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István Mészáros P ARA ALÉM DO CAPITAL Rumo a uma teoria da transição Tradução Paulo Cezar Castanheira Sérgio Lessa

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Istvn Mszros

Para alm do capitalRumo a uma teoria da transio

TraduoPaulo Cezar Castanheira

Srgio Lessa

NOTA DA EDIO ELETRNICA

Para aprimorar a experincia da leitura digital, optamos por extrair desta verso ele-trnica as pginas em branco que intercalavam os captulos, ndices etc. na verso impressa do livro. Por este motivo, possvel que o leitor perceba saltos na numerao das pginas. O contedo original do livro se mantm integralmente reproduzido.

Para Donatella

Copyright da traduo Boitempo Editorial, 2002Copyright Istvn Mszros, 2002

Coordenao editorialIvana Jinkings

TraduoPaulo Cezar Castanheira e Srgio Lessa

Assistncia editorialLivia Campos

PreparaoMaria Orlanda Pinassi

RevisoMaria Fernanda Alvares, Maurcio Balthazar Leal,

Sandra Regina de Souza e Tlio Kawata

CapaGrafikz / Andrei Polessi

sobre foto dos escombros do World Trade Center, NY, 11/9/2001. Foto AP.

DiagramaoSet-up Time Artes Grficas

Coordenao de produoAna Lotufo Valverde e Marcel Iha

CIP-BRASIL.CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

M55p

Mszros, Istvn, 1930-Para alm do capital : rumo a uma teoria da transio / Istvn Mszars ; traduo Paulo Cezar

Castanheira, Srgio Lessa. - 1.ed. revista. - So Paulo : Boitempo, 2011. (Mundo do trabalho)

Traduo de: Beyond capital : towards a theory of transition Contm dados biogrficos Inclui ndice ISBN 978-85-7559-145-1

1. Economia marxista. 2. Materialismo dialtico. 3. Ps-modernismo. I. Ttulo. II. Srie.

11-0335. CDD: 335.412 CDU: 330.85

18.01.11 21.01.11 024009

Esta edio contou com o apoio do Instituto de Estudos e Pesquisas

Vale de Acara e da Prefeitura Municipal de Belm.

vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquerparte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

Este livro atende s normas do acordo ortogrfico em vigor desde janeiro de 2009.

1a edio: maio de 2002; 1a reimpresso: outubro de 20022a reimpresso: maio de 2006; 3a reimpresso: julho de 2009

1 edio revista: maio de 2011

BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.Rua Pereira Leite, 373 Sumarezinho

05442-000 So Paulo SPTel./fax: (11) 3875-7250 / 3875-7285

[email protected]

SUMRIO

Nota do Editor 13

Apresentao 15

Prefcio Edio Brasileira 21

Introduo 37 PARTE I

A SOMBRA DA INCONTROLABILIDADE

1. a quebra do encanto do capital permanente universal 53 1.1 Alm do legado hegeliano 53 1.2 A primeira concepo global sobre a premissa do fimdahistria 59 1.3 OcapitalpermanenteuniversaldeHegel:afalsamediaoentre aindividualidadepersonalistaeauniversalidadeabstrata 63 1.4 Arevoluositiadanoelomaisfracodacorrenteesua teorizaorepresentativaemHistria e conscincia de classe 72 1.5 AperspectivadaalternativainexploradadeMarx:docantinho domundoconsumaodaascendnciaglobaldocapital 84

2. a ordem da reproduo sociometablica do capital 94 2.1 Defeitosestruturaisdecontrolenosistemadocapital 94 2.2 OsimperativoscorretivosdocapitaleoEstado 106 2.3 Adissonnciaentreasestruturasreprodutivasmateriais docapitalesuaformaodeEstado 125

3. solues para a incontrolabilidade do capital, do ponto de vista do capital 133 3.1 Asrespostasdaeconomiapolticaclssica 133 3.2 Autilidademarginaleaeconomianeoclssica 141

3.3 Darevoluogerencialpostulada convergnciadatecnoestrutura 156 4. Causalidade, tempo e formas de mediao 175 4.1 Causalidadeetemposobacausa suidocapital 175 4.2 Ocrculoviciosodasegundaordemdemediaesdocapital 179 4.3 Aeternizaodohistoricamentecontingente:aarrognciafatal daapologiadocapitaldeHayek 189 4.4 Oslimitesprodutivosdarelao-capital 199 4.5 Aarticulaoalienadadamediaodareproduosocialbsica eaalternativapositiva 205

5. A ativao dos limites absolutos do capital 216 5.1 OcapitaltransnacionaleosEstadosnacionais 227 5.2 Aeliminaodascondiesdereproduosociometablica 249 5.3 Aliberaodasmulheres:aquestodaigualdadesubstantiva 267 5.4 Odesempregocrnico:osignificadorealdeexploso populacional 310

PARTE IILEGADOHISTRICO DA CRTICA SOCIALISTA 1: O DESAFIODASMEDIAESMATERIAIS E INSTITUCIONAISNA ESFERADEINFLUNCIADAREVOLUORUSSA

6. Atragdia de Lukcs e a questo das alternativas 347 6.1 Tempoaceleradoeprofeciaatrasada 347 6.2 Abuscapelaindividualidadeautnoma 352 6.3 DosdilemasdeA alma e as formasvisoativistade Histria e conscincia de classe 359 6.4 Acontnuapostulaodealternativas 366

7. do fechado horizonte do esprito do mundo de hegel pregao do imperativo da emancipao socialista 373 7.1 Concepesindividualistasdoconhecimentoedainteraosocial 373 7.2 OproblemadatotalizaoemHistria e conscincia de classe 379 7.3 Criseideolgicaesuaresoluovoluntarista 384 7.4 AfunodopostuladometodolgicodeLukcs 394 7.5 Ahipostatizaodaconscinciadeclasseatribuda 399

8. os limites de ser mais hegeliano que hegel 405 8.1 Umacrticadaracionalidadeweberiana 405 8.2 Oparasoperdidodomarxismoocidental 419 8.3 Osujeito-objetoidnticodeLukcs 426

9. Ateoria e seu cenrio institucional 445 9.1 Apromessadaconcretizaohistrica 445 9.2 MudananaavaliaodosConselhosdeTrabalhadores 453 9.3 AcategoriadamediaodeLukcs 462 10.poltica e moralidade: de histria e conscincia de classe a o presente e o futuro da democratizao e de volta tica no escrita 469 10.1 Apelointervenodiretadaconscinciaemancipatria 469 10.2 Alutadeguerrilhadaarteedacinciaeaideiada lideranaintelectualdecima 476 10.3 Elogiodaopiniopblicasubterrnea 484 10.4 Asegundaordemdemediaodocapitalea propostadaticacomomediao 486 10.5 Afronteirapolticadasconcepesticas 494 10.6 OslimitesdoltimotestamentopolticodeLukcs 501

LEGADOHISTRICODACRTICASOCIALISTA2:RUPTURARADICALETRANSIONAHERANAMARXIANA

11. O projeto inacabado de Marx 517 11.1 Domundodasmercadoriasnovaformahistrica 518 11.2 OcenriohistricodateoriadeMarx 520 11.3 Acrticamarxianadateorialiberal 523 11.4 Dependnciadosujeitonegado 525 11.5 Ainserosocialdatecnologiaeadialticado histrico/trans-histrico 527 11.6 Teoriasocialistaeprticapoltico-partidria 529 11.7 Novosdesenvolvimentosdocapitalesuasformaesestatais 532 11.8 Umacriseemperspectiva? 535

12. A astcia da histria em marcha r 540 12.1 List der Vernunfteaastciadahistria 540 12.2 Areconstituiodasperspectivassocialistas 544 12.3 Aemergnciadanovaracionalidadedocapital 549 12.4 Contradiesdeumaeradetransio 556

13. como poderia o estado fenecer? 561 13.1 Oslimitesdaaopoltica 563 13.2 OsprincipaistraosdateoriapolticadeMarx 566 13.3 Revoluosocialeovoluntarismopoltico 571 13.4 CrticadafilosofiapolticadeHegel 577 13.5 Odeslocamentodascontradiesdocapital 584 13.6 Ambiguidadestemporaisemediaesquefaltam 592

PARTE IIICRISE ESTRUTURAL DO SISTEMA DO CAPITAL

14. A produo de riqueza e a riqueza da produo 605 14.1 Adisjunodenecessidadeeproduoderiqueza 606 14.2 Osignificadoverdadeiroeofetichizadodapropriedade 610 14.3 Produtividadeeuso 614 14.4 Contradioentretrabalhoprodutivoenoprodutivo 617 14.5 Aestruturadecomandodocapital:determinaoverticaldo processodetrabalho 621 14.6 Ahomogeneizaodetodasasrelaesprodutivasedistributivas 624 14.7 Amaldiodainterdependncia:ocrculoviciosodo macrocosmoeasclulasconstitutivasdosistemadocapital 629

15. A taxa de utilizao decrescente no capitalismo 634 15.1 Damaximizaodavidatildasmercadoriasaotriunfoda produogeneralizadadodesperdcio 634 15.2 Arelativizaodoluxoedanecessidade 642 15.3 Tendnciasecontratendnciasdosistemadocapital 653 15.4 Oslimitesdaextraodoexcedenteeconomicamenteregulada 656 15.5 Ataxadeutilizaodecrescenteeosignificadodetempodisponvel659

16.a taxa de utilizao decrescente e o estado capitalista: administrao da crise e autorreproduo destrutiva do capital 675 16.1 Alinhademenorresistnciadocapital 675 16.2 Osignificadodocomplexomilitar-industrial 685 16.3 Dasgrandestempestadesaumcontinuumdedepresso: administraodacriseeautorreproduodestrutivadocapital 695

17.Formas mutantes do controle do capital 701 17.1 Osignificadodecapitalnaconcepomarxiana 701 17.2 Socialismoemumspas 726 17.3 Ofracassodadesestalinizaoeocolapsodo socialismorealmenteexistente 747 17.4 Atentativadepassardaextraopolticaeconmicado trabalhoexcedente:glasnost e perestroikasemopovo 764

18.Atualidade histrica da ofensiva socialista 787 18.1 Aofensivanecessriadasinstituiesdefensivas 788 18.2 Dascrisescclicascriseestrutural 795 18.3 Apluralidadedecapitaiseosignificadodopluralismosocialista 811 18.4 Anecessidadedesecontraporforaextraparlamentardocapital 821

19.Osistema comunal e a lei do valor 861 19.1 Apretendidapermannciadadivisodotrabalho 861 19.2 Aleidovalorsobdiferentessistemassociais 866

19.3 Mediaoantagnicaecomunaldosindivduos 875 19.4 Anaturezadatrocanasrelaessociaiscomunais 881 19.5 Novosignificadodaeconomiadetempo:aregulamentaodo processodetrabalhocomunalorientadapelaqualidade 887

