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Revisão da Literatura
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PARTE I – REVISÃO DA LITERATURA
1. A Criança E A Família: Ontem E Hoje
“A evolução da família nos tempos pré-históricos (...) consiste numa redução constante
do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que
originariamente abarcava a tribo inteira” (Engels, 1974, p.63).
Engels (1974) relata que foi entre os gregos, que encontramos a nova forma de família.
“Enquanto a situação das deusas na mitologia, como assinala Marx, nos fala de um
período anterior, em que as mulheres ocupavam uma posição mais livre e de maior
consideração, nos tempos heróicos já vemos a mulher humilhada pelo predomínio do
homem e pela concorrência das escravas. (...) A existência da escravidão junto à
monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao
homem, é o que imprime desde a origem um carácter específico à monogamia – que é
monogamia só para a mulher, e não para o homem”, carácter que se conserva na
actualidade (Engels, 1974, p. 82).
Mas não foi só a instituição da família que sofreu alterações ao longo dos tempos.
Antigamente as crianças eram a força do trabalho. Durante a Idade Média, a criança
pequena rapidamente passava a jovem adulto ao iniciar o processo de aprendizagem de
uma profissão. Este facto, frequente na época, não constituía uma situação de graves
consequências afectivas. A família não era, neste período, um lugar de afectividade, mas
sim um espaço de entreajuda que tinha como fim a sua sobrevivência (Ariès, in
Sebastião, 1998).
Segundo Cabral (1994), hoje em dia, a situação sofreu grandes e significativas
mudanças, e ganhou novos contornos. Com a duração dos estudos, com a dificuldade
em arranjar casa, com o problema da procura do primeiro emprego, a adolescência vê-se
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prolongada e por esse motivo surge uma situação de grande dependência em relação aos
pais, situação essa geradora de angústias e conflitos sem precedentes na nossa história.
Actualmente a sociedade ocidental confronta-se com um paradoxo complicado
relativamente às suas crianças (Qvortrup, 2000 in Malho, 2003). O novo conceito de
criança, sistematizado por Rosseau em “Emílio”, revela-nos um ser frágil, dependente e
inocente, tendo, por essas razões originado em toda a Europa Ocidental e América do
Norte grandes campanhas em sua defesa, prolongadas em programas de intervenção no
seio das famílias, destinados a normalizar as práticas relativas à infância (Cabral, 1994).
Para Qvortrup (2000, in Malho, 2003) as crianças nuca foram tão amadas e desejadas
em privado e em contrapartida a colectividade não está capaz de as apoiar capazmente.
Por outro lado, o número de nascimentos está a diminuir e a afeição e o amor para com
a criança está a aumentar. A condição da infância é jogada em duas frentes de
socialização: a família, lugar privado de companheirismo romântico e a escola, lugar
público de instrução e de aprendizagem para a integração. Ainda segundo a mesma
investigadora, Portugal sofreu desde os anos 60 transformações profundas num curto
espaço de tempo. A realidade social portuguesa tem vários contrastes marcados por
profundas clivagens e desigualdades de acesso à infância moderna mas tal contraste é
um destino apetecível para os investigadores numa nova área de investigação.
Tendo em conta este mundo actual em que se vive e que está em completa
transformação, mundo complexo e multifacetado, de acordo com Qvortrup (2000 in
Malho, 2003) não devemos considerar apenas uma infância, um mundo infantil, mas
sim infâncias, mundos sociais e culturais infantis. A mesma autora defende que, embora
a infância esteja relacionada com um conceito posicionado numa ordem geracional, a
noção de infância não pode generalizar-se como uma única categoria social fechada e
indiscutível, pois ela está necessariamente dependente e de acordo com as
“circunstâncias” específicas da vida. A criança é “as suas circunstâncias” (Qvortrup,
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2000 in Malho, 2003; Malho e Neto, 2004). Os mundos infantis, os contextos de vida
das crianças dependem da classe social, do grupo étnico e cultural, do género a que
pertencem ou vivenciam, ou que está na retaguarda, por exemplo.
A circunstância da criança é a sua mãe. Cada um dos parceiros significativos e
preferenciais que vai tendo ao longo da sua existência o serão também, e desde o
primeiro momento. Este no verdadeiro e próprio sentido é a gestação (Santos, 1997 in
Serrano, 2003). Mas para que haja criança/pessoa psicológica é necessário que haja por
parte de quem trata dela e desde o seu nascimento, atitudes maternais (apoio, protecção,
alimentação) e atitudes paternais (separadoras).
“O bebé, imaturo e dependente, desencadeia, através das suas competências e
capacidades, os mecanismos vinculatórios essenciais à sua sobrevivência e ao
prosseguimento do seu desenvolvimento” (Trigueiros, 1998, p. 26). O processo tem
início na relação primária, a dois, para a descoberta através da mãe, de um terceiro, o
pai, ganhando assim um novo espaço, que lhe permitirá construir a sua própria
individualidade. Vai assim conquistando autonomia e, convicto de ser amado inicia a
conquista de um território cada vez mais alargado, descobrindo desta forma os seus
pares com quem partilha e cria novos laços.
A família a que pertence é outra das circunstâncias da criança. A família é ainda, fonte
de satisfação e de insatisfação para a criança. É na família que primeiro aprende; é aí
que também aprende modos de enfrentar “problemas” de acordo com as tradições
culturais e experiências do grupo a que pertence. O sistema familiar é um meio para a
adaptação biossocial. Assim, a família é uma fonte de ajuda activa para a criança se
estiver saudável, é um grupo bem organizado e estável onde o sistema de autoridade é
claro e aceitável, onde a comunicação é aberta e onde os membros exercerão mais
controlo e darão mais apoio (Malho e Neto, 2004; Malho, 2004). Esta ajuda surge
quando a família tem sensibilidade suficiente para os primeiros indícios de mal-estar
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comportamental na criança. É nestas relações interpessoais e na dinâmica que se gera à
volta delas que surge o desenvolvimento das características e competências próprias e
específicas de cada criança.
Consequentemente as experiências sociais que as crianças têm, ou possam ter estão
dependentes dos seus contextos de vida (Bronfenbrenner, 1979; 1986; 1992, in Malho e
Neto, 2004), bem como dos ritmos da vida doméstica, na comunidade e na vida escolar.
É através das experiências vivenciais que a criança selecciona, modifica e cria
percepções e representações sobre o que a rodeia. É a partir das experiências motoras
que a criança realiza o conhecimento corporal, que se compreende e interioriza o sentir,
condição indispensável para a construção da própria existência.
E desta forma caminha ao longo da vida, encontrando em cada etapa espaços próprios
que lhe permitem realizar as tarefas específicas de cada fase do desenvolvimento. Parte
do seio familiar (espaço de afectos privilegiados), sempre omnipresente, para o espaço
social (creche, ama). “Aqui se brinca, se imagina e se prepara o acesso a um novo
espaço, do conhecimento. A rua leva-nos a outros espaços e a outros mundos num
crescente alargamento de experiências, o que corresponde a um maior conhecimento de
si e dos outros” (Trigueiros, 1998, p. 26).
Mas a criança também se desenvolve, brinca, adquire experiência, tem satisfação
quando participa na vida do adulto. Nos dias de hoje é cada vez menos frequente que a
criança participe na vida dos adultos. Por um lado porque os adultos têm pouco tempo
para ela, por outro, porque estão menos disponíveis, por outro ainda, porque a própria
evolução da sociedade torna o trabalho dos adultos muitas vezes demasiadamente
complexo para que a criança possa participar.
Hoje, com as famílias nucleares, com a pouca participação na vida de grupo, já não há
convívio com os vizinhos. A criança limita-se ao convívio da escola e ao convívio da
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família que é, por vezes, uma família nuclear, com poucos componentes (Matos, 1997).
Portanto esta carência de experiência relacional também a leva a uma infância de certo
modo perdida, não suficientemente vivida (Matos, 1997).
Durante as últimas décadas temos vindo a assistir a profundas mudanças na estrutura da
família. Cada vez mais identificamo-la com a família conjugal que vê reduzida a sua
dimensão com a baixa de natalidade. “A crescente independência económica da mulher,
a par do movimento para a igualdade dos direitos, tendem a modificar o equilíbrio das
relações no seio da família nuclear, apontando para uma maior autonomia individual”
(Cabral, 1994, p. 27). Considerando esta questão numa perspectiva histórica podemos
constatar que há efectivamente uma transformação da família no sentido em que existe
uma maior igualdade de oportunidades entre o homem e a mulher.
Existe um aumento das famílias nucleares e uma larga percentagem de crianças que
experimentam as circunstâncias de pais separados. Por outro lado os problemas
resultantes do tempo de trabalho implicam soluções na gestão do tempo de vida das
crianças de forma problemática, passando estas muito tempo sós ou em espaços
previamente organizados (Neto, 1994). Muito deste tempo é passado perante um
envolvimento electrónico em substituição de actividades relacionadas com o jogo de
rua, com os amigos, ou de exploração do espaço físico próximo da habitação. As
limitações conhecidas de liberdade de acção, principalmente nos grandes centros
urbanos, devido a barreiras arquitectónicas e sociais e problemas de segurança, tem
conduzido ao aparecimento de uma cultura motora progressivamente mais sedentária e
paradoxalmente a um aumento significativo do tempo de actividades institucionalizadas
após o horário escolar. Os estudos de investigação mostram como as atitudes parentais
são essenciais para a evolução lúdica e motora das crianças (Cratty; Kooij e Hurk, in
Neto, 1997).
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Estamos a caminhar para um conceito de Homem que se reflecte na preocupação actual
em manter a criança “intelectualmente activa e corporalmente passiva” (Neto, in Arez,
2000, p. 12; Neto e Marques, 2004). As características das sociedades pós-industriais
(hábitos sedentários, stress emocional, maus hábitos de vida do ponto de vista corporal e
actividade física) e o nascimento de uma sociedade de informação que se reveste de
uma padronização excessiva de valores, atitudes e comportamentos, implica a tomada
de consciência das mudanças ocorridas na estrutura familiar, escolar e social (Neto e
Marques, 2004).
É de realçar, no entanto, o que o autor Cabral em 1992 relatava relativamente ao facto
de nos últimos 50 anos, na generalidade dos países ocidentais, se assistir à passagem de
um modelo relacional intra-familiar autoritário para um modelo democrático. “De facto,
se anteriormente o funcionamento da família assentava sobre a autoridade dos pais (em
especial do pai), hoje o exercício da autoridade passa a contar cada vez mais com a
intervenção dos filhos, quer por haver mais comunicação entre os membros da família,
quer porque o funcionamento da família se inspira, em grande parte, nos princípios da
liberdade e da igualdade” (Cabral, 1994, p. 30).
Apesar deste aspecto importante, o espaço urbano tem vindo a deteriorar-se, e as
famílias com filhos têm de se preocupar cada vez mais com problemas como a
insegurança social e a insegurança nas ruas, devido ao aumento desmesurado do tráfego
nas cidades. O espaço urbano está cada vez mais perigoso para as crianças. Por outro
lado tem vindo a aumentar a distância aos centros urbanos dos locais de recreação e
lazer, nomeadamente dos que estão consignados à prática desportiva, tendo como
consequência a diminuição da acessibilidade por parte das crianças e o aumento da
dependência do tempo disponível dos pais ou da utilização dos transportes públicos.
