Outros Países Das Maravilhas Para Alice

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    Outros Pases das Maravilhas para Alice: novas perspectivas para a

    Literatura Comparada apresentadas a partir do estudo de caso de Alice

    no Pas das Maravilhas Manara Aires Athayde*

    Paulo Silva Pereira**

    * Doutoranda, Universidade de Coimbra (UC), bolsista CAPES.** Professor do Departamento de Lnguas, Literaturas e Culturas. Universidade de Coimbra.

    Resumo: O intuito deste ensaio mostrar como Alice no Pas das Maravilhas, com os seus quase 150 anos, antecipa caracte-rsticas da cultura ps-moderna ou digital. Tentaremos encon-trar respostas para o fato de a obra de Lewis Carroll ser a mais explorada nos novos meios tecnolgicos, de modo a comparar a migrao da narrativa da literatura para o cinema, e do cinema para produtos new media, nomeadamente para o iPad, o Second Life e os games. Trata-se, porquanto, de questes fundamentais das Materialidades da Literatura, uma recente rea de atuao da Literatura Comparada assente na relao da literatura com as novas mdias e nas mudanas tecnolgicas que alteraram os regimes de representao da escrita e da leitura, pelo que vamos fazer um guia das esferas de investigao a partir de Alice. PalavRas-Chave: Alice no Pas das Maravilhas; Materialidades da Literatura; cultura digital; plurimedialidade.

    abstRaCt: The purpose of this article is to show how Alice in Wonderland, with its nearly 150 years, anticipates characteristics of postmodern or digital culture. We will try to find answers to the fact that the book of Lewis Carroll be further explored in the newsmedia, so as to compare the migration of the narrative of literature to film, and film to new media products, particularly for the iPad, Second Life and games. These are fundamental questions of Materialities of Literature, a recent area of activity of Comparative Literature based on the relationship between literature and new media and on the technological changes that have altered regimes of representation of writing and reading, so well make a guide of the spheres of research from Alice.KeywoRds: Alice in Wonderland; Materialities of Literature; digital culture; multiple media.

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    Ao abrir Alice no Pas das Maravilhas (1865), e a sua continuao Atravs do Espelho e o que Alice Encontrou por L (1871),1 deparamo-nos com uma histria diversa das que, monotonamente, os contos infantis nos habituaram, com os seus prncipes e princesas, fadas e duendes que povoam uma narrativa linear arrematada por um eplogo feliz. Interessa-nos aqui mostrar por que em Alice escrita na plenitude da era vitoriana pelo professor de matemtica Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), sob o pseudnimo de Lewis Carroll existe essa diferena narrativa, e que justifica o nosso debruamento sobre a histria, e como esse conto de quase 150 anos permite instaurar novas discusses no campo de investigao da Literatura Comparada, a partir de uma das suas mais recentes reas, as Materialidades da Literatura.

    De origem anglo-saxnica (como o Alice2) e com primcias nos anos 1980, esta esfera do Comparatismo prope uma nova dinmica entre as Letras, a Comunicao e as Artes3. Est assente, sobretudo, nas mudanas das tecnologias de comunicao ocorridas nas ltimas trs dcadas, que alteraram tanto os regimes de representao dos media como os regimes de representao baseados nos cdigos da escrita e da leitura. Essas modificaes resultaram num novo captulo da teoria crtica sobre as materialidades da comunicao, com reflexos tanto na investigao das formas literrias passadas como das formas literrias atuais. Dentre as reflexes suscitadas, esto as trazidas pela esttica da recepo, em que o foco deslocado da leitura para o leitor e centrado na vivncia do leitor junto obra, em detrimento da assimilao de contedo e a introjeo de interpretaes autorizadas.4

    Acontece que Alice, apesar de datar de meados do sculo XIX, o livro que apontamos como aquele que est na linha fronteiria entre o paradigma pr e o paradigma ps-digital,5 possibilitando-nos no s trabalhar com as propriedades das Materialidades da Literatura em sua narrativa, como com a circulao dessa narrativa por diferentes mdias. Trata-se de uma histria que permite ser atualizada por distintas geraes e possibilita o dilogo com textos literrios de diferentes gneros e pocas, bem como entre a literatura e outras artes e cincias, numa

    1 Nos originais, Alices Adventures in Wonderland e Through the Looking-Glass and What Alice Found There, em que este uma espcie de segundo volume da mesma obra. A maior parte das adaptaes mistura cenas dos dois livros. Como consideramos que ambos esto intrinsecamente ligados, ao referirmo-nos no ttulo deste ensaio a Alice no Pas das Maravilhas fica subtendido que tambm se trata de Atravs do Espelho e o que Alice Encontrou por l (este, inclusive, abreviaremos para Atravs do Espelho).2 A importncia de ressalvar essa relao que, sendo Charles Dodgson matemtico e tendo ele incentivado com a sua obra a conjugao das cincias exatas e das cincias humanas e da linguagem, defendemos que Alice, assim, antecipa parte importante do campo de atuao das Materialidades da Literatura, com toda a sua natureza interdisciplinar, conforme explicaremos detalhadamente adiante. 3 No mundo lusfono, a rea encontra programa pioneiro na Universidade de Coimbra, com um ncleo de investigao criado em 2010.4 Aqui, coloca-se em questo a validade doclose reading, e os seus moldes tradicionais, diante das exigncias das novas mdias. Para investigadores como N. Katherine Hayles e Susan Schreibman, o close readingno consegue mais lidar com a complexidade da literatura do sculo XXI, permanecendo ainda apenas porque assumiu um lugar proeminente como a essncia da identidade disciplinar, constituindo a maior poro do capital cultural de que os estudos literrios se socorrem paraprovar o seu valor sociedade, a saber a prpria caracterizao do mtodo de leitura, com ateno precisa e

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    perspectiva que valoriza a experincia do leitor. Alis, essa intermedialidade em que Alice se circunscreve denota o prprio papel do Comparatismo, que tem sido redefinido em razo dos objetos literrios rearticulados, das lnguas e culturas postas em questo, da emergncia de escritas vrias e suportes que ultrapassam a escrita verbal e o livro impresso como modelo. O dilogo entre textos, culturas, tempo e espaos diversos se torna o instrumento dinamizador da relao suportes/sintaxes, em suas novas linhas inscritas pela literatura e pelo cinema, pelo vdeo e pela msica, pelos discursos e pelas performances, que operam na dinmica do comparativismo hoje.

    Das propriedades dessas atuais dinmicas resultam novas caractersticas da produo literria, da relao entre autor e obra e da relao entre leitor e obra. Assim, como em Alice encontramos indcios primordiais dos anseios das Materialidades da Literatura, nosso desgnio neste ensaio elucidar na narrativa de Carroll esses indicativos que antecipam caractersticas da cultura ps-moderna ou digital, alm de alargar o campo de abrangncia das Materialidades colocando em foco a cultura da convergncia. Neste mbito, tratar-se- de ampliar o debate sobre as narrativas crossmiditicas e as narrativas transmiditicas, tentando encontrar respostas para o fato de Alice no Pas das Maravilhas ser o conto mais adaptado no mundo e o mais explorado nos novos meios tecnolgicos,6 e comparando a migrao da narrativa da literatura para o cinema, e do cinema para produtos new media, nomeadamente para o iPad, o Second Life e os games.

    Porm, mais do que descrever o percurso de Alice em todas essas redes, a grande perscruta que aqui se coloca por que em Alice, com a sua j secular existncia, encontramos uma pr-disposio para todos esses networks das Materialidades; e por que Alice a narrativa que, dos dois sculos passados, permanece em tenaz ascenso neste novo cenrio do sculo XXI. Para responder a essas perguntas, que culminam, em suma, na razo de Alice no Pas das Maravilhas ser diferente das outras histrias infantis, vamos colocar em dilogo os conceitos de narrativas crossmiditicas, narrativas transmiditicas e transduo, sugerindo que das novas experincias de leitura surgem

    detalhada retrica, ao estilo e escolha da linguagem, anlise de palavra a palavra nas tcnicas lingusticas, apreciao e articulao do valor esttico de um texto e capacidade de totalizao.5 Digital aqui no se refere somente ao mundo virtual em rede online, mas, sob o conceito de Manuel Portela, a toda uma estrutura que, independentemente do suporte, est atrelada organizao multilinear ou hipertextual, interatividade, intertextualidade e ao dinamismo.6 Morton Cohen, em biografia sobre Charles Dodgson, afirma que os livros de Alice so os mais largamente traduzidos e comentados depois da Bblia e de Shakespeare.

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    o que vamos chamar de leituras transmiditicas. Coloca-se, portanto, em voga no s o debate acerca da literatura fantstica ou nonsense, mas questes imprescindveis para se refletir sobre este novo sculo na literatura infantil, um terreno que se torna cada vez mais frtil nos ncleos de investigao das Materialidades da Literatura.

    Se formos procurar em Alice a relao entre sua narrativa e o mundo enunciativo que hoje nela podemos reconhecer, encontramos nichos comparativos que transitam da caracterizao social e do indivduo na ps-modernidade preocupao com a composio grfica e a materialidade do livro impresso e aos elementos indiciadores de novas dinmicas da narrativa, ento inscritas na era digital. Os mundos a que Alice chega, alis, depois de passar pela toca do coelho, em Alice no Pas das Maravilhas, ou pelo espelho, em Atravs do Espelho (vide a importncia de haver uma espcie de canal de comunicao, que em analogia encontramos hoje enquanto aparelhos que nos teletransportam para o mundo digital), so prenunciativos do que a sociedade viria a se tornar. No se trata de uma viso de orculo, mas de entender profundamente as diretrizes sociais e as suas dinmicas e perceber qual o caminho possvel que delas resulta. Por isso, aqui evocamos a ps-modernidade como aquela descrita por Zygmunt Bauman (1998) no como uma ruptura com a modernidade, como defende Franois Lyotard, mas como um prolongamento intensificado dela, como to bem soube reconhecer antecipadamente, numa lgica visionria, Charles Dodgson.

    As passagens entre os dois mundos evocam a transio do indivduo austero ao indivduo religado, participante do fluxo de informaes do mundo contemporneo (SILVA, 2000, p. 163), numa correlao entre o que hoje chamamos de ciberespao e o mundo dos sonhos, ambos universos paralelos onde tudo parece ser possvel. Alis, essa noo de um mundo de possibilidades ou como diria Alice, de muiticidade , est atrelada, no enredo, crise de identidade, que acompanhar todo o percurso da protagonista, que de incio tenta definir quem pelo que os outros no so.

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    Devo ter-me transformado mesmo em Mabel, e terei de viver naquela casa to pequena, sem brinquedos por perto e, oh, meu Deus, com tantas lies para estudar! No, j tomei uma deciso: se eu for Mabel, vou ficar por aqui mesmo! De nada vai servir que eles ponham a cabea e digam aqui para baixo: Volte, querida! Eu olharei para cima e direi somente: Quem sou eu, ento? Respondam-me primeiro, e ento, se eu gostar de ser essa pessoa, voltarei; se no, ficarei aqui embaixo at que eu seja outra (CARROLL, 2000, p. 33).

