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QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E REPRESENTAÇÕES SOBRE TRABALHO E QUALIDADE DE VIDA 1 Lícia Barcelos de Souza 2 Marco Antonio de Castro Figueiredo FFCLRP - Universidade de São Paulo Resumo: O esforço para conciliar trabalho e subjetividade determina no trabalhador um desgaste que incide sobre sua qualidade de vida. A busca pelo equilíbrio psico-afetivo, dentro deste “mundo” contraditório repercute na vida cotidiana, criando sistemas auto-agravantes de enfrentamento, que foram estudados com a participação de 16 profissionais de Campus da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Para isso, foram realizadas entrevistas devolutivas sobre a percepção da qualidade de vida, avaliada pelo WHOQOL- 100. Entrevistas semi-estruturadas complementaram a avaliação com elementos sobre significados, sobre o trabalho e caracterização do contexto de vida. Estudos realizados sobre a qualificação dos profissionais apre- sentaram diferenças quanto às formas de enfrentamento e à busca do equilíbrio psico-afetivo, indicando, nos mais qualificados, uma dissociação entre o universo do trabalho e necessidades básicas para qualidade de vida, enquanto que para os menos qualificados o trabalho representou parte indissociável da sobrevivência. Palavras-chave: trabalho; subjetividade; qualidade de vida. PROFESSIONAL QUALIFICATION AND REPRESENTATIONS ABOUT WORK AND QUALITY OF LIFE. Abstract: The effort to reconcile work and subjectivity is a source of wear for workers which affects their quality of life. The search for psycho-affective equilibrium within this contradictory “world” has repercussions on daily living, creating self-aggravating systems of coping which were studied in the present investigation with the participation of 16 professionals of the Ribeirão Preto Campus of the University of São Paulo. Feed - back interviews were held about the perception of quality of life as evaluated by the WHOQOL- 100 questionnaire. Semi-structured interviews complemented the evaluation by dealing with the meanings, of work and the characterization of the life context. Studies related to the qualifications of the professionals detected differences in the mode of coping and in the search for psycho-affective equilibrium, indicating a dissociation between the job universe and the basic needs of life quality among the more qualified subjects, whereas the job represented an undissociated part of survival among the less qualified subjects. Key-Words: work; subjectivity; quality of life. 1 Artigo recebido para publicação em 11/02/2003; aceito em 10/09/2003. 2 Endereço para correspondência: Lícia Barcelos de Souza, Departa- mento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP, Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Cep 14040-901, E-mail: [email protected] Este trabalho é uma síntese da experiência acumulada ao longo de 10 anos junto à Prefeitura do Campus Administrativo de Ribeirão Preto, à frente de um projeto de desenvolvimento de recursos hu- manos, que tinha por base a recuperação dos signifi- cados atribuídos pelo trabalhador ao seu trabalho. Foram anos de enfrentamento à perda da compreen- são da totalidade dentro de uma multiplicidade de atividades que subordinava as pessoas a um referencial já definido, planejado e afeto, a uma de- terminação externa à sua subjetividade. Este distanciamento observado estava relaci- onado às questões de perda de auto-estima, busca de realizações externas ao trabalho, insegurança e falta de uma perspectiva que colocasse as pessoas diante do trabalho como seu sujeito, e portanto, com capa- cidade para transformá-lo. Paidéia, 2004, 14 (28), 221-232

Paidéia, 2004, 14 (28), 221-232 221 - scielo.br · onado às questões de perda de auto-estima, busca de realizações externas ao trabalho, insegurança e falta de uma perspectiva

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QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E REPRESENTAÇÕES SOBRETRABALHO E QUALIDADE DE VIDA1

Lícia Barcelos de Souza2

Marco Antonio de Castro FigueiredoFFCLRP - Universidade de São Paulo

Resumo: O esforço para conciliar trabalho e subjetividade determina no trabalhador um desgaste queincide sobre sua qualidade de vida. A busca pelo equilíbrio psico-afetivo, dentro deste “mundo” contraditóriorepercute na vida cotidiana, criando sistemas auto-agravantes de enfrentamento, que foram estudados com aparticipação de 16 profissionais de Campus da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Para isso,foram realizadas entrevistas devolutivas sobre a percepção da qualidade de vida, avaliada pelo WHOQOL-100. Entrevistas semi-estruturadas complementaram a avaliação com elementos sobre significados, sobre otrabalho e caracterização do contexto de vida. Estudos realizados sobre a qualificação dos profissionais apre-sentaram diferenças quanto às formas de enfrentamento e à busca do equilíbrio psico-afetivo, indicando, nosmais qualificados, uma dissociação entre o universo do trabalho e necessidades básicas para qualidade devida, enquanto que para os menos qualificados o trabalho representou parte indissociável da sobrevivência.

Palavras-chave: trabalho; subjetividade; qualidade de vida.

PROFESSIONAL QUALIFICATION AND REPRESENTATIONS ABOUTWORK AND QUALITY OF LIFE.

Abstract: The effort to reconcile work and subjectivity is a source of wear for workers which affectstheir quality of life. The search for psycho-affective equilibrium within this contradictory “world” hasrepercussions on daily living, creating self-aggravating systems of coping which were studied in the presentinvestigation with the participation of 16 professionals of the Ribeirão Preto Campus of the University of SãoPaulo. Feed - back interviews were held about the perception of quality of life as evaluated by the WHOQOL-100 questionnaire. Semi-structured interviews complemented the evaluation by dealing with the meanings, ofwork and the characterization of the life context. Studies related to the qualifications of the professionalsdetected differences in the mode of coping and in the search for psycho-affective equilibrium, indicating adissociation between the job universe and the basic needs of life quality among the more qualified subjects,whereas the job represented an undissociated part of survival among the less qualified subjects.

