397

Patria Coroada

Embed Size (px)

Citation preview

  • PTRIA COROADA O BRASIL COMO CORPO POLTICO

    AUTNOMO- 1780-1831

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva

    Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto

    Assessor Editorial Jzio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadmico

    Aguinaldo Jos Gonalves lvaro Oscar Campana

    Antonio Celso Wagner Zanin Carlos Erivany Fantinati

    Fausto Foresti Jos Aluysio Reis de Andrade

    Jos Roberto Ferreira Marco Aurlio Nogueira

    Maria Sueli Parreira de Arruda Roberto Kraenkel

    Rosa Maria Feiteiro Cavalari Editor Executivo Tulio Y. Kawata

    Editoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti

    Maria Dolores Prades

  • PTRIA COROADA O BRASIL COMO CORPO POLTICO

    AUTNOMO- 1780-1831

    IARA LIS CARVALHO SOUZA

  • Copyright 1998 by Editora UNESP

    Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Praa da S, 108 01001-900-So Paulo-SP

    Tel.: (011)232-7171 Fax: (011)232-7172

    Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Souza, Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho Ptria coroada: o Brasil como corpo poltico autnomo -

    1780-1831/Iara Lis Franco Schiavinatto Carvalho Souza. - So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1999. - (Prismas)

    Bibliografia. ISBN 85-7139-226-9

    1. Brasil-Histria- 1780-1831 2. Brasil - Poltica e governo-1780-1831 3. Pedro I, Imperador do Brasil, 1798-1834 I. Ttulo. II. Srie

    98-5094 CDD-981.032

    ndice para catlogo sistemtico: 1. Brasil: Histria, 1780-1831 981.032

    Este livro publicado pelo Projeto Edio de Textos de Docentes e Ps-Graduados da UNESP - Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisas

    da UNESP (PROPP)/ Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Editora afiliada:

  • PREFCIO

    Este livro nasce sob o duplo signo da originalidade e da aud-cia. Originalidade na abordagem e audcia em revisitar, com novas lentes, uma temporalidade outrora muito freqentada pela historiografia brasileira: a poca da fundao do Estado nacional no Brasil. O leitor ser surpreendido pela renovao proposta pela au-tora que, sem descuidar do dilogo com a histria poltica do pero-do, busca conhecer a construo de uma imagtica do poder num momento decisivo da histria nacional. assim que faz ressurgir, pela via da anlise simblica, a figura do primeiro imperador do Brasil e isto sem comprometer-se com o anedotrio e o biografismo superficial. Muito pelo contrrio, o tratamento das fontes, as esco-lhas documentais e as estratgias de abordagem do tema revelam uma pesquisadora sria, cuidadosa, criativa, atenta para as pesqui-sas de seus contemporneos nos quadros da ps-graduao brasilei-ra e, sem descuidar da historiografia tradicional, voltada para a atualidade da produo intelectual nacional e internacional.

    Iara Lis realiza um admirvel passeio pelas questes polticas de uma poca que se inicia com a transmigrao da famlia real portuguesa para a Amrica, resultando na instalao da Corte no Rio de Janeiro e na reviso das relaes entre Portugal e Brasil. Sua investigao atravessa o processo de conquista da autonomia pol-tica, a implantao do Estado Imperial e o desgaste poltico que

  • conduz abdicao de Pedro I. Nessa conjuntura, a elaborao da imagem do soberano, como instrumento poltico e de legitimida-de, vai sendo trabalhada desde a recepo e a Aclamao do Rei portugus, nos trpicos, tecitura da imagem do Imperador vin-culada fundao da nova nacionalidade e afirmao do novo Estado monrquico no panorama internacional. Os momentos es-tudados so singulares na histria do Novo Mundo e apresentam peculiaridades que precisam ser redimensionadas tanto na historio-grafia portuguesa como na brasileira.

    Para a histria poltica da velha metrpole esta fase traum-tica, o que se evidencia nas lacunas existentes na historiografia portuguesa. Apesar da renovao das ltimas dcadas, permane-cem insuficientes as anlises no trato da histria poltica do Esta-do, entre a morte de D. Jos I, com a conseqente queda do Mar-qus de Pombal, e a Revoluo de 1820. Enquanto esta ltima foi objeto de inmeras e inovadoras investigaes e anlises, j o rei-nado de D. Maria I, a regncia e o reinado de D. Joo VI foram desprezados pelos historiadores portugueses. A conjuntura apre-senta sutilezas que devem levar os historiadores, dos dois lados do Atlntico, a abrir mo de veleidades nacionalistas para que se pos-sa compreender, com maior profundidade e sensibilidade, o dra-ma vivido por aquela gerao. Precisam ter tambm cuidado para no reeditar, no debate historiogrfico, as contendas da poca, in-correndo num ridculo anacronismo.

    A chamada "inverso brasileira", sem dvida incmoda para o lado portugus, onde o velho reino temia ficar subordinado antiga colnia. Por outro lado, as adeses independncia, feitas na ltima hora, revelam que a opo pelo rompimento dos laos entre os dois reinos e o abandono da condio de portugus do Brasil s comeam a se definir quando as Cortes de Lisboa tentam retomar os laos coloniais. At ento verificava-se a ampla adeso ao projeto poltico de um imprio luso-brasileiro, esboado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, redefinido por Silvestre Pinheiro Ferreira e ou-tros, e que contava com a cumplicidade de ilustres letrados bra-sileiros, como Jos da Silva Lisboa e Jos Bonifcio de Andrada e Silva. O prprio fracasso das inconfidncias est relacionado a pr-ticas de cooptao de letrados brasileiros para as reformas do imp-rio e no apenas s perseguies ideolgicas e violncia da repres-so metropolitana. A radicalizao do processo que conduziu

  • independncia, portanto, no resultou de um avano crescente das revoltas nas Capitanias, mas foi o desdobramento de um complexo quadro de negociaes no interior do modelo monrquico de Estado, onde a Corte do Rio de Janeiro teve um acentuado papel simblico - o que se refletiu nos atos legitimadores da autonomia.

    Procurando compreender a constituio do Brasil como cor-po poltico autnomo, nessa conjuntura, Iara Lis investigou os ri-tuais do poder e a retrica textual e imagtica presente nas expres-sivas representaes adotadas para as festas imperiais. Mas no ficou restrita s aparncias do fenmeno, buscando identificar a dinmica social presente nos festejos. Perseguindo esse objetivo a historiadora volta-se tanto para a elaborao da imagem do rei, como para a sua recepo na praa pblica: lugar de tenso poltica e palco da visibilidade do poder. Tambm so analisadas, de for-ma convincente e adequada, as festas do imperador e sua simbli-ca. Atravs desses acontecimentos rituais, dotados de uma "peda-gogia", procurava-se inserir o pas num "fluxo de civilizao", como acentua Iara Lis. O leitor se surpreender com os rituais das festas de aclamao, que ocorreram em vrias partes do pas, quando da Independncia, e que so admiravelmente narrados aqui. E se deleitar com a histria do retrato do Imperador sendo recebido como se ele estivesse presente, com a sociedade local em festa, e com os sentimentos cvicos se confundindo com os religio-sos. O alcance do livro e do refinado estudo que nos apresenta, porm, no se limitam a esses aspectos enunciados. A autora, com estilo muito prprio e numa narrativa instigante, nos conduz para a reflexo acerca da memria social construda em torno do pri-meiro Imperador: das construes imagticas dos mestres da Mis-so Artstica Francesa at a sua definitiva materializao com a es-ttua eqestre erigida em bronze na praa pblica.

    Iara Lis dedica ainda uma ateno especial para a crise poltica que leva o Imperador a abdicar e onde os espaos pblicos da cida-de, lugares da construo simblica do poder, do lugar aos pro-testos e a um descontentamento generalizado. No corao da cida-de, a persona de D. Pedro I vai se afastando da imagem do Imprio at ser suprimida no 7 de abril de 1831. A abordagem da autora , neste sentido, original e sugestiva, abrindo possibilidades inditas de interpretao do perodo. No lugar de uma histria poltica tra-dicional surge a anlise do simbolismo das manifestaes e das fes-

  • tas que procuravam, agora sem a presena do fundador, uma esp-cie de regenerao da Independncia. Da a autora passa ao exame da transformao da memria de D. Pedro em monumento cvico. Trata-se do primeiro monumento nacional, dedicado fundao da nacionalidade, unindo outra vez a figura do Imperador ao Imp-rio e assentado sobre a representao do territrio. A inaugurao da esttua, em 1862, precedida de um intenso debate poltico nas instituies e na imprensa, onde no faltaram vozes discordan-tes, mas acaba tambm se constituindo na materializao de um mito de fundao e que projeta, definitivamente, o primeiro Impe-rador para um passado distante, novamente associado constru-o da nao, um passado mtico.

    Este livro tem a marca das boas obras, aquelas que permitem prosseguir investigando, que abrem perspectivas e sugerem cami-nhos. Os temas da Independncia, da fundao do Estado imperial, da construo simblica da nacionalidade e da memria da Nao saem revitalizados dessas pginas. Estamos diante de um dos bons frutos dos programas de ps-graduao em Histria da universida-de brasileira, testemunho vivo da sua contribuio para o conheci-mento do pas. No caso em questo, originalmente uma tese de doutorado da Unicamp, os resultados da pesquisa constituem-se num desafio s supersties positivistas que continuam a assolar muitos dos nossos departamentos de Histria, onde a dimenso simblica dos fenmenos humanos ainda vista com desconfiana, como se o imaginrio social fosse sinnimo de falsificao do real.

    Iara Lis, neste seu livro Ptria Coroada: o Brasil como corpo poltico autnomo (1780-1831), teve o mrito de procurar dialo-gar com a produo intelectual do seu tempo, talvez com excessiva generosidade para trabalhos que no esto a altura da sua tese e que mereciam ter sido criticados. impossvel, no entanto, deixar de registrar a sua honestidade intelectual, identificvel na minudn-cia da informao e na localizao das fontes. Assim como notvel a sua elegncia acadmica, especialmente ao citar a contribuio de seus colegas e professores, revelando uma atitude intelectual de quem se dispe permanentemente ao dilogo e troca. Estou certo de que o leitor encontrar, nessas pginas, boas razes para pros-seguir na descoberta de uma nova historiografia brasileira.

    Afonso Carlos Marques dos Santos

  • SUMRIO

    Lista de abreviaturas 11

    Introduo 13

    1 O rei portugus: sua sade, seu povo e a harmonia 21

    2 D. Joo e as vicissitudes do Reino 39 A inverso dos papis: Portugal como colnia do Brasil 57

    Pernambuco: as cores da Repblica 65 O rei portugus e o povo: o pacto liberal do Vintismo 74

    3 As vrias representaes do Brasil: a opo por D. Pedro 91

    4 O Imperador-Contrato 107 As Cortes de Lisboa 112

    A adeso das cmaras 143 A adeso e os tumultos na praa 150 A adeso e o povo do imperador 169

    A esfera de deciso 185

  • 5 As festas do imperador 207 Panormica das festas 213

    Os que assistem, os que preparam, os que participam e quem mais... 214

    As viagens de adeso 237 As festas de aclamao e Coroao 256

    6 O imperador a ser lembrado:

    Debret e Grandjean de Montigny 283

    7 O imperador sem finalidade: 1831 327

    8 O monumento na praa pblica 351 Fontes e bibliografia 367

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    ABN - Anais da Biblioteca Nacional AHP - Arquivo Histrico Parlamentar AHU - Arquivo Histrico Ultramarino

    AN - Arquivo Nacional ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo BGUC - Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

    BNL - Biblioteca Nacional de Lisboa BNRJ - Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro IHGB - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    MNBA- Museu Nacional de Belas Artes Cx. - Caixa

    Cd. - Cdice Doc. - Documento MN. - Manuscrito Pac. - Pacote Res. - Reservados

  • INTRODUO

    Em 1836, na revista Nictheroy, Gonalves de Magalhes afir-mava, ao inaugurar o movimento romntico brasileiro: "No co-meo do sculo atual, com as mudanas e reformas que tem expe-rimentado o Brasil, novo aspecto apresenta a sua literatura. Uma s idia absorve todos os pensamentos, uma nova idia at ali des-conhecida, a idia de Ptria; ela domina tudo, tudo se faz por ela, ou em seu nome".1

    Ele reconhecia a novidade do tema, a fora em sua contempo-raneidade, e tomava para si a importante tarefa de desvelar o pas-sado brasileiro, atravs de suas fontes literrias, submersas na incessante voragem do tempo, mas que ainda pulsam ou esto ador-mecidas no interior do pas, nos arquivos, nos escritos olvidados, na sua natureza prdiga. Enquanto letrado, ele obsessivamente procurava recuperar tal passado, trazendo-o luz, tornando-o vi-svel, conhecido e, nesta medida, o leitor e o prprio poeta desco-bririam o verdadeiro Brasil e sua gente.

