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143 volume 8 número 1 2004 OSWALDO PORCHAT PEREIRA Oswaldo Porchat Pereira USP VOLTANDO À DIALÉTICA DE ARISTÓTELES Réplica a Marco Zingano 1. A OBJEÇÃO ZINGANIANA Consagrei meu livro Ciência e Dialética em Aristóteles 1 à análise e elucidação da doutrina aristotélica da ciência, dedicando seu último capítulo, o cap. VI, ao problema da apreensão dos princípios da ciência, certamente um dos problemas mais difíceis da doutrina do filósofo, objeto permanente de grandes controvérsias na historiografia aristotélica. Nesse capítulo, procurei mostrar a complemen- taridade entre a dialética e a analítica, a dialética constituindo-se como uma propedêutica à ciência, uma propedêutica capaz de propiciar as condições para a apreensão dos princípios pela inteligência ou intuição (noûs), sobre os quais se construirão o edifício científico e seu discurso demonstrativo. Numa sinopse so- bre o livro 2 (cf. CDA, p. 18), escrevi: “O cap. VI, que trata da apreensão dos princí- pios, e a Conclusão constituem a parte crucial da tese e contêm sua contribuição mais importante para a compreensão da filosofia aristotélica.” O elegante artigo de Marco Zingano 3 , a que estou agora respondendo, mos- tra que não consegui convencê-lo acerca daquilo mesmo que eu tenho como o re- (1) Porchat Pereira, Oswaldo, Ciência e Dialética em Aristóteles, Editora Unesp, 2000, São Paulo. Doravante me referirei a esse livro pela sigla “CDA”. (2) Redigi essa sinopse a pedido de José Arthur Giannotti, que jovialmente a transformou no núcleo mesmo de sua apresentação de meu livro (cf. CDA, p. 15-20). (3) Zingano, Marco, “Dialética, Indução e Inteligência na Aquisição dos Primeiros Princípios”, aci- ma, p. 27-41. As referências feitas neste texto remetem a essa paginação.

Oswaldo Porchat - Voltando a Dialética de Aristóteles

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Artigo do professor Oswaldo Porchat, em resposta ao comentário de Marco Zingano ao livro Ciência e dialética em Aristóteles.

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    OSWALDO PORCHAT PEREIRA

    Oswaldo Porchat Pereira

    USP

    VOLTANDO DIALTICADE ARISTTELESRplica a Marco Zingano

    1. A OBJEO ZINGANIANAConsagrei meu livro Cincia e Dialtica em Aristteles1 anlise e elucidao

    da doutrina aristotlica da cincia, dedicando seu ltimo captulo, o cap. VI, aoproblema da apreenso dos princpios da cincia, certamente um dos problemasmais difceis da doutrina do filsofo, objeto permanente de grandes controvrsiasna historiografia aristotlica. Nesse captulo, procurei mostrar a complemen-taridade entre a dialtica e a analtica, a dialtica constituindo-se como umapropedutica cincia, uma propedutica capaz de propiciar as condies para aapreenso dos princpios pela inteligncia ou intuio (nos), sobre os quais seconstruiro o edifcio cientfico e seu discurso demonstrativo. Numa sinopse so-bre o livro2 (cf. CDA, p. 18), escrevi: O cap. VI, que trata da apreenso dos princ-pios, e a Concluso constituem a parte crucial da tese e contm sua contribuiomais importante para a compreenso da filosofia aristotlica.

    O elegante artigo de Marco Zingano3 , a que estou agora respondendo, mos-tra que no consegui convenc-lo acerca daquilo mesmo que eu tenho como o re-

    (1) Porchat Pereira, Oswaldo, Cincia e Dialtica em Aristteles, Editora Unesp, 2000, So Paulo.Doravante me referirei a esse livro pela sigla CDA.(2) Redigi essa sinopse a pedido de Jos Arthur Giannotti, que jovialmente a transformou no ncleomesmo de sua apresentao de meu livro (cf. CDA, p. 15-20).(3) Zingano, Marco, Dialtica, Induo e Inteligncia na Aquisio dos Primeiros Princpios, aci-ma, p. 27-41. As referncias feitas neste texto remetem a essa paginao.

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    sultado mais importante de minha pesquisa sobre a filosofia de Aristteles. De-fendi a tese de que o conhecimento dos princpios emerge da argumentaodialtica sem ser engendrado por ela (CDA, p. 272); Zingano, que cita essa frase(cf. p.29), julga-a crptica e diz (cf. p. 33) temer que a dialtica nem isso faa, ou ofaa muito pouco. No lhe parece, com efeito, que o filsofo tenha encarregado adialtica de to peregrina incumbncia, a de encontrar os primeiros princpios,tampouco mesmo a de faz-los emergir para serem vistos pela inteligncia (cf. p.36). Ele se declara (cf. p. 41) ctico quanto minha interpretao do cap. 2 do livroI dos Tpicos, um texto que eu particularmente valorizo e que me serviu de pontode partida para minha leitura da dialtica aristotlica; seu ceticismo parece esten-der-se, alis, a toda essa leitura. Isso me faz prognosticar que esta rplica, porqueto breve, ser tambm insuficiente para persuadi-lo e confesso que no me sintocapaz de curar esse seu ceticismo. Mesmo assim, porque a esperana a ltimaque morre, vou examinar com cuidado suas objees, procurar dar-lhes respostapertinente e tentar persuadi-lo de que tenho razo...

    Zingano estrutura seu texto em trs partes (cf. p. 27): comea por expor mi-nha tese, o que faz de modo plenamente adequado (cf. p. 27-31); em seguida ana-lisa o cap. 2 do livro I dos Tpicos (cf. p.31-36), comeando por dele reproduzir mi-nha traduo (proposta em CDA, p. 356) para, em seguida, coment-lo, procuran-do mostrar que minha interpretao dessa passagem problemtica e que nocabe a buscar, como pretendo, um ensinamento importante acerca da competn-cia da dialtica para ensejar a apreenso dos princpios das cincias; a terceiraparte do texto de Zingano (cf. p. 36 seg.) consagrada ao exame de dois exemplosaristotlicos do uso da dialtica a propsito dos primeiros princpios (Met. gama,4 e Fs. I, 2-3, respectivamente), apoiando-se o autor nesses dois textos para corro-borar sua tese minimalista sobre o papel da dialtica: A dialtica tem sua utilida-de, a de pr tudo prova, mas, no tocante aquisio dos princpios, seu papelno parece poder responder ao que lhe requerido, embora possa sempre dizeralgo a respeito dos princpios. (cf. p. 41, ad finem).

    Antes de seguir adiante, quero enfatizar que Zingano e eu estamos inteira-mente de acordo sobre qual era a exata natureza do problema em pauta, para o

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    qual meu livro se props como soluo (cf. Zingano, p. 27-29): o de tentarreconstituir a doutrina aristotlica acerca da aquisio dos primeiros princpiosindemonstrveis das cincias, que o difcil e controverso cap. 19 de Seg. Anal. IIatribui (cf. 100 b3-4) competncia da induo (epagog), poucas linhas antes dedizer que deles h intuio ou inteligncia (nos), que esta o princpio da cin-cia e o princpio do princpio (cf. 100 b14-16). A dificuldade do problema resi-dindo, ento, em descobrir como conciliar o mtodo indutivo com a funocognitiva da inteligncia (cf. CDA, p. 353; Zingano, p. 29). Conforme minha in-terpretao, que Zingano sucintamente resume com pertinncia, a soluo doproblema induo-intuio se encontra na dialtica de Aristteles, a qual, prati-cando um mtodo indutivo (por isso falei em mtodo dialtico-indutivo) e me-diante o uso de uma argumentao crtica e diaporemtica, prepara o caminhopara que se d, finalmente, a intuio dos princpios, que assim emerge da pr-tica dialtica (cf. CDA, p. 387).

    2. Em torno de Tp. I, 2Comecemos por examinar o que Zingano nos diz acerca de Tp. I, 2. Parece-

    me conveniente, tendo em vista facilitar ao leitor a boa inteligncia tanto de seucomentrio quanto de minha rplica, que tambm eu repita aqui a traduo dessapassagem (101 a25-b4) proposta em CDA, juntamente com os numerais romanosque Zingano introduziu ao reproduzi-la (cf. p. 32), para assinalar os oito momen-tos sucessivos que distingue no texto:

    Em seguida ao que foi dito, deve dizer-se para quantas e quais coisas til este tratado.Ele o para tres coisas: para exerccio, para os encontros casuais, para ascincias filosficas. Que til para exerccio manifesto a partir do que j foi dito: comefeito, possuindo um mtodo, poderemos mais facilmente argumentar sobre o problemaproposto. Para os encontros casuais, porque, tendo inventariado as opinies da maioriados homens, por-nos-emos em relao com eles, apoiados, no em pontos de vista quelhes so estranhos, mas nos seus prprios, fazendo mudar o que no nos paream dizercorretamente. Para as cincias filosficas, porque, sendo capazes de percorrer as

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    aporias em ambos os sentidos, perceberemos mais facilmente, em cada caso, o verdadei-ro e o falso; tambm no que concerne s primeiras dentre as proposies que respei-tam a cada cincia. De fato, impossvel, a partir dos princpios apropriados cinciaem questo, dizer algo sobre eles mesmos, uma vez que os princpios so primeiros den-tre todas as proposies; mas por meio das proposies aceitas a respeito de cada pon-to que necessrio discorrer sobre eles. Ora, esta a tarefa prpria, ou mais apro-priada, dialtica, pois, de natureza perquiridora, ela possui o caminhoque leva aos princpios de todas as doutrinas cientficas.

    A leitura de ZinganoZingano no se demora em comentar i e ii, j que no dizem respeito utili-

    dade da dialtica para as cincias, questo introduzida por iii. Lembra (cf. p. 32)que, para mim, iii se explica em iv, que fala da facilidade que o mtododiaporemtico proporciona para a percepo do verdadeiro e do falso, e em v.Entende (cf. p. 32-33), porm, que iv, falando apenas do auxlio que a dialticafornece para a soluo das aporias, andino, isto , sem maior importncia, comrelao a v, onde se v que a dialtica tambm til no tocante aos primeirosprincpios de cada cincia. Parece-lhe sensato que o que o texto diz sobre essautilidade da dialtica se estenda igualmente aos primeiros princpios de todas ascincias, como o princpio de no-contradio (cf. p. 33). O que resta saber, conti-nua Zingano, se a incumbncia atribuda dialtica por v (ao diz-la til no queconcerne aos princpios), uma tarefa exclusiva da dialtica ou pode ser parti-lhada por outra faculdade no caso, a inteligncia, qual caberia ver o que insi-nua a dialtica.

    No estando seguro de que esse texto possa certificar to elevada tarefa dialtica, Zingano cita (cf. p.33-35) R. Smith4 , de quem primeiro recusa, a meuver com toda a razo, a tese de que a utilidade da dialtica para a obteno dosprincpios, de que trata o texto de Tp. I, 2, concerne aos princpios comuns e noaos princpios prprios de cada cincia. Para, em seguida, contra a minha leitura,

    (4) Smith, R., Aristotle on the uses of dialectics, Synthse 96, 1993, p. 335-358.

