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Quarta-feira, 27 de maio de 2015 | Correio do Vouga | 17 OPINIÃO Outro mundo é possível! Menino do Bairro Negro Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar Os meninos vão correndo Ver o sol chegar Menino sem condição Irmão de todos os nus Tira os olhos do chão Vem ver a luz Menino do mal trajar Um novo dia lá vem Só quem souber cantar Virá também Negro bairro negro Bairro negro Onde não há pão Não há sossego Menino pobre o teu lar Queira ou não queira o papão Há-de um dia cantar Esta canção Se até dá gosto cantar Se toda a terra sorri Quem te não há-de amar Menino a ti Se não é fúria a razão Se toda a gente quiser Um dia hás-de aprender Haja o que houver Zeca Afonso No momento em que escrevo es- te texto, falta o pão nos bairros (e nos barcos) negros do Sul do pla- neta. O pão, a paz, água, escolas... No momento em que escrevo este texto, está a decorrer, do lado de cá do planeta, a Semana do Desenvol- vimento, uma iniciativa da socie- dade civil que acredita que outro mundo é possível e que, “se toda a a erradicação dessas causas (…) O que se faz em ED? Informar, sen- sibilizar, formar, debater, influen- ciar as políticas.” Cada vez mais, a ED é uma ver- tente imprescindível da educação e um campo de acção propício a ini- ciativas pedagógicas que articulem as ONG, as escolas e as famílias (e até a Pastoral Juvenil). Algumas instituições educativas, do pré-es- colar às universidades, começam a despertar para a ED e a envolver- -se, por exemplo, em projectos como o “Conectando Mundos”, o “M&M - Move-te pela Mudança” ou o voluntariado jovem em ONGD e missões de cooperação. Há mui- tas propostas concretas, iniciativas e recursos pedagógicos (por ex., nos sites do CIDAC ou da Mó de Vida) para ajudar os mais novos a reflectir para mudar, a levantar os olhos do tablet e a voltá-los para o mundo. Aliás, um bom ponto de partida (como TPC de Geografia, Filosofia ou Economia) até pode ser a pesquisa, na net, da campa- nha “Conheça o mundo em que vive”, da revista Grande Reporta- gem. E, no fim, lançar aos alunos a pergunta de desenvolvimento: pactuas ou actuas? Educar para o desenvolvimento é ajudar as crianças e jovens (mas também os adultos) a compreender como tudo–está–ligado e como as nossas escolhas diárias e concre- tas (pactuando ou, pelo contrário, actuando) têm impacto – invisível para nós, mas imenso – nas vidas dos outros, do lado de lá do pla- neta. Por experiência própria (fui voluntária em África), sei que há leituras que, na adolescência e ju- ventude, podem ser determinantes no sentido de impelir à mudança: A Fome no Mundo Explicada ao Meu Filho ou A Globalização Ex- plicada aos Jovens... e aos Outros (Terramar). Mas como ensinar, em casa, as crianças mais pequenas a agir para mudar? Desde logo, pelo exemplo vivo e pela implica- ção prática em movimentos e op- ções tão simples e concretizáveis como o comércio justo (a propó- sito, “Já bebeu um Justo?” www. imvf.org/index.php?video=940I), o consumo responsável (vd. docu- mentário “A História das Coisas” e o guia prático “Jovens rumo à Mu- dança”, disponíveis na net) ou a economia solidária (já alguma vez levou os miúdos a um mercado de trocas para crianças?). Vem aí o Dia da Criança, oportu- nidade excelente para fazer algo… diferente! E se, em vez de atafulhar- mos as nossas crianças com mais um brinquedo chinado (a custo de trabalho sem direitos) ou mais um telemóvel com coltan (extraído por trabalho infantil no Congo), lhes sugeríssemos organizar na escola uma feira de troca de brinquedos? E se, em vez de as levarmos para a insustentável fila do Happy Me- al descartável, lhes mostrássemos que a fome e a felicidade de “Cada Criança Conta” (www.imvf.org/in- dex.php?video=1521), já