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PARTE 10 Arquitetura

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ramos de azevedo: um arquiteto brasileiro formado na BélgicaM a r i a a n g e l a P. C . S . B o r t o l u c c i

Francisco de Paula ramos de azevedo era seu nome comple-to, nasceu na capital da então província de São Paulo, a 8 de

dezembro de 1851 e faleceu a 12 de junho de 1928 no guaru-já, litoral de São Paulo. apesar de ter nascido na cidade de São Paulo, ele gostava de se dizer campineiro, pois sua família era de Campinas (SP) e lá foi criado. além disso, lhe fazia bem sentir-se um moço do interior que teve sucesso na capital devido a muito esforço e competência. era de personalidade forte e determina-

da, mas também muito cordial. Sabia como dar ordens e se fazer respeitar. angariava a simpatia de seus subordinados e colegas de trabalho, talvez por sua grande dedicação em tudo que fazia. Tra-balhou sempre de forma incansável.

Fortemente influenciado pelos ideais positivistas, soube ser racional na medida necessária e de modo a permitir que, sendo de família nem tão abastada de Campinas, alcançou de forma vertiginosa uma posição profissional extremamente destacada e

Teatro Municipal de São Paulo, projeto de Ramos de Azevedo, fotografia de 2011.

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gozou de tanto prestígio na sociedade paulistana a ponto de re-ceber honras de chefe de estado em seu funeral. Foi um homem que soube construir amplo e sólido ciclo de amizades com pes-soas bem postas na política e na sociedade em geral, inclusive em sociedades secretas como a maçonaria.

Desde o início de sua carreira, ainda jovem e antes da ida à Bélgica, já se cercava de amigos importantes e influentes, muitos deles maçons. Segundo ana Paula Farah (2003), a sua iniciação na maçonaria se deu pelas mãos do general Francisco glycério (além de aparentado, foi grande amigo e protetor de ramos de azevedo), no dia 17 de outubro de 1873 e, em novembro do mes-mo ano, foi elevado a Mestre. No período de 1869 a 1872 esteve na escola Militar, na Praia Vermelha do rio de Janeiro.

em 1872, inicia suas atividades como “praticante” na cons-trução das estradas de ferro paulistas. Durante sua permanência na Companhia Mogiana, mesmo sem remuneração, foi extrema-mente dedicado e despertou a atenção do presidente da compa-nhia, antônio de Queirós Telles, Barão de Parnaíba, que passou a protegê-lo pelo resto de sua vida.

em março de 1875, ramos de azevedo seguiu para a Bélgica. Foi estudar na École Espéciale du Génie Civil et des Arts et Ma-nufactures da Universidade de gand. Paralelamente ao curso de

engenharia e arquitetura, entre 1877-1878, frequentou disciplinas na academia de Belas artes para complementação de aspectos re-lativos a composição, história e desenho. Concluindo seus estudos, prestou exames para obtenção do título de engenheiro arquiteto no dia 16 de outubro de 1878. em função das notas obtidas, o júri lhe conferiu a honrosa menção “com grande distinção”.

Os anos de convívio acadêmico em gand marcaram profun-damente o profissional e o professor ramos de azevedo. entre os professores de maior influência cabe destacar adolphe Pauli (1820-1895), renomado arquiteto em gand e professor de ramos de azevedo na escola especial de engenharia e também na aca-demia real de Belas artes. Para a autora Maria Cristina Wolf de Carvalho “estabelecer um paralelo entre as posturas dos dois não parece absurdo e, à luz do que manifesta Pauli, é possível entender muito da mentalidade de Ramos de Azevedo e, consequentemente, de suas realizações posteriores no campo da arquitetura e de seu ensino” (Carvalho, 2000, p. 96-103).

Quando ramos de azevedo voltou ao Brasil em 1879 e ins-talou seu escritório em Campinas, estava disposto a contribuir para mudar a fisionomia das cidades brasileiras. Sua primeira e marcante obra foi, ainda em Campinas, terminar a construção da Matriz, que ele conseguiu com muito êxito e uma pomposa inauguração no dia 8 de dezembro de 1883. Nessa mesma data era dia do aniversário de ramos de azevedo e batizado de uma de suas filhas. ele soube se valer bem da autopromoção, uma vez que este não se constituiu um fato isolado em sua vida tão repleta de enaltecimentos e homenagens. ramos de azevedo mudou-se para São Paulo em 1886 acompanhado de sua família. em 1881 havia casado com eugenia lacaze, sobrinha do general Francisco glycério, que, por sua vez, tinha três irmãos casados com três ir-mãs de ramos de azevedo. eugenia e ramos de azevedo tiveram três filhos: lúcia, laura e Francisco de Paula.

em Campinas projetou e construiu diversas obras importantes (Monteiro, 2009), mas foi notadamente em São Paulo, a partir de 1886, que ele conseguiu as condições ideais para romper os pa-radigmas da tradição de três séculos de arquitetura. a sólida for-mação de ramos de azevedo pautada no ideário europeu de fins do século XIX lhe permitiu conceber edifícios e espaços urbanos construtivamente muito corretos, empregando as novas técnicas e as regras de conforto e higiene. em relação à estética foi mais condescendente, sempre aceitando outras tendências estilísticas adotadas por colegas, inclusive por seus sócios de escritório, em-bora, particularmente, tenha sido fiel à sua preferência pela tra-dição clássica.

Também foi em São Paulo que ele concentrou e ampliou seus negócios, os quais foram muito além das atividades do escritório de projetos. em São Paulo, se associando com amigos e parentes, ramos de azevedo revelou ser um grande empreendedor, uma vez que, paralelamente às atividades do escritório, ele foi instalando diversos negócios com o objetivo de obter a autossuficiência nas etapas da construção civil: exploração de madeiras, cal, mármores e granitos; venda de material importado, serraria, fábrica de tijo-los, empreendimentos imobiliários, financiamentos de obras etc.

A Catedral de Campinas, inaugurada em 1883, finalizada por Ramos de Azevedo, fotografia de 2009.

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No escritório, foram executados centenas de projetos e obras públicas e particulares, tanto na capital quanto em outras loca-lidades do estado de São Paulo, com a participação de diversos profissionais, mas sempre sob o controle de ramos de azevedo até 1928, ano de sua morte. alguns dos principais colaboradores de ramos de azevedo: antonio Francisco de Paula Souza, Ma-ximiliano Hehl, ricardo Severo, João Frederico Washington de aguiar, Jorge Krug, Victor Dubugras, Calixto de Paula Souza, Carlos Wagner, Carlos Shalders e Domiziano rossi. Quase todas as obras importantes de São Paulo nessa época saíram do seu es-critório, algumas delas foram: Tesouraria da Fazenda, Secretaria da agricultura, Teatro Municipal, Mercado Central, Faculdade de Medicina, Correios, entre outras.

Outra importante atuação de ramos de azevedo foi na área acadêmica. ele gostava muito de ensinar e São Paulo estava caren-te de profissionais habilitados na construção. esses foram requi-sitos suficientes para ele ter se unido ao amigo Paula Souza para criar a escola Politécnica em 1894. este último foi o diretor da escola Politécnica de São Paulo até sua morte em 1917 e ramos de azevedo, o vice-diretor. a partir dessa data a direção é assumi-da por ramos de azevedo até seu falecimento em 1928 (Ficher, 2005). Faltava também a São Paulo o ensino técnico de qualidade

e por isso ramos de azevedo se empenhou na estruturação e con-solidação do liceu de artes e Ofícios. assumiu a direção em 1895 e manteve-se até o ano de sua morte; nesse período ele conseguiu que o liceu obtivesse muito prestígio e se tornasse uma referência em tudo o que produzia.

Maria Angela Pereira de Castro e Silva Bortolucci é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquite-tura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-Campus de São Carlos/SP.

referênciasCarvalho, M. C. W. de. Ramos de Azevedo. São Paulo, edusp, 2000.Farah, a. P. A produção do engenheiro arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo

na província de São Paulo. São Carlos. Dissertação (Mestrado) eeSC-USP, 2003.Ficher, S. Os arquitetos da Poli – ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, edusp, 2005.lemos, C. a. C. Ramos de Azevedo e seu escritório. São Paulo, Pini, 1993.Monteiro, a. M. r. de g. Ramos de Azevedo: presença e atuação profissional em Campi-

nas. Campinas, Unicamp-CMU, 2009.Santos, M. C. l. dos. Escola Politécnica (1894-1984). São Paulo, Imesp, 1985.

arquitetura industrial belga no Brasil no século XIXB e r n a r d P i r s o n

Na aurora da revolução Industrial, encontrava-se na Bélgica numerosas instalações metalúrgicas, cujas implantações re-

sultavam da presença abundante de madeira, água e minério de ferro. O processo de mecanização das instalações, facilitada ainda pela presença abundante de carvão de pedra, participou e alimen-tou a transformação industrial do país. a implantação rápida de uma densa rede de estradas de ferro, iniciada em 1835, obrigou as empresas, uma vez a rede completa, a se voltar para a exporta-ção, o que a própria rede ferroviária facilitou ligando as empresas ao porto de antuérpia.

O material de ferrovias, rodante e fixo, constituiu, pelo me-nos inicialmente, uma parte importante do mercado industrial para exportação. No Brasil, companhias privadas belgas de ex-ploração de ferrovias procuraram ir além da simples realização de obras de engenharia civil, participando do financiamento da nova rede de construção, tal como a linha ferroviária de Para-naguá-Curitiba.

Trilhos, pontes, viadutos não exclusivamente ferroviários e nu-merosos vagões de passageiros ou de mercadorias foram fornecidos por diferentes empresas belgas que ofereciam para os mandantes e os chefes de empresas brasileiros produtos particularmente com-petitivos. a grande concentração geográfica de empresas belgas facilita também a emergência de “associações momentâneas”,

permitindo aos seus componentes atender aos principais merca-dos globais.

No que diz respeito às obras de engenharia civil isoladas, o via-duto tardio de Santa Ifigênia de São Paulo, construído em 1913 por Aciéries d’Angleur (Siderurgia de angleur, perto da cidade de liège) com base nos planos dos arquitetos Micheli e Chiappori, é mais que uma simples obra técnica: ela participou da estruturação da paisagem paulista por sua qualidade e a obra foi apropriada pela população quando sua destruição foi considerada.

Numerosas pontes, a maior parte ainda existente em diferen-tes estados, e algumas declaradas bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional (Iphan), foram realiza-das por empresas distintas, dentre as quais algumas ainda podem ser identificadas:

– Ceará: a ponte sobre o rio Quixeramobim, em Quixeramo-bim, de 1899 (comprimento: 209 m);

– Minas gerais: o Pontilhão de Ferro, em Carangola, de 1907; a Ponte Marechal Hermes, em Pirapora, de 1922 (comprimento: 694 m. ela seria oferecida pelo rei alberto I para fazer parte da ligação jamais finalizada entre as cidades do rio de Janeiro e Be-lém do Pará);

– espírito Santo: a Ponte Florentino avidos, em Colatina, em 1928, sobre o rio Doce (comprimento: 800 m. Um sistema cha-

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Viaduto Santa Ifigênia (2012), na cidade de São Paulo, exemplo da arquitetura industrial fabricada na Bélgica e instalada no Brasil. Inaugurado em 26 de julho de 1913.

