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O trágico antigo e o moderno Ensaios sobre filosofia e literatura n G ilmário G uerreiro da C osta Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

osta C O trágico antigo e O o moderno - digitalis.uc.pt · Examinamos, neste livro, ... As origens do pensamento ocidental Direção ... projeta sobre o contexto grego valores e

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Examinamos, neste livro, a relao entre o estudo da tragdia como gnero literrio e a anlise filosfica do conceito de trgico. Seguimos algumas possibilidades que sugerem ser insuficiente a limitao do tema exclusiva-mente ao espao da tragdia, pois, se por um lado este gnero concede vi-sibilidade a um problema de interesse esttico e existencial, por outro lado no o esgota. Em termos estticos, o tema desborda os limites dos gneros literrios e suscita ngulos importantes para o estudo das diversas expres-ses artsticas; em termos existenciais, explicita o plano mltiplo de parado-xos e contradies em que os homens por vezes imergem, devido finitude com que a sua ao e conscincia se deparam. Entretanto, se a filosofia do trgico significou avano consistente na compreenso dessas questes, no menos evidente que tenha chegado a impasses considerveis. Ao longo dos ensaios, buscamos sublinhar os avanos e as dificuldades dessa linha de investigao, para a qual a anlise concreta de algumas obras literrios revelou-se crucial.

Gilmrio Guerreiro da Costa Professor do departamento de Filosofia da Universidade Catlica de Braslia (UCB). Ps-doutorando na Universidade de Braslia (Ctedra UNESCO Archai) e no Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra (bolsista CAPES).

Os ensaios que compe esta obra ofe-recem estudos acerca da tragdia gre-ga mediante o dilogo entre fi-losofia e literatura ou mais especificamente, es-

ttica e teoria da literatura. Foi seguida a hiptese

de que o trgico, mais do que uma prerrogativa

da tragdia enquanto gnero literrio, uma ca-

tegoria esttica. Disso decorre a possibilidade de

se encontrarem elementos trgicos em expresses

literrias e artsticas diversas. Trabalhos mais te-

ricos se fizeram acompanhar de anlises cerradas

de textos literrios, com o objetivo de articular o

plano imanente das obras com o contexto mais

amplo no qual se inserem. Semelhante multiplici-

dade de procedimentos permitiu resistir s limi-

taes inevitveis de uma anlise microestrutural,

bem como aos excessos de abstrao de determi-

nadas expresses da filosofia do trgico.

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O trgico antigo e o moderno

Ensaios sobre filosofia e literatura

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O t r g i c o a n t i g o e o m o d e r n o :

E n s a i o s s o b r e f i l o s o f i a e l i t e r a t u r a

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As origens do pensamento ocidentalDireo

Gabriele Cornelli Conselho Editorial:

Andr Leonardo Chevitarese Delfim Leo

Fernando Santoro

A coleo Archai espelho do trabalho do grupo Archai: as origens do pen-samento ocidental, agora promovido a Ctedra UNESCO Archai. H mais de dez anos, desde 2001, o grupo Archai desde 2011 Ctedra UNESCO Archai promove investigaes, organiza seminrios e publicaes (entre eles a revista Archai) com o intuito de estabelecer uma metodologia de tra-balho e de constituir um espao interdisciplinar de reflexo filosfica sobre as origens do pensamento ocidental. A presente coleo parte do selo editorial Annablume Clssica quer contribuir para a divulgao no Brasil de produes editoriais que busquem compreender, a partir de uma perspectiva cultural mais ampla, nossas origens. Nesse sentido, visando uma apreenso rigorosa do processo de formao da filosofia, e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, as obras que aqui so apresentadas procuram confrontar uma tradio excessiva-mente presentista de contar a histria do processo de formao da cultura oci-dental. Notadamente daquela que pensa a filosofia como um saber estanque, independente das condies de possibilidade histricas que permitiram a apario desse tipo de discurso. Enraizando o nascimento da filosofia na cultura antiga, contrapondo-se s lies de uma historiografia filosfica racionalista que, ana-cronicamente, projeta sobre o contexto grego valores e procedimentos de uma razo instrumental estranha s mltiplas formas do logos antigo, a coleo Archai pretende contribuir para o lanamento de um olhar novo sobre os primrdios do pensamento ocidental, em busca de novos caminhos hermenuticos de nossas identidades intelectuais, ticas, artsticas e culturais.

Conhea os ttulos desta coleo no final do livro.

Coleo

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O t r g i c o a n t i g o e o m o d e r n o :

E n s a i o s s o b r e f i l o s o f i a e l i t e r a t u r a

Gilmrio Guerreiro da Costa

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O TRGICO ANTIGO E O MODERNO:ENSAIOS SOBRE FILOSOFIA E LITERATURA

annablume editoraImprensa da Universidade de Coimbra

Projeto, Produo e CapaColetivo Grfico Annablume

Jonatas Rafael AlvaresRodolfo Pais Nunes Lopes

Reviso tcnica e cientficaRodolfo Lopes

Impresso e acabamentoSimes e Linhares

annablume clssica

Conselho editorialGabriele Cornelli

Luiz Armando BagolinMrio Henrique DAgostino

Mnica Lucas

Editor executivoJos Roberto Barreto Lins

A presente obra contou com o apoio da Ctedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental - Universidade de Brasilia

1 edio: Dezembro de 2014

Gilmrio Guerreiro da Costa

ANNABLUME editora . comunicaowww.annablume.com.br

Imprensa da Universidade de Coimbrahttp//www.uc.pt/imprensa_uc

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao CIP

O48 Costa, Gilmrio Guerreiro da.O Trgico Antigo e o Moderno: Ensaios sobre Filosofia e Literatura. / Gilmrio Guerreiro da Costa. So Paulo: Annablume Clssica, 2014. (Coleo Archai:as origens do pensamento ocidental).

14x21 cm, 418 p.ISBN 978-989-26-0918-8 (IUC) 978-85-391-0534-2 (Annablume)ISBN Digital 978-989-26-0919-5 (IUC)DOI http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0919-5Depsito Legal ....../14

1. Filosofia. 2. Literatura. 3. Estudos Clssicos. 4. Antiguidade. 5. Modernidade. 6. Tragdia. I. Ttulo. II. Srie. III. Selo Annablume Clssica.

CDU 101CDD 100

Catalogao elaborada por Jonatas Rafael Alvares

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A marca da experimentao revela, nestas pginas, a figura de seu Autor: Gilmrio Guerreiro da Costa. Com a coragem e a serenidade de quem muito leu e muito mais viu, Gilmrio entrou um dia na ponta dos ps pela porta da sala da Ctedra UNESCO Ar-chai e abraou imediatamente a intuio fundamental dela, seu estilo de trabalho, os valores acadmicos que inspiram h quase 15 anos o Archai. Imediatamente, como pesquisador colaborador, se colocou ao servio dos mais novos pesquisadores; carregou junto com o grupo muitos desafios, editoriais e organizativos; e finalmente decidiu que era a hora de dar um salto, por assim dizer, na generosa contribuio que vinha mantendo com a Ctedra, entregando Coleo um manuscrito que reunia o percurso das pesquisas que Gilmrio vinha compartilhando conosco ao longo destes anos.