20.Alinha de menor resistncia e a alternativa socialista 896 20.1 Mitoerealidadedomercado 899 20.2 Paraalmdocapital:oobjetivorealdatransformaosocialista 916 20.3 Paraalmdaeconomiadirigida:osignificadodecontabilidade socialista 934 20.4 Paraalmdasilusesdamercadizao:opapeldosincentivos emumsistemagenuinamenteplanejado 955 20.5 Paraalmdoimpasseconflitante:dairresponsabilidade institucionalizadademocrticatomadadedecisoporbaixo 970

PARTEIVENSAIOS SOBRE TEMAS RELACIONADOS

21. A necessidade do controle social 983 21.1 Oscondicionaiscontrafactuaisdaideologiaapologtica 984 21.2Capitalismoedestruioecolgica 987 21.3Acrisededominao 989 21.4 Datolernciarepressivadefesaliberaldarepresso 997 21.5Guerra,sefalhamosmtodosnormaisdeexpanso 1000 21.6Aemergnciadodesempregocrnico 1004 21.7 Aintensificaodataxadeexplorao 1006 21.8 Corretivosdocapitalecontrolesocialista 1008

22. Poder poltico e dissidncia nas sociedades ps-revolucionrias 1012 22.1 Nohavermaispoderpolticopropriamentedito 1012 22.2Oidealeaforadacircunstncia 1014 22.3 Poderpolticonasociedadedetransio 1016 22.4 AsoluodeLukcs 1021 22.5 Indivduoeclasse 1023 22.6 Rompendoodomniodocapital 1028

23. Diviso do trabalho e estado ps-capitalista 1032 23.1Abaseestruturaldasdeterminaesdeclasse 1034 23.2Aimportnciadacontingnciahistrica 1041 23.3AslacunasemMarx 1044 23.4 Ofuturodotrabalho 1056 23.5Adivisodotrabalho 1058 23.6OEstadops-revolucionrio 1059 23.7 Conscinciasocialista 1061

24. Poltica radical e transio para o socialismo 1063 24.1 OsignificadodePara alm do capital 1064 24.2 Condieshistricasdaofensivasocialista 1066 24.3 Anecessidadedeumateoriadatransio 1068 24.4 Areestruturaodaeconomiaesuasprecondiespolticas 1071

25. A crise atual 1079 25.1Surpreendentesadmisses 1079 25.2 DeclaraodahegemoniadosEstadosUnidos 1081 25.3 FalsasilusesacercadodeclniodosEstadosUnidos comopotnciahegemnica 1087 25.4Avisooficialdaexpansos 1089 Postscript 1995:quesignificamassegundas-feiras (easquartas-feiras)negras 1090

ndice onomstico 1095

Nota biogrfica 1103

NOTA DO EDITOR

O mais importante estudo sobre o pensamento poltico e econmico de Marx especialmente de O capital e dos Grundrisse , Para alm do capital, a monumental obra do filsofo hngaro Istvn Mszros, chega finalmente ao Brasil. Este livro, com o qual a Boitempo comemora o seu centsimo ttulo, leva-nos a revisitar a obra marxiana de explicao do capital e de sua dinmica, reconhecendo sua grandiosidade e tambm suas lacunas. Para alm do capital passa em revista velhos conceitos, como o de que no h alternativa ao capital e ao capitalismo, e lana luz nova sobre questes atuais, permitindo-nos redescobrir Marx como um pensador do presente e do futuro.

A traduo que aqui se apresenta foi feita a partir da edio original inglesa, de 1995 (Beyond Capital Towards a Theory of Transition, Merlin Press). Os captulos de um a cinco foram traduzidos por Beatriz Sidou, com texto final de Paulo Cezar Castanheira. Srgio Lessa, professor de Filosofia na Universidade Federal de Alagoas, traduziu os captulos seis ao vinte. Paulo Cezar Castanheira incumbiu-se tambm da traduo do Prefcio, da Introduo e da reviso de traduo de toda a obra, incluindo os ensaios que esto publicados na parte IV: A necessidade do controle social, traduzido originalmente por Mrio Duayer; Poder poltico e dissidncia nas sociedades ps-revolucionrias, traduo de Pedro Wilson Leito e Jos Paulo Netto, reviso de Ester Vaisman; Diviso do traba-lho e Estado ps-capitalista, por Magda Lopes; Poltica radical e transio para o socialismo, por J. Chasin e Ester Vaisman; e, finalmente, A crise atual, tra-duzido por Joo Roberto Martins Filho.

As notas de rodap numeradas so todas da edio original. Nas citaes biblio-grficas, quando foi possvel, acrescentamos as referncias de edies brasileiras ou em portugus (o que, infelizmente, no pde ser feito em todo o livro, dada a grande quantidade de obras citadas pelo autor).

Queremos registrar nosso reconhecimento s pessoas sem as quais no teria sido possvel publicar uma obra dessa envergadura: em primeiro lugar, a Ricardo Antunes, coordenador da coleo Mundo do Trabalho e professor de Sociologia da

14 Para alm do capital

Unicamp, que se dedicou pessoalmente e com ateno incomum reviso de vrios captulos; a Paulo Csar Castanheira e a Srgio Lessa, tradutores cujo empenho foi decisivo para a realizao deste livro; a Maria Orlanda Pinassi, professora de Sociologia da Unesp, responsvel por uma cuidadosa e eficiente preparao dos originais; a Tlio Kawata, Maurcio Leal e Sandra Regina de Souza, revisores em diferentes fases da preparao deste livro, que demonstraram excepcional dedicao e profissionalismo; ao professor Ronaldo Gaspar, a quem coube a difcil tarefa de cotejar parte de nossa traduo com a edio em ingls; e, finalmente, ao professor Francisco Teixeira e ao prefeito da cidade de Belm, Edmilson Rodrigues, que nos ajudaram a viabilizar a traduo. Todos foram, em diferentes etapas do trabalho, responsveis pela publicao de uma obra que representa, provavelmente, a anlise mais substancial sobre o capital e o capitalismo desde Marx.

Ivana Jinkings

APRESENTAO

Lukcs disse certa vez, enquanto elaborava sua ltima obra, a Ontologia do ser social, que gostaria de retomar o projeto de Marx e escrever O capital dos nossos dias. In-vestigar o mundo contemporneo, a lgica que o presidia, os elementos novos de sua processualidade, objetivando com isso fazer, no ltimo quartel do sculo XX, uma atualizao dos nexos categoriais presentes em O capital. Lukcs pde indicar, mas no pde sequer iniciar tal empreitada. Coube a Istvn Mszros, um dos mais destacados e importantes colaboradores de Lukcs, essa significativa contribuio para a realizao, em parte, desta monumental (e por certo coletiva) empreitada.

Radicado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, onde professor emrito, Istvn Mszros j era responsvel por uma vasta produo intelectual, da qual se destacam Marxs Theory of Alienation (1970) [ed. bras.: A teoria da alienao em Marx, 2006], Philosophy, Ideology and Social Science (1986) [ed. bras.: Filosofia, ideologia e cincia social, 2008] e The Power of Ideology (1989) [ed. bras.: O poder da ideologia, 2004], entre vrios outros livros, publicados em diversos pases do mundo.

Para alm do capital , entretanto, seu livro de maior envergadura e se confi-gura como uma das mais agudas reflexes crticas sobre o capital em suas formas, engrenagens e mecanismos de funcionamento sociometablico, condensando mais de duas dcadas de intenso trabalho intelectual. Mszros empreende uma demolidora crtica do capital e realiza uma das mais instigantes, provocativas e densas reflexes sobre a sociabilidade contempornea e a lgica que a preside. Na impossibilidade de desenvolver, no mbito desta apresentao, sequer minima-mente o vasto campo de complexidades desenvolvido pelo autor, vamos procurar indicar algumas de suas teses centrais, pontuando elementos analticos presentes em Para alm do capital.

Podemos comear afirmando que, para o autor, capital e capitalismo so fenmenos distintos e a identificao conceitual entre ambos fez com que todas as experincias revolucionrias vivenciadas no sculo passado, desde a Revoluo Russa at as tentativas mais recentes de constituio societal socialista, se mos-trassem incapacitadas para superar o sistema de sociometabolismo do capital, isto , o complexo caracterizado pela diviso hierrquica do trabalho, que subordina

16 Para alm do capital

suas funes vitais ao capital. Este, o capital, antecede ao capitalismo e a ele tambm posterior. O capitalismo uma das formas possveis da realizao do capital, uma de suas variantes histricas, como ocorre na fase caracterizada pela subsuno real do trabalho ao capital. Assim como existia capital antes da generalizao do sistema produtor de mercadorias (de que exemplo o capital mercantil), do mesmo modo pode-se presenciar a continuidade do capital aps o capitalismo, pela constituio daquilo que ele, por exemplo, denomina como sistema de capital ps-capitalista, que teve vigncia na URSS e demais pases do Leste Europeu, durante vrias dcadas do sculo XX. Estes pases, embora tivessem uma configurao ps-capitalista, foram incapazes de romper com o sistema de sociometabolismo do capital.

Portanto, para Mszros, o sistema de sociometabolismo do capital mais pode-roso e abrangente, tendo seu ncleo constitutivo formado pelo trip capital, trabalho e Estado. Essas trs dimenses fundamentais do sistema so materialmente constitudas e inter-relacionadas, e impossvel superar o capital sem a eliminao do conjunto dos elementos que compreende esse sistema. No basta eliminar um ou mesmo dois de seus polos. Os pases ps-capitalistas, com a URSS frente, mantiveram intactos os elementos bsicos constitutivos da diviso social hierrquica do trabalho que configura o domnio do capital. A expropriao dos expropriadores, a eliminao jurdico--poltica da propriedade, realizada pelo sistema sovitico, deixou intacto o edifcio do sistema de capital. O desafio, portanto, superar o trip em sua totalidade, nele includo o seu pilar fundamental, dado pelo sistema hierarquizado de trabalho, com sua alienante diviso social, que subordina o trabalho ao capital, tendo como elo de complementao o Estado poltico.

Na sntese de Istvn Mszros: dada a inseparabilidade das trs dimenses do sistema do capital, que so completamente

articulados capital, trabalho e Estado , inconcebvel emancipar o trabalho sem simultaneamente superar o capital e tambm o Estado. Isso porque, paradoxalmente, o material fundamental que sustenta o pilar do capital no o Estado, mas o trabalho, em sua contnua dependncia estrutural do capital (...). Enquanto as funes controladoras vitais do sociometabolismo no forem efetivamente tomadas e autonomamente exercidas pelos produtores associados, mas permanecerem sob a autoridade de um controle pessoal separado (isto , o novo tipo de personificao do capital), o trabalho enquanto tal continuar reproduzindo o poder do capital sobre si prprio, mantendo e ampliando materialmente a regncia da riqueza alienada sobre a sociedade. Sendo um sistema que no tem limites para a sua expanso (ao contrrio dos

modos de organizao societal anteriores, que buscavam em alguma medida o aten-dimento das necessidades sociais), o sistema de sociometabolismo do capital constitui-se como um sistema incontrolvel. Fracassaram, na busca de control-lo, tanto as inmeras tentativas efetivadas pela social-democracia, quanto a alternativa de tipo sovitico, uma vez que ambas acabaram seguindo o que o autor denomina de linha de menos resistncia do capital. A sua converso num modo de sociometabolismo incontrolvel decorrncia das prprias fraturas e dos defeitos estruturais que esto presentes desde o incio no sistema do capital. Isso porque:

17Apresentao

Primeiro, a produo e seu controle esto separados e se encontram diametralmente opostos um ao outro.