Estação Bananal, construída em 1888, exemplo da construção industrial do Sistema Danly no Brasil no século XIX.

Projeto da nova Estação Inicial de São Paulo da E. F. Sorocabana.

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Mercado Modelo de Salvador, Bahia, 1911.

Mercadinho São João, em São Paulo, construído em 1890.

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mado “dinossauro”, permitindo empurrar os elementos da ponte até os pilares, foi igualmente fornecido);

– rio de Janeiro: o Viaduto Dr. Paulo de Frontin, em Miguel Pereira, sobre o rio Santana, de 1889 (comprimento: 82 m, altura: 34 m); a Ponte getúlio Vargas sobre o rio Paraíba do Sul, em Bar-ra do Piraí, de 1898 (comprimento: 250 m); a Ponte Dr. Nilo Peça-nha (Ponte Velha), em resende, de 1905 (comprimento: 230 m);

– Paraná: o conjunto das pontes da linha ferroviária Parana-guá–Curitiba construída a partir de 1833;

– Santa Catarina: a Ponte Dr. Dinis assis Henning sobre o rio Negro, de 1896, que liga as cidades de Mafra (SC) e de rio Negro (Pr) (Comprimento: 71 m. empresa: Dyle et Baccalan, de lovaina).

Concernente à arquitetura ferroviária, é preciso notar a sin-gular estação feita de chapas galvanizadas do Bananal (SP), cons-truída em 1888 com o sistema desenvolvido pela empresa Forges d’Aiseau e seu engenheiro, Joseph Danly, e restaurada de maneira muito rigorosa em 1984 pelo arquiteto S. Kruschin. a estação foi adquirida como um símbolo de modernidade ligada à cultura ca-feeira que poderia ter construído a estação de modo tradicional, pois seu projeto não exigia nenhum elemento mais vantajoso a ser executado em metal.

a consulta de arquivos de empresas na Bélgica revela nume-rosos projetos de estruturas e de coberturas de estações de trem brasileiras, como a da Nova estação Inicial de São Paulo, mas esses projetos devem ainda ser comparados com as obras realiza-das. Tal abundância prova o dinamismo das empresas belgas para responder às encomendas brasileiras.

O desenvolvimento rápido e, às vezes, subvalorizado das gran-des cidades brasileiras no final do século XIX e as diversas con-figurações urbanas que daí resultam engendram programas de construção dos quais alguns terão uma vida mais efêmera que o previsto. é o caso dos mercados que estavam, além disso, con-frontados com rápidos melhoramentos – especialmente relativos à higiene –, e que resultavam subitamente inadequados.

O interessantíssimo Mercado Municipal de Belo Horizonte, construído em metal e estrutura semiaberta em 1907 no local da atual rodoviária, se mostrou rapidamente estreito e foi substituído em 1929. Seu construtor belga ainda não foi identificado.

em Salvador, o primeiro Mercado Modelo, construído em 1911-12 ao lado da rua do Chile, pelas empresas Baume et Mar-pent, em estrutura aberta, seria a primeira construção metálica da cidade. Seu desenho não pareceu corresponder às expectativas da população e adaptações foram realizadas já em 1915. ele foi destruído por um incêndio em 1969 e o mercado foi implantado em seu lugar atual.

em São Paulo, o Mercadinho (Mercado São João), de estru-tura fechada, foi construído em 1890, na baixada do açu, Praça Federal, pela empresa Forges d’Aiseau. Há suspeita de que a en-trega foi incompleta e que o prédio adotou, talvez, uma versão reduzida em relação ao projeto original. Deslocado em 1914, ele foi definitivamente demolido em 1924.

No rio de Janeiro, o Mercado Municipal de 150 m x 150 m foi, provavelmente, o maior edifício metálico construído no Brasil. Uma empresa inglesa realizou os pavilhões centrais e os Ateliers de Willebroeck, de Bruxelas, realizaram os torreões octogonais situa-

Chalé de ferro da Universidade Federal do Pará, em Belém.

Consoles para candelabros.

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dos nos quatro cantos bem como o elemento central. Construído em 1903, ele sobreviverá ao cruzamento da avenida Perimetral, mas foi destruído no final dos anos de 1950; subsiste apenas uma das torres de canto, transformada em restaurante a partir de 1933. é interessante notar o apelo a empresas de construção metálica de diferentes nacionalidades para um mesmo prédio. esta situação que se repete em outras construções no Brasil parece, entretan-to, única na américa latina nessa época e ela demonstra grande domínio de diferentes técnicas de construção metálica e a gestão hábil da concorrência pelos arquitetos brasileiros.

em Manaus, o Trapiche 15 de Novembro (ex-trapiche Prince-sa Isabel), foi construído em 1889-90 pela empresa Forges d’Aiseau para abrigar numa estrutura fechada os produtos de borracha. em bom estado de conservação, ele foi recentemente integrado num projeto turístico do porto de Manaus.

Os pequenos prédios de habitação ou “chalés de ferro” cor-respondem, como programa, aos primeiros desenvolvimentos da arquitetura metálica da metade do século XIX. em meio tropical, essas habitações integram elementos tipológicos e climáticos dos pavilhões coloniais ingleses. Os dois chalés de ferro construídos pela Forges d’Aiseau existentes ainda em Belém, situados no Bos-

que rodrigues alves e no campus da Universidade Federal do Pará (UFPa), herdaram as tipologias desenvolvidas. Sua data de chegada a Belém não está registrada, mas, segundo elementos de detalhes, podemos situar sua construção depois de 1890.

a estação de Bananal, o mercado de São Paulo e o trapiche de Manaus, bem como os chalés, são construções completamente metálicas. Se a estação de Bananal e os chalés de Belém foram considerados como elegantes pela população local, esse não foi o caso do mercado de São Paulo. Na europa, as construções inteira-mente metálicas e fechadas foram consideradas apenas muito es-poradicamente: os arquitetos concebiam muito excepcionalmente a utilização do metal em fachada e o relegavam aos elementos estruturais e internos. a esse respeito, a posição dos arquitetos la-tino-americanos é mais coerente em relação à modernidade, não dando esse status restritivo aos novos materiais.

Os quiosques, muito numerosos na Bélgica, não parecem ter constituído um mercado de exportação, não chegando a vencer a concorrência britânica que trabalhava com catálogos. exceção à regra, o elegante Mirante Chapéu do Sol do Corcovado, construí-do depois de 1886, e da construção da estrada de ferro de acesso, demolido na ocasião da construção do Cristo redentor, em 1931.

Cúpula do Teatro Amazonas em pré-montagem em Haine-Saint-Pierre.

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ao longo da Baía de Botafogo, as primeiras instalações do Clu-be de regatas de Botafogo, fundada em 1894, foram construídas no mesmo ano pela Compagnie Centrale de Construction de Hai-ne-Saint-Pierre. Serão demolidas depois de 1910 quando da am-pliação das instalações.

Diferentes estruturas de cobertura e de cúpulas, assim como elementos decorativos, foram realizados por empresas belgas. es-ses elementos, partes de projetos maiores, são identificados mais pelos catálogos de construtoras:

– a cúpula do Teatro amazonas em Manaus, fabricada depois de 1885 pela empresa Compagnie Centrale de Construction de Haine-Saint-Pierre;

– O domo do necrotério do Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, pela empresa La Brugeoise, construído em 1900 e preservado;

– a estrutura do telhado, construída por Baume et Marpent em 1906, do edifício da associação dos empregados do Comércio do rio de Janeiro, situado à avenida Central, e demolido em 1939;

– a estrutura visível do interior da igreja do Pequeno grande em Fortaleza (1898-1903);

– a estrutura da estação triangular de general Carneiro (Mg) em 1895, demolida nos anos de 1960;

– as escadas do Palácio da liberdade em Belo Horizonte, de 1897, construídas pelos Ateliers de Jaegher, de Bruges, que foram igualmente guarnecidas de vitrais coloridos e de elementos es-truturais;

– Um pórtico, colunas e elementos estruturais de casa da fa-mília Brennand, em recife, pela Compagnie Centrale de Cons-truction de Haine-Saint-Pierre;

– Os espelhos bisotados existentes originalmente no Palácio de Cristal de Petrópolis, em 1884, e aqueles ainda existentes na Confeitaria Colombo (1894) no rio de Janeiro;

– Os candelabros, aparelhos para iluminação para a S.a. do gaz de rio de Janeiro, fornecidos pela empresa Baume et Mar-pent, de Haine-Saint-Pierre, em 1926.

Os arquivos das empresas belgas do século XIX e início do XX, quando subsistem, são em sua maior parte não classificados. Não há dúvida de que numerosas construções realizadas no Bra-sil poderão ser identifcadas por ocasião de um eventual trabalho sistemático – devendo-se ainda fazer a distinção entre realizações e projetos – como esse belo “Floral Pavilhão” encomendado per-to de 1910 para as empresas Baume et Marpent por Paul Villon, paisagista francês que trabalhou em criações de parques no rio de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte, principalmente, e cuja construção ou destino não puderam ainda ser identificados.

Projeto do Floral Pavilhão, cerca de 1910.

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Os empreendimentos belgas e a moradia operária

Te l m a d e B a r r o s C o r r e i a

empresas de capital belga ou pertencentes a famílias de origem belga tiveram papel relevante na história da moradia operária

no Brasil durante o século XX. Criaram vilas e núcleos fabris, do-tados de moradias e equipamentos de uso coletivo, entre os quais Monlevade, cuja concepção revelou-se inovadora em termos de forma de eleição do plano e dos padrões urbanísticos adotados.

Um exemplo desta ação é a Vila Belga, erguida, a partir de 1906, pela Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, em-presa concessionária que finalizou a construção e operou o ramal ferroviário entre Porto alegre e Uruguaiana, no rio grande do Sul. Na cidade de rio grande, importante entroncamento ferro-viário, a empresa ergueu uma vila para abrigar seus funcionários, além de escritórios, oficinas, galpões, farmácia e armazém. a vi-la, projetada pelo engenheiro gustave Vauthier, se estende por quatro ruas, com suas 80 casas geminadas duas a duas e dotadas de estreito recuo lateral (Finger, 2009). algumas são construções desprovidas de ornatos, enquanto outras têm suas fachadas reves-tidas de elementos compositivos – cornijas, pilastras, cercaduras e ornatos – de viés eclético. algumas casas, em coerência com padrões de higiene divulgados na época – são dotadas de porão.