Key-Words: work; subjectivity; quality of life.

1 Artigo recebido para publicação em 11/02/2003; aceito em 10/09/2003.2 Endereço para correspondência: Lícia Barcelos de Souza, Departa-mento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras de Ribeirão Preto, USP, Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre,Ribeirão Preto, SP, Cep 14040-901, E-mail: [email protected]

Este trabalho é uma síntese da experiênciaacumulada ao longo de 10 anos junto à Prefeitura doCampus Administrativo de Ribeirão Preto, à frentede um projeto de desenvolvimento de recursos hu-manos, que tinha por base a recuperação dos signifi-cados atribuídos pelo trabalhador ao seu trabalho.

Foram anos de enfrentamento à perda da compreen-são da totalidade dentro de uma multiplicidade deatividades que subordinava as pessoas a umreferencial já definido, planejado e afeto, a uma de-terminação externa à sua subjetividade.

Este distanciamento observado estava relaci-onado às questões de perda de auto-estima, busca derealizações externas ao trabalho, insegurança e faltade uma perspectiva que colocasse as pessoas diantedo trabalho como seu sujeito, e portanto, com capa-cidade para transformá-lo.

Paidéia, 2004, 14 (28), 221-232

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A pesquisa deste distanciamento permitiu, emuma dissertação de mestrado (Souza, 1995), lançaras bases de um trabalho mais avançado que identifi-casse, nesta perda da subjetividade, questões relati-vas à sobrevivência e às formas de enfrentamentodas vicissitudes do trabalho, relacionando-as à qua-lificação e, portanto à organização do trabalho, comoé feita dentro das estruturas funcionais da Universi-dade de São Paulo.

Este trabalho é, portanto, conseqüência detodo este processo, observado e vivenciado com ostrabalhadores da USP de Ribeirão Preto, a quem deveser atribuído qualquer valor instrumental que possahaver nesta pesquisa.

Trabalho e Qualidade de Vida

O conceito de qualidade de vida vem sendoutilizado nos campos da saúde e do trabalho, com oobjetivo de verificar indicadores presentes nos vári-os contextos sociais e que possam sofrer intervençãoatravés das políticas de saúde ou de estratégias degestão empresarial.

De acordo com o grupo da Organização Mun-dial de Saúde, que desenvolveu o instrumento deavaliação utilizado no presente estudo, qualidade devida pode ser definida como:“...a percepção do in-divíduo de sua posição na vida no contexto da cultu-ra e sistema de valores nos quais ele vive e em rela-ção aos seus objetivos, expectativas, padrões e pre-ocupações.” (WHOQOL GROUP citado por Fleck,Leal, Louzada, Xavier, Chachamovich,Vieira, San-tos & Pinzon, 1999, pág. 20 )

No campo do trabalho, a Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), lança em 1976 um pla-no de desenvolvimento que procura articular duastendências:

“... uma dirigida ao melhoramento da quali-dade geral de vida como aspiração básicapara a humanidade hoje e que não pode so-frer solução de continuidade no portão dafábrica (...); a outra, concernente a uma mai-or participação dos trabalhadores nas deci-sões que diretamente dizem respeito à suavida profissional” (Mendes apud Lacaz, 2000,pág. 152)

Diante destas perspectivas, podemos obser-var que tanto os aspectos presentes na organizaçãodo trabalho como os que se relacionam com a saúde,considerados indicadores de qualidade de vida, es-tão inseridos na ordem das contradições sociais e vi-sam adequar os valores individuais aos interessescoletivos (Tamaki, 2000; Faerstein, 2000).

Heloani citada por Lacaz (2000), comenta queas políticas empresariais de programas de qualidadesão caracterizadas por envolver mecanismos de con-trole da percepção e subjetividade, que visam aintrojeção de normas e metas da empresa. Esta mes-ma contradição é apontada por outros autores:

“... a empresa, fazendo crer que seus interes-ses são coincidentes com os dos empregados,gera nestes o sentimento de participar dosobjetivos da companhia, a qual, por sua vez,deve merecer seus esforços, contribuindo,assim, para o seu sucesso econômico....numasutil estratégia para envolver os empregadosnuma ideologia manipulatória, levando-os aacreditar que, de fato estão fazendo algo quevem ao encontro de sua vontade.” (Carmoapud Sampaio,1999, pág. 103)

Relacionando saúde e organização do traba-lho, os efeitos da alienação e seus impactos na subje-tividade dos trabalhadores vêm apresentando resul-tados interessantes. Estudos epidemiológicos, cita-dos por Lacaz (2000), apontam para a ausência deautonomia do trabalhador sobre as condições de tra-balho enquanto explicação para problemas de saúde,sofrimento mental e acidentes de trabalho, afetandosua qualidade de vida.

Outra questão interessante a ser citada é a quecoloca as iniciativas de aumento de participaçãoadotadas pelas empresas em contraposição às exigên-cias de escolarização, aumento de responsabilidade,maior carga de trabalho e menor autonomia para otrabalhador, que repercutem negativamente na suasaúde física e mental: “Se, de um lado, areestruturação exige o surgimento de um trabalha-dor participativo, escolarizado e polivalente, estapolivalência é vivenciada de forma ambígua, ou seja,como aumento de responsabilidade, maior carga detrabalho e menor autonomia”. (Lacaz, pág. 157)

Lícia Barcelos de Souza

223

Outras características importantes são citadascomo decorrentes da divisão e da intensificação dotrabalho reorganizado, que se referem à baixa auto-nomia de decisões, às atividades pouco criativas epequeno apoio social, que também colaboram para odesgaste do trabalhador.

