvetan Todorov classifica como “maravilhoso”, envolve acontecimentos extraordinários que se integram a terras distantes, reis e rainhas, bruxas, elfos, anões e gigantes, animais falantes, bosques misteriosos e um universo de classes populares que, sem nunca se sublevar, respeitam devotadamente seus governantes. A história da “gata borralheira”, a filha de um viúvo às voltas com a nova esposa do pai, contém alguns desses ingredientes. As perseguições da madrasta e de suas duas filhas tormam o cotidiano da heroína um inferno de ocupações domésticas e humilhações. Daí, aliás, o nome: imersa em pó e cinza ao limite da exaustão, em italiano Cinderela atende por “Cenerentola”, em espanhol por “Cenicienta” e em francês, por “Cendrillon”. A montanha de tarefas é deixada em suspenso graças a uma benfazeja intervenção sobrenatural, que concede à protegida a chance única de ir a um baile na corte, trajada para a exibição dos seus ofuscados atrativos naturais, transportada com pompa e provida de impecável séquito. A jovem surge como uma aparição, deslumbrando o filho do monarca; obedecendo às recomendações da fada-madrinha, parte à meia-noite, quando expira a magia. Na fuga, deixa um sapato, espécie de fio de Ariadne com que o amado vai reencontrá-la, em peregrinações pelos lares do reino, não sem levar candidatas afoitas a quase reeditar o mito de Procusto para emular o pezinho da dama. Contradizendo a amiga para quem o príncipe encantado até existe, mas chega apenas quando já nos amarramos no cavalo, digo que a espera do inatingível não compensa não só porque errar é apanágio humano, mas porque açúcar em excesso faz mal. A vida nos desafia, e isso não combina nem com expectativas estáticas (ou extáticas!) nem com a artificialidade de salvações mágicas externas ou coincidências fabulares. Mas, se como modelo feminino Cinderela está ultrapassada (as meninas de hoje lutam como as de ontem, tomam iniciativa e buscam o que querem, a realeza ou a realidade), o desejo de amar e ser amado e a força das escolhas não morrem nunca. É por ensinar pequenos e grandes a ver além das aparências, a aceitar o direito de sonhar e a acreditar também no que não se vê que os contos de fada permanecem eternamente na memória das gerações. Manuela Ribeiro Barbosa Versão revisada de artigo publicado no jornal Estado de Minas em 22 de março de 2015, no caderno Cultura, p. 8.