    Hoje, no ciberespao, h a possibilidade de se criar desde diferentes perfis identitrios em redes sociais, numa projeo do indivduo sobre a maneira como quer que o outro o veja, at vrios avatares em ambientes virtuais, assumindo mudanas radicais de personalidade. O que sintomtico, alis, numa cultura marcada pela crise de identidade, que, com toda a sua estranheza e solido7 antecipadas por Caroll, acompanha sempre o enredo e vai justificar a imerso de Alice em novos mundos, num universo de virtualizaes: mundos dentro de mundos, histrias dentro de histrias (cada captulo uma histria dentro da histria e, no prprio enredo, temos personagens sempre a contar uns aos outros histrias, como ocorre no encontro com a Lebre de Maro ou com os gmeos Tweedledum e Tweedledee).

    [muitos dilogos] representam para Alice choques de conscincia nas aventuras, pois enquanto a menina insiste numa linguagem com funo socializante, seus interlocutores trabalham com a arbitrariedade do emissor dos signos, numa atitude bem mais egocntrica, demonstrando muitas vezes hostilidade e quase no escutando Alice: nessa brincadeira de seguir o coelho ou de conferir o que existe por trs do espelho, Alice perdeu sua identidade interna, estilhaando as referncias de data, corpo, nome prprio, local e a linguagem socializadora. A oscilao fsica, as novas regras semnticas de tempo e o estranhamento da linguagem confundem a perspectiva da protagonista, que nem sempre se reconhece como criana atravs do ponto de vista do outro (GOLIN apud SPALDING, 2012, p. 126).

    7 Em Atravs do Espelho, no quinto captulo, temos uma curiosa passagem: Gostaria de conseguir ficar contente! a Rainha disse. S nunca lembro a regra. Voc deve ser muito feliz vivendo neste bosque e ficando contente quando lhe apraz!. S que isto to solitrio!, disse Alice melanclica; e ideia de sua solido, duas grossas lgrimas lhe rolaram pela face (CARROLL, 2009, p. 111). Podemos perceber que, ao longo da jornada, Alice no desenvolve nenhum relacionamento slido. A menina encontra vrios personagens, mas nenhum deles faz com que ela realmente se sinta confortvel. a solido que Bauman (1998) caracteriza como resultado de relacionamentos lquidos, com a fragilizao dos laos humanos num mundo onde as pessoas no querem mais se comprometer.

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    David Harvey (1996) concebe essa fragmentao do sujeito como um processo sem fim, de rupturas e fragmentaes cclicas no interior do indivduo, enquanto para Stuart Hall (2005), a concepo do sujeito ps-moderno no simplesmente a sua desagregao, mas o seu deslocamento. Ernest Laclau (1990), por sua vez, descreve uma estrutura deslocada como aquela em que o ncleo substitudo por uma pluralidade de centros de poder. A sociedade ps-moderna, assim, no tem um centro, um princpio articulador ou organizador desenvolvido de acordo com o desdobramento de uma nica causa ou lei. No um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade produzindo-se atravs de mudanas evolucionrias a partir de si mesma. Ela est constantemente sendo descentrada ou deslocada por foras fora de si.

    Marco Silva (2000), com a sua Sala de Aula Interativa, delineia traos dessa dissoluo do sujeito desde os primrdios da modernidade, seja em poemas de Baudelaire ou na novela Nova Helosa, de Rosseau. Afirma que a diferena entre o sujeito moderno, colocando na quota a Alice, e o sujeito ps-moderno que aquele tem conscincia da dissoluo que experimenta e, assim, se inquieta, enquanto este no se sente propriamente aturdido, mas, sobretudo, quer estar livre para fazer de si o que quiser, para fazer por si mesmo, e nenhuma autoridade ou referncia transcendente pode dar-lhe lei (SILVA, 2000, p. 163). , pois, plausvel a distino proposta por Silva, sobretudo porque o sujeito moderno o sujeito de transio, mas h objeo em assentir que Alice pertena to convictamente ao mote que caracteriza enquanto sujeito moderno.

    Uma das cenas que ilustra bem essa liberdade ps-moderna do indivduo em Alice no Pas das Maravilhas est no captulo IX, quando Alice reencontra a Duquesa e, ao ouvir vrias histrias cheias de fins moralizantes (uma pardia s histrias infantis em voga na poca), a menina discute com a soberana e reivindica o seu direito de pensar. A passagem tambm mostra a recusa a narrativas totalizantes, j que o que importa para esse sujeito fragmentado no so os objetivos, as metas, os fins, mas os processos, os nichos, as conjugaes.

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    Se por um lado Alice representa o sujeito fragmentado em sua tentativa de individuao, de busca pela originalidade e pela propriedade de pensamento, por outro quem personifica a dissoluo do sujeito so os gmeos Tweedledum e Tweedledee (personagens inspirados numa cano de ninar inglesa), tornando-se evidente em Atravs do Espelho a aluso ao processo de uniformizao do pensamento, num sistema social homogeneizante, em que as pessoas so condicionadas a pensar todas da mesma forma. Os dois personagens, no entanto, tambm assumem o papel da estranheza, no processo que Bauman (1998) designa como criao e anulao de estranhos. Nesta perspectiva, na sociedade moderna, e sob a gide do estado moderno, a busca por acabar com o estranho, com o diferente foi munida de uma destruio criativa, que demolia construindo, que mutilava corrigindo (vide a histria A Morsa e o Carpinteiro que os gmeos contam a Alice) e que, assim, conseguia, inversamente ao planejado junto a todo esforo de constituio de ordem em curso, resultar numa nova maneira de o prprio sistema criar os seus estranhos.

    Quando comparamos o captulo III de Alice no Pas das Maravilhas, no qual a menina encontra um intrigante grupo de animais, que v s margens do rio de lgrimas (um pato, um Dod, um Papagaio e uma Aguieta, alm de vrias outras criaturas curiosas), com o captulo III de Atravs do Espelho, em que Alice encontra aquilo que seria uma espcie de Arca de No em forma de locomotiva (com diversos seres como cavalos e insetos, alm de um curioso mosquito com cabea de cavalo), percebemos que no segundo volume da obra a estranheza prontamente assumida, sobretudo com os curiosos animais que no s so avocados como antropomrficos, como passam a ser assumidos em estranhas mutaes. Em Alice no Pas das Maravilhas a estranheza ainda est centrada sobretudono atrito que Alice detecta entre o mundo do qual vem e o mundo em que se encontra, isto , a estranheza sintomizada atravs da descrio das expresses de Alice, que vive estranhando tudo por ali (CARROL, 2000, p. 28).

    Ainda na intrigante passagem em que a menina

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    entra na locomotiva importante ressalvar a meno explcita ao progresso vivido pela sociedade vitoriana, com suas mquinas a vapor. No esqueamos que a motorizao, em plena emergncia quando a narrativa foi escrita, imps um valor mensurvel velocidade e modificou profundamente a relao do homem com a mquina e do homem com o tempo. Na prpria histria de Carroll temos essa sociedade de mudana constante, rpida e permanente (HALL, 2005, p. 14) anunciada no s nas situaes suscitadas, mas na construo da prpria narrativa, com um ritmo clere de imerso sobre imerso, alternncia constante entre cenas, captulos curtos e preponderncia da ao sobre a descrio, construindo uma obra veloz, rpida, alinhada com os valores do sculo seguinte sua publicao (SPALDING, 2012, p. 120).

    que em Alice comeamos a perceber as transformaes no s do espao e do tempo, mas da relao entre eles, pois uma das principais diferenas entre a modernidade e a ps-modernidade que nesta o espao se torna determinante sobre o tempo. Como, alis, fica evidente em Alice, onde a passagem do tempo dependente do espao em que se est a explorar (entra aqui a ideia de relatividade do tempo, que mudou o pensamento do homem do sculo XX e que explica, por exemplo, por que quando estamos no mundo da web no vemos o tempo passar). Alm disso, a curiosidade da menina est atrelada a um estado de esprito repleto de ansiedades, como o o do homem ps-moderno, uma vez que a ansiedade sustentada pelo mundo de celeridades, num processo de retroalimentao.

    H ainda o que Giddens (1990) chama de desalojamento do sistema social na modernidade tardia, quer dizer, a extrao das relaes dos contextos locais de interao e sua reestruturao ao longo de escalas indefinidas de espao-tempo. Nas descontinuidades, os modos de vida foram colocados em ao de uma maneira indita, tanto em extenso, em que as transformaes sociais serviram para estabelecer formas de interconexo social que cobrem o globo, quanto em intensidade, em que essas transformaes alteraram algumas das caractersticas mais ntimas e pessoais da nossa existncia cotidiana (como o foi o Pas das Maravilhas para Alice).

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    Mais uma vez temos, assim, em Atravs do Espelho, a retomada, s que agora temtica, de uma referncia que comeou a ser feita em Alice no Pas das Maravilhas, mas de uma maneira mais camuflada, sob a gide simblica. A saber que o Coelho Branco, sempre a olhar para o relgio, sempre com pressa, pode ser lido como cone da modernidade, como Carroll perspicazmente nos d pistas na discusso no Ch Maluco, embora a referncia modernidade seja mesmo explcita somente em Atravs do Espelho, na referida passagem em que Alice, querendo chegar terceira casa no jogo de xadrez em que ela um dos pees, consegue pegar o trem mencionado pela Rainha. Os passageiros, em coro, dizem para Alice: No o faa esperar, criana! Ora, o tempo dele vale mil libras o minuto! e a menina retruca: Melhor no dizer nada. A fala vale mil libras a palavra! (CARROL, 2009, p. 191).

    Por conseguinte, a prpria busca de Alice, nessa segunda parte da obra, torna-se clara: em Alice no Pas das Maravilhas, a menina simplesmente explora os mundos que lhe insurgem, sem um propsito, por curiosidade apenas (como algum que se abeira do futuro, com a desconfiana prudente e a curiosidade necessria); j em Atravs do Espelho, a menina tem um objetivo declarado, que tornar-se Rainha. Ora, aqui temos uma aluso maneira como as pessoas so excitadas competio, a uma corrida cujo objetivo estar no topo, com a promessa da mobilidade social que a modernidade trouxe, e que a ps-modernidade acentuou.

    No obstante, to logo a Rainha Vermelha informa que, quando chegar oitava casa, Alice ser uma rainha, a menina comea a correr e descobre que, no mundo do espelho, se corre corre para chegar a lugar algum. Como nas estratificaes sociais, em que a promessa da corrida e a possibilidade de ascenso servem para movimentar o sistema, mas a verdade que a maior parte das pessoas, embora no saiba, est a correr sem grandes possibilidades de mudar a sua posio no jogo, permanecendo sempre no lugar em que est. A possibilidade de ascenso, por sua vez, a grande quimera que move a engrenagem do sistema social o sonho, a esperana amalgamada expectativa de um dia alcanar o que se deseja, muitas vezes em

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    necessidades criadas pelo prprio meio. Ou, como diz Cida Golin, quando [Alice] alcana suas metas, aquele mundo que ela tentou entender, mas deixou algumas perguntas sem respostas, no serve mais. A protagonista, ento, acorda (2002, p. 52), num bom exemplo do que acontece quando algum fragmento de desejo concretizado nessa liquidez assentada da cultura ps-moderna.

