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Desaguávamos em sala-corredor envernizada, espaçosa, vazia, com um tecto magnífico abobadado em berço e luz natural de clarabóia de ferro e vi- dro amarelo-rosado. Respondendo a três figuras alegóricas pintadas em cada um dos extremos do tecto, havia, no mármore branco e rosa das paredes (onde adossavam 18 pilares duplos), seis painéis a óleo sobre tela de Colum- bano Bordalo Pinheiro, representando 22 personagens desde o século XIII, velhos heróis da pátria (a descrição miúda seria ociosa), que, «no entender de jovens eleitos sussurrava ela , deveriam dar lugar a novos ícones»: às curvas de actriz de seios e pernas sempre disponíveis, a saltimbanco de te- levisão, a chairman ou futebolista com vencimentos obscenos, aos filósofos da bola ralos das noites televisivas, que nos adormecem, e fazem escola sem pensar , a um deputado de esquerda e da moda, muito entrevistado, ultimamente, que troca esta passerelle dos eleitos do povo pelos salões dos grandes estilistas. Os Passos Perdidos anunciou. O nome definia o reino, desde há nove séculos, na diferença entre os visionários D. Henrique e filho Afonso e o desleixo dos actuais representan- tes. Dava um belo título de romance. Um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cris- tão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Quem é João Félix Filostrato? a que se deve esse silêncio? Em iniciativa mediada pela assessora do gru- po parlamentar, Salomé, que promove en- contro com o economista-chefe João Félix Exposto, Nádia e o estagiário João Félix, também narrador, sobressai a jornalista Joa- na, por quem passa a história do eleito por Vila Franca e a solução de alguns enigmas. Na sombra, cresce deputada da oposição, cuja biografia se enlaça na deste. Como se organiza a queda de um anjo? Entre com- portamentos oblíquos e identidades sempre esquivas, um deputado-borboleta da extre- ma-esquerda torna-se vítima de predadoras e perdedoras, que visam vingança em várias frentes. Quase dois séculos de regime parlamen- tar e discursos inócuos ou repetitivos re- flectem outros tantos passos perdidos que a Constituição de 1975 e legislaturas fracas não transformaram. Reflexão sobre a demo- cracia em semana pascal, esta fábula política é salva, no final, por um bem enredado dis- curso amoroso. ERNESTO RODRIGUES (Torre de Dona Chama, 1956) é poeta, ficcionista, cro- nista, crítico, ensaísta, editor literário e tra- dutor de húngaro. Antigo jornalista e leitor de Português na Universidade de Budapeste, é docente na Faculdade de Letras da Univer- sidade de Lisboa. Celebrou 40 anos de vida literária (1973- 2013) com Do Movimento Operário e Ou- tras Viagens, poesia, e A Casa de Bragança, romance. Outros, na ficção: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, 1980; A Flor e a Morte, 1983; A Serpente de Bronze, 1989; Torre de Dona Chama, 1994; Histórias para Acordar, 1996; O Romance do Gramático, 2011. Salientam-se, no ensaio: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tem- pos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Portu- guês (1807-1821), 2008; ‘O Século’ de Lopes de Mendonça: O Primeiro Jornal Socialista, 2008; 5 de Outubro. Uma Reconstituição, 2010. Editou, entre outros: Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Cas- telo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Augusto Moreno, José Marmelo e Silva, An- tónio José Saraiva e Fastigínia, de Tomé Pi- nheiro da Veiga. Com Amadeu Ferreira, seu sucessor à frente da Academia de Letras de Trás-os-Montes, organizou A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmonta- nos, 2 vols. (2011, 2013). ERNESTO RODRIGUES Ernesto Rodrigues Passos Perdidos PASSOS PERDIDOS 9 789727 804764 ISBN: 978 972 780 476 4

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Page 1: PASSOS PERDIDOS - xsl.pt · ultimamente, que troca esta passerelle dos eleitos do povo pelos salões dos grandes estilistas. ‒ Os Passos Perdidos ‒ anunciou. O nome definia o