O estaleiro Mabilde é outro exemplo de empresa de origem belga que propiciou moradias para seus empregados. Foi fundado em 1896 por emilio Carlos Oscar Mabilde, filho do engenheiro belga Pierre François alphonse Mabilde, a partir da crescente de-manda de serviços e construção de embarcações em uma oficina que inicialmente realizava consertos de máquinas e fogareiros. em 1921 tinha cerca de 450 empregados. Diante dessa expansão havia transferido em 1912 suas instalações de Porto alegre para a Ilha da Pintada, a uma distância de 15 minutos de barco da cida-de. Na nova localização a empresa ergueu uma vila operária com cerca de 80 casas, armazém de secos e molhados, escola, hotel e grêmio recreativo. em 1919, o estaleiro oferecia a seus emprega-dos moradia e assistência médica e havia criado o grêmio Sportivo Mabilde (Pesavento, 1988, p. 74-75).1

Segundo o jornal Notícia, de 25 de outubro de 1917: “Logo a uma distancia de 50 metros, mais ou menos, das officinas, fica a vila operária dos estaleiros. Nella residem cerca de oitenta operá-rios, installados em casas de madeira, algumas de material, com as suas famílias e na mais completa harmonia. Vimos alli duas casas de negocio, canchas para jogo de bola e uma escola para os filhos dos operários ...” (Mabilde, 2009, p. 50).

Um empreendimento urbano de envergadura bem maior foi Moreno, um núcleo fabril em Pernambuco, criado pela Societé Cotonniére Belge-Brésilienne. essa empresa iniciou em 1909 a cons-trução de uma fábrica de tecido, que em 1910 começou a produzir. Desde os seus primeiros anos contava com residências, havendo seu núcleo fabril sido erguido entre 1908 e a década de 1940, acompa-nhando o crescente número de operários que em 1919 já eram mais

de mil (Correia, 1998). Nesse momento o núcleo fabril já tinha dimensões consideráveis: “Além das aprazíveis vivendas destinadas ao pessoal technico a Companhia possue cerca de 300 casas que são alugadas aos operarios, pagando estes modico aluguel mensal. Muitos outros são proprietarios das casas em que residem mediante aforamento dos terrenos” (Álbum de Pernambuco 1919, p. 226).

Sobre as formas de lazer em Moreno, consta em livro publi-cado em 1919: “Próximo à fabrica ha um grande campo de recreio onde se realizam constantes matches de foot-ball e outros jogos. No aprazivel palacete da Gerencia existe magnifico tennis court e excel-lente campo para jogo de Bowling. Como elementos de diversão ha um cinema onde duas vezes por semana são exhibidos films, e a Phi-larmonica da Sociedade Musical Operaria que aos domingos e dias de festas realiza retretas na principal praça da localidade, attrahin-do grande concurrencia” (Álbum de Pernambuco 1919, p. 226).

em 1939, Moreno reunia cerca de 700 casas, consultório mé-dico, creche, o Societé Sport Club e várias escolas.2 Na ocasião a revista Cidade Mauricéa considerava que Moreno era “...pelas suas condições de hygiene, asseio e cuidados empregados, a mais confor-tável (vila operária) do Paiz (...). Acrescentava que a empresa visava (...) fortalecer o ánimo de seus trabalhadores proporcionando aos mesmos, habitação confortavel e sadia, predispondo-os destarte para um trabalho mais produtivo e vantajoso” (Cidade Mauricéa, 1939).

localizado em terreno acidentado, Moreno tinha ruas com traçado sinuoso que, dotadas de arborização profusa, remetiam ao urbanismo das cidades-jardim. Casas de vários padrões, formas e tamanhos foram erguidas. Funcionários em postos de chefia ocu-pavam amplos chalés. as moradias dos operários eram grupos de casas semelhantes dispostas em renque, às vezes dotadas de um pequeno jardim.

O empreendimento urbanístico mais ousado realizado no Bra-sil por empresa belga – Monlevade – deve-se à ação da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, que surgiu em 1921, com a associação da arBeD, um consórcio belgo-luxemburguês, à Companhia Si-derúrgica Mineira, que tinha sede em Sabará. em Minas gerais, a empresa criou diversas vilas operárias em Sabará e o núcleo fa-bril de Monlevade.

Para Sabará, a empresa providenciou a elaboração de um pla-no de conjunto – Plans de Sidérurgique avec Project d´habitation ouvrières –, em 1932, o qual definia uma “Cité europèene”, loca-lizada numa encosta junto à fábrica e destinada a diretores, e uma vila operária em frente à usina (lima, 2004). em 1933, a empre-sa abdicou da ideia desse plano em favor da construção de vários grupos de casas nas imediações da fábrica.

em 1935, um documento da empresa relatava que essas casas “... apresentam um aspecto alegre e risonho e toda a cidade dá uma impressão de ordem e de propriedade completamente saudável (...). Estas residências, evidentemente, não são muito espaçosas: como tal,

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elas atendem à sua destinação e podem servir de modelo no Brasil, on-de não se está habituado a conforto semelhante” (lima, 2003, p. 91).

em 1952 havia cerca de 500 casas, distribuídas em várias vilas.3 a Belgo-Mineira também ergueu um hotel-cassino para hospe-dagem de visitantes e moradia de engenheiros solteiros, a escola Profissional, a Pensão Siderúrgica, a Maternidade e Puericultura louis ensch, um ambulatório, um dormitório para solteiros, o es-porte Clube Siderúrgica, a associação atlética dos ex-alunos do Senai (Serviço Nacional da Indústria) e vários clubes de futebol. Na década de 1960 a empresa tinha o grupo escolar Cristiano guimarães e subvencionava o ginásio Santa rita, além de dois postos de abastecimento e um açougue (Silva, 2004).4

Havia nove tipos de habitações: casas para engenheiros, dois tipos de casas-padrão (com 2 ou 3 quartos), casas geminadas e cin-co tipos de casas econômicas. adotavam várias formas e tamanhos: em renque, geminadas e isoladas em meio a jardins; de porta e janela, chalés e bangalôs; de alvenaria ou madeira. em alguns conjuntos todas as casas eram iguais, enquanto em outros havia mais de um modelo de moradia.

em 1934 a empresa decidiu criar uma segunda usina – inau-gurada em 1937 –, construir junto a ela um núcleo fabril – deno-minado Monlevade – e promover um concurso para o seu plano. ao decidir promover este concurso, a Belgo-Mineira inseriu-se em uma tendência que se firmaria nas duas décadas seguintes, de núcleos fabris concebidos a partir de planos previamente ela-borados por urbanistas. Foram 13 as propostas que participaram do concurso, vencido pelo engenheiro lincoln Continentino. a proposta concebida pelo arquiteto lucio Costa, embora não se-lecionada, constitui um documento muito importante na histó-ria do urbanismo moderno brasileiro. Nele o arquiteto explicita estratégias instigantes de diálogo entre modernismo e tradição, ao mesmo tempo em que formula uma curiosa articulação entre procedimentos consagrados na organização de núcleos fabris e fer-ramentas de projeto difundidas pela arquitetura e pelo urbanismo modernos (Correia, 2000).

O programa proposto pela Belgo-Mineira para o núcleo resi-dencial incluía, além de 300 moradias, área para comércio, clube,

igreja, escola e cinema. O edital do concurso determinava que “A nova cidade deveria transpirar a alegria de viver e o contentamento de seus habitantes, dando uma impressão risonha e clara” (lima, 2003, p. 97-98). lincoln Continentino definiu seu plano como o de uma “cidade-jardim industrial moderna”. Criou uma praça em forma elíptica, com uma igreja no centro e prédios comerciais e de serviço em torno. O sistema viário composto por passagens para pedestres, ruas residenciais e avenida marginal ao rio Piracicaba, se conformava em formas retilíneas ou em curvas suaves, incluin-do faixas gramadas com árvores de pequeno porte. Coerente com a intenção de diversidade que marca a concepção espacial das ci-dades-jardim, Continentino propôs ampliar os tipos de casas, dos três sugeridos pelos organizadores do concurso para sete, todas do-tadas de jardins. O engenheiro louis ensh dirigiu os trabalhos de detalhamento e implementação do plano urbanístico, enquanto o arquiteto Yaro Burian projetou escolas, igreja, hospital, hotel e moradias (lima, 2003, p. 364).

Monlevade rapidamente extrapolou os limites do plano origi-nal, se expandindo sob a ação da Belgo até a década de 1960. Nele a empresa construiu mais de duas mil casas, alojamentos, cassi-no-alojamento, mercado, igreja, cinema, escolas, praças, hotel, clubes, estádio de futebol, hospital, ambulatório, aeroporto e ma-tadouro. No início da década de 1960 a empresa tinha em Mon-levade quatro grupos escolares, o ginásio Monlevade e a escola Profissional (lima, 2003, p. 369). Um pequeno comércio – açou-gue, armazém farmácia, barbearia etc. – se estabeleceu no local.

O espaço do núcleo fabril de Monlevade foi marcado pela segregação social: havia a “vila dos médicos” junto ao hospital, a “vila dos engenheiros” na avenida aeroporto, um grupo de casas grandes na avenida getúlio Vargas e diversas vilas com casas me-nores. Monlevade se estruturava a partir desses conjuntos de casas semelhantes, localizados em torno da usina ou em locais mais dis-tantes: em 1952 existiam 16 vilas operárias. as moradias se diferen-ciavam em termos de material, tamanho e padrão de construção. Havia casas térreas e sobrados, de madeira e de alvenaria, cercadas por jardins, geminadas e dispostas em renque. as casas maiores, situadas na avenida aeroporto, eram construções térreas amplas,

O núcleo fabril Moreno, Pernambuco, construído a partir de 1909, fotografado em 1994.

Monlevade, construído pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, fotografado em 1998.

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de linhas modernistas e dispostas em meio a grandes jardins. Monlevade e Moreno se converteram em cidades, enquanto as

vilas operárias em Sabará (Mg) e em Santa Maria (rS) continuam existindo, testemunhando a ação das empresas na urbanização e na reforma da moradia do trabalhador brasileiro.

Telma de Barros Correia é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFPE, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e livre docente pela USP. É professora e pesquisadora no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP-Cam-pus de São Carlos/SP e é autora dos livros Pedra: plano e cotidiano operário na sertão (Papirus, 1998) e a construção do habitat moder-no no Brasil – 1870-1950 (Fapesp/RIMA, 2004).

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Notas1. Boa parte dos operários morava na vila, a cujo acesso se dava preferência às famílias

numerosas. as moradias eram gratuitas, assim como água, luz e carvão. a fábrica tinha médico e enfermaria e, nos casos de acidentes de trabalho, fornecia remédios, pagava hospital e 2/3 do salário até a volta ao trabalho. Promovia festas, como a de Nossa Senhora dos Navegantes com procissão naval, o Primeiro de Maio com churrasco e o carnaval com bailes e blocos, o que não a impediu de instituir “lei Seca” no local (MaBIlDe, 2009, p. 53-62).

2. Havia o externato Societé Cotonniére, Jardim da Infância, escola Paroquial e o Colle-gio Batista de Moreno. as casas eram alugadas e a luz fornecida pela fábrica a preços subsidiados.

3. Havia as vilas: Siderúrgica, Santa Cruz e Michel, as casas destinadas a engenheiros e um conjunto de moradias situado junto à usina destinado a funcionários em cargos de chefia.