    A mesma ideia est presente em Alice no Pas das Maravilhas, na Corrida do Dod, uma corrida em crculos em que no h vencedores, e no Jogo de Croquet, jogado com objetos feitos de bichos de verdade e regras indefinidas ou, pelo menos, se tem, ningum as segue (CARROLL, 2009, p. 100), nas palavras de Alice. Passagem esta, alis, que pode ser associada ao afrouxamento das regras na sociedade ps-moderna como resultado da crise de representao, em que a destruio dos referenciais deu lugar entropia, em que todos os discursos so inclusivos e sem poder totalizador (como a ps-modernidade tem lugar depois da Segunda Guerra, este um trao que surge em anttese ao totalitarismo). O resultado que no h mais padres limitados para representar a realidade, e o ps-moderno, pelo seu carter policultural, sua multiplicidade, sua hiperinformao, serve constituio de uma rede inclusiva de consumidores, como veremos mais frente.

    Tanto na Corrida do Dod como no Jogo de Croquet, Alice descobrir que no h um vencedor, pois o importante no Pas das Maravilhas no vencer nem chegar a algum lugar, mas explorar o meio. Este tambm o princpio da web, que no sustenta desgnios nem pontos de chegadas porque a contingncia do meio navegar. A propsito, interessante que apenas ao deixar-se levar pela gua de seu choro, nadando, ou navegando, para usarmos um termo da era digital, foi que Alice encontrou a entrada para aquele Pas das Maravilhas, um verdadeiro labirinto, como aos poucos o leitor descobrir (SPALDING, 2012, p. 119).

    O labirinto, alis, pode ser usado como uma metfora do ciberespao porque convida explorao, diante do traado complexo de entrecruzamentos e de caminhos, alguns sem sada e outros em bifurcaes contnuas. Tal como num labirinto, o visitante de

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    uma obra hipermiditica convidado a explorar a teia hipertextual que a constitui. [] O mais interessante descobrir os mistrios que se escondem nos seus detalhes mais discretos e a investigao infinita de suas possibilidades, e no chegar a um fim (SILVA, 2007, p. 151). Alm disso, a ideia de explorar o meio est associada ao universo labirntico porque, segundo Italo Calvino, o labirinto evoca a imagem de um mundo em que fcil perder-se, desorientar-se, e o exerccio de reencontrar a orientao adquire um valor particular, quase de um adestramento para a sobrevivncia (CALVINO, 2003, p. 223). Em vrias passagens de Alice no Pas das Maravilhas a ideia de um mundo labirntico reforada, como no captulo IV, que inicia com uma corrida da menina para uma direo qualquer, ou no captulo VI, quando Alice se depara com o famoso Gato de Cheshire e, ao revelar que no sabe exatamente para onde ir, o Gato lembra que no faz muita diferena o caminho que ir escolher.

    Toda orientao pressupe desorientao. S quem teve a experincia de estar perdido pode libertar-se dessa perturbao. Mas esses jogos de orientao so, por sua vez, jogos de desorientao. nisto que est o seu fascnio e o seu risco. O labirinto feito para se perder e desorientar quem nele se introduza. Mas o labirinto tambm constitui um desafio para o visitante, para reconstruir o seu plano e dissolver o seu poder. Se o conseguir, destruir o labirinto; no existe labirinto para quem o atravessou (ENZENSBERGER apud CALVINO, 2003, p. 223).

    Alm de uma narrativa labirntica, no suscitado espao de explorao, temos tambm em Alice a ideia de uma enciclopdia aberta, adjetivo que certamente contradiz o substantivo enciclopdia, etimologicamente nascido da pretenso de exaurir o conhecimento do mundo encerrando-o num crculo (CALVINO, 1990, p. 131). Essa forma primordial que, para Italo Calvino, nasce nos grandes romances do sculo XX, conseguimos antecipadamente encontrar nas histrias de Alice no Pas das Maravilhas e de Atravs do Espelho. Tanto que os textos dos dois volumes da obra so constitudos por uma

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    espcie de mosaico entre os dilogos das personagens e a fala do narrador, na dinmica que podemos classificar de multiplicidade, que se intensifica na ps-modernidade a partir de um prolongamento do presente.

    O presente, porquanto, acumula diferentes mundos passados, e os seus elementos, numa esfera de simultaneidade, que ento substitui a temporalidade, a causalidade ou a sequencialidade num novo espao, onde em Alice a prosdia do tempo minada atravs de irrupes constantes e de uma pulverizao das regras semnticas. O novo espao, por sua vez, no mais definido pela linearidade de relaes causais ou sequenciais, mas firmado por relaes simultneas que preterem a posio teleolgica pela contingncia de mundo. Eis, ento, o tempo plurilinear sutilmente presente em Alice, que deixa de ser concebido como uma sucesso de perodos para se orientar como um presente que, fixo em si enquanto se move adiante, atingido por vrias linhas de eventos com sentidos e direes diferentes. No momento em que a cincia desconfia das explicaes gerais e das solues que no sejam setoriais e especialsticas, o grande desafio para a literatura o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos cdigos numa viso pluralstica e multifacetada do mundo (CALVINO, 1990, p. 127).

    E por ser essa enciclopdia aberta que Alice nos revela, por exemplo, a importncia do livro impresso na sociedade vitoriana, perodo largamente reconhecido pela expanso do ensino e o aumento de letrados na classe mdia inglesa. Alice no Pas das Maravilhas iniciado, inclusive, com a irm de Alice a ler um livro e, no tarda, percebemos que a prpria Alice tambm uma leitora atenta, que se orgulha em memorizar poemas, equaes e canes. Alis, uma leitora de livros infantis pedagogizantes, como mostra a passagem em que s bebe o lquido que encontrou numa garrafa, logo aps cair na toca do coelho, quando l e no v escrito veneno, pois lera muitas historinhas divertidas sobre crianas que tinham ficado queimadas e sido comidas por animais selvagens e outras coisas desagradveis, tudo porque no se lembravam das regrinhas simples (CARROLL, 2000, p. 24). Neste mesmo quarto captulo, ao Alice se chatear

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    por ficar crescendo e diminuindo o tempo todo, encontramos um outro relevante trao da obra de Carroll: a autoconscincia da escrita, que vai ser intensificada em Atravs do Espelho.

    Eu quase desejaria no ter entrado na toca do coelho... apesar disso... apesar disso... bem curioso, sabe, este tipo de vida! Eu queria saber o que foi que aconteceu comigo. Quando eu lia contos de fadas, imaginava que esse tipo de coisa nunca acontecia, mas, agora, eis-me no meio de uma histria dessas! Deve ter algum livro escrito sobre mim, deve ter! E, quando eu crescer, vou escrever um... Mas eu j cresci, acrescentou num tom lastimoso (CARROLL, 2000, p. 51).

    Pois que, em Atravs do Espelho, fica ainda mais visvel a relevncia dada ao registro impresso e cultura letrada da Inglaterra vitoriana (o que depois tornar-se- prdigo de toda a modernidade). No incio da trama, por exemplo, logo no primeiro captulo, Alice entra no mundo do espelho e, ainda com o tamanho do lugar de onde veio, depara-se com o Rei Vermelho e segura-o com a mo, o Rei se queixa Rainha do horror daquele momento (CARROLL, 2009, p. 28) e ela sugere-o que faa uma anotao. Enquanto ele registra sua queixa num bloco de notas que carrega no bolso, Alice folheia um livro, que primeiro pensa estar escrito noutra lngua e logo depois descobre que se trata de um livro do espelho.

    O que temos, diante dessa brincadeira, uma espcie de primcias da poesia concreta, que ganhou pujana na segunda dcada do sculo XX. Em Alice no Pas das Maravilhas, no captulo III, tambm encontramos uma passagem similar quando o Rato conta a Alice uma longa tale (um dos muitos trocadilhos do livro, uma vez que tale, em ingls, tanto pode significar histria, conto como cauda, rabo) e a histria, ento, escrita sob a forma de um poema com o formato de uma cauda.

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    Esses jogos de linguagem, em que a construo do poema se assemelha a algo relacionado a seu tema, so importantes em Alice porque revelam a preeminncia dada visualidade e materialidade do livro, o uso consciente que Lewis Carroll faz do suporte impresso explorando veemente os seus recursos grficos o que um sculo mais tarde veio a se tornar de suma importncia para o Concretismo e, depois, para a literatura infanto-juvenil e para a literatura digital. Quando, logo na primeira pgina de Alice no Pas das Maravilhas, Alice se questiona para que serve um livro sem figuras nem dilogos? (CARROLL, 2000, p. 19), no falava de ilustraes servio do texto, no conceito tradicional de adornar o texto, mas j nos levava a pensar na natureza relacional dos elementos de uma pgina, na unidade que possvel se obter com eles. Trata-se, portanto, do uso do espao grfico como agente estrutural; espao, alis, que se converte num objeto em e por si. Quer dizer, a explorao espacial de significantes leva natureza produtiva do campo de significados que a lauda oferece, enquanto o espao articula nas pginas funes relativas e dinmicas de partculas elementares grficas, em que h um protocolo: o espao grfico est espera de ser ativado pelo leitor.

    (Fig. 1) Versos do livro do espelho. CARROLL, 1865, p. 18, adaptao do original. (Fig. 2) Tale desenhada por

    Carroll. Verso disponvel em

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    Em vrias passagens encontramos momentos em que as indicaes grficas so nevrlgicas para a narrativa. Nos primeiros trs captulos de Alice no Pas das Maravilhas, asteriscos esto dispostos em trs linhas para indicar as transformaes de tamanho por que passa Alice cada vez que come ou bebe algo. Tambm recorrente o uso do itlico para distinguir palavras-chave nos dilogos, como quando a lagarta pergunta para Alice Who are you? (you simboliza a crise de identidade pela qual atravessa a protagonista), ou o uso de letras maisculas, como em ORANGE MARMALADE, no primeiro captulo.

    Os recursos grficos tambm se tornam importantes para assinalar aquilo que podemos considerar como os primrdios da noo de hipertextualidade, como no captulo VI, em que consta Se voc no souber o que um grifo, olhe a ilustrao na pgina 111 (CARROLL, 2009, p. 109), ou no captulo XI, em que Alice est assistindo a um julgamento e, na cena, Carroll escreve a seguinte observao endereada ao leitor: o juiz era o Rei; e, como usava a coroa por cima da peruca (olhe antes do sumrio se quiser saber como fazia), no parecia muito vontade (CARROLL, 2009, p. 128, itlico nosso).

