434

Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

  • Upload
    peritopm

  • View
    1.980

  • Download
    15

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)
Page 2: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

I HISTÓSTA DAS I DOUTRIiTAS ECONÔMICAS I Paul Hugon

I "Uma doutriria econômica c )ns-I titui, a um só tempo, <jm prc ieto ' " * I de organização ecortômfcc. de t ada I sociedade e uma interprete. ~ã< da :*jm

atividade econômica de dada *vo- I -ca. A ciência visa à explicação dps fenômenos econômicos. A doutri­na contém os elementos da (.olí-tica econômica escolhida para rea­lizar a organização desejada." •

Essas observações de Paul Hu­gon podem ser consideradas como determinantes de sua concepção da História das Doutrinas Econô- „ micas. Como autor, Hugon focaliza as doutrinas prevalecentes gm cada época a partir de toda estru­tura cultural e organizacional, 3m que se destacam os elementos ío-ciais, econômicos e políticos cue melhor possam caracterizá-la. A doutrina econômica então desen­volvida resulta, por sua nature;ta, como uma síntese de idéias perti­nentes aos mais diversos domí­nios.

Fiel a essa colocação abrangen­te, Paul Hugon une as vantagens da narração histórica n?o apenas à análrfe das características das diversas épocas focalizadas, mas também à interdependência exis-

j tente entre os -rlnc pais proble-I mas econômicrj observados e as j doutrinas e dVetrizes políticas for-] muiadas pr a enfrentá-los

Page 3: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Z I o £ & g 8 > 1-> li ^ K i ° t

Page 4: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP

Hugon, Paul, 1902-1973 H89h História das doutrinas econômicas / Paul 14.ed. Hugon. 14. ed. -- São Paulo : Atlas, 1 9 8 0 . -

Bibliografia.

1. Economia 2. Economia - História I. Tí­tulo .

CDD-330.109 78-1745 -330.1

índices para catálogo sistemático: 1. Doutrinas econômicas : Historia

330 .109 2. Economia : Teorias 3 3 0 . 1 3. Economia : Sistemas 3 3 0 . 1 4. Teorias econômicas 3 3 0 . 1

EDITORA ATLAS S.A. Rua Helvetia, 574/578 — CElis Caixa Postal 7186 — Tel.: (011) 221-9144 01215 São Paulo (SP) BRASIL

Page 5: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

r PAUL HUGON

ÍÊÍPTlfflíílíWíilQ * ^UDIIJÍÍJIÍJÍÍIJUUDÍJÜ® 14> EDIÇÃO

QCLQS

Page 6: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

HISTÓRIA DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS Paul H u g o n

Capa e Diagramação de P A V E L G E R E N C E R

Copyright © 1984 E D I T O R A A T L A S S . A .

Ir TODOS OS DIREITOS R E S E R V A D O S — Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais, é proibida a reprodução total ou parcial, bem como a pro­dução de apostilas a partir deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio

' — eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, de foto­cópia e de gravação — sem permissão, por escrito, do Editor.

1 4 . a E D I Ç Ã O 4." tiragem — 1984

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Page 7: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

I

D E D I C A T Ó R I A

Ce livre est dédié à la mémoire

de MONSIEUR GUILHERME GUINLE et du DR. ABELARDO VERGUEIRO CÉSAR,

en hommage de ma três fidèle amitié.

Page 8: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)
Page 9: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

S U M Á R I O

Nota da 13.' edição, 13 Prefácio, 15

Introdução — Interesse da História das Doutrinas Econômicas, 21

i

I — O Pensamento Econômico da Antigüidade ao Século XVIII, 29

1 — A ANTIGÜIDADE, 30 Seção I — O pensamento econômico da Grécia, 30

§ 1." Os fatos econômicos, 30 § 2.° As idéias econômicas, 31 § 3.° Os fatos e as idéias monetárias, 36

1. Os fatos monetários, 36 2. Idéias monetárias, 37

Seção II — A evolução do pensamento econômico entre os romanos, 40 § 1." Os fatos econômicos, 40 § 2.° As idéias econômicas, 41

1. A tendência intervencionista, 42 2. A tendência individualista, 43

2 — 0 PENSAMENTO ECONÔMICO NA IDADE MÉDIA, 45

Seção I — Os fatos, 45 1. Do Século V ao XI, 45 2. Do Século XI ao XIV, 45

Seção II — As idéias econômicas, 48 § 1.° Princípio de moderação: tornar moral o interesse pessoal, 48

1. Esse princípio de moderação domina a concepção medieval de propriedade, 48

2. A idade Média reconhece a plena dignidade do trabalho humano, 50

§ 2." Princípio de equilíbrio: tornar justa a troca, 51 Seção III — As idéias monetárias, 54

§ 1.° Contestação da legitimidade das mutações monetárias, 55 § 2.° As diferentes formas de mutações monetárias, 55 § 3.° Conseqüências das mutações, 56 7

Page 10: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

3 — 0 MERCANTILISMO, 59

Seção I — Os fatos, 59 § 1." Transformação intelectual, 59 § 2.° Transformação política, 61 § 3.° Transformações geográficas, 62

Seção II — As idéias econômicas e monetárias, 64 § 1.° As idéias referentes à moeda, 64 § 2.° A idéia metalista, 65

Seção III — Os sistemas mercantilistas, 67 § 1.° A forma espanhola, 67 § 2.° A forma francesa, 69 § 3.° A forma inglesa, 70 § 4.° A forma alemã, 72 § 5." A forma fiduciária, 75 § 6° A política colonial do mercantilismo, 78

Seção IV — Influência do mercantilismo, 82

II — Doutrina Liberal e Individualista, 87

1 — A ESCOLA FISIOCRATICA, 89

Seção I — A noção de ordem natural, 91 Seção II — A noção de ordem providencial, 94 Seção III — As aplicações de ordem natural e providencial, 97

§ 1.° As aplicações na esfera econômica, 97 § 2.° Aplicações na esfera política, 98

2 — A ESCOLA CLÁSSICA, 101

Seção I — Adam Smith e o sistema de liberdade natural, 102 Seção II — Malthus e a teoria da população, 110

§ 1.° As idéias sobre a população no Ensaio de Malthus, 112 § 2.° Conseqüências doutrinais do Ensino de Malthus, 116

1. As atenuações ao pessimismo de Malthus, 116 2. As reações populacionistas, 118

Seção III — David Ricardo e a teoria da renda, 121 § 1." A teoria da renda, 122

1. Exposição da teoria, 122 2. Apreciação da teoria, 126 3. Evolução da teoria da renda, 127

§ 2.° A teoria do valor de Ricardo, 130 § 3.° A moeda, o comércio Internacional e o crédito, 132

Seção IV — Stuart MUI e a transição da Escola Liberal ao socialismo, 135 § 1." Stuart Mill e a Escola Clássica, 136 § 2.° O "estado estacionário" de Stuart Mill, problema de atualidade, 137 § 3.° Stuart Mill e o socialismo, 139

Seção V — A influência da Escola Clássica inglesa, 141 O neoliberalismo atual, 151

III — Reações socialistas contra a Doutrina Liberal e Individualista, 155

1 — CARACTERES GERAIS DO SOCIALISMO, 158

§ 1." Da igualdade como traço característico, 158 § 2° Da propriedade privada como traço característico, 160 § 3.° Da liberdade como traço característico, 161 § 4.° Características relativas ao espírito, 163

Page 11: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O SOCIALISMO ESPIRITUALISTA CHAMADO UTÓPICO 1R*

Seção I — O socialismo associacionista, 166 § 1.° A corrente associacionista liberal, 167

a) Robert Owen, 167 b) Charles Fourier, 171

1. A concepção fourierista: a associação livre e universal, 172 2. A realização fourierista: o "falanstério", 174

§ 2.° A corrente associacionista autoritária,. 179 1. A organização da associação blanquista, 180 2. A expansão da associação blanquista, 183

Seção II — O socialismo industrialista ou sansimonismo, 186 § 1.° Concepção geral do sansimonismo: o industrialismo, 187 § 2.° A obra crítica do sansimonismo, 189 § 3.° A obra construtiva do sansimonismo, 191

1. O sistema é autoritário, 192 2. O sistema é coletivista, 192

§ 4.° A influência do sansimonismo, 195 Seção III — O socialismo de trocas ou proudhonismo, 197

§ 1.° O aspecto crítico do proudhonismo, 198 1. A crítica ao liberalismo, 198 2. A crítica ao socialismo, 200

§ 2." A edificação do proudhonismo, 202 1. O princípio: a posse, 202 2. A realização: o banco de trocas, 203

O SOCIALISMO MARXISTA DITO "CIENTIFICO", 208

Seção I —• Concepção sociológica do marxismo, 210 Seção II — Concepção econômica do marxismo, 213

§ 1.° A tese da exploração, 213 1. A teoria do valor-trabalho, 213 2. A teoria da mais-valia, 215

§ 2.° A tese da evolução, 217 Seção III — Apreciação do marxismo, 221

§ 1." Apreciação da concepção sociológica e filosófica do marxismo, 221 1. O materialismo histórico, 221 2. A luta de classes, 225

§ 2." Apreciação da concepção econômica marxista, 227 1. A tese da exploração, 227 2. A tese da, evolução, 233

Seção IV — Conclusões sobre o marxismo, 238 § 1.° Valor científico do marxismo, 238 § 2.° O valor original do marxismo, 242 § 3.° A influência marxista, 245

O SOCIALISMO POST-MARXISTA, 247

Seção I — O socialismo moderado ou reformista, 248 § 1." A crítica da teoria marxista, 248 § 2." O programa de reformas imediatas e progressivas, 249

Seção II — O socialismo revolucionário ou extremista, 251 § 1." O sindicalismo revolucionário, 251 § 2.° O bolchevismo e o socialismo na URSS, 252 § 3' O socialismo marxista e a República Popular Chinesa, 262

Page 12: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

As reações não socialistas contra a doutrina liberal-individualista — O intervencionismo, 267