Segundo, no mesmo esprito, em decorrncia das mesmas determinaes, a produo e o consumo adquirem uma independncia extremamente problemtica e uma existncia separada, de tal modo que o mais absurdo e manipulado consumismo, em algumas partes do mundo, pode encontrar seu horrvel corolrio na mais desumana negao das necessidades elementares de incontveis milhes de seres.

Terceiro, os novos microcosmos do sistema de capital se combinam em sua totalidade de maneira tal que o capital social total deveria ser capaz de integrar-se (...) ao domnio global da circulao (...) visando superar a contradio entre produo e circulao. Desta maneira, a necessria dominao e subordinao prevalecem no s dentro dos microcosmos particulares (...), seno tambm atravs de seus limites, transcendendo no s as barreiras regionais, mas tambm as fronteiras nacionais. assim que a fora de trabalho total da humanidade se encontra submetida (...) aos alienantes imperativos de um sistema global de capital. A principal razo pela qual esse sistema escapa a um grau significativo de controle

manifesta-se, precisamente, porque este emergiu, no curso da histria, como uma estrutura de controle totalizante das mais

poderosas, (...) dentro do qual tudo, incluindo os seres humanos, deve ajustar-se, provando em consequncia sua viabilidade produtiva ou, ao contrrio, perecendo. No se pode pensar em outro sistema de controle maior e inexorvel e nesse sentido totalitrio que o sistema de capital globalmente dominante, que impe seu critrio de viabilidade em tudo, desde as menores unidades de seu microcosmo at as maiores empresas transnacionais, desde as mais ntimas relaes pessoais at os mais complexos processos de tomada de decises nos consrcios monoplicos industriais, favorecendo sempre o mais forte contra o mais fraco. E, neste processo de alienao, o capital degrada o sujeito real da produo, o trabalho, condio de uma objetividade reificada um mero fator material de produo transformando, desse modo, no s na teoria, mas tambm na prtica social mais palpvel, a relao real do sujeito/objeto (...). O trabalho deve ser feito para reconhecer outro sujeito sobre si mesmo, ainda que em realidade este ltimo seja s um pseudo-sujeito.Constituindo-se como um modo de sociometabolismo em ltima instncia

incontrolvel, o sistema do capital essencialmente destrutivo em sua lgica. Essa uma tendncia que se acentuou no capitalismo contemporneo, o que levou Mszros a desenvolver a tese, central em sua anlise, da taxa de utilizao decrescen-te do valor de uso das coisas. O capital no trata valor de uso (o qual corresponde diretamente necessidade) e valor de troca como estando separados, mas de um modo que subordina radicalmente o primeiro ao ltimo. O que significa que uma mercadoria pode variar de um extremo a outro, isto , desde ter seu valor de uso realizado, num extremo da escala, at jamais ser usada, no outro extremo, sem por isso deixar de ter, para o capital, a sua utilidade expansionista e reprodutiva. E, sempre segundo Mszros, esta tendncia decrescente do valor de uso das merca-dorias, ao reduzir a sua vida til e desse modo agilizar o ciclo reprodutivo, tem se constitudo num dos principais mecanismos pelo qual o capital vem atingindo seu incomensurvel crescimento ao longo da histria.

18 Para alm do capital

O capitalismo contemporneo operou, portanto, o aprofundamento da separao entre, de um lado, a produo voltada genuinamente para o atendimento das necessi-dades e, de outro, as necessidades de sua autorreproduo. E, quanto mais aumentam a competitividade e a concorrncia intercapitais, mais nefastas so suas consequncias, das quais duas so particularmente graves: a destruio e/ou precarizao, sem paralelos em toda a era moderna, da fora humana que trabalha e a degradao crescente do meio ambiente, na relao metablica entre homem, tecnologia e natureza, conduzida pela lgica societal subordinada aos parmetros do capital e do sistema produtor de mercadorias. O que leva concluso categrica: Sob as condies de uma crise estrutural do capital, seus contedos destrutivos aparecem

em cena trazendo uma vingana, ativando o espectro de uma incontrolabilidade total, em uma forma que prefigura a autodestruio tanto do sistema reprodutivo social como da humanidade em geral. Como exemplo desta tendncia, acrescenta o autor: suficiente pensar sobre a selvagem discrepncia entre o tamanho da populao dos EUA menos de 5% da populao mundial e seu consumo de 25% do total dos recursos energticos disponveis. No preciso grande imaginao para calcular o que ocorreria se os 95% restantes adotassem o mesmo padro de consumo. Expansionista, destrutivo e, no limite, incontrolvel, o capital assume cada

vez mais a forma de uma crise endmica, como um depressed continuum, como uma crise cumulativa, crnica e permanente, com a perspectiva de uma crise estrutural cada vez mais profunda, ao contrrio da sua conformao anterior, cclica, que al-ternava fases de desenvolvimento produtivo com momentos de tempestade. Com a irresolubilidade da sua crise estrutural fazendo emergir, na sua linha de tendncia j visvel, o espectro da destruio global da humanidade, a nica forma de evit--la colocando em pauta a atualidade histrica da alternativa societal socialista, da ofensiva socialista.

Aqui emerge outro conjunto central de teses, na obra de Mszros, carregado de forte significado poltico. Na impossibilidade de desenvolv-las, nos limites desta apresentao, vamos indicar seu significado mais direto: a ruptura radical com o sistema de sociometabolismo do capital (e no somente com o capitalismo) , por sua prpria natureza, global e universal, sendo impossvel sua efetivao no mbito (da tese staliniana) do socialismo num s pas. Entretanto, para o autor, o fato de as revolues socialistas terem ocorrido nos pases considerados como os elos dbeis da cadeia, como pases economicamente atrasados, no altera a complexidade do problema nem a dificuldade da transio. A necessidade de alterar radicalmente o sistema de sociometabolismo do capital seria, para Mszros, do mesmo modo aguda e intensa tambm nos pases capitalistas avanados.

Como a lgica do capital estrutura seu sociometabolismo e seu sistema de controle no mbito extraparlamentar, qualquer tentativa de superar este sistema de socio-metabolismo que se restrinja esfera institucional e parlamentar est impossibilitada de derrot-lo. S um vasto movimento de massas radical e extraparlamentar pode ser capaz de destruir o sistema de domnio social do capital. Consequentemente, o processo de autoemancipao do trabalho no pode restringir-se ao mbito da poltica. Isso porque o Estado moderno entendido pelo autor como uma estru-tura poltica compreensiva de mando do capital, um pr-requisito para a converso do

19Apresentao

capital num sistema dotado de viabilidade para a sua reproduo, expressando um momento constitutivo da prpria materialidade do capital. Solda-se, ento, um nexo fundamental: o Estado moderno inconcebvel sem o capital, que o seu real funda-mento, e o capital, por sua vez, precisa do Estado como seu complemento necessrio. A crtica radical ao Estado ganha sentido, portanto, somente se a ao tiver como centro a destruio do sistema de sociometabolismo do capital.

Como desdobramento da tese anterior, a crtica de Mszros aos instrumentos polticos de mediao existentes tambm enftica: os sindicatos e partidos, tanto nas suas experincias de tipo social-democrtico, quanto na variante dos partidos comunistas tradicionais, de feio stalinista ou neosstalinista, fracassaram no intento de controlar e de superar o capital. O desafio maior do mundo do trabalho e dos movimentos sociais que tm como ncleo fundante a classe trabalhadora criar e in-ventar novas formas de atuao, autnomas, capazes de articular intimamente as lutas sociais, eliminando a separao, introduzida pelo capital, entre ao econmica, num lado (realizada pelos sindicatos), e ao poltico-parlamentar, no outro polo (realizada pelos partidos). Esta diviso favorece o capital, fraturando e fragmentando ainda mais o movimento poltico dos trabalhadores.

Os indivduos sociais, como produtores associados, somente podero superar o capital e seu sistema de sociometabolismo desafiando radicalmente a diviso estrutural e hierrquica do trabalho e sua dependncia ao capital em todas as suas determina-es. Um novo sistema metablico de controle social deve instaurar uma forma de sociabilidade humana autodeterminada, o que implica um rompimento inte-gral com o sistema do capital, da produo de valores de troca e do mercado. O desafio central, portanto, est em encontrar, segundo Mszros, um equivalente racionalmente controlvel e humanamente compensador das funes vitais da reproduo da sociedade e do indivduo que devem ser realizadas, de uma forma ou de outra, por todo o sistema de intercmbio produtivo, no qual preciso as-segurar finalidades conscientemente escolhidas pelos indivduos sociais que lhes permitam realizar-se a si mesmos como indivduos e no como personificaes particulares do capital ou do trabalho. Nessa nova forma de sociabilidade ou novo sistema de sociometabolismo reprodutivo, a atividade humana dever se estruturar sob o princpio do tempo disponvel, num modo de controle social autnomo, autodeterminado e autorregulado.

O livro denso, slido, rigoroso e polmico que o leitor est desafiado a ler ainda apresenta um outro conjunto de teses centrais, de que so exemplos as indicaes analticas feitas em relao tanto questo feminina, ou seja, a efetiva emancipao da mulher das diversas formas de opresso, bem como a temtica ambiental (literalmente vital), caracterizada pelo combate destruio sem prece-dentes da natureza. Ambas no podem ser integradas e incorporadas de maneira resolutiva pelo capital e seu sistema de sociometabolismo, encontrando, por isso, suas efetivas possibilidades de realizao ao articularem-se ao potencial emanci-patrio do trabalho, convertendo-se, deste modo, em movimentos emancipatrios dotados de uma questo especfica (single issue), que se integram ao processo de autoeman cipao da humanidade.

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Creio que o que foi indicado evidencia a complexidade, radicalidade e densidade desta obra. Ficam estas indicaes como uma pequena amostra da vitalidade intelectual de Istvn Mszros, nesta devastadora crtica lgica contempornea do capital. Pode-se discordar de muitas de suas teses, quer pelo seu carter contundente, quer pela sua enorme amplitude, abrangncia e mesmo ambio, que por certo gerar muita controvrsia e polmica. Mas ela , neste incio de sculo, o desenho crtico e analtico mais ousado contra o capital e suas formas de controle social, num momento em que aparecem vrios sintomas da retomada de um pensamento vigoroso e radical.

Concluo lembrando que Istvn Mszros realiza uma sntese decisivamente inspirada em Marx (particularmente nas magistrais indicaes dos Grundrisse), mas que tambm tributrio, por um lado, da matriz ontolgica de Lukcs (com quem dialoga e polemiza fortemente em vrios momentos do livro) e, por outro, da radicalidade da crtica da economia poltica de Rosa Luxemburgo, que o inspira tambm fortemente. O que resultou num trabalho original, que devassa o passado recente e o nosso presente, oferecendo um manancial de ferramentas para aqueles que esto olhando para o futuro. Para alm do capital.