Portanto, os estudos que se referem aos im-pactos da organização do trabalho sobre a saúde equalidade de vida do trabalhador apresentam múlti-plas dimensões de análise. Identificar e compreen-der a determinação do trabalho nas condições de vidaconstitui um eixo importante para a análise da for-mação da subjetividade, representada pelas formascomo o trabalhador percebe e organiza suas relaçõescom o mundo “fora do trabalho”, que contempla asoutras esferas sociais e a utilização dos meios de aces-so aos recursos sociais de educação, saúde, lazer en-tre outros.

Referencial Teórico e Metodológico

Segundo Minayo (1993), a teoria marxista éa teoria da ação humana nas transformações sociaisonde o trabalho adquire o valor de determinação dessaação humana, se constituindo em categoria media-dora das relações sociais, inserida por sua vez nomodo de produção, historicamente determinado, quese apresenta como categoria básica na análise dassociedades:

“A categoria mediadora das relações soci-ais é o trabalho, a atividade prática. O tra-balho constitui um aspecto particular da or-dem cultural mas tem valor de determinaçãodessa ordem: é através do trabalho que o rei-no da cultura se sobrepõe ao reino da natu-reza.” (Marx apud Minayo 1993, pág. 73)

Assim, o trabalho, enquanto categoria histó-rica, determina e é determinado pelos modos de pro-dução, sendo que as formas como o trabalho social-mente se organiza determinam outras estruturas dasrelações sociais.

Um dos pontos principais deste referencialteórico é a abordagem dialética das relaçõesestabelecidas entre as categorias de análise, “que in-troduz na compreensão da realidade o princípio do

conflito e da contradição como algo permanente eque explica a transformação.” (Minayo, 1993, pág68)

Abrangendo a totalidade do objeto de inves-tigação através da compreensão de suas mediaçõesnuma perspectiva histórica, possibilita ampliar a di-mensão de análise dos fatos psicológicos para forados limites da psicologia, transferindo o referencialdo indivíduo psicologicamente descrito para a refe-rência das determinações sociais num dado momen-to histórico.

Metodologicamente, a totalidade significaobservar a realidade objetiva como um todo coeren-te e ao mesmo tempo compreender as partes que ointegram, estabelecendo correlações de conjuntos eunidades.

As representações sociais, expressão das idéi-as e pensamentos, derivam da relação entre as idéiase a base material das formas de organização social,tendo como princípio básico na formação da consci-ência o modo de vida, determinando por sua vez pelomodo de produção.

A consciência então é considerada uma cate-goria de análise do “mundo das idéias”, relativizandoo determinismo econômico da base material de pro-dução. Porém, o referencial do materialismo históri-co introduz outro elemento importante na análise dasrepresentações sociais que trata da condição de clas-se enquanto determinante de relações sociais contra-ditórias.

As representações sociais da classe domina-da são “idéias” determinadas pelas contradições en-tre seu lugar na produção e sua condição social. Aconsciência da desintegração se manifesta sob seuaspecto existencial e psicológico e não na crítica decomo são estabelecidas as relações sociais na produ-ção material da sociedade.

Assim, as representações sociais, tendo na lin-guagem a mediação para sua compreensão, devemser consideradas como um instrumento importantepara a análise do social, por expressar o fenômenoideológico da comunicação da vida cotidiana: “Pelasua vinculação dialética com a realidade, a compre-ensão da fala exige ao mesmo tempo a compreensãodas relações sociais que ela expressa.” (Minayo,1993, pág. 175)

Qualificação Profissional

224

Método

Sujeitos

A pesquisa foi desenvolvida junto a umaamostra composta por 16 profissionais, de várias es-pecialidades, escolhidos em número igual de homense mulheres.

Material

Para avaliação da Qualidade de Vida foi uti-lizada a versão em português do World HealthOrganization Quality of Life (WHOQOL-100), de-senvolvido pela Organização Mundial da Saúde. Oinstrumento é composto por 100 itens, com escalasdo tipo Likert, que avaliam seis Domínios: Físico,Psicológico, Nível de Independência, Relações So-ciais, Ambiente e Espiritualidade. (Fleck e cols.,1999)

Para a avaliação da qualificação profissional,foi elaborado um questionário com 15 itens e aplica-das escalas tipo Likert. Os itens foram formuladoscom base nos critérios de Raridade, Importância, In-denização e Esforço. (Figueiredo, 1998):Raridade: grau de disponibilidade de profissionaisno mercado de trabalho, determinado pelo tempo erecursos pessoais e financeiros necessários para aformação e o nível de complexidade das habilidadesexigidas para o desempenho profissional.Importância: grau de responsabilidade exigido pelaatividade profissional, tendo em vista a amplitude dasconseqüências das decisões tomadas no âmbito daorganização e para as pessoas que dependem dos ser-viços prestados.Indenização: níveis de riscos aos quais o profissio-nal está exposto no exercício da atividade, envolven-do riscos físicos, químicos, biológicos e de desgastemental.Esforço: nível da carga de esforço e desgaste,despendido para a execução das atividades, conside-rando as dimensões física e psicológica.

Coleta de Dados

A coleta de dados foi realizada em duas ses-sões individuais. Na primeira, foi aplicado o Questi-

onário de Avaliação de Qualidade de Vida(WHOQOL-100). Na segunda, foram realizadas aentrevista semi-estruturada, a entrevista devolutivados resultados obtidos no WHOQOL-100 e a auto-avaliação da Qualificação Profissional.