4. Pelas moradias se cobrava um pequeno aluguel que era considerado módico pela empresa e incluía água e luz. além de empregados moravam em casas da empresa o diretor da escola Senai e um padre, enquanto na Vila Michel um posto policial foi instalado até 1964 em casa da Usina (SIlVa, 2004, p. 11).

a Vila Belga de Santa Mariaa n n a e l i z a F i n g e r

Situada em Santa Maria (rS), a Vila Belga foi construída na primeira década do século XX pela empresa belga Compagnie

Auxiliaire des Chemins de Fèr au Brésil. a estrada de Ferro Porto alegre-Uruguaiana foi construída entre 1877 e 1907, tendo che-gado a Santa Maria em 1885, quando foi construída a estação. em 1898 a Auxiliaire arrendou a linha e, como havia a previsão de que Santa Maria se transformasse em um importante entronca-mento ferroviário, por onde passaria outra linha em direção a São Paulo, transferiu para lá seus escritórios e instalou ali suas oficinas.

Para abrigar os funcionários que trabalhavam no pátio fer-roviário, a empresa adquiriu uma gleba urbana próxima à esta-ção para a construção de um conjunto de residências. e como inicialmente a Auxiliaire não intencionava construir uma vila autônoma isolada, não foram previstos equipamentos de uso ex-clusivo para seus funcionários, nem áreas públicas como praças e largos. Pelo contrário, a empresa investiu na qualificação de escolas e hospitais da cidade, abertos ao restante da comunidade, pois partia-se do princípio de que seus moradores se mesclariam à população de Santa Maria.

Vista da rua e das casas da Vila Belga, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, fotografada em 2012.

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Estação Ferroviária da Vila Belga, 2012.

O projeto foi desenvolvido pelo engenheiro belga gustave Vauthier, na época diretor da companhia, e não foi concebido segundo os preceitos clássicos das vilas industriais, com setoriza-ção urbanística e arquitetônica ou hierarquia viária, pois abrigaria apenas funcionários de uma mesma hierarquia e que não exerciam um papel de vigilância uns sobre os outros, pertencendo todos ao mesmo nível funcional, o que lhes permitia usufruir certa auto-nomia e liberdade individual.

entretanto, é possível identificar referências aos manuais de orientação para a construção de vilas operárias e ferroviárias pu-blicados na Bélgica ao final do século XIX, com destaque para o Traité d’Architecture, de louis Cloquet, de 1898, e que constava do acervo do liceu de artes e Ofícios da Cooperativa dos Ferro-viários de Santa Maria.

Dentre esses, se destaca a integração em relação ao restante da cidade, evitando o isolamento dos bairros operários, que poderia criar “castas” hostis à sociedade e constituir locais de desordem. Quanto à implantação, as 80 residências foram organizadas em blocos de duas, conforme modelo chamado por Cloquet de ac-colée, preservando a ventilação cruzada entre a fachada principal e o quintal aos fundos. O agrupamento de apenas duas unidades também permitiria o afastamento de uma das laterais do lote, ga-rantindo certo isolamento e privacidade.

as residências foram divididas em tipos, variando de tamanho conforme o número de ocupantes, mas com os mesmos padrões de acabamento. Como foi construída dentro da área urbana de

Santa Maria, possivelmente em função das chamadas “posturas municipais” (leis que normatizavam a forma de implantação dos edifícios, acabamentos, coberturas etc.), sua configuração se apro-xima do restante da cidade, com edifícios construídos em alvenaria e implantados no alinhamento dos lotes.

além disso, cada unidade é diferenciada através de detalhes dos requadros das aberturas, cimalhas e pilastras, que têm dese-nho único e, associados a porões altos em alguns edifícios, pro-porcionam variações que tornam única cada unidade, o que tam-bém pode ser atribuído a uma possível influência de Cloquet, que afirmava que a uniformidade das residências era um defeito que geraria banalidade e monotonia, negando-se o direito à in-dividualidade humana.

No ano 2000 a Vila Belga foi tombada pelo Instituto do Patri-mônio Histórico e artístico do estado (Iphae) como Patrimônio Cultural do rio grande do Sul.

Anna Eliza Finger é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001), especialista em Con-servação e Restauro de Monumentos e Conjuntos Históricos, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre e Doutora em Teo-ria, História e Crítica da Arquitetura pela Universidade de Brasília (UnB), com o tema Patrimônio Ferroviário Brasileiro. É funcionária do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) des-de 2006, atualmente desempenhando o cargo de Coordenadora-Geral de Cidades Históricas.

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Jardins do Museu Paulista, em São Paulo, projeto de Arsène Puttemans.

arsène Puttemans, arquiteto e paisagista belga formado pela escola de Horticultura de Vilvoorde (École d’Horticulture de

lÉtat – Vilvoord), trabalhou no Brasil nas duas primeiras décadas do século XX (na escola Superior de agricultura luiz de Quei-roz-esalq, até 1913).

Foi responsável por vários projetos, entre os quais os jardins do atual Museu Paulista (na imagem) – modificados na década de 1920 –, o da Praça da república e o da Várzea do Braz, na cidade de São Paulo; o da Praça de São Bento, em Niterói, e o do Par-que Philippe Westin Cabral de Vasconcelos, em Piracicaba, SP

(lima, 1987, p. 22). este último parque é o da esalq. Participou também do projeto de aprendizado agrícola de Barbacena (Mg) e foi auxiliar do diretor dessa instituição (Cimino, 2013, p. 174).

referênciaslima, ana Maria liner Pereira. (1987). Nosso parque faz 80 anos. Revista ADEALQ, Pi-

racicaba, 1987, v. 10, n. 6, p. 20-22.Cimino, Marli de Souza Saraiva. Iluminar a terra pela inteligência: trajetória do aprendi-

zado agrícola de Barbacena, MG (1910-1933). Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação, 2013.

Nota sobre arsène Puttemansl u c i a n a P e l a e s M a s c a r o

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Os pavilhões brasileiros nas exposições internacionais da Bélgical u c i a n a P e l a e s M a s c a r o

Os pavilhões das exposições internacionais e universais são ob-jetos privilegiados para o estudo da história da arquitetura.

aqueles que foram construídos nas décadas próximas à virada do século XIX para o XX estão inseridos num contexto histórico no qual a modernidade e a introdução dessa modernidade nos países sul-americanos são aspectos primordiais. Nesse período, a américa do Sul era destino de imigrações e de produtos industrializados europeus e as exposições universais e internacionais conheceram sua “idade de ouro”.

Dois fatores importantes convergiram e contribuíram para o desenvolvimento do metal para construção: a disponibilidade des-se material e a forte demanda por pavilhões de exposições, que eram construções efêmeras e deveriam se adequar a determinadas facilidades. esses pavilhões – concebidos e realizados sob as exi-gências da rapidez, da economia, da pré-fabricação, da desmonta-bilidade – são, portanto, de especial interesse, posto que neles se desenvolveu o aperfeiçoamento da técnica e da estética.

Na época evocada, as exposições universais e internacionais eram concebidas como vitrines publicitárias para os países que primeiro se engajaram na via da industrialização e se constituíam como ocasiões privilegiadas para as trocas e para o comércio. Se-gundo renardy (2005, p. 134), “a sociedade ocidental parece querer cada vez mais se comparar a outras de outros continentes, pois as indústrias (...) procuram matérias-primas, mas também mercados consumidores onde verter seus produtos finalizados”.1

Desde a realização das duas primeiras grandes exposições em londres em 1851 e 1862, que aconteceram num único pavilhão comum a todos os expositores, foram utilizadas estruturas metá-licas. ainda se tratava de um sistema construtivo em desenvol-vimento, caro e mal aceito esteticamente como afirma Dantas (2010, p. 70), sobre a exposição de 1862: “A imprensa nacional fez várias críticas, chamando a principal atração de ‘tigelas de sopa colossais’ e ‘uma desgraça nacional’”. Mas o material foi desenvol-vido e, mesmo em exposições realizadas após a Segunda guerra Mundial, o emprego das estruturas metálicas para pavilhões tor-nou-se incontornável.

a partir de 1867, em Paris, os próprios espaços de exposição – ou seja, os pavilhões – foram explorados como produtos. eram concebidos e realizados para mostrar o nível de desenvolvimento do país representado e como exemplos do que a industrialização poderia fazer pela construção. Foi uma época de grande abertura para outras culturas, de fé no progresso e no desenvolvimento (re-nardy, 2005, p. 133, 134). a famosa exposição realizada em Paris em 1889 – na qual a Torre eiffel foi erigida – veio a se transformar numa amostra do apogeu da utilização do metal no século XIX (Kühl, 1998, p. 37).

a Bélgica, até 1935, já tinha realizado em seu território cinco exposições internacionais e universais, mesmo com o advento da

Primeira grande guerra. O grande interesse por parte desse país nesse tipo de evento se explica pelo fato de que a região da Valônia (sul da Bélgica) era uma das regiões siderúrgicas mais desenvolvi-das do mundo e desempenhou “um papel apreciável na evolução universal das ciências e das técnicas”2 (Halleux et al., 1995). além disso, exportou suas mercadorias – sobretudo as estruturas metá-licas para construção – para diversos países.

No que concerne ao comércio com a américa do Sul, a Bélgi-ca partilhou um mercado disputado principalmente pela Inglater-ra, pela França e pela alemanha (Kühl, 1998, p. 77). esse mercado foi destino de produtos belgas que, em conjunto com produtos de outras origens, ajudaram a transformar a arquitetura sul-americana como nos mostra Pirson, em seu artigo “Arquitetura industrial bel-ga no Brasil no século XIX”. Como exemplo, é possível citar uma série de construções de estrutura metálica de origem belga no Bra-sil como a estação de trem do Bananal (SP), o armazém do Porto de Manaus, o Mercado São João em São Paulo, o Chalé de Ferro de Belém – os dois últimos originários das Forges d’aiseau – e o Viaduto Santa Ifigênia, em São Paulo – procedente da S. a. aci-éries d’angleur (Pirson, 1986, p.154 a 162; Bruxelles, prouesses..., 2011). Como nos ensina o professor geraldo gomes – pioneiro nas pesquisas sobre o assunto com seu livro A arquitetura do ferro no Brasil, São Paulo (Nobel, 1986) –, na região da américa latina

Seção do Brasil na Exposição Universal de Antuérpia, 1885.

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a arquitetura de ferro produzida naqueles tempos ainda sobrevive e prenuncia conceitos racionalistas, dentre os quais a pré-fabricação e a fabricação distante do local da construção.