Ricardo Antunes

PREFCIO EDIO BRASILEIRA

Desafios histricos diante do movimento socialista

Vivemos numa poca de crise histrica sem precedentes que afeta todas as formas do sistema do capital, e no apenas o capitalismo. Portanto, compreensvel que somente uma alternativa socialista radical ao modo de controle metablico social tenha con-dies de oferecer uma soluo vivel para as contradies que surgem nossa frente. Uma alternativa hegemnica que, por no depender do objeto que nega, no se deixe restringir pela ordem existente, como sempre sucedeu no passado. Apesar de termos de estar alertas para os imensos perigos que surgem no horizonte, no basta neg-los para enfrent-los com todos os meios ao nosso alcance. tambm necessrio definir uma alternativa positiva, corporificada num movimento socialista radicalmente recons-titudo. Pois a meta escolhida da ao transformadora tem importncia fundamental para o sucesso de qualquer alternativa que v alm do capital, que no se satisfaa com a simples superao dele. Isto j deve ter ficado claro das penosas lies do colapso do assim chamado socialismo realmente existente: o prisioneiro, ao longo de toda a sua histria, das determinaes negativas.

1.A criao da alternativa radical ao modo de reproduo metablica do capital uma necessidade urgente, mas no h de acontecer sem uma reavaliao crtica do passado. necessrio examinar o malogro histrico da esquerda em se colocar altura das expectativas que Marx enunciou otimisticamente, j em 1847, da associao sindical e do consequente desenvolvimento da classe trabalhadora, paralelo ao desenvolvimento industrial dos diversos pases capitalistas. Segundo ele: o grau de desenvolvimento desta associao em qualquer pas indica a posio ocupada por esse pas na hierarquia do mercado mundial. A Inglaterra, que atin-giu o desenvolvimento industrial mximo, tem as maiores associaes e as mais bem organizadas. Os operrios na Inglaterra no se satisfizeram com associaes parciais (...) continuaram simultaneamente suas lutas polticas, e agora constituem

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um partido poltico importante, sob o nome de Chartists1. E Marx esperava que este processo continuasse de forma que

No seu processo de desenvolvimento, a classe operria dever substituir a velha sociedade civil por uma associao que h de excluir as classes e seus antagonismos, e o poder poltico propriamente dito deixar de existir, pois o poder poltico exatamente a expresso oficial do antagonismo na sociedade civil.2

Entretanto, ao longo do desenvolvimento da classe operria, parcialidade e setorialidade no se limitaram s associaes parciais e aos vrios sindicatos que evoluram a partir delas. Inevitavelmente, a parcialidade afetou todos os aspectos do movimento socialista, inclusive a sua dimenso poltica. Tanto mais que, passado um sculo e meio, ela ainda representa um enorme problema que, espera-se, ser resolvido em futuro no muito distante.

Nos seus primrdios, o movimento operrio no conseguiu evitar ser setorial nem parcial. No se trata simplesmente de ele ter adotado subjetivamente uma estratgia errada, como j se afirmou insistentemente, mas uma questo de determinaes obje-tivas. Pois a pluralidade dos capitais no podia, e ainda no pode, ser superada no mbito da estrutura da ordem metablica do capital, apesar da tendncia avassaladora para a concentrao e centralizao monopolsticas e tambm para o desenvolvimento transnacional, mas precisamente por seu carter transnacional (e no genuinamente multinacional), necessariamente parcial do capital globalizante. Ao mesmo tempo, a pluralidade do trabalho no pode tambm ser superada no espao da reprodu-o sociometablica do capital, apesar de todo o esforo despendido nas tentativas de transformar o trabalho, de adversrio estruturalmente irreconcilivel, no cmplice dcil do capital; tentativas que vo desde a propaganda mentirosa do mercado de aes como o capitalismo do povo, at a extrao poltica direta do trabalho excedente exercida pelas personificaes do capital ps-capitalistas que tentaram se legitimar como a corporificao dos verdadeiros interesses da classe operria.

O carter setorial e parcial do movimento operrio se combinou com sua articulao defensiva. O sindicalismo inicial do qual surgiram mais tarde os partidos polticos representou a centralizao da setorialidade de tendncia auto-ritria, e a consequente transferncia do poder de deciso das associaes locais para as centrais sindicais e, mais tarde, destas para os partidos polticos. Desta forma, o movimento sindical global foi, desde o incio, inevitavelmente setorial e defensivo. Na verdade, dada a lgica interna do desenvolvimento desse movimento, a centralizao da setorialidade se fez acompanhar do aprofundamento das atitudes defensivas, quando comparadas com os ataques espordicos com os quais as associa-es locais impunham srios reveses aos adversrios capitalistas locais. (Os luditas, um movimento semelhante mas mais afastado, tentaram fazer o mesmo de uma forma mais generalizada e destrutiva que, portanto, tornou-se em pouco tempo absolutamente invivel.) O aprofundamento da postura defensiva representou, portanto, um avano histrico paradoxal. Pois o movimento operrio, por meio de seus primeiros sindicatos, passou a ser o interlocutor do capital, sem deixar de ser

1 Marx, The Poverty of Philosophy, em Marx e Engels, Collected Works, vol. 6, p. 210. 2 Ibid., p. 212.

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objetivamente seu adversrio estrutural. Desta nova posio defensiva, foi possvel ao movimento operrio, em condies favorveis, obter algumas vantagens para certos setores do movimento. Isto se tornava possvel desde que os elementos cor-respondentes do capital pudessem se ajustar, em escala nacional de acordo com a dinmica do potencial de expanso e acumulao do capital s demandas propostas pelo movimento operrio defensivamente articulado. Um movimento que operava no mbito das premissas estruturais do sistema do capital, como um interlocutor legalmente constitudo e regulado pelo Estado. O desenvolvimento do Estado de Bem-Estar foi a manifestao mais recente desta lgica, possvel apenas num nmero muito reduzido de pases. Foi limitado, tanto no que se refere s condies favorveis de expanso tranquila do capital nos pases onde tal ocorreu como precondio para o surgimento do Estado de bem-estar, quanto no que se refere escala de tempo, marcada no final pela presso da direita radical, ao longo das trs ltimas dcadas, pela liquidao completa do Estado de bem-estar, em virtude da crise estrutural do sistema do capital.

Com a constituio dos partidos polticos trabalhistas que assumiu a forma da separao do brao industrial do movimento operrio (os sindicatos) de seu brao poltico (os partidos social-democratas e de vanguarda) aprofundaram-se as atitudes defensivas. Pois esses dois tipos de braos se apropriaram do direito exclusivo de tomada de deciso, o que j podia ser antevisto na setorialidade centralizada dos prprios movimentos sindicais. Esta atitude defensiva tornou--se ainda pior em razo do modo de operao adotado pelos partidos polticos, que obtinham algumas vantagens ao custo do afastamento do movimento socia-lista de seus objetivos originais. Pois, na estrutura parlamentar do capitalismo, a aceitao pelo capital da legitimidade dos partidos polticos operrios foi conquis-tada em troca da declarao da completa ilegalidade do uso do brao industrial para fins polticos, o que representou uma severa restrio aceita pelos partidos trabalhistas, e que condenou total impotncia o imenso potencial combativo do trabalho produtivo materialmente enraizado e potencial e politicamente mais eficaz. Agir dessa forma era muito mais problemtico, j que o capital, por meio da supremacia estruturalmente conquistada, continuou a ser a fora extrapar-lamentar par excellence, em condies de dominar de fora, e a seu bel-prazer, o parlamento. Da mesma forma, no se podia considerar melhor a situao nas sociedades ps-capitalistas. Pois Stalin reduziu os sindicatos a serem o que ele chamava de correias de transmisso da propaganda oficial, ao mesmo tempo em que isentava de qualquer possibilidade de controle pela base da classe oper-ria a forma poltica ps-capitalista de tomada de deciso autoritria. Portanto, compreensvel que, em face de nossa infeliz experincia histrica com os dois tipos principais de partido poltico, no exista mais esperana de rearticulao real do movimento socialista sem uma combinao completa do brao industrial com o brao poltico do movimento trabalhista: mediante, de um lado, a atribuio aos sindicatos de tomada de deciso significativa (incentivando-os a serem direta-mente polticos) e, de outro, e pela transformao dos prprios partidos polticos em participantes desafiadoramente ativos nos conflitos industriais, como antago-nistas incansveis do capital, assumindo a responsabilidade pela luta dentro e fora do parlamento.

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Ao longo de toda a sua histria, o movimento operrio sempre foi setorial e de-fensivo. Na verdade, essas duas caractersticas definidoras constituram um crculo vicioso. Por se ter articulado defensivamente como movimento geral, o movimento operrio, dada a sua pluralidade e diviso interna, no conseguiu romper as restries setoriais paralisantes advindas da dependncia da pluralidade dos capitais. E vice- -versa, ele no conseguiu superar as graves limitaes de suas atitudes necessaria-mente defensivas em relao ao capital porque at nossos dias continuou sendo setorial em sua articulao poltica e industrial organizada. Ao mesmo tempo, o que fechou ainda mais o crculo vicioso, o papel defensivo adotado pelo movimen-to operrio conferiu uma estranha forma de legitimidade ao modo de controle sociometablico do capital, pois, por omisso, a postura defensiva representou, ostensiva ou tacitamente, a aceitao da ordem poltica e econmica estabeleci-da como a estrutura necessria e pr-requisito das reivindicaes que poderiam ser consideradas realisticamente viveis entre as apresentadas, demarcando, ao mesmo tempo, a nica forma legtima de soluo de conflitos resultantes das reivindicaes opostas dos interlocutores. Para satisfao das personificaes do capital, isto representou uma espcie de autocensura. Representou uma autocensura entorpecente, que resultou numa inatividade estratgica que continua at hoje a pa-ralisar at mesmo os remanescentes mais radicais da esquerda histrica organizada, para no falar dos seguidores que um dia foram realmente reformistas e que agora esto completamente domados e integrados.

Enquanto a postura defensiva do interlocutor racional do capital cuja ra-cionalidade foi definida a priori pelo que poderia se ajustar s premissas e restries prticas da ordem dominante continuasse a obter vantagens relativas para o mo-vimento operrio, a autoproclamada legitimidade da estrutura regulatria do capital no seria desafiada. Entretanto, sob a presso da crise estrutural, o capital no teve mais condies de oferecer qualquer ganho significativo ao interlocutor racional, mas ao contrrio, foi obrigado a retomar as concesses passadas, atacando sem piedade as prprias bases do Estado de bem-estar, bem como as salvaguardas legais de proteo e defesa do operariado por meio de um conjunto de leis autoritrias contrrias ao movi-mento sindical, todas aprovadas democraticamente, e a ordem poltica estabelecida teve de abrir mo de sua legitimidade, expondo, ao mesmo tempo, a inviabilidade da postura defensiva do movimento operrio.

