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500 De Romatinas a Christianitas o Humanismo à portuguesa e as visões sobre o reinado de Dom João III, O Piedoso * From Romatinas to Christianitas the Portuguese Humanism and the visions of Dom João III’s kingdom MARIA PAULA DIAS COUTO PAES Professora do Departamento de História da PUC-MG Av. Dom José Gaspar, 500 Coração Eucarístico - Belo Horizonte - MG - 30535-901 Investigadora Convidada do Centro de História do Além Mar da Universidade Nova de Lisboa – Av. de Berna, 26-C – 1069-061- Lisboa [email protected] RESUMO O presente texto aponta, ainda que de forma suscinta, alguns dos aspectos que caracterizaram o reinado de D. João III (1521-1557) tendo como objetivo central possibilitar análises outras acerca daquele período. Nesse sentido, trata-se de discutir as mais tradicionais construções histo- riográficas sobre o reinado do Piedoso na tentativa de apreender seu go- verno para além do registro dicotômico liberalidade - marca dos primeiros anos de governo em que o Rei, em muita medida, teria se alinhado aos ideais humanistas - e conservadorismo - com a instalação/implantação da Inquisição em Portugal. De fato, pretende-se proporcionar a ampliação da compreensâo de um período que refletiu uma conjuntura política, social e religiosa muito mais complexa, qual seja, o período que marcou a consti- tuição do Imperium português no século XVI. Palavras-chave Inquisição, dom João III, Humanismo * Artigo recebido em: 05/05/2007. Aprovado em 08/09/2007. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 23, nº 38: p.500-514, Jul/Dez 2007

PAES, Maria_o Humanismo à Portuguesa e as Visões Sobre Oreinado de D.joão III

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    De Romatinas a Christianitaso Humanismo portuguesa e as vises sobre o

    reinado de Dom Joo III, O Piedoso*

    From Romatinas to Christianitasthe Portuguese Humanism and the visions

    of Dom Joo IIIs kingdom

    MARIA PAULA DIAS COUTO PAESProfessora do Departamento de Histria da PUC-MG

    Av. Dom Jos Gaspar, 500 Corao Eucarstico - Belo Horizonte - MG - 30535-901Investigadora Convidada do Centro de Histria do Alm Mar

    da Universidade Nova de Lisboa Av. de Berna, 26-C 1069-061- Lisboa [email protected]

    RESUMO O presente texto aponta, ainda que de forma suscinta, alguns dos aspectos que caracterizaram o reinado de D. Joo III (1521-1557) tendo como objetivo central possibilitar anlises outras acerca daquele perodo. Nesse sentido, trata-se de discutir as mais tradicionais construes histo-riogrficas sobre o reinado do Piedoso na tentativa de apreender seu go-verno para alm do registro dicotmico liberalidade - marca dos primeiros anos de governo em que o Rei, em muita medida, teria se alinhado aos ideais humanistas - e conservadorismo - com a instalao/implantao da Inquisio em Portugal. De fato, pretende-se proporcionar a ampliao da compreenso de um perodo que refletiu uma conjuntura poltica, social e religiosa muito mais complexa, qual seja, o perodo que marcou a consti-tuio do Imperium portugus no sculo XVI.

    Palavras-chave Inquisio, dom Joo III, Humanismo

    * Artigo recebido em: 05/05/2007. Aprovado em 08/09/2007.

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    ABSTRACT This text indicates, although in a briefly way, some of the aspects that characterized the reign of D. Joo III (1521-1557) with a main objective to make possible other analysis concerning to that period. In that sense, the most traditional constructions on the historiography about the reign of the Piedoso are brought to discussion in the attempt of apprehen-ding his government for beyond the dichotomous liberality register - mark of the first years of government in which the King, in great measure, would have aligned to the humanists ideals -, and the conservatism - with the settlement/establishment of the Inquisition in Portugal. As a matter of fact, it intends to provide an enlarged comprehension of a complex political, social and religious period, that it is the time of the constitution of the Imperium Portuguese in the XVI century.

    Key words Inquisition, king Joo III, Humanism

    Algumas inferncias possibilitam apontar que foi durante o reinado de D. Joo III que a constituio mental e, portanto poltico-social, do imprio portugus comeou a ganhar importncia vital. Seja atravs das publicaes que pudessem propagar notcias sobre o Imprio entre as outras Cortes europias, seja a partir da (re)organizao das coisas do Estado que o mo-narca empreendeu. Mais do que os aspectos propriamente administrativos1 interessa, aqui, a caracterizao de D. Joo III e de sua Corte como os prin-cipais arquitetos da construo de uma representao poltica, social de um imprio em grande expanso e cuja justificao moral e religiosa estava assentada no registro da dilatao da F. Afinal, foi ele mais do que D. Manuel ainda muito absorto com o contexto interno e depois D. Sebastio empenhado na chamada viragem para a frica quem, no papel de rei, protagonizou os acontecimentos mais importantes para a consolidao do Imprio no sculo XVI.

    Ao que parece, D. Joo III compreendia a noo de que para fazer de Portugal uma voz necessria a ser ouvidas nas grandes questes europias era preciso equiparar-se sobretudo aos grandes centros poltico-intelectuais contemporneos. E, evidentemente, no se pode menosprezar a influncia que a Corte de Carlos V, politicamente muito mais poderoso, sob o seu longo reinado (1521-1557). s estratgias de se afirmar no contexto europeu dos Quinhentos, pode-se acrescentar o empenho do monarca em europeizar

    1 Apenas para mencionar as atitudes administrativas mais estruturais, D. Joo III incrementou a poltica de cons-truo de um aparelho burocrtico mais eficaz. O Reino foi dividido em novas correies e foram criados novas dioceses e novos tribunais (Mesa de Conscincia e Ordens e o Santo Ofcio da Inquisio). Foram redefinidas as funes de chanceler-mor, de chanceler da Casa de Suplicao, de juiz da Chancelaria e o novo Regimento dos desembargadores do Pao.

