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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH Mulheres no romance Margem d’Água: Bandidas ou Reprimidas do amor romântico

Parte Escrita Mulheres Em Margem Da Água

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Mulheres no romance Margem d’Água: Bandidas ou Reprimidas do amor romântico.

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Page 1: Parte Escrita Mulheres Em Margem Da Água

Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

CFCH

Mulheres no romance Margem d’Água:

Bandidas ou Reprimidas do amor romântico

Recife

2015

Page 2: Parte Escrita Mulheres Em Margem Da Água

Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

CFCH

Mulheres no romance Margem d’Água:

Bandidas ou Reprimidas do amor romântico

Aluna: Isabella Puente de Andrade

Professora: Christine Rufino Dabat

Disciplina: História da China Contemporânea

Recife

20152

Page 3: Parte Escrita Mulheres Em Margem Da Água

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................................4

I. MARGEM D’ÁGUA COMO FERRAMENTA DE COMENTÁRIOS HISTÓRICOS E

POLÍTICOS.................................................................................................................................5

II. MULHERES BANDIDAS OU REPRIMIDAS DO AMOR ROMÂNTICO...........................7

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................10

IV. REFERÊNCIAS...................................................................................................................11

3

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INTRODUÇÃO

Ao fim da dinastia Yuan nascia a dinastia Ming, na conturbada China imperial

do século XIV caracterizada por enaltecer os valores confucianos, num período de

extrema pobreza e sofrimento para a população camponesa. No ano de 1368, em meio

ao cenário caótico de ascensão dos Ming, é publicado, da autoria de Shi Naian, o

romance Shui Hu Zhuan, traduzido como Margem d’Água por J. H. Jackson, em 1937.1

Literatura vernácula, tornou-se um dos Quatro Grandes Clássicos da literatura chinesa.

Naquela China Confuciana, os temas desse romance constituíam perigo para

inspiração, visto que trazia o mais perigoso dos valores confucionistas: o direito à

rebelião. A história conta as aventuras de 108 bandidos da margem do Liangshan

provenientes de todos os níveis da sociedade; desde pequenos funcionários públicos do

império a oficiais do exército imperial, soldados, aristocratas escolarizados, clero taoísta

e budista.

Margem d’Água mostra ser um romance que caracteriza a sua época, discutindo

em seus pormenores a consistência dos valores confucianos em toda a sociedade chinesa

imperial. Contudo, para além de seu tempo, apesar de seus 650 anos, essa obra inspirou

verdadeiras revoluções, à exemplo da Revolução Cultural de 1949, bem como o

pensamento do próprio Mao Tsé Tung2. O banditismo social de Margem d’Água, tanto

conduz à uma análise dos “heróis” retratados, como atenta para a representação das

mulheres e uma compreensão crítica de como eram vistas.

Inseridas numa sociedade patriarcal e de duro tratamento com o gênero

feminino, já era de esperar que, no romance, as mulheres seriam retratadas em

momentos obscuros de suas vidas, relegadas geralmente ao destino que seus maridos,

irmãos ou pais as impusessem. No entanto, mesmo que em ínfima quantidade, aparecem

na obra três mulheres que fogem completamente do padrão imposto: ao invés de donas

de casa sofridas em casamentos arranjados, são bandidas como os outros homens de

Liangshan. Assim, reprimidas de viver um amor romântico ou bandidas e guerreiras, a

1 LOWE, Edwin; Prefácio-Introdução; In. NAIAN, Shi; The Water Margin: Outlaws of the Marsh;

Vermont U.S.A., Periplus Editions, 2010. p.13

2 Idem. p.40 4

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representação da mulher em Margem d’Água sai do mero lugar passivo e melancólico

da mulher chinesa, e nisso se destaca em relação aos outros Grandes Clássicos.

I. MARGEM D’ÁGUA COMO FERRAMENTA DE COMENTÁRIOS

HISTÓRICOS E POLÍTICOS

O romance Margem d’Água carrega muitos dos elementos constitutivos da

sociedade pertencente à China imperial do século XIV. A forma como os personagens

bandidos se apresentam reflete uma união do bando como confucionistas virtuosos.

