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Panorama histórico atual das organizações
francesas de economia social e solidária
Realização: Ludovic Hébrard
Tradução do Francês:
GONÇALO MENDES HENRIQUES
2
Introdução
Definir de forma simples o conceito de “economia social e solidária – ESS” é um dos exercícios mais
complexos, porque estas três palavras apelam a representações, a momentos históricos, a
conceptualizações e a formalizações diferentes em função de cada pessoa e do interesse de cada
organização.
Ao realizar uma “ação de formação” ESS com métodos de educação popular, tive a oportunidade de
construir mais de cem definições desta conceptualização. Neste caso, usámos um jogo de escrita
cooperativa que originou inteligência coletiva. Por exemplo, eis uma dessas definições co-construídas:
“Um projeto de sociedade associando a economia, o ambiente e o homem para
desenvolver as condições de uma (boa) vivência em conjunto. Significa viver
concretamente os valores de tolerância, de partilha e de troca. Isso requer repensar
as nossas organizações, os nossos sistemas de produção e as nossas relações de troca
para criar as condições para uma sobriedade feliz.”1
Numa análise simples desta definição co-construída podemos observar que está principalmente focada
na filosofia e nos valores desta outra economia. De facto, os participantes associaram à palavra
“economia” um conjunto de outros valores, incluindo “viver em conjunto”, “tolerância”, “partilha”,
que subjaz à necessidade de “repensar as nossas organizações” e, portanto, a nossa sociedade.
A título de comparação, aqui está a definição da lei francesa de 2014 - Artigo 12
“I - A economia social e solidária é uma forma de empreendimento e de
desenvolvimento económico adaptado a todos os domínios da atividade humana, à
qual aderem as pessoas jurídicas de direito privado que cumpram as seguintes
condições cumulativas:
1. Um objetivo que não vise apenas a repartição de benefícios;
2. Um governo democrático, definido e organizado pelos estatutos, que preveja a
informação e a participação, cuja expressão não esteja apenas ligada com a
contribuição de capital ou com o montante da sua contribuição financeira, com
associados, assalariados e partes interessadas nas realizações da empresa;
3. Uma gestão em conformidade com os seguintes princípios:
a) Os benefícios são essencialmente dedicados ao objetivo de manutenção ou de
desenvolvimento da atividade da empresa;
b) As reservas obrigatórias constituídas, impartilháveis, não podem ser distribuídas.
Os estatutos podem autorizar a Assembleia Geral a incorporar no capital as somas
retiradas das reservas constituídas nos termos desta Lei e, consequentemente, a
aumentar o valor das partes sociais ou proceder a distribuições de partes gratuitas.
A primeira incorporação não pode ultrapassar metade das reservas disponíveis
existentes no encerramento do exercício antecedente à reunião da Assembleia Geral
Extraordinária que tenha de se pronunciar sobre a incorporação. As incorporações
posteriores não podem ultrapassar metade do aumento das reservas registadas
desde a incorporação precedente. Em caso de liquidação ou, se necessário, em caso
de dissolução, todo o excedente de liquidação é transferido, quer para outra
1 Definição realizada durante a “ação de formação”, desenvolvida pela Culture & Liberté Garonne 2 LEI 2014-856 de 31 de Julho de 2014 relativa à economia social e solidária
3
empresa de economia social e solidária, no sentido do presente artigo, quer nas
condições previstas pelas disposições legislativas e regulamentares especiais que
rejam a categoria de pessoa jurídica de direito privado objeto da liquidação ou da
dissolução.
II. - A economia social e solidária é composta por atividades de produção, de
transformação, de distribuição, de troca e de consumo de bens ou de serviços
implementados:
1º Pelas pessoas jurídicas de direito privado constituídas sob a forma de
cooperativas, de sociedades mútuas ou de uniões de acordo com o Código da
mutualidade, ou de sociedades de seguros mútuos nos termos do código dos
Seguros, de fundações ou associações reguladas pela lei de 1 de julho de 1901
relativa ao contrato de associação ou, se for o caso, pelo código civil local aplicável
aos departamentos de Bas-Rhin, Haut-Rhin e Moselle;
2º Pelas empresas comerciais que, nos termos dos seus estatutos, cumpram as
seguintes condições:
a) Respeitem as condições previstas no ponto I do presente artigo;
b) Procurem uma utilidade social, na aceção do ponto 2 da presente Lei;
c) Apliquem os seguintes princípios de gestão:
- o levantamento de uma fração definida por decreto do ministro encarregue da
economia social e solidária e pelo menos igual a 20% dos lucros do exercício a ser
atribuída à constituição de uma reserva estatuária obrigatória, dita “fundos de
desenvolvimento”, desde que o montante total das diversas reservas não atinja uma
fração, definida por decreto do ministro encarregue da economia social e solidária,
do montante do capital social. Esta fração não pode exceder o montante do capital
social. Os benefícios são reduzidos, se necessário, devido a perdas anteriores;
- o levantamento de uma fração definida por decreto do ministro encarregue da
economia social e solidária é de pelo menos 50% dos lucros do exercício, afetada
aos lucros acumulados bem como às reservas obrigatórias. Os benefícios são
reduzidos das perdas anteriores, se for caso disso;
- a interdição de a empresa amortizar o capital e proceder a uma redução do capital
não motivada por perdas, a menos que esta operação assegure a continuidade da
sua atividade, dentro das condições definidas por decreto. O resgate das suas ações
ou partes sociais está sujeito ao cumprimento das exigências aplicáveis às empresas
comerciais, incluindo as previstas no artigo L. 225-209-2 do Código Comercial.