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    Portugal. claro, que isso significou, por sua vez, cuidados especiais com a intelectualidade dos grandes do reino tanto como instrumento formador de quadros governamentais capazes de levar adiante a sua misso im-perialista, quanto porque como mecenas das letras interessava-lhe da parte daqueles aos quais protegeu o elogio explcito na representao do seu reinado, da sua Corte e do seu Imprio. Tratava-se claramente de enaltecer a grandeza do Imprio.

    Como protetor da Universidade, D. Joo III aparece nas oraes de sapincia em referncias elogiosas. Na Universidade de Coimbra, o elogio ao monarca tornou-se parte obrigatria da oratio pois foi ele quem restituiu os Estudos Gerais a uma cidade que se considerava o locus por excelncia da intelectualidade. O Rei empreendeu considerveis esforos para prover aquela Universidade com renomados mestres muitos deles com reputao europia -, com novos edifcios. Seu esforo no foi em vo. Nas oraes de abertura a expanso ultramarina era exaltada em meio s menes Matemtica e Astronomia usadas como mote para abordar as navega-es martimas portuguesas.2 Uma representao que, por associao, concretizava o imprio portugus.

    De mecenas da intelectualidade, D. Joo III adquiriu por parte da his-toriografia a representao de homem intelectual. Mesmo que no sejam notveis seus feitos neste campo e h quem o justifique em razo das muitas ocupaes do monarca.3 Importa, de fato, a representao. Ainda que se admita, em um acordo mais ou menos tcito, que o Rei no possa ser comparado quanto s suas habilidades literrias e cientficas com al-guns de seus nobres sditos.4 No falta quem coloque a lisonja acima da prudncia para fazer de D. Joo III o modelo de soberano perfeito, vitorioso e letrado apto a fazer inveja ao prprio Alexandre.5

    Na poesia novilatina so exaltadas outras virtudes do Monarca, que era abstmio. Manuel da Costa, jurista e notvel poeta contemporneo, per-sonificou o elogio da sobriedade: D. Joo III, o rei dos Lusadas, no era inferior a nenhum outro em virtude e (re)conduz Portugal a Idade do Ouro e seus sditos so um povo glorioso na guerra, domador do Oceano.6 O poema de Manuel da costa descreve com apurado engenho e agudeza 7

    2 MAGALHES, Joaquim Romero. Os rgios protagonistas do poder. In: MAGALHES, J. R. (coord.) No alvorecer da Modernidade (1480-1620). MATTOSO, Jos (dir.). Histria de Portugal. Lisboa: Estampa, 1993, v.3, p.539-540.

    3 RAMALHO, A. Costa. Latim renascentista em Portugal. Lisboa: FCG-JNICT, 1993, p.143.4 Notadamente entre outros, D, Jorge, duque de Coimbra e mestre de Santiago; D. Pedro de Meneses, 3o. marqus

    de Vila Real e 2o. conde de Alcoutim; D. Miguel da Silva; Joo Rodrigues de S Meneses.5 Tal foi a representao construda por Antnio Lus, mdico e erudito, na sua Epistola Panagyrica dirigida a D.

    Joo III. Note-se que, Alexandre da Macednia foi educado por Aristteles e, no Renascimento, era o exemplo completo de lder ilustrado e capaz de conduzir homens. Em Os Lusadas, Cames toma-o como modelo de D. Sebastio que poder supera-lo como o Aquiles homrico.

    6 COSTA, Manuel da. De Nuptiis Eduardi Infantis Portugaliae, atque Isabellae, illustrissimi Theodosii, Brigantiae Ducis, germanae Carmen (1552). Coimbra: Biblioteca da Universidade de Coimbra, p.104-108.

    7 Com engenho e agudeza. Nesse caso, pode-se dizer com mais propriedade: com agudeza, virtude daquele que era agudo. Para uma boa compreenso acerca do conceito preciso pensar naquele que possua erudio, ou

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    - no registro da ut pictoria poesis de Horcio o duque de Bragana, ob-servando as alegorias representadas nas tapearias que adornam o palcio de D. Theodsio, em Vila Viosa. So descritas as representaes pictrias da batalha de Cochim tendo como figura central Duarte Pacheco; D. Fran-cisco de Almeida, como vice-rei da ndia, destruindo Quloa e Mombaa; a vingana de D. Francisco desencadeada no ataque a Diu aps a morte de seu filho Loureno batido pelas foras inimigas. Segue-se a descrio da fuga das tropas dos turcos e indianos e a representao de D. Fran-cisco vitorioso, coroado de louros.8 No entanto, a parte mais significativa aparece na tapearia que representa os deuses do Olimpo tomando parte nos festejos das bodas principescas. Segundo Manuel da costa, s Apolo encontrava-se ausente porque conduzia em Coimbra as construes dos novos edifcios universitrios como que construindo em favor do rei Lusitano (...) uma nova Atenas.9 Observe-se, aqui, a mesma tpica greco-romana em consonncia com as especificidades do contexto europeu durante o passar dos sculos que permeia os textos laudatrios e/ou literrios do sculo XVI at, notadamente, a primeira metade do sculo XVIII no reinado de D. Joo V.

    Claro que a construo da representao de D. Joo III como con-dutor do povo portugus Idade de Ouro tributria da sua formao, sua ligao com os principais humanistas portugueses e a contribuio desses ltimos nas reinterpretaes do prprio humanismo apreendido nos grandes centros intelectuais da Europa notadamente na Itlia e em Frana. Entretanto, a historiografia mais ortodoxa no foi condescendente ao tratar da figura e, conseqentemente, do reinado de D. Joo III.10

    Ento, vejamos: aos quatro anos de idade, D. Joo teve por preceptor, segundo designao paterna, o mestre de primeiras letras lvaro Rodrigues. Para o aprendizado da escrita esteve sob o magistrio de Martim Afonso que tinha, em Lisboa, uma escola para ensinar aos moos. Depois de demonstrado bom engenho, o prncipe teve como mestre de Gramtica D. Diogo Ortiz de Vilhegas, bispo de Tngere e prior de So Vicente de Fora. D. Diogo, era um pregador famoso e telogo respeitado chegando depois a se tornar Bispo de Viseu.11 Com o Bispo estudou os Conselhos de Cato, Terncio, Vrgilio, Salstio, partes da Bblia. Sobre a teoria dos planetas e um pouco de astrologia aprendeu com o mdico e astrlogo Toms de Torres.

    seja, conhecimento dos autores da Antigidade. Dominava a tal ponto o conhecimento da retrica aristotlica, que podia compreender as representaes mais hermticas, porque era capaz de reconhecer os smbolos em-pregados na representao alegrica e interpretar as metforas. No mais das vezes, a agudeza era uma virtude do corteso por excelncia tal como parece ter sido o poeta Manuel da Costa.