Justiceiros, fugidos de uma sociedade dura, injusta e de oficiais corruptos do governo

Song. Sem, no entanto, deixar a lealdade ao imperador, o qual era tido pelos bandidos

como incorruptível.

Na sua essência, a ordem sócio-política de Confúcio é um sistema ético baseado

em um quadro de obrigações recíprocas e morais. Na época da Dinastia Song, através de

uma absorção sincrética de meta-conceitos físicos derivados do budismo, taoísmo e

crenças populares, o confucionismo havia se desenvolvido em um sistema ético e moral

abrangente: enfatizava a ordem social e o papel do indivíduo como parte de um grande e

social todo cosmológico3. O indivíduo era obrigado a cultivar e regular "a si mesmo",

ética e moralmente, através da observação das virtudes da benevolência, retidão,

propriedade, lealdade, sabedoria, confiança e piedade filial.

Dentro dessa ordem, o fracasso ou a ausência de ética e moral exemplificado

pelo Imperador e ministros resultou em uma discórdia sistêmica ao longo de toda a

sociedade. O declínio da vivência regrada pelo confucionismo teria levado a um colapso

de não apenas valores éticos e morais, mas também de ético e moral comportamento,

levando a desordem civil e social. O resultado de tal momento subversivo foi a perda do

Mandato do Céu4.

Juntamente aos sinais e presságios que apontariam para a perda do mandato do

Céu, seria inequívoco o direito do povo a se rebelar e instalar um novo líder escolhido

3 Idem. p.27

4 O Mandato do Céu é o conceito que assegura a legitimidade do poder do rei/imperador, visto que esse

poder provinha de uma aprovação do céu. Idem. p.29.5

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pela população e aprovado pelo Céu. É aqui nesta reciprocidade da ordem sócio-política

de Confúcio e a perda do Mandato do Céu que está o cerne da história Margem d’Água.

Os bandidos são rebeldes leais, virtuosos, justos e benevolentes, comprometendo seus

crimes e às vezes atrocidades contra o injusto, em nome da lealdade ao imperador Song.

De acordo com Hobsbawm, cabe aos historiadores não utilizar uma análise vaga

do perfil dos bandidos que tonaram-se símbolo para a população camponesa. Sendo o

banditismo social um fenômeno em geral ocorrido em sociedades que se baseiam na

agricultura, com a China não foi diferente. Os valores confucianos atrelados ao líder

Song Jiang, bem como aos demais bandidos de Margem d’Água, constituem-no num

“ladrão nobre”, aclamado pelo povo, tal qual Robin Wood o foi na Inglaterra.5As

epidemias de banditismo podem refletir a desagregação de toda uma sociedade, além de

ascensão de novas classes e o surgimento de novas estruturas sociais, a resistência de uma comunidade inteira ou de povos à destruição de suas maneiras de viver. Ou podem refletir, como se vê na história da China a exaustão do ‘mandato divino’, a decomposição social que não se deve a forças adventícias, mas que marca o fim iminente de um ciclo histórico relativamente longo, prenunciando o fim de uma dinastia e o surgimento de outra.6

Assim, num cenário de caos social, os bandidos de Margem d’Água encontram

terreno para, com seus atos ilícitos, manifestarem o direito a rebelião. Este, garantido

pela perda do Mandato do Céu, devido à crise ética e moral da sociedade, de um

governo corrupto e distante dos valores confucianos. Sendo perigoso para inspirar os

jovens chineses, o romance foi proibido durante as dinastias Ming e Qing.

No século XX, porém, a obra recebe grande visibilidade por inspirar o líder do

Partido Comunista Chinês, Mao Tsé Tung7. O revolucionário não só levou uma cópia de

Margem d’Água durante a Longa Marcha, mas em seus escritos sobre a revolução e a

guerra civil, em muitos momentos utilizou citações do romance. Nos suspiros finais da

Revolução Cultural, quando tanto da "velha cultura" das artes tradicionais tinham sido

destruídas, Margem d’Água foi surpreendentemente reavivado e republicado sob a 5 HOBSBAWM, Erick J.; Bandidos; Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitária, 1975. p.13

6 Idem. p.17

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orientação do "Bando dos quatro", liderado pela esposa de Mao, Jiang Qing. De fato, o

romance serviu como ferramenta alegórica de comentários históricos e políticos tanto na

dinastia Ming como quase 600 anos mais tarde, na Revolução Cultural.