O INTERVENCIONISMO SOCIAL DO ESTADO, 268

Seção I — O intervencionismo de estado, 268 § 1.° Sismonde de Sismondi, 268

1. Sismondi, o crítico, 268 2. Sismondi, o reformador, 273

§ 2." O socialismo de cátedra, 276 1. Posição doutrinária, 276 2. O programa, 277 *

3. Sua influência, 279 Seção II — O intervencionismo de grupos, 280

1. O cooperativismo em teoria, 280 2. O cooperativismo prático, 282

I — O movimento católico social, 290 1. Os princípios essenciais do catolicismo social, 290 2. Principais modalidades do catolicismo social, 319

II — O movimento social protestante, 326

O INTERVENCIONISMO NACIONAL, 338

Seção I — As principais origens da economia nacional, 339 § 1.° As origens doutrinárias, 339

1. Na França: os mercantilistas, 339 2. Na Alemanha: Adam Müller, 340 3. Na América do Norte: Daniel Raymond, 342

§ 2.° A influência dos fatos, 344 Seção II — O sistema de economia nacional de List, 345

§ 1.° A oposição à harmonia de interesses, 346 1. Economia nacional e economia cosmopolita, 346 2. Forças produtivas e valor de troca, 347

§ 2.° Oposição à estática da Escola Clássica, 349 • 1. A teoria das séries de evolução econômica, 350 2. Política protecionista, 351

§ 3.° Influência do sistema de List, 357 Seção III — Os continuadores de List, 358

§ 1.° Na América — Carey, 358 1. A noção orgânica da nação, 359 2. Predomínio da agricultura sobre a indústria, 362 3. Preponderância da economia sobre a política, 365

§ 2.° Na França: Cauwès e Brocard, 367 1. Conciliação da economia nacional com a economia

internacional, 368 2. Conciliação entre a economia nacional e a economia

política, 372 3. Conclusões sobre a doutrina de economia nacional,

Reações contra a Ciência Clássica e suas Influências Doutrinárias,

A REAÇÃO HISTÓRICA E O APERFEIÇOAMENTO DA ECONOMIA APLICADA, 376 '

Seção I — As fontes principais da reação histórica, 374 Seção II — Formas de reação histórica, 379

§ 1° A antiga Escola Histórica, 379 § 2° A nova Escola Histórica, 380

Page 13: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção III — A contribuição da reação histórica, 383 § 1." O método, 383 § 2° Nova concepção econômica, relativista e orgânica, 383

1. A corrente sociológica, 384 2. A corrente institucionalista, 386

A REAÇÃO HEDONISTA E A CONSTITUIÇÃO DA ECONOMIA PURA, 390

Seção I — A contribuição da reação hedonista, 390 § 1.° Concepção científica de economia política, 390 § 2.° Noção de solidariedade econômica, 391

Seção II — Principais representantes das escolas hedonistas, 393

A CONTRIBUIÇÃO DA ESCOLA SUECA A ANALISE ECONÔMICA, 396

Seção I — Teoria do juro de K. Wicksell, 397 Seção II — A renovação e a complementação do conceito do equilíbrio

monetário wickselliano por Myrdal, 398 Seção III — Contribuição de G. Myrdal à teoria do desenvolvimento, 401

§ 1.° O processo da causalidade circular e cumulativa, 401 § 2° Necessidade de uma planificação — protecionismo e

nacionalismo, 402 § 3.° Necessidade de uma cooperação internacional, 403

A REVOLUÇÃO KEYNESIANA E A CIÊNCIA ECONÔMICA ATUAL, 405

Seção I — A crítica keynesiana relativa à teoria clássica, 406 Seção II — Princípios gerais da teoria econômica de Keynes, 408 Seção III — A revolução keynesiana e suas conseqüências para a política

e a doutrina econômica, 410 Seção IV — Os problemas principais da ciência econômica autal depois de

Keynes, 413

J. SCHUMPETER, A ECONOMIA DINÂMICA E A -MACROECONOMIA, 415

1. Biografia de J. Schumpeter, 415 2. Fontes principais de seu pensamento, 416 3. Suas obras, 416 4. Lugar de Schumpeter da História do Pensamento Econômico, 419 Conclusões, 419 índice dos nomes citados, 422

Page 14: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

NOTA DA 13? EDIÇÃi

Esta nova edição mantém, em suas linhas gerais, o texto da prece­dente. As referências bibliográficas foram completadas e atualizadas. Cer­tas doutrinas foram desenvolvidas e, à luz de estudos ou de fatos novos, algumas de suas idéias foram reinterpretadas.

Dois capítulos foram acrescentados à 5. a Parte, relativa à evolução da ciência econômica: um sobre a contribuição da Escola sueca ao pen­samento econômico — contribuição que, melhor estudada a cada dia, re­vela sua importância sobre as teorias atuais; outro que trata de Schum­peter — cujas obras constituem a base da edificação e dos progressos da economia dinâmica e da macroeconomia. Enfim, os problemas de demo-economia ocupam lugar cada vez maior na análise econômica, razão pela qual o capítulo consagrado ao Ensaio de Malthus foi completado pela ex­posição da evolução das idéias sobre a população nos séculos XIX e XX. Um parágrafo foi acrescentado ao capítulo sobre Stuart Mill pondo em relevo a atualidade de sua noção do "estado estacionário".

P. H. São Paulo, janeiro de 1973.

Page 15: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Assistia eu, em 1931, na Universidade de Buenos Aires, a uma série de conferências do Professor Louis Baudin. Conversando com o conhecido economista francês após uma das conferências sobre o ensino das ciências econômicas no Brasil, tive oportunidade de sugerir a sua vinda à nossa terra. De fato, tempos depois visitava-nos o Professor Baudin, que gostou sinceramente do que aqui viu e observou. E, desde que nos conheceu, ma­nifestou sempre o maior entusiasmo pelas nossas coisas,- tornando-se nosso grande amigo. Mais tarde, consentiu que traduzíssemos seu livro — "La Monnaie", que a Sociedade Brasileira de Estudos Econômicos publicou com tanto êxito. Mas seu entusiasmo por nós restringia-se, quanto a as­suntos de estudos e ensino, principalmente ao que se referia à Economia e Finanças. Reconhecia que o Brasil, país novo, vasto e em formação, já fizera muito, mas, como outros em idênticas condições, precisava cuidar com mais atenção dos estudos científicos, desinteressados, principalmente na parte econômica, para orientar criadoramente as novas gerações brasi­leiras e robustecer o pensamento científico nacional, que ansiava por des­ferir vôos mais largos. Estranhava não houvesse curso especial da História das Doutrinas Econômicas e que os programas das poucas cadeiras de Eco­nomia Política, então existentes, tratassem da matéria tão superficialmente, uma vez que deviam enfeixar todos os estudos das ciências econômicas em um ano de lições. A mesma opinião ouvi de quase todos os professores que depois vieram reger cursos especializados de Economia Política, no Rio de Janeiro e São Paulo.

Também eu pensava assim, por haver verificado pessoalmente, em alguns anos de exercício da profissão financeira, meu meio de vida, como eram e ainda são deficientes nossos estudos de Economia e Finanças. E, não obstante viver de meu trabalho e não possuir sobras de tempo, tenho Procurado desenvolver, no limitado de minhas forças, o trato daqueles es-

Page 16: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tudos, na sua teoria e na prática. Desde 1923, até hoje, tem sido essa uma constante de minha atividade, visando a um alto objetivo: a fundação de uma Faculdade de Estudos Econômicos, que sistematize todos esses estudos, pelo aspecto de ciência desinteressada e pelo de ciência aplicada ou repetir o que a propósito tive oportunidade de afirmar na Ordem dos Economistas de São Paulo, em concorrida cerimônia: "Além das escolas profissionais superiores onde se estudam Economia e Finanças, é preciso criar-se uma Faculdade superior de ciências econômicas que coordene, complete e de­senvolva a missão daquelas." Mas, até há pouco tempo, a Economia e as Finanças só se ensinavam nas Faculdades de Direito e nas Esòolas Poli­técnicas. Assim, contavam-se, por todo o Brasil, quatro ou cinco cadeiras de Economia Política, professadas em escolas de profissão liberal, embora fossem, como são, das mais reputadas do país pelo seu brilho, sua tradição, seu esforço cultural. E o curso de Economia, nessas escolas e faculdades, fazia-se só em um ano. Ora, é impossível estudar Economia e Finanças em um ano. Assim — dizia eu, na Câmara Federal — impõe-se a criação de uma escola superior de ciências econômicas que venha ampliar e coor­denar os estudos econômicos, que se vêm realizando nas escolas superiores e profissionais.

Para melhor explicar meu modo de ver, peço permissão para citar o meu caso. Por motivo de excesso de reformas de ensino, jamais cursei Economia Política ou Finanças na gloriosa Faculdade de Direito de São Paulo, em que me diplomei. Mais tarde, exercendo o cargo de presidente da Bolsa de São Paulo, vi a imensa lacuna de meus conhecimentos, pela minha ignorância de Economia e Finanças. Comecei a estudar ambas. Grandes e bem sérias foram as dificuldades que tive de vencer no princí­pio, por falta de livros, de orientação, de rumo certo. E fiquei sendo ape­nas um autodidata, que não completou e não completará jamais os estudos, que sempre serão deficientes por mal iniciados e mal alicerçados. Esse meu caso demonstra a necessidade de criação de uma escola supe­rior de Economia e Finanças, que forme ambiente de cultura, que publi­que revistas, que promova pesquisas, que facilite o conhecimento de livros e monografias, e que, ao lado da Economia e das Finanças puras, também, cuide de Economia e Finanças aplicadas.

Com uma escola como essa, de estudos desinteressados e estudos ob­jetivos, os que queiram ou precisem dedicar-se à Economia e às Finanças não terão que se debater de encontro a obstáculos como os que tive pela frente, conforme acabei de referir.