A entrevista semi-estruturada, gravada medi-ante consentimento informado dos profissionais, ve-rificou quatro grupamentos de informações. A partirde questões estruturadas, foram verificados os dadosde identificação, dados demográficos e a caracteri-zação do contexto imediato de trabalho. Na segundaparte da entrevista, utilizando questões abertas, fo-ram evocados os conteúdos associados aos Signifi-cados do Trabalho, aos Aspectos de Bem-estar e As-pectos de Mal-estar no trabalho.

A entrevista devolutiva do WHOQOL-100consistiu em apresentar os resultados obtidos, solici-tando aos profissionais que realizassem comentáriosacerca de suas impressões sobre os resultados. Fina-lizando a segunda sessão, foi auto-aplicado o questi-onário para avaliação da qualificação profissional.

Análise dos Dados

Conforme as orientações da OrganizaçãoMundial de Saúde, as respostas obtidas nos itens doinstrumento para Avaliação da Qualidade de Vida(WHOQOl-100) foram submetidas às etapas defini-das para cálculo dos escores. (Fleck & cols., 1999)

Com o objetivo de estabelecer parâmetrospara localização dos sujeitos no conjunto dos resul-tados da amostra, foram realizados estudos com baseem estatística descritiva. Os dados quantitativos fo-ram complementados com as informações obtidas nasentrevistas devolutivas.

Objetivando estabelecer parâmetros para aná-lise da auto-avaliação da qualificação profissional, omesmo questionário foi adaptado para ser respondi-do por 8 juízes, profissionais com formação superiore que atuam na área de recursos humanos e orienta-ção profissional, que avaliaram as descrições de 13atividades profissionais, baseadas no Plano de Clas-sificação de Cargos da Universidade de São Paulo(Universidade de São Paulo, 1995) e na Classifica-ção Brasileira de Ocupações do Ministério do Tra-balho e do Emprego (Ministério do Trabalho e doEmprego, 2000).

Lícia Barcelos de Souza

225

A análise dos resultados da avaliação do ní-vel de Qualificação Profissional, obtidos pelos su-jeitos e pelos especialistas, consistiu em estudos des-critivos da distribuição dos índices relativos frenteaos Princípios que compõem o instrumento. Tambémforam realizados estudos de validade de conteúdo queresultaram na classificação das atividades profissio-nais em dois grupos: Índice de Qualificação (IQ)Maior ou Menor que a Mediana.

A análise de conteúdo das entrevistas foi rea-lizada em quatro fases (Fioroni, 2000), que compre-enderam: a) a transcrição na íntegra, b) leituras dotexto acompanhadas da audição da fita, c) identifica-ção e recorte dos trechos cujos conteúdos estivessemrelacionados aos temas abordados pelo roteiro deentrevista. Para cada trecho selecionado foram reali-zadas notações, que pudessem expressar o ponto dereferência que o sujeito utilizou para compor suaspercepções. Posteriormente foram identificadas asUnidades Temáticas a partir do grupamento de con-teúdos das 16 entrevistas, segundo a convergênciados significados. A partir das sínteses das UnidadesTemáticas, identificadas em cada Tema abordado, osresultados foram interpretados considerando aprevalência das verbalizações, determinada pelos cri-térios de qualificação profissional, definidos paranosso grupo de referência.

Resultados

Com base nos dados das entrevistas, foi veri-ficado que no grupo de mulheres 50% concentrou-sena faixa de idade entre 30 e 40 anos, 37% era casadae 50% trabalhava na Universidade a pelo menos 10anos. No grupo masculino 50% dos profissionaisencontrava-se na faixa entre 40 e 50 anos, 87% eracasado e 50% trabalhava há mais de 10 anos na Uni-versidade. Considerando a totalidade da amostra foiverificada a distribuição dos sujeitos em quatro ní-veis de escolaridade: 12% com ensino fundamentalincompleto, 31% fundamental completo, 19% comensino médio e 37% com Superior.

A avaliação da Qualidade de Vida resultouem índices de satisfação frente aos Domínios eFacetas propostas pelo WHOQOL-100 (Fleck, 1999).Posteriormente, foram realizados estudos descritivosda distribuição dos índices de satisfação, consideran-

do a amostra de 16 sujeitos. As medianas da distri-buição indicaram uma maior satisfação com os as-pectos que integram o Domínio Nível de Indepen-dência (.82), e a menor satisfação apresentada se re-feriu aos fatores avaliados pelo Domínio Físico (.60).

A análise do nível de qualificação das ativi-dades profissionais permitiu classificar as funções em2 níveis de qualificação, tomando-se como critério oPercentil 50 da distribuição dos Índices RelativosGerais, obtidos no conjunto das avaliações dos es-pecialistas frente às atividades profissionais:

Tabela 1: Grupamento das funções de acor-do com o nível de Qualificação Profissional avalia-do por Especialistas.