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    apoiar o que considera a contribuio importante de Smith para o problema empauta: Aristteles teria to-somente atribudo dialtica o poder dizer algumacoisas sobre os princpios, o que no equivalente a estabelec-los (cf. p. 33, n.4).Isso tem a ver com a passagem de 101 b3-4 de Tp. I, 2, correspondendo ao pontoviii demarcado por Zingano, na qual o filsofo, tendo dito ser a dialtica de natu-reza perquiridora (exetastik), conclui: prs ts hapasn tn methdon arkhs hodnkhei. Eu traduzi: possui o caminho que leva aos princpios de todas as doutrinascientficas; mas Zingano traduz de outra maneira: tem a ver com os princpiosde todas as disciplinas (cf. p. 34). Ele recusa a traduo de hodn khei por pos-sui o caminho porque, assim diz, em portugus, possuir caminho uma versodiscreta de ter a chave e eu estaria, ento, asserindo que a dialtica tem a chavedos princpios; lembra tambm que, em v, Aristteles fala da impossibilidadede, a partir dos princpios apropriados cincia em questo, dizer algo (eipen ti)sobre eles mesmos e entende que o filsofo quer apenas indicar que a dialticapode dizer algo sobre os princpios, algo que parece ser bem mais modesto doque a estrada pavimentada para a descoberta dos princpios (cf. p. 35). A expres-so hodn khei parece-lhe idiomtica e ele recorre, com o fim de corroborar seuponto de vista, a um outro texto aristotlico (Met. I, 4, 1055 a6-7), onde o filsofo, apropsito das diferenas quanto ao gnero, diz que elas ouk khei hodn eis llela.Para Zingano, o ponto, porm, no que no tm a chave umas das outras, massim que no tm nada a ver umas com as outras, ou, em outros termos, no secomunicam (cf. ibid.).

    Aristteles diz, em iv, que a dialtica til para as cincias filosficas devi-do sua capacidade de argumentar diaporematicamente e de perceber, com maisfacilidade, o verdadeiro e o falso em cada caso e, logo a seguir (em v) que ela util, tambm, no que concerne s proposies primeiras de cada cincia. ParaZingano, esta passagem de iv a v o ponto mais importante (cf. ibid.) e, enquantoeu entendo que h uma clara continuidade entre iv e v, Zingano pensa, ao con-trrio, que h um forte indcio, no texto grego, de o ponto v ter sido acrescentadocomo se fosse um afterthought. Lembra o fato de v ser introduzido pela expressoti d (ainda, na minha traduo) e afirma que Aristteles, no incio do texto, fa-

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    lara de tres utilidades da dialtica, mas acabou listando quatro. E apia-se numtexto de J. Brunschwig5 , cujos argumentos, a respeito dessa passagem, ele endos-sa: 1) iv no faz referncia a um uso relativo aos primeiros princpios; 2) a expres-so ti d, que introduz v, assinala normalmente a introduo de um ponto novo;3) a percepo do verdadeiro e do falso, de que fala iv, algo geral e pode ocorrerem qualquer nvel, enquanto v fala de algo muito especial, o papel da dialtica arespeito dos primeiros princpios; e 4) o uso da dialtica em iv no indispens-vel, embora parea indispensvel seu uso para a tarefa indicada em v. Parece aZingano que tais argumentos, tomados em conjunto, so muito convincentes,mesmo que nenhum deles seja suficientemente forte, considerado isoladamente.Assim, como se v tivesse sido acrescentado por Aristteles lateralmente.

    Zingano, por certo, no recusa a utilidade da dialtica no tocante aquisiodos princpios das cincias. Entende (cf. p.40)6 , porm, que seu papel meramen-te negativo, que sua caracterizao pelo filsofo como perquiridora (exetastik), emvii (cf. Tp. I, 2, 101 b3), faz provavelmente aluso ao comportamento dialtico deScrates, um comportamento negativo que visava silenciar, solapar, no cons-truir ou avanar. E cr que assim interpretar a utilidade da dialtica para a aqui-sio dos princpios esclarece plenamente o sentido de vi (b2-3), quandoAristteles diz que a tarefa que a dialtica a desempenha lhe prpria (dion), oumais apropriada (oikeon). Zingano menciona as duas possibilidades de interpreta-o desta caracterizao da dialtica levantadas por J. Brunschvicg7 : pode-se per-guntar se Aristteles est falando de uma tarefa propriamente dialtica, em compa-rao com as outras tarefas da dialtica; ou de uma tarefa exclusiva da dialtica(ou, pelo menos, mais apropriada a ela), em comparao com outros eventuais

    (5) Brunschvicg, J., Dialectique et philosophie chez Aristote, nouveau, em Cordero, Nestor-Luis(ed.), Ontologie et Dialogue-mlanges em hommage Pierre Aubenque, Vrin, Paris, 2000, p. 107-130.(6) Zingano desenvolve estas consideraes, que exponho a seguir, a partir de seus comentrios aMet. gama, 4 e Fs. I, 2-3, de que falarei mais adiante.(7) Cf. Aristote, Topiques, tome I, Livres I-IV, texte tabli et traduit par J. Brunschvicg, Paris, Societddition Les Belles Lettres, 1967, p. 117, n. 2.

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    meios de acesso aos princpios. Zingano concorda com Brunschvicg em que sedeve preferir esta segunda possibilidade. E, para ele, minha interpretao se que estou lendo bem seu texto torna enigmtica a passagem (cf. p. 40-41), issoporque, se a dialtica apenas faz emergir os princpios, sem engendr-los, e se elacede lugar inteligncia, que viso dos princpios, no se entende que esta tare-fa seja dita mais apropriada dialtica, j que sua funo meramentepropedutica. Entretanto, pensa Zingano, se a funo perquiridora da dialtica entendida em sua natureza negativa, se lembramos que prprio daperquirio socrtica, ou lhe mais apropriado, a destruio sistemtica das cren-as de seus interlocutores, compreendemos que o filsofo, ao usar as expressesprpria, ou mais apropriada, est efetivamente comparando a dialtica com ou-tros meios de acesso aos princpios, se est reservando a possibilidade de umoutro acesso, que no pode ser outro seno a inteligncia.

    Comentando a leitura de ZinganoTenho vrias coisas a dizer a respeito dessa anlise que Zingano faz de Tp.

    I, 2. Por enquanto, atenho-me a alguns pontos. No que concerne sua afirmaode que iv andino em relao a v, pois trata apenas da contribuio da dialticapara a soluo das aporias, concedo facilmente que a redao de iv no nos per-mite imediatamente dizer que a questo dos princpios esteja a sendo aventada,mesmo que de modo apenas indireto; voltarei adiante a esse ponto. No que res-peita extenso aos princpios comuns, como o de no-contradio, do queAristteles diz acerca da utilidade da dialtica para o conhecimento dos princpi-os das cincias Zingano diz ser sensato proceder a uma tal extenso , concordointeiramente com ele. Alis, iii (cf. 101 a27-28) diz ser a dialtica til para as cin-cias filosficas (prs ts kat philosophan epistmas) e a teologia ou filosofia primei-ra (que lida com o ser que separado e imvel, divino, mas tambm com o serenquanto ser) uma das tres cincias que Aristteles chama de tericas (cf.,por exemplo, Met. E, 1 e K, 7), certamente uma cincia filosfica. E ns sabe-mos por Met. gama, 3 (cf. 1005 a19-25) que cabe cincia do filsofo estudar osaxiomas ou princpios comuns, porque pertencem a todos os seres, so atributos

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    do ser enquanto ser. Para no falar do tratamento dialtico dos grandes princpioscomuns em Met. gama, 3 e nos captulos seguintes.

    Um terceiro ponto que quero aqui abordar na anlise zinganiana de Tp. I, 2concerne traduo de hodn khei em viii (cf. 101 b4). Em primeiro lugar, discor-do bastante da equiparao feita por Zingano entre a expresso possui o cami-nho, que utilizei em minha traduo, e uma expresso como ter a chave, toma-da em sentido forte. Quando se tem a chave, de uma porta por exemplo, pode-se utiliz-la para abrir a porta, pode-se dizer que o acesso ao recinto de que setem a chave est, por assim dizer, garantido. Mas o acesso a um lugar a que umcaminho leva nunca est garantido pelo fato de ter-se este caminho: este no pre-cisa ser pavimentado e fcil, como o quer Zingano, mas pode, ao contrrio, ser pe-dregoso e difcil e arriscado, sem que se tenha qualquer garantia de que, trilhan-do-o, chegaremos ao fim almejado; obstculos mil podem surgir, eventualmentecapazes de fazer fracassar nossa empresa. Jamais pretendi, em CDA, que o percur-so dialtico em busca dos princpios conduza necessariamente sua aquisio econhecimento. Defendi, por certo, a tese de que a dialtica uma propedutica cincia, um mtodo preliminar de argumentao, contraditrio e crtico, que labo-riosamente prepara o terreno para uma viso posterior cujo advento ele ter tor-nado possvel, que o conhecimento dos princpios emerge da argumentaodialtica sem ser engendrado por ela (cf. CDA, p. 372, Zingano, p. 29). No entanto,consagrei tambm uma seco inteira de meu livro (em verdade, sua ltimaseco, que intitulei A doutrina da cincia e a problemtica do critrio, cf. CDA, p. 400-409) a mostrar que no uso propedutico de sua lgica, Aristteles no viu, porcerto, a garantia infalvel de um xito absoluto, nem julgou tampouco fossem asevidncias subjetivas que acompanham as pretensas intuies dos princpiosimediatos critrios irrecusveis da posse da verdade buscada; sob esse prisma lcito dizer que, do mesmo modo como Plato, no nos oferece Aristteles nenhu-ma garantia absoluta de que, numa circunstncia particular determinada, se estejaefetivamente configurando o funcionamento adequado de um critrio de verda-de. Mas nem por isso se persuadiu menos de que, graas aos trabalhos prelimina-res de natureza indutivo-dialtica, orientadas pela doutrina da cincia, muitas

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    vezes possvel superar a servido natural do conhecimento humano. E quis dei-xar-nos, no apenas a teoria mas, tambm, exemplos concretos da prtica dessasuperao. (cf. CDA, p. 407).

    Nessas pginas finais de CDA, procurei, portanto, mostrar um Aristtelesem guarda contra as iluses da cientificidade aparente (cf. p. 402), condenando osque, crendo possuir princpios verdadeiros, em torno deles montam guarda eignoram que um eventual desmentido oposto pelos fenmenos doutrina in-dcio suficiente de que se deve modestamente retomar o caminho da investigaoe reconhecer a no-cientificidade do que se nos afigurara cientfico, a no-intuitividade do que nos parecera o objeto de uma inteligncia luminosa (cf. p.402). E citei uma passagem importante de Seg. Anal. I, 9 (cf. 76 a26-28): difcilsaber se se conhece, ou no; difcil, com efeito, saber se conhecemos a partir dosprincpios de cada coisa, ou no; o que , precisamente, o conhecer (cf. p. 404).Se, ao lado disso, procurei mostrar que a perspectiva do filsofo permanece in-variavelmente otimista (cf. p. 405), se defendi a idia de que a leitura de suasobras cientficas nos informa suficientemente de que ele pretende, ao menos noque concerne a certos problemas fundamentais de seus domnios, ter levado abom termo a explorao dialtica preliminar e ter sido capaz de efetuar, com cor-reo, a escolha do verdadeiro, mediante uma viso notica dos princpios (cf. p.406-407), tambm deixei manifesto que a busca dialtica dos princpios pode nolevar ao seu conhecimento, de que podemos eventualmente perder-nos no cami-nho que ela nos abre, incapacitados para chegar ao seu fim. Possuir o caminhoe ter a chave so metforas e nada nos probe que dela nos sirvamos, que asusemos, inclusive, uma pela outra em certos contextos. Mas seus usos so, nomais das vezes, diferentes e bom atentar para essas diferenas.