Em fins de 1940 tornei-me diretor da Caixa Econômica Federal de São Paulo. Encontrei lá admirável organização técnica, vivo espírito pú­blico e uma diretoria de homens de raro desinteresse pessoal. Pensei logo em propor a formação de um departamento de pesquisas econômicas e fi­nanceiras, e a instituição de curso de Economia que, mais tarde, se trans­formaria em uma Faculdade Superior de Ciências Econômicas, custeada pela Caixa, pelos governos, pelas instituições econômicas e por milioná-

Page 17: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

rios altruísticos. O Dr. Samuel Ribeiro, presidente da Caixa, espírito aber­to às coisas culturais e a empreendimentos cívicos, recebeu a idéia com acentuada simpatia e lembrou que se poderia ligar sua realização à Uni­versidade e a institutos americanos, que lhe emprestariam eficiente apoio. Sugeriu então o Dr. Artur Antunes Maciel, com assentimento expresso dos Drs. Samuel Ribeiro e João Batista Pereira, que a Caixa iniciasse logo um curso de Economia Política e que eu ficasse encarregado de convidar um professor para o reger. Desempenhei-me imediatamente da incumbência, procurando o Professor Paul Hugon, professor das Faculdades de Direito da França e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, inteligência lúcida e brilhante, mestre de envergadura, que alia a vigoroso saber especializado sólida cultura geral. E mais do que isso: que ama a nossa terra e que conhece como poucos a nossa economia e a evolução das idéias econômicas. Aceitando o encargo, desde logo ob­servou o Professor Hugon, que o curso devia começar pela história das doutrinas econômicas. Foi o que se fez. E o êxito deste foi tão grande, que o Dr. Artur Antunes Maciel propôs fosse publicado em livro. E o Professor Hugon passou a rever suas preleções. Reviu-as longos meses. E em vez de seu curso revisto, entregou à Caixa um tratado.

Editando-o para a cultura nacional, a Caixa Econômica Federal de São Paulo presta mais um bom serviço ao Brasil e à ciência, porque, mes­mo no estrangeiro, não existe trabalho novo sobre a história das doutrinas econômicas. Os livros mais conhecidos sobre a matéria, de inestimável importância, ou já são antigos ou não apanharam todo o assunto. O tra­balho do Professor Hugon não só os completa como os renova e enrique­ce de novas observações e pontos de vista, ainda não considerados nos li­vros anteriores. Ê o que vou demonstrar ligeiramente, para concluir este prefácio.

II

Nesta História das Doutrinas Econômicas, sintetiza o autor a evolução do pensamento econômico desde a Antigüidade até aos nossos dias.

Traçou o autor, com mão de mestre e finura de artista, um roteiro se­guro e agradável para quem deseja percorrer as regiões da História da Economia Política e conhecer-lhe as belezas. Elaborou um estudo original pelo método que empregou e novo pela sua extensão. Original e novo, não só para os países que se acham em formação, como o Brasil e outros, e que não cogitam, como deviam, da história das doutrinas econômicas, como também para as velhas nações cujas vistas só alcançam as próprias fronteiras. Assim, até agora, a história do pensamento econômico só con­siderou a Europa e, em parte, os Estados Unidos. Mas cada continente

Page 18: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

considerou sempre a sua economia isoladamente, em seu trabalho unilate­ral e particularista. O Professor Hugon dilatou o âmbito do estudo da evo­lução do pensamento econômico, alongando-o pelas épocas até hoje e pe­los continentes até ao Novo Mundo, em uma visão sintética de conjunto, abrangendo os Estados Unidos e o Brasil. Engrandeceu criadoramente seu objetivo, surpreendeu-o na nebulosa de suas origens, acompanhando-o pe­los acontecimentos da história, nos embates das ações e reações das dou­trinas, depois que ele começou a definir-se mais e, por fim, isolando-o, na relativa nitidez de linhas de seus contornos, à medida que as ciências so­ciais se foram diferenciando e precisando o objeto próprio e peculiar de cada um.

Focaliza o autor vinte e cinco séculos da história do pensamento eco­nômico, dividindo seu trabalho em dois largos períodos: da Antigüidade ao século XVIII e deste aos nossos dias. Aponta, como característico do primeiro período, um pensamento econômico dependente. Dependente, na Grécia, da Filosofia; em Roma, da Política e do Direito; na Idade Mé­dia, das preocupações morais e, finalmente, do entusiasmo metalista íios mercantilistas. Distingue o segundo período pela libertação do pensa­mento econômico, que se torna independente no quadro liberal e indivi­dualista, até provocar forte reação, desenvolvendo as correntes socialistas e intervencionistas. E assim, na fluência dos acontecimentos, segue-se o curso da idéia econômica, assistindo-se ao, perpassar das doutrinas que nascem, se avolumam e se derramam em outras, como águas que engros­sam outras águas, precipitando-se no mar, quando não se evaporam ou não se infiltram no solo. Observando esse desfilar de idéias, o pensamento eco­nômico apresenta as seguintes formas, como roupagens próprias de cada tempo: a) a Fisiocracia aparece com os princípios dominantes de ordem natural e ordem providencial; b) o Socialismo utópico surge com as nações dos associalistas, industrialistas etc; c) o Intervencionismo aflora, com as suas orientações principais da predominância do nacional ou do social; d) o Marxismo avulta, com os seus aspectos gerais, sociológicos ou econô­micos.

III

Termino nestas linhas o prefácio desnecessário deste livro tão inte­ressante e útil. Desnecessário, porque trabalho do Professor Hugon não precisa de quem o apresente ou recomende. Impõe-se por si. Escrevi-o só para contar como o livro nasceu, porque só um economista do porte do autor poderia gizar um prefácio que estivesse à altura da obra. E eco­nomista nem sou, por não passar de simples amador da especialidade. Nunca freqüentei curso especial de Economia ou Finanças. Por isso mes-

18 mo, por mim, é que vejo como fai falta, no Brasil, a criação de uma Fa-

Page 19: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

culdade Superior de Ciências Econômicas} Entretanto, deve-se reconhecer que a média de estudos subiu nos últimos tempos, com a fundação de no­vas instituições, como Sociedades de Estudos Econômicos, Conselho Na­cional de Estatística, Ordem dos Economistas, Conselho de Economia e Finanças, Conselho do Comércio Exterior, o D.N.C., as Bolsas, os Ban­cos; com os ensinamentos de professores de Economia e Finanças, entre os quais cumpre mencionar os das Faculdades de Direito, das Escolas Po­litécnicas, da Escola de Comércio "Álvares Penteado", das Faculdades de Administração; mas, principalmente, com os economistas franceses, que tão magistralmente têm ensinado nossa mocidade, como F. Perroux, René Cour-tin, Fromont, Gaston Leduc, Paul Hugon, Maurice Byé. Estes dois últi­mos estão formando, respectivamente, em São Paulo e no Rio, gerações de economistas de capacidade, que muito hão de concorrer para a gran­deza do pensamento econômico, no Brasil e fora dele.

Diz-me sempre o Professor Paul Hugon, conhecedor de nossas coisas e fanático amigo da verdade, que existem no Brasil grandes homens, como os que mais o sejam em qualquer país, mas que o brasileiro em geral, des­confiado, ainda não acredita que possua o Brasil culminâncias autênticas e capacidades vigorosas que possam alterar com as sumidades que o mun­do consagra e a humanidade aclama.

Meditando sobre nossa história e examinando os feitos dos nossos maiores, verificamos que grandes homens iluminaram e iluminam a for­mação e o desenvolvimento de nossa nacionalidade. E as característi­cas peculiares que a distinguem refletem aos nossos expoentes, como fi­lho do meio e do tempo. Mas nem por isso desmerecerão em confronto com os homens ilustres e representativos de qualquer parte do mundo. Quem, na Europa ou nos Estados Unidos, se destinar às carreiras liberais, às ciências ou às artes encontrará tudo ao seu dispor: curso superior, ge­ral e especial, perfeito como possa haver; ambiente estimulador, professo­res profissionais, revistas especializadas, fácil intercâmbio de centros de estudos. E nos países novos, quem quiser saber mais na sua especialida­de, por ainda prosseguir o lento e duro processo de formação, tem de des­pender maior esforço e tirar de si próprio maior potencial de energia. O que nos países novos o principiante tem de buscar penosamente, na Eu­ropa se lhe oferece com facilidade. Penso por isso que os nossos grandes homens se avantajam aos das terras mais cultas pela maior soma de tra­balho que empregam para desenvolver seu espírito e criar a verdade, o belo, o útil.

Por isso tudo, como amador da especialidade e como homem que tal­vez conseguisse ser economista se tivesse ambiente e escola, solicito, neste

1 A t - é à * u a m o r t e ' sobrevinda e m 1949 , o saudoso D R . A B E L A R D O V E R G U E I R O C E S A R não d e i x o u d e consagrar seus esforços e n t u s i a s t a s — como Secretário d e E s t a d o , Uiretor da C a i x a E c o n ô m i c a Federal , como professor ou Presidente da B o l s a de V a l o r e s de aao P a u l o — em prol do d e s e n v o l v i m e n t o dos estudos de E c o n o m i a P o l í t i c a . Os v o t o s que formulara ao_ terminar o prefácio da primeira e d i ç ã o deste l ivro foram r e a l i z a d o s : as facul-

ades de C i ê n c i a s E c o n ô m i c a s tornaram-se uma realidade nas principais U n i v e r s i d a d e s do Brasil . ^

Page 20: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

final de prefácio, ao esclarecido patriotismo dos nossos governos a cria­ção de uma Faculdade Superior de Ciências Econômicas.

Ê do que precisamos com urgência, para colaborar com eficiência, na reconstrução econômica e financeira do mundo, quando de novo im­perarem as normas eternas e invencíveis do Direito e da Justiça-

ABELARDO VERGUEIRO CÉSAR São Paulo, 1942.

20

Page 21: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

I n t r o d u ç ã o

I N T E R E S S E D A HISTÓRIA D A S D O U T R I N A S E C O N Ô M I C A S

Estas páginas representam uma súmula da evolução das doutrinas econômicas, da Antigüidade aos nossos dias.

Uma doutrina econômica constitui, a um só tempo, um projeto de organização econômica de dada sociedade e uma interpretação da ativi­dade econômica de dada época.