III. – Podem declarar publicamente a sua qualidade de empresa de economia social
e solidária e beneficiar dos direitos aos quais estão ligadas as pessoas jurídicas de
direito privado que preencham as condições mencionadas neste artigo e que, no
caso de empresas comerciais, estejam registadas, sob reserva da conformidade dos
seus estatutos, no registo comercial e de empresas com a menção de empresa de
economia social e solidária.”
Numa análise igualmente simples, sem entrar na natureza técnica do texto e desta definição
institucional, podemos notar uma conceptualização técnica desta noção de economia social e solidária.
É por essa razão que apresentei o texto completo.
4
Vamos construir esta publicação sobre uma hipótese que vamos defender em permanência: as práticas
e a filosofia historicamente ligadas a esta outra economia precederam sempre os termos e os
quadros legais, técnicos e normativos. Por outras palavras o significado da ação é a finalidade, a
lei a ferramenta ao serviço do significado. Daí a minha pergunta, esta lei consegue alcançar a
finalidade desta outra economia, ou seja, “transformar a sociedade para a tornar mais
responsável ao nível ambiental e social”?
Na atualidade, quer em França (Lei de 21 de Julho de 2014), quer em Portugal (Lei de Enquadramento
da Economia Social -LCES3- de 8 de Maio de 2013) a lei conceptualiza, formaliza e enquadra esta
noção. A “economia social” e a “economia solidária” existem mesmo? Reunimos dois termos, mas
será que eles cobrem as mesmas realidades tanto ao nível histórico como atual?
Para responder a esse quadro de perguntas, vamos retomar nesta publicação o quadro histórico e atual
da França como exemplo. A vocação desta publicação, realizada no âmbito de uma presença de
Ludovic Hébrard em Portugal durante 3 meses, tem como objetivo fornecer um olhar crítico sobre a
história e a ESS em França, observando com olho noviço francês as vontades portuguesas sobre este
assunto.
Para tanto vamos retomar numa primeira parte a história da construção da “economia social e
solidária” e numa segunda parte prepararemos um panorama atual desta outra economia.
3 Loi cadre sur l’économie sociale – no original (N. do T.)
5
História das iniciativas de construção da economia social e solidária em França
Quando podemos datar as primícias da ESS? A resposta mais pertinente que tinha na “ação de
formação” que animei é a seguinte: “desde o princípio dos tempos!”.
Sim, mas então porque não chamar apenas economia? Porque teremos a necessidade de acrescentar os
termos “social” e “solidário”? Quais são as razões para tal oscilação? Como ocorreu essa mudança
linguística?
Para o explicar podemos distinguir 5 grandes roturas na conceptualização do termo. O objetivo não é
realizar uma história detalhada, mas sim dar as grandes referências de rotura na construção desta
economia. É, portanto, uma síntese por vezes simplificadora.
1. As premissas do séc. XIX: das premissas de iniciativas ilegais resultantes de movimentos
operários, camponeses e do patronato “social” ao reconhecimento legal do Estado.
Em primeiro lugar para compreender o contexto, devemos usar palavras-chave amplamente utilizadas
para invocar o contexto: “revolução industrial”, “pauperismo”, “Émile Zola”. Estamos num período
em que tudo o que hoje sabemos em termos de proteção social é inexistente: contrato de trabalho ao
dia com a bolsa de trabalho, inexistência de seguro de desemprego, de pensão de reforma ou de
segurança social.
Neste ambiente existem sistemas de entreajuda locais, mas são limitados e sobretudo desconhecidos
por uma razão principal: eles são, à face da lei, francamente ilegais! Na realidade até 1884 e à abolição
da lei de Le Chapelier (criada em 1791) que proibia todas as coligações operárias. Contudo, eram
“tolerados” porque participavam na “boa educação do operário”.