Uma das causas, que têm contribuído para a diminuição da liberdade das crianças
brincarem na rua, nas suas zonas residenciais, entre outras, apontadas por Treuter e
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Doyle (1996) é o facto de ambos os progenitores trabalharem. Temos, nos dias de hoje,
menos adultos em casa que poderiam acompanhar as crianças à rua (Arez, 2000).
“Para a criança a cidade deveria ser um espaço rico de encontros, interdependências,
com vizinhos e amigos, espaço de partilha com os pares de vivências e recordações
comuns. Assiste-se hoje à descaracterização das cidades com desaparecimento de locais
tradicionais de vida e encontro, e marginalização de um largo sector da população,
muitas vezes migrante. Para as comunidades urbanas torna-se fundamental garantir a
preservação de um território, definido por uma cultura e rituais próprios, que promovam
o sentimento de pertença, factor importante na construção da identidade” (Trigueiros,
1998, p.26).
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2. A Criança E O Jogo – Importância No Crescimento
“O conhecimento não provém, nem dos
objectos, nem da criança, mas sim das
interacções entre a criança e os objectos”
(Jean Piaget)
“A brincadeira é para as crianças fonte de profunda satisfação, desafio, prazer e
recompensa, seja barulhenta ou sossegada, suja ou ordeira, disparatada ou séria,
vigorosa ou não exigindo esforço” (Hohmann e Weikart, 2004, p. 87).
À medida que as crianças exploram e brincam no exterior vivenciam muitas
experiências-chave: representação criativa, linguagem e literacia, iniciativa e relações
interpessoais, movimento, música, classificação, seriação, número, espaço e tempo.
Para além disso, este tempo passado no exterior permite-lhes expressarem-se e
exercitarem-se de formas que habitualmente não lhes são acessíveis nas brincadeiras de
interior. Se bem que as crianças dos contextos de aprendizagem activa se movimentem
ao longo do dia, uma vez lá fora envolvem-se em brincadeiras mais revigorantes e
barulhentas. No exterior as crianças respiram ar fresco, exercitam o coração, pulmões e
músculos, absorvem vitaminas, e vêem horizontes mais abertos (Hohmann e Weikart,
2004, p. 433).
A necessidade de actividade física e jogo espontâneo para as crianças é crucial, se não
mesmo decisiva na delimitação de hábitos saudáveis para uma vida activa (Neto e
Marques, 2004; Neto, 2004). Vários estudos têm demonstrado uma elevada correlação
com a saúde física, psicológica e emocional. Os resultados revelam ainda efeitos
positivos do jogo e actividade física no melhoramento da percepção de si próprio, na
eficácia pessoal, na auto-estima, na interacção social e no bem-estar psicológico (Neto,
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in Arez, 2000). A atitude lúdica associada ao desenrolar das actividades motoras,
conferem a exercitação da função e sentido de intencionalidade, que, sendo imediatas,
permitem ao ser humano uma relativa e confortável capacidade de adaptação ao longo
da vida em relação aos desafios do seu envolvimento físico e social (Neto & Marques,
2004).
Jogar/brincar é uma das formas mais comuns de comportamento durante a infância,
tornando-se uma área de grande atracção e interesse para os investigadores no domínio
do desenvolvimento humano, educação, saúde e intervenção social (Neto, 1997).
Os estudos de investigação sobre o jogo, têm vindo a merecer nas últimas décadas um
interesse crescente na comunidade científica a par de uma mobilização internacional
sobre a defesa do direito da criança ao jogo e materializada em múltiplos projectos de
intervenção, sendo algumas dessas razões as mudanças progressivas dos estilos de vida
familiar e a alteração das rotinas de vida quotidiana dos filhos na gestão do espaço e
tempo livre, associada a constrangimentos relacionados a uma diminuição de autonomia
e independência de mobilidade no contexto social - insegurança, intensidade de tráfego
e ausência de espaços de jogo (Neto, 1999; 2004).
As possibilidades de acção (independência ou autonomia de mobilidade) da criança e do
jovem, têm vindo a diminuir drasticamente como consequência de um estilo de vida
padronizado (Pellegrini e Smith, 1998). Alguns estudos demonstram uma diminuição
dos níveis de mobilidade e autonomia das crianças nos meios urbanos e um aumento
considerado preocupante de sedentarismo infantil, comprometendo a vivência de
experiências próprias da idade, isto é, o jogo e a actividade física (Neto, 1999; Piéron,
1999; Van Gills, 1996; Frost, 1992; Moore, Goltsman e Iacofano, 1992; Moore, 1986).
Os espaços de convívio, de socialização, de jogo e de aventura (e.g., zonas públicas da
habitação; pontos de encontro) têm vindo a decrescer de importância nos quotidianos
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das crianças em meio urbano, devido aos constrangimentos relacionados com o
aumento do tráfego automóvel, violência e insegurança.
Esta cultura de rua é fundamental no processo de desenvolvimento da criança,
nomeadamente em experiências de jogo informal e decisivo nas aquisições motoras,
perceptivas e sociais. O aumento progressivo do sedentarismo infantil é proporcional à
diminuição da qualidade ambiental em termos de condições e oportunidades de jogo
livre. Pode constar-se pela análise das rotinas de vida das crianças (Neto, 1997; Serrano
e Neto, 1997), que a gestão do tempo escolar e o tempo adicional passado em
actividades organizadas ou institucionalizadas, não permitem às crianças o uso do
tempo considerado verdadeiramente livre (espontâneo), consequência provável das
transformações urbanas e da construção de imaginários de segurança que os pais têm na
educação dos filhos.
A tendência em institucionalizar as actividades de tempo livre das crianças e jovens é
um dos fenómenos mais intrigantes do fim deste século (Neto e Marques, 2004). A rua é
um espaço potencial de jogo que está em desaparecimento progressivo da cultura lúdica
infantil. Recentes investigações têm-nos mostrado também o efeito da alta habitação em
relação ao padrão de jogo de crianças de idades baixas (Neto, 1997; Serrano e Neto,
1997).
A densidade populacional associada à densidade de tráfego automóvel, tem vindo a
transformar os estilos de vida das crianças das grandes cidades. Os percursos entre a
habitação e a escola e vice-versa e o conjunto de experiências individuais ou de grupos
de amigos, em função do espaço físico disponível, seguem uma orientação adaptável a
essas mudanças no tecido urbano. A importância da maneira como a criança aprende o
funcionamento do próprio envolvimento, considerando os lugares onde passa, joga ou
convive com os amigos, tem permitido a alguns investigadores compreenderem melhor
como se desenvolve esta capacidade de autonomia progressiva em relação ao espaço
físico (Neto, 1999).
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Alguns estudos similares quanto a objectivos, métodos e instrumentos de estudo, têm
procurado compreender como a independência de mobilidade é um factor crucial no
desenvolvimento da criança (Kyttä, 2004a, 2004b; Kyttä, 2002; Clark e Uzzell, 2002;
O’ Brian, Jones e Rustin, 2000; Arez e Neto, 1999; Vercesi, 1999; Heurlin-Norinder,
1996; Van der Spek e Noyon, 1995; Kyttä, 1995; Hillman e Adams, 1992).
O conceito de independência de mobilidade deverá ser entendido numa perspectiva
evolutiva, isto é, como a criança desenvolve ao longo do tempo uma representação mais
consistente do espaço físico (memória, percepção, identificação) bem como uma
liberdade progressiva de acção no espaço quotidiano da vida (Neto, 1999).
Esta capacidade de autonomia de mobilidade face ao envolvimento físico permitirá o
desenvolvimento da liberdade e autonomia em jogo, a descoberta do envolvimento e o
seu funcionamento, a descoberta das relações com o mundo adulto, o sentido da
descoberta e a resolução de problemas, o desenvolvimento de hábitos saudáveis na vida
activa e a prática do jogo e da actividade física, essenciais para o equilíbrio emocional e
psicológico. Esta percepção das possibilidades de acção não se confina apenas ao facto
de a criança poder ir para a escola sozinha, mas também a um nível de independência
mais vasto: poder brincar fora de casa, visitar amigos, ir a clubes ou associações, ir às
compras, etc. (Neto, 1999).
Arez e Neto (1999) fizeram um estudo sobre independência de mobilidade e percepção
do espaço físico, onde constataram que quando são analisadas as acções diárias de
crianças entre os 8 e os 9 anos, verifica-se uma clara superioridade de autonomia de
mobilidade por parte de crianças do sexo masculino, com particular relevo para a
actividade de andar de bicicleta. As percentagens encontradas entre o meio rural e
urbano são significativamente diferentes para o primeiro grupo, principalmente em
actividades de ir para a escola, atravessar ruas e jogar no exterior. Quando comparados
os resultados com estudos em outros países europeus, encontraram-se níveis mais
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elevados de autonomia de mobilidade para as crianças Finlandesas (Kyttä, 1995) e
valores mais próximos das crianças Inglesas (Hillman e Adams, 1992).
Os dados referentes aos percursos realizados de forma individual, acompanhados por
amigos ou por adultos, são demonstrativos no sentido da protecção e segurança seguido
pelos pais, principalmente no meio urbano. Apenas uma pequena percentagem de
crianças faz esses trajectos (escola, rua, etc.) com autonomia pessoal, com ligeira
superioridade para as crianças do sexo masculino e do meio rural. Estes valores revelam
as grandes mudanças ocorridas nas áreas urbanas quanto aos padrões de vida familiar e
os constrangimentos existentes nos quotidianos de vida diária das crianças.
Parece deduzir-se pelos estudos já realizados que a educação para a saúde, procurando
fomentar estilos de vida activa, deve começar na infância a partir de condições de
estimulação oferecidos pela comunidade (espaços verdes, espaços de jogo e desportivos,
etc.), pelas escolas (espaços de recreio apropriados e ensino de Educação Física e
Desporto Escolar) e pelos pais (interacção parental). A apreciação das rotinas de vida e
a independência de mobilidade de crianças nos meios urbanos permitem concluir que a
inactividade física tem vindo a aumentar de forma considerável nos últimos anos
(Bogin, 1999; Piéron, 1999; Arez e Neto, 2000; Neto, 1999; Pereira e Neto, 1999;
Pellegrini e Smith, 1998; Pomar e Neto, 1997; Pereira, Neto e Smith, 1997; Serrano e
Neto, 1997). Ver televisão é uma das principais actividades das crianças nas sociedades
contemporâneas ocidentais, como recurso alternativo às brincadeiras de outros tempos.
É frequentemente visto como uma actividade passiva, requerendo no entanto algum
grau de esforço cognitivo e mental (Hawkins e Pingee, in Matos et al., 1998). Outros
investigadores encontraram uma relação entre o ver televisão em excesso e hábitos de
dieta pobres e um estilo de vida sedentário (Felts, 1992, Groves, 1998, Robinson e
Killen, 1995, in Matos et al., 1998).