APRESENTAO

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Recordo um dos primeiros seminrios que ele minis-trou para a equipe da Ctedra. O que mais impres-sionou a todos foi a beleza do tecido de suas palavras. Gilmrio, como o leitor poder em breve perceber por si mesmo, se distingue por um uso da lngua portu-guesa jamais bvio ou burocrtico, sempre profun-damente refletido em todas suas nuances. Costumo brincar com ele, confessando que, em cada seminrio ou novo texto, acabo por apreender (eu, filho adotivo da lngua portuguesa) mais dois ou trs novos voc-bulos e usos.

elegncia de seus argumentos, Gilmrio alia uma abordagem analtica das questes impecvel e precisa. De fato, o mencionado carter experimental dele no est somente na conscincia da necessidade de uma aproximao plural ao tema do trgico, que engloba diversas metodologias e pocas histricas nas quais o fenmeno se revelou ao longo da histria da filosofia e da literatura. Os ensaios aqui reunidos, como especi-fica o Sumrio, no podem ser seno jam sessions, para citar uma das paixes de Gilmrio, aquela para a m-sica jazz. Para as quais Gilmrio convida para tocarem juntos, na pluralidade de seus estilos, Sfocles e Wal-ter Benjamin, Plato e Guimares Rosa; todos juntos pelo desejo de compreender a essncia mais prpria da experincia da tragdia, que reside na precarieda-de da existncia humana em sua irreduzvel falta de nitidez. O ser humano, e no s o moderno (como parecem testemunhar as tragdias gregas) parece pade-cer, de fato, de uma inquietude radical. o que sugere

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Guimares Rosa, mestre de imagens e ideias, numa metfora filosoficamente audaciosa:

senhor... mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, isto: que as pessoas no esto sempre iguais, ainda no foram termi-nadas mas que elas vo sempre mudando. Afinam ou desafinam. Isso que me alegra, monto. (...) A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro de um tanque, s caldo de casca de curtir, barba-timo, angico, l sei. Amanh eu tiro... - falei, comigo. Porque era noite, luz nenhuma eu no disputava. Ah, ento, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido ro-do, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Es-tala, espoleta! Sabe que foi? Pois, nessa mesma tarde a: da faquinha s se achava o cabo... O cabo, por no ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. A est: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me en-tende. (G. Rosa. Grande Serto: Veredas. Rio de Janeiro, Jos Olympio Ed., 1976, XI ed., p. 21).

O curtume da crise trgica da modernidade parece no deixar intactas nem as estruturas mais ferrenhas. este sentimento de desgaste, de perene inacabado, da trgi-ca falta de cho que define tanta literatura e filosofia contemporneas. J o grande Ludwig Wittgenstein se

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perguntava: ser que sempre vantajoso trocar um retrato pouco claro por outro bem ntido? No ser o retrato pouco ntido exatamente aquilo de que pre-cisamos? (Investigaes filosficas, 71). As pginas a seguir respondero, creio, brilhantemente ao mestre analtico por excelncia.

Nas pginas deste livro h muita histria da filosofia, especialmente Plato e Aristteles, e muita histria da literatura trgica. O leitor vido ir apreciar as finas interpretaes do Autor e as belas snteses. Mas h tambm muita teoria esttica e da literatura contem-porneas, experimentadas com coragem e lucidez em propostas comparativas originalssimas, como o caso do extraordinrio captulo final dedicado a Plato em Guimares Rosa.

A Coleo Archai entrega, desta forma, aos seus leitores uma obra que, ao mesmo tempo, espelho da filosofia de trabalho da Ctedra e desafio para trilhar novos ca-minhos metodolgicos, entre a filosofia e a literatura, logos e mythos, sentido e mistrio, histria e presente.

Gabriele Cornelli

Braslia, novembro de 2014

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A escrita deste volume beneficiou-se da amizade e apoio de muitas pessoas e instituies. A suges-to para faz-lo veio do Prof. Gabriele CorneIli (Uni-versidade de Braslia), aps ouvir-me em uma das se-es dos seminrios internos da Ctedra UNESCO Archai. Sendo responsvel pela minha superviso de ps-doutorado, julgou que o material que apresentei, ainda bastante incipiente, seria passvel de desdobrar-se em livro. Com o seu entusiasmo caracterstico, des-fez as minhas resistncias e hesitaes. Tambm tive a oportunidade de usufruir de esclarecimentos e su-gestes bibliogrficas da Profa. Maria do Cu Fialho, minha supervisora de ps-doutorado na Universidade de Coimbra. Reconheo ainda o meu dbito ao de-partamento de Filosofia da Universidade Catlica de Braslia, em especial ao seu diretor, Prof. Paulo Afonso Quermes, e ao seu assessor, Prof. Luiz Cludio Batista. Auxiliaram-me com a sua competncia, sabedoria e

AGRADECIMENTOS

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generosidade habituais na boa administrao do meu tempo, dividido entre as demandas de ensino, pesqui-sa e gesto.

Minha primeira experincia de estudo mais sistemtico das relaes entre tragdia e filosofia fez-se durante o mestrado que realizei no departamento de Teoria Literria, da Universidade de Braslia. L usufrui de conversas sempre fecundas com o Prof. Henryk Siewierski e da orientao habitualmente brilhante do Prof. Flvio Kothe. Foi tambm nesta poca que pude travar conhecimento com o saudoso Prof. Gerd Bornheim, que me sugeriu muitos caminhos de investigao, todos eles fecundos. Obviamente os equvocos e limitaes que porventura se manifestarem neste livro so da minha inteira responsabilidade.

Este trabalho recebeu o apoio de uma bolsa de ps-doutorado da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes). Integra o projeto Cosmpolis: mobilidades culturais s origens do pensamento antigo, vinculado ao programa de cooperao Capes-FCT, que envolve a Universidade de Braslia e a Universidade de Coimbra.

Meus amigos dificilmente desconfiam dos efeitos da sua escuta atenta e da generosa partilha hlderliniana do po e do vinho. A vocs, agradeo profundamente o suporte oferecido com alma e arte: meus pais Jos e Maria; minha irm Patrcia; Francisco Jesumar, o irmo que no tive, porque no seria mesmo necessrio; Alessandro Braga, Luciano Coutinho e Tiago Nascimento, que tive a sorte, , de

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conhecer. Especialmente, minha esposa Lgia, a quem este livro dedicado.

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viceja na experincia potica o silncio configurador de uma dimenso fundante da essncia da linguagem.

O poema hermtico, para nos determos brevemente em um caso de escrita potica, ocupou-se de intensa meditao acerca desses problemas. Talvez houvesse nele a intensidade do grito sufocado que se ausenta na meditao heideggeriana. O silncio tem algo de urgente nesse gnero potico, dirigindo seu apelo aos mortos, ou em nome dos mortos. O leitor seria a contraparte, ou metfora mesmo, da disponibilidade escuta, ou mais provavelmente, a exposio da penria dessa disponibilidade. Este compromisso afina-se com a principal linhagem da poesia moderna, que, em Baudelaire, inaugura-se com o gesto heroico de fazer poesia a partir da conscincia da impossibilidade crescente de fazer e ler poesia, devido massificao e s condies modernas de vida (KOTHE, 1977).