    Aristteles, em v, nos diz que no se pode dizer algo sobre os princpiosapropriados de uma cincia a partir deles mesmos e Zingano prope, como vi-mos, que se entenda hodn khei (possui o caminho, na minha traduo) em viii,como diz algo, ou tem a ver, expresses que julga mais modestas queaquela primeira: o filsofo estaria apenas afirmando que a dialtica tem a capaci-dade de dizer algo sobre os princpios, que ela tem a ver com eles. Ora, estas

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    expresses diz algo e tem a ver so to vagas e se podem corretamente usarpara significar tantas coisas que no me parece pertinente discutir sobre elas.Concordo, sim, em que a dialtica capaz de dizer algo sobre os princpios etem a ver com eles, embora reconhea que estou usando aqui essas expressesnum sentido mais forte que aquele que Zingano lhes confere: pois o que tenhoem mente que a dialtica, atravs de argumentao e crtica, eventualmente ca-paz de criar as condies para que a inteligncia possa apreender os princpios,que ela, nesse sentido, possui o caminho que pode levar a essa apreenso deles,ela prepara o terreno para tal apreenso, ela deles se acerca pouco a pouco, eladiz algo sobre eles, ela tem a ver com eles. O que claramente bem diferente deestabelecer os princpios.

    Quero tambm dizer algo sobre o texto de Met. I, 4, 1055 a6-7, utilizadopor Zingano para exemplificar o que seria um outro emprego de hodn khei emsentido fraco. Todo o cap. I, 4 dedicado noo de contrariedade e, em seumesmo incio (cf. 1055 a3-10), Aristteles nos explica que a contrariedade amaior diferena que pode haver entre coisas que diferem uma da outra, que coi-sas que diferem quanto ao gnero ouk khei hodn eis llela, esto muito distantesentre si e no so comparveis; por outro lado, nas coisas que diferem quanto espcie (encontrando-se, portanto, no interior de um mesmo gnero), os contr-rios so os pontos de partida e os extremos dos processos de gerao (gnesis)que levam de umas s outras, a distncia entre os extremos ou contrrios sendoaqui a mxima (exemplos dessas passagens de um extremo a outro seriam as domaior ao menor, do frio ao quente, do bom ao mau, de um estado de privao,em geral, a um estado de posse, ou as passagens inversas). Como interpretar oukhkhei hodn eis llela a propsito daquelas coisas que se encontram em gnerosdiferentes? Zingano prope que se traduza por algo como no tm nada a verumas com as outras (cf. p. 35), mas confesso que essa traduo me parece de-masiado livre; isso porque o que o filsofo est claramente dizendo que, aocontrrio do que se passa com os contrrios no interior de um mesmo gnero,no h passagem de umas a outras, no h processos de gerao que, partin-do de umas, produzam as coisas contrrias. Isto : no h caminho que leve de

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    umas s outras, elas no possuem caminho de umas s outras; assim, a met-fora da posse de caminho aparece-me como plenamente adequada para signifi-car o que o filsofo nos est explicando.

    Por fim, h dois textos importantes de Aristteles acerca do caminho (hods)em direo aos princpios que Zingano no levou em considerao. Com efeito,em t. Nic. I, 4, 1095 a30 seg., em meio a uma investigao que busca a definiodo Bem para o homem, princpio primeiro da cincia moral, o filsofo ope o ca-minho (hods) que procede dos princpios (portanto, o da cincia demonstrativa),ao caminho que leva aos princpios, propondo que comecemos a investigao apartir das coisas que conhecemos. E, no incio mesmo da Fsica (cf. I, 1, 184 a10-23),falando agora dos princpios da cincia fsica, expe a mesma doutrina: toda cin-cia constri seu conhecimento a partir dos princpios, mas o caminho natural oque vai das coisas mais conhecveis e mais claras para ns em direo s mais cla-ras e mais conhecveis por natureza (cf. a16-18: pphyke d ek tn gnorimotronhemn he hods ka saphestron ep t saphestra t phsei ka gnorimotra); se esse cami-nho se percorre, os princpios se tornam conhecidos (cf. a18-23). Como se v, fazparte da linguagem aristotlica falar de um caminho (hods) para os princpios eele usou dessa linguagem, como acabamos de ver, em duas passagens que intro-duzem investigaes em busca dos princpios, da cincia moral e da cincia danatureza, respectivamente. Quando lemos, em Tp. I, 2, que a dialtica hodn khei,tem o caminho para os princpios das cincias, no h como negar que a aproxi-mao com aquelas duas passagens h pouco mencionadas sugere fortementeque minha interpretao correta.

    No que concerne passagem de iv a v, realmente no consigo ver indcio al-gum de v ter sido acrescentado maneira de um afterthought, como quer Zingano,nem qualquer razo para afirmar que o filsofo, tendo incialmente falado de tresutilidades da dialtica, listou, em verdade, quatro. Porque a transio de iv a vme parece tranquila e a linguagem do texto, fcil de explicar. Com efeito,Aristteles iniciara o captulo, apontando tres utilidades para a dialtica; apsdiscorrer sobre as duas primeiras, explica a terceira, isto , a utilidade da dialticapara as cincias filosficas (cf. Tp. I, 2, 101 a34 seg.). Esta explicao tem duas

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    partes, a primeira dizendo respeito contribuio da dialtica para resolver asaporias, mediante uma argumentao contraditria que enseja uma percepomais fcil do que verdadeiro e do que falso; no h aqui nenhuma aluso ex-plcita aos princpios. A segunda parte principia pela expresso ti d (ainda),mediante a qual significa estar de fato introduzindo, sim, um segundo ponto emsua explicao da utilidade da dialtica para as cincias: alm de a dialtica con-tribuir para a soluo das aporias, ela tambm til no que concerne aos princpi-os. O filsofo explica a seguir que, sendo os princpios as primeiras dentre todasas proposies de cada cincia e no sendo evidentemente possvel dizer algo so-bre eles a partir deles prprios, somente possvel discorrer sobre eles a partir de propo-sies aceitas (ndoxa), isto , de proposies baseadas em opinies (estranhas, por-tanto, esfera cientfica). Fica claramente subentendido que cabe a uma disciplinaque raciocina a partir de proposies ndoxa discorrer sobre os princpios, j queno pode haver discurso cientfico sobre eles. E Aristteles continua (este o ponto vi):Ora, esta a tarefa prpria, ou mais apropriada, dialtica, pois, de naturezaperquiridora, ela possui o caminho que leva aos princpios de todas as discipli-nas cientficas. Isto , a tarefa prpria ou mais apropriada dialtica a de dis-correr sobre os princpios a partir de proposies ndoxa. E essa tarefa lhe cabe porquesua natureza perquiridora (ela exetastik) a capacita a fazer a investigao que aeles conduz, a produzir o percurso que pode permitir sua apreenso, ela pos-sui esse caminho. Que a dialtica raciocina a partir de proposies baseadas nadxa (opinio) j fra estabelecido no captulo anterior, o cap. 1 do livro I. Comefeito, em suas linhas iniciais, Aristteles dissera ser o propsito dos Tpicos des-cobrir um mtodo de raciocinar acerca de qualquer problema proposto a partir dendoxa (cf. 100 a18-20) e, pouco depois (cf. a29-30), definira como dialtico osilogismo que raciocina a partir de ndoxa. Em suma, a dialtica a disciplina queraciocina sobre qualquer tema a partir de ndoxa, no possvel discorrer sobre osprincpios seno a partir de ndoxa, portanto cabe dialtica discorrer sobre osprincpios. Tal a lio clara que se extri da combinao dos dois primeiros cap-tulos do tratado e no vejo como ler de outra maneira o que nos diz o filsofo so-bre a utilidade da dialtica para as cincias no segundo captulo: a argumentao

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    est explicitamente articulada em torno da noo de ndoxon tematizada no pri-meiro captulo, o texto flui naturalmente, as explicaes estruturam-selogicamente de modo tranquilo.

    Por tudo isso, devo dizer que me parece impertinente invocar os argumen-tos de Brunschvicg, como o faz Zingano (cf. p. 35-36), em apoio sua leitura dapassagem de iv a v em Tp. I, 2. Concordei em que no se encontra refernciaaos primeiros princpios em iv, em que o uso de ti d assinala a introduo deum novo ponto. Concordo em que a percepo do verdadeiro e do falso, de quefala iv, pode ocorrer em qualquer nvel e algo geral, enquanto o papel dadialtica em v algo especial. Apenas no entendo bem o sentido do quarto ar-gumento, segundo o qual o uso da dialtica em no indispensvel, en-quanto seu uso parece indispensvel para a tarefa descrita em . Isto porquepercorrer as aporias em ambos os sentidos (cf. 101 a35), isto , praticar o mto-do diaporemtico e argumentar contraditoriamente, um procedimento bsicoda dialtica8 ; assim sendo, como no seria indispensvel em iv o uso dadialtica? E, ainda que no haja referncia particular aos princpios em iv, noh por que excluir a priori que o percurso diaporemtico em ambos os sentidos,ensejando uma percepo mais fcil do verdadeiro e do falso, que a dialtica capaz de empreender em todos os nveis (cf. Zingano, p. 35), se possa empre-ender tambm com relao aos princpios, de que v o filsofo fala em v. Mas ob-viamente concordo em que o uso da dialtica em v parece indispensvel. En-tretanto, esse meu acordo com esses pontos no tem manifestamente por queimpedir-me de afirmar a clara continuidade entre iv e v e de recusar que

    (8) Os raciocnios dialticos podem definir-se como argumentos (lgoi) silogsticos de contradio apartir de proposies aceitas (cf. Ref. Sof. 2, 165 b3-4); a dialtica e a retrica so as nicas discipli-nas que raciocinam de modo contraditrio, argumentando numa e noutra direo (cf. Ret. I, 1, 1355a29-36); a capacidade de discernir, numa viso sinptica, as concluses que resultam de hiptesescontraditrias instrumento importante para o conhecimento e para o saber filosfico, porque ape-nas restar ento escolher corretamente uma delas (cf. Tp. VIII, 14, 163 b9-12). Sobre o uso do mtododiaporemtico pela dialtica, cf. CDA, p. 370 seg.

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    tudo se passa como se Aristteles tivesse acrescentado, lateralmente (grifomeu) o que Tp. I, 2 nos diz sobre o uso da dialtica para a obteno dos princ-pios das cincias.

    Quero agora comentar o uso, por Aristteles, do termo exetastik (que tra-duzi por perquiridora para caracterizar a dialtica em vii (cf. 101 b3)). O sig-nificado bsico do verbo exetzein , no grego clssico (por exemplo, emIscrates, Plato, Demstenes, etc.) e no vocabulrio aristotlico (cf. t. Nic. I,4, 1095 a28; Met. N, 3, 1091 a19-20; Pol. II, 9, 1271 b14-15 etc.) o de exami-nar, examinar com cuidado, pr prova mediante exame. No h, por-tanto, por que entender a funo perquiridora, exetastik, da dialtica somenteno sentido negativo que Zingano lhe associa (cf. p. 40), como se o termo signi-ficasse algo como uma capacidade de refutar, silenciar opositores ou posi-es que eles defendam (embora, obviamente, o exame de uma proposiopossa, em muitos casos, levar sua refutao). Zingano faz referncia (cf. ibid.,n. 12) a dois textos de Aristteles em apoio sua interpretao de exetzein,respectivamente t. Eud. I, 3, 1215 a3-7 e Ret. I, 1, 1354 a4-6. Mas, em ambos ostextos, se pode claramente traduzir exetzein por examinar. Nesse ltimotexto, Zingano traduz aquele verbo por questionar, o que se pode aceitar,lembrando-se porm que questionar se pode entender como pr em ques-to, examinar com a inteno de descobrir se se deve eventualmente, masno necessariamente, refutar o que se est examinando. Zingano entende queo filsofo, em 101 b3, est provavelmente fazendo meno a uma passagem daApologia (cf. 22e) em que Scrates fala da extasis que empreendeu, tentandodesvelar o significado do orculo divino que o proclamara o mais sbio doshomens, dos que eram reputados como sbios, dos polticos, dos poetas, dosartesos etc. Ora, parece-me que no h por que traduzir extasis, nessa passa-gem famosa, em sentido diferente do corrente, que o de exame, investiga-o para pr prova. Por outro lado, tendo em vista que se trata do uso nor-mal e corriqueiro do termo, com freqncia usado pelo prprio Aristteles (epor Plato e outros), no me parece haver razo para pensar que Aristtelestivesse em mente aquela passagem da Apologia.