A partir de 1884 e da abolição dessas leis, as primícias de organização coletiva são finalmente
reconhecidas pelo Estado, liberalizando esse tipo de iniciativas. Em 1885, por exemplo, ocorre a
criação da primeira federação francesa das cooperativas de consumo e é reconhecida
institucionalmente.
2. Princípio do séc. XX: do reconhecimento do termo ao desenvolvimento da “Economia
Social”
Em 1900 a exposição universal acolhe um pavilhão da Economia Social e institucionaliza o termo
numa realidade cada vez mais presente. A lei de 1901 sobre a liberdade de associação vem confirmar
uma nova liberdade já existente visto que a “Agência de Trabalho” já enumerava antes dessa data mais
de 45.000 associações “de facto”!
A partir desse momento, o ambiente da lei e o quadro institucional favorável ao desenvolvimento das
cooperativas, das mutualidades e das associações permitiram o desenvolvimento importante de um
conjunto de organizações coletivas.
As “Cooperativas de Consumo”, como por exemplo a “CAMIF”4, que foram as precursoras
das primeiras redes de distribuição entre as cidades e as zonas rurais em plena transformação
devido ao êxodo rural.
As Cooperativas de Produção, como por exemplo “Verrerie d’Albi” iniciada, entre outros,
pelo famoso Jean Jaurès.
As Cooperativas de Produtores, como por exemplo a Cooperativa de Agricultores ou de
Artesãos.
4 CAMIF – Coopérative des Adhérents à la Mutuelle des Instituteurs de France
6
As Cooperativas de Crédito, como por exemplo a “Caisse Centrale de Crédit Coopératif”
(1938)
As Mutuas como por exemplo a MAIF5 (1934)
As Associações
3. Da Segunda Guerra Mundial aos “gloriosos trinta”: da reflexão do “Conselho Nacional de
Resistência” à generalização do “Estado-Providência” inspirado pelas práticas da economia
social.
No contexto da Segunda Guerra Mundial e da destruição da sociedade francesa e europeia, uma
reflexão é conduzida pelo “Conselho Nacional de Resistência” sobre as razões da ascensão dos
extremismos. Para encontrar soluções, o Conselho Nacional de Resistência vai procurar soluções nas
iniciativas da “economia social”.
No final da guerra essa reflexão criou as bases do “Estado-Providência”. Rapidamente, no pós-guerra,
é instalado o modelo “Segurança Social à francesa”: fundo de pensão, seguro de saúde, fundo de
desemprego.
Até à década de 70: as práticas de intervenção e do papel do Estado levavam à generalização do
“Estado-Providência”. Durante este período, as organizações da economia social tiveram um papel
muito importante, como parceiros e intervenientes no terreno para a implementação deste sistema
generalizado e para “todos”.
As cooperativas com a lei de 1947 definiram o estatuto em França. Enumerou o quadro legal de uma
cooperativa, especialmente os princípios de base, “Um homem = um voto” e a maioria do capital
pertencente aos assalariados. As mutuas institucionalizam-se com a generalização do sistema de saúde.
As associações generalizam-se em todos os domínios de atividade: cultura, desporto, sistema médico-
social, desenvolvimento económico, turismo, educação e investigação, defesa dos direitos (dos
consumidores, especialmente), proteção do ambiente, etc.
Ao nível da conceção económica este período foi chamado os “gloriosos trinta”, quer dizer a junção da
economia com a ascensão do consumo em massa e do social com a generalização do sistema de
proteção. Contudo, neste ambiente que parece perfeito, vozes começam a ouvir-se!
4. A viragem de 1968: Nascimento da “Economia Solidária” resultante de movimentos
ambientalistas, feministas e anti globalizantes.
Os eventos de 1968 abalaram a sociedade francesa no seu todo. A economia social não foi poupada.
Tornadas instituições, as organizações da economia social foram re-interrogadas sobre o próprio
fundamento da sua existência. Como se mantêm na prática os valores de cooperação, de mutualização?
Desta reflexão emergiram novas formas de organização.
Em primeiro lugar o movimento de autogestão que tomou forma com iniciativas como 1973:
“Imprimerie 34” em Toulouse (1973), “Utopia” em Avignon (1976).
Da reflexão e da necessidade de organizar outras formas de intercâmbio para além de vendas,
apareceram nos anos 80 os primeiros SEL6 (Sistema de trocas locais) que permitem a cada um poder
trocar o tempo por um serviço ou um bem de consumo corrente.