que o pro- pósito deste dia é lutar pelos direi- tos básicos de TODAS as crianças (e que são negados a muitas para alimentar os caprichos ou privilé- gios das nossas)? Não faria muito mais sentido se, nesse dia, em vez de serem apaparicados, os miúdos pudessem fazer algo de verdadei- ramente novo e comprometido pe- las crianças (ainda) sem direitos? Uma forma simples de ajudar a mudar poderia ser colaborarem com o seu quinhão no apadrinha- mento de crianças órfãs de sida (por ex., “Sementes do Amanhã”, da FGS) ou de projectos de de- senvolvimento orientados para a infância (uma sugestão: www.lei- gos.org/como-apoiar/campanhas. html). Para aqueles pais e avós que aproveitam o Dia da Criança para lhes oferecer um presente (de valo- res) para a vida – um livro –, aqui fica a sugestão de um título: O Car- naval da Kissonde, do escritor an- golano Ondjaki, que reverte a favor da compreensão intercultural e das missões de cooperação dos Leigos para o Desenvolvimento. Desde já, outro mundo é possí- vel, porque estas ínfimas sementes de mudança, ao serem semeadas nos mais novos, começam, ainda invisíveis, a germinar consciências, valores, atitudes e comportamentos comprometidos com o justo desen- volvimento global. Queira ou não queira o patrão, queira ou não quei- ra o pessimismo da televisão, um dia, com o envolvimento de todos, há-de cumprir-se, aqui como no bairro negro, o sonho de Gedeão: o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança. JOANA PORTELA Mãe e Revisora de Texto gente quiser”, um dia cada criança há-de aprender. Estamos no Ano Europeu do Desenvolvimento (ht- tps://europa.eu/eyd2015/pt-pt), “uma oportunidade única para motivar mais europeus a implicar- -se e a participar no desenvol- vimento”. É que o Desenvolvi- mento implica mesmo o envolvi- mento de TODOS, incluindo o das crianças, elas que têm o futuro da bola-mundo nas mãos. Não faltam motivos e pretextos para tirarmos – nós, europeus – os olhos do chão. A 18 de Maio, celebra-se o Dia da Cidadania nas Escolas e, a 25 de Maio, o Dia de África. Será que aproveitamos es- tas ocasiões para, com os mais novos, aprender, reflectir e, sobre- tudo, agir sobre o nosso mundo desigual? Será possível ficarmos indiferentes? Mas, para que to- dos, miúdos e graúdos, se possam envolver e comprometer com a mudança, é fundamental e urgen- te que a Educação para o De- senvolvimento seja incluída, de forma contínua e transversal, nas agendas educativas das crianças e jovens, mas também nas rotinas diárias das famílias. Mas o que é a Educação para o Desenvolvimento? Recorro às pa- lavras do CIDAC, uma ONGD que se tem dedicado a trabalhar, com todos os públicos, esta dimensão da cidadania global: “A Educação para o Desenvolvimento (ED) é um processo educativo que envolve as pessoas e as instituições como um todo, incentivando-as a criar um pensamento crítico sobre o mun- do em que vivemos (…) e a agir em conformidade no sentido da transformação social. (…) Daí que aprender a ler o contexto – local e global – em que vivemos esteja no coração da ED. Mas aprender para mudar, em coerência com a justiça, a equidade e a solidarieda- de. (…) O que a distingue? O foco nas desigualdades, entre países como entre regiões e entre grupos sociais: o que mina o desenvolvi- mento. A necessidade de compre- ender as suas causas e não só os seus efeitos. O compromisso com Sabemos que mãos escavam o coltan para os nossos tablets e telemóveis? Cada quilo de coltan que se extrai custa a vida a duas crianças. E se, em vez de atafulharmos as nossas crianças com mais um brinquedo chinado (a custo de trabalho sem direitos) ou mais um telemóvel com coltan (extraído por trabalho infantil no Congo), lhes sugeríssemos organizar na escola uma feira de troca de brinquedos?