    No obstante, em Atravs do Espelho, encontramos ainda mais acentuado o emprego dos recursos grficos, a exemplo da reduo da fonte e do uso do itlico, no terceiro captulo, para sinalizar a fala sussurrada, o fiozinho de voz com que fala o inseto perto do ouvido de Alice. Esse aumento de conscincia sobre a manipulao do material em que o texto escrito e publicado, colocando o suporte a servio da componente textual, parece justificar, ao se comparar os dois volumes da obra, o ganho esttico em sofisticao e a perda esttica em exuberncia (2002, p. 744), nas palavras de Harold Bloom. Alice no Pas das Maravilhas uma espcie de claro movimento abrupto que j no mais possvel em Atravs do Espelho. Quer dizer, ao compararmos os dois livros, observamos que se trata da mesma histria, s que contada (sob a forma de justaposio) com uma conscincia maior sobre os elementos da narrativa e sobre a integrao do texto ao suporte, porm com um frescor menor de inovao, sendo ele somente possvel com o primeiro impacto, a primeira criao.

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    Nesse ganho esttico em sofisticao, est a consolidao da ideia de jogo, presente na tessitura da narrativa (a ordenao rtmica ou simtrica da linguagem, a acentuao eficaz pela rima ou pela assonncia, o disfarce deliberado do sentido, a construo sutil e artificial das frases), e a sua consequente complexizao. Se em Alice no Pas das Maravilhas a composio da histria elaborada em ritmo de jogo, para alm de todas as referncias que surgem, inclusive com as cartas de baralho, em Atravs do Espelho, o jogo explcito na prpria elaborao temtica, uma vez que Alice, ao atravessar o espelho, vai parar num jogo de xadrez, em que ela se torna uma das peas. Alice uma pea do jogo do narrador e tambm assume uma posio de jogador. A menina multiplica-se como personagem de dois contos, o da sua experincia onrica e o do narrador. Alice sonha, mas tambm imagem do sonho do outro (GOLIN apud SPALDING, 2012, p. 145). Ou seja, se em Alice no Pas das Maravilhas, ns temos mundos dentro de mundos, histrias dentro de histrias, em Atravs do Espelho, o que h um desdobramento: o jogo dentro do jogo, a fico dentro da fico, o sonho dentro do sonho.

    Acontece que o jogo hoje uma das principais componentes da cultura ps-moderna, inclusive parti-lhando vrias caractersticas com a literatura digital, como uma organizao plurilinear e a capacidade de permitir que o leitor, at ento passivo, se torne utilizador, participante da trama numa atmosfera imersiva. As formas mais complexas de jogo, para Johan Huizinga em seu Homo Ludens, possuem os mais nobres dons de percepo esttica (2004, p. 10), a ressalvar que a linguagem potica teria nascido enquanto jogo e que, mesmo tendo um carter sacro, na Antiguidade era simultaneamente ritual, divertimento, arte, inveno de enigmas, doutrina, persuaso, feitiaria, adivinhao, profecia e competio (p.134). essa antiga raiz, porquanto, que justifica que a cultura surja sob a forma de jogo, e atravs dele que a sociedade exprime sua interpretao da vida e do mundo (p. 53).

    O jogo, por sua vez, traz a discusso sobre o simulacro. Jean Baudrillard (1991), em Simulacros e

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    Simulaes, afirma que a sociedade ps-moderna substituiu a realidade e os significados por smbolos e signos, tor-nando a experincia humana uma simulao da realidade. A simulao, ento, seria a imitao de uma operao ou processo existente no mundo real e estaria ligada produo dos simulacros, cpias que representam ele-mentos que nunca existiram ou que no possuem mais o seu equivalente na realidade como o Pas das Maravilhas, como o ciberespao. Os simulacros, portanto, no so meramente mediaes da realidade, nem mesmo mediaes falseadoras da realidade; o que fazem, sob a perspectiva de Baudrillard, ocultar que a realidade irrelevante para a atual compreenso de nossas vidas. Ou, para utilizarmos a ideia de Umberto Eco, em Sobre os Espelhos, o universo catptrico uma realidade capaz de dar a impresso da virtualidade e o universo semisico uma virtualidade capaz de dar a impresso da realidade (1989, p. 44), entendendo por catptrico o efeito de refletir e tornar aparentemente maiores os objetos sem, no entanto, modific-los, e semisico, ao contrrio do mimtico, o plano cujos referentes esto voltados para a performance, o que faz com que os seus significados sejam consequncia de aes sociais e determinem o autoconhecimento do indivduo e suas interpretaes sobre a sociedade.

    O que acontece que o mundo icnico de Alice no Pas das Maravilhas definitivamente assumido enquanto universo simblico em Atravs do Espelho, onde toma forma manifesta a virtualizao e o simulacro atravs do jogo. Observa-se, por exemplo, que a prpria toca do coelho, enquanto canal de passagem, substituda por um espelho, que possui diversas apreenses culturais e alegricas (vide a importncia que ganha aqui o lago que materializa o reflexo de objetos, no captulo cinco). Para Umberto Eco, a magia dos espelhos consiste no fato de que a sua extensividade-intrusividade no s nos permite ver melhor o mundo mas tambm vermo-nos a ns prprios tal como nos vem os outros; trata-se de uma experincia nica (ECO, 1989, p. 20). A imagem especular dupla que exibe caractersticas de unicidade explica, segundo Eco, por que os espelhos tm inspirado tanta literatura.

    Alm disso, se o universo onde Alice perde e

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    reconstri a sua identidade um mundo nonsense, no podemos deixar de descartar a ideia do espelho deformante, que pode ser visto como uma prtese com funes alucinatrias. Afinal, se tomarmos substncias alucinognias e no soubermos que estamos drogados, acreditaremos nos nossos rgos do sentido porque nos habituamos a confiar neles, mas se o soubermos, na medida que ainda conseguirmos controlar as nossas reaes, vamos nos esforar para interpretar e traduzir os dados sensoriais e, assim, reconstruir percepes corretas da realidade (ou melhor, anlogas s da maioria dos seres humanos). O mesmo acontece com o espelho deformante. Se no soubermos nem que espelho nem que deformante, encontrar-nos-emos numa situao de normal engano perceptivo (ECO, 1989, p. 31). O que parece que Carroll se utiliza propositadamente do engano perceptivo para fazer com que nesse mundo nonsense se enxergue mais longe: quer a sua diegese prenunciadora, quer os seus personagens. Alice, por exemplo, encontra-se totalmente cega quanto ao seu futuro mais prximo, mas extremamente atenta s mensagens que recebe num deliberado presente veloz.

    Todas essas questes, contudo, esto atreladas a discusses sobre a realidade, em que a passagem para o simulacro em Alice d-se sempre pelo sono e, consequentemente, pelo mundo dos sonhos. No incio de Alice no Pas das Maravilhas temos uma sutil e reveladora correlao, quando o Caindo, caindo, caindo (a repetio do verbo parece um mantra ou uma evocao da hipnose para que o indivduo durma), durante a queda da menina na toca do coelho, associado algumas alneas depois ao E aqui Alice comeou a ficar com sono (CARROLL, 2000, p. 21). O desfecho do livro no menos revelador, com um fim que mais parece um sonho em cima de outro sonho: [Alice] continuou ali sentada, com os olhos fechados, quase acreditando estar no Pas das Maravilhas, mas sabendo que bastaria abrir de novo os olhos e tudo voltaria prosaica realidade (CARROLL, 2000, p. 152).

    Em Atravs do Espelho a discusso se torna conspcua, como aclara o nome dos dois ltimos captulos, Despertar

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    e Quem sonhou. Neste captulo XII, inclusive, h a curiosa passagem em que os gmeos Tweedledum e Tweedledee dizem a Alice que o Rei Vermelho, que ronca a ponto de todos ouvirem, que est sonhando com Alice, e no a menina com o Rei Vermelho e o Pas das Maravilhas, como ela insiste.

    Bem, no adianta voc falar sobre acord-lo, disse Tweedledum, quando no passa de uma das coisas do sonho dele. Voc sabe muito bem que no real.Eu sou real!, disse Alice e comeou a chorar. No vai ficar nem um pingo mais real chorando, observou Tweedledee. No h motivo para choro. (CARROL, 2009, p. 214).

    Primeiro, preciso dizer que as investigaes sobre a mente e seu funcionamento (e aqui entram os sonhos), bem como os ensejos para criar um sistema terico sobre o comportamento humano, estavam em voga na altura em que Charles Dodgson escreveu Alice no Pas das Maravilhas e Atravs do Espelho (no toa que a psicanlise fruto do final do sculo XIX). E tambm preciso ressalvar a maestria do escritor em antecipar discusses dessa estirpe em sua obra (vide que A Interpretao dos Sonhos, de Sigmund Freud, s foi lanado em 1900; alm disso, como segundo Golin os choques de conscincia, nas aventuras de Alice, do-se atravs do dilogo (2002, p. 51), propomos aqui uma aluso psicanlise), envolvendo faces associadas ao sonho, fantasia, alucinao, ansiedade e ao que hoje chamamos de inconsciente. Lembremos, ainda, que Charles Dodgson era um matemtico cartesiano e que a leitura cartesiana do sculo XIX estava muito prxima ideia de que a realidade uma vida sonhada, projetada pela mente (penso, logo existo).

    Interseccionando esses vetores, temos um escritor que consegue, ainda no sculo XIX, de maneira mpar, atualizar a confluncia das cincias exatas e das cincias humanas e da linguagem, o que veio a ser o pleito de atuao das Materialidades da Literatura mais de um sculo depois.

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    Um seu professor na altura, Mr. Tate, afirmava coincidirem nele [Charles Dodgson] duas tendncias opostas: um rigor enorme no esclarecimento dos problemas matemticos, a par de uma exigncia de solues exaustas e claras e, por outro lado, uma total fantasia com as palavras, desarticulando a gramtica, alterando os tempos dos verbos e desfazendo a semntica (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 23).

    Um terceiro fator relevante que Charles Dodgson foi criado no cerne da Igreja Crist, numa famlia rigorosamente puritana, e deu continuidade aos estudos na medieval Christ Church College (depois transformada na Universidade de Oxford), o que potenciou a sua educao voltada para um cristianismo alvitre da escolstica medieva, onde ocorreram as primeiras ligaes do trivium ao quadrivium, manifestadas a partir da relao entre as palavras e o ipsum,8 e onde se tornaram frequentes os debates sobre os chamados universais de Aristteles e a problemtica das ideias gerais, envolvendo o realismo e o nominalismo. essa discusso metafsica, afinal, que Carroll retoma no excerto, em que os irmos Tweedle defendem a posio realista, e o universo da existncia material, e Alice adota a viso nominalista, com o universo da existncia conceitual. Para os realistas, as ideias universais existiriam por si mesmas, pois entre o universo das coisas e o universo dos nomes haveria uma analogia tal que quanto mais universal fosse um termo gramatical, maior seria o seu grau de participao na perfeio original da ideia. Assim, o universal brancura seria mais perfeito do que qualquer coisa branca existente, por exemplo. J o nominalismo sustentava que os termos universais no existiriam em si mesmos, seriam apenas palavras sem uma existncia real. Para os nominalistas, o que existe so seres singulares e o universal no passa, portanto, de uma conveno (cf. COTRIM, 2004, pp. 122-125).