A indagao heideggeriana intenta assim devolver a linguagem sua ambincia potica, dilacerada pela errncia e tragicidade, ou seja, inseri-la no mbito mesmo do conflito, sua legtima morada. Lembremo-nos do paradoxo observado por Yuri Lotman ao destacar que, segundo a teoria da comunicao, quanto menos informao contiver uma mensagem, maior a comunicao (LOTMAN, 1978). No texto potico algo diverso se manifesta, pois ele condensa muita informao, mas isso no obsta a sua comunicao. Caberia perguntar, dentro dessa perspectiva heideggeriana, o que significaria semelhante comunicao, o que o texto potico comunicaria. Talvez recorrendo a outro paradoxo, se poderia

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conjeturar que a sua prpria incomunicabilidade o que se encena. A dificuldade que a se instala reenvia a leitura sua legtima complexidade, inserindo-nos em sendas abertas para assumir o seu exerccio como errncia e tragicidade.

8. AS TENSES ENTRE SIGNIFICADO E SIGNIFICANTE NA TRAGDIA

O problema da linguagem na tragdia revisitado numa importante passagem da concluso do livro de Judet de La Combe. Nela aproximam-se squilo de Herclito, e Sfocles e Eurpedes dos sofistas. Claramente se resiste tese nietzschiana de que a sofstica teria ocasionado tragdia a sua decadncia. Observa-se antes o inverso a cena trgica deveria aos sofistas parte considervel da sua articulao. Chega mesmo a sustentar, no sem certa provocao, que Sfocles e Eurpedes teriam sido discpulos diretos dos sofistas. Em squilo haveria resistncia a tomar-se a linguagem como duplo imperfeito da realidade. Em vez disso, consoante se expressa numa passagem de As rs, de Aristfanes, em toro temporal considervel, a linguagem encena a sua diferena com respeito aos objetos e, alm disso, pode mesmo interferir no comportamento dos homens. Judet de La Combe pondera serem tais observaes mais precisas do que se faria supor a princpio. De fato, destaca-se no poeta grego o cuidado de colocar o ncleo vivo da linguagem ao abrigo de um realismo estreito (JUDET DE LA COMBE, 2010, p. 306-7). Na aludida passagem de

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As rs, sublinha-se, no sem reprovao, o modo com o qual squilo teria realizado coisas com a fora da sua poesia induziu os homens a aes belicosas. Seu texto, em vez de representao de fenmenos, resultou em produo de realidades:

Dioniso: E tu que fizeste, para assim os tornares corajosos? squilo, fala e no te irrites orgulhosamente, com ares superiores!squilo: Compus uma tragdia cheia de Ares [drama poiesas Areos meston]Dioniso: Qual?squilo: Os Sete ontra Tebas. Todo homem que a tinha visto deseja apaixonadamente ser combatente.Dioniso: Isso que tu fizeste foi mal feito, porque tornaste os tebanos mais corajosos na guerra. E, por isso mesmo, toma l (Faz o gesto de lhe bater). (Ar. Ra. 1019-1024)16

A essa passagem Judet de la Combe acrescenta, para reforar o seu argumento, a anlise do fragmento B48 de Herclito: par exemple, quand le mot vie, bios, peut en grec signifier aussi un instrument de mort comme l arc , selon la manire dont on laccentue, sur le i ou sur le o (2010, p. 307). As palavras gregas so (bos), que significa vida, e (bis), arco (BAILLY, 2000. p. 360). O referido

16. Traduo de Amrico da Costa Ramalho (ARISTFANES, 2008).

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fragmento este: Do arco o nome vida e a obra morte (HERCLITO DE FESO, 1978, p. 84). A traduo de Bollack e Wismann especialmente reveladora dessa relao: Larc: son nom, la vie, ce quil fait, la mort [ , ] (BOLLACK e WISMANN, 1972, p. 169) Em comentrio ao fragmento, escrevem:

Le nom sclaire dans sa nature de nom par la ralit du contenu dont il se spare. A la diffrence quintroduit le rapport du signfiant au signifi sajoute la diffrence entre deux significations. Dans le cas prcis de larc, la ngation quimplique la sparation du nom est traduite par une valeur positive, la vie, alors que la positivit de la chose dsigne est mort. (BOLLACK e WISMANN, 1972, p. 170)

Julgamos nisso entrever um acento na dimenso antittica do significante: ao dizermos vida, por vezes pensamos morte, e vice-versa. No estranha assim o esforo de muitos por buscar na meditao da morte impulso vital ento esmorecido. A reflexo acerca da finitude emprestaria a coragem necessria ao enfrentamento dos mais altos desafios da vida. possvel comprometer-se com essa ideia, mas ela impe limites. O significante da morte, ao nos conduzir lembrana da vida, reencontra-se com o seu outro o significante da vida, a nos expor o inapelvel aceno

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da morte. De todo modo, o movimento do significante inscreve a dimenso ativa do leitor, um modo de ao.

Talvez se possa verificar nessa anlise uma antecipao de um processo que Luiz Costa Lima chamou de mimesis da produo. Refere-se s mudanas de procedimento entre alguns escritores modernos em sua crtica da ideia de representao em arte. O conceito assim definido: Neste caso, o Ser j no o seu lastro prvio, mas o que advm, o seu ponto de chegada. (LIMA, 1980, p. 170) Deslocamento tanto ontolgico, quanto temporal. Na relao com a realidade, ou as representaes sociais a ela emprestadas, a mmesis da produo incide num movimento negativo e construtivo: marca sua diferena com relao ao status vigente, e luta diligentemente por abrir novas vias compreensivas: E, se identificarmos o Ser com o real, diremos que o prprio da mmesis da produo provocar o alargamento do real, a partir mesmo de seu dficit anterior. (LIMA, 1980, p. 170) Nessa assimetria, que findar por ofertar ngulos imprevistos de leitura da representao, ou sua desmontagem produtiva, emerge em primeiro plano a figura do leitor. Destarte, outra relao com a referncia se estabelece, por fora do seu apagamento. Semelhante trabalho do negativo, no entanto, ultrapassa o nvel da simples anulao do objeto, articulando-se simultaneamente com o esboo de feies alternativas do ser, alm de insinuar, nos planos da diferena, estratos da referncia apagada (LIMA, 1980).

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No cerne da lide trgica da leitura desponta a desconfiana de que se a linguagem pode revelar algum conhecimento do mundo, tal se insinua precisamente na tenso entre significante e significado, e no em sua identidade. O fracasso da representao, nesse sentido, deve suscitar a ateno dos intrpretes, por insinuar o tipo de arremate artstico consentneo ao gnero. Convm ressaltar ser a recusa completa da representao tambm enganosa, convertida em espcie de discurso dogmtico s avessas acerca da identidade. na tenso que se deve deter o estudioso da linguagem, se pretende repor em cenrio adequado um dilogo feito de aproximaes e estranheza, promessas e impasses.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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. Para uma crtica da violncia. Trad. Ernani Chaves. In.: Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampff e Ernani Chaves. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011b.

. Origem do drama barroco alemo. Traduo, apresentao e notas: Sergio Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1984.

BOLLACK, Jean e WISMANN, Heinz. Hraclite ou la sparation. Paris: Les ditions du Minuit, 1972.

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FARIA, Ernesto. Dicionrio escolar latino-portugus. 6. ed. Rio de Janeiro: FAE, 1994.

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JUDET DE LA COMBE, Pierre. Les tragdies grecques sont-elles tragiques? Paris: Bayard ditions, 2010.