A redução de oportunidades e tempo de jogo na infância e adolescência têm
consequências inevitáveis no aumento do sedentarismo e as patologias associadas com o
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aumento de obesidade, stress e doenças cardiovasculares. Um empobrecimento do
reportório motor e dificuldades de adaptação a novas situações são provavelmente o
resultado de uma diminuição de estimulação ocasional (experiências informais em
actividade física e relacionamento social). Admite-se que de uma forma geral 40 a 45%
de crianças e adolescentes sejam sedentários ou insuficientemente activos nas
sociedades mais desenvolvidas (Neto e Marques, 2004). O relativo baixo custo
energético dispendido pelas crianças nas actividades de vida quotidiana (casa, escola e
rua) implica um olhar mais atento no desenvolvimento de estratégias de investigação e
de políticas públicas de modo a ultrapassar este problema complexo da vida moderna.
Neste sentido, a promoção do jogo e actividade física na vida da cidade e da escola,
deverá constituir-se como um indicador decisivo da qualidade de vida (Pellegrini e
Smith, 1998).
Sempre que os investigadores procuraram analisar a origem histórica do brincar e do
jogar concluíram que são resultado da criação dos grupos sociais; actividades
universalmente consideradas como parte integrante das culturas; uma das características
inerentes às sociedades estreitamente relacionada com a educação das suas crianças.
Mas, concluíram, ademais, que o processo de desenvolvimento das brincadeiras e jogos,
no devir histórico dos grupos sociais, se fez em resultado da mudança de lugar da
criança no sistema de relações sociais (Veiga, 1998).
A modernidade propõe que as sociedades façam poucas crianças, faz passar a segurança
destas pela casa e espaços fechados, oferecendo-lhes como alternativa ao seu natural
desejo de rua, campo aberto e muitos iguais, múltiplos brinquedos prontos a consumir.
O dinheiro escasseia menos mas falta aos mais velhos o tempo para o afecto interactivo
e presencial, necessário no tempo de brincar com, e de brincar ao lado de, por que as
crianças passam no seu processo de desenvolvimento (Veiga, 1998).
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Veiga (1998) acrescenta ainda que o tempo para os mais novos tem uma finalidade
única, conceder-lhes espaço para a aprendizagem para que consigam o estatuto a que
todos aspiram, ser adultos. Nos seus processos educativos os grupos sociais servem-se
dos jogos, e o tempo de jogo é um processo único de interacções que permite a
experimentação e a repetição de situações. O jogo tem influências essenciais no
desenvolvimento motor, cognitivo e social durante a infância e adolescência (Neto e
Marques, 2004). Algumas evidências sobre a investigação animal (Byers, 1998; Bekoff
& Byers, 1995 in Neto e Marques, 2004) demonstram as vantagens na infância do jogo
de actividade física no desenvolvimento morfológico do cérebro, e um período sensível
na diferenciação do tipo de fibras musculares. Uma ligação entre a investigação no
âmbito das neurociências e a evolução humana permite colocar hipóteses mais
específicas acerca do papel do jogo no desenvolvimento do cérebro e o controlo de
comportamentos progressivamente mais complexos (Bogin, 2002 in Neto e Marques,
2004). O jogo torna-se numa das formas mais importantes formas de comportamento
humano desde o nascimento até à morte (especialmente durante a infância e
adolescência) e absolutamente essencial na formação da sobrevivência e estruturação do
processo de desenvolvimento humano.
O jogo, o brincar, mais do que uma forma especial de actividade com características
próprias, pode considerar-se uma atitude à qual está ligada um certo grau de escolha,
uma ausência de coacção por parte das formas, convencionais, de usar objectos,
materiais ou ideias. Nisso reside a sua relação com a arte e com as diferentes formas de
criatividade. Brincar ocupa dentro dos meios de expressão da criança um lugar
privilegiado. Não podemos considerá-lo só como um passatempo ou uma diversão: é
também uma aprendizagem para a vida adulta. Ao brincar e ao jogar a criança aprende a
conhecer o seu próprio corpo e as suas possibilidades, desenvolve a personalidade e
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encontra um lugar na comunidade. Poder brincar permite exteriorizar situações
agradáveis e desagradáveis (Solé, 1992).
O jogo do faz-de-conta é fundamental no desenvolvimento global da criança. Por um
lado, porque a ajuda a distinguir o seu self dos outros, por outro, porque lhe propicia
oportunidades de descentração, de tomada de perspectiva empatia. Auxilia ainda na
interacção com amigos e pares e, como consequência de todos estes aspectos, facilita o
seu desenvolvimento social, intelectual, moral e emocional (Lourenço, 1997).
Para Piaget o desenvolvimento intelectual deve-se a uma interacção entre a assimilação
e acomodação. Se a assimilação predomina e o indivíduo relaciona a percepção com a
experiência e adapta às suas necessidades, estamos perante o jogo, ao qual atribui
também uma função biológica enquanto repetição e experiência activa que compila
mentalmente novas situações e experiências (Solé, 1992).
Os jogos contribuem para o desenvolvimento, a acção, a decisão, a interpretação e para
a socialização da criança. Os jogos de regras iniciam-na na organização e na disciplina,
ao mesmo tempo que a ajudam a submeter os próprios interesses à vontade geral. A
partir do jogo em grupo a criança aprende a ser ela própria, a ser um indivíduo, a ver
que também existem os outros e a respeitar a sua personalidade (Solé, 1992).
A mesma autora (1992) salienta ainda que a criança brinca e joga para descobrir as
pessoas e as coisas que estão à sua volta, para se descobrir a si própria e para ser
reconhecida pelos outros, para aprender a observar o seu ambiente, conhecer e dominar
o mundo. Brincar é superar a frustração, distrair-se, divertir-se, investigar, criar, evoluir.
Jogar e brincar permitem crescer, integrar-se, desenvolver-se.
Arez (2000) explica que uma das características mais importantes do jogo é a auto-
determinação. Como nos alerta Gils (1996, in Arez, 2000, p. 26), “ninguém pode ser
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forçado a jogar: podemos ser convidados a fazê-lo, estimulados e até tentados, mas
ninguém pode ser obrigado a jogar. Jogar envolve uma decisão pessoal, um acordo”.
A missão do educador é então ajudar a desenvolver na criança a capacidade de se fazer
a si própria, adaptando-se continuamente a um mundo que muda cada vez mais
depressa, ajudá-la a conquistar certa autonomia e a conhecer o mundo que a rodeia.
“O direito a brincar está reconhecido no princípio 7 da Declaração dos Direitos da
Criança, adoptados pela Assembleia Geral da ONU a 30 de Novembro de 1959, e é
considerado tão fundamental para a criança como o direito à saúde, à segurança ou à
educação” (Solé, 1992, p. 18).
É necessária uma visão de desenvolvimento sustentável no âmbito das “culturas da
infância” na sua vida quotidiana no sentido de assegurar um combate ao progressivo
“analfabetismo motor” e promovendo experiências de jogo e movimento necessárias
para assegurar “estilos de vida saudáveis ao longo da vida” (Neto e Marques, 2004).
Os mesmos autores, enumeram alguns destes constrangimentos relacionados com o
desenvolvimento motor e jogo de actividade física na vida das crianças e adolescentes:
- Aumento do envolvimento electrónico: o impacto das novas tecnologias (culturas de
écran) evoluiu significativamente nas últimas décadas na vida das crianças;
- Aumento da densidade de tráfego: as limitações de espaço disponível junto às
habitações e na cidade em geral, poderá levar a considerar “o jogo de rua” como uma
espécie em vias de extinção;
- Diminuição do espaço de jogo livre: o fenómeno de urbanização e a reduzida e
institucionalizada política de equipamentos de espaço de jogo para a infância não
favorecem o desenvolvimento de experiências de jogo e aventura;
- Aumento de insegurança e protecção: de uma forma geral a família alterou os padrões
de liberdade na educação dos filhos sobre a frequência de espaços exteriores.
Diminuíram as margens de risco atribuídas pelos pais nas actividades de jogo e
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actividade física e aumentaram os “medos de insegurança e abuso” na gestão da vida
diária dos filhos;
- Aumentou a formalidade da vida escolar: são maiores as actividades curriculares
organizadas na escola a par de um menor tempo de actividade livre. Os recreios
escolares não são considerados, na maior parte dos casos, como locais de
desenvolvimento e aprendizagem social;
- Aumento de actividades e jogos institucionalizados: o uso do tempo, espaço e
actividades organizadas (desportivas, artísticas e religiosas) colocam-se como “escolas
paralelas” e como consequência faz desaparecer o tempo verdadeiramente livre (jogo
espontâneo e exploratório); este tempo verdadeiramente saturado de actividades
organizadas tem levado ao desenvolvimento do conceito de “crianças de agenda”;
- Diminuição do nível de independência de mobilidade: alguns dados permitem afirmar
que a autonomia de circulação das crianças no espaço urbano tem vindo a diminuir de
forma significativa nos últimos anos - percursos, percepção do espaço físico e
possibilidades de acção (Serrano, 2004; Malho e Neto, 2004; Neto, 1999; O’Brien,
Jones e Rustin, 2000; Arez e Neto, 1999; Vercesi, 1999; Kittä, 1995; Van Der Spek e
Noyon, 1995; Neto, 1992; Sandels, 1975, in Neto e Marques, 2004).
Revisão da Literatura
20
3. Tempos E Espaços Urbanos
3.1. A Percepção E A Relação Com O Espaço Físico
Neste ponto vamos abordar a questão da percepção e da relação da criança com o
espaço físico e a forma como estes dois aspectos intervém no processo de crescimento e
maturidade da criança.
Como referido anteriormente, Piaget (in Lourenço, 1997) afirma que o conhecimento
físico provém das acções que o sujeito exerce directamente sobre os objectos.
Arez (2000) reforça a importância de focalizar a atenção no papel da motricidade e da
mobilização activa dos sujeitos no desenvolvimento do conhecimento e da
representação espaciais.
Neto (1980) também enfatiza o papel do movimento neste processo, pois permite à
criança encontrar um conjunto de relações (sujeito, coisas, espaço) necessárias ao seu
desenvolvimento motor aprendendo a inter-relacionar o vivido, o operatório e o mental.
A percepção visual do mundo que nos rodeia parece, à partida, ser um processo directo
e frontal por reconhecermos facilmente coisas simples, como objectos de diferentes
tamanhos, formas e cores, a várias distâncias e com diferentes orientações, ou até
realidades mais complexas que impliquem movimento e perspectiva. No entanto, o
simples contacto de olhar com aquilo que nos rodeia não é suficiente para ver o mundo
de um modo ordenado, organizado e previsível. Existe um mecanismo mais elaborado
que se designa percepção.
De acordo com Trevarthen (in Arez, 2000, p. 15) “percepcionar ou fazer algo, é
estabelecer uma relação entre o mundo e a mente”. Rubinstein em 1972 afirma que é na
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21
percepção que se reflecte, por norma, “o mundo dos homens, das coisas e dos
fenómenos que para nós têm um determinado significado, sendo depois estabelecidas
uma infinidade de relações entre eles, cujo resultado é a floração de situações racionais
das quais somos testemunhas e colaboradores” (in Arez, 2000, p. 15).