Esclarecemos, desde já, a distinção entre a doutrina e a ciência. A ciência visa à explicação dos fenômenos econômicos. Para isso; observa, analisa, levanta hipóteses e as verifica em confronto com os fatos. São operações desenvolvidas num ambiente de objetividade, de "indiferença", de neutralidade e amoralidade científicas.

A doutrina é um projeto de organização da sociedade, tal como seu autor a julga melhor. Ela contém os elementos da política econômica es­colhida para realizar a organização desejada.

O autor fixa "a priori" o fim que espera atingir e, para elaborar a doutrina que se lhe ajusta, vai buscar seus argumentos nas mais variadas fontes da filosofia, da sociologia, da história, da política, da religião, da geografia e da economia. Numa doutrina, encontram-se idéias morais, po­sições filosóficas e políticas e atitudes psicológicas, bem como, ainda, sub­jacentes interesses individuais, interesses de classes ou de nações.

A doutrina é, pois, pela sua natureza, uma síntese de idéias pertinen­tes aos mais diversos domínios. Por isso a organização e a interpretação econômica oferecida por ela acham-se ligadas a numerosas disciplinas, cada uma a trazer sua "éclairage" própria. Forjadas sob "la dure écoíe des siècles", as doutrinas estão pejadas de idéias e sentimentos. São gri­tos de dor e esperança. São, sobretudo, mensagens que os "homens de boa vontade" transmitem, de geração a geração, nessa luta incessante con­tra a natureza avara e o egoísmo dos seus semelhantes; mensagens que permanecem nessa "alma" que cada civilização lega à elaboração do pro­gresso da humanidade. 21

Page 22: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Que interesse apresenta o estudo das doutrinas econômicas assim compreendidas?

O primeiro interesse de seu estudo reside em completar a cultura ge­ral. Nesse aspecto, as doutrinas econômicas constituem precioso e indis­pensável elemento reconstitutivo e representativo de uma época. Um exem­plo: a segunda metade do século XVIII, fértil em acontecimentos políticos, não poderia ser interpretada com exatidão, sem o auxílio da doutrina fi-siocrática. Nesta estão refletidas as grandes idéias dominantes, agrupadas desde o início do século nessa exaltação magnífica da liberdade, que so­mente pode ser bem compreendida como reação aos três séculos de in­tervencionismo mercantilista. Encontramos na fisiocracia a reação liberal, acompanhada de seus caracteres racional (criação da ciência econômica), otimista (laissez-jaire, laissez-passer) e individualista (harmonia de in­teresses). Transportada para o plano econômico-doutrinário, constituiu a grande esperança da época, marcou e deu sentido aos acontecimentos de­cisivos desse fim de século e de regime, força atuante *que se prolongará, exprimindo-se mais vivamente na política do liberalismo econômico do sé­culo XIX. E aquilo que é verdade para a compreensão de uma época também o é para entender algumas dessas grandes obras que ilustram ci­vilizações. O conhecimento das idéias econômicas de um Aristóteles ou de um Platão, na Antigüidade, de certos teólogos da Idade Média e, mais próximos de nós, de um David Hume, de um Adam Smith ou de um Stuart Mill é indispensável para a perfeita compreensão de suas filosofias.

A História das Doutrinas Econômicas serve, outrossim, de comple­mento à cultura econômica. Para o economista, o estudo da História das Doutrinas Econômicas apresenta interesse determinado por várias razões: a doutrina, com efeito, influencia a organização e a evolução das socieda­des; seu conhecimento permite interpretar essa organização e essa evolu­ção; a doutrina atua sobre a elaboração da ciência econômica, estimulan-do-a e facilitando-a; enfim, o conhecimento das doutrinas contribui para a formação e o desenvolvimento do espírito crítico.

A doutrina — como dissemos acima —• atua sobre a organização e a evolução das sociedades: a história não se faz sozinha; resulta também de idéias dominantes. Do fim do século XV aos meados do século XVIII, per exemplo, o mundo ocidental — inclusive as colônias americanas — foi organizado em função do princípio metalista da doutrina mercantilista. Atualmente, as nações socialistas coletivistas organizam-se em função das idéias das doutrinas de Karl Marx. Há aí evidente influência das idéias sobre os fatos apenas lembrada neste momento. Mas encontrá-la-emos noutros passos deste estudo.

Além de atuar sobre a criação e a evolução das sociedades, a doutri­na interessa-nos como fator explicativo, isto é, meio para explicar a orga­nização e as transformações de uma sociedade. Seria impossível interpre­tar os três séculos do mercantilismo, conhecer e compreender as razões da organização econômica dos Estados, as políticas nacionais e a evolução econômica dessa época, sem o exato conhecimento da doutrina que o sus-

Page 23: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

citou e o interpretou. Hoje, por igual, a economia soviética e das outras nações comunistas escaparia a qualquer interpretação de conjunto à for­ma, quanto ao funcionamento e quanto às transformações, sem o conhe­cimento da doutrina que presidiu a sua criação e preside sua evolução.

A doutrina permite ügar os elementos diversos da atividade econômi­ca e social de uma época: possibilita a visão e a compreensão da unida­de da vida social e a íntima dependência de seus elementos. Ela é um dos fios condutores que permitem a distinção das ligações necessárias en­tre a multiplicidade das contingências, pondo em relevo o verdadeiro sen­tido da evolução que não raramente nos escapa, na diversidade dos curtos períodos da adaptação. Assim, ela nos leva a ver, com maior clareza, as experiências do passado e do presente.

É também de imensa utilidade para o pesquisador que, no plano da ciência, se esforça para apresentar as continuidades, as regularidades e as permanências. Nesse sentido a doutrina facilita o estudo da teoria e a elaboração da ciência, estabelecendo um nexo entre os fatos isolados — tão numerosos no campo da economia — e os princípios que os infor­mam, pondo em foco o principal e escoimando o secundário. Por isso ela representa instrumento de síntese ç, conseqüentemente, fator de clareza. Tal é a contínua e benéfica ação exercida pela doutrina sobre a ciência. A história das doutrinas torna-se indispensável à formação dos economis­tas porque é fator de clareza e de reflexão, do mesmo passo que introdu­ção e síntese indispensáveis ao estudo econômico. Economista desconhe-cedor das evoluções das doutrinas econômicas não passa de especialista sem cultura.

Haverá necessidade de falar da ação da ciência sobre a doutrina, a qual tem por fim consolidá-la e depurá-la? Efetivamente uma doutrina deve embasar parte de seus argumentos em princípios da teoria econômi­ca quando, para mais não seja, explicar e justificar o funcionamento da organização prevista. A solidez desses princípios garante a estabilidade do edifício doutrinai.1 A doutrina de Karl Marx, por exemplo, foi estabelecida com base nos princípios teóricos d; ciência clássica inglesa. Ora, quando certos aspectos dessa ciência clássica se modificaram pelas novas tendên­cias econômicas, os continuadores de Marx incorporaram esses novos da­dos mais exatos à doutrina, para maior solidez desta. Foi o que, em par­ticular, se fez na adaptação da teoria marxista da "mais valia" à contri­buição das- escolas hedonistas do último quartel do século XIX.

O estudo da doutrina, ademais, é útil à interpretação dos fatos; con­tribuindo para salientar a verdade, permite desenvolver o sentido do re­lativo e o espírito crítico. Esta é, aliás, uma das razões principais do valor da formação pelas doutrinas, pois obriga o economista, que muitas vezes raciocina com abstração ou em função dos problemas do seu tempo, a to-

r p n n ° < , u e exprimem bem estas poucas l inhas extraídas d a oração fúnabire proferida íust R E N A R D ante o túmulo d e L É O N W A L R A S : " T r a z e r mais luz para fazer J i ç a ; preparar, em nome da razão, do ideal, do absoluto, as soluções que os homens polí-

cos, homens de ação, da realidade e do r e l a t i v i s m o , podem e d e v e m introduzir nos fatos e nas leis, em prol da paz das nações e da fel icidade do gênero h u m a n o . "

Page 24: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mar contato com a variedade dos sistemas, a se compenetrar do sentido da contínua evolução e dos sucessivos e reais encadeamentos, a considerar a "multiplicidade das causas das ações humanas e a observar como são vãs as experiências que se dizem definitivas. E nesse sentido crítico ele se torna cada vez mais indispensável ao homem moderno, circundado de inú­meros fatos sociais e econômicos de difícil interpretação. Sempre houve dificuldade para interpretar fatos. Isto é devido à circunstância de o ho­mem estar constantemente mudando de idéias, o que leva a encarar os mesmos fatos de maneira diferente, segundo o momento.

Costumava o Professor Colson citar a esse respeito, em suas aulas, o seguinte exemplo: Benjamin Constant gastou quarenta anos em preparar, fazer e retocar alentada obra referente a religiões. Coligara dez mil fatos nos quais fundou seu exaustivo trabalho crítico a propósito das idéias re­ligiosas. Posteriormente, vindo a sofrer a ação de novas influências, evo­luiu e modificou por completo sua obra, alterando-lhe o espírito, embora servindo-se, nela, ainda dos mesmos fatos. "Eles deram meia-volta, à voz de comando — dizia o próprio Benjamin —, e atacam, desta vez, em sen­tido oposto." Jean Brunhes traduzia desta maneira, idêntica idéia: "Ê por um estranho abuso de palavras que falamos da veracidade de um fato. Um fato possui dimensão ,• cor, duração, mas não uma verdade: verdadei­ra ou falsa será a percepção que dele temos, assim como mais justo ou menos justo pode ser o juízo que dele formamos. E só. há notícia das re­lações que estabelecemos entre os fatos."

A interpretação dos fatos é também difícil, porquanto eles falam lín­guas diversas. Nas vastíssimas experiências contemporâneas, por exemplo, cada Estado adota sua política em vista da consecução de certos fins, bem como justifica os fatos daí decorrentes.