    8 COSTA, Manuel da. De Nuptiis Eduardi Infantis.., p.317-339.9 COSTA, Manuel da. De Nuptiis Eduardi Infantis.., p.372-374. 10 HERCULANO, Alexandre. Histria da origem e estabelecimento da Inquisio em Portugal. Lisboa: Bertrand, 1975,

    p.166.11 ANDRADA, Francisco de. Crnica de D. Joo III (1571). Porto: Lello & Irmo, 1976, p.5.

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    Quando da morte do Bispo D. Diogo, teve por mestre o Dr. Lus Teixeira fidalgo que obtivera muita fama em Itlia onde estivera a estudar direitos Cannico e Civil alm de Humanidades com ngelo Poliziano em Florena . Com o Dr. Teixeira aprendeu as epstolas de Ovdio, alguma coisa de Plnio e de Tito Lvio, princpios de grego e tambm algum conhecimento de leis Instituta (...) pois cos homens prticos nelas havia de ministrar justia a seus vassalos (...).12

    Do relato de Andrada, possvel apreender que o prncipe D. Joo teve uma educao pautada pelos modelos mais elevados nos primrdios do humanismo em Portugal.13 Note-se que os textos sabidamente estudados compem um conjunto de autores latinos escolhidos em meio a poetas, oradores e historiadores que deram uma marca indelvel pedagogia que o humanismo renascentista portugus iria consagrar, como demonstram os programas do Colgio das Artes criado por D. Joo trs dcadas mais tarde. Mas, talvez, mais importante que a educao formal tenham sido os anos de convivncia com os outros moos, a saber: Damio de Gis, D. Joo de Castro, Martim Afonso de Sousa, Joo de Barros. Homens que muito viriam a destacar-se nas Letras ou nas campanhas militares de conquista no ultramar durante o sculo XVI.14

    Segundo Fr. Lus de Sousa, Para tudo teve o prncepe bom natural, acompanhado de grande memria, que ua das partes que mais se reque-rem nos que estudam qualquer cincia.15 Entretanto, de fato, empreendeu pouco esforo no conhecimento do latim o que no impediu o Monarca de alimentar seu interesse pelas letras. Pelo contrrio, favoreceu aqueles que se encontravam ligados a elas e no deixou de lhes fazer honras e mercs. E, no s aos nacionais tal como comprova a Carta Em Que Erasmo Dedica a D. Joo III As Chrysostomi Lucubrationes:

    Entretanto, a virtude do vosso corao no despojada do louvor que lhe de-vido. Na verdade, todos os que so favorveis ao nome cristo aplaudem estes mui belos feitos, mas a ns toca-nos mais de perto o facto de, com tamanha benignidade e zelo, ter acalentado no s os que se dedicam a todas as Belas-Letras, mas sobretudo Teologia. Pois j, em cartas vindas a lume, testemunhou piedade digna de um Rei cristo.16

    12 ANDRADA, Francisco de. Crnica de D. Joo III (1571), p.6. (grifo meu). Note-se que, para Botero, as virtudes da Justia e da Liberalidade eram os principais meios para obter o amor dos sditos. A prudncia era considerada a virtude poltica por excelncia. Tal virtude podia ser adquirida pela experincia atravs do conhecimento da Histria e da realidade contempornea. Prudncia e Justia tinham que se fundamentar principalmente na religio e na tica catlicas.

    13 CASTRO, Anbal Pinto de. D Joo III e a literatura do Imprio. D Joo III e a literatura do Imprio. In: D. Joo III e o Imprio. Actas do Congresso Internacional Comemorativo de seu Nascimento. Lisboa: CHAM/UNL, 2004, p.1063.

    14 CASTRO, Anbal Pinto de. Damio de Gis e o seu tempo. Lisboa: Academia Portuguesa de Histria, 2002, p.123.

    15 ANAIS de D. Joo III. Lisboa: Livraria S da Costa, 1951, p.10.16 CARTA em que Erasmo dedica a D. Joo III as Chrysostomi Lucubrationes (1527). Porto: Faculdade de Letras/Uni-

    versitas Portucalensis, 1972, p.9.

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    Bastante interessante um outro trecho da mesma carta em que Eras-mo, aparentemente por motivos retricos afinal trata-se de uma carta laudatria depois de uma sucinta relao dos feitos ilustres do Rei:

    Pois, mal subiste ao trono, reorganizasse a administrao judiciria um tanto viciada pela ganncia dos advogados, aumentaste os salrios destinados aos cultores dos estudos, tornaste segura a navegao por meio de uma frota mui-to bem apetrechada, limpaste os teus domnios de todo joio, que infestava a feracssima seara da verdadeira peidade.17

    Acaba por enaltecer os predicados intelectuais de D. Joo III para alm do que se sabia verdadeiramente correspondente a realidade. Vale a pena a citao:

    E no contente com teres favorecido e patrocinado tanto professores como alunos de todos os ramos de ensino, mas sobretudo de Teologia, tu prprio, em to boa hora, aprendeste, desde tenra idade, o Grego e o Latim, sob a orientao de vares muito eruditos [...] alm disso, s to erudito em Cincias Matemticas, em Astrologia, em Geografia e em Histria, que a principal Filosofia dos Reis, que bem podes, pelo teu exemplo, levar ao amor do estudo no s os indolentes, mas tambm aqueles que lhe so contrrios.18

    Nesse trecho, de tal forma a formao erudita de D. Joo III enaltecida que nos faz pensar se hora do agradecimento dos favores e mercs dis-pensados aos intelectuais j no se fazia evidente e, claro, necessria.