Outro mundo é possível!

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Artigo de opinião publicado no jornal "Correio do Vouga"

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  • Quarta-feira, 27 de maio de 2015 | Correio do Vouga | 17

    opinio

    Outro mundo possvel!

    Menino do Bairro Negro

    Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar Os meninos vo correndo Ver o sol chegar

    Menino sem condio Irmo de todos os nus Tira os olhos do cho Vem ver a luz

    Menino do mal trajar Um novo dia l vem S quem souber cantar Vir tambm

    Negro bairro negro Bairro negro Onde no h po No h sossego

    Menino pobre o teu lar Queira ou no queira o papo H-de um dia cantar Esta cano

    Se at d gosto cantar Se toda a terra sorri Quem te no h-de amar Menino a ti

    Se no fria a razo Se toda a gente quiser Um dia hs-de aprender Haja o que houver

    Zeca Afonso

    No momento em que escrevo es-te texto, falta o po nos bairros (e nos barcos) negros do Sul do pla-neta. O po, a paz, gua, escolas... No momento em que escrevo este texto, est a decorrer, do lado de c do planeta, a Semana do Desenvol-vimento, uma iniciativa da socie-dade civil que acredita que outro mundo possvel e que, se toda a

    a erradicao dessas causas () O que se faz em ED? Informar, sen-sibilizar, formar, debater, influen-ciar as polticas.

    Cada vez mais, a ED uma ver-tente imprescindvel da educao e um campo de aco propcio a ini-ciativas pedaggicas que articulem as ONG, as escolas e as famlias (e at a Pastoral Juvenil). Algumas instituies educativas, do pr-es-colar s universidades, comeam a despertar para a ED e a envolver--se, por exemplo, em projectos como o Conectando Mundos, o M&M - Move-te pela Mudana ou o voluntariado jovem em ONGD e misses de cooperao. H mui-tas propostas concretas, iniciativas e recursos pedaggicos (por ex., nos sites do CIDAC ou da M de Vida) para ajudar os mais novos a reflectir para mudar, a levantar os olhos do tablet e a volt-los para o mundo. Alis, um bom ponto de partida (como TPC de Geografia, Filosofia ou Economia) at pode ser a pesquisa, na net, da campa-nha Conhea o mundo em que vive, da revista Grande Reporta-gem. E, no fim, lanar aos alunos a pergunta de desenvolvimento: pactuas ou actuas?

    Educar para o desenvolvimento ajudar as crianas e jovens (mas tambm os adultos) a compreender como tudoestligado e como as nossas escolhas dirias e concre-tas (pactuando ou, pelo contrrio, actuando) tm impacto invisvel para ns, mas imenso nas vidas

    dos outros, do lado de l do pla-neta. Por experincia prpria (fui voluntria em frica), sei que h leituras que, na adolescncia e ju-ventude, podem ser determinantes no sentido de impelir mudana: A Fome no Mundo Explicada ao Meu Filho ou A Globalizao Ex-plicada aos Jovens... e aos Outros (Terramar). Mas como ensinar, em casa, as crianas mais pequenas a agir para mudar? Desde logo, pelo exemplo vivo e pela implica-o prtica em movimentos e op-es to simples e concretizveis como o comrcio justo (a prop-sito, J bebeu um Justo? www.imvf.org/index.php?video=940I), o consumo responsvel (vd. docu-mentrio A Histria das Coisas e o guia prtico Jovens rumo Mu-dana, disponveis na net) ou a economia solidria (j alguma vez levou os midos a um mercado de trocas para crianas?).