II. MULHERES BANDIDAS OU REPRIMIDAS DO AMOR

ROMÂNTICO

Enquanto os heróis Liangshan servem para ilustrar expressões inflexíveis de

virtude confuciana, o destino das vítimas de seus crimes "de virtude" servem para

ilustrar as consequências de quando até mesmo os comportamentos mais virtuosos são

levados para o extremo. Os exemplos mais óbvios desta forma de "virtude confucionista

extremista" são claramente encontrados nos destinos das mulheres adúlteras, Yan Poxi,

Pan Qiaoyun, e Madame Lu. Não só são assassinadas em nome da virtude de Confúcio,

mas também submetidas ao mais bárbaro e brutal tratamento.

Essa forma de tratar as mulheres, mais complexa que o mero cumprir de um

comportamento ético e moral, reflete não só os extremos de brutalidade em nome de tais

valores, mas também uma sociedade patriarcal e, consequentemente, de valorização à

figura do homem. Nos romances chineses, a passividade da mulher perante as vontades

dos homens ao seu redor são ainda mais intensificadas com o constante desvalio do

amor romântico, visto como imoral e subversivo.8 Enquanto o amor entre duas pessoas

solteiras foi a força motriz dos romances ocidentais e islâmicos, na China o amor

romântico quase sempre foi subordinado à moralidade.

Em Margem d’Água, quando as mulheres comuns não são apenas a “esposa de

alguém” na trama, são colocadas em momentos de terríveis desencontros por

cometerem o grande erro de tentarem ser donas de suas escolhas. A história de Yan Poxi

é um bom exemplo, uma mulher adúltera num matrimônio com o herói Song Jiang, e

um trágico final. Através de infortúnios constantes, Yan Poxi acaba sendo morta por

Song, o qual trava um sórdido diálogo com a mãe da moça, logo após sua morte.9Apesar

8 MYIAMOTOIS, Yoko; Demystifying Confucianism; Dan Poynter's Ebook Awards Finalist, 2011.

9 NAIAN, Shi; The Water Margin: Outlaws of the Marsh; Vermont U.S.A., Periplus Editions, 2010. p.446 7

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do cruel assassinato de sua filha, Madame Yan concorda que Yan Poxi não era uma boa

menina e que Song estava certo em matá-la, agradecendo-o por ser generoso.

A perversidade do patriarcado esconde o assassino e mostra apenas o herói, que

em nome da moral, tira a vida de uma mulher adúltera e de pouco valor, ainda sendo

aclamado pela própria mãe da moribunda. Ainda como uma ferramenta de análise, o

destino de Yan Poxi, assim como de outras mulheres no romance, revela a triste

realidade das mulheres chinesas e de sua condição inferior naquela sociedade.

Por outro lado, fazendo jus ao título de obra revolucionária, Margem d’Água

traz três mulheres excepcionais na história, bandidas e guerreiras como os demais

homens do bando de Liangshan, são elas: Sun Er Niang, Gu Dasao e Hu San Niang.

Destoando do comum das mulheres chinesas da época, essas mulheres, principalmente

as duas primeiras, não levavam qualquer jeito ou aptidão pra os trabalhos domésticos,

destacando-se nas artes marciais.