    Essa epistemologia acabou por construir a premissa cultural, denominada realismo simblico, que est patente nas discusses atuais sobre virtualizao e simulacro. Segundo essa perspectiva moderadora, cada objeto que constitui o mundo tem um sentido inerente e quanto mais universal o conceito ou o nome, maior o seu grau

    8 Ipsum, em latim, corresponde a todos os seres e coisas do mundo. A anlise dos seres e coisas do mundo, por sua vez, cabia ao quadriviume suas quatro disciplinas aritmtica, geometria, astronomia e msica ensinadas nas universidades medievais. A educao era iniciada com o estudo da linguagem, o trivium, que compreendia gramtica, lgica e retrica. Todo o percurso educativo, embora baseado no sistema de ensino romano, estava submetido teologia (cf. COTRIM, 2004, p. 123).

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    de apreenso nas coisas individuais. Ou quanto mais bem articulada a construo dos singulares, maiores as possibilidades de torn-los universais. A consequncia disso que numa sociedade cada vez mais materialista e de fulgurantes quebras cartesianas, paradoxalmente o corpo considerado dispensvel e a mente que define o ser humano numa instaurao generalizada da vontade ou desejo de virtualidade por parte da espcie humana (RDIGER, 2003, p. 70).

    O que est sempre em discusso, na verdade, o conceito de realidade. Quando um jovem se exalta, teme e vibra diante de um game, por exemplo, seus sentimentos so absolutamente reais, mesmo que o jogo em si no passe de simulao ou mesmo simulacro. como dir uma das Rainhas para Alice no nono captulo de Atravs do Espelho: se o cachorro desaparecesse, a fria restaria! (SPALDING, 2012, p. 151).

    A virtualizao e o simulacro, problematizados em Alice atravs do sonho, tambm esto associados questo da autoria e da posse, cerne de muitos debates atuais sobre o ciberespao e as suas propriedades que facultam a reproduo e a apropriao. Em passagem do captulo VIII, de Atravs do Espelho, Alice pensa ter sonhado com o Leo e o Unicrnio e, ao acordar e perceber o enorme prato de bolo aos seus ps, cogita que todos sejam parte de um mesmo sonho e diz: S espero que o sonho seja meu, e no do Rei Vermelho! No gosto de pertencer ao sonho de outra pessoa (2009, p. 268). No mesmo captulo, o Cavaleiro assume a autoria de uma cano e, to logo pe-se a cantar, Alice percebe que no inveno dele (CARROL, 2009, p. 282) e, baixinho, corrige a letra. No entanto, o que o narrador diz que vai ficar ntido na lembrana da menina o que ela sentiu naquele momento, diante dos meigos olhos azuis e o sorriso gentil do Cavaleiro, com a luz do poente cintilando atravs dele e o cavalo andando calmamente em volta (cf. CARROL, 2009, p. 257). Deixa de ser relevante, assim, a autoria da melodia, pois o que passa a interessar o efeito causado pelo que Gumbrecht (2010) chama de produo de presena.

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    Essa postura, alis, semelhante a do prprio Carroll, que ao englobar em seus dois livros poemas, canes de ninar e personagens infantis, muitas vezes recriando-os e parodiando-os, preocupa-se no com uma suposta fidelidade ao original, e sim com a construo de um novo texto (SPALDING, 2012, p. 154). Eis aqui o importante tratamento dado intertextualidade, antecipando mais uma vez uma das caractersticas fulcrais da literatura na ps-modernidade. A intertextualidade se tornou imprescindvel no s para a produo literria, como para os novos modos de leitura e de problematizao da literatura em nossa cultura, repleta de hiperligaes.

    Alm da panplia intertextual, encontramos por item prenunciador em Alicea multifuncionalidade de papis na produo de uma obra, com Lewis Carroll a assumir no somente o ofcio de autor, mas tambm de ilustrador e paginador. Ora, a primeira verso, intitulada Alice Debaixo da Terra (Alices Adventures Under Ground) e datada de dezembro de 1864 (em 1886, a MacMillan a editou pela primeira vez, tal qual o original), continha 37 ilustraes feitas por Carroll. Alm disso, o prprio texto da verso manuscrita distinto do texto que ficou consagrado, pois Alice Under Ground bem menor que Alice no Pas das Maravilhas, publicado em julho de 1865, que conta com dois episdios a mais, o do Ch Maluco e o do Gato de Cheshire. Na verso original, ainda possvel observar que diversas palavras so sublinhadas, diferentemente dos recursos do itlico e das maisculas utilizados na verso impressa. Nesta, por sua vez, temos a originalidade da conjugao entre o texto de Carroll e as 42 ilustraes de John Tenniel, num projeto cuja relevncia do tratamento grfico est prxima daquela hoje acolhida pelo design, visto no apenas em sua funo esttica mas centrado na informao, com a criao de conceitos visuais para que cada livro possua uma identidade que venha a condizer com o seu contedo.

    Outro fato relevante que foi o prprio Lewis Carroll a fazer aquela que seria a primeira adaptao de sua obra. Em 1890, j depois dos xitos alcanados com Alice no Pas das Maravilhas e Atravs do Espelho, ele publica The Nursery Alice, uma verso de Alice no Pas das Maravilhas

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    para crianas de zero a cinco anos, conforme explica no prefcio. So utilizadas vinte das ilustraes originais de Tenniel e uma nova capa assinada por E. Gertrude Thomson (amiga de Carroll). Nesta verso, iniciada com o reconhecido era uma vez, alm dos captulos serem mais curtos, com menos descries e dilogos reduzidos, h uma simulao da contao de histrias e da oralidade, com o narrador estabelecendo um dilogo mais direto com o leitor, para captar-lhe tenazmente a ateno. Assinala-se, ainda, o uso de recursos grficos que simulam a modalizao da voz, como o emprego do itlico, e a presena de ilustraes coloridas e ampliadas, que ajudam a atrair o olhar das crianas e em muito contribuem para a popularidade do livro.

    Alis, outra particularidade de Carroll que se revelou crucial para o xito de Alice no Pas das Maravilhas e de Atravs do Espelho foi o seu olhar fotogrfico,9 que potenciou no s a acuidade visual do livro bem como uma construo da narrativa atenta visualidade so comuns o que Henrique Sampaio (2012) chama de brincadeiras visuais, com a descrio de personagens que crescem e diminuem de tamanho, cenrios de ponta cabea e corredores em espiral, por exemplo , o que depois em muito veio a favorecer a adaptao cinematogrfica. Para mais, boa parte da popularidade de Alice deve-se ao cinema, a nica arte alvitre do sculo XX, que facultou a atualizao da narrativa ao longo de vrias geraes, tendo a sua primeira adaptao se confundido com a prpria histria do cinema.

    O filme Alice no Pas das Maravilhas, dirigido por Cecil M. Hepworth e Percy Stow, foi lanado em 1903, apenas oito anos depois de os Irmos Lumire terem apresentado publicamente o cinematgrafo. Trata-se de um curta-metragem com pouco mais de oito minutos, naturalmente em preto e branco e sem som, em que cada cena precedida de um excerto da obra literria, apresentando o que o espectador ver na cena seguinte. Aqui, as imagens filmadas funcionam como ilustraes, numa tentativa de adaptao fiel dos desenhos de John Tenniel, numa poca em que o cinema ainda estava descobrindo sua linguagem e sua esttica. Contudo, a

    9 A fotografia (na altura, o daguerretipo estava em fase embrionria) era outra grande paixo de Charles Dodgson, que comeou a desenvolver em 1855, quando ento tinha 23 anos. Foi nesse mesmo ano, alis, que conheceu as irms Lorina Charlotte, Edith Mary e Alice Liddell, ento filhas de Henry George Liddell, que havia acabado de assumir o cargo de deo no Christ Church College, onde Dodgson trabalhava como bibliotecrio e onde viria a se tornar professor de matemtica. No incio de junho de 1955, Dodgson faz um ensaio fotogrfico com as trs irms e, a partir da, desenvolve com elas, especialmente com Alice, uma longa amizade. Inclusive foi num passeio de barco pelo rio Tmisa que ele, de improviso, contou para as irms a histria que mais tarde resultaria no livro Alice no Pas das Maravilhas, dedicado a Alice Liddell.

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    obra j apresenta efeitos de edio, como na cena em que o beb se transforma em porco, com recortes literais nos negativos, e efeitos especiais, como quando o filme de um gato inserido em meio ao filme original, entre as rvores, evidenciando a importncia da cena para a obra e a tentativa de reproduzir o livro da forma mais fidedigna possvel.

    (Fig. 3) Aos 518 do curta, aparece a cena em que Alice encontra o Gato de Cheshire, em primcias do que hoje pode

    se chamar de efeito especial. A pelcula foi restaurada pelo BFI National Archive e pode ser assistida em .

    Para Marcelo Spalding, a relevncia de olhar com acuidade para essa primeira verso flmica de Alice que, como o curta-metragem foi realizado pouco tempo depois da inveno do cinema e a verso de Alice para iPadfoi feita no mesmo ano de lanamento do aparelho, se pensarmos no quanto a linguagem do cinema e suas potencialidades evoluram ao longo de cem anos e projetarmos essa evoluo para aparelhos digitais como os tablets, entenderemos a importncia e o potencial do livro digital para as prximas dcadas e as prximas geraes (SPALDING, 2012, p. 171).

    Spalding est a se referir ao Alice for iPad, o primeiro livro digital a explorar as potencialidades do tablet, tendo

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    sido lanado pela AppStore em abril de 2010, pouco mais de dois meses depois do lanamento do aparelho. O que quer dizer que o livro j estava a ser desenvolvido pela Apple para ser promovido junto com o iPad (o prprio nome Alice for iPad j promocional), numa tentativa de tornar o produto uma das imagens centrais do potencial do novo aparelho que estava a ser inserido no mercado.

    Os criadores, o designer Chris Stephens e o pro-gramador Ben Roberts, conseguiram promover os recursos multimdia do iPad ao animarem desenhos baseados nos de John Tenniel e permitirem que o utilizador manipule as ilustraes movimentando o tablet ou movendo com as mos determinados objetos que vo surgindo ao longo da histria. O que ficou por resolver e que ainda continua a ser a grande parbola do livro digital a anttese entre os vetores resultantes da explorao das propriedades do meio, cujo movimento e celeridade requerem ao constante do utilizador e evocam a disperso, e o texto, que exige tempo, ateno, concentrao. Em Alice for iPad h uma clara competio entre as animaes e o texto, e este que sai perdendo. Perde tambm o utilizador, que pode ter bons momentos de entretenimento com as imagens animadas e a possibilidade de manipul-las, mas que no consegue, de fato, entrar no universo profundo, complexo e reflexivo que Lewis Carroll prope.