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    Quanto interpretao de a tarefa mais prpria, ou mais apropriada, dialtica em vi (cf. 101 b2-3), estou de acordo com Brunschvicg e Zingano, emque Aristteles est comparando a dialtica com outros eventuais meios de aces-so aos princpios das cincias. No entanto, minha interpretao das linhas finaisde Tp. I, 2 totalmente diferente da de Zingano. Como j expliquei acima, apsdizer que necessariamente por meio de proposies ndoxa que se deve discorrer(dielthen) sobre os princpios, que o filsofo afirma ser isso (toto) uma tarefa pr-pria, ou mais apropriada, dialtica. E justifica essa afirmao com o fato de, sen-do a dialtica perquiridora, possuir ela o caminho para os princpios. Algumasconsideraes cabe aqui fazer. Em primeiro lugar, a dialtica, sendo perquiridora,raciocinando a partir de ndoxa, pondo prova e examinando as mais diferentesopinies e proposies sobre cada tema, inventando um caminho em direo aquisio dos princpios, nesse sentido discorrendo sobre eles, sendo no entanto in-capaz de apreend-los, de engendrar seu conhecimento, tem uma funo meramentepropedutica. Isto , ela apenas propedutica, porque apenas possui o caminho, por-que apenas prepara o terreno para o conhecimento dos princpios. Porque ela propedutica, prprio, ou mais apropriado, a ela, discorrer sobre os princpios apartir dos ndoxa. A inteligncia do texto de nenhum modo requer, como pensaZingano, que se tome a dialtica unicamente em seu papel negativo. Por outrolado, discorrer (dielthen) sobre os princpios utilizar o discurso, argumentar, raci-ocinar, para tentar chegar a eles. A inteligncia, ou intuio (nos), porm, no dis-corre sobre os princpios. A intuio viso dos princpios, apreenso imedia-ta deles. precisamente porque toda cincia se acompanha de discurso, que nopode haver cincia dos princpios, mas to somente intuio9 (cf. Seg. Anal. II, 19,

    (9) Zingano afirma (cf. p. 31) que a inteligncia apreenso direta, sem precisar demonstrar o queapreende, ainda que seja discursiva (pois apreender a qididade equivalente a exprimir uma proposi-o). Penso, porm, que, para Aristteles, apreender a qididade no somente no pode ser equiva-lente a exprimir uma proposio, pois um ato de conhecimento pelo intelecto e exprimir uma propo-sio produzir uma formulao lingustica; mas nem mesmo se exprime numa proposio, que afir-mao ou negao, enquanto a expresso lingustica de uma quididade to somente um phnai,uma phsis (locuo), o que no o mesmo que uma katphasis (afirmao) (cf. Met. teta, o captulo

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    100 b5-17). Pensando seu objeto inteligvel (noetn) e entrando em contacto comele, o nos participa dele, e se torna tambm inteligvel, identificando-se com ele(cf. CDA, p. 390). Mas, se assim , que outro meio de acesso ao conhecimento dosprincpios poderia Aristteles ter em mente, ao dizer que discorrer sobre os prin-cpios , seno prprio da dialtica, pelo menos mais apropriado a ela? No te-nho uma resposta definitiva, mas levanto a hiptese, confessando embora minhainsegurana ao faz-lo, de que se trata possivelmente de uma aluso metafsicaou filosofia primeira, cincia superior qual se poderia eventualmente pretenderatribuir ainda que Aristteles no o faa a tarefa de discorrer sobre os princpi-os (sobre os princpios em geral e no apenas sobre os princpios comuns) e, me-diante tal procedimento discursivo, produzir um caminho para o seu conheci-mento. Alguns textos da Metafsica poderiam sugerir algo nessa direo, mas no aqui o lugar de discuti-los.

    3. SOBRE MET. GAMA, 4O primeiro dos dois textos aristotlicos que Zingano invoca (cf. p. 36) em fa-

    vor de sua leitura de Tp. I, 2 o de Met. gama, 4, em que Aristteles se prope arefutar os que negam o princpio de no-contradio. Zingano entende queAristteles oscila quando se refere ao que est fazendo. Ele ora diz que se tratade uma demonstrao, ora declara que no possvel uma demonstrao, mas so-mente uma refutao. Zingano reconhece que a refutao faz parte das estratgi-as dialticas, mas julga surpreendente que Aristteles no explicita que est pro-cedendo dialeticamente e diz que tal silncio, talvez proposital, significativo.Para ele, claramente no se trata de encontrar um caminho para o princpio de

    inteiro, part. 1051 b24-25). Embora seja evidente que, na construo do discurso cientfico, ao assu-mir, como princpio primeiro de uma cincia, a existncia de um gnero juntamente com a definioque exprime sua qididade, formulamos uma proposio em que a quididade se atribui comopredicado ao gnero definido. De qualquer modo, a apreenso do princpio pela intuio no umdiscorrer (dielthen) sobre ele. Sobre toda essa questo, que concerne inteleco indivisvel e una dosprincpios, cf. CDA, p. 390-392, tambm p. 87.

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    no-contradio, mas de barrar a via a quem se nega a reconhec-lo. O texto en-cerraria, portanto, uma lio eminentemente negativa, a aquisio do princpio fa-zendo-se alhures, somente sua negao exigindo o uso da dialtica a fim dereduzir quem o nega ao silncio das plantas. Um pouco antes (cf. p. 35-6, n. 7),Zingano criticara, a meu ver com inteira razo, a posio de Enrico Berti, que pre-tendeu ver, na refutao dos que negam o princpio de no-contradio, umaverdadeira demonstrao dialtica com o carter de necessidade prprio dasdemonstraes matemticas10 .

    Tenho algumas consideraes a fazer. Lembremos antes, porm, que, emgama 1, Aristteles prope-se a estudar os atributos e as causas primeiras do serenquanto ser. Em gama, 2, mostra que uma s cincia, a filosofia, se ocupar doser enquanto ser e de seus atributos (tais como o contrrio, o perfeito, o um, omesmo, o outro, o anterior, o posterior, o gnero, a espcie, o todo, a parte e ou-tros como esses (cf. 1005 a12-18)), tambm da substncia e de seus atributos maisgerais, j que os vrios sentidos de ser remetem todos substncia. em meioa esse captulo (em a18-26) que o filsofo faz sua conhecida comparao entre afilosofia primeira, a dialtica e a sofstica: os dialticos e os sofistas revestem-seda mesma forma exterior que os filsofos, dialtica e sofstica se ocupam de todosos gneros precisamente porque o ser comum a todas as coisas e constitui o ob-jeto prprio da filosofia; mas a dialtica difere da filosofia pela faculdade envol-vida, sendo arte de examinar acerca daquelas coisas de que a filosofia tem co-nhecimento; a sofstica se distingue da filosofia pelo propsito que a anima, o deaparentar ter um conhecimento que no tem. No incio de gama, 3, -nos dito (cf.1005 a19-33) que cabe tambm quela cincia primeira estudar os axiomas, quepertencem a todos os seres, porque propriedades do ser enquanto ser; por isso to-dos deles se servem. E, por isso tambm, os que investigam apenas uma parte doser (gemetras e aritmticos, por exemplo) no empreendem um discurso sobreeles, no tentam determinar se eles so verdadeiros ou falsos; se alguns fsicos o

    (10) Cf. Berti, Enrico, As razes de Aristteles, ed. Loyola, 1998, p. 98, citado por Zingano na notamencionada.

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    fizeram, foi porque julgaram que sua cincia concernia natureza inteira e ao ser.Assim, cabe ao filsofo a investigao daqueles princpios dos silogismos, queso os princpios mais seguros e certos (bebaiottas arkhs) das coisas (cf. b5-11).Logo a seguir Aristteles fala do princpio de no-contradio, ele o diz o princ-pio mais certo e seguro de todos, sobre o qual no possvel o engano, necessari-amente o mais conhecido e no-hipottico (cf. b12 seg.), princpio ao qual todos osque demonstram fazem remontar sua demonstrao como a uma crena ltima,princpio que o por natureza tambm de todos os outros axiomas (cf. b32-34).Aristteles faz, entretanto, aluso cf. b23-32) ao fato de ter-se atribudo a Herclitoa negao do princpio de no-contradio, a proposio de que se pode acreditarque uma mesma coisa seja e no seja, o que uma manifesta impossibilidade.Mas retorque o filsofo que no necessrio que as coisas que algum diz, eletambm as creia.

    Aristteles comea gama, 4, repetindo (cf. b35 seg.) que alguns dizem po-der uma mesma coisa ser e no ser, poder crer-se tambm que ela e no .Relata-nos que alguns reclamaram uma demonstrao para o princpio de no-contradio, o que atribui a uma falta de cultura (apaideusa), j que falta decultura no saber que coisas demandam demonstrao, que outras no deman-dam; lembra-nos a impossibilidade de haver demonstrao de todas as coisas(supor tal possibilidade envolveria regresso ao infinito e, de fato, a impossi-bilidade de qualquer demonstrao) e diz-nos que, se h coisas de que no sedeve buscar demonstrao, a nada se poderia atribuir uma tal no-demonstrabilidade mais do que ao princpio de no-contradio. Assim, esseprincpio indemonstrvel. Entretanto, o filsofo diz (cf. 1006 a11-28) ser pos-svel demonstr-lo por via de refutao (elegtiks) estabelecendo uma distin-o entre demostrar e demonstrar por via de refutao: se se pretendesseefetuar uma demonstrao stricto sensu, de algum modo se teria de assumir,ainda que indireta ou mediatamente, o princpio de no-contradio comopremissa (por ser ele o princpio de todos os princpios), incorrendo-se na fa-lcia de petio de princpio; mas, se apenas se pede que quem recusa oprincpio diga algo significativo tanto para ele como para outrem sem isso

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    no haveria discurso de sua parte , se ter j algo definido sobre que cons-truir a demonstrao (por via de refutao), um discurso cuja responsabilida-de cabe a ele, que o proferiu e que estar assumindo algo como verdadeiro esem demonstrao. O filsofo d, ento, incio, sua refutao dos que recu-sam o princpio, numa longa discusso que emprega vrios distintos argu-mentos e que ocupa todo o captulo.

    A primeira observao que quero aqui fazer concerne ao uso do termo de-monstrao na passagem acima citada. No tenho como concordar com Zingano,quando diz haver oscilao por parte de Aristteles, que ora teria dito tratar-se deuma demonstrao, ora teria falado apenas de uma refutao dos opositores. Pen-so que o texto bastante claro: no h demonstrao do princpio, em sentidoestrito, pelas razes invocadas; mas o filsofo se permite falar em demonstraopor via de refutao, com referncia argumentao refutativa utilizada. Trata-se claramente, na ltima expresso, de um uso frouxo do termo demonstra-o11 , que tambm se encontra em outras obras; assim, por exemplo, em Ret. I, 1,1355 a4-8, acerca do entimema ou silogismo retrico -nos dito que o argumentode persuaso uma demonstrao de um certo tipo (he d pstis apdeixs tis), que ademonstrao retrica o entimema e que este o mais importante dos argumen-tos de persuaso. bastante comum, na obra aristotlica, o emprego de termosque tm um significado tcnico preciso em sentidos mais frouxos, sobretudoquando o contexto no deixa dvidas quanto compreenso de tal uso; assim, amesma palavra cincia, definida de modo rigoroso e preciso nos Segundos Ana-lticos, usada por Aristteles com freqncia em sentido bastante lato e vago (cf.CDA, p. 52-53).