Por outro lado, o financiamento deste tipo de projeto evolui. Em 1983 surgiram as Cigales7 (Clube de
Investidores para uma Gestão Alternativa e Local da Poupança Solidária) resultante do exemplo das
5 MAIF –Mutuelle d'Assurance Automobile des Instituteurs de France 6 Système d’échanges locaux – no original (N. do T.) 7 Club d’investisseurs pour une Gestion Alternative et Locale de l'Épargne Solidaire – no original (N. do T.)
7
“Tontines” provenientes de práticas em África. A ideia é simples: um grupo de pessoas reúne-se,
acumula uma soma e empresta-a a um promotor de projeto para realizar o investimento necessário
para o começo da sua atividade.
Também nos anos 90, resultante do movimento de autogestão, estrutura-se a rede REPAS8 cujos
membros fundadores são “Ardelaine”, “Ambiance bois” (1988).
O conjunto desta iniciativa surgida de diversos movimentos é a “economia solidária”, frequentemente
em reação contra o Estado e contra o mercado baseado num pensamento “neoliberal”. Nos anos 90, o
aparecimento do movimento “anti globalizante” formalizou este desejo de uma outra economia e
colocou no centro do palco que “é possível um outro mundo”.
No entanto, pode constatar-se que essas múltiplas iniciativas têm pouca visibilidade coletiva e
especialmente institucional. É nesse contexto que chega ao poder um governo socialista.
5. Os anos 2000: criação do conceito de “economia social e solidária” resultante de uma vontade
governamental de “profissionalizar” as iniciativas
Em primeiro lugar, sob a liderança da primeira “Secretaria de Estado da Economia Solidária”
dependente do Ministério do Trabalho, com Guy Hascoët. Em 2001, deste impulso político resulta um
novo estatuto jurídico: SCIC. Esta “Sociedade cooperativa de interesse coletivo9 ” permite formalizar
uma empresa cooperativa cujo objetivo é um “lucro limitado”.
Ao mesmo tempo aparecem as organizações de animação em rede. Em 2002 é criado o Movimento de
Economia Solidária (MES)10 e depois em 2004 o Conselho Nacional das Câmaras Regionais de
Economia Social (CNCRES)11.
Neste período as consequências são numerosas. As estruturas são colocadas em “redes”, são
“profissionalizadas” e veiculam projetos “socialmente inovadores”. Contudo, ainda desconhecida para
o “público em geral”, essa economia permanece entre iniciados e tecniciza-se. Finalmente é criado em
2012 o “Ministério da ESS” delegado no ministro da Economia. A lei de 2014 foi aprovada com
grande discrição no verão de 2014.
8 Ver pág. 11 9 Société Coopérative d'Intérêt Collectif – no original (N. do T.) 10 Mouvement de l’Économie Solidaire – no original (N. do T.) 11 Conseil National des Chambres Régionales de l’Économie Sociale – no original (N. do T.)
8
Panorama atual das organizações da economia social e solidária em França
Após este retorno histórico que nos faz compreender o berço comum e as divergências entre estes dois
conceitos de “economia social” e “economia solidária”, a ideia do panorama atual é realizar um ponto
de situação não exaustivo da situação francesa no seu conjunto.
Para isso optámos por classificar por setor de produção e por setor de apoio das iniciativas da ESS.
Assim, propomos uma classificação por “setor de atividade” assim como esse termo “alternativo”
associado que representa todas as formas económicas que podemos encontrar no terreno.
Num sentido amplo e comum, o panorama reúne organizações como:
- A primazia da pessoa humana sobre o Capital,
- Propriedade coletiva fundada, entre outros, sobre a indivisibilidade das reservas,
- Democracia na governação “uma pessoa, um voto”,
- Qualidade dupla dos membros, tanto produtores como beneficiários do serviço prestado ou do
bem produzido,
- Regras de afetação dos resultados apoiadas na “não-lucratividade” ou no “lucro limitado”.
Classificá-las-emos aqui em 9 setores de produção direta e 4 setores de “apoio de produção”, o que
significa que são organizações que acompanham as organizações de produção de bens e de serviços.
Não poderemos especificar aqui todos os conceitos evocados. O objetivo é dar uma visão sucinta do
conjunto.
1. Os setores e as “alter-atividades”
1.1 A construção: eco construção, auto construção, habitação partilhada, comunitária, cooperativa,
eco bairro, eco vila
Este setor é amplo. Cobre o conjunto, desde a construção à sua utilização final. Interroga diversos
domínios, tais como: a organização e as condições de realização de uma obra, os materiais que entram
na composição da construção e o modo de “viver em conjunto”. Cada domínio desenvolveu assim as
suas próprias redes.