    Conquanto, certamente, no fosse o erudito descrito por Erasmo, o apreo do Rei pela literatura no deixa dvidas. O gosto pelas novelas de cavalaria era patente o que se pode comprovar pelo conhecido envolvi-mento do rei na elaborao da Crnica do Imperador Clarimundo, de Joo de Barros, que ele mesmo [o prncipe] lhe ia revendo e emendando os cadernos que compunha.19 Segundo Fr. Lus de Sousa, no raro, Joo de Barros escreveu trechos daquele texto utilizando como mesa as arcas do guarda-roupas do prncipe. Ao avanar da juventude para a idade adulta, as histrias ingnuas deixam de agradar sobremaneira o futuro rei. o que se pode notar nas palavras de um trecho do prlogo da Tragicomdia de D. Duardos de autoria de Gil Vicente:

    Como quiera (...) que las comedias, farsas y moralidades que he compuesto em servicio de la reina vuestra tia (...) fueron figuras baxas, em las cuales no haba conviniente retrica que pudiese satisfacer al delicado spritu de vuestra alteza, conosc que me cumpla meter ms velas a mi pobre fusta.20

    17 CARTA em que Erasmo dedica a D. Joo III..., p.9.18 CARTA em que Erasmo dedica a D. Joo III..., p.9-10. (grifo meu).19 DISCURSOS Vrios polticos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1999, p.33.20 AS OBRAS de Gil Vicente, V. II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Centro de Estudos de Teatro, v. I, 2002, p.595.

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    Tal apresentao acerca da relao de D. Joo III com a literatura parece necessria para que se possa compreender que, no obstante seu pouco interesse pelos estudos, ele tenha acumulado uma bagagem literria que, por sua vez, refletiu-se na proteo e no mecenato dispensado impresso de obras, lanando os alicerces do que poderia atualmente ser designado como uma espcie de poltica cultural e definindo os rumos scio-polti-cos para um longo perodo de tempo. Nesse sentido, pode-se pensar, para alm da ao de incentivador da intelectualidade desenvolvida durante os 35 anos do reinado de D. Joo III, na reforma da Universidade, com a sua transferncia para a cidade de Coimbra em 1537 e tambm na criao do Colgio das Artes cerca de dez anos depois naquela mesma cidade, como marcos fundamentais para o movimento de internacionalizao de Portugal tanto em meio as Cortes europias quanto no que isso significou na afirmao do reino como metrpole de um imprio. Ainda que se deva considerar as influncias da instalao da Inquisio em Portugal dada as especificidades relacionadas s diferenas no grau de rigor e nas interven-es preventivas que se verificaram no sculo XVI.21

    A partir de 1551, a perseguio empreendida pela Inquisio aos professores do Colgio das Artes de Coimbra e a conseqente entrada da Companhia de Jesus, obviamente, modificaram o futuro inicialmente planejado para aquela instituio. Entretanto, importante destacar que, e nesse aspecto a historiografia quase consensual, a qualidade do ensino e a preparao dos mestres no sofreram, por assim dizer, quebras acen-tuadas pois os professores que partiram foram substitudos por quem nada lhes ficava a dever em matria de erudio e de preparao humanstica. Tal como os que foram retirados de suas ctedras, estes ltimos tambm tinham freqentado os Colgios de Santa Brbara, em Paris, ou de Guienne, em Bordeaux.22 Parece acertado dizer que boa parte daqueles que eram mais influentes na Corte de D. Joo III pretendia retirar da formao dos jovens portugueses o demasiado paganismo dos textos greco-latinos do Humanis-mo Renascentista. A questo perpassava pela impossibilidade de conciliar os ideais de vida o hedonismo manifesto no Carpe Diem horaciano, os prazeres carnais preconizados na Ars Amatoria ovidiana ou o conceito de glria apenas como triunfo da humanidade da Antigidade com a exege-se crist. Coube aos jesutas selar a sntese dos valores humansticos dos Antigos com as atitudes de vida que o cristianismo exigia.

    Nesta perspectiva, no reinado de D. Joo III no houve retrocesso ou atraso no sentido em que contemporaneamente so compreendidos tais conceitos. Ao contrrio, pode-se pensar na importncia do surgimento de

    21 Note-se os casos de Damio de Gis e tambm de Gil Vicente, nos quais nem o Rei nem seu irmo, o Cardeal D. Henrique, se mantiveram indiferentes.

    22 MONTAIGNE, Michel. Essais, Livre I, Chap.26. In: Ouvres completes. Paris: Ed. du Seuil, 1967, p.85.

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    um movimento organizador e impulsionador do conjunto de valores tico, morais e poltico-religiosos que possibilitou a continuidade da expanso e das conquistas no alm mar. Em Portugal, sobretudo nos Quinhentos, a maior parte da atividade nacional estava orientada em funo da empresa ultramarina. O rei, cabea do corpo da Nao, cabia a tarefa de vislum-brar a totalidade de seus sditos, das terras e das gentes que viviam sob seu poder, ou seja, cabia-lhe a conscincia acerca das outras partes do corpo poltico-social. As atenes do monarca no podiam ficar restritas a origem de seu territrio geogrfico seno por motivos de sobrevivncia em meio ao contexto europeu, porque os Descobrimentos lanaram uma luz ofuscante e definitiva sobre certezas at ento inquestionveis a efemeridade da vida, a grandeza pequena do Homem, a supremacia do transcendente na relao do Homem com Deus embora o humanismo j houvesse lanado suas novas proposies. Trata-se, aqui, do contato e do conhecimento, obrigatrio e incontornvel, com outras formas de vida, ainda que consideradas inferiores em termos civilizacionais. Tais contatos transportaram a Europa para lugares to distantes at um ponto em que o compartilhamento de cdigos acabou por gerar cdigos outros que, por sua vez, refletiram-se na matriz, ou seja, no Reino. A distncia, o isolamento as condies de conservao de territrios muito dispersos, com populaes muito diferenciadas, propiciou uma dinmica por demais especfica a partir das relaes cotidianamente vivenciadas. E, nesse sentido, no se pode desprezar a importncia do texto manuscrito e impresso que difundiu/tra-duziu, de um lado para o outro, aquela dinmica.