    1 Trata-se do artigo "Ensaio sobre a histria da literatura do Brasil", Nictheroy - Revista Brasiliense, Sciencias, Letras e Artes, 1836, t.I, p.152. O lema da re-vista era "Tudo pelo Brasil e para o Brasil".

  • Gonalves de Magalhes justificava sua escolha pela literatu-ra, principalmente graas sua capacidade de atravessar os tem-pos, alcanar a posteridade, e em virtude de sua ligao especular, reflexiva e analgica com o povo:

    a [literatura] o desenvolvimento do que ele [povo] tem de mais sublime nas idias, de mais filosfico no pensamento, de mais herico na moral, e de mais belo na Natureza, o quadro animado de suas virtudes, e de suas paixes, o despertador de sua glria, e o reflexo progressivo de sua inteligncia.2

    No intuito de descobrir o Brasil, ele propunha um estudo sis-temtico e aplicado do passado, de suas runas, localizando a sua insero e, aos poucos, reconstrua a marcha da civilizao em ter-ras brasileiras, revelando enfim a nao. Somente por este cami-nho, o povo reconheceria a si mesmo e sairia de um estado de inr-cia, de imobilidade, para marchar na direo do seu bom e correto futuro, palmilhando uma trajetria civilizada. S assim este povo no se esqueceria de si mesmo, no se alienaria de si, em qualquer passado, mas reconheceria em seu presente o seu prprio passado, enxergando a sua verdadeira identidade nacional. Ou seja, ao des-cobrir a literatura brasileira, de imediato se saberia quem era o povo brasileiro e se desvendaria o prprio Brasil. Assim, o poeta se tornava o autor da nobre genealogia da nao.

    Nesta pesquisa, inverte-se, ou melhor, desconfia-se, desta afir-mao do ser Brasil sobre a literatura, a poltica, a economia e assim por diante. Porquanto, em vez de considerar o Brasil esteio e referncia da literatura, tema primordial do qual ela se nutriria, privilegia-se de que maneira diversos discursos, prticas polticas e sociais converteram o Brasil num ser.3 Trata-se da emergncia his-

    2 Ibidem, p.135. 3 Sobre as contnuas tentativas de reencontrar o "verdadeiro" Brasil na litera-

    tura, ver MEYER, 1993. A nomeao deste problema est em SANTOS, 1985. Quanto s vrias modulaes que engendraram sentidos em Portugal enquanto um Estado e, depois, uma nao, com seus respectivos iderios e modos de retomada ou at mesmo o abandono de um determinado passado, ver: BETHENCOURT & CURTO, 1991.

  • trica do Brasil, enquanto singularidade - em sua prpria histori-cidade. Como se d uma autonomizao deste Estado-nao, um especfico perante o resto do mundo, destacando-se pelas suas idios-sincrasias. Como se edificou o Brasil, enquanto um corpo poltico autnomo, entre fins do sculo XVIII e comeo do XIX. Por isso, persegue-se a instaurao de sua primeira soberania liberal, inde-pendente, centrada e representada em D. Pedro I.

    Talvez caiba apontar que, certamente, o Brasil foi pensado e postulado na condio de nao a partir de 1870,4 e para tanto te-mos bons estudos; tambm bem demarcada a virada intelectual e epistmica ocorrida na dcada de 1930, com Caio Prado, Srgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, sem esquecer o interesse modernista de 1922 em redescobrir o Brasil mais verdadeiro. Enfim, conseguimos localizar essas invenes do Brasil. Fica, po-rm, uma lacuna, uma espcie de ausncia e certa incapacidade nossa de explicar esse primeiro momento do Brasil em sua autono-mia poltica, sem recorrer basicamente ao romantismo. Repare-se, todavia, que no imputo ou amplio o sentido de nao do fim do sculo XIX para o perodo anterior; apenas indico a condio do Brasil enquanto Estado que precisa forjar representaes e catego-rias que lhe garantam tal veracidade. justamente para este ponto opaco que chamo a ateno. Pois ele se tornou opaco e, em certa medida, esquecido, graas a uma srie de estratgias e escolhas po-ltico-sociais, implicando uma gama de conflitos e embates quanto s formas de entender o Brasil.

    Por outro lado, tambm foram essas outras e posteriores rein-venes do Brasil que nos deram suporte material, documental, conceituai, instrumentos, at amarras e apegos, para repor e re-pensar esse momento. Vrios documentos, por exemplo, foram estabelecidos e recuperados por Varnhagen, Mello Moraes, ou eu mesma iniciei esta discusso ao ler Srgio Buarque de Holanda. Gostaria, assim, de salientar que este trabalho mais descortina um horizonte do que o ultrapassa ou o d por explorado.

    4 Aqui, apesar de certas lacunas e discordncias, o trabalho de Jos Murilo de Carvalho (1990) -A formao das almas - fundamental.

  • No se busca a reiterao, a descoberta da origem do pas in-dependente, um ponto cardeal sobre o qual um elenco de projetos vislumbrava o seu (do pas) nascedouro, o que justificaria a grande-za desses mesmos projetos. Tampouco intento uma fidedignidade ao original do Brasil, um lugar remoto, perdido no imemorial dos tempos, que o historiador tentaria resgatar, e, ao faz-lo, retiraria o vu que oculta a verdade mais pura. Vista desta maneira, a tarefa do historiador consistiria em repor e recuperar a inteireza do pas, sua alma mais cristalina. Este trabalho distancia-se da busca da significa-o ideal e idealizada, da identidade primeira que coincidiria com um estado de perfeio perdido ou esquecido em sua forma imu-tvel no fundo dos tempos, escamoteado pelo posterior. No se pretende a venerao e o silncio diante dos monumentos.

    Nessa medida, o livro desprende-se da busca da exatido e re-petio dos fatos, to eloqentes, irrefutveis, da vinda e instala-o da famlia real portuguesa, da abertura dos portos em 1808, da Independncia no 7 de setembro de 1822. Passado este inamo-vvel, impossvel de ser interrogado, tamanha a sua objetividade, que vive no consenso, tal qual um fenmeno natural. Esses fatos alinham-se e inserem-se num tempo vazio e homogneo, onde tudo cabe sem perguntar como se inscreveram no real e a maneira de formul-los. Aponto para uma outra ordem do tempo, diferen-te daquele entronizado quase invariavelmente. Um tempo que permite interrogar o estabelecimento da identidade do Brasil num jogo de diferenas e na inveno de uma memria social. Em ou-tras palavras: diferencia-se um tempo homogneo capaz de abar-car o fato cristalizado e um outro, denso de historicidades, porque sua prpria temporalidade define uma raridade do acontecer, no qual a permanncia, a repetio, a simultaneidade e a descontinui-dade participam e se entrechocam. Entre esses tempos no se esta-belece uma totalidade, dada a radical diferena de suas naturezas. Por isso, quando esses "fatos" ressurgem no bojo deste trabalho, alinham-se e conjugam-se com outras tramas, nas quais perdem sua aura de grandeza e entram no jogo dos acontecimentos, com suas possibilidades e tenses em aberto.

    Cabe tambm indicar que tampouco se aspira a reencontrar o sujeito que enuncia o Brasil, ou quem o denominou num primeiro

  • momento, no instante original e primevo, mas quais as redes de poder, discursivas, festivas, cotidianas que erigem a noo de Bra-sil, enquanto um corpo poltico autnomo. Procuro assinalar as maneiras pelas quais essas redes funcionam e forjam sua primeira soberania enfeixada no primeiro imperador do pas. Essa sobera-nia convoca para junto de si e trava relaes com a noo de con-trato-imperador-festa, abordando o mundo onde os homens go-vernam a si mesmos, isto , o campo do poltico. Tento perceber como se deu a construo sociopoltica de um soberano que tam-bm ficou colado figura de heri nacional, bem como indico que os modos de celebr-lo eram igualmente maneiras de consagrar o Brasil enquanto um corpo poltico autnomo. Estabelece-se a uma espcie de torvelinho, pois, ao mencionar o Brasil ou D. Pe-dro, o outro vem de imediato e necessariamente. Um se faz gmeo e anlogo do outro, ganhando uma condio quase mtica ao se imbricarem naquilo que se consolidou e cristalizou na memria nacional como a origem do Brasil independente.

    Nesta construo da figura do soberano, vem tona toda uma rede de relaes capitaneadas pelas cmaras no Brasil, ao confir-marem e negociarem sua adeso a D. Pedro. De outro modo, estu-do a maneira pela qual vo se esgarando as relaes entre Brasil e Portugal dentro das Cortes liberais.

    No Brasil do incio do sculo XIX, despontam usos polticos da praa pblica e uma ampla movimentao de tropas, coman-dantes, uma gente considerada turbulenta pelas autoridades pbli-cas, que conviveram e, por vezes, enfrentaram-se no cotidiano e no jogo poltico. Em contraponto, na praa pblica, celebra-se o contrato social entre o imperador e seu povo, numa srie de festas que acabaram por conformar um sentido da autoridade e uma visi-bilidade do poder central.

    Para melhor entender a configurao desse novo governante, fiz um estudo da sua dimenso imagtica no interior das festas, das personagens, das virtudes com as quais foi associado ou separado. No que tange elaborao de uma representao do monarca que atravessa os tempos, a produo de Debret e Grandjean de Mon-tigny ocupa um lugar de destaque; da o captulo dedicado a este assunto.

  • Essa elaborao sgnica e simblica do imperador vai dando uma conotao do que o Brasil. Ora tambm me incomoda perce-ber como se d o descarte de D. Pedro em 1831, como teve ele de abdicar do trono, e como retorna vangloriado nos textos que abor-dam a Independncia. Por ltimo, convm apontar o limite da vali-dade herica de D. Pedro I, quando das primeiras recuperaes da Inconfidncia Mineira, principalmente tomando Tiradentes como o verdadeiro heri do Brasil e aquele que possui a capacidade de re-present-lo. Persegue-se, ento, a figura de D. Pedro I at o momen-to em que ela se torna um passado congelado num monumento.

    * * *

    Ao leitor no escapar a diferena de tamanho entre os cap-tulos. Preferi seguir a lgica histrica de cada questo. Certos captulos (3 e 7), narrativas da histria tout court, contrapem-se anlise imagtica ou concepo do poder monrquico. Minha inteno que, no conjunto, os captulos adensem a interpretao histrica da emergncia do Brasil como corpo poltico autnomo, sem des-fazer-se de suas descontinuidades.

    Por outro lado, os trs ltimos captulos funcionam como li-nhas de fuga dos problemas colocados nos anteriores. Eles repem o tema, porm em claves diferentes.