    Vem a o Dia da Criana, oportu-nidade excelente para fazer algo diferente! E se, em vez de atafulhar-

    mos as nossas crianas com mais um brinquedo chinado (a custo de trabalho sem direitos) ou mais um telemvel com coltan (extrado por trabalho infantil no Congo), lhes sugerssemos organizar na escola uma feira de troca de brinquedos? E se, em vez de as levarmos para a insustentvel fila do Happy Me-al descartvel, lhes mostrssemos que a fome e a felicidade de Cada Criana Conta (www.imvf.org/in-dex.php?video=1521), j que o pro-psito deste dia lutar pelos direi-tos bsicos de TODAS as crianas (e que so negados a muitas para alimentar os caprichos ou privil-gios das nossas)? No faria muito mais sentido se, nesse dia, em vez de serem apaparicados, os midos pudessem fazer algo de verdadei-ramente novo e comprometido pe-las crianas (ainda) sem direitos? Uma forma simples de ajudar a mudar poderia ser colaborarem com o seu quinho no apadrinha-mento de crianas rfs de sida (por ex., Sementes do Amanh, da FGS) ou de projectos de de-senvolvimento orientados para a infncia (uma sugesto: www.lei-gos.org/como-apoiar/campanhas.html). Para aqueles pais e avs que aproveitam o Dia da Criana para lhes oferecer um presente (de valo-res) para a vida um livro , aqui fica a sugesto de um ttulo: O Car-naval da Kissonde, do escritor an-golano Ondjaki, que reverte a favor da compreenso intercultural e das misses de cooperao dos Leigos para o Desenvolvimento.

    Desde j, outro mundo poss-vel, porque estas nfimas sementes de mudana, ao serem semeadas nos mais novos, comeam, ainda invisveis, a germinar conscincias, valores, atitudes e comportamentos comprometidos com o justo desen-volvimento global. Queira ou no queira o patro, queira ou no quei-ra o pessimismo da televiso, um dia, com o envolvimento de todos, h-de cumprir-se, aqui como no bairro negro, o sonho de Gedeo:

    o mundo pula e avanacomo bola coloridaentre as mos de uma criana.

    JOANA PORTELAMe e Revisora de Texto

    gente quiser, um dia cada criana h-de aprender. Estamos no Ano Europeu do Desenvolvimento (ht-tps://europa.eu/eyd2015/pt-pt), uma oportunidade nica para motivar mais europeus a implicar--se e a participar no desenvol-vimento. que o Desenvolvi-mento implica mesmo o envolvi-mento de TODOS, incluindo o das crianas, elas que tm o futuro da bola-mundo nas mos.

    No faltam motivos e pretextos para tirarmos ns, europeus os olhos do cho. A 18 de Maio, celebra-se o Dia da Cidadania nas Escolas e, a 25 de Maio, o Dia de frica. Ser que aproveitamos es-tas ocasies para, com os mais novos, aprender, reflectir e, sobre-tudo, agir sobre o nosso mundo desigual? Ser possvel ficarmos indiferentes? Mas, para que to-dos, midos e grados, se possam envolver e comprometer com a mudana, fundamental e urgen-te que a Educao para o De-senvolvimento seja includa, de forma contnua e transversal, nas agendas educativas das crianas e jovens, mas tambm nas rotinas dirias das famlias.

    Mas o que a Educao para o Desenvolvimento? Recorro s pa-lavras do CIDAC, uma ONGD que se tem dedicado a trabalhar, com todos os pblicos, esta dimenso da cidadania global: A Educao para o Desenvolvimento (ED) um processo educativo que envolve as pessoas e as instituies como um todo, incentivando-as a criar um pensamento crtico sobre o mun-do em que vivemos () e a agir em conformidade no sentido da transformao social. () Da que aprender a ler o contexto local e global em que vivemos esteja no corao da ED. Mas aprender para mudar, em coerncia com a justia, a equidade e a solidarieda-de. () O que a distingue? O foco nas desigualdades, entre pases como entre regies e entre grupos sociais: o que mina o desenvolvi-mento. A necessidade de compre-ender as suas causas e no s os seus efeitos. O compromisso com

    Sabemos que mos escavam o coltan para os nossos tablets e telemveis? Cada quilo de coltan que se extrai custa a vida a duas crianas.

    E se, em vez de atafulharmos as nossas crianas com mais um brinquedo chinado (a custo de trabalho sem direitos) ou mais um telemvel com coltan (extrado por trabalho infantil no Congo), lhes sugerssemos organizar na escola uma feira de troca de brinquedos?