Segundo Piaget e Inhelder (1993, p. 28), “as estruturas sensório-motoras ou perceptivas
antecipam muito as conquistas futuras da representação espacial”, ou seja, “antes de a
criança ser capaz de imaginar perspectivas ou medir objectos através de operações
efectivas, já está apta a perceber projectivamente e a estabelecer através da percepção
apenas certas relações métricas implícitas”.
Num nível inicial, toda a percepção está inserida numa actividade sensório-motora de
conjunto, no entanto, enquanto a primeira inclui mecanismos muito constantes, a
segunda desenvolve-se de um modo muito sensível com a idade. Como descrevem
Piaget e Inhelder (1993, p. 55), durante o primeiro estádio (até por volta dos quatro anos
de idade) a criança permanece quase passiva em presença dos objectos a reconhecer,
segura e manipula os objectos, mas não os explora visualmente. Durante o estádio dois
(dos quatro aos sete anos) dá-se a afirmação da actividade perceptiva, primeiro por
explorações globais, e a seguir pela análise de índices particulares (por exemplo,
ângulos) e por fim pela análise completa. Por último, no terceiro estádio (sete a oito
anos), assiste-se ao nível das operações concretas, explorações sistemáticas com
retornos a um ponto de partida que serve de referência.
A motricidade, que já estava implicada na actividade perceptiva ou sensório-motora e
intervinha na construção do espaço desde a percepção, é agora necessária na elaboração
da imagem representativa e, em consequência, das representações espaciais intuitivas
(Piaget e Inhelder, 1993, p. 57).
Revisão da Literatura
22
As construções perceptivas e representativas do espaço apresentam um factor em
comum que tem uma importância essencial para a interpretação da intuição espacial em
geral. Este factor é a motricidade. Segundo os autores, a motricidade é a “fonte das
operações, após ter constituído o elemento director das imagens representativas e, sem
dúvida, como é preciso insistir agora, das percepções espaciais mais elementares”
(Piaget e Inhelder, 1993, p.28). “... o movimento intervém não somente desde os inícios
da percepção, mas ainda desempenha um papel cada vez maior graças à actividade
perceptiva” (idem, p. 31) ou sensório-motora.
As relações espaciais são elaboradas graças à motricidade que age em conjunto com o
sensorial. Por exemplo, numa visão em profundidade intervêm uma série de “relações
virtuais” que ultrapassam os dados registados pelos órgãos receptores. Estas relações
são um produto da motricidade, ao passo que os elementos sensoriais preenchem a
função de índice. A actividade sensório-motora permite certas antecipações e
reconstituições (Piaget e Inhelder, 1993, p. 472).
As condições de espaço e as possibilidades de mobilidade vão ser, certamente, muito
importantes para todo o processo de desenvolvimento.
Morato (in Arez, 2000, p. 19) pôs algum ênfase sobre o “papel da motricidade no
desenvolvimento da capacidade de representação espacial da criança”, que constitui um
“alicerce fundamental da construção cognitiva que a criança vai revelar ser capaz de
realizar” (Morato, in Arez, 2000, p. 19). Nesta perspectiva, e fazendo uma ponte para os
objectivos do nosso trabalho, a motricidade, o movimento e, enfim, o comportamento
motor da criança, o qual poderá estar limitado por constrangimentos espaciais de vária
ordem, são cruciais para o desenvolvimento da sua própria representação do espaço, na
maneira como intelectualmente a criança pensa e o imagina, como ela o vê e como age
sobre ele.
De acordo com Malho e Neto (2004), é a partir da apreensão e da compreensão dos
espaços/ contextos imediatos que é possível compreender o ambiente como um todo
Revisão da Literatura
23
orgânico e funcional. E este surge se a criança progressivamente for capaz de
desenvolver imagens ambientais. Estas são um processo duplo entre o observador e o
observado e são baseadas na forma exterior do objecto – seja ele de pequenas e/ou de
grandes dimensões, como a cidade, por exemplo, mas a maneira como tal se interpreta e
se organiza e como se dirige a atenção afecta, por sua vez o que é visto (Lynch, 1982 in
Malho e Neto, 2004). É a imagem mental que permite o desenvolvimento das imagens
ambientais. A imagem mental surge e desenvolve-se a partir da percepção imediata e da
memória da experiência passada. A imagem ambiental por sua vez, é essencial para a
possibilidade de vida, permitindo desenvolver a memória topográfica e
consequentemente a mobilidade intencional (Malho, 2003).
Gibson (1986 citado por Morato, in Arez, 2000), considera que o sistema perceptivo
como sistema inter sensorial, coloca a criança em relação com o envolvimento e com a
informação, que é caracterizada na perspectiva ecológica, pela sua invariância, ou seja,
a informação do envolvimento está, do ponto de vista sensorial, permanentemente
disponível, apenas tem de ser descoberta e não construída. Gibson denomina esta teoria
por teoria ecológica da percepção.
No que diz respeito à relação da criança com o espaço físico constatamos que à medida
que a criança vai crescendo, os seus horizontes espaciais vão-se alargando.
A família é o primeiro espaço da criança, e a casa o seu universo. O grau de
afectividade proporcionado pela família à criança irá afectar profundamente a
construção da sua personalidade: “O ambiente afectivo vai condicionar, positiva ou
negativamente a sua expressão motora e a sua exploração do espaço” (Pimentel, in
Arez, 2000, p. 23).
Para além do aspecto afectivo, a qualidade do espaço é um factor de elevada
importância no desenvolvimento do ser humano. De acordo com Klein e Liesenhoff (in
Revisão da Literatura
24
Arez, 2000, p. 23) o primeiro espaço (constituído pela casa e respectivo espaço
envolvente) pode influenciar de um modo favorável ou desfavorável o desenvolvimento
do comportamento da criança durante o jogo e a actividade física. O mesmo autor
continua explicando que casas pequenas e com poucas divisões, e escassez de espaços
exteriores, são algumas das características urbanísticas que abundam nas nossas cidades
e vilas.
Nas primeiras idades, deve existir uma preocupação em assegurar um papel facilitador
da acção, através do acesso da criança a experiências de movimento diversificadas na
exploração directa de espaços e materiais. A partir dessas experiências é possível a
estruturação do espaço e do tempo à medida que se processa a maturação nervosa (Neto,
1980). O movimento e a mobilidade, o espaço e o desenvolvimento da criança são
factores intimamente relacionados (Arez, 2000, p. 23)
O segundo espaço social da criança é o jardim-de-infância (Pimentel, 1985, p. 42).
Durante este período, dá-se um grande desenvolvimento perceptivo-motor devido às
grandes solicitações de que é alvo, e ao convívio com outras crianças e adultos.
Ao entrar na idade escolar, a criança abandona o espaço puramente familiar tornando-se
mais autónoma. Os amigos passam a ter um grande significado, e, segundo Pimentel
(1985, p. 42), o espaço continua a ter uma grande relevância pois ele é “necessário ao
estabelecimento de relações entre as crianças, ajudando-as a desenvolverem-se
socialmente”.
Entre os seis e os doze anos, o espaço da criança vai-se alargando e ela vai descobrindo
a aldeia ou o bairro. As incursões vão sendo cada vez mais vastas, e vai estabelecendo
relações cada vez mais fora da família. A rua, o bairro, a escola, a casa dos amigos e os
parques, são os locais preferidos pelas crianças pertencentes a esta faixa etária. (Arez,
2000, p. 24) Como o seu grau de autonomia não é ainda muito elevado e a família ainda
protege muito a criança desta idade, à excepção do tempo passado na escola, a casa, a
rua e todo o envolvimento perto da habitação são os locais onde a criança passa a maior
Revisão da Literatura
25
do seu tempo extra-escolar (quando não está em outras actividades como as práticas
desportivas, a catequese, os tempos livres e outras actividades agendadas). No entanto, o
problema que se coloca hoje em dia é a pobreza dos espaços exteriores, em termos de
qualidade: as ruas, os bairros e as zonas residenciais estão cobertos de cimento e asfalto
e de parques de estacionamento, e pobres em espaços verdes e espaços nos quais as
crianças possam brincar livremente e em segurança. É precisamente nesta etapa do
desenvolvimento da criança que surgem os problemas da qualidade do espaço urbano,
da existência de tráfego excessivo, da falta de segurança e da dificuldade de
acessibilidade aos espaços de jogo. Este conjunto de constrangimentos surge
principalmente nas cidades e vilas.
Nilson (1985, p. 2) refere como uma das conclusões retiradas do congresso do IPA
relaizado em Otawa em 1978, a necessidade de as crianças terem acessos seguros a um
grande e diverso leque de espaços perto das suas habitações, os quais não necessitem de
uma supervisão constante por parte dos adultos. A existência de zonas próprias para as
crianças que as façam sentir-se livres para que se desenvolvam em autonomia sem
interferir no espaço de outros (Arez, 2000, p. 25). A vida da cidade é hoje um acto
desesperado de estratégias e acções do mundo adulto (Malho e Neto, 2004). É urgente
pensar a organização da vida da cidade na perspectiva das crianças e dos jovens.
Moore (1987) defende que “a qualidade de vida das crianças é directamente afectada
pelo contexto físico e pela qualidade do envolvimento local”.
As características do espaço tanto podem limitar como potenciar as oportunidades de
jogo e realização de actividades de carácter informal nas crianças.
Uma das conclusões a que Neto (1997) chegou num estudo que realizou no qual o
objectivo era a “Identificação de Obstáculos ao Desenvolvimento da Cultura Lúdica de
Crianças e Jovens do Nosso Tempo”, revelou-nos uma realidade preocupante: a
Revisão da Literatura
26
restrição progressiva do espaço habitacional está a fazer aumentar progressivamente a
dificuldade em a criança fazer amigos. (Arez, 2000, p. 26)
Uma das formas mais naturais de fazer amigos acontece durante o caminho para a
escola, e desta para casa. Contudo, à medida que nos aproximamos dos grandes centros
urbanos, verificamos que o nível de autonomia no percurso casa/escola, diminui
consideravelmente, o que vem dificultar o estabelecimento de novas relações de
amizade entre as crianças.
Mas não é só por este motivo que a situação se revela preocupante. Também no espaço
escolar encontramos situações que merecem a nossa atenção, ou seja, a pobre qualidade
do espaço e dos equipamentos e a pouca consideração que é atribuída ao seu impacto
nas actividades de jogo livre nos intervalos do tempo escolar.
Relativamente ao género, as crianças de ambos os sexos parecem preferir o mesmo tipo
de actividades. No entanto, os rapazes preferem jogos mais activos (Arez, 2000).
Segundo Trenter e Doyle (in Arez, 2000, p. 27), “as implicações da perda da rua como
espaço de jogo para as crianças são profundas. Não apenas as crianças são afectadas,
mas esta realidade traz implicações negativas para os pais, para o envolvimento e, claro,
para toda a comunidade”.
Também Heimstra e McFarling (in Arez, 2000, p. 29), no seu livro sobre Psicologia
Ambiental, focam um aspecto muito interessante quando escrevem que “o
comportamento humano está, de muitas formas, relacionado funcionalmente com os
atributos do ambiente físico”.
“A vida de um indivíduo na cidade está continuamente exposta a uma série
tremendamente variada de características ambientais, algumas possivelmente atraentes,
outras muito ameaçadoras” (Heimstra et al., 1974, p. 93).