Em primeiro lugar, há a Rede Nacional “Ecobatir” que coordena e anima o saber-fazer operacional em
termos práticos em ligação direta com os profissionais de campo que dependem dos mesmos
constrangimentos regulamentares (seguros, certificação, normas...) que qualquer empresa ou artesão
da construção. A complexidade reside no facto de o alter setor da eco construção ser precursor no uso
de material “não-normalizado”, como por exemplo palha. Estão designadamente em conexão com uma
série de revendedores de materiais ecológicos. Podem também praticar aquilo que se designa por
“Estaleiros participativos” que também põem em causa o modelo de organização da obra.
Há também a rede de “habitação comunitária” que reflete sobre a forma de organizar a vida no
edifício. A ideia é refletir sobre a mutualização de certas necessidades. Por exemplo, porquê ter uma
máquina de lavar roupa por cada lar? Os exemplos de iniciativas que vão mais além no procedimento
autointitulam-se “eco bairro” ou mesmo “eco vila”.
1.2 A agricultura: biológica, local, a permacultura
O conceito de AMAP12 (Associação de Manutenção da Agricultura Camponesa) com a sua
rede em Midi Pirenéus13 chamada “Alliance”, é um dos projetos mais desenvolvidos nos
últimos 10 anos em França.
12 Association pour le Maintien de l’Agriculture Paysanne – no original (N. do T.)
9
Na prática, a influência da AMAP permite frequentemente o desenvolvimento de um
ecossistema em torno de múltiplos projetos associados que permitem por vezes cobrir o
conjunto das necessidades alimentares: fruta, pão, carne...frequentemente de maneira “não-
formal”.
Atualmente o movimento está a perder força porque o funcionamento é muitas vezes
considerado “muito restritivo” (compromisso moral de um ano, cabaz predefinido uma vez por
semana, problema com distribuição baseada no voluntariado). Aparecem muitas iniciativas
mais flexíveis como a “La Ruche qui dit oui”, por exemplo, que levanta além do mais questões
sobre a sua organização e sobre a sua finalidade.
Globalmente existe também a “Woofing” rede global de quintas biológicas, uma associação
por país, referencia as necessidades e coloca em conexão com os “woofeur”!
1.3 O transporte: a eco mobilidade, deslocações suaves, partilha de automóveis, carsharing
A reflexão sobre a questão dos transportes é eminentemente central na reflexão em torno das
alternativas, porque este setor consome muita energia. Molda o nosso espaço urbano e a nossa
relação com o tempo.
Nesta reflexão surgiram várias iniciativas: a “partilha de automóveis” – existe uma rede de
cooperativas chamada “Citiz”. Também se tornou num enorme mercado, tivemos o exemplo
recente de “carsharing” que se transformou em “Bla bla Car”, tornando-se num exemplo
emblemático da perda de valores de um projeto de ESS.
Do lado das bicicletas, a “partilha de bicicletas” é uma ideia que surgiu no início de 2000
principalmente através de uma associação tornada cooperativa, “Movimiento”, em Toulouse.
Contudo, esta iniciativa continua a ser um exemplo emblemático de como uma ideia com fortes
valores ambientais e sociais pode ser recuperada pelas organizações “clássicas”, como a
“JCDecaux” em Toulouse que recuperou o mercado em 2006.
1.4 A energia: as energias renováveis
Desde a abertura do mercado de eletricidade a 1 de Janeiro de 2007 foram criados múltiplos
atores de gestão de reservas, em particular um que ostenta fortes valores ecológicos e
ambientais já que promete resgatar todos os quilowatts consumidos para uma produção
renovável. É “Enercoop”! Esta organização resulta do reagrupamento de produtores de energia
renovável, de associações de militantes e de societários numa forma cooperativa. Assegura a
gestão e o aprovisionamento para os clientes que também podem ser societários.
Ao nível da produção desenvolvem-se muitos “micro” projetos, quer à escala particular, quer à
escala coletiva. Não listaremos aqui o conjunto de todas as ferramentas técnicas, mas são
numerosas, desde a eólica à micro central hidráulica, passando pelos painéis solares e pela
biomassa. A realidade desta energia fará parte de uma escolha diversificada de fonte de
energia.
Contudo este tipo de projeto requer investimento inicial, de onde resulta uma certa dificuldade
na implementação concreta. Tanto mais que se trata de um mercado em que os atores
“clássicos” estão muito presentes, com grande reforço de capital e de rentabilidade e com uma
escolha política: a escolha da energia nuclear.