    Espero que o leitor perdoe essa desigualdade de escrita, pois o estilo e a estruturao do trabalho no a superaram; antes, arcaram com o risco de esmiuar certa lgica e suas diferenas. Devo alertar para o fato de que entre a tese defendida e o livro h diferenas de dados, de passagens, indicaes de debates historiogrficos, que fo-ram suprimidos em favor da fluncia do texto e sua publicao. O leitor que, eventualmente, se interessar, encontrar a tese nas bi-bliotecas da UNESP, da Unicamp, da UFF e na Biblioteca Nacional.

    Devo a Edgar de Decca a orientao precisa, a rara lucidez in-telectual, a generosa amizade e o constante bom humor; sem ele, este trabalho ainda estaria perdido entre tantas possibilidades. Sou grata a Francisco Bethencourt, que me acolheu em Portugal, orien-tou a pesquisa nos arquivos e discutiu seus principais problemas.

  • No posso deixar de agradecer banca que avaliou esta pesquisa, originalmente um doutorado em Histria na Unicamp: Stella Bresciani, Robert Slenes, Renato Janine Ribeiro, Afonso Car-los Marques dos Santos me deram a medida de um doutorado, oxi-genaram minha compreenso, e certas questes colocadas ainda me acompanham; confesso, no as resolvi.

    Cativei, ao longo da pesquisa, amigos preciosos e que tambm se interessam pelas teias de poder entre Brasil e Portugal: Fernanda Bicalho, Ftima Gouva, Luciano Figueiredo, Tiago Costa Pinto dos Reis Miranda, Ernst Pjing, Vera Marques, Adriana Romeiro. Cristina Meneguello, Marly Rodrigues, Sheila Schuartzman, Maria ngela Borges Salvadori e Nicolina Luza de Petta brindaram-me com cumplicidades, cartas divertidas e constante amizade.

    Com o apoio da CAPES e da FUNDUNESP, freqentei arqui-vos, entrecruzei dados e redigi o trabalho. Tambm contei com a amizade, presteza e compreenso do Departamento de Histria da UNESP de Assis, onde falei do projeto e seus percursos a Antonio Celso Ferreira, Tnia Regina de Luca e Jos Lus Beired.

    Na preparao final do texto, Maristela Cocia M. de Souza, ngela de Noronha Begname, Maria Apparecida Bussolotti e Car-los Wagner Fernandes dos Santos foram de grande valia.

    De resto, o livro dedicado ao Cesar, que sempre estava a -quando nem mesmo eu estava.

  • I O REI PORTUGUS: SUA SADE, SEU POVO E A HARMONIA

    D. Joo era Regente em 1790, quando lhe foi oferecido o Prncipe Perfeito de Francisco Antonio de Novaes Campos, um manual pedaggico destinado educao do prncipe, e que se-guia os parmetros da arte de governar. O autor parafraseava e rea-tualizava o texto espanhol de Joo de Solrzano, escrito no sculo XVII. Tratava-se de um manual tardio da literatura poltica. Tal texto era popular na poca moderna, tinha razes medievais, e caa em desuso ao longo da segunda metade do sculo XVIII. No entan-to, ele pode nos indicar alguns elementos importantes sobre a fi-gura do rei portugus naquele momento.

    Novaes Campos presenteou D. Joo com o manuscrito. O prncipe trouxe o livro para o Brasil, constando ele da Biblioteca Real ainda em 1814. O autor portugus, bacharel em Coimbra, gozava da estima de D. Joo, e entregou-lhe o texto quando se dis-cutia a incapacidade de a rainha governar, por problemas de sa-de. Dessa forma, o texto tinha um carter bastante prtico, pois D. Joo no fora educado para ser rei, como seu irmo, D. Jos, cuja

    1 CAMPOS, 1985.

  • esmerada formao tivera a tutela de Pombal. A morte prematura de D. Jos alterou os planos da sucesso real, obrigando D. Joo a assumir a conduta digna de um governante.

    O Prncipe Perfeito apresenta um sistema de emblemas colori-dos seguidos de estrofes, em geral sonetos, que servem para ensi-nar, moral e politicamente, quais os compromissos e privilgios do rei. Todos os emblemas so acompanhados por uma figura aleg-rica com uma sinttica inscrio extrada de um autor antigo ou da Bblia, que explicada brevemente em latim ou lngua verncula, sempre com uma mensagem tica, filosfica e poltica.

    No reinado de D. Joo V, considerado o pice da figura real portuguesa na lgica da monarquia barroca, tal obra poderia ser o livro de cabeceira do rei, sempre lembrando-o de seu dever moral ante Deus e seu povo, rememorando-o sobre sua fora e importn-cia. A obra almeja, portanto, agir pedagogicamente sobre o rei, e se transforma num livro de Estado que circula dentro do Estado, na esfera de deciso e do exerccio do governo.

    A primeira lio consiste na referncia sempre colada e adstri-ta entre Deus e o rei. De Deus advm toda a segurana do corpo social e o seu nascimento. Deus escolheu o rei; mas nem por isso este se deve encher de soberba e lisonja, no se deve levar pelas do-ces e ardilosas palavras dos ministros, no deve crer na imensido de seu poder e que sozinho, sem ter com quem compartilh-lo ou a quem prestar contas no plano terreno, absoluto e sem enganos. Pelo contrrio, o rei julgado por Deus em todos os seus atos, e todo o mal que fizer ou erro que cometer repercutir analogamente em todo o corpo social. O quarto emblema, intitulado: Os Reis nas mos de Deus so como Plas, mostra o quanto o rei depende de Deus, e que o seu carter absoluto pode no passar de uma iluso:

    Vejo sim: no fbula sonhada, A mo de Deus em tudo poderosa, Jogando a Pla estar, nunca ociosa, Arrojando-a da Olmpica Morada. V-se cair do cu precipitada, E subir logo a Esfera luminosa; Cai, e torna a subir impetuosa, Vindo a cair no cho por fim prostrada.

  • Se esta viso medonha vos aterra, Tremei Altos Prncipes de susto, Q'inda a cair venhais do Trono em terra.

    E Temei que em ludibrio a ser Augusto, Na grande mo de Deus, que o Mundo encerra, Sirva de Pla todo o Rei injusto.

    O rei deveria espelhar-se em Deus, governando segundo Seus desgnios e ensinamentos, eis o primeiro sentido de espelhamento do texto. O leitor-governante deve espelhar-se nos emblemas para bem governar, o que conforma um outro espelhamento. Com esta noo de espelho, educa-se o leitor do texto, e o rei que o protago-niza, atravs da imitao, num sistema onde uma projeo se enca-deia na outra, e qualquer desvio compromete o resultado final.

    O rei ocupa, a partir dos desgnios de Deus e das semelhanas que com Ele guarda, a cabea do corpo social, que, por sua vez, tende a seguir seu carter. Entre o corpo do rei e o da sociedade se estabelece um espelhamento das suas condies fsicas e morais, constituindo-se uma concepo organicista do poder encarnado no corpo do rei, que, em si, resume toda a coletividade. Se for vir-tuoso, seu reino tambm o ser; caso contrrio, se for cheio de v-cios, uma sombra nociva descer sobre seu reino, fazendo o povo pagar por tais desditas. E, no final das contas, responder a Deus por todos esses vcios ou virtudes, pela felicidade ou malogro de seu reinado. Em razo disso, o rei deve cultivar as virtudes, atravs da educao e de um bom conselho de ministros, combatendo e erradicando sempre os vcios.

    Embora seja a cabea do corpo social, o rei no pode ocupar e desempenhar as funes dos outros membros, no os substitui ou deles retira a importncia, tampouco sua tarefa social. Ele pode re-sumir a coletividade em seu corpo, todavia no pode agir no lugar de cada membro dessa sociedade, no pode revezar-se com eles por algum motivo. Tal impossibilidade acaba por gerar e estabele-cer um limite natural entre a sociedade e o poder do rei, que tenta, com esforo e ao mximo, conservar a regularidade e a harmonia desse corpo. O bom governo procura a conservao de si mesmo, introduzindo pequenas mudanas e sempre guiando-se por um

  • mesmo conjunto de regras que garantam a obedincia do sdito. Dessa maneira, a arte de governar consiste em exercer o comando valendo-se da aptido do rei em se fazer obedecer.

    O reino, em sua verso exemplar, encarado tal qual uma col-meia ou uma comunidade de gafanhotos, onde todos tm lugar definido, obedecem s leis e ordem e, conseqentemente, vive-se em harmonia, sem revolta, guerra, catstrofe ou anarquia, sem os males da violncia e da destruio. O que quer que se abata sobre o rei da colmeia, gmeo nas qualidades do corpo social, resultar em males para todos. A sade do rei, portanto, no se restringe sua pessoa; alastra-se, percorre e tinge toda a sociedade.

    Ao mesmo tempo, o rei representa, "faz as vezes" da prpria histria, pois todo acontecimento que repercuta na sociedade est potencialmente relacionado a seu comportamento, seu desejo e sua atuao. Nesse sentido, o mundo se torna um palco no qual o rei atua.

    Entre Deus, o rei e o reino h uma continuidade hierrquica fundada em tempos anteriores que no mais retornam; ela no deve ser quebrada, sob pena de que uma completa runa se abata sobre o corpo social. Essa to querida e slida continuidade faz da sociedade um universo cristo governado pela justia divina, na qual se pauta a justia dos homens. Por este motivo, cabe ao rei ou-vir o sdito que lhe envia uma representao, que solicita a sua jus-tia, que segue as leis de Deus. Segundo este preceito, a justia real deve ter medida, ser bondosa e magnnima, na esteira do exemplo bblico de Salomo, por meio do qual Deus ensina como deve agir um bom governante.

    No exerccio da justia, o rei se liga lei, que elabora e pro-mulga para sempre. Primeiro, por obrigao e escolha, ele a obe-dece. E, atravs da criao de uma boa lei, ele permanece no corpo da sociedade, alcanando o futuro e vencendo a sua morte. Esta capacidade real de se perpetuar deve-se boa e justa lei, entrelaa-da aos atributos reais, que vencem os acidentes de percurso, os en-ganos das conjunturas, os vcios de alguns.

    Agindo nos moldes da virtude, o rei obtm da sociedade, em contrapartida: um mausolu, pelo qual ser sempre lembrado. De cada sdito, recolhe os tributos, numa operao de troca extrema-

  • mente justa e natural, na medida em que o rei bem desempenha sua tarefa na colmeia e garante a paz entre todos.

    O rei, no plano ideal, age com docilidade e justia perante seus sditos; porm, sabe quando deve fazer pesar sua mo, pu-nindo e castigando, se necessrio. Existe uma justia prpria ao rei, de origem e carter sagrados, que acaba por tornar a sua perso-na vinculada no apenas s vicissitudes temporrias de uma exis-tncia terrestre, pois participa de uma vontade maior divina, co-mungando com Ele de um carter cosmognico. Porque a ordem que o rei consegue estabelecer em seu reino, no limite, deve cor-responder mesma ordem perfeita que o Autor da natureza criou para o Universo. Tal ordem deve estender-se da mesma forma ao governo do rei para consigo mesmo, e ao governo de sua casa e fa-mlia. Assim, uma mesma arte de governar atravessava o governo de si, do Estado, da casa. Se vigora uma noo moral do rei, en-quanto um bom pai, a sociedade encarada como um universo moral.

    Se este manual tardio descrevia um plano ideal, outros textos voltavam-se tambm para o estatuto do rei e circulavam em fins do sculo XVIII e incio do XIX, chegando presena de D. Joo. A par da discusso da figura real, entre o fim do regalismo pombali-no e as comoes da Revoluo Francesa, discutiam-se as leis fun-damentais, o papel das Cortes, o lugar do vassalo ou a sua redefini-o como sdito.