Arthur Naftalin (1970) citado por Heimstra et al. (in Arez, 2000, p. 30), aponta alguns
atributos ambientais que contribuem de forma importante para a insatisfação da vida na
Revisão da Literatura
27
cidade, e que são comuns a vários segmentos da população. São eles a alta densidade
populacional que leva à falta de espaço, o crime, a agressão, a violência e as habitações
pobres.
As características do espaço físico e o contacto estabelecido com um envolvimento rico
e estimulante são importantes para o desenvolvimento saudável e harmonioso do
indivíduo, tanto a nível físico como psicológico. A dimensão e a qualidade do espaço
habitacional e as relações cordiais estabelecidas com quem se partilha o mesmo bairro
ou rua, parecem ser factores determinantes para a satisfação residencial (Fried e
Gleicher; Zehner in Arez, 2000, p. 32).
As características do envolvimento físico podem também influenciar em larga escala os
padrões de comportamento dos indivíduos, por exemplo, o facto dos habitantes de
determinado local serem mais ou menos fisicamente activos. De acordo com King et al.
(1995) e Sallis e Owen (1997) citados por Sallis et al. (1997, p. 345) os envolvimentos
físicos têm a capacidade de facilitar ou limitar a actividade física (Arez, 2000, p. 33).
A título conclusivo, relativamente às questões previamente focadas, gostaríamos de
deixar algumas considerações com o objectivo de procurarmos respostas adequadas para
a pergunta: O que fazer com a realidade que se impôs na nossa sociedade, no que diz
respeito, obviamente à situação das crianças nas grandes cidades?
“A razão pela qual os esforços compensatórios dos pais têm pouco efeito na vida diária
e no desenvolvimento dos seus filhos, reside na qualidade das actividades de
substituição que são oferecidas” Huttenmoser (in Arez, 2000, p. 55). Sabemos que
qualquer tipo de actividade que uma criança faça acompanhada por alguém que a
supervisione, está sempre restringida a limites temporais inerentes ao tempo disponível
do adulto que a está a acompanhar. Comparativamente com estas crianças, para as que
possuem espaços acessíveis e seguros nas imediações das suas residências, não é
Revisão da Literatura
28
excepção estarem a brincar quatro ou cinco horas num dia em que o clima o permita. Se
tivermos em consideração a questão de ganho de tempo de jogo e de lazer, as duas
situações não têm comparação possível. Por outro lado, “este tipo de envolvimento
oferece à criança a oportunidade de realizar as suas actividades de modo independente
sem quaisquer restrições, pois as regras são da sua autoria, e não existem condicionantes
impostas por terceiros” (Arez, 2000, p. 55).
Huttenmoser (1995) defende que os espaços de jogo públicos (parques infantis, parques
de lazer) parecem não compensar na totalidade as crianças em termos da oferta de
actividades. “Contêm restrições várias quer em termos de espaços quer em termos de
materiais e nem todos são acessíveis para as crianças, encontrando-se por vezes longe
das habitações, exigindo um acompanhamento por parte de adultos que irão
supervisionar a sua actividade” (Arez, 2000, p. 56). Por não conhecer as outras crianças
que brincam no mesmo espaço, torna-se muito difícil concretizar qualquer tipo de
actividades em grupo e a criança acaba por, na maioria das vezes, brincar sozinha.
Para alguns autores, como Cunningham (1995), os espaços de jogo públicos são, no
entanto, uma parte importante do envolvimento do jogo e do lazer.
Revisão da Literatura
29
3.2. Realidade Urbana: Contextos Sociais Opostos
Este trabalho tem como um dos objectivos determinar se existe ou não uma
diferenciação no desenvolvimento da independência de mobilidade, no sentido da
autonomia da mobilidade do corpo no espaço de vida de crianças de contextos sociais
diferenciados no meio urbano. Este ponto tem como finalidade situar este aspecto, do
ponto de vista de vários autores.
A noção de identidade é central na compreensão e explicação das interacções e relações
entre os grupos (Murrel, 1998). É através de experiências directas e indirectas que os
indivíduos vão construindo a sua identidade (Tajfel e Turner, 1986). Parte da identidade
é formada nas (e pelas) relações sociais dos indivíduos, e está associada à pertença a
categorias sociais ou grupos de pessoas. Esta identidade, denominada por Tajfel (1978)
de identidade social, é definida como a “parcela do auto-conceito do indivíduo que
deriva do seu conhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos) social, juntamente
com o significado emocional e o valor associado àquela pertença” (Tajfel, 1981, in
França e Monteiro, 2002, p. 5).
O critério determinante da pertença é que os indivíduos se definam e sejam definidos
pelos outros como membros de um determinado grupo (Tajfel e Turner, 1986). A
pertença o indivíduo a um grupo atinge o seu significado quando comparada com a
avaliação das diferenças entre esse e outros grupos. De modo que esses outros grupos
são um instrumento e um pretexto para a construção, manutenção e defesa da identidade
social (Monteiro e Ventura, 1997). A comparação pode resultar numa identidade social
positiva, na preservação e valorização da identidade e favoritismo do próprio grupo,
caso o grupo seja avaliado positivamente; ou numa identidade social negativa, caso a
avaliação do próprio grupo seja negativa (Tajfel, 1978; Tajfel, 1981; Tajfel e Turner,
1986, in França e Monteiro, 2002).
Revisão da Literatura
30
A identidade é composta por várias dimensões que variam de um pólo individual e
privado para um pólo inter grupal, público e contextual (Jackson e Smith, 1999; Trew e
Benson, 1996). Estas dimensões englobam aspectos tanto cognitivos, e emocionais
quanto motivacionais (Smith, 1997).
Ellemers, Kortekaas e Ouwerkerk (1999), propõem que a identidade social possui três
dimensões distintas, uma cognitiva, outra avaliativa e ainda a emocional. A dimensão
cognitiva é composta pela auto-categorização, que os autores definem como a
consciência cognitiva da pertença de alguém a um grupo social. A dimensão avaliativa é
representada pela auto-estima, que consiste na conotação de valor positivo ou negativo
associado ao grupo social. (França e Monteiro, 2002).
E, por fim, a dimensão emocional é composta pelo compromisso emocional, que
consiste no envolvimento emocional com o grupo. (França e Monteiro, 2002).
A avaliação emocional da pertença tem sido estudada no campo da auto-estima (Hutnik,
1991; Milner, 1993; Tajfel e Turner, 1986; Trew e Benson, 1996). Corenblum, Annis e
Tanaka (1997) afirmam que “a auto-estima das crianças é influenciada pela visão
predominante na sociedade a respeito do seu grupo” (França e Monteiro, 2002, p. 15).
As crianças de estatuto socioeconómico alto experienciam a “consistência avaliativa
entre os afectos positivos associados à pertença ao seu próprio grupo e o valor atribuído
a este pela sociedade, de modo que a sua auto-estima é acentuada por identificarem-se
com os membros do seu grupo” (França e Monteiro, 2002, p. 15).
Pelo contrário, as crianças de estatuto socioeconómico baixo, experienciam a
“discrepância entre o afecto positivo, relativo ao desenvolvimento de atitudes para o
próprio grupo, e o afecto negativo, associado à percepção da avaliação social
desfavorável do seu grupo” (França e Monteiro, 2002, p. 15). Essa avaliação
desfavorável pode ser superior nas crianças com mais de 7 anos, devido ao pensamento
operacional concreto, ou seja, crianças de grupos maioritário e minoritário podem
Revisão da Literatura
31
compreender o estatuto do seu grupo e como ele é percebido pelos outros (Yee e Brown,
1992; Corenblum, Annis e Tanaka, 1997, in França e Monteiro, 2002).
Relativamente a Lisboa, cidade na periferia da qual foi realizado o presente trabalho,
Sebastião (1998) refere que com o desenvolvimento dos mercados fundiário e
imobiliário, que ocorreram em simultâneo com o crescimento da indústria e dos
serviços, desencadearam-se mecanismos muito fortes de segregação sócio-espacial da
qual resultou a “expulsão” de certos grupos sociais de zonas mais valorizadas para
espaços periféricos degradados. A migração deste grupo (constituído essencialmente por
jovens) para a periferia da cidade teve como consequência o envelhecimento e a
tercialização do centro da cidade e realçou a permanência de pobreza urbana (Sebastião,
1998).
O mesmo autor (1998) refere ainda que o resultado deste processo foi a estruturação de
um território dividido, no qual que as camadas sociais mais desfavorecidas ocuparam,
durante o processo migratório, os espaços periféricos caracterizados pela
marginalização, e consequentemente de menor valor, e alguns as redondezas do centro
da cidade, locais onde a pressão para saírem era constante. Este processo agravou-se
com os movimentos migratórios provenientes de África, de onde chegam, ainda hoje,
desde a independência das colónias, milhares de pessoas, numa tentativa de fuga da
fome e da guerra, criando, no entanto, novos problemas sociais e culturais.
“As situações de marginalidade são geralmente consideradas como uma fatalidade em
meios vistos como maioritariamente dominados pela pobreza, desagregação familiar,
habitação degradada, baixa escolaridade, consumo de drogas, etc., sem se procurar
entender se essas afirmações possuem alguma base real” (Sebastião, 1998, p. 4).
Revisão da Literatura
32
Tendo como objectivo estudar a influência da variável classe social em adolescentes do
sexo masculino que viviam nos E.U.A., Psathas (1957, in Fleming, 1997), realizou um
estudo no qual verificou que os resultados indicavam que nas classes sociais mais
baixas se dava mais autonomia aos filhos nas “actividades fora de casa” e “actividades
relacionadas com a idade”. A vida nas famílias de classe baixa, segundo Erickson (in
Psathas, 1957) é organizada de forma menos rígida, pelo que menos exigências são
feitas à criança, o que o levou a concluir que os padrões menos rígidos nas classes
baixas levam a maior independência devido a um treino positivo para a independência,
mas a um maior abrandamento do controlo parental, verificando-se maior
permissividade quer nas actividades exteriores quer nas que se relacionam com a idade.
Nye (in Psathas, 1957) considera que o ajustamento pais-adolescente é melhor nos
níveis sócio-económicos elevados, onde os adolescentes obtêm resultados mais
elevados no sentimento de serem amados e de terem confiança nos pais (Fleming,
1997). No seu estudo, Psathas verificou que, algumas famílias restringiam a autonomia
nas actividades fora de casa, mas promoviam-na na tomada de decisão, na expressão de
ideias, opiniões e juízos dentro de casa (Psathas, in Fleming, 1997).
Relativamente à nossa realidade, podemos observar hoje em dia, e tendo em
consideração as características de cada região, uma grande quantidade de iniciativas
relacionadas com o melhoramento dos espaços urbanos, parques de jogo, jardins ao ar
livre e iniciativas de apoio a instituições públicas e privadas (Neto, 1997).
Contudo, para compreendermos a influência da realidade urbana nas pessoas, torna-se
importante clarificarmos o próprio conceito de cidade: de acordo com Lynch (1982 in
Malho, 2003) a cidade é o habitat natural do homem civilizado. É na cidade e com ela
que nasce, se amplifica e fixam as mais variadas manifestações da natureza humana. O
homem, sem ter plena consciência da sua obra ao criar a cidade, é afinal recriado por ela
mesma (Park, 1929; Wilheim, 1996; Sachs-Jeantet, 1996, in Malho, 2003).