Funções X

Analista de Sistemas -Chefe de Seção (N=01) .71Biologista (N=01) .70Educador em PráticaDesportiva (N=01) .69Analista de ComunicaçãoSocial (N=01) .68Bibliotecário -Chefe de Seção (N=01) .68Secretária -Chefe de Seção (N=01) .65Bibliotecário (N=01) .61

Pedreiro (N=02) .61Técnico de ManutençãoEletrônica (N=01) .61Cozinheira(N=01) .58Zelador -Chefe de Seção (N=01) .53Encadernador (N=01) .50Auxiliar de ServiçosGerais (N=01) .48Auxiliar deCozinha (N=02) .46

Podemos observar que as atividades profis-sionais classificadas no grupo de Maior Qualifica-ção (N= 06) exigem formação universitária especí-fica e/ou encontram-se relacionadas com posiçõeshierárquicas. No grupo de atividades com MenorQualificação(N= 10) observamos características

Índice de

QualificaçãoSuperior

(acima de P50

)

Índicede

QualificaçãoInferior

(abaixo de P50

)

Grupos de Funções (P

50 = .63)

Qualificação Profissional

226

associadas à exigência de formação acadêmica nosníveis médio e fundamental, com exceção da profis-são de Bibliotecário, e também o predomínio de ha-bilidades operacionais. Desta forma, os resultadosindicaram a utilização de critérios homogêneos pe-los juízes em suas avaliações.

A partir dos três Temas abordados: a) Signi-ficados do Trabalho, b) Aspectos de Bem-Estar eSatisfação e c) Aspectos de Mal-Estar e Insatisfaçãoassociados ao trabalho, foram identificadas as Uni-dades Temáticas. Estudos de diferença de proporçãoapontaram prevalência de representações bem comoconteúdos comuns entre os dois grupos. Os resulta-dos são apresentados a seguir:

Quadro 1: Unidades Temáticas relacionadasaos “Significados do Trabalho”.

TEMA: “Significados do Trabalho”

Ind. P Unidade SínteseQual. Temática

SUPE-RIOR

.67“TRABALHO

EIDENTIDA-

DE”

.67

Elemento quecontribui para a

formação da iden-tidade e expressãoda subjetividade.

“TRABALHOE

APRENDIZA-GEM”

Contexto que ofe-rece possibilidadesde aprendizagem edesenvolvimento

pessoal.

INFE-RIOR

.50“TRABALHO

ESAÚDE”

Determinações dotrabalho sobre a

saúde física emental

.60“TRABALHO

EVIDA COTI-

DIANA”

Importância dotrabalho na

estruturação e or-ganização da vida

cotidiana

SUPE-RIOR

.33 “TRABALHOE

NECESSIDA-DES SOCIAIS”

Meio de acessoaos recursos

sociais e de so-brevivência.

INFE-RIOR

.40

No tema “Significados do Trabalho”, as re-presentações sobre o trabalho enquanto meio de sa-tisfação de necessidades sociais foram comuns aosdois grupos. Para os profissionais com maior qualifi-cação prevaleceram os conteúdos que remetem aotrabalho como importante fator de identidade sociale meio de aprendizagem, enquanto que para os commenor qualificação prevaleceram as representaçõessobre o trabalho como elemento estruturante da vidacotidiana e indicador de saúde.

Quadro 2: Unidades Temáticas relaciona-das aos “Aspectos de Bem-estar e Satisfação”.

TEMA: “ Aspectos de Bem-estar e Satisfação”

Ind. P Unidade SínteseQual. Temática

SUPE-RIOR

.50 “COOPERA-ÇÃO SOCIAL”

Significados atribuí-dos às ações de

cooperação, trocade informações e aosentimento de utili-

dade social

.33“NÍVEL DE

COMPLEXIDA-DE DAS ATIVI-

DADES”

Representaçõesque explicitaram asatisfação em re-solver atividades

que exigem capaci-dade de raciocínio.

.33“RECONHECI-MENTO PRO-FISSIONAL”

Satisfação emobter reconheci-mento e valoriza-ção pelos resulta-

dos obtidos notrabalho.

.33

“REALIZAÇÃODO TRABALHOPRÉ-CONCE-

BIDO”

Significados atri-buídos à possibi-lidade de realizaruma atividade daforma como foi

concebida.

INFE-RIOR

.50“AMPLIAÇÃO

DO CONTEXTOSOCIAL”

Várias formas derelações sociais

estabelecidas no tra-balho, enquanto ele-

mento importantepara o bem-estar.

Lícia Barcelos de Souza

227

Com relação aos “Aspectos de Bem-estar eSatisfação no Trabalho”, foram identificadas repre-sentações comuns aos dois grupos, que fazem refe-rência ao exercício da capacidade de raciocínio, aoreconhecimento profissional e controle do processode trabalho. Para os profissionais com maior qualifi-cação, a satisfação no trabalho encontra-se associa-da às ações de cooperação social, enquanto que parao grupo com menor qualificação, a possibilidade deampliação do contexto social prevaleceu como im-portante aspecto de bem-estar no trabalho.

Quadro 3: Unidades Temáticas relaciona-das aos “Aspectos de Mal-estar e Insatisfação”.

TEMA: “Aspectos de Mal-estar e Insatisfação” Ind. P Unidade Síntese

Qual. Temática

Para o grupo de profissionais com maior qua-lificação, a vivência de fracasso no desempenho e asubmissão aos mecanismos de controle adotados pelaOrganização constituíram os principais “Aspectos deInsatisfação e Mal-estar” no trabalho, sendo que paraos profissionais com menor qualificação prevalece-ram as representações sobre conflitos emergentes nocontexto das relações sociais do trabalho, enquantofonte de insatisfação.

DiscussãoFoi observada maior satisfação com os aspec-

tos que integram o Domínio Nível de Independên-

cia, e a menor satisfação apresentada se referiu aosfatores avaliados pelo Domínio Físico. Contrapondoestes resultados aos obtidos por Caldana (2000), emseu estudo sobre o impacto do desemprego na quali-dade de vida, utilizando o mesmo instrumento deavaliação, foi observado que as pessoas excluídas dasociedade produtiva, se avaliaram como mais satis-feitas frente aos aspectos vinculados ao DomínioEspiritualidade e menos satisfeitas com os aspectosque integram o Domínio Ambiente.