    O terceiro Marqus de Penalva, Fernando Teles da Silva Ca-minha e Meneses, alm de escrever uma Dissertao sobre as Obri-gaes do Vassalo, publicada pela primeira vez em 1804 e reim-pressa em 1819, ocupou-se tambm em publicar a Dissertao a favor da Monarquia, de 1799, reeditada em 1818. Seu objetivo maior era defender a monarquia como o melhor e mais justo siste-ma de governo, mas ele queria tambm ensinar ao vassalo como se comportar e em que acreditar.

    O Marqus de Penalva fala contra a Revoluo, contra os ilu-ministas, a Repblica, o direito e a liberdade propostos pelo Ilumi-nismo francs, que conduziriam ao maior dos males: a anarquia. Ele representa a corrente contra-revolucionria portuguesa de fins do sculo XVIII, defendendo ardentemente a monarquia. Sua Dis-

  • seriao a favor da Monarquia foi apresentada na Academia Real de Cincias de Lisboa e ouvida pelo prprio Regente. interes-sante conhec-la, por se tratar de uma sistematizao poltica conservadora da figura real, em comparao com outros escritos contemporneos.

    Para o Marqus de Penalva, o poder advm de Deus, que tem no rei o seu representante. O rei portugus foi diretamente esco-lhido por Deus, quando, no milagre de Ourique, no sculo XII, Cristo se revelou a D. Afonso Henriques, antes deste enfrentar os mouros em Seu nome. Nas circunstncias de uma guerra religiosa, em nome da verdadeira f, pela nobreza de seu carter e graa di-vina, Deus elegeu um nobre que se tornou o primeiro rei portu-gus, com o consenso de todos os seus pares.

    No entender do Marqus, se h, por um lado, este dado pro-veniente da histria real portuguesa, por outro, h um dado fun-damental que vem dos tempos mais remotos, de antes do Dilvio, quando tambm se optou pela monarquia como forma de gover-no. O autor se vale basicamente de dois tipos de argumentos: os que procedem da "ordem natural" e, por isso, adquirem o estatuto de pressupostos, e aqueles retirados da histria e que funcionam como prova desta mesma ordem natural. Assim, logo na Introdu-o da Dissertao sobre as Obrigaes do Vassalo, ele admite:

    O mtodo que segui nesta Obra aquele que a ordem natural das coisas me ensinava: como as obrigaes do Vassalo pedem enten-dimento para se conhecerem, e disposio de nimo para se desem-penharem, pareceu-me justo comear pela Educao Crist, Moral, e Poltica do Cidado; e depois de tratar dos diversos destinos de cada membro do Estado, falar das virtudes gerais de todos os indivduos da Sociedade, sem as confundir com as especficas de cada Classe. Ultimamente comprovo o que disse com os exemplos da nossa Hist-ria, que desde a milagrosa Aclamao do Senhor D. Afonso Henri-ques at aos afortunados dias da Regncia do nosso incomparvel Prncipe, uma cadeia de sucessos honrados, que moveriam nimos duros a seguir as virtudes; e que faro em peitos onde nunca perde-ram os seus direitos a Religio, e a felicidade.2

    2 MARQUS DE PENALVA, 1945, p.XXXl-XXXII.

  • Dessa forma, ao retornar a um tempo anterior ao Dilvio, no qual se deu a opo pela monarquia, o autor demonstra, por meio da histria, algo que a "ordem natural" estabeleceu. Porque, neste tempo primevo, Deus inscreveu no corao dos homens um senti-mento que prefere viver em famlia, sob o olhar do pai, sua prote-o e orientao. Nada mais "natural" que Deus assim o fizesse, pois Ele tambm Pai, e, nesta medida, impossvel para qualquer homem renunciar monarquia, sob pena de perder-se de Deus, condenando sua alma a um mundo de privaes e tormentos.

    Os homens, portanto, se afeioaram regularidade da famlia, ao modo pelo qual o pai a defende e o seu patrimnio sem perder a honra, o respeito e o amor. Tudo isso compensava a regncia do pai, perpetuada e transmitida pela hereditariedade. E, como conse-qncia natural do que Deus ditara aos seus coraes, os homens preferiram a monarquia, na qual o sdito filho de um rei que pai.

    No momento em que se elege a monarquia, os homens j co-nhecem a educao e o mando paternal. E, neste instante, todos so iguais entre si diante do rei, que tem um carter uno, absoluto, superior. H um consenso social quanto ao pacto que escolhe a forma de governo, contudo este pacto no o lugar da soberania, pois o rei no pode ser julgado e no existe o direito de revolta, de se desfazer o pacto. Ao contrrio, o rei deve sempre ser mantido, por ser anlogo e correlato da vontade divina e natural, esta, sim, ancoradouro da soberania.

    O homem partilha de duas esferas: uma interna, outra exter-na. Uma dedicada religio, a outra ao governo civil, respectiva-mente. Entre uma e outra existe uma continuidade que vai do eu, passa pelo rei e atinge a Deus e, novamente no plano ideal, o ho-mem, ao obedecer ao rei, tambm obedece a Deus e encontra a paz consigo mesmo. O rei goza de dois mundos: a sua pessoalidade e a sua qualidade nica, intransfervel, inerente, de significar todo o corpo social.

    Tal continuidade e hierarquia de poder no podem ser refuta-das. Porque quando Deus inscreveu, no corao do rei, o desejo de governar, e, no corao dos sditos, a necessidade de obedecer, Ele acabou por revelar uma verdade que no pode ser recusada ou desconsiderada, j que foi por Ele prescrita. Tal verdade se insta-

  • lou no mbito dos sentimentos, no qual a razo, guiada pela reli-gio, s pode intervir para regular, refrear e educar as paixes, mas no para negar um sentimento to puro que se assemelha graa divina. Entre o sdito e o rei se estabelecem a vontade de go-vernar e a de obedecer, vontades que no se contradizem, antes se completam, garantindo a harmonia do corpo social. Caso um s-dito queira, por qualquer motivo, abandonar o corpo social, deve faz-lo com a autorizao real, sem quebrar a ordem. Mas, para evitar esta situao extrema, h uma conduta moral que o rei se es-fora para manter, bem como a obrigao dos procuradores rgios de encaminhar ao rei toda solicitao, representao, nos termos da burocracia da poca, feita pelo sdito. Aqui, a Dissertao a fa-vor da Monarquia encontra no Prncipe Perfeito um texto comple-mentar, para educar o rei e evitar que este viva no vcio, perdido pela lisonja.

    Ao defender a monarquia como a melhor forma de governo, quais so, sucintamente, as justificativas usadas pelo Marqus de Penalva? Antes de mais nada, segue uma razo e uma moral defini-das por Deus, que governa o Universo, razo e moral extradas, historicamente, do modelo antigo dos pais. Depois, porque a mo-narquia concentra o poder em um s, no havendo cismas e dispu-tas, pois tal governo desenvolve um sistema com uma ordenao interna, inter-relacionando as suas partes, abrangendo, assim, todo o corpo social, sem quebras ou contradies.

    Se, por um lado, a monarquia se assemelha ao governo de Deus, por outro, se assemelha ao governo interno do homem sobre si mesmo, de cada um sobre sua alma e sua moral. Aqui, mais uma vez, o Marqus de Penalva reafirma a monarquia con-tra a repblica; pois sabemos que no podemos ser juiz e parte in-teressada sobre qualquer pendncia. Cabe sempre ao juiz a deci-so. Assim, ao agirmos e decidirmos sobre ns mesmos, somos juizes de ns mesmos de acordo com a moral crist. Numa rep-blica, isso seria impossvel, porque seramos ao mesmo tempo juiz e interessado, sem ter uma moral universal, idnea, magnni-ma e justa para nos guiar. Logo, a monarquia enfeixa o governo de si, o governo da poltica e o governo do universo sem quebras e desastres.

  • Por ltimo, justifica a monarquia na sua relao com as Cor-tes, que j nascem estreitamente ligadas monarquia portuguesa. Porque, aps a aclamao de Afonso Henriques, convocaram-se as Cortes de Lamego. Estas servem para referendar o governo do rei e nunca desempenham funes deliberativas, conforme de-fendem o direito natural e a teoria do contrato, combatidos pelo marqus.

    O Prncipe Perfeito e os escritos do Marqus de Penalva bus-cavam incutir a necessidade de um governo virtuoso, porque o rei o ; alm disso, explicavam para D. Joo a fonte de seu poder. Eles chegaram s mos do Regente, mas os escritos de Antnio Ribeiro dos Santos, ao final do sculo XVIII, no s alcanaram o Regente, como tambm serviram de crtica e contraponto ao Novo Cdigo escrito por Pascoal de Melo Freire, sob encomenda do Estado, a fim de redesenhar o direito pblico da Nao. Ribei-ro dos Santos escreveu uma teoria sobre o poder real, o papel das Cortes, a moral do rei, sem contudo refutar ou condenar comple-tamente as antigas instituies; mudava, entretanto, o estatuto da monarquia.3

    Antnio Ribeiro dos Santos nasceu na Freguesia de Nossa Se-nhora da Boa Viagem, na cidade do Porto, em 1745. Viveu a partir de 1756 no Rio de Janeiro, para atender a um pedido de seu av, envolvido com o comrcio. Retornou em 1763 Metrple e in-gressou no curso de Cnones em Coimbra. A se doutorou em 1774, deu aulas e se tornou lente, em 1779, nessa mesma rea. Em 1777, foi nomeado bibliotecrio da Universidade, com a tarefa de reorganizar e dinamizar a biblioteca formada por D. Joo V. Tal encargo inclua-se nas reformas do saber empreendidas pelo Mar-qus de Pombal, participando do mesmo esprito das mudanas do Horto Botnico, da criao do Laboratrio de Qumica e do Observatrio Astronmico. Alis, Ribeiro dos Santos foi um alia-do de Pombal, seja na forma pela qual, num primeiro momento, entendeu o poder, seja por concordar e participar ativamente des-

    3 PEREIRA, J. E., 1983.

  • sas reformas. Assim, ele integrou a Academia Real de Cincias de Lisboa desde a sua fundao, reorganizou, entre 1795 e 1805, as disciplinas das faculdades de Cnones e Leis, em Coimbra, intro-duzindo, seno reforando, o estudo do Direito Natural, alm de atuar junto aos Estudos Menores. Ocupou ainda vrios cargos: em 1788, foi nomeado para a Junta da Reviso e Censura do Novo Cdigo de Melo Freire, foi Deputado do Santo Ofcio (1793), Censor Rgio a partir de 1795, reorganizou a Real Biblioteca P-blica em 1796. Foi Desembargador dos Agravos (1799), Deputa-do da Nova Junta do Cdigo Militar Penal (1802), sendo contra a pena de morte, e fez parte do Conselho do Prncipe Regente. Enfim, foi tanto um homem de letras quanto de Estado, atuando sob a batuta de Pombal, passando ileso pela Viradeira, sendo ouvi-do por D. Joo.

    importante dizer que j se notou uma importante mudana em seu pensamento poltico, justamente entre o perodo pombali-no e o mariano. Num primeiro momento, a figura do rei era abso-luta, fonte nica de poder religiosamente justificada, reservando pouco e controlado espao de atuao para o vassalo, que dir das Cortes. No entanto, ele alterou o estatuto do rei e do poder nos seus escritos de fins do sculo XVIII, nos quais nos deteremos, ao repensar o lugar do sdito.