O julgamento dos indivíduos torna-se cada vez menos pessoal. O.Es­tado moderno, ao apresentar os acontecimentos através da imprensa e ou­tros veículos de publicidade, já o fez de acordo com uma interpretação particular. Por esta razão, o mesmo fato muitas vezes enseja impressões diferentes e até opostas, conforme o lugar em que se dá. A ideologia trans­forma a realidade dos fatos. Além disto, o atual acúmulo de fatos dificul­ta-lhes ainda mais a interpretação. Poucas épocas contaram tão elevado número de experiências econômicas quanto a que atravessamos. Há já um quarto de século e sobretudo a partir do início da crise mundial de 1929, multiplicam-se ininterruptamente, em toda parte, os remédios para os males econômicos e. monetários, quer sob forma isolada, quer como parte de "planos". Cada país, finda a Segunda Grande Guerra Mundial, reorganiza e, em escala ainda mais vasta, traça planos para o futuro de sua economia. Parece que estamos, agora, precisamente naquele momento da História em que, precipitando-se as mudanças em ritmo aceleradíssimo, melhor seria fa­lar em revolução do que em evolução. Os fatos se acumulam; enriquecem--se com as descobertas físicas fantásticas, que semeiam, a um só tempo, o temor pelas suas possibilidades destrutivas e a esperança por tudo que promete realizações pacíficas as mais extraordinárias.

Page 25: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O observador atento, esmagado pelas minúcias de fatos tão diversos, perde de vista a linha geral da sua evolução e do seu encadeamento, pois é impossível a apreensão do valor de cada um dos acontecimentos, em vista do seu excesso. Se não nos quisermos perder nesse labirinto e se pre­tendermos, ainda, estar em condições de formular juízo de valor, indispen­sável será ligar tais fatos à doutrina, de que constituem a aplicação, bem como aos princípios de que emanam. Para tentar compreender e julgar, faz-se mister, mais do que nunca, avocar as apreciações ministradas pela história dessas doutrinas gerais acerca de fatos a cujo peso sucumbimos.

Relacionando fatos a princípios, a história das doutrinas econômicas oferece outra utilidade: concorre para que saibamos que experiências, apre­sentadas como originais e modernas, não passam, no mais das vezes, de aplicação de antigas doutrinas alteradas, aqui e ali, a sabor da moda em voga. Os exemplos são numerosos, como veremos ao longo destas pági­nas. O ressurgimento do mercantilismo e do corporativismo depois da guerra de 1914 constitui um fato característico. O recurso à história das doutrinas oferece, em suma, o interesse de evitar o ridículo de "descober­tas já feitas"; de possibilitar a verificação do grau de. originalidade da dou­trina considerada, ou seja: o de divisar semelhanças e dissemelhanças entre ela e o seu ou seus modelos; o de permitir o máximo aproveitamento do esforço despendido pelos predecessores, evitando a reincidência nos mes­mos erros de outrora. Graças a isto, o espírito é capaz de acolher, objetiva e imparcialmente, todas as novas experiências econômicas, sabendo que ne­nhuma delas é original, mas herdeira de desenvolvimentos múltiplos que a antecederam. Sabendo, por fim, que nenhuma pode ser definitiva, uma vez que foge ao poder do homem estancar a evolução.

Eis, rapidamente, aqui, examinado o interesse que suscita a história das doutrinas econômicas.

Salientamos, ainda, que a evolução do pensamento econômico deve ser submetida a estudo feito de maneira muito ampla. Por outras palavras: é necessário conhecer a doutrina havida como falsa no passado, tanto quan­to a havida como verdadeira.

Houve autores que julgariam melhor se evitassem o estudo da idéia "falsa". Tal o pensamento de J. B. Say, em seu "Traité d'Économie Poli-tique": "Os erros não são aquilo que devemos aprender, mas aquilo que deveríamos esquecer." Assim também pensam Pantaleoni. e muitos outros. Semelhante juízo se coaduna, entretanto, com as chamadas ciências "exa­tas". Realmente, ao moderno estudioso da física pode ser indiferente saber que, na Idade Média, a ascensão de um líquido num tubo era explicada. pelo "horror ao vácuo".

Todavia, no campo das ciências sociais e econômicas, tanto as teorias falsas quanto as exatas exprimem igual interesse. "É essencial — observava Condilac —, para aquele que deseja progredir sozinho na busca da ver­dade, compreender o engano dos que acreditaram abrir seu caminho."

Page 26: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Depois dos trabalhos de Bergson e particularmente de Henri Poincaré, ficou estabelecido, em definitivo, que os erros representam papel útil, nas ciências sociais sobretudo. Na doutrina econômica, o erro oferece utilida­de: primeiro, porque toda doutrina econômica tem por objeto o homem e, de acordo com.Spencer, em matéria de psicologia "não há erro que não contenha partícula de verdade"; segundo, porque é proveitoso conhecer o processo pelo qual o erro foi posto em evidência, a fim de aperfeiçoar o método de encontrar outros erros; terceiro, porque, ao colocarmos o erro em evidência, podemos chegar à descoberta de princípios que, embora ex­tremamente simples, passaram antes despercebidos.

A negligência de tais princípios conduz, não raro, à adoção de solu­ções não adequadas. É nesse sentido, por exemplo, que o exame das dou­trinas socialistas, chamadas "utópicas", se torna útil. Muitos desses sis­temas ignoraram ou puseram de lado qualquer consideração relativa ao interesse pessoal. Ora, o conhecimento dos impressionantes fracassos des­ses sistemas, ao contato da realidade, teve o mérito de chamar a atenção para verdades primárias e esquecidas. Não fosse essa advertência, alguns princípios fundamentais, havidos como verdades de somenos, acabariam sendo verdades ineficazes.

Em suma, a utilidade do estudo do erro, no campo econômico, de­corre sobretudo da dificuldade de saber quando determinada doutrina é, de modo absoluto e definitivo, falsa ou exata.

Além da procedência da observação de Spencer, à qual nos referimos acima, há ainaa a notar que a evolução das .condições sociais e econômi­cas parece concorrer para a transformação de uma doutrina, de modo a torn^-la, de absolutamente falsa que era ontem, em relativamente exata hoje, e vice-versa.

Impossível, pois, abandonar o estudo de certas doutrinas, apenas sob pretexto de terem sido consideradas falsas no passado.

O conhecimento do papel desempenhado pelos erros, tão útil à his­tória das doutrinas econômicas, é também indispensável a quantos se inte­ressam por essa matéria: constitui um constante apelo à modéstia e ao senso de relativismo, reforça o hábito de controlar as verdades "adquiri­das" e de jamais abandonar a priori o que foi qualificado de "erro".

Acabamos de insistir na influência da doutrina sobre os fatos, sobre o meio, sobre a organização e evolução das sociedades. Mas, não nos de­vemos esquecer de que o meio influi também de maneira igualmente pro­funda sobre a doutrina.

Alternativamente — como observamos no decorrer desta exposição — doutrinas e fatos são causas e efeitos recíprocos. Portanto, a história das doutrinas não pode ser separada da história econômica. Esta constitui seu próprio meio de evolução e ação, no qual se encontram os elementos indispensáveis à sua compreensão. O próprio objeto da história econômica não nos permite duvidar de sua utilidade relativamente ao estudo das

Page 27: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

doutrinas. Seu objetivo é o estudo dos aspectos econômicos das sociedades do passado. Esses aspectos se manifestam essencialmente pela maneira segundo a qual os homens, através dos séculos, organizam seus esforços no sentido de utilizar da melhor maneira possível os bens e serviços eco­nômicos na satisfação de suas necessidades.

Esses aspectos econômicos constituem essa luta, de atos tão diversos, que a humanidade sustenta progressivamente contra a raridade dos fatores de produção, raridade em relação às múltiplas necessidades a satisfazer. E essa luta se desenvolve em meio físico e demográfico e em quadro ins­titucional, social e político. A arma à disposição do homem é a técnica da produção, técnica que aperfeiçoa incessantemente a fim de aumentar a produtividade de seu trabalho.

Os caracteres preponderantes da atividade econômica de uma socie­dade, em dado momento, definem um sistema econômico. Definem o espí­rito, ou seja, os móveis determinantes da atividade econômica; definem' a técnica, ou seja, os meios utilizados pelos homens para produzir; defi­nem o quadro, isto é, a organização social, jurídica e institucional na qual se desenvolve a atividade econômica individual, grupai e pública. Notemos, porém, que as atividades grupais e públicas não são simplesmente a resul­tante das atividades individuais componentes: têm um caráter orgânico que ultrapassa e transforma os componentes individuais.

O espírito, a técnica e os quadros caracterizam e definem sistemas econômicos: sistemas de economia fechada, de economia artesanal, siste­mas de economia capitalista e sistema de economia coletivista. A passagem de um sistema a outro se faz através de transformações dentro do sistema e no quadro mais geral das modificações das estruturas econômicas.

A organização dessa atividade econômica em dado momento da his­tória, as transformações dessa atividade no tempo, as suas conseqüências sociais e políticas, eis o que constitui o objeto da história econômica.

É fácil agora ressaltar a utilidade da história econômica para o es­tudo das doutrinas. Ela lhe fornece o material de que necessita para reconstruir a atividade econômica de uma sociedade ou de determinada época, o que vai permitir o conhecimento, a análise e a explicação dessa atividade. Ao mesmo tempo que a história econômica dá assim uma vi­são de conjunto daquela atividade, mostra, pelo conhecimento das evolu­ções, o sentido profundo das instituições e dos instrumentos econômicos (regimes de propriedade, organização do trabalho, moeda e t c ) . Além disso é útil para a elaboração de uma escala de valores entre os próprios fatos, problemas importantes em razão da multiplicidade e complexidade desses fatos.