    Durante a primeira metade do sculo XVI, sobretudo no Reino, foram os textos literrios, as cartas, os relatos que possibilitaram queles que no conheciam os territrios ultramarinos a construo de uma imagem com-preensvel daqueles outros lugares e daquelas outras gentes. Nesse sentido, pode-se pensar nos textos, marcados por forte exaltao pica, de Joo de Barros sobre a sia depois continuados por Diogo do Couto.23 Relatos mais prximos da realidade quotidiana, tal como ela era percebida pelos portugueses, surgiriam a partir da presena daqueles autores nos locais dos acontecimentos. Tal o caso da obra de Ferno Lopes de Castanheda, Histria do Descobrimento e Conquista da ndia pelos Portugueses publi-cada a partir de 1561 e de Gaspar Correia, Lendas da ndia, elaboradas at a morte do autor em 1565 conquanto s viessem a ser editadas a partir da segunda metade do sculo XIX. A narrao historiogrfica que ento se praticava, ou seja a narrao dos acontecimentos da histria nacional ordenados de acordo com a sucesso dos reinados, acaba por propiciar,

    23 Joo de Barros inicia a escrita do texto enquanto era feitor da Casa das ndias. As trs primeiras Dcadas foram publicadas entre 1552 e 1563. A continuao elaborada por Diogo do Couto mostra os sinais das experincias vivenciadas in loco.

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    ao longo dos Descobrimentos, a incluso cada vez mais significativa do acontecido as reas de prolongamento do Reino como o Oriente e o Brasil.24 Tome-se como exemplo a Crnica de D. Manuel, escrita por Gis, ou a Crnica de D Joo III, de Francisco de Andrada. Nestas obras pode-se observar um certo preterimento dos acontecimentos da histria relativos ao Reino e das personalidades que os protagonizaram em favor das narraes das guerras do Oriente e alguns poucos extensos captulos dedicados ao Norte da frica e ao Brasil.25 H ainda que se destacar as obras de carter propriamente pico como Os Lusadas de Lus de Cames.

    Era, sem dvida, a sia, que atraa a ateno, a imaginao e, claro, proporcionava nao o vislumbre de uma riqueza imediata. O interesse pelo Brasil, seu natural exotismo para a sociedade portuguesa dos Quinhen-tos, s viria a concretizar-se quando se tornou patente a possibilidade de perda da conquista diante dos interesses de outros povos europeus, nota-damente os franceses e suas intenes de consolidar a Frana Antrtica na regio sudeste do territrio, e depois, quando a necessidade de explorao econmica passou a ser imperiosa seja em funo das riquezas minerais que se acreditavam existentes a partir da proximidade das descobertas espanholas no Potos, seja em funo das complicaes inerentes ma-nuteno das conquistas orientais. Em outras palavras, conquanto Pedro lvares Cabral tivesse aportado na costa brasileira no incio do ano de 1500, a importncia do Brasil foi descoberta dcadas mais tarde.

    H ainda que se considerar o intenso movimento de tradues, notoria-mente patrocinado pelo poder poltico, que funcionaram como instrumento disseminador e legitimador do prprio poder portugus e do seu vasto Imprio. Nesse movimento, a Europa culta e erudita pde reconhecer a constituio do Imprio, ainda que tenha servido tambm para reforar tal noo para a prpria sociedade portuguesa.26 Nesse caso, interessava, sobretudo, reafirmar perante a Espanha de Carlos V os direitos de domnio e explorao sobre as terras e mares conquistados pelos portugueses.

    Sendo D. Joo III, como rei a cabea orgnica do corpo do reino e do imprio, possvel tomar como certo que toda essa produo literria

    24 CASTRO, Anbal Pinto de. D Joo III e a literatura do Imprio. D Joo III e a literatura do Imprio, p.1070-1072.25 ANDRADA, Francisco de. Crnica de D. Joo III (1571). Porto: Lello & Irmo, 1976.26 Destacam-se a verso francesa elaborada por Nicolau de Grouchy do primeiro tomo da Histria do Descobrimento

    e Conquista da ndia, de Lopes de Castanheda, intitulada LHistoire des Indes de Portugalcontenant comment lInde a este decouverte par l commandement du Roy Emanuel, & la guerre que ls Capitaines Portugalois ont mene pour la conqueste dicelles, publicada pela primeira vez em Anturpia no ano de 1533 e depois em Paris nos anos de 1554 e 1581. Os dois primeiros tomos da obra de Castanheda, foram traduzidos em italiano por Afonso Ulhoa com o ttulo Historia delle Indie Orientali scoperte, e conquistate daPortoghesi di commissione dellinvittissimo Re Dom manuello di gloriosa memria, publicados em Veneza no ano de 1578. Ainda outra traduo em espanhol apenas do primeiro tomo, foi publicada em Anturpia em 1554, com o ttulo Historia Del descubrimiento y conquista de la ndia por los Portugueses. importante observar que a proximidade das datas de publicao espelham tanto o reflexo do interesse europeu por este tipo de narrativa, quanto a inteno deliberada de propagao dos feitos portugueses pela Coroa. Nesse sentido, pode-se lembrar que foi o prprio D. Joo III quem chamou, em 1548, Nicolau de Grouchy para ensinar no Colgio das Artes em Coimbra. CURTO, Diogo (dir.) O tempo de Vasco da Gama. Lisboa: Difel/CNCDP, 1988, p.369-379

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    teve sua chancela e aprovao ainda mais levando-se em considerao a relativa pobreza da nobreza portuguesa e/ou sua manifesta inapetncia para o mecenato. Ento, mais do que aprovao, os escritores contaram com a proteo do Rei, para as pessoas e instituies, atravs de privil-gios, tenas, moradias e outras formas de proteo moral e material. Tais constataes comprovam-se na quantidade de obras em que aparecem dedicatrias a D. Joo III. Para citar exemplos bastante conhecidos: Joo de Barros dedicou ao Monarca a primeira dcada de sia e Castanheda endereou-lhe o Prlogo do primeiro livro do seu Histria do Descobrimento e Conquista da ndia pelos Portugueses.