A crise da poltica, que hoje no pode mais ser negada nem pelos piores apologistas do sistema embora eles tentem confin-la esfera da manipulao poltica e seu consenso criminoso, dentro do esprito da terceira via do Novo Trabalhismo , representa uma profunda crise de legitimidade do modo estabele-cido de reproduo sociometablica e de sua estrutura geral de controle poltico. Foi este o resultado da atualidade histrica da ofensiva socialista,3 mesmo que o movimento operrio, obedecendo sua linha de resistncia mnima, continue a dar preferncia manuteno da ordem existente, apesar da crescente evidncia

3 Ler captulo 18, pp. 787-860 desta edio. Uma verso anterior deste captulo estava includa no estudo intitulado: Il rinnovamento del marxismo e lattualit storica delloffensiva socialista, publicada em Problemi del socialismo (publicao fundada por Lelio Basso), Anno XXIII, janeiro-abril 1982, pp. 5-141).

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da incapacidade desta ordem de apresentar os resultados at mesmo nos pases capitalistas mais avanados que em tempos passados foi o fundamento de sua legitimidade. O Novo Trabalhismo hoje em dia, em todas as suas variedades europeias, o grande facilitador de resultados apenas para os interesses arraigados do capital, seja no domnio do capital financeiro defendido cinicamente pelo governo Blair at nos conflitos com os scios europeus ou em algumas de suas sees comerciais e industriais quase completamente monopolistas. Ao mes-mo tempo, para defender o sistema diante das margens cada vez mais estreitas de viabilidade reprodutiva do capital, ignoram-se totalmente os interesses da classe operria, atendem-se os interesses vitais do capital pela manuteno da legislao autoritria antissindical dos ltimos anos4, e se apoia o poder do capital estatal na sua campanha pela informalizao da fora de trabalho, como soluo cnica e enganosa para o problema do desemprego. por isso que no se pode permitir que se retire da agenda histrica, por qualquer variedade conhecida ou concebvel de acomodao do movimento operrio, a necessidade da ofensiva socialista.

No de surpreender que, nas atuais condies de crise, o canto de sereia do keynesianismo seja ouvido novamente como um remdio milagroso, como um apelo ao antigo esprito do consenso expansionista a servio do desenvolvimento. En-tretanto, hoje mal se ouve a cano que sai do fundo do tmulo do keynesianismo, pois o tipo de consenso mantido pelas variedades existentes de movimento operrio acomodado visa tornar aceitvel a inviabilidade estrutural da expanso e acumulao do capital, em ntido contraste com as condies que tornaram possvel a implanta-o das polticas keynesianas durante um perodo muito limitado de tempo. Luigi Vinci, um dos principais tericos do movimento italiano da Rifondazione, notou com muita razo que a autodefinio adequada e a viabilidade organizacional autnoma das foras socialistas radicais com frequncia so fortemente prejudicadas por um keynesianismo de esquerda, vago e otimista, em que a posio principal ocupada pela palavra mgica desenvolvimento5. Uma noo de desenvolvimento que, mesmo no ponto mximo da expanso keynesiana, no conseguiu tornar mais prxima a alter-nativa socialista, pois sempre aceitou as premissas prticas necessrias do capital como a estrutura orientadora de sua prpria estratgia, internalizada firmemente nas restries da linha de resistncia mnima.

Deve-se tambm acentuar que o keynesianismo , por sua prpria natureza, con-juntural. Como opera no mbito dos parmetros institucionais do capital, no pode evitar ser conjuntural, independentemente de as circunstncias vigentes favorecerem uma conjuntura de curto ou de longo prazo. O keynesianismo, mesmo na sua va-riedade keynesiana de esquerda, est necessariamente contido na lgica de parada e avano do capital, e dela sofre restries. Mesmo em seu apogeu, o keynesianismo

4 No devemos esquecer que a legislao antissindical na Gr-Bretanha teve incio no governo trabalhista de Harold Wilson com a proposta legislativa chamada em lugar do conflito, bem no incio da crise estrutural do capital. Continuou durante o curto governo Heath, e novamente durante os governos trabalhistas de Wilson e Callaghan, dez anos antes de receber abertamente o selo neoliberal no gover-no Margaret Thatcher.

5 Luigi Vinci, La socialdemocrazia e la sinistra antagonista in Europa, Milano, Edizioni Punto Rosso, 1999, p. 69.

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representa apenas a fase de avano de um ciclo de expanso que, mais cedo ou mais tarde, sempre pode ser interrompida por uma fase de parada. Originalmente, o keynesianismo foi uma tentativa de oferecer uma alternativa lgica de parada e avano, pela qual as duas fases seriam administradas de forma equilibrada. Entretanto, isto no aconteceu, e ele ficou preso fase de expanso, em razo da prpria natureza de sua estrutura regulatria de capitalismo orientado pelo Estado. A durao excepcional da expanso do ps-guerra ela mesma confinada a um punhado de Estados capita-listas avanados deveu-se em grande parte s condies favorveis da reconstruo do ps-guerra e pela posio dominante assumida pelo complexo industrial-militar financiado pelo Estado. Alternativamente, o fato de que a fase de recesso corretiva teve de assumir a forma do neoliberalismo insensvel (e do monetarismo como sua racionalizao ideolgica pseudo-objetiva) j sob o governo trabalhista de Harold Wilson, presidido financeira e monetariamente por Dennis Healey, seu Chanceler do Tesouro deveu-se ao advento da crise institucional do capital (que j no era a manifestao cclica tradicional) que cobriu toda uma fase histrica. o que explica a durao excepcional da fase de recesso, at agora muito mais duradou-ra do que a fase de expanso keynesiana do ps-guerra e ainda sem dar sinais de exausto, perpetuada igualmente por governos conservadores e trabalhistas. Em outras palavras, a excepcional durao e dureza da fase recessiva neoliberal, sem esquecer o fato de que o neoliberalismo praticado por governos situados nos dois lados opostos do espectro poltico parlamentar, na realidade s inteligvel como manifestao da crise estrutural do capital. A circunstncia de a brutal lon-gevidade da fase neoliberal ser racionalizada ideologicamente, por alguns tericos do trabalhismo, como o ciclo longo de recesso do desenvolvimento normal do capitalismo, ao qual h de se seguir um ciclo longo de expanso, acentua ape-nas o completo malogro do pensamento estratgico em entender a natureza das atuais tendncias de desenvolvimento. Tanto mais que, como a selvageria do neoliberalismo continua imperturbada no seu caminho, sem o desafio de um movimento operrio acomodado, j esto chegando ao fim os anos anunciados pela noo da prxima longa fase de recuperao, como teorizam os apologistas trabalhistas do capital.

Assim, dada a crise estrutural do sistema do capital, mesmo que uma alterao conjuntural pudesse trazer de volta, pelo menos por algum tempo, uma tentativa de instituio de alguma forma keynesiana de administrao financeira do Estado s poderia existir por um perodo muito curto, dada a falta de condies materiais para facilitar sua extenso por um perodo maior, mesmo nos pases capitalistas dominantes. Ainda mais importante, um renascimento conjuntural como este nada teria a oferecer para a realizao de uma alternativa socialista radical. Pois seria absolutamente impossvel construir uma alternativa vivel ao modo de controle sociometablico do capital com base numa forma interna conjuntural de administrao do sistema; uma forma que dependa da expanso e acumulao saudveis do capital como precondio necessria de seu prprio modo de operao.

2.As limitaes setoriais e defensivas do movimento operrio, tal como as conhecemos, no podem ser superadas por meio da centralizao poltica e sindical deste movimento.

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Esta falha histrica hoje fortemente acentuada pela globalizao transnacional do capital para a qual o movimento operrio no tem resposta.

preciso lembrar aqui que durante os ltimos 150 anos, nada menos que quatro Internacionais foram fundadas numa tentativa de criar a necessria unidade interna-cional do movimento operrio. Entretanto, nenhuma delas conseguiu nem mesmo se aproximar dos seus objetivos declarados, muito menos realiz-los. Este fato no pode ser entendido simplesmente em termos de traies pessoais que, mesmo que corretas em termos pessoais, ainda no o explicam por ignorarem as ponderveis determinaes objetivas que no podem ser esquecidas se esperamos resolver esta situao no futuro. Pois ainda falta explicar por que as circunstncias conduziram a tais desvios e traies por um perodo histrico to longo.

O problema fundamental que a pluralidade setorial do movimento operrio est intimamente ligada pluralidade contraditria hierarquicamente estruturada dos capitais, seja em cada pas, seja em escala mundial. No fosse por ela, seria muito mais fcil imaginar a constituio da unidade internacional do movimento operrio contra um capital unificado ou em condies de se unificar. Entretanto, dada a articulao necessariamente hierrquica e contraditria do sistema do ca-pital, com sua inqua ordenao de poder, seja no interior de cada pas, seja em escala internacional, a unidade internacional do capital qual, em princpio, se poderia contrapor sem problemas a correspondente unidade internacional do movimento operrio no vivel. O fato histrico geralmente deplorado de que, nos grandes conflitos internacionais, as classes operrias de todos os pases se tenham colocado ao lado daqueles que as exploravam em seu prprio pas, ao invs de voltarem suas armas contra suas prprias classes dominantes, o que fo-ram convidadas a fazer pelos socialistas, explicado pelas relaes contraditrias de poder a que acabamos de nos referir, e no pode ser reduzido a uma questo de clareza ideolgica. Pela mesma razo, os que esperam uma mudana radical nesta direo resultante da unificao do capital globalizante e de seu governo global que seriam combativamente enfrentados por um movimento operrio unido internacionalmente e dotado de completa conscincia de classe tambm esto condenados ao desapontamento. O capital no vai prestar este favor ao movimento operrio pela simples razo de no poder faz-lo.

A articulao hierrquica e contraditria do capital o princpio geral de estruturao do sistema, no importa o tamanho de suas unidades consti-tuintes. Isto se deve natureza interna do processo de tomada de decises do sistema. Dado o antagonismo estrutural inconcilivel entre capital e trabalho, este ltimo est categoricamente excludo de todas as decises significativas. Isto no se d apenas no nvel mais geral, mas at mesmo nos microcosmos constituintes deste sistema, em cada unidade de produo. Pois o capital, como poder alienado de tomada de deciso, no pode funcionar sem tornar suas de-cises absolutamente inquestionveis (pela fora de trabalho) em cada unidade produtiva, pelos complexos produtivos rivais do pas, em nvel intermedirio ou, na escala mais abrangente, pelo pessoal de comando de outras estruturas internacionais concorrentes. por isto que o modo de tomada de deciso do capital em todas as variedades conhecidas ou viveis do sistema do capital h forosamente de ser alguma forma autoritria de administrar empresas do topo

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para a base. Entende-se, portanto, que toda conversa de dividir o poder com a fora de trabalho, ou de permitir a sua participao nos processos de tomada de deci-so do capital, s existe como fico, ou como camuflagem cnica e deliberada da realidade.