Insistiremos, portanto, cada vez que se tornar necessário, sobre Os aspectos dessa história econômica.2

érn das referências b i b l i o g r á f i c a s especiais indicadas no texto, eis a l g u m a s indi-obras de história e c o n ô m i c a g e r a l : S E L I G M A N , E. R. A. , The Economic Inter-

Page 28: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Concluindo: a doutrina econômica é conhecimento indispensável à formação, à cultura e às pesquisas científicas do especialista, quer do eco­nomista, quer do historiador. É para todos um conhecimento necessário à exata interpretação do passado e do presente. A doutrina econômica, parte integrante do pensamento, das idéias e da intelectualidade de uma época, é elemento eficaz, sempre vivo, algumas vezes decisivo, da organi­zação e da evolução das sociedades; situa-se na linha divisória dos proble­mas do espírito e dos fatos e, porque largamente assentada nesses dois domínios, permite perceber a síntese.

pretation oi History ( 9 . a ed.) , 1907; A D R I A N O A N T E R O , História Econômica, 2 v o l s . , 1915-22; S O M B A R T , Der Modera Kapitalisme, 6.» ed., 4 v o ls . , 1924-27; L I O N E L L O - C I O L O , Histoire Économique depuis VAntiquité jusqu'à nos Jours, 1938; M A X W E B E R , História Eco­nômica Geral, 1942; S I E V E R I N G e C. B E C K E R , História Econômica Universal de la Prehis-tona, 1943; W E R N E R S T A R K , The History oi Economics in its Relations to Social Develop-ment, 1944; C H A R L E S M O R A Z É , Histoire des Faits Économiquès et Sociàux, 1 9 5 1 ; M A I L -L E T , Histoire des Faits Économiquès, 1952; H O R A C I O B L I S S , Nociones de Historia Econômica General, 1953; E L E A N O R A W I L S O N C A R U S , Essays in Economic History, 1954; G. D. H. C O L E , Introducción a la Historia Econômica (1750-1950), L o n d r e s , 1952, l l é x i c o , 1957; N Í ­V E A U M . ; Histoire des Faits Économiquès Contemporains, P a r i s , 1966; I M B E R T , J . : His­toire Bconomique des Origines à 1789, Paris , 1965; P H I L I P , A . : Histoire des Faits Écono­miquès et Sociaux de 1800 à nos Jours, Paris, 1964.

Page 29: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Título I

O P E N S A M E N T O E C O N Ô M I C O D A ANTIGÜIDADE A O

S É C U L O XVIII

Esse vasto período que se estende da Antigüi­dade ao século XVIII apresenta, no campo de nos­so estudo, duas características opostas:

— existência de uma vida econômica; — ausência de um pensamento econô­

mico independente e coerente.

29

Page 30: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A N T I G Ü I D A D E

Seção I

0 PENSAMENTO ECONÔMICO DA GRÉCIA

§ 1.° — , O s fatos econômicos

Do século XII ao VIII antes da nossa era, conheceu a Grécia, tão--somente, uma vida econômica doméstica. Mas, após essa época, chamada "homérica", no período clássico do século V e, mais ainda, na era helê-nica dos séculos IV e III a. C. , observa-se o desenvolvimento de uma vida econômica propriamente dita, ou seja, de uma vida econômica de trocas.1

Os estrangeiros e os libertos são, então, os agentes mais ativos dessa economia estimulada pelas imensas conquistas que abrem à Grécia ricos e novos mercados.

Aliás, o comércio e a navegação se impõem aos gregos:

— a pobreza do solo, a exigüidade do território e o excesso de sua po­pulação tornam o comércio necessário;

— o mar, com seus numerosos golfos e baías, estava a indicar aos gregos o largo caminho dos longínquos mercados.

Reunia, portanto, a Grécia antiga os principais elementos de um meio econômico.2 E o normal seria encontrar-se aí, dada a influência do meio

1. O Prof. G A É T A N P I R O U , no seu l i v r o Intioduction à VÉconomie Politique, define precisamente a E c o n o m i a P o l í t i c a como "o estudo dos v a l o r e s de troca. A troca é o ato econômico característ ico e consiste em uma prestação e contraprestação, por parte de duas pessoas, em virtude de um acordo de vontades". ( G A É T A N P I R O U : Intioduction à 1'ttude de VÉconomie Politique, in Traité d'Économie Politique, ed. por G. P I R O U e B Y É , P a r i s , 1938, p. 212.)

2. Cf. A L F R E D O Z I M M E R N : The Greek Commonwealth, Politics and Economics in the Vth Centruy, Oxford, 1924; G U S T A V E G L O T Z : Le Travai! dans la Grèce Ancienne, P a r i s , 1920; Histoire Économique de la Grèce depuis la Période Homérique jusq'à la Conquête Romai-ne, Paris , 1920; P A U L G U I R A U D : La Propriété Foncière dans 1'Ancienne Grèce, Paris , 1893;

Page 31: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ambiente sobre as idéias, um pensamento econômico igualmente florescente. Contudo tal não se deu.

Existem apenas, esparsas nos tratados de filosofia, algumas idéias eco­nômicas fragmentárias. Não há obra de Economia Política nos moldes, poi exemplo, dos tratados de mecânica ou geometria da época; se alguns auto­res tratam do problema econômico, fazem-no de maneira acidental.

Contrastando com a pujança e o brilho característico do pensamento grego em geral, quer em filosofia quer em ética e política, as idéias econô­micas, enfezadas e incompletas, mal chegam a revestir uma forma precisa.

§ 2.° — As idéias econômicas

Essa ausência de um pensamento econômico independente se explica pelo predomínio da filosofia. A filosofia imprime, então, uma orientação geral ao pensamento, e impede o estudo independente e profundo dos pro­blemas econômicos pelas seguintes razões principais:

— idéia de preponderância do geral sobre o particular; — idéia de igualdade; — idéias de desprezo da riqueza.

1. A Grécia se divide em cidades independentes, sempre em guerra umas com as outras. A cidade constitui, portanto, a principal ocupação, à vista da permanente ameaça à sua liberdade.

O sacrifício do indivíduo à cidade é a regra. Os problemas de bem--estar individual se subordinam aos de segurança e prosperidade gerais.

2. Outra idéia filosófica predominante e absorvente é a de igualdade. Nesse país, onde os meios de existência são limitados, parece impos­

sível possa alguém enriquecer senão à custa das perdas de outrem. A exi-

H E I C H E L H E I M , Fr. Wirtschaitsgeschichte des Altertums. L e y d e (2 v o l s . ) , 1938; E U G È N E C A V A I G N A C : Population et Capital dans le Monde Méditerranéen, P a r i s , 1923; L'Economie Grecque, Paris, 1951 (contem abundante b i b l i o g r a f i a ) ; G E R N E L , L., Comment Caractériser L'tconomie de la Grèce Antique?, in A n n a l e s , Écon., Soe. Civ. , 1933; F R A N C O . T T E : ^In­dustrie dans la Grèce Ancienne (2 v o l s . ) , B r u x e l l e s , 1900; H. M I C H E L L ; The Economics oi Ancient Greece, C a m b r i d g e , 1 9 4 1 ; M. R O S T O V T Z E F F : The Social and Economic History oi the Hellenistic World (3 v o l s . ) , O x f o r d , 1 9 4 1 ; M I C H E L H . : The Economics oi Ancient Greece, 1941; M O R E A U J . : Les Théories Démographiques dans 1'Antiquité Grecque, in R e v u e Populat ion, 1949.

A história econômica da Grécia a n t i g a e c l á s s i c a é geralmente mal conhecida por re­pousar em d o c u m e n t a ç ã o descontínua, cujo v a l o r tem sido muito d i s c u t i d o (aspectos essenciais dessas controvérsias são encontrados no art igo de Edouard W I L L , Recherches sur 1'Économie Grecque Antique, in R e v u e A n n a l e s É c o n o m i q u e s , Sociétés. C i v i l i s a t i o n s , j a n v . - m a r s , 1954, p. 7-19). N e s s a s condições, atualmente ainda não é p o s s í v e l um resumo da história econômica da Grécia antiga. Somente indicações gerais podem ser dadas s o b . r e s e r v a , para interpretações de determinadas épocas. N e s s e sentido, pode-se dist inguir uma estrutura e c o n ô m i c a agrícola P. eJ" sistente, acompanhada de uma produção artesanal arcaica, d e s t i n a d a à s a t i s f a ç ã o de neces­sidades l i m i t a d a s . A m b o s setores da p r o d u ç ã o permaneceram r e l a t i v a m e n t e p o b r e s ; para satisfazer às crescentes necessidades da C i d a d e , porém, d e s e n v o l v e r a m - s e as trocas do comer­ão exterior. O v o l u m e , a c o m p l e x i d a d e e a extensão desse comércio, i n i c i a l m e n t e tão pouco l ^lportante, d e s e n v o l v e m - s e , p r o g r e s s i v a m e n t e , mas, como observa E . W I L L (op. cit. , p . 19) , Permanecendo sempre modestos em r e l a ç ã o às nossas modernas concepções, se bem que a exis-

encia de consideráveis riscos c o m e r c i a i s tenha oferecido p e r s p e c t i v a s de lucros substanciais, f r f l n d o c a m m h o para a c i v i l i z a ç ã o c r e m a t í s t i c a , sob a forma d o crédito c o m e r c i a l marít imo <•«• G - M . C A L K O U M , Risk i n Sea; i n Journal E c o n . Busin., H i s t . I I , 1929-30, p . 561).

Page 32: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

güidade dos recursos naturais suscita problemas de ordem econômica que terão repercussão no pensamento filosófico.

De fato, a igualdade, em seu aspecto ético, domina todas as manifes­tações teóricas e práticas do espírito grego. E, com razão, pode-se falai da igualdade como o "eterno tormento da Grécia".

A preocupação igualitária preponderava também na esfera econômica. Nada mais evidente que a influência por ela exercida sobre a política de­mográfica da época. Todas as medidas tomadas nesse campo tendem a assegurar uma população sempre estável, estática. Malthus irá também, mais de vinte séculos depois, procurar os meios de limitar e estabilizar o volume populacional. A finalidade do economista inglês era, todavia, eco­nômica — manter certa proporção entre os meios de subsistência e a po­pulação — ao passo que a dos gregos era precipuamente de ordem ética.

O Estado ideal dos gregos deveria compor-se de determinado número de habitantes, a ser este mantido estável.3 São condições que parecem favoráveis à manutenção da boa ordem política. Platão fixa em 5 040 4. o número de cidadãos gregos de uma cidade — seja uma população de 50 000 habitantes, se acrescentarmos mulheres e escravos.