A partir de uma análise inicial, podemos ve-rificar que o trabalho ocupa um papel central na for-mação das percepções acerca da qualidade de vida(Lacaz, 2000), talvez por se caracterizar, no modo deprodução capitalista, como uma explicação naturali-zada para obtenção e acesso aos recursos sociais e desobrevivência, e conseqüentemente determinar valo-res e sentidos à existência humana.

Aprofundando a análise dos resultados denossos estudos, foi verificado que os profissionaisque apresentaram as necessidades menos satisfeitasno Domínio Físico, desempenham atividades de me-nor qualificação e que exigem esforço físico e mobi-lidade. Nas entrevistas, relataram que enfrentam pro-blemas em seus estados de saúde e também acumu-lam jornadas de trabalho ou estudo fora da Universi-dade. A questão da saúde para os trabalhadores é decerta forma fundamental para a garantia de permane-cerem produtivos, principalmente em períodos decrise econômica, sendo que qualquer dificuldade en-contrada pode representar uma ameaça de afastamen-to ou mesmo de exclusão do “mundo do trabalho”(Angerami-Camon,1986; Seligman-Silva, 1986;1994).

Ainda a esse respeito, deve-se considerar queas implicações da qualidade de vida na saúde do tra-balhador não podem ser vistas a partir de abordagensque se preocupem com a formação de hábitos de vidasaudáveis. Por se situarem numa perspectiva indivi-dualizada e que não privilegiam as relações e a orga-nização do processo de trabalho, enquanto categori-as centrais para a explicação dos problemas atuaisde saúde do trabalhador (Lacaz, 2000; Tamaki, 2000),acabam por minimizar uma problemática que é daordem do coletivo.

O grupo de profissionais que se mostrou maissatisfeito com os fatores que avaliaram o Nível de

SUPE-RIOR

.67

“FRACASSOSNO DESEM-

PENHO”

Representações sobreo sentimento de culpa

gerado pelos erroscometidos na execu-

ção do trabalho.

“ESTRATÉGI-AS DE CON-

TROLE”.50

Insatisfações causa-das pela submissãoàs normas e formas

de controle exercidospela Organização.

INFE-RIOR

.80“CONFLITOS

NAS RELA-ÇÕES DE TRA-

BALHO”

Conflitos que emer-gem nas relações soci-

ais estabelecidas nocontexto de trabalho.

Qualificação Profissional

228

Independência, apresentou uma característica inte-ressante. Apesar das condições de vida satisfatórias,descritas na caracterização do contexto sócio-famili-ar e da dinâmica do cotidiano, identificamos que oponto em comum se refere ao controle e autonomianas decisões sobre os aspectos de seu modo de vida eda família, tendo como pano de fundo as formas deutilização dos rendimentos provenientes do trabalhoassalariado. Portanto, na percepção destes profissio-nais a perspectiva de se auto-determinar, mesmo quedirecionados pelos limites impostos pela renda fami-liar, pareceu conferir a satisfação com aspectos deindependência.

A autonomia e controle sobre os meios de uti-lização dos recursos sociais disponíveis, queincidiram sobre a percepção da qualidade de vida,encontra uma situação correspondente quando seanalisam as relações estabelecidas com o contextode trabalho. A qualidade de vida não pode ser anali-sada sem se considerar o grau de controle e autono-mia exercido pelos trabalhadores sobre seu trabalho,que faz com que se transformem em “sujeitos na si-tuação” (Lacaz, 2000, pág. 154).

O estudo realizado sobre fatores de stress emdiferentes categorias profissionais, realizado porChan, Lai,, Ko & Kam, (2000), mostrou que os pro-fissionais com melhor qualificação e principalmenteque exercem maior autonomia e controle sobre o pro-cesso de trabalho, apresentaram melhores condiçõesde enfrentamento de situações causadoras de desgastemental.

Tomando como referência os índices de sa-tisfação obtidos nos Indicadores Globais e a compo-sição do contexto social e familiar, os profissionaisque se sentiram mais satisfeitos com sua qualidadede vida foram aqueles que dispõem de autonomiasobre as decisões do dia-a-dia, e não necessariamen-te condições materiais de vida plenamentesatisfatórias, o que pode contribuir para uma visãomais otimista ou conformada sobre as determinaçõesde seu modo de vida. Neste sentido, pode-se consta-tar também que as percepções estão pautadas nummodo de ser individualizado, pouco voltado paraoutras questões que não aquelas que se referem aospróprios interesses.

Os profissionais do grupo menos satisfeitocom sua qualidade de vida relataram nas entrevistas

que vêm passando por problemas de depressão, o quesem dúvida pode ter interferido sobre sua percepçãoda qualidade de vida ao responderem o instrumento.Mesmo assim, nas questões relacionadas à percep-ção da satisfação das necessidades, foi interessanteobservar que neste grupo encontram-se pessoas comcondições de vida material desfavoráveis e favorá-veis, o que mais uma vez leva a pensar sobre o cará-ter subjetivo das percepções sobre qualidade de vida(Lacaz, 2000; Sampaio, 1999; Tamaki, 2000), sendoque a questão psicológica subordina a material.

A contraposição entre a satisfação de interes-ses individuais e coletivos remete a discussão sobrequalidade de vida para o âmbito das relações sociais,que enfatizam a lógica de uma cultura individualiza-da em detrimento da consciência de valores coleti-vos.