    Sua primeira proposio asseverava que o poder vem de Deus, em sua origem, porm a sua forma nasce do homem. Por isso, nem o rei, nem o homem se podem deixar seduzir pela lisonja, pois nem em um, sequer no outro, reside todo o poder. Desta forma, Portu-gal, que desde a sua fundao uma monarquia, por obra de Deus e por escolha dos homens, define-se como uma monarquia tempera-da, sem cair nos extremos - homem ou Deus -, tentando fundi-los:

    Os mesmos escritores que derivam de Deus o Poder supremo dos Reis nem por isso deixam de assentar que vem do Povo. certo que assim nos Estados Monrquicos, como nos Democrticos e Aris-tocrticos, os que so Depositrios do Poder Pblico tm uma Auto-ridade que Divina no seu princpio, porque Deus quis que os ho-mens se ligassem entre si em sociedade, e se regessem por Leis debaixo de um Governo Superior. Mas os Povos foram os que origi-nariamente determinaram a Forma do Governo a que queriam sujei-

  • tar-se, os que fixaram a Pessoas ou Famlias que houvesse de reinar sobre eles, e os que determinaram que ordem haveria na sucesso de seu Governo e at onde se deixa estender a sua Autoridade e Imprio em particular.4

    A sociedade tem incio por vontade divina, mas o poder do rei nasce mais de um consentimento do povo e menos de uma con-quista, pois s o consentimento permite que exista a legitimidade. No avesso do consentimento, a conquista entendida como uma sujeio abusiva. Assim, os povos, ao quererem o rei e consenti-lo, limitam o seu poder, que no absoluto porque, de certa forma, o rei negocia o poder com o sdito, principalmente no mbito das Cortes.

    Na monarquia temperada, existem leis fundamentais e de di-reito. Elas dizem respeito ao que inerente a qualquer monarquia, vindo de tempos remotos, quando da constituio do rei, e tam-bm se referem s leis feitas pelas Cortes. Estas duas ordens de leis obrigam os reis e os sditos a segui-las. Ningum delas est isento, e somente atravs do mtuo consentimento que se pode alte-r-las ou derrog-las. Assim, a lei fundamental fruto de um ato da vontade de todos.

    Deve o sdito se expressar nas Cortes, que datam desde o in-cio da prpria monarquia portuguesa, da o acerto histrico em ser Portugal uma monarquia. As Cortes, reunidas com o rei, tm papel deliberativo quanto administrao do Estado. Elas devem sempre seguir os costumes dos povos, que geram leis mais apro-priadas e justas para estes mesmos povos. Enfaticamente, o autor avisava que no se trata de um contrato hobbesiano. Longe disso. Ele se inseria no debate do direito natural, que reconhece ao povo um direito que lhe inato e que no pertence e nem pode ser ad-quirido pelo rei, algo que lhe prprio e irrevogvel. No exerccio da reunio das Cortes com o rei, ocorrem as mudanas polticas, sem incorrer em rupturas ou males. Tais mudanas resultam da-

    4 BNL, Reservados, Sobre a Origem do Poder do Prncipe, Cd.4668, fl.l70v.

  • quelas ocorridas primeiro na ordem dos costumes. Dessa maneira, as mudanas de ordem poltica ocorrem numa verso mais branda, sem provocar violncia e destruio, tal qual uma reforma, pau-tando-se pelos costumes das gentes e sua lenta transformao.

    Pelo destaque conferido s Cortes, Ribeiro dos Santos foi vis-to, muitas vezes, como uma preparao para a Revoluo de 1820. Talvez no seja bem assim. Para ele, as Cortes no podem existir sem o rei, tampouco tm um poder de subverso, como tero no Vintismo, que ler, no poder nacional, aquilo que era rgio. Certa-mente, Ribeiro dos Santos mudou a importncia e vitalidade das Cortes ante autores que pensavam nos moldes do Marqus de Pe-nalva ou conforme os manuais do bom prncipe. Alis, Ribeiro dos Santos chegou a sugerir, quando D. Joo assumiu a Regncia, que as Cortes fossem convocadas para referend-lo e aconselh-lo. Com ele, as Cortes voltam fortalecidas ao cenrio poltico e no sero esquecidas, funcionando no equilbrio das foras perante o rei. Assim, no posso deixar de sugerir que talvez ele tenha aberto as comportas, ou percebido a capacidade de discusso que as Cor-tes possuam no mundo portugus do final do sculo XVIII e co-meo do sculo XIX.

    Ao lado dessa situao das Cortes, h para Ribeiro dos Santos uma outra condio vital do rei: seu carter sagrado. H um mo-mento por excelncia na monarquia portuguesa em que a sagrao se torna realidade presente, isto , quando o rei aclamado. Depois que o rei portugus falece, seu sucessor, por direito dinstico, ocupa esse lugar. No entanto, sem o ato da aclamao, nenhum herdeiro se erige em rei. Entre a morte de um rei e o momento em que o ou-tro entronizado, neste intervalo, a figura do rei pertence ao mun-do ideal e supera a sua condio mortal, porque ele existe num corpo mstico e coletivo, embora no haja um corpo humano que o encarne. Este o momento-chave que torna o rei uma figura sa-grada, pois pertence a uma esfera maior, metafsica, coletiva, en-quanto no se aclama o novo rei. Neste instante especfico, o rei morto mantm a sua dignidade, uma espcie de constelao de vir-tudes e atributos a ele inerentes, idiossincrticos, assemelhados humanidade de Cristo, que no era compartilhada por nenhum

  • outro ser humano, e, ao mesmo tempo, significa a sua soberania poltica, que vence a adversidade e o tempo ao ser transferida a seu sucessor.5

    Estas caractersticas e concepo do rei datam da Idade M-dia, com a teoria dos dois corpos do rei, que acabou instaurando um trnsito entre a figura de Cristo e a do rei. necessrio apontar que, na Idade Mdia, o corpo de Cristo desdobrava-se no corpo do papa e dos bispos, enfim, no corpo mstico da Igreja. Todavia, paulatinamente, o duplo corpo de Cristo - simultaneamente hu-mano e divino - foi sendo associado ao duplo corpo do rei, no qual se entranha tanto um corpo mstico, coletivo, social, quanto a sua humanidade, perecvel e mortal. Este corpo coletivo confun-de-se com a prpria dinastia, que nunca morre na forma da reale-za, situando-se o rei na cabea deste corpo.

    No estado moderno absolutista, houve um processo crescente de secularizao do Estado; forjou-se uma prtica contnua que consistia em capturar para a monarquia os smbolos, cerimnias e ritos teolgicos, com seus signos e traos mgicos, para sacralizar a figura do rei.6

    Em Portugal, essa dinmica da sacralizao do rei espraiou-se desde a fundao do Imprio, num milagre, ganhou nuanas e fora poltica no desaparecimento de D. Sebastio na frica e no mito de seu possvel retorno, profecia vrias vezes reiterada de que o reino reencontraria, em meio s desgraas e males, o seu jovem rei guer-reiro. Esse entrelaamento entre a realeza e uma teologia do poder foi reinvestida com a independncia de Portugal, no sculo XVII, livrando-se do jugo espanhol; e teve um momento culminante no governo de D. Joo V, que se projetava enquanto um rei sol. No-vas torses, entretanto, reordenaram a noo de rei sob o governo pombalino, torses que se realimentavam de uma imagtica ilumi-nista, e combatiam duramente os adversrios, como o padre Mala-grida. Sem desvencilhar-se dos debates iluministas, no final do s-

    5 KANTOROWICZ, 1989, e MERA, 1962, t.X, p.411-7. 6 COURTINE, 1985; VALENSISE, 1986.

  • culo XVIII, postulava-se que o rei no podia prescindir de uma gama de signos, smbolos, objetos, ritos e cerimnias que o instau-ram e constituem.7

    Em outras palavras: a liturgia do poder no aparece como um resqucio teimoso da Idade Mdia ou como um efeito superficial do poder, uma aparncia tnue e frgil, a ser superada e ultrapas-sada a fim de que se descubra a verdadeira fonte do poder; antes, essa liturgia entranha-se realeza. Ao rejeitar tais discursos, apara-tos festivos, produo imagtica, perde-se um elemento capital da sua eficcia. Afinal, como se gesta e administra a representao e a prpria noo de soberania que, durante o perodo moderno, vai sendo forjada na teoria poltica, enquanto princpio fundamental da sociedade e da legitimidade? Esta noo de poltica que abraa a li-turgia do poder, a imagtica da realeza, suas diversidades, repeti-es, agenciamentos, modos de obter e garantir a obedincia, acaba entreabrindo um campo de sociabilidade que dela tambm parti-cipa. Assim, a poltica participa do engendramento da dominao, da ordenao da sociabilidade e suas regras, e funciona como mo-tivo de reflexo e de paixes despertadas e mantidas, sem se tor-nar determinante, unvoca ou excludente de outras relaes.

    Em Ribeiro dos Santos, reitera-se a acepo de que o rei s est completo, em sua plena majestade, a partir do prprio ato da aclamao, quando toda a sociedade referenda a escolha inicial de Deus por aquela dinastia e reafirma o pacto social. O todo se en-carna, atravs da aclamao, no Uno:

    A antiga instituio do Ato da Aclamao, e Coroao dos Prn-cipes, destinada a anunciar a unanimidade dos votos, e o consenso universal do Povo, em reconhecer o Herdeiro Legtimo, e declarar a sua vocao ao Trono; porquanto as Cerimnias augustas deste Ato claramente anunciam, que h da parte da Nao uma eleio verda-deira, e propriamente tal, isto , uma declarao solene, que o que pretende subir ao Trono tem direito de subir a ele, e nada h que o

    7 Um dos eixos de discusso do Colquio A Memria da Nao, em 1987 em Portugal, girava em torno desta elaborao da realeza portuguesa, suas prti-cas, sentidos e as freqentes recuperaes do passado. BETHENCOURT & CURTO, 1991; CURTO, 1988. GOMES Jr., 1996; MAXWELL, 1996.

  • faa incapaz de gozar da sua vocao coroa, e que o Povo o reco-nhece por seu Rei, e lhe promete obedincia e vassalagem: debaixo da condio de que ele os governar com justia e eqidade, vindo este Ato de Aclamao e Coroao a ser um smbolo, e representati-vo da aprovao do corpo inteiro da Nao, e da aceitao da pessoa, que reclamou o benefcio da herana em seu favor.8

    A Aclamao, no ocorrendo segundo estas premissas, deso-bedece a Deus, aos homens, e deles zomba, transformando-se, de solene e sagrada, num ato de profanao. A compreenso da figu-ra do rei requer um sentido moral que privilegia as virtudes, for-madas e fortalecidas por uma correta educao, combatedora dos vcios. A esse respeito, Ribeiro dos Santos no deixaria de reco-mendar o Prncipe Perfeito. Ainda nesta direo, um conjunto de smbolos convocado e utilizado para materializar e adensar o sig-nificado do ato da Aclamao. O teto da varanda na qual D. Maria aclamada,9 a 13 de maio de 1777, dia de Nossa Senhora dos Mrtires, em Lisboa, todo decorado com figuras alusivas s vir-tudes da Rainha: Magnanimidade, Liberalidade, Sabedoria, Auto-ridade, Magnificncia, Piedade, Religio, Prmio, Amor Virtu-de, em nove painis com moldura em veludo carmesim. Na aclamao de D. Joo em 1818, no Rio de Janeiro, igualmente, o teto da varanda revestia-se de emblemas a respeito destas mesmas virtudes reais.10 O rei podia mudar, consumido pela morte, no en-tanto suas virtudes se perpetuavam no seu sucessor. Tais represen-taes das virtudes, numa aclamao, no destoam das insgnias reais, das armas do reino, dos trofus militares, das alegorias de matriz e inspirao clssicas, antes participam da formulao real. Esta liturgia do poder, contudo, tende mais a ser polissmica, com diversas nuanas, reatando com determinados signos, figuras do passado, reativando-os e, em contrapartida, pode rejeitar ou silen-ciar sobre outros ritos, momentos da cerimnia, transformando