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LIMA, Luiz Costa. Mmesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1980.

LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artstico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

OLIVEIRA, Manfredo Arajo. Reviravolta lingstico-pragmtica na filosofia contempornea. So Paulo: Loyola, 1996.

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PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Mrio Quintana. So Paulo: Abril Cultural, 1982.

SAFRANSKI, Rdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Trad. Lya Luft. So Paulo: Gerao Editorial, 2000.

SCHELLING, F. W. J. Cartas filosficas sobre o dogmatismo e o criticismo. In.: Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleo Os Pensadores).

. Filosofia da arte. Trad. Mrcio Suzuki. So Paulo: Edusp, 2001. (Clssicos).

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trgico. Trad. Pedro Sssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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INTRODUO

A identificao dos leitores com a pea Prometeu agrilhoado17 explica-se por diversos motivos, dos quais desponta o tema da resistncia obstinada contra a tirania. Obtm-se semelhante efeito por intermdio de algumas estratgias retricas de aproximao e distanciamento, notrias no apelo a que vejamos o que veem as personagens, como se deparssemos com a cena da cena a primeira a que se desenrola ante os nossos olhos, a segunda, aquela a que se referem as personagens, recurso revelador

17. Todas as citaes em portugus dessa obra procedem da traduo de Trajano Vieira (2007). Alteraes pontuais, de minha autoria, foram devidamente identificadas. Com respeito ao ttulo, optamos por Prometeu agrilhoado, algo mais preciso do que Prometeu prisioneiro.

III. A PARTILHA DA DOR E DO SILNCIO: ESTRATGIAS

META-TEATRAIS NO PROMETEU AGRILHOADO, DE SQUILO

http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0919-5_3

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de composio metateatral. Daqui decorre uma intensificao das emoes e do processo da empatia, do ato de colocar-se em lugar de outrem, pois somos inseridos na perspectiva dos heris e anti-heris do drama, com focalizao que, se por um lado se limita, por outro amplia a possibilidade de um saber pelo padecer, divisa peculiar ao autor da obra, squilo18. As lgrimas das personagens, quando testemunham as diversas expresses de sofrimento na pea, espelham e incentivam retoricamente as lgrimas que se pode colher ao pblico19, assim oferecendo oportunidades

18. Referimo-nos mxima esquiliana do pathei mathos (A. Ag. 177), o aprendizado pelo sofrimento, expresso do corifeu acerca do modo como Zeus conduz os ho-mens a um tipo de conhecimento dificilmente obtido por outras vias.

19. Efeito afim ao da catarse aristotlica: A tragdia a imitao de uma aco [praxeos] elevada [spoudaias] e completa [teleias], dotada de extenso [megethos], numa linguagem embelezada [hedysmenoi] por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da aco e no da narrao e que, por meio da compaixo e do temor, provoca a purificao de tais paixes [pathematon katharsin]. (Arist. Po. 1449b 20-25 trad. A. M. Valente). O teor da formulao aristotlica suscitou infindvel polmica. Era recorrente seja a defesa da acepo mdica de catarse, seja a direo tica. Na impossibilidade de analisar em pormenor os diversos ngulos do tema no espao deste ensaio (mas que o fizemos no captulo VII), apenas mencionamos que nos interessa sobremodo o perfil tico do efeito dramtico da tragdia, embora no nos parea incompatvel com os elementos hipocrticos de que Aristotteles certamente se aproximou, embora se

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que aduz o nome de Evlpides (elpides) toca sua deciso de abandonar Atenas em busca de espao mais aprazvel, que adiante poder concretizar-se com a fundao de uma cidade nas nuvens, a Nefelocucolndia. Mas resulta incerto o teor da realizao do seu desejo se, por trs do seu sabor cmico, segreda algum teor de verdade acerca dessas aspiraes utpicas, ou se o riso encerra o desnudamento da ingenuidade desses propsitos.

Quando encontram Tereu, Evlpides explica-lhe o tipo de lugar que procuram: Foi por isso que viemos suplicar-te se podes indicar-nos uma cidade feita de boa l, onde nos possamos estender como numa manta bem fofinha. (120-2). Tereu ento pergunta aos seus visitantes se por uma polis aristocrtica que eles esperam (125)43, hiptese a que Evlpides no hesita em recusar. Alguns lugares so propostos, sem encontrarem acolhida entre os dois viajantes, que ao fim mostram-se curiosos com a cidade das aves, que se lhes afigurava livre de corrupo e desonestidade (158: kibdelia). nos ares que esperam encontrar uma cidade melhor ou, para tomarmos uma expresso de Rush Rehm, em um espao eremtico (REHM, 2002), fora do plano (u-topos) da polis. No entanto, a sociedade das aves no est imune aos vcios humanos. O Servo da Poupa, antes um homem a servio de Tereu, transformou-se em pssaro-escravo (69: ornis egoge doulos) para servir ao patro metamorfoseado em

43. Aristfanes usa aqui o verbo aristokrateisthai.

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pssaro (71-4). A razo dessa necessidade viria de o seu amo ter sido homem no passado:

Talvez por ter sido homem noutros tempos, julgo eu. Apetece-lhe comer umas anchovas do Falero; eu agarro na escudela e vou numa corrida s anchovas. D-lhe um desejo de pur de legumes; preciso uma colher e uma panela. A vou eu numa corrida arranjar uma colher. (75-8).

As ambies humanas no demoram a insinuar-se. Pistetero prognostica: Alto! Entrevejo, para a raa das aves, um futuro brilhante e um grande poder, que se pode concretizar se vocs se deixarem guiar por mim. (162-3). Nan Dunbar observa, acerca dessa passagem, que the first sign of the dominant part, based on his persuasivepowers, that Peisetairos will have in the action. This phrase may have reminded the audience of the style of their public speakers. (DUNBAR, 1998, p. 140). Pistetero ento concita as aves a fundarem uma cidade nos cus: Tratem de fundar uma cidade (Ar. Av. 172: oikisate mian polin), proposta acolhida com entusiasmo por seu interlocutor, a Poupa. Ser ento necessrio convencer as aves. Ao explicar ao coro as motivaes pacficas dos dois atenienses, afirma que eles entreviam na possibilidade de morar entre elas momentos de grande felicidade (421-2: Legei megan

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tin olbon oute lekton oute piston).44 O esforo de Pistetero por convenc-las da sua proposta poltica fundamenta-se no descompasso entre a poca em que elas dominavam sobre todos, e sua atual sujeio. Aps ouvi-lo, o Coro mostra-se receptivo: Ah que duras, que duras so as palavras que acabas de proferir, meu amigo. Como eu lamento a negligncia dos meus pais, que receberam essas honras dos antepassados e as perderam em meu prejuzo. (539-42). O discurso inverte alguns aspectos da orao fnebre de Pricles em Tucdides, que sublinhava o cuidado com aumentar o legado recebido pelos antepassados (SILVA, 2006, p. 91, nota 87). Qual o significado dessa mudana a que Aristfanes submete a passagem de Tucdides para a constituio da cidade utpica?