    (11) Compare-se a passagem em questo de gama, 4 com a passagem correspondente de Met. K, 5,1061 b34-1062 a11, onde Aristteles nos diz que no h demonstrao do princpio de no-contradi-o em sentido absoluto (hapls), mas possvel, em face dos que o negam, oferecer uma demonstra-o ad hominem (prs tnde), se deles obtemos algo que seja de algum modo idntico ao princpio, em-bora no aparente s-lo. Os captulo 5 e 6 de K constituem, como se sabe, uma verso mais curta deMet. gama, 4-6.

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    Zingano reconhece que Aristteles procede dialeticamente, em gama, 4, con-tra os que negam o princpio de no contradio, mas julga surpreendente queAristteles no explicita que est procedendo dialeticamente. Confesso no enxer-gar o motivo de uma tal surpresa nem vejo por que o silncio do filsofo a esserespeito seria significativo. Reconhece-se amplamente ser um dentre os usos dadialtica o de refutar teses e proposies. Alis, seis livros inteiros dos Tpicoscontm mais de uma centena de regras a serem empregadas em argumentosdestrutivos, isto , de refutao; e, numa passagem das Refutaes Sofsticas (cf. 2,165 b3-4), o argumento (lgos) dialtico definido como aquele que raciocina apartir de premissas aceitas (ndoxa) e leva a uma concluso que contradiz a teseque se est examinando, ele sillogistiks antiphseos. Por que teria o filsofo delembrar a seu leitor ou ouvinte (a seus estudantes, por exemplo) que os argumen-tos refutativos empregados em gama, 4 so argumentos dialticos? Aristtelesno precisa explicitar que est procedendo dialeticamente12 .

    Zingano diz que, em gama 4, no se trata de encontrar um caminho para oprincpio de no-contradio, mas de barrar a via a quem se nega a conhec-lo.Mas h aqui um ponto que quero assinalar. Ao dar destaque a esse texto de

    (12) Por outro lado, que Aristteles esteja aqui procedendo dialeticamente se evidencia pela anlisedos argumentos utilizados na demonstrao refutatria dos negadores do princpio, argumentosque procedem a partir de proposies aceitas (ex endxon); uma vez que os princpios primeiros, se-jam os prprios, sejam os comuns, so indemonstrveis, quaisquer discursos demonstrativos a seurespeito devem necessariamente construir-se sobre premissas ndoxai. O simples fato de que se recor-ra a uma refutao no , por si mesmo, suficiente para caracterizar um discurso como dialtico, aocontrrio do que Zingano pareceria estar sugerindo (cf. p. 36-7). Isso porque, como nos ensinaAristteles (cf. por exemplo, Ref. Sof. 9, o captulo inteiro), refutaes podem construir-se no interiorde um domnio cientfico particular e a partir dos princpios prprios cincia em questo, a compe-tncia acerca delas pertencendo exclusivamente quele que detm o conhecimento cientfico; so, po-rm, da competncia da dialtica aquelas refutaes, reais ou aparentes, que se constrem sobrekoin, sobre proposies comuns que no so prprias a nenhuma cincia particular. claro quese devem assumir os tpicos (tpoi), no de todas as refutaes, mas das que dependem da dialtica;pois estes so comuns a toda disciplina e faculdade (cf. Ref. Sof. 9, 170 a34-36).

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    Aristteles em apoio sua tese minimalista sobre a contribuio da dialticapara o conhecimento dos princpios e dele extrair uma lio eminentemente nega-tiva acerca dessa contribuio, Zingano parece-me ter desconsiderado o fato deque no se trata aqui de um princpio qualquer, nem mesmo de um princpio co-mum ou axioma qualquer, mas, como vimos Aristteles dizer, do mais firme dosprincpios, do princpio que princpio dos outros princpios, do princpio a cujorespeito ningum pode enganar-se, de um princpio que se pode negar em pala-vras, mas cuja negao no se pode conceber. O que certamente no o caso damaioria dos princpios. No que respeita aos princpios prprios, por exemplo sdefinies dos gneros-sujeitos das cincias particulares (da fsica, da cincia daalma, da tica, da poltica etc.)13 , no certamente o caso que se trate de proposi-es facil e diretamente intuveis, que sejam de conhecimento comum e sobre asquais no possa haver engano. Em suas obras, o filsofo elabora longas discus-ses, examina sempre vrias e conflitantes alternativas, discute demoradamenteprs e contras, antes de definir as solues que prope para a formulao dosprincpios. E vimos acima (em nossa seo 2, ao comentar a leitura que Zinganofaz de Tp. I, 2) Aristteles dizer que difcil, com efeito, saber se conhecemos apartir dos princpios de cada coisa, ou no (em Seg. Anal. I, 9, 76 a26-27). Por ou-tro lado, mesmo no que concerne aos princpios comuns, consideremos o princ-pio do terceiro excludo, de que o filsofo se ocupa em Met. gama, 7, onde oferecevrios argumentos contra os que o negam? Ser acaso to claro que esse princpiodesfruta do mesmo estatuto de evidncia, imediateza e irrecusabilidade que pos-sui o de no-contradio? Aristteles no o diz e no estou persuadido de que talseja o caso. um assunto a ser examinado com algum cuidado. De qualquermodo, meu primeiro ponto que no vlido extrair do procedimento dialticoutilizado por Aristteles contra os negadores do princpio de no-contradio emgama, 4, qualquer lio sobre o tipo de contribuio que a dialtica pode propici-ar acerca dos princpios das cincias, em geral. O carter particularssimo desse

    (13) Sobre o uso de definies nos primeiros princpios prprios das cincias particulares, cf. CDA, p.230-234.

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    princpio, o seu carter de verdade imediatamente evidente a qualquer um eirrecusvel necessariamente exige muito pouco da dialtica, exige apenas que elase empregue para refutar e refutar de um modo todo especial e sui generis unspoucos que julgam poder negar um princpio de que, inadvertidamente, se estode fato servindo ao formular seus discursos, ao formular o prprio discurso quepretende recusar o princpio. O uso da dialtica neste caso , por certo, eminente-mente negativo. Mas nenhuma lio mais geral daqui se pode tirar sobre o uso dadialtica no que concerne aos princpios das cincias.

    E no esqueamos, tambm, que a discusso sobre o princpio de no-con-tradio e a argumentao contra os que o negam continuam tambm em gama, 5e 6. Logo no incio de gama, 5, Aristteles mostra (cf. 1009 a6-16) que a negao doprincpio de no-contradio e a doutrina protagoriana da verdade de todas asaparncias mutuamente se implicam. O filsofo distingue, a seguir (cf. a16-22),entre os que negam o princpio lgou khrin, para argumentar, e os que foramlevados a afirmar a igual verdade de proposies contraditrias a partir deaporias reais com que se defrontaram. Contra os primeiros, uma efetiva coao(ba) por via de argumentao tem de ser utilizada, a refutao tem de ser dirigidas formulaes lingusticas de que eles se servem, no h outro modo de cura.Quanto aos que se enredaram, porm, em reais dificuldades, a cura bem maisfcil, o filsofo se dirigir, no sua linguagem, mas ao seu pensamento (ou grprs tn lgon, all prs tn dinoian). Quando lemos essas linhas, somos levadosimediatamente a conjecturar que a refutao de certos negadores do princpio em-preendida em gama, 4 corresponde quele primeiro caso, direcionada contraformulaes lingusticas; e isso nos plenamente confirmado por Met. K, 6: as di-ficuldades levantadas o so a partir da linguagem (ek lgou) e no fcil resolv-las, a menos que assumam alguma coisa (cf. 1063 b7-9).

    Mas h aqueles todos que vieram a admitir a igual verdade de proposiescontraditrias a partir da observao do mundo sensvel, no qual vem coisascontrrias ter origem a partir de uma mesma coisa (cf. Met. gama, 5, 1009 a22-30);tambm a partir do fato de que as coisas no aparecem sempre do mesmo modo atodas as pessoas, mas de modo diferente conforme as disposies dos

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    percipientes; e do fato de que muitos animais tm percepes contrrias s nossase do fato, tambm, de que mesmo as percepes que cada um tem de uma mesmacoisa nem sempre so as mesmas; em geral, se associa a essas observaes umadoutrina que identifica pensamento e sensao e a sensao com uma alterao,donde dizerem verdadeiro tudo que aparece aos sentidos; na indagao sobre averdade dos seres, assumiram como seres to somente os objetos dos sentidos (cf.1009 a38-1010 a15). Nesses filsofos, a adoo de uma doutrina de naturezaprotagoriana que implica, em ltima anlise, na negao do princpio de contra-dio, resulta, ento, de uma certa interpretao filosfica da experincia das coi-sas observveis e da adoo de certas posies epistemolgicas. A refutao deseu ponto de vista exige, por isso, que se proceda de maneira bem diferente da-quela empregada em gama, 4. Os argumentos refutatrios devero aqui introdu-zir tpicos versando sobre a diferena entre a posse atual e a posse somentepotencial de qualidades contrrias (cf. 1009 a30-38), sobre as implicaesontolgicas dos processos de gerao e perecimento, sobre as diferentes espciesde mudanas, sobre a existncia de realidades desprovidas de movimento, sobrea diferena entre percepo sensvel e imaginao, sobre a natureza dasinformaes proporcionadas pelos sentidos etc. (cf. 1010 a15 seg.). Aps expor to-dos esses argumentos, conclui o filsofo: Todas essas coisas sejam ditas sobre ofato de que o mais seguro de todos os princpios que no so ao mesmo tempoverdadeiras as enunciaes contraditrias, sobre que conseqencia resulta para osque dizem que elas o so e sobre por que assim dizem (cf. gama, 6, 1011 b13-5).

    Contra os que negam o princpio de no-contradio apenas em palavras, arefutao dialtica mostra, mediante uma coao argumentativa que eles defato o pressupem e dele se servem, quando dizem algo provido de significado;contra os que so levados a recus-lo por terem dado sua adeso a doutrinas filo-sficas que acabam por implicar sua recusa, a refutao dialtica consiste emquestionar e refutar essas doutrinas. Num e noutro caso, a dialtica leva osinterlocutores a uma viso mais clara e abrangente do princpio, eliminando asdistores que prejudicavam sua adequada apreenso. Podemos dizer mais: a fi-losofia primeira, ao desenvolver o estudo das propriedades e atributos do ser en-

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    quanto ser, necessariamente se ocupa tambm do princpio de no-contradio, oprincpio de todos os princpios; todos dele se servem, todos de algum modo o re-conhecem; alguns poucos pensam poder recus-lo; a filosofia primeira demora-sesobre ele, explicita-o e formula-o de modo rigoroso, esclarece seu estatuto privile-giado, analisa as aporias em que que alguns se enredam a seu respeito, refuta osque o negam, mostra as conseqencias de tal negao, explica as razes que oslevam a tal posio; ora, isso tudo, a filosofia primeira o faz dialeticamente, proce-dendo a partir de ndoxa, de proposies aceitas no domnio da dxa. Assim fazen-do, ela enseja a intuio plena, luminosa do princpio. Por isso mesmo, no des-propositado dizer que, mesmo num caso to especial como o do princpio deno-contradio, a dialtica hodn ekhi, tem um caminho, que leva ao conhecimen-to pleno do princpio.