    8 BNL, Reservados, Sobre a Natureza e Effeitos da Acclamao dos Prncipes, Cd.4668, fls.231-231v.

    9 Auto de Levantamento, e Juramento de D. Maria I, 1780. 10 SANTOS, 1981, t.II, p.156.

  • seus sentidos; pode ainda gerar novas representaes. Desta ma-neira, essa liturgia real que argamassa a representao do rei, edifi-cando-a, no possui um significado adstrito, rente a um dicion-rio.11

    O poder do rei se constituiu na discusso poltica, no processo pelo qual o pacto e a soberania se elaboraram, nas prticas sociais e nos debates jurdicos, mas tambm implicou uma dimenso litr-gica, na qual festas, msicas, fogos, desfiles, procisses no so apangio ou tm um peso menor. Na conjuno destes sentidos encontramos o rei sacralizado e, ao mesmo tempo, a participao poltica. Sabendo disso, talvez seja possvel reconstituir a primeira figura poltica capaz de representar em si mesma o Brasil no come-o dos Oitocentos: D. Pedro. O texto de Ribeiro dos Santos e o de-bate no qual se inseriu no atravessaram os mares, at onde sei, mas pulsam nos preceitos com o qual a poltica em torno da figura do rei era pensada e definida, sem deixar de lado ou subestimar a sade moral do rei e a necessidade da eficcia poltica do governo. A fim de evitar qualquer confuso do leitor - ou minha -, de que o trabalho enveredasse por uma biografia de D. Pedro I ou um estu-do de sua vida pessoal amorosa, to vivaz e freqentemente co-mentada, procurei operacionalizar e mediar o estudo a respeito desse imperador com a noo de persona.12

    Este conceito, historicamente formulado, alm de abarcar o foro ntimo, a pessoalidade do indivduo, molda-se pelo artifcio com que sua figura externamente elaborada, ou seja, aquilo que de-fora lhe confere sentidos sociais, polticos, eficcias num jogo de representaes e anseios polticos. Isto permite perseguir a cons-truo da noo do imperador enquanto o lugar do contrato social, investido de toda uma estratgica liturgia da realeza, que tenta obter eficcia poltica, sem cair num certo fascnio que o vangloria. O es-tudo do rei, aqui, vem permeado por uma srie de relaes que no comeam, circunscrevem e se esgotam no interior do Estado ou de

    11 BOUREAU, 1991. 12 HAROCHE & COURTINE, 1986-1987; COURTINE & HAROCHE,

    1988.

  • uma individualidade, antes emerge e se organiza numa srie de re-laes e efeitos que acabam instaurando essa noo de um todo centralizado na figura do rei. Nesta pesquisa, D. Pedro vem conju-gado a vrios usos da praa pblica, remodelado pelos debates nas cmaras e os compromissos firmados, correlacionado com um povo em armas, amarrado a um aparato de coero que rege a su-jeio, enfeixado num calendrio de datas memorveis que nos es-capam ou parecem incuas. Enfim, procurei destacar algumas re-des de funcionamento e poder que constituem esta persona, e de que maneiras D. Pedro acabou mediando a elaborao de uma pri-meira noo de Brasil, enquanto um corpo poltico autnomo.

    Para encerrar, bom indicar o modo intenso e cortante com o qual D. Pedro significa o corpo poltico, capaz de sintetizar a sobe-rania, a grandeza, o contrato de um pas. Na comemorao do Ses-quicentenrio da Independncia do Brasil, a ditadura militar, com a anuncia do governo portugus, trasladou o corpo deste heri nacional, recebendo-o com uma parada militar, aceno de bandei-rinhas verde-amarelas, crianas em seus uniformes escolares, mili-tares com suas roupas de gala. Os restos mortais de D. Pedro I, so-bre um carro de combate urutu, desfilaram pelas avenidas de So Paulo at chegar ao mausolu no Ipiranga, como se o heri reen-contrasse seu gesto maior, o ato de fundao da nao brasileira no grito da Independncia a proclamado. Duplicava-se no pre-sente a imagem do heri e do fato passados, celebrando-os e, no-vamente, unindo-os.13

    Para os brasileiros, a imagem herica de D. Pedro sobrepuja a do imperador. Em 1972, o heri reinou na festa da Independn-cia. Contudo, ao morrer em 1834, D. Pedro IV, na verso portu-guesa, legou por vontade prpria seu corao mui leal cidade do Porto, que, heroicamente, sediou a sua batalha contra o miguelis-mo e ancorou sua vitria.14

    Na hora de sua morte, ao distribuir seu legado, D. Pedro brin-dou esta cidade com o que melhor podia deixar de herana: seu

    13 Revista Manchete, 1972. 14 CARTOGA, 1990; COUTINHO, s. d.

  • prprio corpo, o que tambm um modo de indicar sua noo de um bom governante. Em fevereiro de 1835, com pompa, circuns-tncia, cortejo, sob plio, a cmara do Porto recebeu, agraciada, o corao real, num estojo de veludo preto e dentro de um vaso de prata dourado que at hoje permanece na capela-mor da Igreja da Lapa. Apesar dos esforos da ditadura militar e dos seus usos do corpo do heri, Portugal no cedeu o corao real, em 1972, se-quer para uma visita de cortesia.

    Em tempo, de algum modo estas inteligibilidades e represen-taes a respeito da fundao do Brasil, enquanto um corpo polti-co autnomo, ainda permeiam a nossa contemporaneidade.

  • 2 D. JOO E AS VICISSITUDES DO REINO

    Em 1814, Silvestre Pinheiro Ferreira, conselheiro de D. Joo, j o avisara da necessidade de rever as relaes entre Portugal e Brasil, no sentido de que no mais existia um pacto colonial, e Por-tugal at se encontrava em desvantagem perante o Brasil.

    Este aviso fazia sentido, no contexto geral, porque a guerra napolenica deixou Portugal sob forte dependncia militar da Inglaterra, com uma Regncia escolhida por D. Joo, mas coman-dada pelo marechal Beresford. Assim mesmo, por meio das juntas governativas, como a do Porto, e da ao de dispersos levantes po-pulares, os portugueses muito contriburam para a expulso dos invasores franceses. A junta governativa, baseada no poder local, que mobilizava as pessoas em suas regies e resistia aos estrangei-ros, conseguia ainda, valendo-se de sua ao, negociar com a Re-gncia, instaurada por D. Joo. Valentim Alexandre a analisa:

    No fundo, o que a junta do Porto assim estabelecia era um com-promisso entre as formas tradicionais de legitimidade, prprias do Antigo Regime - em que todo o poder deriva do soberano, pelo que caberia devolv-lo de imediato regncia por ele nomeada - e a nova legitimidade, que nesse ... documento [Nota da junta do Porto, de 4 de Agosto de 1808, e bases anexas] aparece fortemente acentuada,

  • nas referncias formao do "supremo governo" no Porto, "a instncias do povo da mesma cidade" e ao fato de se lhe terem subor-dinado "livre e espontaneamente as cidades, vilas e pessoas consti-tudas em dignidade dos estados eclesistico, civil e militar das pro-vncias do Minho, Trs-os-Montes e Beira"... desta nova fonte de poder se prevalecia a junta para modificar a regncia - sem contudo romper inteiramente com a lgica anterior, reclamando para si toda a autoridade.1

    Sua importncia foi notada pela corte no Rio. Na instruo de 2 de janeiro de 1809, provavelmente de autoria de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, na qual se fixava um plano de reformas a fim de promover o desenvolvimento econmico de Portugal, D. Joo agradecia s "Juntas que se levantaram no Reino, e que to meri-toriamente se distinguiram, porfia na salvao e restaurao do mesmo".2 Mandava, ento, cartas rgias aos seus presidentes, congratulaes a seus membros e uma promessa de mercs.

    As juntas perderam sua fora para a Regncia implantada pelo comando militar ingls com a anuncia da Coroa portugue-sa, embora, no Rio, D. Rodrigo chegasse a propor que, atravs delas, se implantasse seu plano de reformas, que foi recusado pe-los conselheiros reais. Em fins de 1808, chegou-se a discutir en-tre os conselheiros do Prncipe uma proposta - provavelmente tambm de D. Rodrigo - de nelas centralizar a forma de governo a ser exercido em Portugal. Foi recusada sob o argumento de que poderia levar formao de um sistema federativo, contrariando o interesse do poder real, e porque permitiria junta do Porto punir aqueles que tivessem colaborado com os franceses, princi-palmente os de classes superiores.3 As juntas, no mundo portu-gus, constituam a possibilidade de formar um governo que, no limite, feria a autoridade real, pois funcionavam como uma esfe-ra de deciso poltica.

    1 ALEXANDRE, 1993, p.189. 2 ANTT, Ministrio do Reino, Governadores do Reino, Livro 380, ,fl. 1-2. 3 Sobre as juntas no perodo da guerra, os planos de D. Rodrigo, que delas se

    valia, e os argumentos contrrios, ver: ALEXANDRE, 1993, p.180-209 e 232-43.

  • Essa nova presena da junta, enquanto um poder local e legti-mo em sua localidade, capaz de reunir os vrios corpos sociais na vila e freguesia, de fazer-se representar e debater com um poder maior e soberano, nasce no interior da guerra e no esforo de ven-c-la. Contudo, continuar a ter importncia, tanto no Brasil como em Portugal, at a dcada de 1820. Continuar a ser uma li-o e um aprendizado a respeito da atuao poltica, da represen-tao local. Adiante, veremos de que forma essas cmaras e juntas ajudaram a redefinir uma noo de contrato social, por meio de suas prprias prticas, em momentos decisivos das relaes entre Portugal e Brasil e na elaborao sociopoltica da soberania.

    Paralelamente, Portugal viveu uma crise na produo e circu-lao da riqueza desde a sada da Famlia Real em 1807. Durante a guerra, enfrentou vrias convulses, bloqueios navais, interrupo do comrcio ultramarino com pases europeus, suspenso do siste-ma colonial, combates militares, levantes populares, migraes, fuga de gentes e capitais, perseguies polticas. O pas, muito mais Lisboa e menos o Porto,4 no mais servia de entreposto inter-nacional obrigatrio para as mercadorias vindas do Brasil e que antes eram redistribudas, via Hamburgo e portos italianos como Gnova, para a Europa do norte e rea mediterrnea, ou seguiam de Lisboa para a Inglaterra e a Espanha.5 Por outro lado, as merca-dorias portuguesas e estrangeiras destinadas ao Brasil pouco pas-savam por Lisboa.

    A maior parte dos produtos escoava por intermdio da Ingla-terra, a partir do Tratado de Amizade e Comrcio de 1810. Jos da Silva Lisboa, justificando os benefcios polticos do governo de D. Joo no mbito da histria, ressaltava o interesse brasileiro nes-se acordo:

    O ponto capital pois era dar ao Brasil todo o racionvel favor aos ingleses, que, pela sua energia mercantil, e vasta correspondncia estabelecida nos emprios da Europa, eram os nicos negociantes

    4 BONIFCIO, 1991. 5 Convm dizer que a reexportao das mercadorias de Portugal para o exterior

    ficava a cargo dos negociantes estrangeiros em Portugal.

  • que rinham cabedais e meios de introduzir os nossos gneros em to-dos os emprios.6

    Em contrapartida, as mercadorias inglesas entravam franca-mente no Brasil, pagando taxas alfandegrias de 24%, no caso da embarcao ser estrangeira, e 16% quando fosse de bandeira lu-so-brasileira, entre 1808 e 1809. A partir do Tratado, as taxas bai-xaram para 15%. Se o Tratado atendia, com desigualdade, Ingla-terra e ao Brasil, ele prejudicava Portugal, fazendo com que os negociantes lusos perdessem o exclusivo colonial e nem sequer conseguissem auferir lucros, pois seus produtos concorriam com baixas taxas inglesas. O Estado portugus tambm perdia, e mui-to, com a suspenso do exclusivo colonial: a arrecadao de im-postos e o arrendamento de monoplios.