Pricles conclamou os seus ouvintes a que mantivessem firme o exemplo dos antepassados, quando enfrentaram os persas em situao muito mais desvantajosa do que aquela do momento em se punha a discursar. Na carncia de recursos, revelaram notvel resistncia e perseverana, desse modo suprindo com a vontade o que se escasseava materialmente. Espera que no falte aos atenienses tal resoluo, de modo a manterem intacto um imprio conquistado com tamanho sacrifcio no passado: And we must not fall short of their example, but must defend ourselves against our enemies in every way, and must endeavour to hand

44. Dunbar esclarece que o vocbulo olbos (felicidade), com esta acepo potica, surge, na obra de Aristfanes, apenas nesse passo de As aves (DUNBAR, 1998, p. 209).

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down our empire undiminished to posterity. (Th. 1. 144. 4) Na carncia, aumentada pela necessidade de se despojarem do pouco que possuam, os antepassados legaram as ddivas da prosperidade aos contemporneos de Pricles. mister mant-la, e erguerem-se altura dos desafios do momento. A nota predominante, assim como no passado, continua a ser o elogio do esprito resoluto, da determinao e do desapego, do esprito de sacrifcio, mais precisamente. o inverso o tom na histria das aves, segundo a pea de Aristfanes. No a firmeza, mas o carter tbio dos antepassados foi a causa da submisso no presente. Segue-se um gesto de dessacralizao do passado, atento, pelo riso, a um tema afim ao das Troianas, como veremos adiante: as perdas e dificuldades dos vencidos. Mas o que em Eurpides matria para a lamentao, eivada de desejos de uma outra histria, em Aristfanes o argumento para a encenao cmica e utpica do futuro. A esse respeito, Tiago Carvalho apresenta com preciso um dos temas mais importantes da pea e seus impasses: o do fundamento dos valores ticos em cidade fundada em bases pretensamente incorruptveis: h um nvel de corruptibilidade incorrigvel, quais os valores ticos universais a serem resgatados ou encontrados num outro lugar? (CARVALHO, 2014, p. 20). Embora a pea resista a oferecer uma resposta manifesta a essa questo, certo que a ela retorna recorrentemente.

Ante as promessas e ardis narrados por Pistetero, o coro entusiasma-se e afirma o interesse de firmarem acordo de auxlio mtuo (Ar. Av. 626-7). Entrev

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nessa aliana a possibilidade de tomar o poder aos deuses, e para isso julgam necessrio que se distribuam entre si os papeis nesse movimento: Tudo que precisa de ser ponderado e pensado, est nas tuas mos. (636-7). Pistetero sugere o nome da nova cidade, que prontamente aceito: Nefelocucolndia Nephelokokkygia (821). Durante os ofcios religiosos de fundao da cidade, diversas personagens surgem em cena, com o objetivo de tirar algum proveito do evento um poeta, um intrprete de orculos, Mton (um gemetra e astrnomo), um inspetor, o vendedor de decretos. Deve-se ainda mencionar a chegada do Sicofanta, expulso em cena marcada pelo riso e execrao desse tipo de ofcio: Pistetero afirma, aps haver empunhado um chicote: E se te pusesses a voar daqui para fora? Desandas ou no, maldito? J vais ver o que custa a arte de torcer a justia. (1466-8).

A chegada de ris (1202-1259) concentra a fora pardica e crtica da pea. Entra na cidade quando se dirigia aos mortais, com recado dos deuses, mas interrompida por Pistetero, que lhe informa das novas condies sociais e da nova soberania sobre os homens no mais exercida pelos deuses, e sim pelas aves. Ele responde sem temor s advertncias da deusa, e ameaa mesmo possu-la. A cena da deusa, a fugir assustada, d o tom da comicidade e inverso peculiares ao drama as aves no mais se submetem aos homens, homens e aves no mais se submetem aos deuses. A utopia que se encena assenta-se no ato de subverter a submisso. Se seria algo anacrnico aduzir a um quadro libertrio, delineiam-se de todo modo

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linhas de ruptura cujas potencialidades crticas o riso anima.

Prometeu (1494-1551), outro visitante, revela um comportamento acovardado, em tudo diferente do encontrado em squilo. Informa estarem os deuses enfraquecidos desde que perderam a hegemonia sobre os homens e os sacrifcios que deles recebiam. No esforo de modificar a situao, decidiram-se a enviar a Nefelocucolndia, segundo Prometeu, alguns embaixadores, que so Hrcules e Posdon (1564-1692). Estes propem a celebrao entre os divinos e as aves. Pistetero no v dificuldade em aceitar o alvitre, desde que a soberania do mundo passe de Zeus para as aves. Alm disso, exige casar-se com Realeza (Basileia) (1632-5), conforme Prometeu lhe insinuara antes (1135). Sela-se ento o acordo final, aps mltiplas negociaes. O matrimnio celebrado pelo Coro com poesia singular:

Para trs, afasta-te, desvia-te, d passagem. Esvoacem em redor de um homem feliz, a quem coube um feliz destino. Ena, que frescura! Que beleza! Que npcias promissoras as tuas para a nossa cidade! Grande, grande a fortuna que bafeja a raa das aves, graas a este homem. Vamos, com cantos de himeneu e odes nupciais saudemo-lo, a ele e Realeza. (1720-30).

A tonalidade festiva no basta para afastar a ambiguidade provocativa do enredo. A satisfao das

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expectativas utpicas dos protagonistas se efetivou quando se afastaram da concretude da vida da cidade, e ousaram selar em outro lugar, u-topos, a engenhosa estrutura social infensa aos vcios dos seus contemporneos. Que experimentassem as virtudes da poltica em espao distante da polis segreda o misto de expectativa e desconfiana em que timbram os versos de Aristfanes.

3. AS RUNAS DE TROIA E O LAMENTO-DESEJO DE OUTRA HISTRIA

A fora que o autor de As troianas empresta exposio dos sofrimentos infligidos por seus compatriotas cidadela de Troia convida ao exame diligente das suas motivaes. O sentido dessa elevada tessitura artstica trai em seus interstcios expectativas utpicas inauditas por seu olhar dirigido ao passado, ainda que mtico, em vez de simular nos planos do futuro suas esperanas e apostas. Pode-se demonstr-lo mediante dois elementos. Primeiramente, a cena da desolao dos vencidos permite imaginar possibilidades de uma outra histria. Sua tonalidade predominante lutuosa, no pica. Alm disso, o deslocamento temporal permite testemunhar em cena um determinado evento em estado de conflito, antes que as foras vencedores viessem a impor-lhe arranjo narrativo harmonioso, no interesse da legitimao da sua conquista. Desloca o seu pblico do presente at os planos mticos do passado, com vistas problematizao do estados de coisas do presente.

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Semelhante quebra permite divisar por entre as runas troianas certa expectativa de escrita de outra histria, que passe pelo enfrentamento do que foi e do que poderia ter sido.