Nesse clima de corrida por novos mercados – que também funcionou na mão inversa, ou seja, países não industrializados procuravam comercializar seus produtos primários –, por um lado, observamos o impacto do processo de industrialização europeia no mundo e, por outro, a presença de vários países não europeus nas grandes exposições citadas. Vamos, então, explorar a presença do Brasil nas exposições realizadas na Bélgica.

até o ano de 1939 o Brasil participou de 13 exposições univer-sais e internacionais, a começar pela exposição Internacional da Indústria de londres, em 1862 (Dantas, p. 67, 2010). em 1885, a seção do Brasil na exposição Universal de antuérpia, Bélgica, ainda sem pavilhão próprio, se localizava, segundo o mapa da exposição – que se encontra na Biblioteca da Universidade de gand, Bélgica – à direita da entrada principal da feira, num pavi-lhão voltado ao acesso da exposição Marítima e partilhado com países da europa, como Portugal, espanha e Suíça, do Oriente Médio, como a Turquia, e de outros continentes, como estados Unidos, Japão, China.

a publicação semanal sobre a exposição, datada do dia 9 de agosto de 1885, mostra a seção do Brasil em destaque. Na facha-da do espaço brasileiro nota-se abundante decoração, muito de acordo com a tendência arquitetônica do final do século XIX, constituída, entre outros elementos, pela exuberância dos arranjos vegetais – que, em certa medida, dissimula a estrutura da constru-ção – em associação com a profusão de tecidos aplicados à moda dos interiores burgueses, com bandeaux e franjas pendentes, e a dois grandes painéis, provavelmente envidraçados, onde se lê “Brazil”. Todo esse conjunto de recursos está aplicado sobre uma estrutura aparentemente metálica, a julgar pela esbeltez e pelo desenho dos pilares e pela amplitude do espaço que se adivinha no interior do recinto.

Se a linguagem empregada precisava deixar evidente que o Brasil já acompanhava os últimos gritos da moda europeia em ter-

mos de arquitetura – através do emprego de características da casa burguesa de fins do século XIX –, não podia deixar de marcar, ao mesmo tempo, o exotismo e as singularidades do país – através de elementos utilizados para exaltar a exuberância de sua natureza e de seus recursos. Daí a mistura entre cortinas, painéis e vegetação exagerada que, para além de transmitir as mensagens que descre-vemos, tinha a virtude de servir muito bem à dissimulação da es-trutura metálica: nesse momento, ela era apenas o cabide para o traje de festa. Outras informações sobre a arquitetura desta seção do Brasil requerem pesquisa mais aprofundada.

em 1910 o Brasil estava de novo presente na Bélgica, du-rante a exposição Universal de Bruxelas, com pavilhão próprio cujo projeto é atribuído ao arquiteto belga Franz Van Ophem na publicação “Pavillon du Brésil – Exposition de Bruxelles 1910”. Ficou localizado à direita no sítio destinado ao evento, junto aos pavilhões de países da África, da Indochina e das Colônias Fran-cesas, como mostrado no mapa da exposição “Bruxelles 1910

Ilustração da Fachada do Pavilhão do Brasil na capa do Livro Pavillon du Brésil, Exposition Bruxelles, 1910.

Cartão-postal mostra as estruturas de ferro retorcidas após o incêndio que atingiu a Exposição de Bruxelas de 1910.

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– L’Exposition Universelles Retrouvée”, uma exposição sobre a exposição de 1910, realizada em 2010, no Campus da Universi-dade livre de Bruxelas.

a exposição de 1910 é característica pela linha política de seu Comitê executivo, que escolheu como arquiteto-chefe er-nest acker, professor e antigo diretor da academia de Belas artes de Bruxelas (em detrimento, por exemplo, de Victor Horta, re-presentante da vanguarda em arquitetura) (Douillet; Schaack, p. 7-8). Como resultado, a estética que se manifesta nos pavilhões da exposição – exceto raras exceções – representa o retorno ao classicismo e à Belle Époque (http://expo1910.be/).

O Pavilhão do Brasil não fugiu à regra, como se nota por suas raras imagens. grandioso, simétrico, com suas estátuas, cúpulas e colunatas nos faz pensar em Palladio, mas as proporções e a altura da cúpula principal – que, de acordo com Dantas (2010, p. 108) estava “situada a 52 metros de altura”, deve ter recorrido a conhe-cimentos técnicos de engenharia para ser realizada e, talvez, sido

facilitada pelo uso da estrutura em metal – nos trazem imediata-mente de volta ao século XIX (embora tenha sido construído nos primeiros anos do século XX, em linguagem anacrônica). Uma curiosidade sobre este evento foi o incêndio que atingiu, em agosto daquele ano, um dos seus setores, poupando o do Brasil, e revelou as técnicas construtivas escondidas e a capacidade de reorganizar a feira rapidamente, sem que a mesma tivesse de ser cancelada. Vasta iconografia da época mostra escombros e estruturas metálicas retor-cidas pelo incêndio, flagrante do interesse geral pela modernidade velada do evento, apesar da opção por uma aparência conservadora.

em 1930 o Brasil participou novamente da exposição Inter-nacional em antuérpia. Nos 20 anos que se passaram desde a fei-ra em Bruxelas, a arquitetura eclética estava suplantada e se im-punham francamente tendências muito menos ornamentadas e mais arrojadas. as exposições internacionais eram o reflexo de tais transformações na linguagem arquitetônica, pois os pavilhões for-mavam um uníssono composto por linhas art déco e racionalistas.

Vista do Pavilhão do Brasil, Exposição de Antuérpia de 1930.

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O pavilhão do Brasil, projetado pelo arquiteto Pedro Paulo Bernardes Bastos, e “no qual lembranças da grandiosa arte pré-colombiana lhe atribuem uma nota muito característica (...) com galerias baixas e varandas nos transportam à frescura dos abrigos à sombra nos países quentes” (la Technique..., 1930, p. 427), foi um exemplar de tendência art déco. O arquiteto adota formas geo-métricas e linhas retas, reforçando a verticalidade da torre central; aparecem detalhes decorativos com motivos estilizados de inspi-ração vegetal e, também, máscaras e estátuas indígenas estiliza-das. De acordo com o “Livro de Ouro da Exposição Internacional, Colonial, Marítima e de Arte Flamenga”, a participação do Brasil nessa exposição foi particularmente brilhante e contribuiu para ampliar o renome do país na Bélgica.

Pouco depois, em 1935, reencontramos o Brasil em Bruxelas para a exposição Internacional com seu Pavilhão do Instituto Na-cional do Café, situado próximo à entrada do Centenário e em frente aos pavilhões dos Países Baixos e do Chile. Nessa exposi-ção pode-se notar o esforço dos arquitetos em explorar a estética dos materiais e das técnicas então disponíveis que, embora não fossem propriamente novos – o concreto e o metal já estavam no mercado da construção desde fins do século XIX –, passaram a ser trabalhados de forma nova, procurando deixar de lado a carga historicista e academicista. esse modo de atuar que caracterizou a arquitetura dita moderna empregou, entre outros recursos, pa-nos envidraçados, elementos metálicos aparentes, linhas sóbrias e espaços racionais recorrentemente.

Concebido por alphonse Barrez, arquiteto belga, dentro dessa

lógica, o pavilhão brasileiro apresentou uma constituição aberta-mente moderna. Não faltaram grandes áreas envidraçadas, o volu-me retangular sobre pilotis nem o terraço elevado do solo – referên-cias inequívocas aos preceitos de le Corbusier – onde se degustava várias maneiras de se preparar o café. O prédio mereceu uma pe-quena nota elogiosa na revista La Tecniques des Travaux, que o descreveu como “muito moderno e muito elegante” (1935, p. 358).

em 50 anos – desde 1885 até as vésperas da Segunda guerra Mundial –, portanto, o Brasil se fez presente na Bélgica através das exposições internacionais, que eram, e continuam sendo, eventos especialmente eficazes de divulgação e catalizadores de relações comerciais entre países. assim, além de mostrar que são capazes de acompanhar as últimas tendências em matéria de arquitetura, pois os próprios pavilhões se tornaram produtos passíveis de co-mercialização e exemplos de domínio de técnicas e tecnologias construtivas, os países representados nelas expõem os mais diver-sos atrativos exportáveis. Nesse sentido, de maneira geral, o Brasil levou à Bélgica, além do café, que era o carro-chefe da exportação brasileira no período, amostras de suas outras riquezas, naturais ou processadas, fossem elas oriundas da fauna, da flora ou dos mine-rais. além disso, o Brasil mostrou que estava a par das vanguardas arquitetônicas, como mostra o estudo dos pavilhões que produziu para tais feiras realizadas em território belga.

em 1958 o Brasil estará presente numa das mais marcantes exposições realizada em Bruxelas com um pavilhão de autoria do célebre arquiteto Sérgio Bernardes, sobre o qual o professor De Kooning nos fala no artigo a seguir.

Fotografia do Pavilhão do Instituto Nacional do Café na Exposição de Bruxelas de 1935, publicada na Revista La Technique des Travaux, julho de 1935.

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em janeiro de 1956, algumas semanas antes de assumir como presidente, Juscelino Kubitschek ofereceu uma recepção na

embaixada do Brasil em Bruxelas. entre os convidados estava o Barão Moens de Fernig, Comissário-geral da exposição Mun-dial de 1958. a participação do Brasil na ‘expo 58’ parecia ser um negócio do interesse do estado, como também o foi em 1939 na World’s Fair de Nova York. a expo 58 – a primeira exposição mun-

dial depois da Segunda guerra Mundial – formaria um esplêndido mostruário para a apresentação das modernizações mais recentes em andamento no Brasil: o canteiro de obras da nova capital es-taria em 1958 ainda em plena atividade.

Precisamente como em 1939, a arquitetura precisava não so-mente ser ‘moderna’ como também dar expressão à consciência nacional. em 1939 Costa e Niemeyer corresponderam com verve a esta dupla tarefa. Seu pavilhão foi recebido com entusiasmo nos meios da arquitetura e deu, junto com o novo Ministério da educação e Saúde no rio de Janeiro, origem ao ‘estilo brasilei-ro’ na arquitetura. Desde o final dos anos 1940 esse estilo obte-ve reconhecimento mundial, mesmo que criticado, também no Brasil, por seu caráter formalista. a propaganda que lhe foi feita desde os estados Unidos foi recebida com suspeita por alguns – um arquiteto paulista perspicaz como Villanova artigas falou nesse contexto mesmo de ‘manoeuvre of larceny’ (manobra de apropriação indébita).

No final dos anos 1950 Niemeyer foi totalmente ocupado pela obra da nova capital, Brasília. Como arquiteto do pavilhão brasi-leiro em Bruxelas foi indicado Sérgio Bernardes (1919-2002), um homem definido como ‘um arquiteto humanista, uma mistura de poeta e utopista’. até o fim da vida Bernardes elaborou planos es-petaculares nos quais lidava com os problemas sociais e ecológicos do Brasil com uma fé incondicional nas potencialidades da técnica. Produziu uma obra ricamente variada que soube guardar sua vita-lidade até os últimos anos de vida. lauro Cavalcanti o considera ‘o melhor arquiteto da segunda geração dos modernistas cariocas’.

Sérgio Bernardes e o pavilhão do Brasil na exposição Mundial de 1958 em Bruxelas

e m i e l D e K o o n i n g

Vista da entrada do pavilhão da Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

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Notas1. “la société occidentale semble vouloir de plus en plus souvent se comparer à d’autres

continents, car les milieux industriels (…) cherchent des matières premières, mais aussi des marchés porteurs où écouler les produits finis”.

2. “un rôle appréciable dans l’évolution universelle des sciences et des techniques”.