Revisão da Literatura
33
As pessoas são e fazem parte activa da vida da cidade (Malho, 2003). Park (1929, in
Malho, 2003) refere ainda que é no meio urbano – num mundo construído pelo homem
– que surge a vida intelectual e a aquisição das características que distinguem os
homens dos outros animais (a linguagem, a imaginação...). A capacidade de criar e
desenvolver espaços é um símbolo da humanidade, e é na relação entre nós próprios e
os objectos que se desenvolve e cria a significação daquilo que rodeia o homem; é a
condição para que haja percepção e comportamento.
É na cidade que se desenvolve a maioria das experiências das novas formas de família e
é também neste contexto que os hábitos quotidianos de vida se estão a transformar
radical e aceleradamente (Neto, 1999). As condições de habitação têm consequências
imediatas no “clima” e na organização da família. Têm um efeito nos ritmos e nas
rotinas quotidianas das crianças. Estas por sua vez, estão aceleradamente a transformar-
se; o tempo espontâneo, da imprevisibilidade, da aventura, do risco, do confronto com o
espaço físico natural está a dar lugar ao tempo organizado, planeado, uniformizado.
Revisão da Literatura
34
4. Autonomia E Mobilidade Da Criança
4.1. Competências Sociais
O que são as competências sociais?
No nosso dia a dia passamos grande parte do tempo rodeados de pessoas: os nossos
pais, os nossos amigos, os nossos colegas de trabalho, os nossos chefes, etc. Por isso é
importante saber estar com estas pessoas para que todos se sintam bem (Matos, Simões
e Carvalhosa, 2000).
O comportamento social é, num sentido lato, um conjunto de acções, de atitudes e
pensamentos que o indivíduo apresenta em relação aos outros, à comunidade, e a ele
próprio. A qualidade desta interacção é resultante da conjugação de dados inatos com os
processos de socialização.
As dificuldades de relacionamento interpessoal aparecem-nos muitas vezes ligados a
outros problemas pessoais, escolares e sociais, como por exemplo, condições
psicopatológicas, insucesso escolar, consumo de aditivos (álcool, drogas,
medicamentos) e comportamentos sociais desviantes (Matos, Simões e Carvalhosa,
2000).
O conceito de competência social é um conceito de difícil definição por poder ter várias
nuances de acordo com os vários autores que o tentam definir. Uns (Argyle, 1969,
1981) privilegiam as componentes observáveis do comportamento, tanto não verbais
(contacto visual, expressão facial, gesticulação, postura, tom de voz), como verbais
(começar uma conversa, recusar, elogiar). Outros autores (Meichenbaum, Butler e
Gruson, in Boisvert e Beaudry, 1983) consideram sobretudo os aspectos cognitivos
(crenças, expectativas, auto-verbalizações), acrescentando ser impossível definir
Revisão da Literatura
35
“competência social”, uma vez que esta está sempre parcialmente dependente de cada
situação.
Desta forma talvez possamos dizer que a competência social traduz-se, pois, numa
avaliação de um comportamento social enquanto comportamento adequado. No entanto,
“o mesmo comportamento social às vezes considerado adequado outras vezes é
considerado inadequado às circunstâncias, dependendo das variáveis como quem faz o
quê, com quem, como, em que contexto, com que finalidade, com que resultado, uma
vez que os padrões de relacionamento interpessoal variam grandemente de cultura para
cultura e dentro da mesma cultura com a idade, sexo, estatuto sócio-económico e
educação” (Matos, Simões e Carvalhosa, 2000, p. 163).
Segundo Boisvert e Beaudry (1983), uma definição de competência social deverá ter em
conta comportamentos observáveis e aspectos cognitivos, bem como as consequências
de tais comportamentos sobre o envolvimento social.
Para Hargie, Saunders e Dickson (1987), a competência social consiste num conjunto de
condutas interrelacionadas, dirigidas para um objectivo, que podem aprender-se e que
estão sob o controlo do indivíduo.
Para Trower, Bryant e Argyle (1978), uma pessoa pode considerar-se socialmente
inadequada se não é capaz de afectar a conduta e os sentimentos dos outros.
Para Caballo (1987) a “competência social é o conjunto de comportamentos emitidos
por um indivíduo, num contexto interpessoal, que expresse sentimentos, atitudes,
desejos, opiniões, direitos, de um modo adequado à situação, respeitando as condutas
dos demais, e que, geralmente, resolva os problemas imediatos, minimizando a
probabilidade de futuros problemas” (Matos, Simões e Carvalhosa, 2000, p. 164 ).
Meichenbaum, Butler e Gudson (in Caballo, 1987) referem que é impossível definir
competência social uma vez que esta está dependente do contexto – o que é apropriado
para uma situação pode não ser para outro. A competência social tem também de ser
Revisão da Literatura
36
enquadrada por marcos culturais como o sexo, a idade, o estatuto sócio-cultural e a
educação (Matos, Simões e Carvalhosa, 2000).
Bellack (1979) afirma que não existe nenhuma definição de aptidões sociais que seja
universalmente aceite, para além de nenhuma delas ser suficientemente abrangente de
forma a poder representar adequadamente todo o trabalho feito nesta área (Nogueira,
2000).
Waters e Srouf (Nogueira, 2000, p. 22) definem a competência social como “...an ability
to generate and capitalize on opportunities in the environment”. Neste sentido apontam
alguns sub componentes da competência social:
1 – Os indivíduos devem contribuir para as situações, por exemplo, através das
respostas que podem dar aos outros e das questões que lhes podem colocar;
2 – As crianças devem obedecer a certas regras sociais;
3 – Os sujeitos devem possuir uma série de alternativas: responder, mudar de tópico,
pedir esclarecimentos;
4 – A escolha das alternativas deve ser apropriada às situações;
5 – Os sujeitos devem estar motivados para responder;
6 – Os sujeitos devem ser capazes de se socorrer de estratégias de forma a manter as
interacções.
Digamos que “a intervenção na área dos problemas de comportamento social deslocou-
se de uma perspectiva da diminuição dos comportamentos considerados inadequados,
concentrando-se em ajudar os indivíduos a desenvolver ao máximo as suas capacidades
pessoais e relacionais, através da aquisição de novas competências sociais” (Matos et
al., in Nogueira, 2000, p. 24).
Revisão da Literatura
37
Deste modo o meio, as circunstâncias e a matriz biológica parecem ser determinantes no
processo de desenvolvimento do indivíduo e reflectem-se no seu produto ou modos de
expressar facetas desse produto (Malina, 1987).
O termo competência remete-nos para a capacidade de interacção, de adaptação ao meio
cultural do indivíduo. Tanto os aspectos genéticos como os do envolvimento são
constituintes do sistema de desenvolvimento.
Enquanto que os genes traçam o percurso do desenvolvimento, as oportunidades para a
experimentação são necessárias para que o desenvolvimento ocorra (Scarr, 1992; Scarr
e McCartney, 1983; Schull, 1990).
O desenvolvimento de competências motoras é tarefa fundamental da infância.
A actividade física parece estender ainda a sua influência aos domínios do auto-conceito
e da auto-estima. Por auto-conceito entende-se a percepção que cada um tem de si
próprio, enquanto que a auto-estima refere-se ao valor que cada um atribui face ao auto-
conceito.
A noção de que cada um tem de si próprio altera-se com a idade (Harter e Pike in
Gomes, 1997), como se alteram outro tipo de noções onde a experiência vai
promovendo novos estádios de conhecimento.
Revisão da Literatura
38
4.2. Independência De Mobilidade Na Criança
Como já referimos anteriormente, actualmente, e devido a factores como a insegurança
em espaços públicos, receio pela segurança física e emocional das crianças, estas
passaram a viver de uma forma mais “controlada” pelos adultos e a não poderem, como
acontecia naturalmente com as gerações passadas, usufruir de liberdade, fundamental no
desenvolvimento de cada um.
A autonomia, ou independência de mobilidade, é fundamental para o desenvolvimento
da representação do espaço na criança, para que lhe seja possível aprender a orientar-se
espacialmente num mundo que deveria conhecer bem (Arez, 2000).
Há mais de uma década atrás Wohlwill e Heft (1987, in Kittä, 2004a; 2004b) referiram
que a investigação se deveria debruçar nas formas que a criança utiliza para controlar o
seu envolvimento através da manipulação dos objectos e da exploração do ambiente.
Até então, a liberdade das crianças para explorar o ambiente e para criar uma relação
individual com o mesmo era tida como certa. Actualmente esta situação mudou (Gaster,
1992, in Kittä, 2004a; 2004b). As possibilidades para a criança se mover livremente no
espaço diminuíram em muitos países. As restrições para a mobilidade no espaço
aplicam-se principalmente a crianças de países desenvolvidos, enquanto que a liberdade
para brincar em crianças de países em desenvolvimento é condicionada por outros
factores, tais como a exploração do trabalho infantil (Punch, 200 in Kittä, 2004a;
2004b).
Na investigação da independência de mobilidade em crianças, existem pelo menos três
tipos de definições e operacionalizações: nos primeiros estudos, a mobilidade era
analisada através da medição da distribuição territorial das crianças. Distribuição
territorial significa a distância geográfica da casa da criança até outros locais onde a
mesma é autorizada a deslocar-se para brincar e socializar (Van Vliet, 1983 in Kittä,
2004a; 2004b). Mais tarde a independência de mobilidade é definida como uma
Revisão da Literatura
39
“autorização” para a criança se mover independentemente no ambiente. Os estudos que
usam o terceiro tipo de definição medem o nível de mobilidade actual da criança num
certo período de tempo através por exemplo de diários (Kittä, 1997, Tillberg, 2001 in
Kittä, 2004a; 2004b; Arez, 2000).
O conceito de independência de mobilidade deverá ser entendido numa perspectiva
evolutiva, isto é, como a criança desenvolve ao longo do tempo uma representação mais
consistente do espaço físico (memória, percepção, identificação), bem como uma
liberdade progressiva de acção no espaço quotidiano (Neto, 1999; 2004; Malho e Neto,
2004). A independência de mobilidade é entendida como a capacidade de autonomia, ou
seja, a possibilidade de tomar decisões por si própria, de mobilidade face ao
envolvimento físico, das “possibilidades de acção” que a criança está capaz de realizar.
Esta possibilidade de ser e estar capaz de “se movimentar e deslocar” no espaço,
permite-lhe “pensar e agir” em função dessa experiência. Permite-lhe um Ser, um Eu
próprios (Malho e Neto, 2004).
Vários estudos (Hillman e Adams, 1992; Kittä, 1995; Heurlin-Norinder, 1996; Van Der
Spek, e Noylon, 1995; Vercesi, 1999; Arez e Neto, 1999 in Malho e Neto, 2004; Kittä,
2004) vêm defendendo a independência de mobilidade como um factor “crucial no
desenvolvimento da criança”. Um dos melhores indicadores para analisar a
independência de mobilidade na criança é tentar saber a maior distância percorrida por
ela sozinha e/ou com amigos da mesma idade, ou com idade próxima; analisar o trajecto
casa/escola/casa mais comummente feito pelas crianças; qual o meio de transporte
utilizado nesse percurso pois a distância é um dos factores mais limitantes nessa
independência; quem acompanha a criança nos seus percursos diários mais comuns;
quais os motivos referidos pela criança para a frequência ou não de locais públicos; na
realização ou não de visitas a colegas... (Malho e Neto, 2004).