    Entretanto, para esta anlise, o mais interessante parece ser o Prlogo que Gil Vicente escreveu para a edio de suas Obras e que seu filho, Lus, inseriu no comeo do volume da Copilaam, impresso por Joo lvares entre 1562 e 1563:

    Porm, querendo eu no presente prembulo ajudar-me do seu costumado estilo [dos escritores Antigos] em querer louvar as excelncias de vossa alteza como eles fazem aos senhores a quem suas obras endeream, que farei? Sendo certo que ainda fosse em mi s a sua oratria tam fecunda como em todos eles e me fosse traspassado o spirito de David, nam presumiria escrever de vossa alteza a mnima parte de sua magnfica bondade, de sua nobilssima condio, de sua discreta mansido, do perfeito zelo de sua justia, da paz, da guerra, da sua graa,gravidade, conselho, sabedoria, liberalidade, prudncia e finalmente do seu cristianssimo firmamento (...).27

    Observe-se que ao rei D. Joo III, so atribudas pelo autor as virtudes greco-latinas com as quais o humanismo renascentista viria a abastecer as reinterpretaes neotomsticas que, por sua vez, possibilitariam a constitui-o de uma teologia poltica em que o prncipe cristo garantia sua legiti-midade perante a sociedade porque passava a valer como representante de Deus na Terra e condutor de seus sditos, bem como a construo de uma razo de Estado que acabou por ser adotada em Portugal marcada-mente at a primeira metade do sculo XVIII.28 No cabe, evidentemente, compreender o reinado de D. Joo III, nem o de D. Sebastio, no registro de uma razo de Estado teolgico-poltica funcionando como um instru-

    27 AS OBRAS de Gil Vicente, p.14. (grifo meu).28 A razo de Estado, vinculada a uma teologia poltica, teve como significativa referncia doutrinria o livro de Giovanni

    Botero, Della ragion di stato, publicado em 1588. Botero apresentava um prncipe persuadido e comprometido com as premissas do catolicismo. Natural do Piemonte, Botero nutria pelos portugueses uma notvel admirao, conquanto essa admirao fosse comum ao pensamento poltico catlico dos autores italianos dos Quinhentos. Segundo ele, nenhuma nao estava to empenhada em servir com tanto zelo, tanta honra, a Jesus Cristo, nenhuma era to prdiga na propaganda da f catlica quanto Portugal. Para Botero, as virtudes da Justia, da Liberalidade (significando magnificncia) e da Prudncia (como sabedoria) eram as principais virtudes polticas. TORGAL, Lus Reis, Introduo, In: BOTERO, Joo, Da razo de Estado. Coimbra: Universidade de Coimbra-Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1992, XXV.

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    mento de conduo da poltica e da sociedade, mas as bases j estavam a ser lanadas.

    D. Joo III personificou o orgulho nacional como desbravador dos mares, com qualidades que permitiram que fosse representado como os heris antigos. Parece possvel pensar que consciente dessa representa-o aproveitou para retirar lies que se refletiram pragmaticamente na sua ao governativa, apreciou o grande teatro da vida que era a Corte, contrariou-se com os empecilhos que minimizavam seus ideais de empre-ender uma empresa nacional voltada dilatao do Imprio de Cristo e ao enriquecimento da Metrpole.

    As interpretaes historiogrficas mais ortodoxas persistem na diviso do reinado de D. Joo III em dois perodos bem definidos: o primeiro, mais positivo, relaciona-se proteo dos intelectuais e abertura laica do humanismo. O segundo perodo, no mais das vezes considerado como obscurantista, foi marcado pela instituio da Inquisio o que teria determi-nado o retrocesso poltico, social e intelectual no Reino. Anlise bastante simplista acerca de uma conjuntura muito mais complexa.29 Um conjunto de tenses vividas no Reino a partir da dcada de 1540, ao qual se devem incluir aquelas que se relacionam ao incremento do processo colonizador no Brasil, serviram para sedimentar a idia de crise que teria marcado toda a segunda metade dos Quinhentos.

    Ao que parece, podia sentir-se em Portugal a dificuldade inerente em administrar e controlar espaos territoriais to dispersos quanto aqueles que integravam o Imprio. Conquanto alguns dos territrios estivessem a poucos milhares de lguas de distncia, como os arquiplagos dos Aores e da Madeira, ou mesmo os da costa africana, outros como os do Oriente e do Brasil, s permitiam o estabelecimento de contatos distorcidos pela distncia dos meses gastos nos trajetos de idas e vindas. Ao contrrio das colnias gregas e romanas em permanente contato atravs do mar medi-terrneo, as colnias portuguesas espalhavam-se pelos mares determinan-do ligaes tnues e contatos esparsos. Alm disso, a Coroa no podia disponibilizar significativos recursos poltico-administrativos e a escassez das gentes foram fatores importantes na maximizao das dificuldades de gerncia do Imprio. Tudo parecia ser por demais complexo tornando o imprio portugus num imprio impossvel, tal como observado por alguns historiadores.30

    Ento, Lisboa, como cabea, teria que delegar aos membros do Im-prio partes das funes para impedir que a distncia e os outros fatores citados pudessem resultar na combinao esfriado o amor e truncada

    29 XAVIER, ngela Barreto. A inveno de Goa. Poder imperial e converses culturais nos sculos XVI e XVII. Florena: IUE, 2003, p.9-20. (Tese, doutoramento em Histria)

    30 FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe. O milnio. A histria dos ltimos 1000 anos. Lisboa: Presena, 1996.