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Quando recebeu o encargo do pavilhão, Bernardes não tinha ainda se manifestado como um utopista, se bem que ficou famoso, mesmo nas revistas internacionais, por seu surpreendente uso de materiais diversos e por suas construções em aço leve. assim ele explorou em 1954 o potencial lúdico dos light weight roofs (telha-dos leves), num magnífico pavilhão que se construiu por ocasião do quinto centenário de São Paulo no Parque do Ibirapuera e que pode ser considerado um direto precursor do pavilhão em Bruxe-las. O caráter inteligível da construção se encaixava perfeitamente com o quadro dinâmico e livre que a arquitetura deve, segundo Bernardes, poder oferecer ao homem e à natureza – um credo que marca toda sua obra.

Na expo 58 o pavilhão do Brasil foi parar num lugar remoto do sítio, na parcela mais afastada da seção estrangeira. O terreno era idílico, mas difícil – e em nenhum outro pavilhão as limitações foram exploradas com tanta elegância. O lote, com forte desnível de dez metros, proporcionou um roteiro de exposição em declí-nio; o foot print (presença) do pavilhão seguia literalmente – mas de maneira extraordinariamente lúdica e sensual – o contorno si-nuoso da superfície construível. Tudo se juntava visualmente por um teto em forma de prato, suspendido em quatro torres angula-res transparentes de aço e das quais as beiras se inclinavam para dentro, como um eco da curva do caminho, mas também para evitar os cumes das árvores presentes. No meio do teto se abriu um oculus pelo qual podia subir ou descer um balão vermelho. De acordo com o tempo, pairava livre e alegre acima do pavilhão, como os balões nas festas juninas de São João, ou fechava como uma tampa a abertura. Sua leveza e flexibilidade contrastavam com o espalhafato rígido dos abundantes chamarizes da expo 58 e formavam um sinal adequado para um pavilhão que foi conce-bido como um espaço aberto e animado.

Nas fotografias do interior do pavilhão se pode efetivamente notar como todos os elementos se conectavam, num espetácu-lo total que se experimentava já logo na entrada, num plunging view: Bernardes teve a ideia luminosa de fazer com que os visi-tantes entrassem no pavilhão pela parte de cima do terreno e de conduzí-los para baixo numa reviravolta contínua, contornando um jardim interior, que recebia a água do telhado numa região central – captando a chuva que entrava pelo oculus. O percurso circulante proporionava pontos de vista sempre mutantes e uma vivência dinâmica do interior.

a semelhança com o pavilhão dos estados Unidos era notável – lá também a presença do partido interior aberto com um tan-que central e uma abertura no teto. entretanto, a elegância altiva do pavilhão de edward Stone não se comparava em nada com a vivacidade do pavilhão brasileiro, que não pretendia encantar ou impressionar, mas oferecer um ambiente descontraído para a fes-tiva reunião de gente e coisas entre si. Numa de suas Braziliaanse brieven, cartas brasileiras, escrevia august Willemsen sobre ‘a vida aberta, sem muros, atrevida’ – o que pode ter sido o mote da par-ticipação brasileira na expo 58. Todo o pavilhão era uma mani-festação disso: a aparência alegre, o interior vigoroso, os materiais de construção informais, ‘brutalistas’, a apresentação tão lânguida

quanto calculada da exposição. e naturalmente também o jardim de roberto Burle Marx: centro e final da descida, junção de geo-metria e espontaneidade, como o próprio pavilhão.

a instalação da exposição era tão simples quanto evidente no seu propósito. Painéis e longas mesas se encontravam perpendi-culares ao percurso de maneira que conduziam os visitantes em zigue-zague. O Brasil foi apresentado como uma nação moderna pronta a integrar-se na corrente dos desenvolvimentos mundiais e expressamente moldada no exemplo ocidental. lia-se no catálogo oficial: ‘Le Brésil construit une civilisation occidentale des tropiques’ (O Brasil constrói uma civilização ocidental dos trópicos). além do progresso na previdência da saúde, ensino, meios de transpor-te, turismo e indústria, se realçavam a arquitetura e o urbanismo atuais, com imagens de perspectiva deformada que faziam pare-cer os novos blocos high rise ainda mais altos do que eram e com panoramas da skyline das metrópoles brasileiras. O ponto culmi-nante se situava na última curva do percurso, onde se evocavam as obras de Brasília com dramáticas fotografias em branco e preto e com uma maquete da Praça dos Três Poderes. Depois da expo 58, Bernardes realizou em Brasília obras prestigiosas: um mastro

Vista da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

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de bandeira transparente na Praça dos Três Poderes e um impo-nente centro de congressos no eixo Monumental, perto da torre de televisão de lúcio Costa.

Mesmo tendo o pavilhão do Brasil na expo 58 grande reper-cussão nas revistas profissionais internacionais, foi também criti-cado pela elaboração construtiva impura. essa crítica é pertinen-te, mas, de fato, não é relevante: se faz injustiça a Bernardes de querer compreender o pavilhão somente a partir de uma lógica construtiva. O cariz de seu trabalho tem precisamente a ver com o caráter exaltante, e mesmo obstinado, desta repetida combinação de experimentação construtiva e de intenção formalista. Tampou-co se deve a isso que o pavilhão de Bruxelas não teve o mesmo impacto como aquele de Costa e Niemeyer em Nova York. Di-ferentemente de 1939, as características do Brazilian style (estilo brasileiro) se tinham tornado os clichês do arsenal de formas da arquitetura internacional. além disso, com seu ‘Burle Marx’, sua rampa e suas curvas leves e lúdicas do teto e dos muros, o pavilhão de Bernardes pode facilmente ser posto no catálogo consagrado, mas, entrementes, já contestado, da arquitetura brasileira contem-porânea. entretanto, o caráter informal e o propósito expressamen-te construtivo faziam uma diferença bem nítida entre Bernardes e a maior parte dos arquitetos do Brazilian style. Tanto que, em

Interior com o jardim de Roberto Burle Marx, perspectiva a partir da entrada do Pavilhão do Brasil na Exposição Mundial de 1958 em Bruxelas.

muitas outras obras suas, Bernardes fundiu as ideias divergentes na arquitetura brasileira do pós-guerra numa síntese extremamente pessoal, uma síntese que parecia oferecer uma saída ao impasse ao qual a abordagem formalista tinha chegado naquele momen-to. Nesta residem o valor histórico e a atualidade duradoura do pavilhão do Brasil na expo 58.

Emiel De Kooning é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Gand e publicou sobre a Arquitetura e o Design na Bélgica do pós-guerra.

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Frédéric de limburg Stirum e Paraty D o m i n i q u e Va n p é e

Frédéric de limburg Stirum nasceu em 23 de março de 1931 em Huldenberg, filho do Conde Thierry de limburg Stirum

e da princesa Marie-Immaculée de Croÿ. Frédéric estudou arqui-tetura na École Spéciale d’Architecture em Paris. antes de seu ca-samento, em 5 de julho de 1969, em Fleurigny, com Monique de Castellane, filha de louis Provence Boniface, Duque d’alamzón de Saint Priest, Marquês de Castellane, ainda queria viver uma ‘aventura’ e foi para o Brasil.

Chegou ao Brasil de navio em 26 de outubro de 1961. Depois de duas noites num hotel bem caro conseguiu um apartamento de propriedade de um conhecido. Seria seu ponto de partida du-rante sua estada brasileira. Conheceu o arquiteto Henrique Min-dlin. Um parente diplomata em posto no rio de Janeiro, Serge de robiano, tinha um amigo proprietário de um avião, com o qual sobrevoaram Paraty, sem que os olhos do europeu detectassem algo de especial (robiano). Somente mais tarde, numa excursão de carro, percebeu a extraordinária beleza do sítio ao pé da serra. Como qualquer turista que visita o Brasil “ficou surpreso de des-cobrir cidades que datavam da época colonial ou do Império e que conservaram até nossos dias seu aspecto intacto. Como tais, apre-sentam um interesse particular para a história em geral, mas sobre-tudo para o estudo da arquitetura e do urbanismo, e naturalmente do modo de vida dos portugueses no Brasil desde sua chegada no século XVI” (limburg Stirum, 1963).

Como arquiteto, no seu modo de pensar sobre a conservação dos vestígios do passado, se inspirou na leitura de um livro dos anos 1930 sobre Marrocos, onde a arquitetura de Fez, Meknès e Marrakech foi preservada. O que os franceses e, particularmente, o Marechal lyautey – “maior criador de cidades de todos os tem-pos” – lá fizeram para separar os bairros históricos dos europeus por motivos políticos, econômicos, sanitários e estéticos e, no en-tanto, interligá-los com grandes artérias virou uma referência no seu Mémoire pour la défense et conservation des monuments et sites au Brésil. Turistas à procura de paisagens e cidades diferentes não querem ver estas desfiguradas por construções modernas sem gosto e “uma falsa noção de progresso arrisca sacrificar a cidade antiga e pobre, tirando ao mesmo tempo sua única renda do interesse turístico” (limburg Stirum, 1963). Precisamente nesse período, em oito de julho de 1963, o globo anunciava que vai “ser iniciada a Rodovia Angra dos Reis–Paraty”.

Planos de 1963 para desenclavar Paraty pela estrada – um peri-go? (limburg Stirum, 1963, p. 15.) Baseado nestas primeiras notas pessoais o conde escreveu no final de 1963 seu primeiro relató-rio Plano de urbanização de Paraty, publicado em 1964 com um suplemento Proposta visando a um projeto de lei para defesa dos monumentos e sítios do Brasil. No prefácio agradece ao governo brasileiro as facilidades concedidas para conhecer Paraty (lim-burg Stirum, 1964).

em janeiro de 1964 ele teve seu primeiro contato com rodrigo Mello Franco de andrade, interrompido algum tempo por uma viagem à europa. em novembro de 1964 entregou o relatório ao governador Paulo Torres. entrementes se discutiu muito como realizar o plano dentro da legislação e da autonomia municipal. em 29 de janeiro de 1965, rodrigo M. F. de andrade apresentou um projeto de decreto proclamando o município de Paraty co-mo Monumento Nacional. Precisava ser assinado pelo ministro da educação e Cultura, Flávio Suplicy de lacerda, mas este se recusou totalmente. Mais uma viagem prolongou a demora, mas em julho de 1965 as coisas se precipitaram, quando Frédéric foi convidado por uma pessoa muito conhecida no mundo das corri-das para um evento no rio de Janeiro com todas as misses de be-leza do mundo. Percebeu que o presidente Castello Branco estava sentado por perto da miss Bélgica e entregou a ela um papelzinho escrito com as palavras ‘Presidente, salve Paraty’. esta o passou ao presidente, que viu e entendeu tudo. logo seguiu uma nota deste presidente para o ministro da educação e Cultura ‘Peço examinar com urgência este assunto, Castello’. em 16 de agosto veio a carta da Delegacia do estado do rio de Janeiro com o pedido para as-sinar o decreto transformando Paraty em monumento nacional.

em carta de 14 de setembro de 1965, renato Soeiro, diretor substituto do Iphan (Instituto Patrimônio Histórico e artístico Nacional), tratou da proteção da cidade. Uma semana mais tarde, em 21 de setembro de 1965, Frédéric de limburg Stirum ela-borou um segundo relatório para convencer o ministro a assinar o decreto: Plano diretor em proveito da proteção e do desenvolvi-mento urbanístico de Paraty. Na capa levou uma reprodução da fotografia de prospecção, que sempre seria a base de seu trabalho em torno de Paraty.