A apreciação das rotinas de vida e independência de mobilidade de crianças dos meios
urbanos, permitem concluir que a inactividade física tem vindo a aumentar de forma
Revisão da Literatura
40
considerável nos últimos anos (Serrano, 2004; Serrano e Neto, 1997; Neto, 2001;
Bogin, 1999; Piéron, 1999; Arez e Neto, 1999; Pellegrini e Smith, 1998 in Neto, 2004;
Kittä, 2004a; 2004b). Estes estudos confirmam que o nível de independência de
mobilidade no espaço físico por parte das crianças nos percursos casa-escola,
conhecimento das características dos espaços próximos e percepção e memória dos
locais de jogo, tem vindo a diminuir largamente quando se considera “as culturas de
vida lúdica das crianças” nas grandes cidades. As actividades de exploração do espaço
físico são particularmente importantes no desenvolvimento de representações cognitivas
do envolvimento e essenciais para a organização de um sistema coordenado de
referências (Kittä, 1995). A ausência dessas experiências por parte das crianças, sem
capacidade de independência no seu envolvimento físico, poderá levantar a suspeição de
que muitas delas apresentam um repertório lúdico empobrecido, níveis preocupantes de
sedentarismo e uma problemática capacidade de adaptação a novas situações (Neto,
2004).
Nesta caminhada pela conquista da autonomia, Hohmann e Weikart (2004) relembram
que a acção, por si só, não é suficiente para a aprendizagem. Para compreenderem o seu
mundo imediato as crianças necessitam interagir de forma consciente e reflectida sobre
ele. Segundo os mesmos autores o “processo de aprendizagem é entendido como uma
inter-relação entre as acções do aprendiz, orientadas para um objectivo, e as realidades
ambientais que afectam essas acções” (2004, p. 22).
Segundo Kittä (in Arez, 2000) “o papel das actividades de exploração do envolvimento
é especialmente importante para as crianças até aos nove anos, no sentido da
organização de um sistema coordenado de referência” (p. 35). Van der Speck et al. (in
Arez, 2000) acrescentam que o meio envolvente deverá ser ele próprio fonte de
estimulação para a realização de diversos tipos de actividades e continuam explicando
que “se for permitido e possibilitado às crianças o acesso a uma grande variedade de
Revisão da Literatura
41
actividades e de experiências no seu envolvimento, elas serão encorajadas a
experimentá-lo, a investigar e a solucionar problemas” (p. 35).
Com o objectivo de descobrir de facto quais são as principais causas que conduzem a
esta alteração na dinâmica familiar e comunitária, e quais as suas reais consequências,
foram realizados em vários países, e por diferentes investigadores, trabalhos de
investigação científicos.
Como referência apresentamos de seguida uma breve descrição de alguns destes
trabalhos e consequentes resultados.
Em 1992 Hillman et al. (in Arez, 2000) publicaram um estudo longitudinal realizado em
cinco escolas de zonas diferentes de Inglaterra com crianças dos sete aos onze anos. Os
investigadores aplicaram questionários às crianças no ano de 1971 e repetiram o
procedimento em 1990, dezanove anos depois, nos mesmos estabelecimentos de ensino.
Após o tratamento dos dados, os autores concluíram que a idade é o factor mais
determinante para o número de restrições impostas às crianças no que se refere à
independência de mobilidade. Com o aumento da idade também aumenta a
independência, principalmente na autorização para atravessarem a rua sozinhos e fazer o
percurso de ida e volta casa-escola. Verificaram ainda que aproximadamente três
quartos das crianças mais novas eram acompanhadas à escola pelos pais, em oposição
com apenas um terço do grupo de onze anos. No entanto, mesmo no grupo de onze
anos, a maioria dos inquiridos não tinha autorização para viajar sozinho de autocarro.
“Apesar de a grande maioria possuir bicicleta própria, apenas uma em cada seis das
crianças de sete anos e uma em cada duas do grupo de onze anos está autorizada a
utilizá-la nas ruas principais” (Arez, 2000, p. 36).
A idade não parece ter grande influência no número de actividades realizadas durante os
fins-de-semana, assim como a proporção de actividades que realizam sem serem
acompanhados por adultos. Esta aumenta progressivamente desde mais de um terço para
Revisão da Literatura
42
o grupo mais novo até um pouco menos de dois terços para as crianças de onze anos.
Relativamente às diferenças entre os dois géneros, os autores encontraram algumas bem
evidentes, “nomeadamente quanto à independência de mobilidade, às atitudes dos pais e
aos tipos de viagens que os filhos podem realizar. As raparigas são menos autorizadas
que os rapazes a atravessar ruas, ir a actividades de lazer sozinhas, vir da escola, andar
de bicicleta nas ruas, andar de autocarro e sair depois de escurecer, contudo, parecem
não se importar tanto com as restrições como os rapazes” (Arez, 2000, p. 37).
Quando comparamos alguns dos resultados do estudo realizado em 1971 e novamente
em 1990, encontramos grandes discrepâncias como por exemplo, a percentagem de
crianças que podiam ir para a escola sozinhas, que em 1971 era de 80% e em 1991 era
de apenas 9%. Constataram ainda, entre outros aspectos, que a liberdade pessoal e a
liberdade de escolha que era permitida a uma criança de sete anos de idade de 1991, só é
permitida, após dezanove anos, a uma criança que tenha mais dois anos e meio, ou seja,
com cerca de nove anos e meio.
Em 1995, Kittä, uma Psicóloga Ambiental Finlandesa, desenvolveu um estudo no qual
comparou três comunidades com diferentes graus de urbanização: uma cidade, uma
pequena cidade no meio rural e uma pequena aldeia. A amostra do estudo foi
constituída por 78 crianças de oito anos, às quais foram aplicadas todos os quatro
instrumentos de avaliação: um questionário para as crianças, um questionário para os
pais, uma entrevista dirigida feita às crianças e o preenchimento de um diário de
actividades. “Um dos objectivos deste estudo era o de saber quais os efeitos do
urbanismo na liberdade das crianças. Curiosamente, os resultados demonstraram que
não existiam diferenças nas três comunidades quanto à proporção do número de
percursos que as crianças fazem sozinhas, acompanhadas por amigos e acompanhadas
por adultos” (Arez, 2000, p. 38). Quanto à liberdade das crianças para atravessarem a
rua sozinhas, irem brincar sozinhas fora de casa e fazerem o trajecto da escola a casa
Revisão da Literatura
43
também sozinhas, a percentagem é muito elevada nas três comunidades, 88 a 100% das
respostas.
À semelhança do estudo de Kittä (1995), em 2000 Ana Arez, Psicóloga Portuguesa,
desenvolveu um estudo no qual pretendia verificar, por um lado, se as características do
envolvimento físico (rural/urbano) influenciam as rotinas de vida das crianças
portuguesas, a sua independência de mobilidade e a percepção das possibilidades de
acção do envolvimento, e por outro lado, verificar se existem diferenças entre as
crianças dos dois géneros nas suas rotinas de vida, na independência de mobilidade e na
percepção das possibilidades de acção do envolvimento físico. Este trabalho de
investigação obteve como conclusões gerais as seguintes (Arez, 2000):
As crianças realizam a maioria dos trajectos diários acompanhadas por adultos;
O carro é meio de transporte mais utilizado para levar as crianças à escola e a
actividades extra-curriculares;
A competência ganha mais tarde pelas crianças foi a autorização para atravessarem
as ruas sozinhas e
Os principais factores limitadores da independência de mobilidade nas crianças
referidos pelos pais são o perigo do tráfego, seguido do receio de assaltos e molestações
por parte dos adultos.
Outros autores/investigadores como Heurlin-Norinder (1996) na Suécia, Van der Spek
et al. (1995) na Holanda, ou Hüttenmoser (1995) na Suiça (in Arez, 2000),
desenvolveram estudos semelhantes e, apesar dos resultados serem diferentes de país
para país, todos eles são unânimes nas suas conclusões: a independência de mobilidade
tem sofrido um grande decréscimo em todos os países analisados.
A principal causa encontrada por estes autores para justificar este fenómeno é a falta de
segurança crescente devido ao aumento do tráfego automóvel. Como segundo motivo
Revisão da Literatura
44
causador desta situação, os autores encontraram a falta de segurança nas ruas,
nomeadamente o perigo de molestações e assaltos.
Sabemos, no entanto, que o contacto directo, livre e espontâneo com o nosso meio
envolvente, é fundamental para um desenvolvimento equilibrado e saudável. A criança
que cresce nestas condições é mais autónoma e sã, é uma criança que domina bem o
meio no qual está inserida e que está mais apta para lidar com situações do dia-a-dia,
bem como os imprevistos devido à sua maior resiliência (capacidade de se reconstruir)
(Cyrulnik, 2001), a qual foi adquirindo através das suas experiências. Esta criança
também tem mais amigos por estar inserida num contexto onde é mais fácil estabelecer
um maior número de contactos sociais com outras crianças e adultos. A criança que
cresce e se desenvolve num ambiente com estas características (liberdade e
oportunidades de mobilidade e de realização de numerosas actividades informais)
desenvolve maiores potencialidades, aptidões motoras, criatividade e a socialização.
Baseando-se no conceito de “affordance”, Kittä (1995) pretendeu também saber quais as
actividades que as crianças sabiam possíveis de realizar no local onde habitavam, de
acordo com as vivências e as experiências que possuíam.
“Como era de supor o meio rural oferece um leque de escolhas muito mais alargado,
visto a quantidade e a qualidade dos espaços ser melhor, e se encontrar ao alcance de
todas as crianças (tudo está mais perto do que na cidade). Por outro lado, também se
conclui que, no meio rural, as crianças beneficiam de uma maior liberdade de
circulação, isto é, a independência de mobilidade é maior no meio rural (tanto na aldeia
como na pequena cidade) do que no meio urbano” (Arez, 2000, p. 39). É igualmente
previsível o facto de Kittä ter obtido, como resultado, no que diz respeito à liberdade
das crianças para circularem livremente nas imediações das suas residências, uma maior
incidência na aldeia, seguida da pequena cidade e em último lugar da cidade.
Revisão da Literatura
45
O conceito de affordance é genericamente definido como as oportunidades e perigos
físicos que o organismo percepciona enquanto se comporta num determinado contexto
(Gibson, 1979, 1986; Hefl, 1997 in Kittä, 2004a; 2004b). Ou seja, é a percepção das
possibilidades de acção no espaço físico. O conceito tem o potencial de poder ser
generalizado de modo a incluir oportunidades emocionais, sociais e culturais que o
indivíduo percepciona do ambiente. Enquanto abrange aspectos quer do ambiente quer
do indivíduo, está localizado na interface entre o contexto e a pessoa (Gibson, 1979 in
Kittä, 2004a; 2004b).