    4. SOBRE FS. I, 2-3Zingano recorre tambm a Fs. I, 2-3 e afirma que dele se extri, no que

    concerne ao papel da dialtica na aquisio dos princpios prprios das cincias,a mesma lio negativa que pretendeu extrair de Met. gama, 4, acerca dos princ-pios comuns (cf. p. 37). No incio do tratado, isto , no incio de Fs. I, 1,Aristteles apontara (cf. 184 a10-6) como primeira tarefa da investigao sobre acincia da natureza (per phseos epistmes) determinar quanto diz respeito aos prin-cpios. E indicara, imediatamente depois (cf. a16-23), que o caminho (hods) natu-ral o que vai das coisas mais conhecveis e mais claras para ns em direo smais claras e mais conhecveis por natureza, j que as mesmas coisas no soconhecveis para ns (hemn) e conhecveis em sentido absoluto (hapls), donde anecessidade (angke) de percorrer aquele caminho: as coisas primeiramente ma-nifestas e claras para ns so, antes, confusas; posteriormente, a partir delas, setornam conhecidos os elementos e os princpios, quando elas se analisam14 .

    (14) A tica Nicomaquia, em seu livro I, buscando a definio do Bem para o homem, princpio primeiroda cincia moral, ope (cf. 4, 1095 a30 seg.) o caminho (hods) que procede dos princpios ao que leva

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    Como se sabe, todo o livro I se consagra quela tarefa inicial e nele se estabeleceque matria, forma (e privao) so os princpios envolvidos em toda mudana.Em seu trmino, pode o filsofo, portanto dizer: que h, pois, princpios e quaisso eles e qual o seu nmero se defina dessa maneira Cf. I, 9, 192 b2-4).

    Lembremos como se estrutura o livro I. Na investigao sobre o nmero e anatureza dos princpios, so expostas, discutidas e refutadas as teses monistas:primeiramente o monismo absoluto dos eleatas, que postulam o Um imvel (cap.2 e 3), depois o monismo, este no-absoluto e admitindo o movimento, dos anti-gos fsicos (physiko), filsofos que se ocuparam da natureza e que, embora afir-mando haver um nico elemento primordial, admitiram, ao contrrio dos eleatas,a pluralidade e o movimento (cap. 4); refutados os que afirmam haver um nicoprincpio e mostrando-se que, de um modo ou de outro, mesmo os monistas in-troduzem princpios contrrios (cf. 5, 188 a19-30), a investigao estabelece que osprincpios so contrrios (cap. 5), que seu nmero, maior que um, no superiora dois ou trs (cap. 6), que eles so a matria e a forma (e a privao) (cap. 7), quesomente esta doutrina remove a aporia dos antigos filsofos (cap. 8) e acrescentamais esclarecimentos sobre toda essa matria (cap. 9).

    Uma observao importante cabe aqui fazer. Matria, forma e privao soestudados nesse livro I como princpios ou causas internas das coisas que existempor natureza (phsei). Ao longo de todo o livro, assumido e explicitado em185 a12-13 que tais coisas (todas ou parte delas) so kinomena, isto coisas quese movem ou so suscetveis de movimento. No primeiro captulo do livro se-guinte (isto , em Fs. II, 1), as coisas que existem por natureza so opostas s queprovm de outras causas, como os objetos produzidos artificialmente, e a nature-za (phsis) entendida (cf. 192 b21-23) como um princpio e causa do movimentoe repouso naquilo em que est primeiramente presente por si e no por aciden-te; mencionando, pouco adiante, aqueles que julgaram ser o substrato material

    aos princpios, assim como se pode, nos estdios, correr dos atlotetas ao marco ou no sentido inver-so; e prope que comecemos, na investigao, com as coisas que so conhecidas por ns.

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    prximo a natureza e essncia de cada coisa (cf. 193 a9-28), o filsofo mostra (cf.193 a28-b18) que a natureza das coisas que tm em si mesmas um princpio demovimento antes a forma (que corresponde definio (lgos) e no separvelda matria a no ser no que respeita ao discurso e definio) que a matria (cf.193 b6-7: ka mllon hate phsis ts hles). No final do captulo, diz o filsofo queforma e natureza se dizem em dois sentidos, pois a privao de algummodo forma (cf. b18-20). Nessas passagens todas, o termo princpio15 clara-mente no est sendo usado no sentido que lhe conferido nos Segundos Analti-cos, os quais, como se sabe, definem como princpios as proposiesindemonstrveis sobre as quais se constri a demonstrao cientfica e enfatizam,primordialmente, os axiomas ou princpios comuns e os princpios primeirosprprios s cincias particulares, proposies que assumem concomitantemente aexistncia e a essncia ou qididade dos gneros-sujeitos de que as cincias seocupam, deles predicando suas definies16 . Aristteles, como amplamente re-

    (15) Sobre os vrios sentidos de princpio, cf., por exemplo, Met. delta, 1.(16) Tratei longamente dessas questes em CDA (sobre os princpios prprios, cf., particularmente, p.223-234). Lembre-se, no entanto, que, alm dos primeiros princpios prprios a cada cincia de quepartem as demonstraes cientficas, a progresso dessas demonstraes exige a continuada introdu-o de novos princpios prprios, tambm eles proposies indemonstrveis e absolutamente imedia-tas, onde se exprimem as causas prximas dos atributos que se vo demonstrando, o que precisa-mente enseja a formao de novos silogismos. Esses princpios encerram as razes (lgoi) definidorasdesses atributos que por elas se demonstram (a esse respeito, cf. CDA, p. 263-268; tambm p. 337-338). Assim se explica que Aristteles possa dizer (cf. Seg. Anal. I, 30, 88 b3-4) que os princpios noso muito menos numerosos que as concluses. Em CDA, p. 326, n. 216, dei o exemplo de umsilogismo que se pode reconstruir a partir das indicaes do filsofo: As rvores em que a seiva se coagu-la na juno entre as folhas e os ramos tm folhas caducas. As rvores de folhas largas tm sua seiva coaguladana juno entre as folhas e os ramos. As rvores de folhas largas tm folhas caducas. A segunda premissa, emque se exprime a causa imediata (coagulao da seiva na juno entre as folhas e os ramos) do atri-buto demonstrado (ter folhas caducas) exprime o novo princpio que se est introduzindo na cadeiademonstrativa e se pode certamente presumir que o mero fato de que as rvores de folhas largas tmsua seiva coagulada na juno entre as folhas e os ramos estabelecido a partir da observao medi-ante uma generalizao indutiva simples. Aristteles demorou-se pouco na explicao dessa segun-

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    conhecido, no organizou seus tratados cientficos conforme o rigoroso modelodedutivo do conhecimento cientfico definido e estudado nos Segundos Analticos;ao contrrio, esses tratados expem-nos, antes, os meandros de uma investiga-o em marcha (cf. CDA, p. 374), a lenta progresso de uma pesquisa preliminarao estabelecimento da cincia propriamente dita, amplas discussesdiaporemticas que preparam a formulao, muitas vezes ainda tentativa, dosprincpios pertinentes a cada rea do saber. No diferente o que ocorre na fsicaaristotlica e, na leitura da Fsica, no nos fcil nem mesmo determinar quais se-riam as proposies principiais, princpios no sentido dado ao termo pelos Segun-dos Analticos, de que se seguiria, por via demonstrativa, o conhecimento rigorosodas coisas naturais, numa cincia plenamente constituda, no sentido forte do ter-mo. Podemos conjecturar no mais que conjecturar que um desses princpiosseria uma proposio que assumisse a existncia e a essncia (portanto, a defini-o) das coisas que so por natureza (phsei), uma proposio que as definissecomo suscetveis de movimento e constitudas de matria e forma, a forma sendopropriamente sua natureza, um princpio interno do movimento (um tal princpiode cincia resumiria as lies que se podem tirar do livro I e do captulo 1 do li-vro II da Fsica). De qualquer modo, penso que parecer manifesto que a investi-gao levada a cabo no livro I sobre os princpios (causas) das coisas que existempor natureza tem tudo a ver com a pesquisa pelos princpios (proposiesprincipiais) primeiros da cincia da natureza17 .

    Em Fs. I, 2, aps uma breve introduo sobre a questo do nmero deprincpios (cf. 184 b15-25), Aristteles tece consideraes (cf. 184 b25-185 a20) so-bre a natureza da refutao da doutrina eleata, que vai empreender. Comea pordizer que investigar se o ser uno e imvel no investigar sobre a natureza(per phseos). E afirma que, assim como o gemetra no tem argumento a propor

    da espcie de princpios prprios (dedicou-se, antes, ao estudo dos princpios primeiros que contmas definies principiais dos gneros-sujeitos). Mas eu deveria ter-me demorado bem mais em seuestudo, no t-lo feito constituiu certamente hoje percebo-o claramente uma lacuna em CDA.(17) E estou certo de que essa tambm a opinio de Zingano.

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    contra os que suprimem os princpios de sua cincia, isso cabendo a outra cin-cia ou a uma cincia comum a todas, assim tambm no tem quem est lidandocom os princpios, na cincia da natureza, argumento a propor contra os que osnegam; pois, se o ser uno e imvel, tal como o dizem, no h mais princpio, jque princpio princpio de algo (e necessariamente h, portanto, pluralidade).Investigar se existe tal ser uno, continua o filsofo, semelhante a discutir con-tra qualquer outra das teses que se propem para argumentar (lgou hneka),como a heraclitiana; ou semelhante a resolver um argumento erstico, o queprecisamente caracteriza os argumentos de Melisso e Parmnides; pois eles as-sumem premissas falsas e no so conclusivos, o de Melisso sendo, em acrsci-mo, grosseiro e desprovido de dificuldade. Na investigao da natureza, po-rm, para ns, esteja estabelecido que as coisas que so por natureza, ou todaselas, ou algumas, so suscetveis de movimento: isto evidente a partir dainduo (cf. 185 a12-4, reproduzo a traduo de Angioni endossada porZingano18 ). Aristteles, porm, reconhecendo embora que os eleatas no tratamda natureza, diz (cf. a17-20) que lhes acontence, no entanto, levantar questes f-sicas (physiks aporas); por isso, por certo ci bem discutir um pouco (ep mikrndialekhthnai) a respeito dessas coisas, pois tal exame comporta filosofia (khei grphilosophan he skpsis) (tambm aqui reproduzo a traduo de Angioni endossa-da por Zingano).

    Em seu texto, Zingano concentrou-se nos cap. 2 e 3, na refutao doeleatismo. Comentando essa passagem (isto , 184 b25-185 a20), ele julga (cf. p. 37)ser pouco provvel que, ao dizer que propor argumentos contra os que negam osprincpios de uma cincia cabe a uma cincia comum, o filsofo se esteja referin-do metafsica, a referncia sendo, antes, dialtica. Zingano passa a discutir, en-to, qual seria essa contribuio da dialtica no que respeita aos princpios da ci-ncia fsica. Afirma que lhe parece muito similar o que se passa em Fs. I, 2-3 aoque se passa em Met. gama, 4, a doutrina de Herclito sendo mencionada em am-

    (18) Zingano menciona (cf. p. 37, n. 10) e reproduz a traduo proposta por Angioni, cf. Aristteles,Fsica I-II, traduo revisada e notas por Lucas Angioni, IFCH/UNICAMP, fevereiro de 2002.

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    bos os textos e figurando, em duas passagens de Fs. I, 2, ao lado da doutrinaeleata (cf. p. 38, n. 11). E julga que a expresso discutir um pouco de 185 a18-19no parece augurar grandes descobertas, mas rpidas e eventualmente rspi-das correes. Comentando (cf. p. 38) a expresso pois tal exame comporta filo-sofia, afirma que ela no clara e que talvez ganhe em clareza, se aproximada dehodn khei de Tp. I, 2, significando que alguma coisa se aprende de til, masno convm depositar muitas esperanas na discusso.