    Com a guerra e as novas regras comerciais, a produo indus-trial portuguesa foi arrasada, porque as fbricas foram atacadas, fugiram os empreendedores, os operrios, os artesos, os tcnicos; as mquinas foram destrudas, quebrou-se o processo produtivo, ruram os modos de comercializao.7 Ao mesmo tempo, a Ingla-terra, ao longo da dcada de 1810, invadia Brasil e Portugal com seus tecidos. Enfim, dinamitou-se a indstria txtil portuguesa, que perdia seu cliente8 e no conseguiria organizar-se em face da concorrncia dos gneros ingleses.

    No intuito de remediar a situao econmica em Portugal dian-te das novas regras introduzidas pelo Tratado de 1810, D. Rodri-go defendeu a Carta Rgia de 7 de maro de 1810, na qual critica-va o sistema mercantil, desmontava o sistema alfandegrio e prio-rizava a agricultura com uma srie de reformas, nos conformes das memrias apresentadas e aprovadas pela Academia de Cincias de Lisboa. A mais drstica reforma de D. Rodrigo atacava os direitos

    6 LISBOA, 1818a, Parte I, p.142. 7 Sobre as formas de produo fabril e artesanal, ver PEDREIRA, 1994, espe-

    cialmente o captulo "Guerra, comrcio martimo e poder colonial - a econo-mia portuguesa entre a prosperidade mercantil e o colapso do imprio lu-so-brasileiro".

    8 ALEXANDRE, 1986.

  • senhoriais e poderia promover, se tivesse vingado, uma reestrutu-rao no campo. O plano de reformas foi criticado por conselhei-ros reais e ministros, D. Fernando Jos de Portugal e o Visconde de Anadia, no saindo do papel.

    Pelo Tratado de 1810, tambm a Companhia dos Vinhos do Alto Douro no mais tinha no Brasil um comprador costumaz, e enfrentava dificuldades em passar seu produto para outros consu-midores; a quebra do monoplio abalou os negociantes e proprie-trios envolvidos na produo do vinho.

    A entrada de alimentos e matrias-primas brasileiras, tais como acar, caf, algodo, couro, tabaco e cacau, sustentara as (re)ex-portaes portuguesas entre o perodo de 1796-1807;9 com a in-terrupo do comrcio colonial, desde 1808, regularizado apenas a partir de 1814, com o reestabelecimento das marinhas nacionais, Portugal viveu um perodo de decadncia comercial que se esten-deu pela dcada de 1820. Perdiam os negociantes portugueses e os grandes contratadores. Ainda em 1814, os Plenipotencirios por-tugueses em Viena, capitaneados por Palmela, tentaram reverter o Tratado, oferecendo medidas contra o trfico de escravos em troca de revog-lo, o que permitiria reconduzir Lisboa sua condio de entreposto internacional, reordenar as redes de comrcio no Imp-rio e at recompor o monoplio colonial.10 A Inglaterra rechaou a iniciativa.

    Alm disso, a crise atingiu a produo de gros. Portugal pre-cisou import-los da Grcia e Itlia, o que afetou os camponeses. O Relatrio da Comisso de Agricultura apresentado s Cortes, em 1821, falava da importao de 192 milhes de cruzados em ce-reais entre 1808 e 1819. Desse modo, a relao comercial entre

    9 ALEXANDRE, 1986, Quadros I, II, III, p.33. 10 Comentado por BONIFCIO, 1991, p.53-70. 11 Dirio das Cortes, 15.3.1821, p.255-6, que afirmava: "porm nestes ltimos

    tempos a causa mais imediata da runa dos Lavradores, e Proprietrios, e por conseqncia da Nao toda, o vagaroso, nulo, e incerto consumo dos fru-tos, e o seu diminuto preo...", entrando, cada vez mais, cereais estrangeiros, havendo um abandono por parte dos camponeses da agricultura, optando pelo pastorio ou deixando o pas.

  • Portugal e seus domnios ultramarinos (entenda-se, principalmen-te, com o Brasil) foi uma perda para a metrpole, na dcada de 1810. Havia um dficit na balana, uma quebra do sistema de mo-noplio, e uma extrema dificuldade de obter e gerir recursos para o errio pblico. A Regncia afirmava:

    Por muitas vezes, Senhor, temos oferecido Considerao de V. Mage. o estado da Sua Real fazenda, mostrando, que as rendas do Errio anuais, que vo a diminuir proporo que diminui a riqueza dos particulares; que esta soma de nenhum modo pode chegar para as despesas atuais, se no fora de uma mui severa economia, que corte os gastos, que se podem poupar em todas as reparties, que no carregue o errio com desembolsos extraordinrios, que pertur-bem a ordem regular dos seus pagamentos e o desacreditem, e que por meio de alguns sacrifcios consiga restabelecer o equilbrio entre a receita, e a despesa, sem o qual ser infalvel o perdo do crdito, e inevitvel uma bancarrota, cujas funestas conseqncias devem as-sustar a todos os que sabem que a Revoluo, de que a Divina Miseri-crdia nos tirou, teve princpio no dficit, em que se achava a Frana no ano de 1789.

    Em contrapartida, ocorreu uma reorganizao do comrcio e uma estabilizao econmica no Brasil, marcadamente no Rio, o que acabou por lhe conferir um carter hegemnico no Imprio e proporcionar-lhe autonomia perante Portugal. No se trata, aqui, de considerar a vinda da famlia real como o motivo desse proces-so de autonomizao, que ocorria desde fins do sculo XVIII, com uma srie de tenses e transformaes sociais. A transformao do Rio em Corte e a proximidade com o rei colaboraram para intensi-ficar tal processo. De toda forma, no h uma relao de causa e efeito entre a chegada da Famlia Real e a Independncia, mesmo porque o desenlace da separao ocorreu no transcorrer de 1822, quando as negociaes com a Assemblia Portuguesa se inviabili-zaram e uma srie de protagonistas sociais do Rio vislumbraram, na separao, modos de garantir sua hegemonia poltica e social.

    12 ANTT, Ministrio do Reino, Governadores do Reino, Registro de Cartas ao Prncipe Regente, Livro 318, Carta 482, 9.6.1817, fl.29-30.

  • Se, externamente, se reorganizavam as linhas comerciais do Brasil com a Europa, internamente, a corte foi uma oportunidade para que negociantes locais deslanchassem na vida social, poltica, conquistando prestgio e aumentando sua riqueza.

    Desde a dcada de 1790, no Rio, os homens de grosso trato controlavam o trfico entre Brasil e frica,13 enquanto outros em-preendimentos do imprio, predominantemente, ficavam nas mos dos portugueses. J o comrcio de cabotagem, ligando o Rio de norte a sul, de Cabo Frio a Pernambuco, de Ilha Bela ao Rio Grande do Sul, dependia mais dos negociantes brasileiros e muito menos dos portugueses. A partir de 1816, ficou apenas sob o domnio dos primeiros, pois proibiu-se a participao estrangeira. Entre 1790 e 1830, os homens de "grosso trato" conseguiram fincar sua hege-monia comercial e consolidaram seus interesses no centro-sul do pas, bem como passaram a financiar a Coroa, prestando-lhe ser-vios e recebendo em troca a nomeao para ocupar cargos na Real Junta do Comrcio, no Banco do Brasil, no Servio do Pao, postos nos corpos de milcia, ttulos de nobreza, honrarias, terras devolutas.

    Amaro e Manuel Velho da Silva, Luis de Sousa Dias, Antonio Gomes Barroso, Fernando Carneiro Leo, valendo-se de suas rela-es pessoais, compraram aes do recm-fundado Banco do Bra-sil e auxiliaram o Estado em outros servios, recebendo em troca cargos e ttulos. Eles formavam "um pequeno e abastado grupo de empresrios com prticas monopolistas e especulativas".14 Eles detinham o controle da navegao - construam suas embarcaes, principalmente tumbeiros - do circuito comercial, envolvendo co-missrios, consignaes, firmas e seguradoras, do financiamento, que se baseava numa extensa cadeia de dvidas e crditos, bem como se valiam de situaes conjunturais para vender, transportar e comprar determinado produto. Criaram um sistema de segura-doras formadas a partir da associao de diversos negociantes, in-

    13 FRAGOSO, 1992; FLORENTINO, 1995; GORENSTEIN, 1993; LOBO, 1978.

    14 FRAGOSO, 1992, p.180. O autor sugere que este grupo de elite seria consti-tudo de vinte a trinta pessoas.

  • cluindo os de menor cacife, em que o crdito de um e a dvida de outro somadas acabavam por garantir o capital para arcar com esse comrcio a distncia, j que o risco de perder uma embarca-o, ou uma demora maior em algum porto africano poderia ter um custo to alto que um nico empreendedor no o suportaria. Assim funcionavam as seguradoras Indemnidade, Providente, Per-manente, e quando os comerciantes ingleses desembarcaram no Rio, associaram-se a muitas firmas locais. Dessas atividades co-merciais e do trfico nasceu uma acumulao de capital interno no Brasil e uma gama de relaes entre grandes e pequenos negocian-tes e proprietrios, que, aos poucos, financiavam o Estado.

    Havia, portanto, um sistema comercial interno colnia que divisou na instalao da corte um modo de ascenso social e de ocupar a cena pblica e poltica. O caso mais conhecido e o mais exemplar da trajetria de um negociante deste naipe foi o da fam-lia Carneiro Leo,15 cujo comeo da riqueza se deu no sculo XVIII, com a vinda do filho de lavradores, Brs Carneiro Leo, para o Rio. Ao longo de sua vida, foi caixeiro, trabalhou como agente e consignatrio de uma firma portuguesa, importou escra-vos da frica e manufaturas de Portugal, revendeu mercadorias e almas nas praas de So Paulo, Minas, Mato Grosso e Gois, com-prou casas, terrenos e propriedades urbanas, casando-se com a fi-lha de um rico negociante do Rio. Adquiriu propriedades rurais, serviu ao Estado e foi honrado com o hbito de Cristo. Seu filho, Fernando, bem administrou a firma Carneiro, Viva e Filhos. Ao contrrio do pai, fez um estgio na firma Pedra & Cia, em Lisboa, casando-se com a herdeira. Foi fidalgo cavaleiro, agraciado com o hbito de Cristo e o coronel do 1o Regimento de Cavalaria de Mi-lcia, chegando a guarda-roupa da cmara de D. Pedro. Sua firma foi a maior do Rio, associando-se inclusive aos ingleses. Tornou-se grande latifundirio, pelas terras concedidas por D. Joo. Maria Graham surpreendeu-se com a baronesa de So Salvador dos Campos de Goitacazes, viva do patriarca, sogra do Intendente da Polcia Paulo Fernandes Viana e dama da Imperatriz Leopoldina.

    15 GORENSTEIN, 1993, p.198-207, e BAEPENDI, 1880.

  • Impressionou-se com a educao das filhas, o fastio da casa, loua-ria e mobilirio.

    Estes negociantes ocuparam cargos na burocracia recm--instalada, no Servio do Pao, no Senado da cmara. Assim ga-nharam projeo e ocuparam esse espao para discutir a expanso da cidade, o abastecimento de gneros alimentcios, a organizao das festas reais.16 Paralelamente, se aproximavam do rei e se trans-formavam, mais e mais, em homens de corte, sendo lisonjeados com ttulos, mercs, honrarias, nomeaes, condecoraes, tenas e serventias de ofcios, geralmente distribudos em alguma ocasio festiva, como o aniversrio, batizado ou casamento de algum mem-bro da famlia real. Essas honrarias vinham, em geral, acompanha-das de ganhos econmicos, como a concesso de um servio do Estado, o acesso terra e sua propriedade.