13 Região do sul de França separada de Espanha pelos Pirenéus (N. do T.)
10
1.5 A indústria e a transformação: cooperativa de produção
Muito presentes no início do século, as cooperativas de produção são atualmente sub-
representadas pois exigem fortes investimentos; contudo alguns projetos emblemáticos fazem
parte do “Réseau Repas”: “Ardelaine” (lã), Ambiance Bois (madeira) e outros.
Existem outros exemplos mais recentes, nomeadamente os resultantes das ajudas à recompra de
empresas pelos assalariados. Alguns projetos de recompra de fábricas pelos seus assalariados
tiveram uma certa repercussão mediática, como por exemplo: “La Maille au Personnel”
(Têxtil), “La Belle Aude” (Gelados).
Estes projetos são, sem dúvida, os mais interessantes, porque exigem a todos os assalariados
que se tornaram acionistas um envolvimento e uma mudança de imaginário. Tanto mais que, na
maior parte, estavam antes num tipo de organização totalmente “clássico”, quer dizer com uma
separação entre o executivo e a tomada de decisão. Neste novo modelo o assalariado
cooperador participa nas decisões. É para alguns uma mudança importante.
1.6 O comércio: comércio justo, circuitos curtos, biológicos, de proximidade
O comércio justo é um dos conceitos mais conhecidos do “grande público”, em particular com
o “café de comércio justo” que marcou o espírito da sua época. O setor consiste em duas
grandes filosofias.
Uma associativa, com a rede dos “Artisans du Monde”; esta organização decidiu desenvolver a
sua própria rede de distribuição composta maioritariamente por voluntários.
A outra optou por inscrever o comércio justo no “comércio tradicional”, com ou sem o apoio
de uma marca internacional de comércio justo, “Max Havelaar”. Um dos atores é “Ethicable”,
que foi construído na forma de cooperativa e é um dos precursores.
Outras redes nacionais são também constituídas na distribuição em torno do rótulo “bio”; é o
caso de “Biocoop”, uma cooperativa que distribui produtos provenientes de agricultura
biológica, principalmente local e de proximidade. O seu modo de organização aparenta-se mais
com um sistema convencional de supermercado.
Contudo, a explosão atual da procura pela produção biológica em França criou novos atores
que distribuem a produção biológica. É o caso por exemplo de uma insígnia como “Orgânico é
Bom”.
1.7 A educação: a educação popular, nova, formação social
A educação é um dos sujeitos centrais pois é um instrumento de reprodução de um modelo e
dos valores de uma sociedade. Em França, o Estado está fortemente envolvido neste papel
através da educação nacional.
Desde há muito tempo existe uma educação “alternativa” nos movimentos de educação
popular, como por exemplo o movimento Culture & Liberté, CEMEA e muitos outros. Estes
movimentos foram fundados numa pedagogia ativa em que o participante jovem ou adulto está
ativo na aprendizagem de conhecimentos.
1.8 A saúde: medicina alternativa
Este é um dos setores mais delicados já que afeta as pessoas e é muito enquadrado
tecnicamente e muito padronizado! Contudo, as medicinas alternativas como a homeopatia
estão incluídas nela. E sobretudo a “medicina preventiva” proveniente da “medicina chinesa”.
11
É uma relação totalmente diferente para os nossos corpos, a nossa alimentação, o nosso tempo
de trabalho, a organização das nossas atividades, que é preciso reinventar. É por natureza o
setor fundamental numa outra abordagem de nós e das nossas organizações!
1.9 O turismo: o eco turismo, solidário, responsável, alternativo, equitativo, verde, durável
Esta forma de turismo tem múltiplos aspetos relacionados com a atenção dada a um movimento
ambiental e/ou social da viagem. Pode estar centrada na descoberta da natureza (ecossistemas,
agro-sistemas e turismo rural) ou da ecologia urbana (jardins ecológicos, espaços verdes
ecológicos, reservas naturais urbanas).
Pode também estar centrada na relação intercultural que estabelecemos no decurso da viagem.
Em Midi Pirenéus existem organizações locais que trabalham com países. Via Brachy, por
exemplo, organiza “caravanas solidarias no Senegal”.
Depois existem redes globais como “Couchsurfing” com a ideia de alojamento temporário
entre pessoas. Ou ainda a rede de “Woofing” que permite a ligação entre fazendas orgânicas e
voluntários.
Contudo, podemos constatar uma evolução significativa nestes últimos tempos, o exemplo
mais conhecido é “Airbnb”, que consistiu inicialmente na partilha do “seu apartamento” e que
se tornou numa empresa mundial muito rentável e por vezes problemática para os equilíbrios
económicos locais.