Sun Er Niang é descrita como tendo uma aura assassina ao seu redor. Usava

maquiagens pesadas no rosto e foi apelidada de “Feiticeira” devido ao seu ar sombrio,

assustando até mesmo os homens.E não só ela, a bandida Gu Dasao possuía

características peculiares diante da condição da mulher chinesa: Gu chegava a gritar

com seu marido, além de ser capaz de lutar com 20 a 30 inimigos sozinha, e por isso

apelidada de “Tigresa”. Hu San Niang, apesar de atender mais aos padrões impostos à

mulher, sendo descrita como “mais educada”, era também uma grande guerreira, tal

qual evidencia-se em algumas passagens da obra, como

Hu San Niang, apelidada de ‘Dez Pés de Aço’, era uma piloto experiente, e podia lutar com uma espada em cada mão (...) Hu San Niang, a ‘Dez Pés de Aço’ chicoteou seu cavalo e correu para uma luta. Ela era muito hábil com a espada.10

Mulheres guerreiras e tão hábeis quanto os homens, as bandidas do Liangshan,

apesar de suas características distintas, segundo Yoko Myiamotois, eram consideradas

mulheres socialmente indesejáveis. Além de, no caso de Sun Er Niang e Gu Dasao, não

10 Idem. p.923-9428

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possuírem os atributos desejáveis de beleza feminina11, sua falta de tato para a arte

feminina tradicional, como serragens e bordados, assustava os homens, que

fetichizavam a “mulher frágil” e submissa, em detrimento da mulher independente.

Com todo o seu potencial de mulher guerreira e temível, até mesmo Hu San Niang vê-se

relegada a um destino decidido por homens, infeliz com o marido que a ela é imposto,

escolhido por Song Jiang.

Desse modo, exceto para as bandidas formidáveis Sun Er Niang e Gu Dasao, há

poucas mulheres felizes descritas em Margem d’Água. Esposas são mencionados

apenas de passagem, descritas apenas quando estão sem sorte ou em outras situações

com diversos estorvos em seus caminhos. A maioria das outras mulheres de destaque na

história são descritas como indignas de confiança, trazendo nada além de problemas

para os homens, como Yan Poxi. Contra o pano de fundo desses episódios lamentáveis,

é reconfortante acompanhar a história das bandidas, nadando contra a corrente da

mulher chinesa integralmente submissa.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O romance Margem d’Água, sendo um dos Quatro Grades Clássicos rendeu

mais de 650 anos de alegorias com o contexto sócio-político chinês. De fato, o ditado

11Sun Er Niang e Gu Dasao pussíam cinturas grossas e o atributo desejável da beleza feminina era a

cintura delgada esbelta, além de não possuírem os pés atados. 9

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chinês que alerta que “os jovens não devem ler Margem d’Água”, o qual buscava conter

qualquer tipo de rebelião, estava seguro dos perigos encontrados em se inspirar nessa

obra. Tal fato confirmado pela revolução ocasionada por Mao, o qual não nega,

inclusive enaltece, sua paixão pelo romance. O banditismo social praticado pelos 108

bandidos às margens do Liangshan ainda é, segundo Edwin Lowe, pauta de debates

entre historiadores tais como Erick Hobsbawm, que buscam investigar as semelhanças e

os porquês de bandidos atrozes como Lampião ou próprio Song Jiang serem aclamados

pelas populações camponesas, símbolos para inspiração.

Talvez se o romance não tivesse sido proibido nas dinastias Ming e Qing, o

debate sobre a situação da mulher tivesse sido levado com mais fervor. O reflexo do

patriarcalismo chinês encontrou um feliz refúgio na composição das personagens

bandidas. Apesar da naturalização dos crimes contra mulheres adúlteras, do papel

secundário e incômodo da mulher comum, relegadas a aparição de meras esposas, as

aventuras de Sun Er Niang, Gu Dasao e Hu San Niang são ferramentas de

questionamento, de percepção do valor e capacidade que uma mulher, quando não

limitada por duras imposições masculinas, pode ter na sociedade.

IV. REFERÊNCIAS

HOBSBAWM, Erick J.; Bandidos; Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitária, 1975.10

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LOWE, Edwin; Prefácio-Introdução; In. NAIAN, Shi; The Water Margin: Outlaws of

the Marsh; Vermont U.S.A., Periplus Editions, 2010.

MYIAMOTOIS, Yoko; Demystifying Confucianism; Dan Poynter's Ebook Awards

Finalist, 2011.

NAIAN, Shi; The Water Margin: Outlaws of the Marsh; Vermont U.S.A., Periplus

Editions, 2010.

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