    Por outro lado, ao ocupar tais cargos, muitos homens da elite financiavam obras pblicas que lhes pudessem ser bastante teis. Assim, incrementaram a construo de pontes e estradas ligando Rio-Minas-So Paulo, contribuindo para o crescimento comer-cial da regio, ou promoveram um embelezamento da capital, as-sentando o calamento, revendo a distribuio de gua e dando continuidade s mudanas que vinham desde o fim do sculo XVIII, como se deu com o Valongo, o saneamento das ruas, o cha-fariz de mestre Valentim.17

    Vrias pesquisas se detiveram na reconstruo da formao da elite do centro-sudeste, denotando sua diversidade, a preponde-rncia dos negociantes, a organizao das maneiras de fazer o co-mrcio, sem contudo haver pontos pacficos e concordncias ple-nas entre tais estudos. Antes, permitem perceber os interesses em jogo e as personagens sociais que a emergem. Por ora, rastreio es-ses grupos em choque e que vo, de acordo com a conjuntura, se aliar a fim de efetivar a emancipao poltica do Brasil no incio da dcada de 1820. Est em jogo a formao e o estabelecimento de um mercado de bens, produtos, servios, trabalhos, e quem o do-

    16 GOUVA, s. d. 17 MARQUES & SIQUEIRA, 1989.

  • mina, ou como exerce tal dominao. Da certo tom sociolgico do meu texto nesta altura.

    Havia tambm um fluxo comercial interno ao sudeste, que in-terligava Minas, Rio, So Paulo e o sul do pas, realizado por tro-peiros e negociantes, que tambm ansiavam por atuar com maior vigor no mbito poltico.18 Eles atendiam a trs ncleos de abaste-cimento: externo, atendendo a Lisboa, Porto e a regio do Prata, com sal, azeite, carne salgada; interno e baseado na cabotagem, que inclua Santa Catarina, Rio Grande do Sul, outras reas prxi-mas ao Rio de Janeiro, para onde revendiam couro, trigo, arroz e milho, hortalias. Outro ncleo interno, cujas rotas eram terres-tres e atingiam So Paulo, Mato Grosso, Gois e Minas Gerais, com gado em p, queijos e cereais. Dominavam o setor de abaste-cimento, usando a mesma estrutura mercantil do comrcio exterior, havendo firmas nas duas frentes de negcios, como a Carneiro, Viva & Filhos.

    Esta rede de abastecimento interno implicava fazendas no in-terior do pas, firmas de tropas dissociadas das casas comerciais ca-riocas, feiras, pousadas e cabotagem. Assim, estendia-se por todo o sul-sudeste, bem como prestava vrios servios Coroa, cons-truindo estradas, rotas comerciais, aparelhos burocrticos, e aca-bavam sendo recompensados com terras. Antonio da Silva Prado, depois Baro de Iguape, comeou como arrematante de contratos de cobrana de impostos, negociou acar, animais e outros gne-ros, foi senhor de engenho e at banqueiro. Como alertou Srgio Buarque de Holanda,19 a elite brasileira do incio do sculo XIX e primeiro reinado era fortemente composta por negociantes, tanto preocupados em estabelecer e incrementar o mercado, quanto em-penhados em demarcar um espao de participao poltica.

    Por outro lado, entre 1770-1790, as lavouras de cana-de-a-car, anil, tabaco, algodo e alimentos expandiram-se muito nos ar-redores do Rio de Janeiro, ocupando terras devolutas, reas de

    18 LENHARO, 1979. 19 Prefcio deste autor a PETRONE, 1976. No livro, relata-se a organizao

    dos negcios, o controle contbil, as redes de comrcio de Antonio da Silva Prado e a sua trajetria de vida.

  • posseiros e sesmarias que pertenceram Companhia de Jesus.20 Houve, segundo Salles Oliveira, na regio de Campos de Goitaca-zes e no Recncavo da Guanabara, uma mercantilizao da terra que expulsava os antigos posseiros, os pequenos arrendatrios e os ndios, em favor da formao e estabelecimento de uma proprieda-de rural particular que produzisse em grande escala. Esta dinmica de mercantilizao passou a incorporar os homens livres pobres as estas propriedades, que precisavam empregar sua mo-de-obra na produo de alimentos para a escravaria, o que vinha reforar as relaes de favor entre eles.

    Surgiram nesta regio grandes unidades produtivas, como, por exemplo, a Fazenda de Goitacazes, "que em 1779 era traba-lhada por 1.400 escravos, [sendo] adquirida em 1781 por Joa-quim Vicente dos Reis e seus scios, um dos grupos de arrematan-tes de contratos da capitania que maiores dvidas havia contrado com a Fazenda Real. Entre os fins do sculo XVIII e as primeiras dcadas do sculo XIX, Vicente dos Reis havia transformado a fa-zenda em uma empresa altamente lucrativa. Em 1820, a fazenda de Goitacazes abrangia engenhos, plantaes, cinco currais e vinte mil cabeas de gado, uma fbrica de louas, provavelmente empre-gando mo-de-obra indgena, 1.600 escravos, alm dos lavradores de cana fixados em terras aforadas e arrendadas".21

    Por um lado, estes produtores rivalizaram com o grupo de ata-cadistas, homens de "grosso trato" e tradicionais plantadores da provncia. No entanto, no se podiam desvencilhar do sistema de endividamento que com eles mantinham, e que lhes garantia a continuidade dos negcios. Por outro, dentro de suas prprias propriedades ou nos seus arredores, se depararam com esta ampla camada de homens livres pobres e ndios desligados da terra pelo processo de mercantilizao e, ao mesmo tempo, empregavam o trabalho escravo. Deste "modo de produo" e de apropriao da terra nasceu um grupo de senhores enriquecido pelas lavouras mercantis, que comercializava no mercado interno e no externo, grupo no qual se destacaram Gonalves Ledo e Clemente Pereira.

    20 OLIVEIRA, 1986. 21 Ibidem, p.90.

  • Ao final do sculo XVIII, este grupo conseguiu acesso aos pos-tos de oficiais nas milcias e ordenanas, assegurando tambm um controle sobre os homens livres pobres que ficavam sob o seu co-mando. Outro sinal da mudana de sua importncia social e polti-ca se deu com o envio de seus filhos s universidades europias, a fim de tornarem-se bacharis e poderem ocupar cargos na buro-cracia do imprio. Esse grupo de produtores, vidos por ampliar sua atuao e fora no mercado, vislumbraram, na instalao da corte, um modo de participar ativamente do jogo poltico e, igual-mente, de criar um conjunto de regras que lhes fossem mais prop-cias no que tange regulamentao do mercado, organizado at ento muito mais em benefcio do grupo anterior.

    bom notar que parte dos lucros desses homens de "grosso trato", dos grandes negociantes externos e ligados rede de abas-tecimento, financiava os gastos de apoio ao Estado, os agrados a funcionrios, filantropia e diversas irmandades, alm de um esti-lo de vida na corte, onde as aparncias muito contavam e acaba-vam por contribuir na definio do lugar social do indivduo. Des-se modo, o Rio tornou-se a corte de D. Joo, porto mercantil, ladeado de fazendas e engenhos, plo de tropeiros, base dos neg-cios ingleses, palco de festas majestosas.

    A burocracia sediada no Rio de Janeiro cresceu, com o De-sembargo do Pao, a Mesa de Conscincia e Ordens, Ministrios do Reino, Marinha e Ultramar; Guerra e Negcios Estrangeiros, Errio Rgio, Junta do Comrcio, Agricultura e Navegao, com a criao de uma rede de informaes e saberes teis ao Estado, com a Imprensa Rgia, a Escola Militar, a Fbrica de Plvora, a prpria Misso Artstica, entre outras iniciativas que auxiliavam no seu an-damento e contribuam para um refinamento da sociabilidade que a condio de corte exigia. O papel desta burocracia foi crucial para o Estado brasileiro, pois vinculava o Rio s outras provncias e, apesar da sua semelhana com a burocracia portuguesa, instala-va aqui um aparelho de Estado centralizado, com sua rotina e me-cnica, que concorriam para fixar uma soberania no Rio de Janei-ro perante as outras provncias do Brasil. Como notou Alan K. Manchester:

  • A criao do mecanismo de um estado soberano no Brasil, para-lelo e igual ao prottipo em Lisboa, produziu uma burocracia nacio-nal centralizada que contava com o Rio de Janeiro como a fonte da autoridade. Ao mesmo tempo, a burocracia das provncias expan-diu-se no interior da estrutura da tradicional administrao colonial absolutista, agora com seu foco no Rio de Janeiro. Esta burocracia, nacional e provincial, proporcionou uma estrutura administrativa j pronta, com pessoal treinado para um Brasil independente.22

    Para governar a cidade enquanto corte, foi instituda a Inten-dencia Geral de Polcia, nos moldes da portuguesa, um rgo p-blico de carter administrativo e judicirio voltado para a cidade do Rio de Janeiro, cujas funes incluam desde o calamento das ruas, reparos nas estradas, aterro de pntanos, matrculas de es-trangeiros, fornecimento de passaportes, cobrana de pedgios nas estradas e pontes, autorizao e fiscalizao de loterias, corres-pondncia com as provncias, regulamentao da entrada e sada de pessoas da cidade, tropas e gado, at a vigilncia das ruas, o controle social e policial dos ditos vadios, desertores, escravos fu-gidos e dos desordeiros. A Intendncia visava controlar os habi-tantes da cidade e se responsabilizava pela organizao da sua rede "urbana", sendo a maior parte das construes e dos servios p-blicos realizada pelos presos sob sua alada, pelos escravos aluga-dos pelo Estado e os negros ditos emancipados. A Intendncia vi-giava os habitantes da cidade e, ao mesmo tempo, se incumbia de dotar o Rio de Janeiro de uma feio de uma cidade que se com-portava enquanto corte.

    Boa parte dos viajantes que visitaram o Rio de Janeiro nesta dcada de 1810 reconhecia as mudanas, indicando um refina-mento da sociabilidade que se estendia s moradias, aos mveis, s roupas, s jias, aos adornos, etiqueta, ao comer e beber, im-portao e uso de objetos que faziam seu dono sentir-se mais ele-gante ou vontade, numa sociedade de corte que propiciava o aparecimento e a expanso de novos servios: a modista francesa, os tecidos importados, o cabeleireiro, o professor de dana, os

    22 MANCHESTER, 1972, p.83.

  • prstimos de um pintor, alm de incentivar as idas ao teatro, aos banquetes e bailes, s missas solenes, sobretudo se se contasse com a presena de algum da realeza.

    Procurava-se criar e consolidar um comportamento que fosse til e coerente nas esferas pblica e privada, que prezasse a figura do pai e do rei, correlacionando um ao outro e implicando uma noo transitiva de que o bom pai seria um bom rei, e que um bom senhor age bem em quaisquer destas esferas, sem necessariamente valer-se das mesmas qualidades ou dos mesmos procedimentos em ambas. Neste sentido, as prticas e os envolvimentos pessoais no se encontravam fora do governo e sua efetivao, antes dele parti-cipavam. Entre tal sociabilidade e o governo haveria uma coern-cia na qual os elementos se reforariam mutuamente, dotados de racionalidades parecidas, cuja principal finalidade consistia na ob-teno da obedincia de muitos e na perpetuao desta ordem. Exemplificando: um negociante capaz de administrar sua famlia, seu espao domstico e seus bens, que agisse de acordo com o comportamento catlico - freqentando as missas, cultivando o hbito de orar, distribuindo esmolas -, estaria apto a participar do mbito da poltica, para discutir o governo, a diviso dos poderes, as leis a serem formuladas e implantadas, o contrato social vigente e a questo da soberania, que foram objeto de conversas, discor-dncias e negociaes nas livrarias, tipografias, loja