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    a comunicao.31 Parece que a partir destas circunstncias surgiram as tentativas de elaborao de respostas s novas necessidades de territrios conquistados e/ou desejados pelos portugueses para alm dos aconteci-mentos relacionados ao contexto europeu. Notadamente, pode-se citar as alteraes geopolticas no ndico a rotao asitica de Suleimo, os novos interesses de Ismail I, as conquistas de Babur, o imprio de Vijayanagar, a economia do ndico oriental e a sua articulao com os mares ocidentais ,32 o surgimento do Luteranismo e o Conclio de Trento, a eleio de Car-los de Habsburgo como Carlos V, a conquista do Mxico por Corts e do imprio inca por Pizarro, a descoberta das minas de Potos. Alm disso, acentuava-se a fragilidade do Tratado de Tordesilhas no momento em que crescia entre as naes europias a noo de que os mares eram livres33 e que os critrios de direito de dominao assentavam-se sobre a capacidade de estabelecimento de gente, casas e explorao da terra. Tudo isso con-tribuiu para que a noo de imprio se modificasse em meio conjuntura poltico-social portuguesa.

    O conjunto de alteraes normativas e as atitudes empreendidas no sentido de (re)organizao no reino e no imprio, durante o reinado de D. Joo III, parecem refletir um certo ordenamento, quase um plano, de reordenamento poltico, social e intelectual com vistas a possibilitar a criao das condies propcias uma cristianizao, latu senso, das sociedades de modo a proporcionar a conservao da dominao poltica pretendida. Segundo ngela Xavier, tal procedimento revelador de que estava em curso um processo de confessionalizao da prpria monar-quia portuguesa.34

    Nesse sentido, bem conhecida a opo adotada pela Metrpole, sobretudo porque cristianizao passou a valer como civilizao e atravs do compartilhamento de cdigos de valores como dominao. O que, de fato, parece ainda complicado compreender a existncia de um plano preconcebido. Entretanto, tambm no causa menos incmodo pensar que a opo da Coroa possa ser entendida apenas como fruto de compromis-sos mais do que da concretizao de um plano preconcebido.35 Parece mais interessante trabalhar com a perspectiva de que elementos de ambas as concepes marcaram, em medidas diferenciadas, as aes da Coroa. Veja-se alguns argumentos que podem corroborar tal constatao: por um lado, possvel admitir alguma coisa de preconcebido na medida em que se coloca sob o foco de anlise o fato de que nestas dcadas centrais,

    31 CONFALONIERI, Gianbattista. Por terras de Portugal (1581). Biblioteca Nacional de Lisboa, 2003, p.13.32 SUBRAHMANYAM, Sanjay. O imprio asitico portugus. Lisboa: Presena, 1995, p.337-405.33 GROTIUS, Hugo. Le droit de la guerre et de la paix. Traduit par P. Pradier-Fedr. Paris: Presses Universitaires de

    France, 1999.34 XAVIER, ngela Barreto. A inveno de Goa, p.9.35 TOMAZ, Lus Felipe. A poltica oriental de D. Manuel I e seus concorrentes. In: De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel,

    1994, p.205.

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    decisrias para as empresas portuguesas, o corteso e humanista Francisco de Holanda expunha a tese claramente neoplatnica de que a ao devia derivar da idia ao mesmo tempo em que muitos outros neoplatnicos exaltavam a capacidade inventiva do sujeito. Por outro, pesa a construo de uma representao na qual D. Joo III sempre caracterizado como pragmtico, mas hesitante, um governante sem grandes planos de ao, sobretudo porque o modelo poltico no foi colocado em causa, qual seja, o prncipe como administrador da coisa pblica a partir de uma realidade pr-existente, de uma ordem natural e imutvel. Nesse caso, pelo menos duas observaes parecem relevantes. Em primeiro lugar, hesitao pode expressar uma atitude de Prudncia: aguardar o momento mais propcio, retroceder para depois avanar quando as circunstncias demonstrassem maior facilidade de sucesso na empresa pretendida. Em segundo lugar, pre-concebido parece no significar premeditado. A medida certa, o meio termo, a sensibilidade quanto complexidade das experincias polticas, sociais e religiosas vivenciadas nos Quinhentos parece apontar para a possibilidade da fuso entre a constituio de uma certa noo de planejamento e as constantes adaptaes exigidas pelos acontecimentos cotidianos.

    O reinado de D. Joo III, quase sempre subvalorizado pela historiografia tradicional como um perodo encravado entre a fortuna manuelina tempo das viagens de Vasco da Gama e Pedro lvares Cabral e a tragdia da batalha de Alccer-Quibir quando morreu o Rei D. Sebastio; a imagem um tanto equivocada dos sucessores de D. Manuel como governantes manipulados pelos interesses dos nobres parece no refletir com justia o reinado joanino.36 Conquanto, seja possvel apontar para o fato de que a constituio da Corte joanina foi ocupada por uma nobreza de linhagens pouco conhecidas qual o Rei atribuiu importantes ttulos e mercs, qual tambm procurou construir uma memria e uma representao social que pudessem justificar a sua posio, bem como a construo de uma representao erudita do prprio monarca, so aes indicadoras de que ao mesmo tempo em que tentava minimizar alguns dos constrangimentos colocados pela tradio constitucional do Reino, procurou reforma-lo de acordo com outras formulaes polticas e sociais.37

    A reforma empreendida durante o reinado de D. Joo III aponta para a adoo de aes de interveno constante da Coroa, inclusive no orde-namento e na reorganizao das estruturas que j existiam. Mas, sobretu-do, construo de um novo espao imperial capaz de reproduzir nas reas do ultramar, na medida em que isso foi possvel, o espao do Reino

    36 HESPANHA, Antnio Manuel. Poder e Instituies no antigo Regime. Lisboa: Cadernos Penlope/Cosmos, 1992.

    37 PEARSON, M. N. The portguese in ndia. In: The New Cambridge History of ndia. Cambrigde/New York/Port Chester/Melbourne/Sydeney: CUP, 1987, p.99-104.