Desaguávamos em sala-corredor envernizada, espaçosa, vazia, com um tecto magnífico abobadado em berço e luz natural de clarabóia de ferro e vi-dro amarelo-rosado. Respondendo a três figuras alegóricas pintadas em cada um dos extremos do tecto, havia, no mármore branco e rosa das paredes (onde adossavam 18 pilares duplos), seis painéis a óleo sobre tela de Colum-bano Bordalo Pinheiro, representando 22 personagens desde o século XIII, velhos heróis da pátria (a descrição miúda seria ociosa), que, «no entender de jovens eleitos ‒ sussurrava ela ‒, deveriam dar lugar a novos ícones»: às curvas de actriz de seios e pernas sempre disponíveis, a saltimbanco de te-levisão, a chairman ou futebolista com vencimentos obscenos, aos filósofos da bola ‒ ralos das noites televisivas, que nos adormecem, e fazem escola sem pensar ‒, a um deputado de esquerda e da moda, muito entrevistado, ultimamente, que troca esta passerelle dos eleitos do povo pelos salões dos grandes estilistas.

‒ Os Passos Perdidos ‒ anunciou.O nome definia o reino, desde há nove séculos, na diferença entre os

visionários D. Henrique e filho Afonso e o desleixo dos actuais representan-tes. Dava um belo título de romance.

Um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cris-tão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Quem é João Félix Filostrato? a que se deve esse silêncio? Em iniciativa mediada pela assessora do gru-po parlamentar, Salomé, que promove en-contro com o economista-chefe João Félix Exposto, Nádia e o estagiário João Félix, também narrador, sobressai a jornalista Joa-na, por quem passa a história do eleito por Vila Franca e a solução de alguns enigmas. Na sombra, cresce deputada da oposição, cuja biografia se enlaça na deste. Como se organiza a queda de um anjo? Entre com-portamentos oblíquos e identidades sempre esquivas, um deputado-borboleta da extre-ma-esquerda torna-se vítima de predadoras e perdedoras, que visam vingança em várias frentes.

Quase dois séculos de regime parlamen-tar e discursos inócuos ou repetitivos re-flectem outros tantos passos perdidos que a Constituição de 1975 e legislaturas fracas não transformaram. Reflexão sobre a demo-cracia em semana pascal, esta fábula política é salva, no final, por um bem enredado dis-curso amoroso.

ERNESTO RODRIGUES (Torre de Dona Chama, 1956) é poeta, ficcionista, cro-nista, crítico, ensaísta, editor literário e tra-dutor de húngaro. Antigo jornalista e leitor de Português na Universidade de Budapeste, é docente na Faculdade de Letras da Univer-sidade de Lisboa.

Celebrou 40 anos de vida literária (1973-2013) com Do Movimento Operário e Ou-tras Viagens, poesia, e A Casa de Bragança, romance. Outros, na ficção: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, 1980; A Flor e a Morte, 1983; A Serpente de Bronze, 1989; Torre de Dona Chama, 1994; Histórias para Acordar, 1996; O Romance do Gramático, 2011.

Salientam-se, no ensaio: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tem-pos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Portu-guês (1807-1821), 2008; ‘O Século’ de Lopes de Mendonça: O Primeiro Jornal Socialista, 2008; 5 de Outubro. Uma Reconstituição, 2010. Editou, entre outros: Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Cas-telo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Augusto Moreno, José Marmelo e Silva, An-tónio José Saraiva e Fastigínia, de Tomé Pi-nheiro da Veiga. Com Amadeu Ferreira, seu sucessor à frente da Academia de Letras de Trás-os-Montes, organizou A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmonta-nos, 2 vols. (2011, 2013).

ERNESTO RODRIGUES

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dos

PASSOS PERDIDOS

9 789727 804764

ISBN: 978 972 780 476 4