    Como podemos ver, por exemplo, na cena das cartas de baralho pintando as rosas, que inicia o oitavo captulo. Na verso condensada para iPad, manteve-se o comeo do primeiro pargrafo, quando o narrador conta que Alice entrou em um jardim muito bonito, mas logo a seguir suprimida a discusso das cartas de baralho sobre a cor das rosas e passa-se direto narrao do momento em que elas percebem a presena de Alice, deslocando na frase o advrbio suddenly para justificar uma mudana to rpida na narrativa (SPALDING, 2012, p. 192).

    Verso originalSeven flung down his brush, and had just begun Well, of all the unjust things when his eye chanced to fall upon Alice, as she stood watching them, and he checked himself suddenly: the others looked round also, and all of them bowed low.

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    Verso condensadaSuddenly their eyes chanced to fall upon Alice as she stood watching them.

    (CARROLL e STEPHENS apud SPALDING, 2012, p. 192)

    Outro grande entrave dos livros digitais at agora concebidos justamente este: no conseguir que as propriedades dos meios singularizem a narrativa, isto , as propostas de animaes e manipulaes de Alice for iPad podem ser feitas para qualquer outra histria e em nada inscrevem as singularidades de Alice no Pas das Maravilhas, com todos os elementos que somente nesta histria podemos encontrar. Alis, a questo pode ser colocada como um problema de inscrio, pois o que torna determinada histria nica tem que estar inscrito no livro digital tambm. Agora, se a natureza do meio ir permitir avanos nesse sentido, apenas com as possibilidades trazidas com o desenvolvimento tecnolgico que pode-remos saber, assim como tem sido com o cinema, quando observamos o comportamento do medium, por exemplo, do filme de 1903 famigerada adaptao de Tim Burton em 2010.10

    E por falar em Tim Burton Tambm importante ressalvar que a escolha da Apple em adotar Alice no Pas das Maravilhas para promover o iPad no foi, em primeira instncia, pela narrativa, muito menos por todos os meandros geniais que ela apresenta. Alis, a primeira verso da Walt Disney Pictures para Alice, em 1951, tambm no foi alvitre de uma escolha pela singularidade da histria: na altura, j se havia lanado pelo menos dez filmes de animao de grande sucesso (sendo A Branca de Neve o primeiro deles, em 1937) e o xito de Alice no Pas das Maravilhas deveu-se mais ao conjunto de inovaes que a animao 2D proporcionou a toda uma gerao do que pela histria em si (a ver a adaptao completamente infantil, sem qualquer ambiguidade ou aprofundamento, que a Disney faz na altura). Lembremos que a nova verso da Walt Disney para Alice no Pas das Maravilhas, agora apostando na viso de Tim Burton, foi lanada a 25 de

    10 Existem mais de quinze adaptaes de Alice para o cinema, sem contar com as sries televisivas.

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    fevereiro de 2010 em Londres e a 05 de maro de 2010 nos Estados Unidos, e que o iPad teve o seu lanamento mundial a 12 de abril de 2010, o que nos faz ter aqui um dos mais recentes exemplos do que Henry Jenkins chamou de Cultura da Convergncia.

    Se o paradigma da revoluo digital presumia que as novas mdias substituiriam as antigas, o emergente paradigma da convergncia presume que novas e antigas mdias iro interagir de formas cada vez mais complexas. O paradigma da revoluo digital alegava que os novos meios de comunicao digital mudariam tudo. Aps o estouro da bolha pontocom, a tendncia foi imaginar que as novas mdias no haviam mudado nada. Como muitas outras coisas no ambiente miditico atual, a verdade est no meio-termo. Cada vez mais, lderes da indstria miditica esto retornando convergncia como uma forma de encontrar sentido, num momento de confusas transformaes (JENKINS, 2008, p. 31).

    Se para Jenkins a convergncia , nesse sentido, um conceito antigo assumindo novos significados, tambm o o Pas das Maravilhas, que nessa cultura da convergncia transfigura-se em Pases das Maravilhas (por isso o ttulo deste ensaio, em aluso ao novo mundo instaurado por uma complexa rede de mdias). A convergncia das mdias, contudo, no se refere apenas a mudanas tecnolgicas ou a um fim que deva ser alcanado com as novas tecnologias de informtica e de telecomunicaes; trata-se de um processo que altera, sobretudo, a relao entre tecnologias, indstrias, mercados, gneros e pblicos, na demanda de um sistema que tanto corporativo (num deslocamento de sinergias de cima para baixo, isto , das empresas para o pblico) quanto um processo de consumidor (no sentido oposto, de baixo para cima). A convergncia institucional (no caso da Alice em games, por exemplo) coexiste com a convergncia alternativa, em verses produzidas pelos prprios consumidores (como a Alice no Second Life), e a isto tem se chamado de inteligncia coletiva, que reitera a importncia da comunicao interpessoal, especialmente dos formadores de opinio das comunidades. Com a primazia da produo e da troca de informao no

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    somente ocorrendo das instituies para o pblico, mas entre os membros do pblico, torna-se cada vez mais difcil distinguir os produtores dos consumidores, ambos antes com papis bastante definidos.

    Empresas miditicas esto aprendendo a acelerar o fluxo de contedo miditico pelos canais de distribuio para aumentar as oportunidades de lucros, ampliar mercados e consolidar seus compromissos com o pblico. Consumidores esto aprendendo a utilizar as diferentes tecnologias para ter um controle mais completo sobre o fluxo da mdia e para interagir com outros consumidores (JENKINS, 2008, p. 44).

    A convergncia, assim, no deve ser compreendida apenas como um processo tecnolgico que une mltiplas funes nos mesmos aparelhos (com a proliferao de canais, acessibilidade e portabilidade), mas um processo que representa uma transformao cultural, medida que consumidores so incentivados a procurar novas informaes e fazer conexes em meio a contedos miditicos dispersos. O filme de Tim Burton, alis, retrata bem essas mudanas profundas nas formas de consumo e na produo miditica, com a promoo de novos nveis de participao dos espectadores/utilizadores para tentar formar laos mais fortes com os contedos (com o excesso de oferta e a pluralidade de meios e canais, a sobrevida de um produto cultural cada vez menor) e novas prticas narrativas adotadas para entreter essas audincias fragmentadas e dispersas.

    A propsito, nessa verso de 2010, com um roteiro assinado por Linda Woolverton, a histria deslocada no tempo e mostra Alice treze anos depois, j aos 19, retornando ao Pas das Maravilhas e encontrando-o em guerra. L ela se depara de novo com o Coelho Branco, o Dod, o Dormidongo, os gmeos Tweedledee e Tweedledum, as flores falantes e o Chapeleiro Maluco (que ganha grande destaque ao se tornar o personagem em que todo o ar enigmtico da trama centrado), alm da Rainha de Copas e da Rainha Branca; o problema, porm, que ela no se lembra de nada do que viveu nesse lugar mgico quando l esteve aos sete anos. a partir da que se

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    cria no enredo a deixa para uma grande discusso sobre a identidade de Alice, se ela seria a verdadeira Alice uma vez que no se recorda de absolutamente nada e aqui parece ser o ponto forte do enredo, que aproveita a crise de identidade proposta por Lewis Carroll atualizando-a para a crise da passagem da adolescncia para a vida adulta na cultura ps-moderna; a aluso surge logo no incio do filme, quando Alice est numa festa da nobreza em Londres, onde vive, e ao ser pedida em casamento, foge seguindo o Coelho Branco.

    A obra de Carroll utilizada apenas como referncia, como universo simblico e ficcional, um ponto de partida para a criao de narrativas, representaes e efeitos orientados para novos leitores, que alm de espectadores so, agora, na perspectiva de uma convergncia miditica, utilizadores de diferentes media em concomitncia. O afastamento do roteiro da histria de Carroll demonstra que a adaptao no est mais restrita transposio direta da verso original, mas requer uma espcie de recriao consoante a linguagem da mdia trabalhada. O filme, dessa forma, no nem precisa ser uma extenso do livro e de suas ilustraes (como tentava ser a verso de Alice de 1903, como vimos) e nem mesmo, em tempos ps-modernos, precisa manter as estruturas narrativas nucleares da diegese.

    O jogo combinatrio de possibilidades narrativas ultrapassa rapidamente o plano dos contedos para mandar ao tapete a relao de quem narra com a matria narrada e com o leitor: ou seja, estramos na mais rdua problemtica da narrativa contempornea. No por acaso que [] o escrever j no consiste no contar mas no dizer que se conta, e o que se diz vem a identificar-se com o prprio ato de o dizer (CALVINO, 2003, p. 209).

    Outros pases das Maravilhas para Alice...

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    (Fig. 4) Na verso de Tim Burton, o Chapeleiro Maluco ganha grande destaque na trama. Podemos observar, por

    exemplo, que nas imagens de promoo do filme ele est sempre centrado na cena.

    No obstante, a mesma autonomizao da narrativa tambm pode ser observada em Alice in New York (a verso seguinte de Alice for iPad), lanada em abril de 2011, um ano depois da primeira adaptao da histria para iPad e do lanamento do filme de Tim Burton. Em Alice in New York, o segundo volume da obra de Carroll, Atravs do Espelho e o que Alice Encontrou por L, adaptado para se passar na cidade de Nova Iorque, com todos os seus monumentos mticos e o seu ar cosmopolita. As ilustraes originais de John Tenniel so novamente utilizadas como referncia para as animaes, num processo de composio que surge bem mais amadurecido. Alis, logo que acessamos o trabalho percebemos que se trata de uma segunda gerao de livros para iPad, fazendo uso de novos instrumentos e explorando mais afundo recursos que no haviam sido aplicados na primeira verso como o uso de msicas rigorosamente escolhidas para acompanhar determinadas animaes (vale ressalvar que a msica no serve de ilustrao sonora, mas tem o papel de avivar as sensaes que a animao deseja transmitir).

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    (Fig. 5) Capa de Alice for iPad. (Fig. 6) Capa de Alice in New York. J nas capas percebemos a diferena entre as duas edies, a comear pelo trao, nitidamente mais prximo do

    de Tanniel no primeiro e de maior independncia autoral no segundo, com linhas negras mais delineadas, textura no

    envelhecida e referncias pop art.

    O autor Chris Stephens (o programador Ben Roberts, que havia desenvolvido com Stephens a primeira obra, j no participou desse segundo trabalho), alm de possibilitar que o utilizadoruse as mos para movimentar objetos e participar das animaes, conforme j propunha na primeira verso, cria nesse segundo livro o ponto alto de interao entre utilizadornarrativamquina quando, na ltima cena, o utilizador tem que sacudir o iPad para que a Rainha se transforme em gata, como Alice o faz no captulo XI. Diferente da lvida cena do relgio, em Alice for iPad, em que o utilizador podia balan-lo conforme balanava o iPad, o novo mecanismo apresentado importante porque traz algum indcio de que possvel, com o desenvolvimento das ferramentas do meio, reduzir os dfices ocasionados pela falta de inscrio do texto nos mecanismos de animao e manipulao, conforme enunciamos.