O ambiente tem que proporcionar algo que o indivíduo percepcione como oferecendo o
potencial para a actividade, mas a percepção emerge só quando as diferentes
características do sujeito, tais como as suas dimensões e características físicas,
necessidades sociais e intenções pessoais se equiparam às características do ambiente.
As affordances (doravante designadas de possibilidades de acção) podem ser vistas em
termos de estágios ou níveis variáveis. O primeiro nível comporta as potenciais
possibilidades de acção do ambiente que são especificadas em relação a um sujeito e
estão em princípio disponíveis para serem percepcionadas. A quantidade de potenciais
possibilidades de acção do ambiente é infinita. Em contraste, as possibilidades de acção
actualizadas são reveladas através das acções do sujeito (Kittä, 2004a; 2004b). Estas
podem ser diferenciadas em possibilidades de acção aperfeiçoadas (possibilidades de
acção activamente actualizadas) e possibilidades de acção percepcionadas
(possibilidades de acção passivamente actualizadas). No processo da actualização, as
possibilidades de acção são primeiramente percepcionadas e eventualmente usadas ou
aperfeiçoadas numa fase posterior (Kittä, 2003 in Kittä, 2004a; 2004b).
Clark e Uzzell (2002) desenvolveram um estudo para adolescentes com o objectivo de
construir escalas de valores para medir as possibilidades de acção da casa, do bairro, da
escola e do centro juvenil da cidade. As possibilidades de acção avaliadas relacionam-se
com duas necessidades do desenvolvimento na adolescência: a necessidade de locais
Revisão da Literatura
46
para interacção social e locais para refúgio. Participaram neste estudo 539 adolescentes
com idades compreendidas entre os 11 e os 16 anos que classificaram a quantidade de
locais disponíveis para 34 possibilidades de acção diferentes em cada um dos
envolvimentos. Quer o bairro, como a escola e o centro juvenil apoiam a interacção
social e comportamentos de refúgio. O envolvimento casa não apoiou os
comportamentos de interacção social; em vez disso, proporcionou possibilidades de
acção para dois tipos diferentes de refúgio – refúgio envolvendo amigos próximos e
refúgio com o objectivo de procurar segurança. As diferenças de género e de idade, bem
como a frequência de utilização dos envolvimentos foram também exploradas neste
estudo. De acordo com os autores, a teoria de possibilidades de acção de Gibson (1986;
1979) é uma metodologia útil para examinar a significância funcional dos
envolvimentos para grupos de utilizadores diferentes.
Kittä (2002), também com base no modelo de Gibson e na taxonomia de possibilidades
de acção de Helf (1988), desenvolveu um estudo sobre as possibilidades de acção dos
envolvimentos de crianças nos contextos de cidades, pequenas cidades, subúrbios e
vilas rurais na Finlândia e Bielo-Rússia e também uma área neste último país,
contaminada pela radioactividade. O estudo teve como base entrevistas individuais a
crianças Finlandesas (n=98) e Bielo-Rússias (n=143) com idades compreendidas entre
os 8 e os 9 anos de idade. Foram encontradas diferenças significativas entre as
comunidades e entre os países relativamente à disponibilidade, nível (percepcionada,
usada e aperfeiçoada) das possibilidades de acção e na distribuição das mesmas pelas
categorias da taxonomia. Também houve diferenças significativas entre as diferentes
comunidades relativamente à localização das possibilidades de acção: em casa, no
quintal/jardim, nas proximidades ou num local mais distante.
Kittä (2004a; 2005b) construiu um modelo hipotético (modelo Bullerby) onde o grau de
independência de mobilidade e o número de possibilidades de acção actualizadas
Revisão da Literatura
47
covariam em quatro tipos diferentes de envolvimentos para crianças: Bullerby (o
envolvimento ideal); Wasteland, Cell e Glasshouse. O modelo foi aplicado com base
nos dados da investigação de oito bairros diferentes com diferentes níveis urbanísticos,
na Finlândia e Bielo-Rússia. A amostra foi composta por 223 crianças com 8 e 9 anos
de idade, que foram estudadas através de entrevistas individuais e questionários. Os
resultados indicam que os quatro tipos de envolvimentos aparecem nos dados da
investigação. Cada bairro possuía uma combinação única de possibilidades de acção e
independência de mobilidade em termos do modelo. O modelo Bullerby abunda nas
comunidades Finlandesas; os modelos Cell, Wasteland e Glasshouse são os mais
comuns nos dados da investigação da Bielo-Rússia. De um modo geral, a proporção de
modelos Bullerby diminui na medida em que o modelo Glasshouse aumenta.
O presente trabalho utilizou uma metodologia de investigação idêntica à de Kittä (1995)
e de Arez (2000) e, no nosso caso, pretendemos, como supra mencionado, verificar:
Se existe uma diferenciação no desenvolvimento da independência de mobilidade, no
sentido da autonomia da mobilidade do corpo no espaço de vida de crianças portuguesas
de contextos sociais diferenciados no meio urbano;
Se existem diferenças entre as crianças dos dois géneros nas suas rotinas de vida, na
autonomia de mobilidade e na percepção das possibilidades de acção do envolvimento
físico;
Se existem diferenças entre as crianças dos dois contextos sociais quanto às
competências sociais.
Revisão da Literatura
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5. Feminino E Masculino: Diferenças E Semelhanças
O termo “sexo” é utilizado para a classificação baseada na biologia humana, dependente
dos cromossomas que cada indivíduo possui com expressão nos órgãos genitais
(Gilbert, Hallet e Elldrige, 1994), nos órgãos de reprodução e nas hormonas (Reskin e
Padavic, 1994). O género, ao contrário do sexo, refere-se a uma classificação que as
sociedades construíram para valorizar as diferenças entre homens e mulheres já que
permite definir os significados sociais e culturais que são associados a cada categoria
anatómica sexual (Denzin, 1995). O género refere-se, pois, a todas a “características
psicológicas, sociais e culturais que são fortemente associadas com as categorias
biológicas de homem e mulher” (Deux, in Nogueira, 2001, p. 9).
Apesar da existência de grande número de trabalhos que afirmam a inexistência de
diferenças entre os sexos, são muitas as pessoas que continuam a acreditar em distintos
posicionamentos de homens e mulheres face à vida, atitudes relacionadas com o
trabalho ou com a família, motivações, comportamentos e traços de personalidade.
Alguns aspectos, como a independência, a agressividade e a dominância continuam a
ser associados a homens, enquanto outros, como a sensibilidade, a emocionalidade e a
gentileza são associados às mulheres (Powell, 1993).
Por este facto são muito responsáveis os cientistas sociais, por terem contribuído para
que as pessoas acreditassem nas diferenças sexuais (Crawford, 1995) ao criarem e
confirmarem esta crença, quer através da pesquisa, quer através do desenvolvimento de
teorias que se baseiam nas diferenças e que desvalorizando as semelhanças (West e
Zimmerman, 1991). Nesta perspectiva considera-se que as diferenças são concebidas
como “situando-se” dentro dos indivíduos (Nogueira, 2001).
Revisão da Literatura
49
Vários autores insistem e argumentam sobre a necessidade de dar continuidade à
pesquisa sobre diferenças sexuais. Entre eles encontramos autoras como Hyde, Eagly e
Halpern, que no entanto discordam entre si quanto à importância, por exemplo, dos
factores biológicos na explicação das diferenças. Kitzinger, Hare-Mustin e Marecek,
Hollway e Crawford “não acreditam que as diferenças sexuais tenham qualquer tipo de
‘existência, e por isso não devem sequer ser equacionadas” (in Nogueira, 2001, p. 193).
Para Eagly (in Nogueira, 2001, p. 194) “o mais importante na pesquisa sobre as
diferenças sexuais não é situá-las num continuum de magnitude, mas sim a sua
interpretação, isto é, a interpretação que todos os investigadores fornecem para as
diferenças e para as semelhanças”. Pelo facto de serem estas interpretações dos
cientistas que se alastram ao público em geral, são elas que vão afectar o
comportamento das pessoas no seu dia-a-dia e também na vida política pública
(Nogueira, 2001).
Em todas as sociedades nos parece haver um reconhecimento da existência de sexos
diferentes, motivo que conduz ao agrupamento das pessoas pelo seu sexo devido a
diferentes razões (Reskin e Padavic in Joaquim, 1994), “sendo que cada ser humano
quando nasce, na cultura ocidental pertence imediatamente a uma categoria sexual
específica” (Denzin, in Joaquim, 1994, p. 79).
E em todas as sociedades o feminino é desvalorizado. Já para Platão e Aristóteles a
mulher, era vista, em relação ao homem, como “um desvio, como uma relação
imperfeita” (Joaquim, 1994, p. 79).
No pensamento grego (condicionador da cultura ocidental) o homem era o criador da
ordem e da lei, e a mulher estava associada ao desejo e à desordem. Ela era um ser
inferior pela sua natureza. Atribuíam-se à mulher qualidades negativas que a
impossibilitavam de participar activamente de forma igual, na sociedade onde vivia
Revisão da Literatura
50
(Foucault, 1979). O estatuto de objecto que era conferido à mulher fez-se sentir a nível
da filosofia, da medicina ou da ciência (Farge e Davis, in Nogueira, 2001).
“No século XVIII, o iluminismo apresenta-se como um discurso da filosofia que
aparentemente acaba com as diferenças de raça e sexo, mas de forma algo perversa
acaba por justificar a inferioridade da mulher, já que o ‘discurso Iluminista é um
discurso do homem, quer dizer do género humano (...) racional: as distinções de raça e
de sexo esbateram-se, ainda que tenham conservado algumas especificidades” (Crampe-
Casbanet, in Nogueira, 2001. p. 172). A questão é se este discurso Iluminista é dirigido
a todo os homens, então ele é universal, o que nos remete para uma outra questão, a de
sabermos quem tem direito ao universal (Nogueira, 2001).
A partir da segunda metade de século XIX, a divisão do trabalho por sexo entre
emprego e família vai originar inúmeras teorias sobre a natureza dos homens e das
mulheres, cujo objectivo é o de explicar e justificar a posição social dos dois sexos por
disposições naturais (Poeschl, Múrias e Ribeiro, 2003).
A pesquisa acerca das diferenças sexuais está historicamente associada ao desejo
masculino de compreensão da natureza das mulheres (Hare-Mustin e Marecek, 1994) e
está imbuída de conflito e mistificação desde os seus tempos mais remotos (Hare-
Mustin e Marecek, 1990).
Bem (in Nogueira, 2001) afirma que desde Aristóteles até à actualidade, a distinção
entre os sexos afirma-se na superioridade masculina e no seu posicionamento como
grupo de referência.
“A relação entre masculino e feminino é desigual. O género da pessoa marca
ascendência ou submissão social, e é um capital de prestígio. Mas como assenta num
Revisão da Literatura
51
processo de naturalização, a desigualdade não é vista como processo social mas como
realidade ontológica” (Almeida, Amâncio, Perez e Wall, 1994, p. 17).
Vamos tentar, com este trabalho, compreender qual o papel que estas afirmações
desempenham, na questão da mobilidade e da autonomia das crianças na actualidade.