    Zingano no examina os argumentos contra Melisso e Parmnides, mas diz(cf. p. 39) que, ao refut-los, Aristteles levado a fazer alguns esclarecimentos,de que d exemplos: dois itens podem ser distintos no por extenso, mas porintenso, o acidente dito de um certo sujeito, que distinto dele, o acidente um tem que pode ou no ser atribudo ou um tem em cuja definio se encon-tra aquilo de que acidente, a definio do todo no se encontra na definiodaquilo que est imanente ao seu enunciado definitrio. Zingano diz serem es-tas as lies de casa que se ganham em tal discusso e comenta que tais liesno dizem respeito a problemas da natureza (no so questes per phseos), masso atinentes fsica (physiks d aporas). Julga surpreendente que Aristteles as-sim as classifique, como atinentes fsica, pois, quando as consideramos em blo-co, correspondem a questes que so tratadas nos livros centrais da Metafsica, emparticular no livro Z; teramos a, pensa ele, um sinal do carter juvenil da Fsicade Aristteles, que teria sido escrita antes de o filsofo ter plenamente desenvol-vido sua metafsica; de qualquer modo, a discusso sobre a exata datao da com-posio da Fsica lhe parece menos relevante, pois tudo isso provm de umasuperposio inevitvel entre fsica e metafsica, no necessitando de nenhumatese gentica para sua explicao. O que importa para Zingano que as liesobtidas neste intermezzo dialtico esto por certo em torno do problema dos prin-cpios, mas no se dirigem a eles nem os fazem emergir, seu interesse residindoapena no fato de que, lembrando-se teses bsicas a respeito da enunciao e daargumentao, certos opositores so silenciados. Assim tendo interpretado a ar-gumentao contra os eleatas, Zingano se pergunta agora (cf. p. 39-40) como soapreendidos os primeiros princpios (da cincia fsica) e d a entender que a res-

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    posta aristotlica est contida naquela proposio de 185 a12-14 que acima cita-mos: para ns, esteja estabelecido que as coisas que so por natureza, ou todaselas, ou algumas, so suscetveis de movimento: isto evidente a partir dainduo. Ele faz aqui remisso ao cap. II, 19 dos Segundos Analticos, em queinduo e intuio so ambas mencionadas e comenta no haver meno algumado papel da dialtica a propsito da aquisio dos primeiros princpios.

    Lamento ter de discordar bastante da interpretao que Zingano prope des-ses cap. 2 e 3 do livro I da Fsica, no que concerne contribuio da dialtica paraa aquisio dos princpios prprios da cincia da natureza. Em primeiro lugar,quero lembrar que a investigao levada a cabo no livro I da Fsica concerne aoestabelecimento de princpios da cincia da natureza. Comea-se, no cap. 4, porum procedimento de refutao, demolindo o monismo dos fsicos; este primeiroresultado formalmente negativo, mas, ainda assim, dele se extrai uma lio po-sitiva, isto porque, se se refuta a tese de que h somente um princpio para as coi-sas dotadas de movimento, segue-se logicamente que h mais de um princpio, oque um resultado positivo. Mas, no cap. 5, estabelece-se positivamente que osprincpios so contrrios; no cap. 6, que seu nmero no maior que 3 ; no cap. 7,que tais princpios so o substrato ou matria e a forma e privao. E todos os argu-mentos utilizados, tanto os negativos, como os positivos, servem-se de ndoxa comopremissas e so de natureza dialtica, como uma comparao cuidadosa com otratamento exaustivo dos argumentos dialticos ao longo de vrios livros dos T-picos permite estabelecer. Temos, portanto, nesses captulos, um excelente exem-plo do uso da dialtica para a aquisio dos princpios primeiros de uma cincia.A dialtica no engendra os princpios, mas ela possui o caminho que leva aeles. Ela cria condies de possibilidade para uma eventual intuio deles, apspercorrer-se a etapa propedutica que prepara sua aquisio. Essa preparao sefaz pela remoo dos obstculos representados por doutrinas cuja falsidade semostra (etapa negativa), mas tambm multiplicando argumentos que abordam di-ferentes facetas da problemtica que envolve esses princpios, argumentos melho-res ou menos bons, argumentos por vezes colaterais, cuja considerao, no entan-to, permite que nos acerquemos progressivamente de uma formulao positiva

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    que finalmente venha a mostrar-se como mais adequada e pertinente. Curiosa-mente, Zingano no considerou os cap. 4 e seguintes do livro I da Fsica, masateve-se aos cap. 2 e 3, dedicados refutao do eleatismo. Refutao essa que,como Aristteles o diz expressamente e Zingano o reconhece, no concerne ao do-mnio prprio da cincia da natureza. Por isso mesmo, o uso (negativo) dadialtica nessa refutao, no concernindo diretamente aos princpios prpriosdessa cincia, no pode portanto, por si s, fornecer um caminho para eles.

    Voltemos ao texto de I, 2. Como vimos, Aristteles justifica a incluso dessadiscusso do Um imvel dos eleatas na sua obra sobre a fsica, pelas physikaaporai, as questes fsicas que tal discusso envolve. Zingano entende que o fil-sofo tem a em mente certos esclarecimentos de cunho antes metafsico (comoo acidente dito de um certo sujeito, que distinto dele, a definio do todono se encontra na definio daquilo que est imanente ao seu enunciadodefinitrio etc.), que ele utiliza como premissas ao longo de sua argumentaorefutativa; Zingano recolhe essas proposies no cap. 3 e as caracteriza como te-ses bsicas a respeito da enunciao e da argumentao (cf. p. 39). Ele julga sur-preendente que Aristteles as diga atinentes fsica e afirma que tais so as liesque se podem extrair da argumentao dialtica em questo. Contra a opinio deZingano, entendo que Aristteles, ao falar de questes fsicas envolvidas nessadiscusso, est referindo-se a questes propriamente fsicas19. Assim, em I, 2, 185a32-b5 o filsofo lembra que, para Melisso, o ser infinito e argumenta: o infinito uma quantidade e a quantidade um atributo da substncia ou essncia, por-tanto, ao dizer infinito o ser, Melisso compromete-se com um dualismo; ora, aquesto do infinito um tema importante da fsica aristotlica e a maior parte dolivro III da Fsica dedica-se a estud-la. Em 185 b5 seg., Aristteles lembra os dife-rentes sentidos de um (contnuo, indivisvel e idntico em definio) emostra as conseqencias inaceitveis da suposio de que o ser uno; falando docontnuo (cf. b8-10), argumenta com sua divisibilidade ao infinito, portanto, com

    (19) Essa tambm a opinio de Ross, cf. sua nota ad Fs. I, 2, 185 a18 em Aristotles Physics-a revisedtext with introduction and commentary by W. D. Ross, Oxford, at the Clarendon Press, 1936, p. 467.

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    sua necessria pluralidade; ora, tambm o contnuo um tema importante da fsi-ca, ele tratado em Fs. V, 3 e VI, 1-2. Tambm em I, 3, 186 a10-22, a argumentaocontra Melisso envolve questes fsicas acerca da gerao e do perecimento. Nadah, pois, de surpreendente em que Aristteles afirme que a discusso doeleatismo envolve questes fsicas. Essa discusso certamente, portanto, com-porta filosofia (khei philosophan), esta expresso usada num sentido claro. Adiscusso til para a cincia da natureza, mesmo se indiretamente. Por isso cabediscutir um pouco (ep mikrn dialekhthnai) tais questes e, com esta expresso,Aristteles est apenas trivialmente dizendo que vai demorar-se um pouco nelas,devido quela utilidade.

    Por outro lado, o tratamento do eleatismo em Fs. I, 2-3 parece-me bem dife-rente da argumentao de Met. gama, 4 contra os negadores do princpio de no-contradio, ao contrrio do que pensa Zingano. Aristteles diz-nos que os argu-mentos de Melisso e Parmnides so ersticos, assumindo premissas falsas e sendoinconclusivos. Em Tp. I, 1, 100 b23-25, -nos explicado que erstico o argumentoque parte de falsos ndoxa ou aquele que, partindo seja de endxa seja de falsosndoxa, silogstico apenas em aparncia, isto , no conclusivo; assim, o racioc-nio erstico no prprio a um gnero determinado, ele ocorre no domnio da dxacomum, ele diz respeito a todos os gneros e caracteriza uma argumentaosofstica, cabendo dialtica dele ocupar-se e resolv-lo (cf. Ref. Sof. 11, o captulointeiro). Mas, ento, um argumento erstico no um argumento apenas verbal,proposto to-somente lgou hneka (ou lgou khrin), isto , para argumentar. As-sim, quando o filsofo diz, em Fs. I, 2, 185 a5-12, que examinar se o ser uno e im-vel, como querem os eleatas, semelhante a uma discusso sobre teses propostasto-somente para argumento, como a heraclitiana, ou soluo de um argumentoerstico, como o caso dos argumentos de Melisso e Parmnides, ele est fazendoreferncia a dois tipos diferentes de argumentao e refutao dialtica, ambas tendoem comum o lidarem com argumentos mal construdos. Em Met. gama, 4, temosuma refutao dialtica de uma tese proposta to-somente lgou khrin e essa refuta-o dirigida ao argumento (prs tn lgon); em Fs. I, 2-3, ao contrrio, temos a refu-tao dialtica de argumentos ersticos. Ao menos, assim me parece.

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    Uma ltima observao sobre Fs. I, 2. Em 185 a12-14, Aristteles ope ao ca-rter no fsico da discusso sobre o ser imvel dos eleatas uma postura que prpria aos que empreendem o estudo da cincia da natureza: assume-se que ascoisas que so por natureza (physei) se movem (e o filsofo diz que se trata dealgo evidente a partir da induo). Como acima indiquei, Aristteles est aquiexplicitando algo (isto , que o movimento atributo das coisas que so por natu-reza) que est implcito ao longo de todo o livro I. Retomo o que Zingano diz aesse respeito (cf. p. 39-40): Como, ento, so apreendidos os primeiros princpi-os? Aristteles assim escreve em 2, 185 a12-14: para ns, esteja estabelecido queas coisas que so por natureza, ou todas elas ou algumas, so suscetveis de mo-vimento: isto evidente a partir da induo, dlon d ek ts epagogs. Voltamos aoproblema da induo, para o qual a dialtica no parece servir de remdio. E re-mete, em seguida, ao que Aristteles diz sobre a dialtica em Seg. Anal. II, 19.Zingano parece-me aqui estar fortemente sugerindo seno afirmando que apassagem citada de Aristteles concerne aquisio de princpios por induo.Mas esse o caso? Vimos que as coisas naturais so definidas, em II, 1, como pos-suidoras de um princpio interno de movimento (tal a phsis) e esse mesmo ca-ptulo nos faz ver (cf. 192 b33) que toda coisa que existe por natureza uma subs-tncia (ousa); o movimento sendo, obviamente ento, um atributo necessrio e porsi das coisas que so por natureza. Se assim , no se v como o mero reconhecimen-to e afirmao, com base na generalizao de evidncias perceptivas, de que essascoisas (cujo conjunto define o gnero de que a cincia da natureza se ocupa) sosuscetveis de movimento, isto , de que possuem um tal atributo, configurariaum princpio da cincia da natureza20 . Por outro lado, certamente inegvel que

    (20) Pode certamente aproximar-se o que Aristteles diz nessa passagem de I, 2, 185 a12-14 daquiloque nos dir, mais adiante, em II, 1, 193 a3-9, sobre o ridculo (geloon) envolvido em qualquer tentati-va de provar a existncia da phsis: manifesto que muitos dos seres so por natureza (phsei) e con-forme a natureza (kat phsin) e tentar provar as coisas manifestas pelas que no o so prprio dequem incapaz de distinguir entre o que conhecido em virtude de si mesmo e o que no o ; odiscurso de quem assim procede necessariamente gira em torno de palavras (per tn onomton), sem

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    tal generalizao indutiva, como o caso, alis, de qualquer induo, um pro-cedimento dialtico (cf. CDA, p. 384-387; Tp. I, 12, o captulo inteiro). E, na me-dida em que o reconhecimento da existncia do movimento parte do processoque leva apreenso da existncia e essncia das coisas que so por natureza, apreenso portanto de um princpio da cincia da natureza, nessa precisa medi-da, a induo acerca da presena do movimento nas coisas que so por natureza, sem dvida, um primeiro passo (dialtico) em direo ao estabelecimento deum tal princpio. Mas no se trata, claro, de uma apreenso de princpio porsimples induo.