    A linguagem do meio, com todos os seus recursos tecnolgicos, mais do que ser encaixada nas convenes da narrativa tradicional, tem que ser assumida enquanto a linguagem da prpria histria, pois uma das grandes

    Outros pases das Maravilhas para Alice...

  • 150 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.23, 2013

    diferenas entre o suporte impresso e o suporte digital que este potencializa a linguagem medial. No h aqui, portanto, a demanda de uma hierarquizao entre a dimenso visual e a expresso verbal, mas a proposta de uma relao intersemitica, uma integrao amalgamada de resultado unssono, de forma tal a contribuir no s sinestesicamente mas idiossincrasicamente11 com o que se tem chamado de experincia de leitura.

    Porquanto, o que parece haver nas adaptaes de Alice para iPad que Chris Stephens tem um pujante projeto autoral, mas condicionado pelo conflito entre a dimenso visual e a expresso verbal em funo de o autor no saber redimensionar a histria de Carroll em seu projeto. Tim Burton parece ter razo quando diz que, ao ver mais de 60 verses, entre filmes, seriados e quadrinhos, ao longo de sua investigao para fazer o filme, percebeu que a maioria no funcionou justamente por ser muito apegada ao original, por ser muito literria (The Guardian, 06 de maro de 2010).

    (Figs. 7, 8 e 9) Pgina de Alice in New York, no momento em que o utilizador sacode o iPad para que a Rainha

    Vermelha se transforme na gata de Alice. (Figs. 10 e 11) Ilustraes de John Tanniel.

    11 Isto , no s a partir de um ludismo centrado na irrupo de sensaes, sob a guarida do entretenimento, mas, sobretudo de uma ludicidade responsvel por transformaes no processo de apreenso idiossincrsica e perceptiva do utilizador, enriquecendo-o.

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    Alis, Tim Burton realmente levou o literria a srio, uma vez que a sua verso no nada literal nem tampouco denotativamente literria, de modo que o foco no est na narrativa mas na criao esttica eis o ncleo de originalidade do filme (sendo a debilidade para uns crticos e o ponto forte para outros) e da franqueza da criao de Tim Burton para com o seu marcado e reconhecido estilo. Na adaptao, temos uma exaustiva explorao das linguagens visual e sonora, numa dispendiosa produo de cenrios, figurinos e efeitos especiais,12 a contar com a exibio em 3D, sendo o primeiro filme da Walt Disney a fazer uso da tecnologia tridimensional.13 Por isso, podemos dizer que, do ponto de vista da redimenso dada obra original fronte ao que se anseia criar em um novo meio, o filme de Tim Burton bem mais sucedido do que a verso para iPad de Chris Stephens.

    Pois que vemos o projeto autoral de Stephens em seus pontos de xito, sem ser suplantado pelo entrave textual, quando ele cria um cenrio para determinadas ilustraes de John Tenniel, como na primeira animao de Alice in New York, em que Alice, sentada em uma poltrona, segura um novelo de l. Em Tenniel, a cena restrita menina e poltrona, mas na obra de Stephens o cenrio criado mostra livros, jornais, cartas de baralho e at um controle remoto jogado no cho, atualizando a temporalidade da cena, alm de uma enorme janela que permite o leitor ver os flocos de neve caindo na cidade, demarcando a estao.

    (Fig. 12)Ilustrao de John Tenniel, no incio de Atravs do Espelho. (Fig. 13) Verso de Chris Stephens, que constri um simblico cenrio volta da personagem, na cena que melhor representa a transio de espaos e de tempos, quer entre as

    narrativas, quer entre as produes.

    12 No Oscar 2011 foi indicado a Melhores Efeitos Visuais, Melhor Direo de Arte e Melhor Figurino, tendo vencido nestas ltimas duas categorias. 13 A questo que se coloca se o uso do tridimensional realmente foi uma escolha esttica de Tim Burton ou uma deciso da Walt Disney Pictures, uma vez que no ano anterior havia sido lanado, pela 20th Century Fox, Avatar, o primeiro filme da histria a utilizar as novas tecnologias em 3D e o de maior bilheteria at ento, arrecadando quase trs bilhes de dlares em todo o mundo. O que nos leva a pensar na possibilidade do 3D ter sido adotado em Alice de Tim Burton como uma tentativa de no ficar de fora da onda do mercado que as filmagens foram feitas com cmeras convencionais e transformadas em tridimensionais, com o auxlio dos cenrios virtuais, apenas na ps-produo o que parece demonstrar que inicialmente no estavam preparados para filmagens em 3D. Para mais, vale ainda ressalvar que a verso arrecadou mais de um bilho de dlares, estando entre os quinze filmes de maior bilheteria da histria.

    Outros pases das Maravilhas para Alice...

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    Outros momentos autorais de grande fora quando o autor assume em sua adaptao a Rainha Vermelha como sendo a Esttua da Liberdade e a cidade como que um tabuleiro de xadrez, ou mesmo quando faz aluso conhecida fotografia Lunch atop a Skyscraper, tirada em 1932 por Charles Ebbets, que flagra funcionrios almoando sentados, sem equipamentos de segurana, numa barra de ferro suspensa em uma construo (caso o utilizador mova a estrutura em que as personagens esto sentadas, elas voam pelo ecr). Nesses momentos, Stephens d narrativa, atravs da linguagem da mdia que adotou, as facetas do tempo em que vive, como Lewis Carroll o fez no processo de criao de Alice. pena que esses momentos sejam pontuais e que prevalea, desde a obra digital anterior, a forosa insero do texto original retocado, fazendo com que mais uma vez a ateno narrativa falhe.

    Se em Alice for iPad os dilogos, as descries e os poemas foram suprimidos e a prpria narrao reduzida a menos de um tero, alterando no apenas o texto, mas tambm o ritmo e o jogo de linguagem de Carroll, o que temos em Alice in New York o texto original editado para encaixar, quase que fora, na adaptao proposta, inclusive na integrao com as ilustraes. Trechos do original foram recortados e emendados, bem como novas frases foram enxertadas entre frases do texto original ou frases de determinado mote do captulo foram inseridas noutra parte. O texto resultante, condensado e editado, faz sentido, embora seja empobrecido em relao riqueza lingustica e ldica do texto de Carroll (SPALDING, 2012, p. 227). Texto este, alis, que aqui est suplantado pelas imagens, estando servio delas, enquanto devia ter sido reescrito para estar em consonncia com a nova histria, com o novo tempo e com o novo cenrio, na unidade que propomos a partir da assumio da linguagem medial.

    As dificuldades do enlace narrativo (ao contrrio do que vemos nas solues to bem resolvidas apresentadas nas ilustraes) so visveis logo no incio da trama, com a ida de Alice para Nova Iorque. Em instncia alguma o texto faz referncia nova condio da Rainha Vermelha, ao fato de ela no ser uma pea de xadrez mas uma esttua

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    bastante simblica da contemporaneidade. Alm de que a cidade-xadrez que se diz ser Nova Iorque, numa perspicaz analogia s complexas estruturas das metrpoles, perde toda a sua potncia referencial quando o autor, conservando integralmente o texto de Carroll, simplesmente troca o nome de um lugar no texto original pelo nome de um lugar famoso da cidade de Nova Iorque. o que ocorre com o Bosque das Coisas sem Nomes, que na verso de Stephens o Central Park. Ora, fazer simplesmente uma troca sinttica sem desenvolver na narrativa a importncia semntica dessa substituio no permite que a quebra da verossimilhana possa ser melhor trabalhada, afinal h muito o que se pensar sobre o detrimento do lugar onde as coisas no tm nome pelo Central Park.

    O que permaneceu no trabalho de Stephens foi a ideia da ilustrao, s que agora o texto que ilustra as animaes, precisamente ao contrrio do filme de 1903, em que as cenas que so colocadas em prontido do texto. Tambm percebemos que de Alice for iPad para Alice in New York props-se uma complexizao da adaptao narrativa, embora a interao entre recursos tcnicos e texto continue cingida. A originalidade de um universo esttico prprio que Chris Stephens conseguiu a partir dos desenhos de Tenniel no foi alcanada na interveno sobre o texto de Carroll. Nesse sentido, o criador de Alice para iPad parece ter aprendido pouco com a lio sobre intertextualidade que Carroll nos d ainda no sculo XIX, ao se revelar mais preocupado em criar novas roupagens para contos, canes e poesias j existentes do que propriamente em se manter fiel a eles.

    Talvez a sada aqui, aquela a que a natureza do cinema no permite e que, assim, jamais poderamos ver no filme de Tim Burton, fosse criar para o iPad uma obra em aberto, onde os utilizadores pudessem decidir caminhos, fazer a(s) sua(s) prpria(s) histria(s) dentro da histria aquilo que Franoise Holtz-Bonneau (1986) chama de interatividade de seleo, em que o utilizador no s seleciona os contedos, como intervenciona sobre eles. Quer dizer, em vez de ter optado por um projeto espargido sobre a linearidade, o trabalho com o hipertexto permitiria usufruir de uma estrutura multilinear e em

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    rede que proporcionasse uma nova intertextualidade e um novo dilogo entre o autor e o utilizador, entre a mquina e o utilizador, quebrando a noo de totalidade orgnica. Tanto em Alice in New York como em Alice for iPad h um ndice em que possvel saltar diretamente para determinada pginas, mas o leitor no pode fazer esses saltos dentro da prpria narrativa e a prpria diviso do menu em pginas, e no em captulos, ou em personagens, no permite que o usurio faa saltos para ler determinado trecho em detrimento de outro.

    A autonomizao da narrativa em Alice in New York, na verdade, uma ressonncia do filme de Tim Burton, mas poderia ter sido levada, enfim, muito mais longe com todas as possibilidades de dimanam da plataforma digital. Certo que a anlise da obra criada para iPad nos deixa ainda mais atentos para perceber o fenmeno de confluncia miditica, tendo em vista que o filme de Tim Burton o carro-chefe de toda a promoo de Alice no Pas das Maravilhas realizada em 2010, com vrios produtos de valor agregado. O projeto Alice In WonderSLand Performed Live In SL, alis, um dos maiores exemplos desse efeito cascata. Criado em abril de 2010, dois meses depois do filme ter sido lanado, trata-se da adaptao de Alice no Pas das Maravilhas para o teatro, s que em ambiente virtual. O grupo Avatar Repertory Theater, sob a direo artstica de Jubjub Forder, realizou seis apresentaes ao vivo no Second Life, durante todo o ms de maio, seguindo a esttica sinistra, obscura, enigmtica que pudemos ver no filme de Tim Burton. This is a little girls dark fears of growing up (CNN, 25 de abril de 2010), explica Forder.