Frédéric de Limburg Stirum na praia de Paraty, em 1967.

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exemplares desse trabalho foram distribuídos pela DPhan (Di-retoria do Patrimônio Histórico e artístico Nacional) às diferentes autoridades, inclusive ao prefeito de Paraty, lulu Vieira ramos, e ao governador do estado do rio de Janeiro, Paulo Torres. Numa sessão ordinária, em 30 de setembro de 1965, a Câmara Munici-pal de Paraty discutiu o plano, que na votação “foi aprovado, sen-do que o vereador Antonio Porto votou contra” e o seu presidente, Derly, pediu ao presidente para assinar o decreto. ainda houve em novembro de 1965 alguma resistência da parte do ministro. Por seu lado, rodrigo M. F. de andrade apresentou uma nota ao ministro do Planejamento, Dos obstáculos para o planejamento e de uma primeira solução (Constatações que surgiram na elaboração do plano diretor em proveito de Paraty).

em 14 de janeiro de 1966 a revista Visão publicou um artigo: Um conde quer salvar Paraty, para incitar o ministro a dar sua assi-natura. Com uma mudança de governo, Pedro aleixo se tornou o novo ministro da educação. O texto do decreto foi submetido ao presidente e em 24 de março de 1966 saiu sob o nº 58.077, con-vertendo Paraty em Monumento Nacional e assinado por Castello Branco, Pedro aleixo, Juarez Távora, Ney Braga, Paulo egydio Martins e roberto Campos. O texto se encontra publicado na revista Arquitetura, nº 46 de abril de 1966, junto com uma repor-tagem do arquiteto M. Nogueira Batista (IAB-GB) e com fotos de Frédéric de limburg Stirum.

Quando Michel Parent realizou para a UNeSCO algumas missões no Brasil nos anos de 1966-1967 a fim de valorizar e pro-teger o patrimônio cultural no contexto do desenvolvimento turís-tico e econômico, obteve, junto com rodrigo M. F. de andrade, que o Conde limburg Stirum pudesse trabalhar para a UNeSCO em torno de Paraty. redigiu então um relatório, publicado em 1968 (Parent, 1967, e limburg Stirum, 1968).

em 1969 se elaboraram, dentro do programa do primeiro ano, as Diretrizes básicas na urbanização de Paraty. Com o falecimento de rodrigo M. F. de andrade a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional (Iphan) passou para renato Sairo.

a CNPI (Companhia Nacional de Planejamento Integrado) en-volvia limburg Stirum pelo seu engajamento anterior no plano diretor da zona de expansão da cidade de Paraty, mas entregou a direção efetiva a lúcio Costa (Plano diretor, 1972). Colaborou com eles de setembro de 1971 até janeiro de 1972, quando re-gressou à Bélgica com o sentimento de ser cada vez mais deixado de lado. em 1973 Paraty ainda se mostrou na Brasil export 1973, em Bruxelas. Suas visitas em 1974 e 1976 ao Brasil e, especifica-mente, ao rio de Janeiro e a Paraty não o tranquilizaram quanto à preservação futura da cidade. Será que o Brasil ousaria esquecer o papel deste estrangeiro no salvamento de Paraty?

Dominique Vanpée publicou vários trabalhos sobre biblioteca e documentação, informação ligeira como rumores e urban legends, história local de Huldenberg, alimentação, patrimônio industrial e científico, inteligência competitiva, management e estratégia dos co-nhecimentos.

referênciaseste verbete se baseia principalmente numa entrevista concedida pelo Conde Frédéric

de limburg Stirum ao autor Dominique Vanpée em 11 de fevereiro de 2012 e pre-senciada por eddy Stols. Boa parte de sua documentação sobre Paraty foi doada pelo conde aos arquivos do Heemkundige Kring van Huldenberg (Círculo de história local de Huldenberg).

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Plano diretor da zona de expansão da cidade de Paraty. Separata do plano de desenvolvimen-to integrado e proteção do bairro histórico de Parati, Estado do Rio de Janeiro, rio de Janeiro, Companhia Nacional de Planejamento Integrado-CNPI, 1972.

ParatyC a s s i o r a m i r o M o h a l l e m C o t r i m

Paraty é uma pequena cidade a beira-mar, situada na costa do Brasil a 23°13’12” de latitude Sul e a 44°43’ de longitude

Oeste de greenwich. Por detrás da cidade, após uma área de pla-nície de aproximadamente cinco quilômetros, ergue-se a Serra do Mar: uma cadeia de montanhas em sentido sudoeste-nordes-te, acompanhada pela faixa litorânea, com altitudes variáveis de 700 m a 1.000 metros. acompanhando a Serra do Mar no sentido sudoeste-nordeste, separado do alto da Serra por um leve declive no sentido noroeste, corre o rio Paraíba do Sul, passando por uma extensa região denominada Vale do Paraíba.

Prosperidade econômica no século XIX

No período entre 1820 e 1870, nas terras vermelhas e férteis das pequenas cidades ao longo do Vale do Paraíba, floresceu a cultura do café destinada à exportação, trazendo riqueza para os cafeicultores e para o Império do Brasil, independente de Portu-gal desde 1822.

Por questões de custo dos transportes, o porto da Vila de Paraty era usado para embarque de café com destino ao rio de Janeiro (de onde era exportado para a europa). em sentido contrário vi-

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Patrimônio arquitetônico e paisagístico de Paraty.

nham por mar, do rio de Janeiro a Paraty, e dali subiam a serra carregados por tropas de mulas até o Vale do Paraíba, todos os pro-dutos necessários aos fazendeiros de café: desde ferragens e ferra-mentas para a lavoura, até produtos da europa, como cristais da Bohemia, porcelanas de Sèvres, bules e talheres de prata, móveis de jacarandá, tecidos de seda e vinhos do Porto.

em Paraty desembarcavam-se também grandes quantidades de escravos africanos com destino à lavoura do café. Os trafican-tes desses escravos residiam nos arredores da Vila e abasteciam seus navios com mercadorias compradas dos comerciantes locais.

a famosa aguardente de cana de açúcar produzida em Para-ty servia como “moeda de troca” por escravos na costa da África.

Urbanismo no século XIX

No período de prosperidade comercial, entre 1820 e 1870, a pequena Vila (cidade após 1844) expandiu-se com a construção de novas casas, muitas das quais sobrados. Nesses sobrados, o piso térreo servia para a loja e para o armazém de mercadorias, en-quanto que a parte superior servia de moradia para a família do comerciante.

ainda nesse período de prosperidade: trechos de ruas ganha-ram novo alinhamento, a vila recebeu calçamento construído com grandes pedras arredondadas e todas as casas remanescentes do século XVIII foram reformadas.

O padrão construtivo de altura das casas e de dimensões das portas foi estabelecido em 1799. Uma lei de 1829 confirmou esse padrão. Desse modo, a vila histórica dos nossos dias foi construída no século XIX com um padrão arquitetônico português do século XVIII. O “palmo” português equivale a 22 cm. a pedra que for-ma o degrau de entrada da casa denomina-se “soleira”. as portas deveriam ter, de espaço livre, cinco palmos de largura por onze palmos e meio de altura acima da soleira. as janelas deveriam ter, também de espaço livre, seis palmos e meio de altura por cinco palmos de largura.

Decadência econômica

entre 1831 e 1850, o tráfico de escravos já era proibido pelos tratados internacionais entre o Brasil e a grã-Bretanha, mas era tolerado (e mesmo incentivado) por comerciantes, por fazendeiros e por autoridades do Império do Brasil.

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Os mesmos comerciantes, agricultores e dirigentes do Império perceberam, em 1850, ter chegado o momento político e (espe-cialmente) econômico para o fim do tráfico de escravos. Naquele mesmo ano de 1850, uma lei proibiu definitivamente o tráfico e o Império passou a perseguir, com muito rigor, os traficantes que ousassem desembarcar escravos no Brasil.

em 1877, as cidades do Vale do Paraíba foram ligadas ao por-to da cidade do rio de Janeiro por uma estrada de ferro. entre 1870 e 1890, as lavouras de café do Vale já estavam decadentes. Concorriam com elas os cafés de outras regiões: plantados com melhores técnicas agrícolas e com a contratação de trabalhadores livres e assalariados.

Com o fim do tráfico de escravos, Paraty sofreu o primeiro choque econômico de decadência. O comércio local deixou de vender produtos para os traficantes e estes mudaram suas resi-dências para a cidade do rio de Janeiro, onde podiam reinvestir seu dinheiro (anteriormente utilizado na empresa do tráfico) em outros negócios.

a partir de 1877, a ferrovia passou a levar o café do Vale do Paraíba diretamente ao rio de Janeiro. O porto de Paraty deixou de ter utilidade para os cafeicultores e essa situação trouxe o “gol-pe fatal” para a economia da cidade. entre 1880 e 1975, Paraty esteve esquecida e abandonada. Manteve-se preservada por sua extrema pobreza.

Ciclo do turismo em 1975, a abertura de uma estrada de rodagem pelo litoral

(rodovia rio-Santos) ligou Paraty ao mundo “civilizado”, facili-tando os interesses dos especuladores imobiliários e prejudicando a pacata vida do povo pobre de Paraty. grandes atrocidades foram cometidas por esses especuladores imobiliários.

a rodovia foi aberta em função de necessidades macroeconô-micas governamentais (terminal petrolífero, usina de energia atô-mica, estaleiro de construção naval, porto de descarga de minério de ferro e de carvão para um parque siderúrgico). em face desses interesses, as autoridades governamentais desprezaram os projetos de infraestrutura para as pequenas cidades à beira-mar (que, por suas belíssimas praias, apresentavam enorme vocação turística).

Ciente dos futuros estragos que a rodovia rio-Santos pode-ria causar quando ali chegasse, ainda em 1965 o jovem arquiteto (Conde) Frédéric de limburg Stirum fez um excelente plano urbanístico para a preservação de Paraty. O plano não se limitava ao centro histórico. Preocupava-se, também, com a proteção pai-sagística, com as matas naturais, com a preservação dos rios desde as suas nascentes (no alto da Serra) e com a passagem da estrada em local afastado da vila histórica. a área paisagisticamente pro-tegida abrangia uma área de cinco quilômetros de raio em torno do centro histórico e pretendia a separação física entre a antiga vila e os novos bairros.

Quem chegasse a Paraty pelo mar só deveria avistar constru-ções (tanto antigas quanto novas) com, no máximo, a altura de um sobrado. Quem chegasse a Paraty por terra deveria ver o centro

histórico separado dos novos bairros por uma enorme esplanada de grama verde: cortada por duas vias de acesso ladeadas por aleias de palmeiras imperiais. Por detrás da vila histórica, os visitantes deveriam ver apenas as montanhas protegidas por mata natural.