    5. O CONTEDO DOS TPICOS EXPLICA TP. I, 2Faamos um pequeno balano sobre esta minha polmica com Zingano a

    respeito do que seria, na filosofia aristotlica, a contribuio da dialtica para aaquisio dos princpios da cincia. Zingano concentrou suas objees na discus-so do cap. 2 do livro I dos Tpicos e de dois outros textos do filsofo, a saber Met.gama, 4 e Fs. I, 2-3. E nos exps sua interpretao desses tres textos, recusandominha leitura de Tp. I, 2 e buscando apoio para a sua prpria leitura deste textoem Met. gama, 4 e em Fs. I, 2-3, onde julgou poder detectar um uso puramentenegativo e refutativo da dialtica. Nesta minha rplica, defendi minha leitura deTp. I, 2 e rejeitei a sua, tendo em seguida proposto minha prpria interpretaodaqueles dois outros textos, que julgo pertencerem a contextos em que se detectauma contribuio positiva da dialtica no caminho para o estabelecimento dosprincpios, respectivamente da filosofia primeira e da cincia da natureza.

    que nada esteja sendo pensado. Um procedimento meramente verbal. Nosso discurso no tem de pro-var nem capaz de provar o que se nos apresenta na evidncia perceptiva; ele se constitui, parans, a partir do reconhecimento da evidncia perceptiva, esta oferecendo-nos o que mais conhecvelpara ns. Em CDA, procurei precisamente mostrar que a etapa ascendente e dialtica do conhecimen-to, de natureza indutiva, percorre o caminho que vai do que mais conhecvel para ns ao que o ,por natureza, isto , os princpios (cf. p. 384 seg.).

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    H, entretanto, uma ressalva a fazer, que me parece deveras importante.Zingano e eu estamos de acordo em que Aristteles, nas pouqussimas linhas queconstituem o cap. 2 do primeiro livro dos Tpicos, aponta para uma certa contribui-o da dialtica no que respeita aquisio dos princpios. Ambos entendemosque o filsofo diz que a dialtica tem a ver com os princpios, divergimos quanto dimenso e alcance desse ter a ver. Para Zingano, ela tem relativamente poucoa ver, para mim ela tem muito a ver com eles. Ora, e sempre foi minha sinceraconvico a de que uma deciso sobre a natureza mesma da contribuio dadialtica para o conhecimento dos princpios no se pode de nenhum modo al-canar se nos confinamos anlise de Tp. I, 221 . Contra Zingano, penso ter apenasmostrado que minha tese sobre o papel da dialtica no est proibida por esse ca-ptulo, que ela compatvel com ele. Mas nunca pretendi que ela se possa deleextrair. Nesse sentido, parece-me que discusses filolgicas sobre a linguagemempregada pelo filsofo, sobre o alcance, por exemplo, das metforas de que seserve, so de interesse pontual e limitado.

    Em verdade, entendo que uma interpretao adequada do que o filsofo diznesse texto acerca do papel desempenhado pela dialtica no processo de aquisi-o dos princpios das cincias somente se pode alcanar a partir de uma anlisedetalhada e cuidadosa do texto inteiro dos Tpicos, os quais constituem, como oprprio filsofo anuncia j em seu mesmo incio, no primeiro captulo, uma in-vestigao sobre o mtodo dialtico. a concepo da doutrina dialtica nos Tpi-cos que pode esclarecer o significado do texto de Tp. I, 2 e no o inverso. No aqui o lugar de expor toda essa doutrina, que longamente estudada nos oito li-vros do tratado (e nas Refutaes Sofsticas, que so dele um apndice e como umnono livro), dediquei toda uma seo de Cincia e Dialtica em Aristteles explica-o de sua estrutura e contedo22 . De qualquer modo, permito-me lembrar aqui

    (21) Nesse sentido mas apenas nesse sentido , estou de acordo com Zingano quando, referindo-se minha interpretao desse captulo, ele diz (cf. p. 33) no estar seguro de que Tp. I, 2, possa certi-ficar to elevada tarefa dialtica.(22) A seo 2 do cap. VI, intitulada Os Tpicos e a dialtica, cf. p. 355-374.

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    alguns ensinamentos importantes que a leitura dos Tpicos nos propicia, ao longode seus nove livros, sobre como Aristteles entendeu, nesse tratado, o papel dadialtica para o conhecimento.

    Os Tpicos possuem uma estrutura bem definida em suas linhas gerais, seulivro I servindo como uma introduo aos outros livros. Em seu mesmo incio(cf. 100 a18-21), define-se como objetivo do tratado descobrir um mtodo quenos permita raciocinar sobre todo problema ex endxon (isto , a partir de proposi-es aceitas por opinio, proposies que representam a opinio das pessoasem geral, ou da maioria delas, ou dos sbios em geral, ou da maioria deles, oudos mais conhecidos, cf. b21-23) e que nos permita tambm defender nossas opi-nies sem incidir em contradio. No ltimo captulo das Refutaes Sofsticas, ofilsofo lembra (cf. Ref. Sof. 34, 183 a37-b1), o propsito incial, o de descobriruma faculdade de raciocinar sobre o problema proposto a partir das proposi-es mais ndoxai existentes; com efeito, isso a tarefa da dialtica por si mesmae da arte de examinar (peirastik). Segue-se uma recapitulao sucinta dasquestes tratadas nos Tpicos, s quais se acrescenta meno do tratamento dasfalcias efetuado pelas Refutaes. E o filsofo diz ser manifesto que o programaproposto chegou a seu fim (cf. b1-16).

    No livro I, distinguem-se (cf.1,100 a25 seg.), as vrias espcies de silogismos,define-se o silogismo dialtico como aquele que parte de premissas ndoxa e, nocap. 2, enumeram-se as vrias utilidades da dialtica. Distingue-se, tambm, entreproposies, de onde partem os silogismos, e problemas dialticos, sobre osquais versam os silogismos (cf. I, 4, 101 b11-16) e nos dito que toda proposioou problema dialtico concerne sempre a algum dentre os quatro predicveis,isto , definio ou ao prprio ou ao gnero ou ao acidente, mero atributo (cf.b17 seg.). Define-se (cf. I, 5, o captulo inteiro) cada um dos quatro predicveis,apresentando-nos, em particular a definio como um discurso que significa o oque (cf. b38), e o prprio como aquilo que, sem indicar a qididade, pertenceexclusivamente ao sujeito e com ele se reciproca na predicao (cf. 102 a18-19). Ocap. 6 do livro I traz-nos uma importante indicao, pois nos explica por que seaplica tambm questo da definio o que se argumenta com relao a cada um dos outros

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    tres predicveis: o acidente, o gnero e o prprio. O cap. 10 trata especificamente daproposio dialtica e nos diz que so proposies dialticas, no somente osndoxa, isto , as proposies aceitas por todos, ou pela maioria, ou pelos mais co-nhecidos; mas tambm as proposies que so semelhantes aos ndoxa, ou quelhes so contrrias se propostas na forma negativa, ou as proposies conformess diferentes artes e disciplinas (tkhnai), por exemplo a medicina ou a geometria.No incio do cap. 11, o problema dialtico definido como um objeto de pesqui-sa (therema) que contribui seja para escolher e evitar, seja para a verdade e o conheci-mento, a respeito do qual ou no h opinio ou h divergncia de opinio entreas pessoas comuns e os sbios, ou entre umas e outras pessoas comuns, ou entreuns e outros sbios (cf. 104 b1-5). Como exemplo de problema dialtico que dizrespeito ao escolher ou evitar, o filsofo menciona o problema sobre se o prazer ou no algo a ser escolhido, como exemplo de problema que concerne somenteao conhecer (prs t eidnai mnon), menciona o problema sobre se o universo ,ou no, eterno (cf. b5-8). -nos dito que so tambm problemas dialticos aquelasquestes sobre as quais h inferncias silogsticas em sentido contrrio, questesonde h aporia sobre se as coisas so deste ou daquele modo, devido persuasividade dos argumentos de um e de outro lado; ou aquelas outras ques-tes devido a cuja vastido nos difcil das razes para uma deciso, como ocaso acerca da eternidade do universo (cf. b12-17).

    Tp. I, 12 diz-nos que h duas espcies de argumentos dialticos: a induo(epagog) e o silogismo, definindo induo como a passagem (phodos) dos particu-lares ao universal (cf. 105 a10-14). O cap. 13 expe-nos quais so os quatro rgana(instrumentos) dialticos para prover-nos de silogismos: a aquisio de proposi-es, a capacidade de discernir as mltiplas significaes de cada termo, a desco-berta das diferenas e o exame das semelhanas. Os quatro captulos seguintesexplicam-nos, respectivamente, cada um desses quatro rgana. pertinente men-cionar aqui que o cap. 14, sobre a aquisio de proposies, nos diz que as propo-sies dialticas (assim como os problemas) comportam uma tripla diviso: elasso ticas, ou fsicas, ou lgicas (cf. 105 b19-25). Assim, a classificao das propo-sies ou problemas dialticos repete a famosa tripartio aristotlica das cinci-

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    as. Diz, assim, respeito tica a interrogao sobre se se deve obedecer aos paisou s leis, havendo desacordo entre estes; lgica, a interrogao sobre se a mes-ma cincia se ocupa, ou no, dos contrrios; fsica, a interrogao sobre se o uni-verso eterno ou no. E o filsofo nos diz (cf. b30-31) que essas questes se de-vem tratar conforme a verdade, no que concerne filosofia (prs tn philosophankataltheian), mas dialeticamente, no que concerne opinio (dialektiks d prsdxan). O cap. 18 nos fala da utilidade dos tres ltimos rgana: o exame das mlti-plas significaes dos termos introduz clareza e til para que os raciocnios seconstruam conforme o prprio objeto (kat aut t prgma) e no conforme o nome(108 a18-22); a descoberta das diferenas til para os silogismos sobre identida-de e alteridade e para conhecer o que cada coisa, prs t gnorzein t hkastn estin,pois costumamos separar o discurso prprio essncia de cada coisa (tn dionts ousas hekstou lgon) por meio das diferenas apropriadas a cada uma (cf. b3-6). Quanto, finalmente, ao exame das semelhanas, ele til para os raciocniosindutivos, para os silogismos hipotticos e para a produo de definies (cf. b7-9).Para esta ltima finalidade, porque a capacidade de perceber sinopticamente oque idntico em cada caso permitir que facilmente incluamos o que buscamosdefinir no gnero pertinente, j que dos atributos comuns aquele que mais sepredica no o que ser o gnero (cf. b19-23).

    Os livros seguintes dos Tpicos constituem um extenso inventrio dos tpoi(tpicos ou lugares), isto , das regras para a pesquisa dos quatropredicveis, regras essas extradas de frmulas ou leis de carter geral, que adialtica assume como ndoxa e utiliza como premissas maiores de seussilogismos. Os livros II e III contm os tpoi do acidente, o IV os do gnero, o V osdo prprio, os livros VI e VII contm os tpoi da definio. So algumas cente-nas de tpoi, a grande maioria so destrutivos (anaskeuastiko), servindo para re-futar as atribuies incorretas dos predicveis, embora tambm sejam numerosos osconstrutivos (kataskeuastiko), servindo para propor atribuies de predicveisque se configurem como corretas. O livro VIII fala de como ordenar a argumenta-o e efetuar a interrogao dialtica, mostra tambm como proceder na respostae como criticar uma argumentao contrria, q