    Mas o apelo esttico de Tim Burton e de Jubjub Forder, com as suas criaes em 3D, encontra refugo em outra mdia: os videogames. Dentre um dos casos mais paradigmticos, e de baliza extrema das tendncias em curso na cultura ps-moderna, est o American McGees Alice, lanado em 2000 pela Eletronic Arts em parceria com a American McGee, para aparelho id Tech 3. No incio do game, um narrador em terceira pessoa conta que Alice (que aparece com vestido azul e olhos claros, mas em vez de loira tem agora o cabelo em tom castanho, numa espcie de indcio de transio entre a personagem consolidada

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    loira e a que viria depois desta verso primeira do jogo), ao perder os pais num incndio, passa a ter crises de catatonia (uma espcie de esquizofrenia) e tenta cometer suicdio cortando os pulsos. A menina rf, ento, internada num hospcio (construdo sob o imaginrio de como seriam os manicmios na era vitoriana), onde por uma dcada torturada. J adulta, o Coelho Branco vai busc-la para que ela possa retornar ao Pas das Maravilhas (marcado por imagens de escurido e morbidez) e livr-lo das regras despticas da Rainha de Copas. a partir daqui que o jogador se torna a Alice, com os seus artefatos de luta, incluindo facas e bombas.

    (Fig. 14) Imagem do Rutledge Asylum, onde Alice internada depois de tentar suicdio, conforme a histria narrada no incio do jogo American McGees Alice. O hospcio foi

    pensado sob o imaginrio dos manicmios no sculo XIX.

    Fato que, apesar de chocante para a maior parte das pessoas acostumadas verso de Carroll, as ilustraes de Tenniel ou mesmo as animaes da Disney, o sucesso do jogo foi tamanho (com mais de um milho de cpias vendidas em trs meses, tornando-se um dos jogos mais vendidos da histria) que, em 2011, chegou sua continuao: Alice Madness Returns, lanado para Windows, PlayStation 3, Xbox 360, iPhone, iPod e iPad. Dois anos antes, porm, em 2009, j tnhamos no Second Life o projeto Alice

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    in Wonderland Ride, de autoria desconhecida, que em vez de game funciona como uma plataforma de explorao, onde encontramos a mesma atmosfera taciturna de American McGees Alice, com personagens de expresses doentias ou semblantes maliciosos. Lemos no conviteaopasseio: Hop aboard one of the most elaborate rides in Second Life. The Alice in Wonderland ride is full of dark, whimsical surprises.

    (Fig. 15) Snapshot de Alice in Wonderland Ride, no Second Life.

    O que h de similar, porquanto, nesses produtos que assumem uma identidade ttrica, que perpassa do sombrio, como em Tim Burton e Jubjub Forder, esttica do horror, latente em American McGees Alice, que eles catalisam as angstias de um cenrio distpico na ps-modernidade, um mundo de Ambio, Subverso, Desembelezao e Distrao (CARROL, 2009, p. 113), para utilizar as palavras da Tartaruga Falsa, na passagem em que Carroll faz uma pardia ao sistema de ensino. Quer dizer, esses produtos assumem a explorao de um mundo esquizofrnico sob os sintomas de um tempo lquido (1998, p. 10), como diria alimentada e atualizada. A ver a leitura que podemos fazer de Alice Madness Returns, com a continuao do game American McGees Alice, em

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    que a luta de Alice (agora bem mais velha, com grandes olheiras e com o cabelo definitivamente negro, como o tudo ao seu redor) contra a sua demncia , na verdade, uma tentativa de salvar o seu mundo interior da destruio e tanto o seu mundo interior quanto a destruio esto simbolizados e, mais, confinados no Pas das Maravilhas.14 Como disse, no sexto captulo, o Gato de Cheshire a Alice: somos todos loucos aqui, eu sou louco, voc louca. [] Ou no teria vindo parar aqui (CARROLL, 2000, p. 84).

    Alice no Pas das Maravilhas faz explodir impetuosamente as traves mestras da lgica aristotlica, por se tratar da irrupo de um processo inconsciente de mltiplas virtualidades, indo ao encontro do inconsciente de sucessivas geraes dos seus leitores e, eventualmente, da sua loucura (ANTUNES; SAMPAIO, 1978, p. 31).

    Contudo, h, evidentemente, outros games baseados em Alice no Pas das Maravilhas que procuram manter o aspecto soft encontrado no filme da Walt Disney de 1951 e mesmo no Alice for iPad. Dentre eles est o jogo Alice in Wonderland produzido pela Disney Interactive (e lanado juntamente com o filme de Tim Burton, tambm da Disney, em 2010), ofertado para PC, Wii, Nintendo DS e Zeebo. Como so habitualmente os games da Nintendo, o que temos a Alice e os principais personagens do Pas das Maravilhas num jogo de explorao, com caminhos a serem abertos, objetos a serem descobertos e uma tabela de pontos e bnus. J no Kinect Disneyland Adventures, de 2011, tambm desenvolvido pela Disney mas agora em parceria com a Microsoft, o utilizador comanda com o seu corpo, atravs do videogame console Xbox 360, um avatar e passeia (caminha, voa) pelo parque da Disney, interage com seus personagens e encontra mini-jogos, alguns baseados em Alice, onde o utilizador tem que se desviar de objetos enquanto cai pela toca do coelho ou dar direo bola no jogo de croquet com a Rainha.

    Portanto, quando falamos nesse universo que compete a diversas plataformas, do livro ao cinema, do iPad ao Second Life, tambm estamos a falar da relao que existe entre a convergncia dos meios de comunicao,

    14 Repare que tanto em American McGees Alice quanto em Alice Madness Returns h uma juno da violncia fsica da era vitoriana, operada pelo utilizador que se assume Alice, violncia psicolgica manifestada sob a forma de medo que prevalece no mundo ps-moderno, uma vez que no se prescinde, em cada uma das verses, de trazer uma histria que contextualize o jogo.

    Outros pases das Maravilhas para Alice...

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    a cultura participativa e a inteligncia coletiva, numa profuso que perpassa pelo fluxo de contedos atravs de mltiplos suportes miditicos, pela cooperao entre variados mercados de mdia e pelo comportamento migratrio dos pblicos dos meios de comunicao, que buscam hoje sobretudo experincias de entretenimento.

    Alimentar essa convergncia tecnolgica significa uma mudana nos padres de propriedade dos meios de comunicao. Enquanto o foco da velha Hollywood era o cinema, os novos conglomerados tm interesse em controlar toda uma indstria de entretenimento. A Warner Bros produz filmes, televiso, msica popular, games, websites, brinquedos, parques de diverso, livros, jornais, revistas e quadrinhos (JENKINS, 2008, p. 42).

    Ao observar, no caso de Alice no Pas das Maravilhas, essa circulao de contedos por meio de diferentes sistemas miditicos, sistemas administrativos de mdias concorrentes e fronteiras transnacionais vemos que as experincias de entretenimento convergem cada vez mais com as experincias de leitura, num processo de transduo da narrativa e, sobretudo, de seus personagens. Nesse caso, no se trata somente de uma traduo endosemisica, na perspectiva de Susan Petrilli (2004), em que os nveis envolvidos encontram-se todos no mesmo cdigo, ou de uma traduo intersemitica ou transmutao, que Roman Jakobson (2001) aplica ao dilogo entre diversas artes, num tipo de traduo que consiste na interpretao dos signos verbais por meio de sistemas de signos no verbais. O que a noo de transduo nos traz de novo que ela, com a passagem de um nvel de cdigo para outro, subtrai a ideia de traduo e envolve o meio como principal agente de transformao no s do objeto transportado para esse meio, mas do transdutor que o transportou. Sob a proposio de Jess G. Maestro, em seu Novas Perspectivas em Semiologia Literria, transduo a transmisso (ducere, levar) de algo atravs de (trans-) um determinado meio que atua sobre o objeto, provocando nele certas transformaes (MAESTRO, 2002, p. 65).

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    (Fig. 13) Imagens de algumas Alices associadas a determinados media. importanteobservar como, ao longo

    das dcadas (ou mesmo de sculos), Alice vai ganhando traos cada vez mais adultos, como se o pblico acedente fosse

    mais velho do que o da gerao anterior. Na verdade, o que temos a constatao das mudanas, viabilizadas inclusive

    pelo desenvolvimento tecnolgico e pela insero de pblicos consumidores, na mentalidade e no comportamento de

    crianas e jovens, cujo acesso a ferramentas do mundo adulto, antes rigorosamente confinadas nele, d-se mais cedo.

    curioso ainda observar que as transformaes diegticas vo potenciando, com o passar do tempo, o crescimento de Alice, muito mais infantil em Carroll e em Tenniel (apesar dos traos

    adultos que ele lhe d), por exemplo, do que em qualquer outra adaptao realizada no sculo XXI.

    Quer dizer, se observarmos a personagem Alice em todo esse percurso de migrao entre mdias, vamos ver que ela, enquanto transdutora de uma narrativa (o objeto que transmite ou leva a algum meio) transformada justamente por esse objeto ter sido transmitido, em consequncia da interao com o meio pelo qual passa a se manifestar. Ou seja, o transdutor transformado pelo mdium e, ao mesmo tempo, essa transformao corresponde indubitavelmente a uma funo de mediao, ou melhor, de transduo entre a mensagem, que sai das mos do autor, e o pblico receptor, que est a assistir a essa transformao. Motivados pela ideia de transduo, ento podemos dizer que, ao observar o caso de Alice, no se trata apenas de uma narrativa crossmiditica, no sentido adotado por Hannele Antikainen (2004), isto , um cruzamento entre mdias em que um veculo direciona ou indica o utilizador para outro, para que se possa consumir determinado contedo ou

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    interagir em referida plataforma. Em Alice, o dilogo, mais do que ocorrer entre as mdias, d-se entre os contedos e as suas transformaes operadas pelo meio, e por isso o que temos uma narrativa transmiditica, segundo o que prope Henry Jenkins (2008).

    Para ele, possvel desenvolver diversos aspectos de uma narrativa que no cabe numa s mdia e, assim, pode-se formar um circuito (em vez de matriz, como na crossmedia) que integra mltiplos textos, em que cada utilizador sustenta, mesmo sem saber, a atividade do outro. como se tivssemos um merchandising (que, ao contrrio da propaganda, uma publicidade implcita ao contedo, e no anunciada) continuamente latente em cada mdia, que aponta para outra no atravs do suporte miditico, mas em funo da troca de contedos. Segundo Jenkins, cada acesso a uma franquia dos mltiplos suportes deve ser autnomo, para que no seja necessrio assistir ao filme do Tim Burton para gostar do game da Disney, por exemplo. As particularidades de cada mdia sustentam uma singular experincia que motiva mais consumo, mas o media no deve ser redundante ao oferecer o que j foi ofertado em outros canais ou media; explorar novos nveis de revelao e experincia renova a franquia e sustenta a fidelidade do consumidor. Afinal, mdias diferentes atraem nichos de mercado diferentes.

    Assim, se unirmos as noes de narrativa transmiditica e transduo, veremos que, enquanto mecanismos de