Encontra-se esta idéia de igualdade em todos os campos; as terras devem ser divididas em partes iguais. É imbuído desse espírito que de­creta Phaléias, da Calcedônia, a obrigatoriedade de casamentos entre po­bres e ricos.

A preocupação econômica é, pois, eclipsada pela filosófica. Platão, por exemplo, estuda a divisão do trabalho, chegando mesmo a considerar com muita sutileza a sua necessidade e suas vantagens. Indica, entretanto, não ser isto possível senão havendo uma população densa. Mas, ao invés de concluir pela necessidade de estimular o crescimento da população, prefere privar-se das vantagens de uma produção dividida a se sujeitar aos inconvenientes que, segundo ele, por certo adviriam de uma população numericamente importante.

3. A atitude filosófica conduz, enfim, a< desprezo da riqueza. Eis como o exprime Platão: "O ouro e a virtude são como dois pesos colo­cados nos pratos de uma balança, de tal modo que um não pode subir sem que desça o outro."

A felicidade reside na virtude; a riqueza é um obstáculo à felicidade; logo, deve-se desistir de obtê-la.

A preocupação essencial do homem deve ser a vida da alma; vêm em seguida os cuidados com o corpo e, em último lugar, com a riqueza. "O homem é só alma — escreveu Xenofonte — ou nada é." "A vida verda-

3 . U m e c o n o m i s t a i n g l ê s d o s é c u l o I X , S T U A R T M I L L , p r o c l a m a i g u a l m e n t e a s v a n ­t a g e n s d e c o r r e n t e s d e u m E s t a d o e s t a c i o n á r i o . N o s é c u l o X X r e t o m a V I L F R E D O P A R E T O t e s e s e m e l h a n t e . D i s c u t i r e m o s m a i s t a r d e a s d i f e r e n ç a s e x i s t e n t e s e n t r e a s i d é i a s d e s s e s a u t o r e s e a s d o s g r e g o s .

4 . E s s e t o t a l é e s c o l h i d o p e l a c o m o d i d a d e q u e a p r e s e n t a p a r a u m a p a r t i l h a i g u a l ; c o m e f e i t o , c o n t é m 5 9 d i v i s o r e s . R e f l e t e , a d e m a i s , u m a a t i t u d e p i t a g ó r i c a : é o p r o d u t o d o s 7 p r i m e i r o s n ú m e r o s i n t e i r o s .

Page 33: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

deira começa com a morte", afirma Platão. Esse desprezo da matéria, das riquezas, constitui um empecilho para se dedicarem os homens livres às atividades econômicas.

O caráter político desta economia da "Cidade-Estado", na Grécia clássica, leva o cidadão a dar seu sangue à cidade durante a guerra e de­dicar-lhe seu tempo durante a paz. Os negócios públicos reclamam-lhe a atenção, em primeiro lugar e acima de tudo; os negócios privados vêm em segundo plano. E de tal modo absorventes são os deveres do cidadão que pouco tempo lhes deixam para se dedicarem a atividades econômicas. A maior parte dessas é relegada aos escravos enquanto a comercial é priva­tiva dos estrangeiros. A posse do ouro e da prata é também vetada ao cidadão grego; vedados igualmente os empréstimos a juros. A proprie­dade de cada cidadão se limita, no máximo, a quatro lotes de terra; e se por acaso, em virtude de uma herança, exceder esse limite, ao Estado caberá o excesso.

Por esses exemplos pode-se ver que o pensamento filosófico grego, dada a sua expressão social, igualitarista e desinteressada, tornou impos­sível a elaboração geral e sistemática do pensamento econômico. E par­ticularmente em virtude desse desprezo pelos bens materiais teve o pensa­mento dos filósofos como conseqüência impedir o desenvolvimento da ri­queza: nesse sentido é essencialmente antieconômico.

Todavia, da ausência de um pensamento econômico geral e sistemá­tico, não devemos concluir faltassem de todo à Grécia antiga idéias econô­micas.5 Nos principais tratados de filosofia se encontram esparsos os pri­meiros elementos das grandes doutrinas econômicas, ou seja, os germes das correntes individualista, socialista, intervencionista, cuja evolução acom­panharemos, através dos tempos, até nossa era. Daí ser interessante indicar aqui os seus aspectos principais.

1. Distingue-se, em primeiro lugar, uma corrente individualista. Sur­ge como reação ao meio ambiente: caracteriza-a o fato de contrapor à razão de Estado a razão individual. Formulasse, então, o problema do direito das pessoas em relação ao da cidade. As vantagens da produção servil são postas em dúvida; contesta-se o desprezo da riqueza e há uma primeira tentativa de reabilitação do trabalho.

Na realidade, trata-se de uma corrente cuja influência foi secundária. Compreende escritores da segunda ordem, dos séculos V e VI a. C. , os sofistas Hípias, Protágoras e outros. Em virtude de combaterem as medi­das intervencionistas e conceberem uma economia no plano cosmopolita, esses sofistas se aproximam, por assim dizer, dos economistas do século XVIII, fisiocratas e clássicos, que também se opunham — então com su­cesso — ao intervencionismo generalizado na época.

2. Observa-se, em segundo lugar, uma importante corrente socialista, cujo principal representante é Platão (427-347 a . C . ) . 6

Z O G - w C r : A ' T R E y E R : A History o i Greek Economic Thougbt, 1 9 1 6 ; Jesus S I L V A H E R -H- r. i \ r ' s t o r l ? y Antologia dei Pensamiento Econômico: Antigüedad y Edad Media, F o n d ' de Cultura E c o n ô m i c a , M é x i c o . 1939.

Page 34: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Este socialismo assume aspectos diferentes nas duas grandes obras do autor: "República" e "Leis":

Na "República" expõe Platão um socialismo bem diferente do das "Leis" e descreve o Estado ideal. A idéia geral consiste na implantação de um Estado onde reine a justiça e no qual possa o cidadão consagrar o máximo de seu tempo aos estudos filosóficos e à atividade política. Com este objetivo em mira, a parte reservada à Economia deve limitar-se ao mínimo necessário.

Platão descreve minuciosamente o plano dessa sociedade desejável. Compõe-se de guerreiros, magistrados e trabalhadores manuais. Guerreiros e magistrados — os verdadeiros homens livres — são os senhores da ci­dade; e também seus servidores, pois direitos e deveres devem estar su­bordinados ao princípio de igualdade. Esses homens livres estão sujeitos a um regime de comunismo absoluto: comunismo de mulheres, de filhos e de bens. O princípio do desprezo à riqueza encontra aqui sua aplicação: o comunismo de bens põe-no em evidência; o de pessoas assegura-lhe a continuidade. De fato, seria construir obra provisória suprimir-se a pro­priedade sem destruir a família: "seria destruir a árvore deixando-lhe a raiz".

O trabalhador manual é excluído dessa organização comunista: a pro­priedade privada lhe é concedida desdenhosamente. Comerciante e artesão só merecem o desprezo de Platão; em contraposição o agricultor é objeto de certa consideração.

Nas "Leis" expõe Platão um socialismo diferente e bem mais mode­rado. Não se trata aí de um projeto ideal e utópico, mas de um programa suscetível de realização imediata a fim de melhorar o Estado ateniense de sua época. A finalidade é a mesma, isto é, estabelecer mais justiça e or­ganizar a sociedade de modo que possibilite os meios de moderar o homem os seus desejos materiais e, assim, ficar livre para dedicar-se aos cuidados do espírito. Trata-se ainda de colocar o Estado em primeira plana, ga-rantindo-lhe o poder econômico através da solidariedade dos indivíduos. Daí resulta um regime autoritário, regime de transição, a fim de preparar o sistema ideal do futuro.

Os meios preconizados são, contudo, diferentes. O problema já não é o comunismo, e, sim, mais modestamente, o "apropriacionismo" ou par-ticipacionismo (partagisme). O programa se refere, particularmente, às vantagens resultantes da partilha das terras em pequenos lotes iguais, cada homem se tornaria proprietário de um deles, a título privado.

Justo é reconhecer que, na "República", de Platão, se encontram expressas, de modo geral, as primeiras tendências da corrente socialista, cuja evolução, até atingir suas formas atuais, jamais sofreu, através dos séculos solução de continuidade.

6. Cf. E. B A R K E R : Política] Thought oí Platon and Aristotle, N o v s Iorque, 1915.

Page 35: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Aliás, é necessário frisar, desde já, que o socialismo concebido por Platão na sua "República" — socialismo idealista e aristocrático — se diferencia de maneira profunda das formas modernas revestidas por essa doutrina.

O comunismo de Platão é uma doutrina de renúncia: busca uma fórmula intermediária de limitar as aspirações, enquanto o socialismo con­temporâneo procura soluções que permitam alcançar o máximo de satis­fação. O comunismo de Platão concebe a transformação da sociedade se­gundo uma concepção da moral e não em função de uma necessidade histórica; este o ponto de vista "utópico" para a doutrina marxista e que, por conseguinte, os separa.

O comunismo de Platão é reservado às classes dirigentes superiores, ao escol da sociedade. Os beneficiários serão os guerreiros e os magis­trados e não a classe trabalhadora. Não se trata de ditadura do proleta­riado, mas do domínio de uma elite. Eis aí outro traço que o distingue do socialismo atual.

3. Em terceiro lugar, encontra-se, no pensamento grego, uma cor­rente intervencionista, representada por diversos pensadores, dentre os quais Aristóteles (384-322 a . C . ) é o mais importante.

Este, em sua "Política", faz severa crítica ao comunismo de Platão. Os argumentos aí desenvolvidos se tornaram clássicos.

Se o comunismo fosse o regime melhor — diz ele — de há muito ter-se-ia realizado. Insiste na oposição existente entre o comunismo, de um lado, e a propriedade 7 e a família, de outro. E tão arraigadas estão estas duas últimas instituições na psicologia humana que impossível parece extirpá-las.8

Adversário de Platão, no que concerne à organização comunista da sociedade, Aristóteles dele se aproxima pelo desprezo que vota à liberdade individual e à propriedade privada.9

É, também, partidário da supremacia do Estado e, de certo modo, do igualitarismo. Na sua teoria sobre a população, recomenda medidas inter-vencionistas severas de limitação da reprodução, a fim de manter a esta­bilidade demográfica.10 Nesse, como em muitos outros campos, dá ao Es­tado preponderância sobre o indivíduo.