2 As ferramentas de uma “economia social e solidária”
2.1 O acompanhamento, a formação e o teste de atividade
Desde há vários anos foi criado todo um conjunto de ferramentas para facilitar a emergência de
projetos de economia social e solidária, redes de acompanhamento, de incubadoras, de
percursos de criação. Cada estruturação tem as suas próprias organizações, conceções e
financiamentos. Contudo surgiu uma marca nacional, a “La Fabrique à Initiative”.
Do lado da formação existe em França todo um conjunto de formação inicial, profissional ou
mesmo “não formal”, que visa aumentar a competência dos atores e dos empresários.
Desde os anos 2000 foi implementado na universidade um conjunto de cursos como por
exemplo o “Master Innovation par l’Économie Sociale” em Toulouse 2. Encontraremos em
França cerca de quinze cursos universitários deste tipo.
Do lado menos formal, o “Réseau REPAS” (Rede de Intercâmbio e de Práticas Alternativas e
Solidárias14) desenvolve especialmente o espírito cooperativo com alternância entre estágios
nas cooperativas e formações de curta duração; a imersão total dura 6 meses.
Existem outras formações de curta duração e locais. Todo um panorama está a ser
desenvolvido em torno de sequências curtas que responde especificamente, quer às questões
locais, quer às necessidades específicas (por tema e/ou por função). Em Midi Pirenéus, por
exemplo, Culture & Liberté desenvolve esse tipo de formação.
Além disso, para testar a sua atividade, existe uma rede de Cooperativa de Atividade e de
Emprego (CAE)15. Estão reunidas sob a “Réseau Entreprendre16”.
14 Réseau d’Échanges et de Pratiques Alternatives et Solidaires – no original (N. do T.) 15 Coopératives d’Activité et d’Emploi – no original (N. do T.) 16 Rede Empreendedorismo (N. do T.)
12
2.2 O alojamento
Desde há vários anos e desde que a revolução digital permitiu a descentralização da atividade,
têm surgido novas conceções da organização do trabalho e a multiplicação de organizações de
apoio de modo mais ou menos formalizado. Este conjunto encontra-se sob o termo “terceiro
local”.
Para o local formalizado, Paris, “La Ruche” foi um exemplo fundador. Em Toulouse, existe um
local chamado “La Serre”, em Castre são “les Ateliers”. Todo um conjunto de espaços de
coworking surgiu por toda a França.
Em espaços menos formais também se pratica o “Bureau Nomade”, tipo biblioteca, café,
livraria, restaurante. Cada vez mais lugares e espaços são reservados para este novo tipo de
atividade.
2.3 O financiamento: finança solidária, ética, cidadã, consum’ação
Podemos distinguir três tipos de recursos principais para este tipo de organização. Jean Louis
Laville formalizou-o sob o conceito de “hibridação dos recursos”.
Recursos não mercantis
É o recurso mais vasto, o mais difícil de formalizar. Muitas vezes constitui o ponto de partida
da “inovação social”. São o tempo “voluntário”, de troca de tempo e de competências. Este
aspeto reúne todo o espírito de cidadania ou ainda de solidariedade.
O recurso mercantil
É em primeiro lugar a venda de produtos ou de serviços. Quer seja no mercado “clássico” quer
seja num mercado composto por “consum’atores17” conscientes e responsáveis da importância
diária de se abastecer com uma produção proveniente desta outra economia. O que está em
jogo é central na perenidade de todas as suas organizações. É também a bitola da sua
perenidade e independência se o recurso conseguir veicular os seus valores e as suas práticas
junto do comprador, que se torna também um “parceiro”. O estatuto SCIC18 permite
designadamente formalizar esta ação, o “cliente” pode tornar-se o “acionista” da organização.
Existe uma multitude de ferramentas financeiras quer no começo, quer ao longo da vida do
projeto. Em França o banco histórico constituído como cooperativa é o “Crédito Cooperativo”.
Muitas organizações têm as suas contas neste banco que “compreende” este tipo de
organização e as suas necessidades de financiamento específicas.
Contudo, é um banco que tem os mesmos constrangimentos de mercado. É desta constatação
que surgiu uma multidão de ideias alternativas. O exemplo das “CIGALES” é revelador desta
inovação financeira. O seu princípio consiste em mobilizar os fundos através de particulares
que financiam as necessidades de financiamento no começo de uma atividade. Assim que a
atividade é rentabilizada, o fundo é reconstituído. Pode ser reinvestido num novo projeto ou
redistribuído. Em Toulouse, um projeto deste tipo tornou-se regular, é o caso de “IéS” um
“capital de risco solidário”. Também existe um banco dito “ético”, o “La Nef”, um “fundiário
imobiliário e agrícola” chamado “Terre de lien” e “microcrédito”, do “fundo de garantia” com
17 A palavra consumidor em francês (consommateur) permite formar o trocadilho “consomm’acteur”, misto de consumidor e ator (N. do T.) 18 Ver pág. 7
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“France Active”. Existem outros, ainda mais recentemente apareceram a “finança colaborativa”
ou a “moeda social”.