Esta incapacidade estruturalmente determinada explica por que a gama extre-mamente variada de desenvolvimentos monopolistas ao longo do sculo XX teve de assumir a forma de fuses hostis ou no hostis (que acontecem por toda parte numa escala inimaginvel), mas sempre fuses em que uma das partes se torna dominan-te, mesmo nos casos em que a racionalizao ideolgica do processo falsamente representada como a feliz unio de iguais. A mesma incapacidade explica, o que da maior importncia para a poca atual, o fato significativo de que a globalizao do capital atualmente em andamento produziu, e continua produzindo, gigantescas em-presas transnacionais, que no so realmente multinacionais, apesar da convenincia ideolgica destas ltimas. Haver no futuro muitas tentativas de correo desta situao mediante a criao e operao de empresas multinacionais propriamente ditas. No entanto, este problema h de continuar conosco mesmo nesta nova situao. Pois os futuros acordos de alto nvel acertados pelas diretorias de multinacionais genunas s so viveis na ausncia de conflitos significativos de interesse entre os vrios pases representados na multinacional em questo. Uma vez que surjam esses conflitos, os acordos cooperativos harmoniosos se tornam insustentveis e o processo geral de tomada de deciso ter de reverter conhecida variedade autoritria de cima para baixo, sob o peso avassalador do membro mais forte. Pois este problema inseparvel do das relaes entre os capitais nacionais e suas prprias foras de trabalho, que sempre sero estruturalmente antagonsticas e conflituosas. Consequentemente, numa situao de conflito importante, nenhum capital nacional em particular pode se permitir, nem tem condies de sustentar, uma posio de desvantagem em consequncia de decises que pudessem favorecer uma fora de trabalho antagnica no pas e, por implicao, seu prprio concorrente capitalista no pas. O governo mundial sob o comando do capital, com que tantos sonham, s se tornaria vivel se fosse possvel encontrar uma soluo realizvel para este problema. Mas nenhum governo, e ainda menos um governo mundial, ser vivel sem uma base material significativa, bem estabelecida e operacionalmente eficiente. A ideia de um governo mundial vivel implicaria, como sua base material necessria, a eliminao de todos os antagonismos significativos da constituio global do sistema do capital e, portanto, a administrao harmoniosa da reproduo sociometablica por um nico monoplio global incontestado, que inclua todas as facetas da reproduo social, com a feliz colaborao da fora de trabalho global verdadeiramente uma contradio em termos; ou um governo permanente, totalmente autoritrio, e sempre que necessrio extremamente violento, de todo o mundo por um pas imperialista hegemnico: uma forma igualmente absurda e insus-tentvel de administrar a ordem mundial existente. Somente um modo genuinamente socialista de reproduo sociometablica tem condies de oferecer uma alternativa genuna para o pesadelo representado por estas solues.

Outra determinao objetiva vital a ser enfrentada, por mais desconfortvel que possa parecer, refere-se natureza da esfera poltica e dos partidos em seu interior. Pois a centralizao da setorialidade do movimento operrio uma setorialidade que deveria ser corrigida por seus partidos polticos deve-se, em

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grande parte, ao modo necessrio de operao dos prprios partidos polticos, em sua oposio inevitvel a seu adversrio poltico no Estado capitalista, re-presentante da estrutura geral de comando poltico do capital. Assim, todos os partidos polticos do movimento operrio, inclusive o leninista, tiveram de se apropriar de uma dimenso poltica abrangente, para espelhar em seu prprio modo de articulao a estrutura poltica subjacente (o Estado capita-lista burocratizado) qual estavam submetidos. O que era problemtico em tudo isto foi o fato de este espelhamento necessrio e bem-sucedido do princpio estruturador do adversrio no ter trazido consigo a viso realizvel de uma forma alternativa de controle do sistema. Os partidos polticos do movimento operrio no puderam elaborar uma alternativa vivel porque se concentraram, em sua funo de negao, exclusivamente na dimenso poltica do adversrio, tornando--se, desta forma, completamente dependentes do objeto que negavam.

A dimenso vital inexistente, que os partidos polticos no podem suprir, era o capital, no como comando poltico (este aspecto foi efetivamente enfrentado), mas como o regulador sociometablico do processo de reproduo material que, em ltima anlise, determina no somente a dimenso poltica, mas muito mais alm dela. Es ta correlao nica no sistema do capital, entre as dimenses poltica e reprodutiva material, o que explica por que observamos movimentos peridi-cos, em tempos de graves crises socioeconmicas, em que se passa da articulao parlamentar democrtica da poltica para as variedades autoritrias extremas, quando a desorganizao dos processos sociometablicos exige e permite tais movi-mentos, e que so seguidos da volta estrutura poltica regulada pelas regras demo-crticas formais de disputa, no terreno metablico do capital, recm-reconstitudo e consolidado.

Como detm o controle efetivo de todos os aspectos vitais do sociometabolismo, o capital tem condies de definir a esfera de legitimao poltica separadamente constituda como um assunto estritamente formal, excluindo assim, a priori, a possibilidade de ser legitimamente contestado em sua esfera substantiva de opera-o reprodutiva socioeconmica. Ao se ajustar a tais determinaes, o movimento operrio, como antagonista do capital realmente existente, s pode se condenar impotncia permanente. Neste aspecto, a experincia histrica ps-capitalista um triste alerta no que se refere forma como atacou os problemas fundamentais da ordem negada a partir de diagnsticos errados.

O sistema do capital formado por elementos inevitavelmente centrfugos (em conflito ou em oposio), complementados no somente pelo poder controlador da mo invisvel, mas tambm pelas funes legais e polticas do Estado moderno. O grande erro das sociedades ps-capitalistas foi o fato de elas terem tentado compensar a determinao estrutural do sistema que herdaram pela imposio aos elementos ad-versrios da estrutura de comando extremamente centralizada de um Estado poltico autoritrio. E fizeram isto em vez de enfrentar o problema crucial de como corrigir por meio da reestruturao interna e da instituio de um controle democrtico substantivo o carter conflitante e o modo centrfugo de funcionamento das unidades reprodutivas e distributivas dadas. A remoo das personificaes capita-listas privadas do capital no foi ento suficiente para exercer o seu papel como o primeiro passo no caminho da prometida transformao socialista. Pois, na verdade,

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foi mantida a natureza conflitante e centrfuga do sistema negado, por meio da super-posio do controle poltico centralizado em prejuzo do trabalho. O sistema socio-metablico tornou-se ainda mais incontrolvel do que em qualquer outra poca no passado em razo do fracasso em substituir produtivamente a mo invisvel da antiga ordem reprodutiva pelo autoritarismo voluntarista das novas personificaes visveis do capital ps-capitalista.

Contrariamente ao desenvolvimento do socialismo realmente existente, a transio para uma sociedade verdadeiramente socialista exige, como condio vital de sucesso, a progressiva devoluo s pessoas dos poderes alienados de deci-so poltica e no apenas poltica. Sem que se readquiram esses poderes, no ser concebvel o novo modo de controle poltico do conjunto da sociedade pelas pessoas, nem a operao diria no conflitante, e portanto agregadora e planejvel, das unidades produtivas e distributivas particulares pelos produtores associados autnomos.

A reconstituio da unidade da esfera poltica e reprodutiva material a carac-terstica essencial definidora do modo socialista de controle sociometablico. No se pode deixar para um futuro distante a criao das mediaes necessrias para rea-lizao deste objetivo. aqui que a articulao defensiva e a centralizao setorial do movimento socialista durante o sculo XX demonstram seu verdadeiro ana-cronismo e inviabilidade. No se podem esperar bons resultados do confinamento da dimenso abrangente da alternativa radical hegemnica ao modo de controle sociometablico do capital esfera poltica. Entretanto, tal como se colocam hoje as coisas, a incapacidade de enfrentar a dimenso sociometablica vital do sistema continua sendo a caracterstica das corporaes polticas organizadas do movimento operrio. este o grande desafio histrico do futuro.

3.A possibilidade de enfrentar este desafio por meio de um movimento socialista radicalmente rearticulado indicada por quatro importantes consideraes.

A primeira negativa. Resulta das contradies constantemente agrava-das da ordem existente que acentuam o vazio das projees apologticas de sua permanncia absoluta. Pois possvel levar muito longe a destrutividade, como o demonstram nossas condies de vida cada vez mais deterioradas, mas no possvel estend-la indefinidamente. A globalizao em andamento saudada pelos defensores do sistema como a soluo de todos os problemas. Na verdade, entretanto, ela coloca em ao foras que pem em relevo no apenas a incontrola-bilidade do sistema por qualquer mtodo racional, mas tambm, simultaneamente, a prpria incapacidade de ele cumprir suas funes de controle como condio de sua existncia e legitimao.

A segunda considerao indica a possibilidade mas apenas a possibilidade de uma alterao positiva dos acontecimentos. Isto porque a relao entre ca-pital e trabalho no simtrica. Isto significa que, enquanto o capital depende absolutamente do trabalho no sentido de que o capital inexiste sem o traba-lho, que ele tem de explorar permanentemente , a dependncia do trabalho em relao ao capital relativa, historicamente criada e historicamente supervel. Em

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outras palavras, o trabalho no est condenado a ser permanentemente contido no crculo vicioso do capital.

A terceira considerao igualmente importante. Trata-se de uma alterao histrica na confrontao entre capital e trabalho, acompanhada da necessidade de procurar um meio diferente de afirmar os interesses vitais dos produtores associados. Esta considerao est em ntido contraste com o passado reformista que trouxe o movimento a um beco sem sada, liquidando simultaneamente at mesmo as limitadas concesses extradas do capital no passado. Dessa forma, pela primeira vez na histria, tornou-se absolutamente invivel a manuteno da lacuna mistificadora entre metas imediatas e objetivos estratgicos globais, que tornou o impasse reformista to domi-nante no movimento operrio. O resultado que a questo do controle real de uma ordem sociometablica alternativa j surgiu na agenda histrica, apesar das condies desfavorveis para sua realizao no curto prazo.

E, finalmente, como corolrio necessrio da ltima considerao, tambm surgiu a questo da igualdade substantiva em oposio igualdade formal e pro-nunciada desigualdade hierrquica substantiva dos processos de tomada de deciso do capital, assim como forma como foram espelhados e reproduzidos na expe-rincia ps-capitalista fracassada. Pois o modo socialista alternativo de controle de uma ordem sociometablica no antagnica e realmente planejvel uma necessidade absoluta para o futuro inimaginvel sem a igualdade substantiva como princpio estrutural e regulador.