Novamente, os resultados apontaram para asdiferentes formas de como a organização social e dotrabalho, no modo de produção capitalista, trata osdiferentes subgrupos definidos pela divisão social dotrabalho (Braverman, 1987; Carmo, 1992; Gorz,1989; Villalobos, 1978). Os profissionais com maiorqualificação acabam ocupando um lugar diferencia-do nas relações de trabalho, definido pelo maior aces-so às informações e, portanto, desenvolvem uma per-cepção mais crítica e exigente acerca das necessida-des a serem supridas pela venda de sua força de tra-balho, que também é determinada pelas condiçõesde vida mais favoráveis e pelo maior acesso aos re-cursos sociais que garantem saúde, escolarização econsumo de bens e serviços.

Assim, retomando os resultados, pode-se per-ceber que o nível de qualificação profissional, consi-derando o conjunto de seus determinantes, configu-rou um importante indicador das diferenças encon-tradas na percepção da qualidade de vida, quanto aosaspectos de saúde e autonomia para o enfrentamentodo contexto de vida.

A Unidade Temática sobre os “Significadosdo Trabalho”, que se referiu ao trabalho enquantomeio de acesso aos recursos sociais e de sobrevivên-cia, reuniu as concepções dos dois grupos de profis-sionais. Nas representações do trabalho enquantomeio de satisfação de necessidades sociais, foramverificadas tendências diferentes entre as falas dosprofissionais, segundo o nível de qualificação.

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Para os profissionais com maior qualificação,as expectativas de acesso aos recursos sociais apresen-taram-se associadas às necessidades despertadas pelacultura de consumo, ilustradas na fala do sujeito 15 :

“eu te falei no início, que nem, ele é impor-tante porque tudo que eu tenho, na verdade,você consegue a partir dele, né? Que nem, éuma luta você conseguir o seu lugar ao sol,aquelas coisas, então pra mim é importante.“ (biólogo)

Para os profissionais com menor qualificação,além da expectativa de consumo, o trabalho repre-sentou o único meio de garantia das condições míni-mas de sobrevivência e de manter uma perspectivade melhoria de condições de vida para os descenden-tes. Os significados que atribuíram ao trabalho o pa-pel de elemento que estrutura a vida cotidiana, iden-tificando na rotina de trabalho a sensação de segu-rança e de direção, foram predominantes nas falasdo grupo de profissionais de menor qualificação, oque legitima as expectativas de satisfação de neces-sidades sociais básicas através do trabalho. As falasdos sujeitos 5 e 11 demonstram estas expectativas:

“...E... prá, trabalhá prá gente tê as coisa,dá educação pros filho é... “ (auxiliar de ser-viços gerais)

“Ah, sem trabalho num vive direito. É mara-vilhoso, (risos) é importante cê sabê que cêlevanta, que cê tem onde cê i trabalhá. Quebom, isso dai dá uma certa perspectiva navida da gente. Dá. Pelo menos pra mim dá,né ? “ (pedreiro)

O sentimento de impotência gerado pelas li-mitações impostas pelo poder aquisitivo frente a umacultura agressiva de incentivo ao consumo, tambémfoi considerado importante na avaliação de algunsaspectos de qualidade vida, principalmente para osprofissionais que enfrentam dificuldades financeiraspara a manutenção da família, afetando aspectos deauto-estima e bem-estar emocional. Cita-se comoexemplos o auxiliar de serviços gerais, que disse sesentir frustrado por “não realizar algum sonho” (suj.

5) ou de não satisfazer sua “vontade de tê, algumacoisa...” (suj. 5) e o sujeito 11, pedreiro, que passoua se considerar uma pessoa desonesta pelas dificul-dades em cumprir seus compromissos de ordem fi-nanceira.

As mesmas limitações são enfrentadas de for-ma diferente pelos profissionais com maior qualifi-cação profissional e melhor condições materiais devida, que de certa forma, conseguem superar suasfrustrações atribuindo ao trabalho aspectos positivose nobres , como as representações do trabalho en-quanto forma de aprendizagem, que superam as ex-pectativas de remuneração. Identifica-se ainda, queestes profissionais exercem um maior controle sobreo consumo de supérfluos, através do planejamentodo orçamento familiar.

Portanto, nestas Unidades Temáticas, alémdas desigualdades sociais, encontrou-se representa-da a lógica que sustenta a necessidade de consumo efaz com que o trabalho seja o depositário das expec-tativas de ascensão social para o trabalhador e suafamília, garantindo assim que se mantenha produzin-do e adaptado às contradições sociais. Além disso,pode-se perceber o impacto das contradições sociaisna formação da subjetividade, que faz com que o tra-balhador se sinta impotente e culpado pelo não aten-dimento de suas necessidades sociais e da família,que por sua vez são criadas para a manutenção doconsumo e do modo de produção.

O grupo com menor qualificação também atri-buiu ao trabalho a possibilidade de inserção social,através da ampliação dos vínculos sociais, que favo-recem a identificação de contextos diferenciados e aexpressão da afetividade. Numa outra direção, o tra-balho para os profissionais mais qualificados, emfunção do nível de exigências e pressões a que sãosubmetidos, pareceu representar uma ameaça às re-lações sociais estabelecidas fora do contexto de tra-balho, exigindo uma constante mediação entre aten-der às necessidades da família e às exigências da ati-vidade profissional.

Sobre estes resultados, foi identificado o mo-vimento inverso que ocorre nas relações estabelecidasentre o trabalho e as outras esferas sociais, principal-mente com a esfera familiar, para os grupos diferenci-ados segundo o nível de qualificação.

