Passarela Dos Escorpiões

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Texto de Jobson Ricciardi.

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  • PASSARELA DOS ESCORPIES

    JOBSON RICCIARDI

  • Hoje quando o relgio marcar dez horas, sero trs dias... Trs dias completos de

    angstia, de espera e de vazio. Quando as palavras j lhe saam com dificuldade, fez

    famlia somente dois pedidos; Um, que o envelope que ele mesmo lacrou, no fosse

    violado. No enquanto ainda estivesse vivo. E o outro... Que somente eu lhe fizesse

    companhia. Mas por qu a neta mais distante? Parece to calmo, to sereno. O que deve

    sentir estando como est? Se no um desejo intenso de viver que ainda o mantm

    preso ao corpo, ser ento o medo de morrer? Ser esse estado um sono simplesmente?

    Mas at quando um sono interminvel ainda sono?

    O silncio em que est mergulhado perptuo demais! s vezes, o vazio de sua

    presena se confunde com o nada. No morreu e j no vive.

    como tentar se guiar por velas apagadas! Que segredos no poderiam ser revelados

    at sua morte? Um homem que sempre prezou tanto pela honra no permitiria que um

    escndalo o acompanhasse no fim da vida. No deve ser isso, sempre teve tanta

    coragem... Tanto poder. O poder...

    O que levaria consigo para o descanso eterno? O que deixaria para os outros? Pode ser

    isso! Uma informao reservada, importante e que no deveria ser dada a todos ao

    mesmo tempo. Mesmo sem saber, eu deveria ser sua predileta e deveria querer, por esse

    motivo, que fosse a primeira a saber! Mas o que ser?

    A doena j o vinha perseguindo h algum tempo... Premeditando a prpria morte deve

    ter elaborado o testamento com certos caprichos que somente a ele cabiam!

    Por toda a minha vida, ao redor de mim sempre esteve a riqueza. Nas mos dos que a

    cultivaram, que a fizeram maior. Mas a morte vem levar a todos implacavelmente,

    deixando viver os que ainda esto em seu tempo. Ser que sonha? Quais sero os seus

    sonhos? E os meus sonhos quando tero vida? Quando a dele se findar? No importa!

  • preciso respeitar o que foi exigido! Eu jurei que no abriria o envelope... Mas isso pode

    levar tempo demais.

    Se pudesse ao menos dar-me um sinal... Dissipar parte desse mistrio. E se a revelao

    for o comeo dos dias negros? Caberia a mim dizer a todos?! No gosto de pensar nisso.

    Uma vez voc me disse que os ces vem os homens como deuses, que so fiis acima

    de tudo. Mas s vezes podem atacar at seus prprios donos. Atacam por medo. Mais

    forte que a honra e todas as virtudes, do medo podem brotar as mais terrveis traies.

    Talvez o contedo, todo esse mistrio deva estar ligado a algum segredo muito mais

    grave. Runa.

    Me perdoe vov, mas somente por medo que fao o que fao...

    (rasga o envelope e tira cuidadosamente a carta, desdobrando-a diante de si.)

    "Querida Valria, sabia que leria essa carta antes que eu partisse, pois sei que sua

    afeio por mim grande como a minha por ti, e sei que teu gnio impetuoso e forte tal

    como o meu, por isso a designei para que me velasse.

    com grande pesar que confesso uma grave falha em minh'alma, que me perseguiu por

    longos anos e se tornou mais forte nesses que so os meus ltimos. Suplico o perdo de

    todos e peo que no julguem com amargura os meus atos.

    Uma fraqueza me impedia de me afastar dos jogos, Deus o sabe. E minha paixo por eles

    consumiu o que ganhei antes deles. Espero que me perdoem e saibam valorizar o pouco

    que deixei com meu corao, corao esse repleto de remorso e dor.

    (Revira a carta aflita e vai at os nomes.)

    "Para Durval, meu primognito deixo os mveis e... (se desespera) - No pode ser!

  • Para Matilda que tanto amo, a carruagem..."

    E Para Valria... " - O ltimo nome, claro! Ele gosta mais de mim, claro... - "Deixo no

    criado-mudo meu maior tesouro...

    (Abre a gaveta e pega a adaga)

    "Uma adaga com o braso da famlia". - Isso?! Isso o maior tesouro?! Uma adaga?! E

    com o braso da famlia... Para qu? Para que eu nunca esquea?! Isso para que eu

    nunca esquea da misria que voc conseguiu e que nos deixou?! Eu sei porque me

    deixou isso! Sim, sei. Foi para que tirasse a prpria vida, no ?! No se preocupe vov,

    eu no fiquei decepcionada, no, de forma alguma, tenho at orgulho do Sr! Prestes a

    partir, ainda se preocupou em me poupar de uma vida de pobreza e desespero. Ou fez

    isso porque era um covarde, incapaz de falar para todos? Evidente! Vou demonstrar um

    pouco de gratido por me confiar toda essa herana.

    (Desfere sobre o corpo vrios golpes at que o cabo da adaga se abre e cai dele um

    papel.)

    "Minha querida Valria, o vu negro do dio pode cegar at mesmo o mais bondoso dos

    anjos. J na infncia, percebi que seu temperamento em muito se assemelhava ao meu;

    inquieta, vivaz... Somente tu poderia livrar-me da priso em que a doena fatalmente me

    confinaria, pois o amor dos meus filhos os tornariam incapazes de o fazer. No te

    preocupes com o futuro querida, o destino e somente o destino conhece e guarda o

    castigo de cada um de ns. No h verdade sobre a falncia em nossa famlia. Deixarei

    para todos o que lhes de direito e reparti com muita justia o que hoje constitui o meu

    patrimnio."

  • "Para meu filho... Valria... E para minha neta... Uma adaga manchada com o crime e a

    liberdade".. A liberdade?

    (Uma voz de sua a chama;)

    - Valria!

    (Ela se golpeia. Black Out)