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    no Imprio. No sentido prtico, a adoo de tais medidas reformistas significou que as instituies tambm deviam refletir o estado das coisas tal como acontecia no Reino, ou seja, deveriam ser to autnomas ou to dependentes da Coroa como eram as do Reino. Nesse sentido, pressu-punha colocar fim ao tipo de autonomia que at poca tinha organizado a presena portuguesa nas reas de domnio, entretanto, sem prejuzo da delegao de poderes, to indispensvel diante da vastido do Imp-rio, s que ento fortemente encabeada pela Coroa. Ao mesmo tempo, significou acabar com a poltica de mestiagem no caso Brasil h que se minimizar a mestiagem como uma ao poltica a partir do estmulo dos casamentos com mulheres enviadas do Reino. Aqui, constata-se a constante tentativa de branqueamento dos colonos/sditos mestios que percorre todo o perodo do processo colonizador, sobretudo no Brasil onde as questes de povoamento, explorao e consolidao da dominao estavam intrinsecamente relacionadas. Por fim, mas sem prejuzo de sua ao fundamental, h que se destacar a estratgia de evangelizao como instrumento primordial para efetivar nas reas imperiais a representao do poder do prncipe cristo que as governava.38

    Mas, ainda h alguns fatores que no podem deixar de ser aqui ana-lisados. Talvez, o mais intrigante, seja as questes que se relacionam ao que a historiografia comumente se refere como perodo de atraso que caracterizou o reinado joanino justamente porque tal discusso torna mais complexas a compreenso das aes de carter reformista que vem sendo discutidas acima.

    De acordo com a idia de que o governo de D. Joo III, teria sido marca-do por um atraso de Portugal diante das outras naes europias muito clara a perspectiva de que, no momento inicial do seu reinado, o monarca acolheu o humanismo e, nas palavras de Antnio Castilho, restitura em Portugal as letras, que a ignorncia de alguns e o descuido dos Prncipes tinham degradadas do Reino.39 Assim, D. Joo III teria marcado sua dife-rena em relao ao reinado anterior, ainda muito influenciado pelos ideais militares medievais, ao privilegiar os comportamentos cortesos renascen-tistas. Compondo um crculo de literatos que o rodeavam, o Rei tornou-se conhecido como protetor e mecenas das artes e das letras. Criou-se, ao que parece, pelo menos para os contemporneos a representao de um governante erudito e aberto s novidades do mundo civilizado.

    Conforme a historiografia mais tradicional, como que a inaugurar um outro ciclo de governana, D. Joo III, teria se esforado para desfazer aquilo

    38 PAES, Maria Paula Dias Couto, Vislumbres do Sol. In: Teatro do Controle. Prudncia e Persuaso nas Minas do Ouro. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.168-170. (Dissertao: Mestrado em Histria).

    39 DIAS, J. S. S. A poltica cultural da poca de D. Joo III. Coimbra: Instituto de Estudos Filosficos, 1969 Coimbra: Instituto de Estudos Filosficos, 1969, p.855.

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    que ele mesmo havia construdo, ou seja, em detrimento da proteo ao humanismo laico passaram a contar com os favores do Rei aqueles que pre-conizavam uma educao pautada por parmetros religiosos que acabaria por submeter a Coroa aos pressupostos destes ltimos. As hesitaes, os compromissos assumidos diante do surgimento do luteranismo da par-te de D. Joo III seriam responsveis pelo fato de que o humanismo laico no pde assentar bases slidas em Portugal, no sendo capaz de alterar significativamente a forma mentis da sociedade. Ao contrrio, a Europa protestante passou a valer como promessa de modernidade. Em Portugal, o ensino jesutico, a Inquisio e a censura teriam aniquilado qualquer vislumbre de abertura porque fizeram triunfar o obscurantismo intelectual e cientfico e os mais reacionrios cnones polticos.

    Entretanto, a prpria ordem cronolgica dos acontecimentos demons-tram a pouca validade da viso dicotmica acerca do reinado de D. Joo III. Observe-se que a instalao da Inquisio em Portugal data de 1536 e a refundao da Universidade ocorreu no ano de 1537, a criao do Col-gio das Artes foi em 1547. Ajunte-se a constatao de que D. Joo III e D. Catarina eram os principais patronos e mecenas das artes e das letras no Reino40 e que, ao mesmo tempo, celebraram a instituio do Tribunal da Inquisio em Portugal. Ao que tudo indica, pode-se concluir que a racio-nalidade da poca estava assentava sobre parmetros outros que no so os que regem a compreenso racional das interpretaes tal como as analisamos a partir da atualidade. Nesse sentido, torna-se invlido propor uma dicotomia no registro de oposies do tipo laicismo-modernidade versus Reforma Catlica-conservadorismo poltico e social.

    O reinado de D. Joo III pode, sob alguns aspectos, ser comparado aos de Carlos V, de Francisco I e de Henrique VIII, no sentido em que a noo de disciplinamento social e/ou confessionalizao marcaram aes polticas e provocaram embates entre o poder poltico e o poder religioso.41 Ou seja, a adoo de uma religiosidade exarcebada no foi uma carac-terstica exclusiva dos prncipes da Europa do Sul. Ao que tudo indica, ela foi compartilhada pelos prncipes de uma Europa fragmentada e ainda politicamente muito dependente da submisso de sditos que professavam opes religiosas distintas.42 Justifica-se, assim, a constituio de uma forte aliana poltico-religiosa no esforo de (re) cristianizao no caso de Por-tugal tal esforo acabou por significar mais ateno ortodoxia catlica e o empreendimento de missionao nos territrios do ultramar dos sditos como forma de garantir a coeso da comunidade poltica, da respublica.

    40 BEATO, Agostinho Pires. Rodrigo Sanches, Epistolrio Latino. Coimbra: FLUC, 1991. 41 PROSPERI, Adriano. Tribunali della coscienza, Inquisitori, confessori, missionari. Torino: Einaudi, 1996.42 DE WHITTE, Charles-Martial, La correspondance des premiers nonces permanents au Portugal, 1532-1553. Lisboa:

    Academia Portuguesa de Histria 1986, p.89-91.

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