Em As troianas, a centralidade da cena pertence a Hcuba, que rene em torno de si todos os fios e personagens da trama. Edith Hall sustenta acertadamente ser a rainha troiana a imagem por excelncia da sua prpria cidade cada (2010, p. 269). Do ponto de vista esttico e cnico, a pea conceder a Hcuba, a antiga rainha de Troia, humilhada e vencida, seus melhores versos e arte. Sublinha o compromisso do autor no com os seus compatriotas vencedores, e sim com as estrangeiras derrotadas. A protagonista acolhe em sua figura toda uma escala de sofrimentos, desde os pessoais e familiares, at os do seu povo os signos trgicos dos seus gestos bem o explicitam, o que faz coincidirem a perspectiva esttica e a poltica. Mas o seu perfil no se limita a simples abandono, uma vez que tambm profere palavras e delineia aes afins a uma personagem firme e decidida (PEREIRA, 1996, p. 15). notrio certo delineamento sofstico em suas palavras, embora o resultado revele-se sobremodo ambguo. Se por um lado fornece arma de crtica ao comportamento dos deuses ou, o que talvez seja mais exato, sua representao entre os homens , por outro lado esse racionalismo insuficiente para livr-la do desespero e da tentativa malsucedida de suicdio.

possvel adivinhar essa tonalidade j no prlogo da pea, quando se v Posidon a narrar a queda de

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Troia e o modo como os gregos se assenhorearam dos despojos da cidade vencida:

Desertos, os bosques sagrados e os templos dos deuses escorrem sangue; perto dos degraus da base do altar de Zeus, protector do lar, Pramo tombou morto. Ouro em abundncia e despojos frgios so carreados para as naus dos Aqueus. S aguardam o vento de popa para, enfim, passado o tempo de dez colheitas, reverem mulheres e filhos com alegria eles, os Helenos, os que marcharam contra a cidade de Tria aqui presente. (E. Tr. 15-2345)

Focaliza Hcuba, em desgraa (36: athlios). Perdeu quase tudo que tinha: familiares, amigos e a cidade. Outros sofrimentos iro somar-se sua vida, tais como o conhecimento da morte de Policena e o delrio de Cassandra, ambas suas filhas (36-44). Hcuba toma a palavra, em mondia46 na qual predomina a tonalidade

45. A traduo de que nos servimos a de Maria Helena da Rocha Pereira (EURPIDES, 1996). As citaes em grego procedem da edio de David Kovacs (EURIPIDES, 1999).

46. H uma nota esclarecedora de Peter Burian sobre esta mondia: Hecubas monody is a long, intense expression of grief, beginning (to judge from its meter) with recitative, then moving to full lyric mode at 122. Hecuba begins with her own sorrows; turn to songs to adress their cause, the Greek expedition against her city; and at 138 reverts to her own sorrows and those of the other women of Troy,

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do lamento, com efeitos dramticos intensos obtidos por meio da diversificao do metro. Ela uma desventurada (dysdaimon). Seus gestos sugerem abandono, so notveis signos trgicos da semiologia cuidadosa da pea: Levanta-te, desventurada! Ergue do solo / a cabea e o colo! (98-9). Elementos da queda individual e coletiva misturam-se: O que aqui est / j no Tria, nem eu sou de Tria a rainha. (99-100). Convm-lhe to somente enfrentar tamanha subverso em seu destino (metaballomenou daimonos anschou): Aguenta a mudana da fortuna! (101). arrasadora a perda que enfrenta, em notvel gradao de intimidade: Pois porque no h-de gemer esta infeliz, / A quem foge a ptria, os filhos, o esposo? (106-7) Vai-se assim do espao pblico ao familiar, e no interior deste, chega-se ao matrimonial. Qualifica de triste (elegos) o seu prprio canto: o canto triste do meu pranto sem fim! / Para os desgraados, at isso serve de msica, / entoar cantos de desgraa aos coros avessa. (119-21). O luto assume feio explcita em seu canto: Levam como escrava esta anci / para fora de casa, os cabelos devastados, / em sinal de luto, de causar d. (140-1) sob a figura do lamento (pentheres) que a antiga rainha de Troia assim se apresenta. Aps saber das temveis notcias do seu destino e dos seus familiares, ela ainda mais repercute os signos trgicos dos seus gestos, ao ferir com as unhas a sua pele, em sinal de luto: Ai! Ai! /

who enter in response to her lament. (BURIAN, 2009, p. 82).

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os autores que desenvolveram estudos em estreita ligao com as ideias de Bernays podem-se mencionar I. Bywater, Dirlmeier, H. Flashar, W. Schadewaldt, D. J. Lucas, W. Sffing. O quinto grupo salienta os componentes intelectuais que julga predominantes na catarse aristotlica, distinguindo-se, nesse sentido, das definies 2, 3 e 4, as quais mantinham um ponto indisputado, o da nfase na caracterizao da catarse centrada nas emoes: Such positions must not be simply equated with the general and independently important proposistion that the tragic emotions depend on cognitive judgements about the dramatic action. (HALLIWELL, 1998, p. 354). Sustentam semelhante perspectiva Leon Golden e Alexandre Nicev. Por fim, o sexto grupo focaliza espcie de feio dramtica ou estrutural desse tipo de estudo. O prprio Halliwell adverte tratar-se de uma terminologia mais solta. Corresponderia feio interna e externa da obra potica enquanto tal. Seu expoente moderno Else. Diversos classicistas acolheram esta proposta: Dring, N. van der Ben, H. D. Goldstein, H. D. F. Kitto.

Observemos um pouco mais pormenorizadamente algumas dessas propostas. O seu autor mais influente talvez seja Bernays, para quem o termo catarse, mormente na Poltica 873, assume matiz patolgico. A anlise dessa passagem concederia, segundo lhe parece, o contexto mais apropriado para o estudo da catarse

73. Bernays acerta na convocao de um exerccio comparativo sobremodo profcuo, embora no possamos aceitar a sua anlise da catarse aristotlica como intrinsecamente patolgica.

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trgica, a qual no teria o teor moralizante, tampouco hedonista, que se pretendeu conceder-lhe: But that is not the moralistic, nor as little the purely hedonistic; it is a pathological point of view. (BERNAYS, 2004, p. 325). Halliwell apresenta dois argumentos que evidenciam as fragilidades dessa posio. Primeiramente, no se adqua satisfatoriamente frase utilizada por Aristteles. Em segundo lugar, o fenmeno possui caractersticas homeopticas na Poltica 8, alm de servir-se mais extensamente do exemplo dos rituais: his primary illustration is a ritual process (reinterpreted psychologically), and medicine is brought in as a secondary comparison. (HALLIWELL, 1998, p. 354).

Lucas assume orientao anloga, ao supor haver um vnculo entre a catarse aristotlica e a teoria hipocrtica dos humores. Aristteles teve formao mdica, e estava familiarizado com a teoria hipocrtica dos humores que entravam na constituio do homem: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Especificamente com respeito a esta ltima, seu excesso poderia levar loucura. Um pequeno excedente inclina personalidade artstica, e o acompanha certa instabilidade e melancolia. Pessoas com personalidade anloga tendem a um excesso de compaixo e temor. A intensidade da reao a um determinado estmulo varia de acordo com a personalidade de cada pessoa se essa resposta revela-se excessiva, por fora de algum desequilbrio nos humores, necessitar de purificao/purgao. Segue que o desequilbrio dos humores, por favorecer a emergncias de emoes

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intensas, provocar alvio igualmente intenso com a sua descarga: So the release of accumulated pity and fear by pity and fear experienced in the theatre presents no problem. (LUCAS, 1980, p. 285).