4.Numa entrevista dada a Radical Philosophy em abril de 1992, expressei minha con-vico de que

O futuro do socialismo ser decidido nos Estados Unidos, por mais pessimista que isto possa parecer. Tento indicar esta esperana na ltima seo de The Power of Ideology, onde discuto a questo da universalidade6 . Ou o socialismo se afirma universalmente, e de tal forma que inclua todas as reas, inclusive as reas capitalistas mais desenvolvidas do mundo, ou no ter sucesso.7 Na mesma entrevista, enfatizei o fato de que o fermento social e intelectual na

Amrica Latina promete para o futuro mais do que podemos encontrar atualmen-te nos pases capitalistas avanados. Isto compreensvel, j que a necessidade de mudana radical muito mais urgente na Amrica Latina do que na Europa e nos Estados Unidos, e as solues prometidas da modernizao e desenvolvimento demonstraram no passar de uma luz que se afasta num tnel cada vez mais longo. Assim, apesar de ainda ser verdade que o socialismo tem de se qualificar como uma abordagem universalmente vivel, que inclua tambm as reas capitalistas mais desen-volvidas do mundo, no podemos pensar neste problema em termos de uma sequncia temporal em que uma futura revoluo social nos Estados Unidos tem de preceder

6 The Power of Ideology, Harvester Wheatsheaf, London, e New York University Press, 1989, pp. 462-70. Edio brasileira: O poder da ideologia, So Paulo, Editora Ensaio, 1996, pp. 606-16.

7 Marxism Today, publicado em Radical Philosophy, no 62, outono de 1992.

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tudo o mais. Longe disto. Pois, dada a enorme inrcia gerada pelos interesses ocultos do capital nos pases capitalistas avanados, junto com a cumplicidade consensual do trabalhismo reformista nesses pases, muito mais provvel que uma convulso social venha a ocorrer na Amrica Latina do que nos Estados Unidos, com implicaes de longo alcance para o resto do mundo.

A tragdia de Cuba um pas que iniciou a transformao potencialmente mais importante no continente foi o fato de sua revoluo ter sido isolada, devido, em grande parte, macia interveno dos Estados Unidos em toda a Amrica Latina, desde a Amrica Central e Bolvia at o Peru e Argentina, alm de tramar a derrubada do governo legitimamente eleito no Brasil para implantar uma ditadura militar, e instalar no Chile um ditador genocida, Augusto Pinochet. Naturalmente isto no ofereceu soluo para os graves problemas subjacentes, foi apenas um adiamento do tempo em que se tornar inevitvel enfrent-los. Hoje, presses potencialmente explosivas j so visveis por toda a Amrica Latina, desde o Mxico at a Argentina, e do Brasil Venezuela.

O Brasil, como o pas econmica e politicamente mais importante, ocupa uma posio proeminente nesse quadro. Pudemos acompanhar o impacto da crise econmica brasileira de 1998-1999 nos Estados Unidos e na Europa, seguidas de frenticas manchetes nos jornais capitalistas mais importantes. Manchetes que iam desde 2.100 bilhes perdidos em aes8 at crise brasileira sacode uma Europa assustada9 . At Henry Kissinger, que, como estrategista da poltica externa do presidente Nixon, teve papel importante na imposio de Augusto Pinochet ao povo chileno, fez soar o alarme, ao dizer que se o Brasil for levado a uma recesso profunda, pases como a Argentina e Mxico, que se comprometeram com as ins-tituies de livre mercado, podem ser atingidos, acrescentando, com muita hipo-crisia, que o desafio imediato vencer a crise no Brasil e preservar a economia de mercado e a democracia na Amrica Latina. Um compromisso firme e claro das democracias industriais, lideradas pelos Estados Unidos, essencial para garantir o apoio necessrio para o programa brasileiro de reformas10. Naturalmente, as preocupaes de Kissinger no estavam relacionadas com o destino da democracia na Amrica Latina, pela qual, em seus anos de poder, ele tinha demonstrado enor me desprezo agressivo, mas sim com as repercusses potenciais da crise brasileira sobre a potncia imperialista hegemnica, um perigo que surgia numa rea definida arro-gantemente como o quintal geopoltico dos Estados Unidos.

8 Reportagem de John Waples, David Smith e Dominic Rushe, The Sunday Times, 4 de outubro de 1998, Seo 3 (Business), p. 1.

9 Artigo de Vincent Boland, Financial Times, 14 de janeiro de 1999, p. 41. 10 Henry Kissinger, Global capitalism is stoking flames of financial disaster, The Daily Telegraph, 7 de

outubro de 1998, p. 20. claro que os apologistas do sistema sempre procuram tirar proveito de qualquer circunstncia, e tentaram criar uma vitria de propaganda at mesmo da crise mais bvia. Dessa forma, The Daily Telegraph, no mesmo dia em que publicou o artigo de Kissinger, trouxe um editorial intitulado Como opera o capitalismo, em que ofereceu uma racionalizao ideolgica transparente da crise, declarando que o capitalismo funciona exatamente por ser instvel, assim como um caa muito mais gil por causa de sua instabilidade.

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No Brasil, a ala radical do movimento operrio, tanto nos sindicatos quanto nos partidos polticos, teve um papel importante na derrubada da ditadura militar patrocinada pelos Estados Unidos. Dessa forma, ela tambm inspirou os movimentos radicais em outros locais da Amrica Latina, mesmo que seus militantes continuem a argumentar que h ainda um longo caminho a percorrer at que se possam considerar erradicadas as contradies herdadas da esquerda histrica organizada. tambm importante enfatizar que, apesar dos incrveis sucessos do capital em diferentes partes do mundo durante a ltima dcada, especialmente nas sociedades do socialismo realmente existente, as foras que trabalham pela instituio de uma ordem social diferente encontraram manifestaes encorajadoras em vrias partes do quintal geo-poltico dos Estados Unidos, desde os Zapatistas no Mxico, at os militantes que desafiam todas as dificuldades que favorecem a ordem estabelecida na Colmbia e em outros pases da Amrica Latina.

Alm disto, tambm muito significativo que os movimentos sociais radicais em questo queiram se livrar das limitaes organizacionais da esquerda histrica a fim de conseguirem articular na ao no apenas a necessria negao do que a est, mas tam-bm a dimenso positiva de uma alternativa hegemnica. claro que ainda estamos num estgio muito inicial desses processos. Entretanto, para considerar apenas dois exemplos, j possvel mostrar alguns sucessos significativos. O primeiro exemplo o Movimento dos Sem-Terra no Brasil, que continua a afirmar seus objetivos com grande rigor e coragem, gerando ecos em diferentes partes do mundo. O segundo exemplo, apesar de datar j de vrios anos11, acaba de ter sua importncia reconhecida pela vitria eleitoral esmagadora do Presidente Chavez na Venezuela, e pelo sucesso ainda mais avassalador do Referendum Constitucional que se seguiu. As pessoas envolvidas nos dois exemplos tentam agora enfrentar a tarefa extremamente difcil de unir a esfera reprodutiva material poltica, fazendo-o de formas diferentes mas complementares. O primeiro est abrindo caminhos no campo da produo material, desafiando o modo de controle sociometablico do capital por meio da empresa cooperativa dos sem-terra, e j comeando indiretamente a exercer influncia no processo poltico brasileiro. O segundo, na Venezuela, evolui para o mesmo fim a partir da direo oposta: pelo uso da fora poltica da Presidncia e da Assembleia Constitucional, ele tenta introduzir alteraes importantes e necessrias no terreno da reproduo material, como parte fundamental da alternativa visada.

O antagonismo e a resistncia da ordem estabelecida, apoiados pelas foras mais reacionrias do imperialismo hegemnico mundial, s mudanas tentadas por esses movimentos e seus aliados em outras partes da Amrica Latina devero ser ferozes. Ao mesmo tempo, no h dvidas de que o sucesso dos movimentos radicais alternativos vai depender em grande parte da solidariedade internacional socialista e de sua capacidade de inspirar tambm a esquerda organizada tradicional de seus pases a se unir luta. Pois somente um movimento socialista de massas tem condies de enfrentar o grande desafio histrico que nos espera no sculo decisivo nossa frente.

Rochester, Inglaterra, janeiro de 2000

11 Quatro anos antes da eleio presidencial na Venezuela, j se tinha antecipado, em Beyond Capital, o grande potencial positivo do movimento bolivarista radical de Hugo Chvez Frias, mesmo no terreno eleitoral, num contraste marcante com a noo amplamente aceita de que somente as amplas alianas eleitorais totalmente diludas so viveis hoje em dia. Ver captulo 18, seo 18.4.3, desta edio.

Por um avano dialtico, a busca de si prprio subjetiva transforma-se em mediao do particular ao universal, resultando em que cada homem, ao ganhar, produzir e aproveitar por sua prpria conta est eo ipso produzindo e ganhando para proveito de todos os outros. A compulso que provoca isto est enraizada na interdependncia complexa de cada um em relao a todos; agora isto se apresenta para cada um como o capital permanente universal.

Hegel

A tarefa histrica da sociedade burguesa o estabelecimento do mercado mundial, pelo menos em suas linhas bsicas, e um modo de produo que repouse sobre esta base. Como o mundo redondo, parece que isso j foi realizado, com a colonizao da Califrnia e da Austrlia e a anexao da China e do Japo. Para ns, a difcil questo esta: a revoluo no continente iminente, e ter um carter imediatamente socialista; no ser necessariamente esmagada neste cantinho do mundo, j que num terreno bem mais vasto a sociedade burguesa ainda est em ascenso.

Marx

INTRODUO

O cantinho do mundo de que Marx falou em 1858 j no mais um cantinho: os srios problemas da crescente saturao do sistema do capital lanaram suas sombras por toda parte. A histrica ascendncia do capital est hoje consumada naquele terreno bem mais vasto cuja desconcertante existncia Marx teve de reconhecer em sua carta de 8 de outubro de 1858 para Engels. Vivemos hoje em um mundo firmemente mantido sob as rdeas do capital, numa era de promessas no cumpridas e esperanas amargamente frustradas, que at o momento s se sustentam por uma teimosa esperana.

Para muita gente, a presente situao parece fundamentalmente inaltervel, conforme a caracterizao de Hegel de que o pensamento e a ao so corretos e adequados ou, para ele, racionais apenas se submetidos s exigncias do capital permanente universal . Alm do mais, esta impresso de fatal inalterabilidade parece ser reforada por um dos slogans polticos mais frequentemente repetidos pelos que tomam as decises por ns como justificativa de suas aes: no h outra alternativa. Essa opinio continua sendo enunciada sem qualquer preocupao pela desesperana que resultaria do fato de esta proposio ser verdadeira. bem mais fcil resignarse irreversibilidade do dilema afirmada no determinismo cego deste slogan poltico de nosso tempo sem sequer tentar uma avaliao, muito menos um questionamento, de suas serissimas implicaes do que imaginar a forma de enfrentlo.

Entretanto, curiosamente, os polticos que jamais se cansam de repetir que no h alternativa para a situao hoje existente no hesitam em descrever, ao mesmo tempo, sua prpria ocupao como a arte do possvel. Recusamse a notar a gritante contradio entre a autojustificativa tradicional da poltica como a socialmente benfica arte do possvel e a resignao defendida sem crtica regra do capital para a qual, em sua viso proclamada como a nica racionalmente sustentvel no mundo real , no pode haver alternativa. Afinal, como entender a poltica como a busca do possvel socialmente confivel, se a viabilidade de qualquer alternativa aos imperativos da ordem vigente est a priori excluda por ser impossvel ?