Problemas políticos, possivelmente associados a interesses econômicos escusos, impediram a realização das obras propostas. Com grande perda para Paraty, o plano do Conde Frédéric foi abandonado pelo governo do Brasil.

esse Plano ainda serve como referência de proteção paisa-gística ao Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Nacional, mas do projeto original, a única ideia realmente aproveitada foi a enorme curva que manteve a rodovia afastada do centro histórico.

a vila histórica de Paraty permanece relativamente bem pre-servada, atraindo turismo (uma das principais fontes de renda dos paratienses), mas urbanisticamente sufocada pelos novos bairros que compõem a cidade.

Permanece, até os dias atuais, a constante ameaça às matas naturais. Permanecem, igualmente, os problemas de infraestrutu-ra (de abastecimento de água, de esgotos e de coleta de lixo) que poderão prejudicar, no futuro, a preservação e o turismo. Mesmo em face de tantos problemas, é admirável o otimismo do Conde Frédéric de limburg Stirum e sua constante luta – de quase meio século – pela preservação de Paraty.

Cássio Ramiro Mohallem Cotrim é bacharel em Direito pela Uni-versidade de São Paulo (USP), Analista Tributário da Receita Federal e autor do livro Villa de Paraty.

Patrimônio arquitetônico e paisagístico de Paraty.

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Paraty e o plano de limburg StirumFa b i o g u i m a r ã e s r o l i m

Ordenamento urbano com sistema de canais e lagoas previsto pelo plano de Limburg Stirum.

a visão da Serra do Mar coberta pela densa e luxuriante ve-getação da Mata atlântica emoldurando o branco casario

ritmado de portas e janelas refletidas no espelho d’água da baía é recorrentemente evocada pelo arquiteto Frèderic de limburg Stirum como a imagem marcante de Paraty, desde sua primeira vinda à cidade, em 1962.

Talvez a força daquela imagem integral tenha sido determi-nante para sua compreensão acerca de Paraty, conduzindo-o a um plano urbanístico e de preservação que bem pode ser chamado de pioneiro para o Brasil daquela década.

afinal, seria algo absolutamente excepcional no cenário ur-banístico brasileiro dos anos 1960 – marcado por um desenvol-vimentismo que hoje se reconhece como desenfreado e mesmo danoso sob muitos aspectos – a concepção de um plano de or-denamento e expansão urbanos que tivesse como diretrizes pri-mordiais a preservação do patrimônio histórico-arquitetônico, a conservação dos recursos hídricos e florestais e a identidade es-tética da cidade.

No entanto, são estas as premissas do plano de limburg Sti-rum, que podem ser resumidas em: reflorestamento das encostas

da Serra do Mar, especialmente nas bacias hidrográficas dos dois maiores rios que correm pela planície da cidade (Perequê-açu e Mateus Nunes); a criação de um sistema de canais de drenagem e lagoas de decantação para o controle de enchentes e de afluxo de sedimentos; a dragagem da baía defronte ao centro histórico; a criação de um cinturão verde atuando como um gradiente entre os setores antigo e novo de Paraty; a concentração da expansão urbana mais adensada e verticalizada na várzea da Jabaquara, se-parada do centro histórico pelo morro do Forte; a consolidação de uma atividade portuária condizente com a pesca e o turismo.

Pois Stirum é taxativo ao afirmar que o problema de Paraty é o desmatamento originador do gradativo assoreamento da baía e da crescente interiorização da cidade, levando-a a perder o con-tato com a água – crucial para sua identidade de porto urbano.

Para este entendimento não devem ter passado despercebidas por Stirum as peculiaridades da região para além da dimensão arquitetônica do centro antigo.

a ocupação de Paraty se deu ao longo de planície de sedimen-tação situada entre a Serra do Mar e a linha de costa, numa faixa ora estreita em promontórios que mergulham abruptos em costões

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rochosos, ora alargada em várzeas dos diversos rios que vertem das montanhas e afluem à Baía de Ilha grande, intercalando-se por restingas e manguezais. esse território, assim como o de diversos outros núcleos urbanos situados nessa característica porção do li-toral brasileiro entre Santos e a Baía de guanabara, testemunha exemplarmente os complexos processos de recuos e avanços ma-rinhos durante os últimos 25.000 anos em que o mar esteve alter-nadamente a cerca de cem metros abaixo e quatro metros acima da atual linha d’água.

assim, parece ter sido fundamental para o arquiteto belga a in-tuição de um terreno que já fora alternadamente terra, água e terra novamente, bem como da instabilidade geológica da Serra do Mar e da dinâmica dos rios, que serpenteiam lentamente pela planície em móveis meandros, dada a baixa declividade do terreno.

as premissas de seu plano evidenciam a compreensão e o res-peito a estas condicionantes físicas. Tal postura face ao território é fundamental para um efetivo controle de suas dinâmicas pró-prias e também da ação humana. Casos contrários são os que hoje infelizmente abundam, conforme atestam as notícias de desliza-mentos e enchentes que em proporções cada vez maiores abalam as cidades brasileiras.

O plano não foi implementado, apesar dos esforços de rodri-go Melo Franco de andrade (dirigente do Instituto do Patrimônio

Histórico e artístico Nacional – Iphan até 1968) e a despeito da incorporação de seus principais aspectos pelo “Plano de Desenvol-vimento Integrado e Proteção do Bairro Histórico do Município de Paraty”, produzido sob os auspícios do Iphan pela Companhia Nacional de Planejamento Integrado – CNPI entre 1971 e 1972 e convertido em lei municipal em 1973.

Hoje, o plano de Stirum é referência para a atuação do Iphan em Paraty por meio de seu escritório da cidade, notadamente quanto à visão integral requerida para a gestão da preservação na área municipal, inteiramente tombada em 1974.

Como uma decisiva vitória do plano e da cidade, na década de 1970 a rodovia Br-101 (rio-Santos) foi executada distante do centro. evitou-se, assim, uma proximidade que seria fatal ao nú-cleo urbano original e garantiu a permanência desta área a nos lembrar hoje das lutas pela preservação e pelo futuro de Paraty.

Fabio Guimarães Rolim, Arquiteto e Urbanista pela Escola de En-genharia de São Carlos (USP), com especialização em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 2006, atuou em Mato Grosso do Sul e Paraty e é atualmente Coordena-dor-Geral do Patrimônio Natural no Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização.

Foto aérea de 1966 de Paraty mostrando os rios ainda meandrados.

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a arquitetura, o design e a arte brasileiros foram, através dos anos, uma fonte de inspiração para os B-architecten. Ceno-

grafias para exposições no Palácio de Belas artes em Bruxelas fo-ram projetadas tendo em mente a obra da arquiteta lina Bo Bardi. Seu conhecimento fatual e conceitual em matéria de desenho de exposições teve uma influência revolucionária. assim os B-archi-tecten realizaram em Bruxelas, em 2001, a exposição Rosas XX, em torno do instituto de dança de anne Teresa De Keersmaeker, e em 2003 Rimbaud-Une saison en enfer.

Nos projetos de móveis dos B-architecten surgem também re-ferências ao uso intemporal e plástico da madeira por Sergio ro-drigues como também à reciclagem particular de materiais pelos irmãos Campana.

a arquitetura da escola de São Paulo inspira os B-architecten com seu concreto brutalista e seus conceitos cristalinos. além destes, se pensa ainda em Paulo Mendes da rocha e na obra de Isay Weinfeld e de muitos outros de São Paulo. Suas característi-cas marcam os projetos dos B-architecten, como no pavilhão em concreto, junto a uma mansão dos anos 1930, em antuérpia, e também na reconversão em prédio de escritórios da casa particu-lar de um dos parceiros dos B-architecten, Dirk engelen. O uso inequívoco e plástico do concreto para realizar uma sinergia en-tre objeto, luz e função faz destes projetos exemplos de como os B-architecten entram particularmente em diálogo com o Brasil e a história de sua arquitetura.

links: www.b-architecten.be e www.b-bis.be

B-architectenD i r k e n g e l e n

Projeto do escritório belga de arquitetura B-architecten, que se inspira em referências brasileiras.

O Projeto BamboosticS v e n M o u t o n

a ONg Bamboostic é uma organização belga que trabalha desde 2004 em Ubatuba, litoral de São Paulo, no bairro de

Camburi. a ONg belga consiste principalmente de arquitetos e engenheiros especializados na construção com bambu. eles tra-balham numa relação estreita com a Pontifícia Universidade Ca-tólica do rio de Janeiro (PUC-rJ), sob a supervisão do professor titular Khosrow ghavami, presidente da NOCMaT (associação de Materiais e Tecnologias Não Convencionais) e também profes-sor do Departemento de engenharia Civil da PUC-rJ. Os belgas da Bamboostic trabalharam no projeto de campo de Camburi, idealizado pelo professor ghavami e realizado através do Depar-tamento de engenharia Civil.

este projeto de desenvolvimento é concebido como um pro-cesso integral de longo prazo no qual dois fatores, o bambu e o Detalhe das dimensões dos bambus utilizados nas construções, Camburi.

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turismo, têm papel importante. O objetivo principal é a redução da pobreza através da construção de casas de bambu a baixo custo e a criação de uma renda regular através do turismo.

a parte do projeto com o bambu é a realização de construções que serão usadas como abrigo e outras atividades e para o apren-dizado de várias técnicas. Uma pequena equipe de trabalhado-res locais desempregados aprenderá as técnicas necessárias para construir com bambu, o que servirá como base conceitual para levantarem outras construções, que darão teto às pessoas carentes e acomodarão turistas. O objetivo da primeira construção é ter uma base de operacões, um espaço de ensino e vários quartos pa-ra turistas. Desse modo, o projeto pode ser dirigido por uma base autônoma, formada pelos próprios moradores locais, assegurando, assim, que nenhuma organização governamental, ou de outra na-tureza, será necessária para a continuidade do projeto.

a construção deve ter um design atraente e de valor arquitetô-nico por duas razões: expandir a atividade econômica (turismo) e estimular as pessoas a usar uma madeira barata como material de construção eficiente e visualmente atraente.

O bambu é um material local disponível, barato, facilmente renovável e é uma fonte multifuncional, caracterizado por sua grande força e leveza. O bambu é uma alternativa ecológica de construção em madeira. esta planta cresce rápido. em três anos tem-se o material adequado para construção, ao contrário dos 20 ou até 30 anos para a madeira. Diferentemente das árvores em geral, a colheita não mata a planta do bambu, então não há pro-blema de erosão. O bambu oferece uma oportunidade para que se possa “plantar” sua própria casa. Numa área do tamanho da construção pode crescer bambu suficiente para erguer essa cons-trução em cinco anos. No sexto ano pode-se realizar duas cons-truções da mesma plantação; no sétimo ano, três construções, e assim por diante.

O aprendizado da técnica de construção em bambu do Projeto Bamboostic pelos moradores do bairro de Camburi.

Uma construção de bambu realizada em Camburi, 2004.