Finalmente, existe no mercado financeiro um conjunto de produtos financeiros, reagrupados
sob a marca “Finansol”.
Recursos públicos
Este recurso é o mais conhecido e é muitas vezes reduzido ao financiamento tipo subvenção
quer seja resultante das coletividades territoriais, do Estado ou ainda da União Europeia.
Contudo, existem vários tipos de assistências e de apoio da parte das coletividades públicas,
nomeadamente técnicas.
A questão fundamental é de facto a compreensão institucional desta forma de empreender para
integrar mais a montante nos projetos uma conceção de “responsabilidade social” dos
financiamentos públicos. Para dar um exemplo, um dos desafios atuais é realçar nos mercados
públicos as cláusulas sociais e ambientais, para favorecer de facto as organizações que levam
em conta este envolvimento empreendedor.
2.4 As redes
As redes têm um papel de animação de redes locais, nacionais e europeias. Desde os anos 2000
e desde a primeira “Secretaria de Estado da Economia Solidária”, emergiu uma vontade
institucional orientada para formalizar e enquadrar as iniciativas que se reivindicam de uma
outra economia. Nesse sentido, apareceram no horizonte os “chefes de rede”
Para a economia social e solidária existem dois tipos de uniões. Uma resultou de uma vontade
institucional da CRESS19 (Câmara Regional da Economia Social e Solidária), a outra resulta
dos atores de campo. São muito diferentes em função da história local e da vontade dos atores
de se unirem ou não.
Para as empresas cooperativas, o URSCOP20 (União Regional das SCOP) desempenha um
papel importante de promoção, de acompanhamento para difundir o estatuto jurídico de SCOP
e SCIC21.
Mais recentemente apareceu uma outra conceção mais empreendedora, a “MOUVES” que
difunde e acompanha a noção de “Empreendedores Sociais”.
Finalmente, para obter uma informação mais ampla sobre este tema existem organizações
como a AVISE, a CEGES ou ainda Le Labo de l’ESS.
19 Chambre Régionale de l’Économie Sociale et Solidaire – no original (N. do T.) 20 Union régionale des SCOP – no original (N. do T.) 21 SCOP - Société Coopérative Ouvrière de Production (Sociedade Cooperativa Operária de Produção); SCIC – Ver pág. 7
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Conclusão
Para concluir podemos observar que esta apresentação no seu todo revela o desenvolvimento de
iniciativas desde há mais de um século em França. Mesmo assim esta conceção empresarial é muitas
vezes desconhecida do “grande público”.
Em França a lei tem precisamente por vocação tornar acessível, legalizar e enquadrar essas inovações.
Desde logo podemos colocar a pergunta: será que a “transformação técnica”, a “profissionalização”
valorizam realmente o desenvolvimento desta outra economia? É proposta para satisfazer as
necessidades dos atores no terreno, para provocar um “choque cooperativo”, como realça a lei.
Basicamente, será que o nosso modelo atual de sociedade o permite realmente?
Desde há uma vintena de anos surgiu todo um conjunto de organizações para “promover” esta outra
economia, contudo a organização e a proliferação deste tipo de organismos levanta questões como
qual o seu impacto real ou sobre a delicadeza da sua organização: têm uma organização centralizadora
ou pelo contrário uma vontade descentralizadora e uma representação real das necessidades das
organizações de produção? Constituirão uma tela entre a força pública e as organizações de base?
Qual o interesse para os atores no terreno? Que ator favorece? Quem fez esta lei? Permite realmente
sair dos círculos estabelecidos? Queremo-la realmente?
Será que, mais simplesmente, permite desviar da finalidade desta outra economia: a transformação da
nossa sociedade? Unir estes dois termos permite realmente tornar legível esta outra economia?
Como exposto por Jean Louis Laville no seu conceito de hibridação dos recursos, um projeto de
economia social e solidária estaria no encontro dessas três formas de recursos para lhe permitir
autonomia face ao conjunto das partes que têm cada uma interesses por vezes contraditórios.
Hoje, num contexto de falha do sistema económico atual, pode a questão central da ESS tornar-se
numa alavanca de transformação económica e social? Este é o desafio para os anos futuros em que a
morte ambiental se aproxima.