38 Para alm do capital

Evidentemente, o fato de tantos responsveis pelas decises no Oriente e no Ocidente adotarem a ideia de que no h alternativa alguma para as determinaes prevalecentes no pode ser considerado simples aberrao pessoal, passvel de correo, de parte daqueles que a defendem. Ao contrrio, essa ideia funesta emana do presente estgio do desenvolvimento do prprio sistema do capital global, com todas as suas interdependncias paralisantes e margens de ao objetivamente cada vez mais estreitas. Na fase ascendente do desenvolvimento da sociedade de mercado toda uma srie de alternativas significativas foi contemplada (e implementada com sucesso) no interesse da acumulao e da expanso rentveis do capital pelos pases capitalistas dominantes (como regra, tambm construtores de imprios).

As coisas mudaram bastante neste aspecto. A era do capital monopolista globalmente saturado no pode tolerar, no que diz respeito aos fundamentos e no aos acessrios decorativos, a prtica do pluralismo poltico parlamentar, que outrora j serviu como a autojustificativa de estratgias reformistas socialdemocratas.

Portanto, no de surpreender que a recente morte dos partidos de esquerda no esteja confinada ignominiosa desintegrao dos antigos partidos comunistas (stalinistas) tanto no Oriente como no Ocidente. A este respeito, bem mais significativo (e, paradoxalmente, tambm mais estimulante) que a centenria promessa socialdemocrata de instituir o socialismo aos pouquinhos tenha demonstrado conclusivamente seu carter ilusrio com o abandono agora, desavergonhadamente explcito das primeiras aspiraes sociais e polticas do movimento. significativo e estimulante, apesar de tudo, porque a precria condio da poltica democrtica de hoje bvia demais no medonho consenso relativo ideia de que no h alternativa e suas consequncias prticas diretas, como exemplificado, entre outras, pelas medidas legislativas autoritrias sentidas pelos sindicatos s pode ser resolvida por um movimento extraparlamentar radical de massa. Movimento que no pode surgir sem que a classe trabalhadora seja sacudida da antiga iluso firmemente institucionalizada de estabelecer o socialismo aos pouquinhos, den tro dos limites do capitalismo autorreformador.

O slogan interessado de que no h alternativa muitas vezes associado frase igualmente tendenciosa de autojustificao que proclama que no mundo real no pode haver alternativa ao curso da ao (ou inao) defendido. Supese que esta proposio seja uma verdade bvia, isentando automaticamente do nus da prova todos os que continuam a afirmla.

No entanto, quando se pergunta de que espcie de mundo real esto falando, tornase claro que de um mundo totalmente fictcio. Os defeitos estruturais e os antagonismos explosivos do mundo em que vivemos so negados, ou cegamente desconsiderados, com grandes justificaes explicativas pelos que esperam que acreditemos que no mundo real no h alternativa alguma para a dcil aceitao das condies necessrias ao funcionamento sem problemas do sistema global do capital.

Em nome da razo, do bom senso e da poltica real somos convidados a nos resignar com o atual estado das coisas, no importa quo destrutivos sejam seus antagonismos, pois dentro dos parmetros da ordem estabelecida eternizada como a estrutura racional do essencialmente inaltervel mundo real, com a natureza

39Introduo

humana e sua correspondente instrumentalidade reprodutiva ideal: o mecanismo de mercado etc. no possvel enxergarse soluo alguma para as contradies onipresentes.

Assim, esperase que finjamos para ns mesmos que as classes e contradies de classe j no existem ou no mais importam. Da mesma forma, pressupese que o nico rumo vivel da ao no assim postulado mundo real seria ignorar ou oferecer explicaes que neguem as evidncias da instabilidade estrutural proporcionada por nossos prprios olhos, varrendo pressurosamente para baixo de um tapete imaginrio os problemas crnicos e os sintomas da crise (ambos de gravidade cada vez maior) que diariamente a ordem social vigente coloca diante de ns.

Da maneira como andam as coisas hoje, os idelogos da ordem estabelecida j no acreditam mais sequer na velha noo popularizada de mudlas aos pouquinhos. Com o fim da fase ascendente do capitalismo, nenhuma mudana real pode ser considerada legtima nem por uma grande interveno estrutural, nem aos pouquinhos.

Se verdade, como dizem eles, que no h alternativa para as determinaes do sistema do capital no mundo real, ento a prpria ideia de intervenes causais no importa se grandes ou pequenas deve ser condenada como absurda. A nica mudana admissvel em tal viso de mundo pertence ao tipo que se preocupa com certos efeitos negativos estritamente limitados, mas sem qualquer efeito sobre sua base causal o sistema dado de controle metablico.

Contudo, se h uma interpretao que realmente merece ser chamada de absurdo total no reino da reforma social, esta no a defesa de uma grande mudana estrutural, mas precisamente aquele tipo de exagerado otimismo cheio de explicaes que separa os efeitos de suas causas. por isto que a guerra pobreza, tantas vezes anunciada com zelo reformista, especialmente no sculo XX, sempre uma guerra perdida, dada a estrutura causal do sistema do capital os imperativos estruturais de explorao que produzem a pobreza.

A tentativa de separar os efeitos de suas causas anda de mos dadas com a igualmente falaciosa prtica de atribuir o status de regra a uma exceo. assim que se pode fazer de conta que no tm a menor importncia a misria e o subdesenvolvimento crnico que necessariamente surgem da dominao e da explorao neocolonial da esmagadora maioria da humanidade por um punhado de pases capitalista desenvolvidos poucos mais do que os componentes do G7. Como diz a lenda oportunista, graas modernizao (jamais realizada) do resto do mundo, a populao de todos os pases um dia gozar os grandes benefcios do sistema da livre empresa.

O fato de que a explorao predatria dos recursos humanos e materiais de nosso planeta em benefcio de uns poucos pases capitalistas seja uma condio no generalizvel maldosamente desconsiderado. Em vez disso, reafirmase implicitamente a viabilidade universal da emulao do desenvolvimento dos pases capitalistas avanados, sem levar em conta que nem as vantagens do passado imperialista, nem os imensos lucros obtidos da manuteno continuada do Terceiro Mundo na situao de dependncia estrutural podem ser universalmente difundidos de modo a produzir os felizes resultados que se esperam da modernizao e do

40 Para alm do capital

livremercado. Sem mencionar o fato de que mesmo que a histria do imperialismo pudesse ser reescrita num sentido diametralmente oposto maneira como realmente se desdobrou, junto com a fictcia inverso das relaes de poder de dominao e dependncia existentes em favor dos pases subdesenvolvidos, a adoo generalizada da utilizao predatria dos limitados recursos de nosso planeta j enormemente prejudicial, embora hoje praticada apenas por uma minscula minoria privilegiada faria todo o sistema desmoronar instantaneamente. A esse respeito, basta pensar na tremenda discrepncia entre o tamanho da populao dos Estados Unidos menos de 5 por cento da populao mundial e seu consumo de 25 por cento do total de recursos energticos disponveis. No preciso grande imaginao para se ter uma ideia do que aconteceria se os outros 95 por cento adotassem o mesmo padro de consumo e tentassem retirar dezenove vezes 25 por cento dos restantes 75 por cento.

Esconder o vazio das prometidas solues corretivas a conveniente funo ideolgica da transformao em regra universal das condies rigorosamente excepcionais dos poucos privilegiados. Somente num mundo inteiramente fictcio, em que os efeitos podem ser separados de suas causas, ou mesmo postos em oposio diametral a elas, que essa interpretao pode ser considerada vivel e correta. Por esta razo, tais falcias a primeira, que estipula a possibilidade de manipulao de efeitos em si e por si, isolados das causas, e a segunda, a universalizao de excees impossveis de serem generalizadas esto to estreitamente atadas na ideologia pragmtica dominante. Ideologia que encontra justificao definitiva em sua descrio da ordem do mundo real para a qual no pode haver nenhuma alternativa.

Margaret Thatcher ganhou o apelido de TINA a sigla de There Is No Alternative (no h alternativa) por negar com montona regularidade a possibilidade de alternativas. Seguindo em seus calcanhares, Mikhail Gorbachev continuou a repetir a mesma opinio em incontveis ocasies. Ironicamente, a sra. Thatcher teve de descobrir que tinha de haver alguma alternativa para ela, quando o Partido Tory lhe tomou o poder. quela altura, ela suspirou: Its a funny old world! que em portugus d mais ou menos: Este mundo engraado! , mas recusouse a nos informar se, em sua opinio, o mundo engraado ainda mantinha o status de mundo real que a tudo absolve.

O secretrio do Partido e presidente Gorbachev tambm no se deu muito melhor que a sra. Thatcher, pois perdeu no apenas o cargo, mas todo o sistema estatal que havia governado e tentado transformar em sociedade capitalista de mercado, em nome do no h alternativa. Todavia, seu caso era bem mais complicado que o da ministra britnica. perfeitamente compreensvel que algum como Margaret Thatcher adotasse de corao e internalizasse como correto e adequado ou seja, no apenas de facto, mas tambm de jure a margem de ao cada vez mais estreita permitida pelos imperativos da ordem capitalista. Gente como a baronesa Thatcher dana ao som do dinheiro.

No entanto, tudo foi muito diferente na outra vertente do divisor social. Ao adotar a ideia de que no h alternativa como justificativa para suas polticas, os que se dizem socialistas deixam de ter qualquer coisa a ver com o socialismo, pois o projeto socialista foi desde o incio definido como alternativa ordem social estabelecida. Portanto, no surpresa que durante os anos de seu governo, na esteira

41Introduo

de sua converso filosofia de que no h alternativa, Mikhail Gorbachev tivesse abandonado at mesmo as mais vagas referncias ao socialismo. Ele terminou em seu discurso de renncia desejando para o futuro, num vcuo social completo, democracia e prosperidade. Dado o desastroso legado que deixou, seus votos auspiciosos devem ter soado especialmente ocos para seus compatriotas famintos.

Em todo caso, a dedicao de nossos lderes polticos ao avano dos imperativos do sistema do capital no elimina suas deficincias estruturais e seus antagonismos potencialmente explosivos. Ao contrrio da laboriosamente cultivada mitologia da ordem vigente, as perigosas contradies so intrnsecas e no exteriores a ela. por isso que o mundo hoje depois da capitulao do antigo inimigo externo e da curta celebrao triunfalista do fim da guerra fria um lugar muito mais instvel do que j foi.

luz dos fatos recentes, que trouxeram consigo no apenas o fragoroso desmoronamento do sistema sovitico stalinista irreformvel (e seus territrios anteriormente dependentes da Europa Oriental), mas tambm o enfraquecimento das instituies otimistas erigidas no Ocidente capitalista com a queda da Unio Sovitica, somente um idiota pode acreditar que agora podemos marchar tranquilamente na direo do milnio liberalcapitalista. Na verdade, a ordem existente demonstrase insustentvel, no apenas devido s crescentes disfunes socioeconmicas resultantes da imposio diria de suas desumanidades sobre milhes de infelizes, mas tambm em razo do esvaziamento espetacular das mais caras iluses relativas ao irreversvel poder estabilizador socioeconmico da vitria