Seguindo as sugestes de Else, de cuja interpretao, no entanto, afasta-se, Leon Golden julga ser metodologicamente recomendvel dedicar-se a uma leitura imanente da Potica (1962, p. 52). Os captulos 1 a 5 trataram da caracterizao da tragdia. Por meio da anlise da mmesis, Aristteles operou a distino entre os diversos gneros poticos cujo material se entretece com os trs tipos de imitao: meios, objetos e modo. O fato de a definio de tragdia apresentar-se a seguir, no captulo 6, e contar com o catarse no arremate da frase, seria evidncia da importncia do processo catrtico enquanto finalidade da tragdia: Thus its most logical function in the definition is to indicate some end, purpose or goal of the particular form of imitation which we call tragedy. (GOLDEN, 1962, p. 53). um argumento bastante razovel, mas que tem contra si a escassez da presena do termo, com o mesmo significado, na obra do filsofo grego. Logo no incio da Potica, o filsofo refere-se ao prazer que os homens sentem com o aprendizado pela imitao. Segundo Golden, este ensino liga-se inferncia do universal mediante casos individuais. a partir desse pano de fundo que se deve compreender, segundo o autor, a contraposio entre poesia e histria no captulo 9 da Potica. Servindo-se de evidncias do LSJ, que lista o significado do advrbio como clarificao, de teor intelectual, Golden observa:

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Thus it becomes possible to translate , on the basis of this evidence, as the act of making clear or the process of clarification by means of which something that is intellectually obscure is made clear to an observer. (GOLDEN, 1962, p. 57). Apesar do seu esforo, frgil a evidncia apresentada, assim como sob todos os aspectos pouco consistente a metodologia seguida, limitando-se to somente no estudo da Potica, especialmente por tratar-se de um filsofo de apurado senso sistematizante. Revela-se no mnimo inusitado submeter o impacto das emoes de piedade e medo ao trabalho cristalino de uma clarificao intelectual, pouco afeito precisamente ao concurso das emoes.

Alexandre Nicev concentra-se no exame da catarse trgica, que alega ser predominantemente tica, no sentido de focalizar sentimentos que afetam a alma do pblico. Em defesa da sua interpretao apresenta o argumento de que ao longo de toda a Potica o vocabulrio utilizado pelo filsofo marcado por preocupaes ticas. Os termos eleos e phobos ligam-se a um tipo de reao perante o comportamento moral do heri: tais sentimentos sont troitements lis au jugement du spectateur sur laspect moral du hros. (NICEV, 1982, p. 10). Um argumento que se pretende decisivo liga-se considerao de que rejeio platnica da poesia motivada por questes ticas, contrape-se a perspectiva aristotlica movida por interesse igualmente tico. Emoes e atividade intelectual ligam-se profundamente: Or, lactivit motionnelle de lhomme est indissolublement lie lactivit cognitive. Le spectateur smeut des

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sentiments qui sont suscits par des reprsentations et des ides. (NICEV, 1982, p. 11). Nesse sentido, a catarse trgica de que trata Aristteles na Potica no denota a depurao dos humores do corpo, pois seu objeto pertence ao mbito esttico, responsvel pela encenao de componentes vrios de natureza moral. O cume do arrazoado de Nicev revela-se na interpretao da natureza da purificao oferecida pela catarse trgica. Se em Plato a tragdia mostrava-se eticamente nociva74, em Aristteles, ao invs, possibilita certo aprimoramento tico ao purificar seu pblico de reflexes equivocadas. Nesse sentido, longe de imergir os homens na irracionalidade das emoes, eleva-os ao nvel racional da alma: Cette purification, lie la liquidation des points de vue fallacieux, signifie le triomphe de la partie raisonnable de lme, . (NICEV, 1982, p. 18). o espectador quem se purifica durante o processo catrtico, e no seus sentimentos. Tal significa livrar-se de sentimentos inoportunos. Esta proposta tem o mrito de sublinhar a dimenso tica e esttica da catarse, sendo, por isso, mais conforme ao sentido do texto do que a contribuio de Bernays e Lucas. Seu inconveniente recai na nfase extremada na primazia da inteligncia, falhando em conceder o necessrio relevo ao concurso

74. No captulo anterior tivemos ocasio de apresentar ressalvas caracterizao uniformemente antitrgica da obra platnica. A materialidade dos dilogos permitem surpreender ngulos que teimam em submeter o seu pensamento a um jogo de tenso e abertura.

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de emoes que, expressas com medida (mesotes), so essenciais ao exerccio da vida moral75.

Em busca de outras evidncias na obra aristotlica que pudessem lanar alguma luz sobre a presena escassa do termo na Potica, muitos estudiosos julgaram til esta passagem da Poltica, obviamente sem encontrar consenso, o que no surpreende em um tema marcado justamente por debates interminveis e amide contenciosos:

For the passion that occurs strongly in connection with certain sorts of souls is present in all [touto en pasais hyparchei]76, but differs by greater or less for example, pity and fear [eleos kai phobos], and further inspiration [enthousiasmos]. For there are certain persons who are possessed by this motion [hypo tautes tes kineseos], but as a result of the sacred tunes when they use the tunes that put the soul in a frenzy we see them calming down as if obtaining a cure and purification [hosper iatreias tychontas kai katharseos]. This same thing, then,

75. Por exemplo, considere-se esta observao acerca do medo: o homem corajoso manifestar medo tambm das situaes terrveis, mas ter medo como se deve ter medo e oferecer resistncia de acordo com o sentido orientador em vista do que nobre, porque este o fim da excelncia. (Arist. E. N. 1115b 11-14) traduo de Antnio Caeiro (ARISTTELES, 2012).

76. Utilizamos o texto grego da edio e traduo de H. Rackham (ARISTOTLE, 1959).

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must necessarily be experienced algo by the pitying and the fearful [tauto de touto anankaion paschein kai tous eleemonas kai tous phobetikous] as well as by the generally passionate [tous holos pathetikous], and by others insofar as each is individual has a share in such things, and there mus occur for all a certain purification and a feeling of relief accompanied by pleasure [kai pasi gignesthai tina katharsin kai kouphizesthai meth hedones]. In a similar way the purificatory tunes as well provide harmless delight to human beings. [homoios de kai ta mele ta kathartika parechei xharan ablabe tois anthropois] (Arist. Pol. 1342a 4-16)77.

Inicialmente Aristteles sustenta ser o impacto das emoes de piedade, temor e entusiasmo comuns a todos os homens. O curso da argumentao evidencia a distino entre piedade e temor (eleos kai phobos) e entusiasmo (enthousiasmos). Em seguida sustenta que certas melodias religiosas so exitosas na cura e catarse, mediante o xtase, de personalidades inclinadas a algum tipo de patologia na expresso do seu entusiasmo. Como se fossem submetidas a um tratamento mdico, reequilibram-se momentaneamente. Algo similar observa-se entre aqueles movidos por demonstraes desmedidas de piedade e temor. Mas o aspecto mais importante desse trecho foi em grande medida

77. Traduo de Carnes Lord (ARISTOTLE, 1984).

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observado com acerto por Carnes Lord, quando buscou esclarecer o liame entre essa reflexo e a catarse trgica. Trata-se das duas ltimas sentenas, quando Aristteles sublinha que todos os homens podem usufruir do estmulo da piedade e do medo, ocasio em que sentem prazer e alvio, embora as melodias que suscitam essas emoes no produzam exatamente catarse entre os homens tidos como normais: In a similar way, the cathartic tunes too the tunes which effect the catharsis of pathological enthusiasm provide pleasure to normal individuals. (LORD, 1982, p. 134). Lord tem razo em recusar-se interpretao mdica da catarse trgica em Aristteles, pois as emoes em pauta se recomendam a todos os homens, e no apenas queles aparentemente atingidos por alguma patologia.