As relações sociais para os profissionais com

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menos qualificação pareceram significar a possibili-dade de reapropriação da subjetividade, enquantoexercício da afetividade, perdida no enfrentamentodas dificuldades associadas ao contexto de vida.

Num movimento inverso, os profissionaiscom maior qualificação demonstraram se sentir ex-propriados pelo trabalho, recursos esses deafetividade e de disposição interna, necessários parao atendimento das necessidades da família. O depoi-mento do sujeito 14 ilustra o sentimento de expro-priação: “Ninguém vive 24 horas trabalhando e saidisso impune”.(analista de comunicação social)

Com relação a esta questão, Antunes (1999)discute o quanto que as novas formas de organizaçãodo trabalho, determinadas pela constante inovaçãotecnológica e complexidade das atividades, vem trans-ferindo para os trabalhadores a dicotomia entre o pen-sar e o fazer, fazendo com que as empresas se apropri-em cada vez mais das capacidades intelectuais eafetivas daqueles trabalhadores que se dedicam às ati-vidades profissionais mais qualificadas: “ Neste con-texto, o trabalho intelectual que participa do proces-so de criação de valores encontra-se também sob aregência do fetichismo da mercadoria”. (pág. 129)

No grupo de profissionais com menor quali-ficação foram identificadas as representações do tra-balho enquanto indicador de boa saúde e elementoque facilita o enfrentamento de desequilíbrios psico-lógicos. Como pode-se constatar, na sociedade capi-talista, o trabalho passa a representar para os traba-lhadores, com piores condições de vida, uma alter-nativa importante para obtenção de apoio social epsicológico: “depois dessa tragédia, que eu consi-dero uma tragédia na minha vida, se num fosse omeu trabalho, acho que eu tinha ficadodoida”(cozinheira)

Mais do que a obtenção de apoio social reto-ma-se nas falas destes profissionais a preocupaçãoem se manterem produtivos, sendo a boa saúde a con-dição básica para a sobrevivência. A fala do sujeito12 ilustra este ponto de referência:

“O trabalho? O trabalho pra mim é tudo. Eucom saúde, em primeiro lugar saúde, né ? Pravocê podê trabalhá, né ? Porque se você nãotem a saúde você num tem o serviço, traba-lho. O trabalho é importante na minha vida.Eu gosto.” (pedreiro)

Assim, deparam-se, novamente, com as rela-ções estabelecidas entre trabalho e saúde para os pro-fissionais com menor qualificação, discutidas ante-riormente em seus aspectos determinantes da quali-dade de vida.

As representações sobre o trabalho enquantopossibilidade de recuperação da intencionalidade,através do exercício da capacidade de raciocínio ede participação e autonomia sobre o processo, pare-ceram ser determinadas pela especialização, que aca-ba diferenciando o status dos profissionais no seugrupo e na Organização. Este foi o ponto comum iden-tificado nas características dos contextos de trabalhodos sujeitos donos das falas que compuseram estaUnidade Temática. Não se pode deixar de considerara política de estabilidade de emprego, presente namaioria das Instituições públicas, que cria um ambi-ente propício para que os profissionais se sintam pou-co ameaçados pelas crises no mercado de trabalhoexterno.

Para os profissionais com maior qualificaçãoo trabalho também pareceu representar um elementoque contribui para a formação da identidade e para oreconhecimento de si mesmo, compreendendo a ex-pressão da subjetividade no fazer, o sentimento deutilidade social, o reconhecimento das próprias ha-bilidades e também a principal referência para a for-mação de um auto-conceito.

No conjunto das falas, pode-se observar queo trabalho é percebido dentro de um movimentodialético onde ele determina a subjetividade e ao mes-mo tempo é determinado por ela (Minayo, 1993). Estemesmo movimento é percebido nas representações dadeterminação do contexto de vida sobre os significa-dos que o trabalho adquire. Porém, neste movimento,se apresenta a determinação de uma concepçãoreificada (Lukács, 1974), que naturaliza e perpetua aimportância e o valor do homem produtivo.

As relações estabelecidas entre o trabalhadore as várias dimensões da organização do trabalhomostraram-se permeadas pelas contradições entrevalores individuais e coletivos, entre espaço públicoe privado e entre formação da subjetividade e condi-ções materiais de vida e de trabalho.

Sob a perspectiva deste trabalho, o nível dequalificação profissional representou uma dimensãode análise importante sobre as formas como a Orga-

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nização do Trabalho, associada ao contexto social efamiliar, tratam as questões relacionadas aos diferen-tes subgrupos. Além das determinações das diferen-ças sociais, foi possível identificar as estratégias queos profissionais utilizam para a conciliação entre os“dois mundos”, que se resumem em iniciativas indi-vidualizadas voltadas para a recuperação do tempode convivência familiar e lazer. Ainda sobre esta ques-tão, foi possível identificar o quanto o trabalho de-termina a “vida fora” do trabalho.

Em termos de uma perspectiva que consideraa prática profissional em seus aspectos determina-dos pela organização social, econômica e política, asinformações obtidas nas investigações poderão sub-sidiar a compreensão das formas de enfrentamento econsciência das contradições presentes na organiza-ção do trabalho, onde o “papel do trabalho” na vidadas pessoas passa a ser enfocado no contexto dasdeterminações sociais, presentes na expressão dasubjetividade.

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O trabalho apresentado é parte dos resulta-dos obtidos na pesquisa realizada entre fevereiro de1996 e março de 2001, para fins de obtenção do títu-lo de Doutor, junto ao Programa de Pós-Graduaçãoem Psicologia, do Departamento de Psicologia e Edu-cação da FFCLRP-USP.

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