Halliwell sustenta que a anlise cerrada da Potica, se articulada com outras obras de Aristteles, especialmente a Retrica, a Poltica e a tica, oferecem elementos para uma compreenso algo articulada da concepo esttica aristotlica, a qual se pode encarecer por evitar seja o moralismo, seja a proeminncia de aspectos formais (HALLIWELL, 1998, p. vii). Essa proposta tem ainda a vantagem de oferecer um caminho propcio ao estudo do valor cognitivo que o filsofo grego concedia s emoes. Nesse sentido, afasta-se fundamentalmente de Plato, pois se recusa a promover a ciso entre emoes e pensamento, ao invs, toma-os como instncias interdependentes. Piedade e medo, por exemplo, configuram responses to reality which are possible for a mind in which

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thought and emotion are integrated and interdependent (HALLIWELL, 1998, p. 173). O requisito de inteligibilidade, com o qual se ligam emoes e pensamento, faz recair a nfase sobre o gnero de resposta a uma ao claramente estruturada, da qual pode emergir a compaixo pelo sofrimento imerecido de uma determinada personagem. Compaixo e temor emergem ainda mediante a ntima inter-relao entre a tristeza pelo sofrimento de outrem e o fato de imaginar-nos que tais desventuras poderiam recair sobre ns mesmos. Tal implica a conjuno de traos objetivos e subjetivos no artesanato do enredo trgico, o que refutaria a nfase em comportamento exclusivamente altrusta do pblico e leitores: This intertwining of pity and fear, and of objective and subjective elements in Aristotles conception of the tragic experience, should act as a strong caution against attempts to reduce this conception to an exclusively altruistic one. (HALLIWELL, 1998, p. 177)

a partir desse quadro mais amplo do liame entre emoes e cognio que o estudo da catarse pode revelar seu interesse filosfico ainda relevante. Esse tema associa-se ao empenho de Aristteles por refutar a crtica platnica aos efeitos psicolgicos da tragdia. Halliwell pontua que um modo especialmente revelador dessa diferena observa-se na influncia da msica sobre a alma, a que o estagirita atribui acento positivo. No livro 8 da Poltica encarece os efeitos dessa arte, por sua capacidade de moldar a alma humana. Reside na estrutura da mmesis o que move os ouvintes em direo empatia e influncia

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da msica: The channel for this influence is mimesis, by which the emotions and ethical character enacted in the music are sympathetically experienced by the hearer too. (HALLIWELL, 1998, p. 190). Halliwell alm disso sublinha algumas implicaes positivas do fenmeno catrtico segundo Aristteles. Em primeiro lugar, produz alvio de sentimentos que de outro modo promoveriam toda sorte de desequilbrio psquico, argumentao com a qual pretende oferecer justo reparo s ressalvas platnicas. Em segundo lugar, no obstante Plato e Aristteles se servirem de vocabulrio mdico, convm nos prevenirmos contra uma interpretao exclusiva ou precipuamente mdica dessa passagem. por meio de evidente analogia que essa linguagem se apresenta: This is immediately clear from the fact that Aristotle presents the point as an analogy: those involved find a medical cure, as it were, and a katharsis (1342a 10f ). (HALLIWELL, 1998, p. 193). O autor da Potica articula, com feio prpria, componentes rituais e mdicos com os quais pretende conceder relevo sua interpretao da catarse. Por fim, em conformidade com o interesse aristotlico pelas emoes, trata-se de um encaminhamento homeoptico da questo da catarse, com a qual se proveem meios de se modificarem as emoes por meio de emoes.

A interpretao assim proposta por Halliwell apresenta contraposio persuasiva leitura predominantemente mdica da catarse. Afirma haver estreita relao entre catarse e tica, embora no se possa falar em identificao, o que implica pressupor

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TTULOS

Compndio da arte militarVegcio

A beleza e o mrmore: o tratado De Architectura de Vitrvio e o RenascimentoMrio Henrique S. DAgostino

Arquitetura do Oriente Mdio ao Ocidente: a transferncia de elementos arquitet-nicos atravs do Mediterrneo at FlorenaAndrea Piccini

RetricaAdma Muhana, Mayra Laudanna, Luiz Armando Bagolin (orgs.)

Nos passos de Homero: ensaios sobre performance, filosofia, msica e dana a partir da AntiguidadeMarcus Motta

COLEO ARCHAI

As origens da alma: os gregos e o conceito de alma de Homero a AristtelesThomas M. Robinson

PlatoFranco Trabattoni

Ensaios sobre o tempo na Filosofia Antiga Fernando Rey Puente

Um paradigma no cu: Plato poltico, de Aristteles ao sculo XXMario Vegetti

Plato e o orfismo: dilogos entre religio e filosofia Alberto Bernab

A potncia da aparncia: um estudo sobre o prazer e a sensao nos Dilogos de PlatoFernando Muniz

Verso integral disponvel em digitalis.uc.pt

Plato: helenismo e diferena razes culturais e anlise dos dilogosMaria Teresa Nogueira Schiappa de Azevedo

O prazer, a morte e o amor nas doutrinas dos pr-socrticosGiovanni Casertano

PlatoMichael Erler

O exerccio da razo no mundo clssico perfil de Filosofia AntigaPierluigi Donini e Franco Ferrari

Plotino, escultor de mitosLoraine Oliveira

O pensamento mtico no horizonte de PlatoJaa Torrano

Catbases: estudos sobre viagens ao inferno na AntiguidadeEudoro de Sousa

CLASSICA DIGITALIA BRASIL

Banquete Apologia de Scrates Xenofonte

Cidadania e Paideia na Grcia Antiga Delfim Ferreira Leo, Jos Ribeiro Ferreira e Maria do Cu Fialho

O pitagorismo como categoria historiogrficaGabriele Cornelli

Orao contra Lecrates Licurgo

O Truculento Plauto

MemorveisXenofonte

Vidas Paralelas: Alcibades e Coriolano Plutarco

Obras Morais: o banquete dos sete sbios Plutarco

Obras Morais: como distinguir um adulador de um amigo; Como retirar benefcios dos inimigos; Acerca do nmero excessivo de amigos Plutarco

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Obras Morais: dilogo sobre o Amor; Relatos de amorPlutarco

Plutarco e as artes: pinturas, cinemas e artes decorativas Lusa de Nazar Ferreira, Paulo Simes Rodrigues e Nuno Simes Rodrigues

REVISTA ARCHAI

Volumes I a XII, semestral, desde julho de 2008.

PORTVGALIAE MONVMENTA NEOLATINA

Misso dos embaixadores japoneses curia romana, v. IDuarte de Sande

Misso dos embaixadores japoneses curia romana, v. IIDuarte de Sande

As antiguidades da LusitniaAndr de Resende

Opera Omnia, parfrases a Job e sabedoria de SalomoJernimo Osrio

Sedecias, teatroLus da Cruz

MetafsicaLus Antnio Verney

Obra literria, prosa latina, v. IJernimo Cardoso

Obra literria, poesia latina, v. IIJernimo Cardoso

Correspondncia latinaDamio de Gis

LgicaLus Antnio Verney

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