, 7 ~ . r : J. L E S C U R E : La Conception de la Propriété chez Aristote, in R e v u e d 'Histoire aes D o c t n n e s Économiques, Paris. 1908; O N K E N : Die Staatslehre des Aristóteles, 1870-75. D»ff?i 5 c r ! < l c a s d « A R I S T Ó T E L E S a o c o m u n i s m o d e P L A T à O constam, e m particular, d a Política, í*, I I , Cap. I I I , §§ 2 e segs.

Ções difer ] u s t i f ' c a S a o d a propriedade p r i v a d a por A r i s t ó t e l e s constitui objeto d e interpreta- • ( s o b r e t u d r e n t e S p a l g u m a s P a r t e s d a P o l í t i c a p e r m i t e m admitir que s e oponha a essa inst i tuição

j u s t i f i c a la ° V 1 U ) ; cutr?s, ao contrário, e que são mais numerosas, conduzem-no a L i v r o I I e m Particular quando crit ica o c o m u n i s m o d e P l a t ã o (cf. sobretudo. P o l í t i c a , como d e ' f e n a P ' A ^ m g r a n a e número d e autores é . assim, conduzido a apresentar A r i s t ó t e l e s Analysis 1954) p r o P r i e d a d e p r i v a d a (tal como Schumpeter em sua History oi Economic

s e n t a i n a u a n c V e r í : í n C Í a S ^ °P>nião parecem provir do fato do pensamento de A r i s t ó t e l e s apre-admite ao co t " e ? s e P o n , ° : porque se ele admite o fundamento, o principio da propriedade, L i v r o I I r , „ ° f1 0 SU e s e u u s o d e v e . e m muitos casos, ser comum (nesse sentido, P o l í t i c a ,

in 'D 5 e H. Dénis , Histoire de la Penséc Économique. 1966). P o l í t i c a , h b . V I I , cap. 16.

Page 36: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

As medidas preconizadas por Aristóteles são menos absolutas que as de Platão; seu intervencionismo é mais realista que o comunismo deste.

Na Grécia antiga se encontra, pois, o germe das três grandes corren­tes: individualista, socialista e intervencionista.

A doutrina individualista, que não é propriamente uma doutrina, mas um conjunto compreendendo aspectos muito diversos e interessantes de idéias liberais aplicadas à Economia; em contraposição à primeira, a dou­trina comunista de Platão, que reage energicamente contra o espírito capi­talista do liberalismo e do individualismo econômico, na medida em que este espírito contraria a filosofia da justiça; finalmente, a doutrina inter­vencionista, sob a forma de intervencionismo do Estado. Eis aí onde ter­mina a evolução de Platão nas suas "Leis". Eis aí também o essencial do pensamento econômico de Aristóteles.

Por, mais interessante que seja, esse pensamento doutrinário fornece somente elementos fragmentários e incompletos para a formação do pen­samento econômico que se beneficiará — sempre a propósito de problemas filosóficos ligados à vida política — de idéias interessantes sobre questões econômicas e, sobretudo, a respeito de questões monetárias.

§ 3.° — Os fatos e as idéüas monetárias

1. OS FATOS MONETÁRIOS

Em geral concorda-se em fixar o aparecimento, na Grécia, da moeda metálica "cunhada" entre os séculos VIII e VII a .C .

É a época em que, sob a influência da expansão geográfica, a Eco­nomia grega se volta para o mar. É a extraordinária epopéia da coloni­zação, levada a efeito de norte a sul pelos gregos da Ásia e no Ocidente pelos gregos do Continente. Esta colonização representa, na Antigüidade, uma revolução econômica cujo objetivo é em primeiro lugar comercial — encontrar produtos e mercados — e, em segundo, agrícola — adquirir terras.

A moeda é o instrumento necessário a essa expansão econômica. •• Não se trata de um aparecimento "ex-nihilo", mas do resultado de

longa evolução econômica. Já existia de há muito a moeda-mercadoria. A época homérica conheceu, entre outras, o gado como moeda corrente. Na sua "Política", relata Aristóteles como, pouco a pouco, a intensificação das trocas concorreu para a intervenção da moeda propriamente dita.

Havia uma grande variedade de moedas gregas:

— variedade, primeiro, em relação ao metal de que era constituída. Roscher diz ter servido o ferro como matéria-prima das primeiras moedas, depois, os metais preciosos — ouro e prata — simulta-

Page 37: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

neamente" com o chumbo, o cobre e o bronze, foram utilizados para esse fim;

— variedade, também, em relação à aparência: embora a unidade monetária fosse a dracma, as peças de moeda traziam os mais diferentes cunhos. O conhecimento desses cunhos ê muitas vezes de grande utilidade para a compreensão dos textos da época. Re­produziam muitos deles a figura de uma coruja: O Professor Gon-nard refere-se a uma passagem dos "Oiseaux", de Aristófanes, na qual este fala de "corujas que fizeram seus ninhos nos bolsos". 1 1

Trazem ainda a figura de outros animais e, muitas vezes, efígies; — variedade, enfim, no que se refere ao valor das peças. O Estado

grego submete a moeda a constantes alterações. E a falsificação privada da moeda, mais freqüente ainda do que a pública, irá mul­tiplicar essas alterações.

2. IDÉIAS MONETÁRIAS

Tal variedade monetária, bem como as trocas existentes entre as ci­dades gregas e entre estas e o estrangeiro, constituíam fatos que permiti­ram aos contemporâneos certo número de observações sobre a matéria. 1 2

Donde serem as obras escritas, na época, sobre a moeda, mais numerosas e interessantes do que as referentes a outros problemas econômicos.

Aliás, conforme se pode verificar pela história das doutrinas, as idéias monetárias são, muitas vezes, mais adiantadas que as demais idéias econô­micas. Isso parece estar a indicar, no que concerne à moeda, ser muito ní­tida a influência da arte sobre a ciência.

Aristóteles, na sua "Política", faz o histórico da moeda e mostra ter tido a sua invenção por fim obviar as dificuldades da troca direta. A troca por meio de moeda, operação abstrata, suprime os inconvenientes da per-muta ou troca direta, ato concreto.

Tomando, assim, por base a aparição da moeda, estabeleceu Aristóte­les sua fundamental distinção entre as duas economias sucessivas:

— a crematística natural, economia doméstica, a qual julga boa e necessária;

— e a crematística não natural, economia mercantil, censurável por levar o homem a auferir da troca um provento, o que é contrário à "natureza".

Ora, a crematística não natural, de Aristóteles, consiste na troca por intermédio de moeda, ou seja, na troca tendo em vista não apenas as ne­cessidades pessoais, mas também a revenda. E no livro I, cap. IV, § 2.°,

m i o 1 1 ' . A j ? I S T Ó F A N E S : Les Oiseaux, verso 1106. L e r : R . G O N N A R D , Les Idées Écono-1 ? r-t , s t o P n a n e , i n R e v u e d ' É c o n o m i e P o l i t i q u e , P a r i s , jan. , 1904.

N A R n S O U C H O N : Les Théoiies Économiques dans la Grèce Antique; R E N É G O N -Mon-t- H ' J Í t 0 ' r e Doctrines Économiques, Paris , 1935; C. J. D A M I R I S : Le Système meir» s c ' P a r i s ' 1 9 2 0 < 3 -° v o 1 - ) : E S P I N A S : Histoire des Doctrines Économiques (pri-Paris P a r t e > ; W I L L , E d . : Recherches sur 1'Economie Grecque, in R e v . A n n a l e s , 1954, n.° 1,

Page 38: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

da "Política", examina Aristóteles, para condená-los, os três processos dessa crematística não natural, a saber: o lucro comercial, o lucro usuário (o juro) e o lucro industrial.

Essas idéias de Aristóteles, baseadas na aparição da moeda na vida econômica, profunda e durável influência exerceram sobre as doutrinas econômicas da Idade Média e outras doutrinas mais recentes:

— os fisiocratas, no século XVIII, delas se servirão para distinguir comércio de tráfico;

— Carey as retomará no século XIX, conferindo-lhes uma posição fundamental em suas teorias;

— Karl Marx usará a distinção aristotélica e, na sua "Crítica da Economia Política", de 1859,13 examinará separadamente a "eco­nomia simples e a economia capitalista"; e tal distinção ocupará lugar de destaque em sua obra;

— modernamente, no século XX, falará Charles Bodin, acompanhan­do a distinção aristotélica, em "economia simples" e "economia derivada".

Há ainda, em Aristóteles, uma observação bastante precisa relativa­mente às diversas funções da moeda: indica servir esta, a um tempo, de intermediária das trocas, de instrumento de comparação de valores e de reserva de valor. Essa enumeração será posteriormente mantida: Galliani, Hutcheson e Adam Smith retomá-la-ão no século XVIII. Conserva ainda hoje a mesma importância, não podendo, pois, ser omitida. 1 4

Mas, tanto Aristóteles, como os socráticos, focalizaram também uma segunda questão monetária do mais alto interesse doutrinário: depende o valor da moeda do metal precioso que a constitui ou provém ele da auto­ridade que a põe em circulação?

Parece haverem os socráticos, conscientemente ou não, examinado o que de essencial existe nas teorias monetárias metalista e nominalista.

Xenofonte, na "Economia" e no "Tratado dos Rendimentos", vê no metal precioso, de que é feita a moeda, a essência do seu valor. Essa idéia metalista persistirá: vamos encontrá-la de novo principalmente em "Les considérations sur la monnaie" (1777), de Daguessau. Turgot, nas suas "Refléxions sur la formation et la distribution des rechesses", assim se exprimirá: "Ouro e prata são duas mercadorias como quaisquer outras". Os marxistas far-se-ão adeptos de tal maneira de ver para justificar a teoria do valor-trabalho.

Platão, em contraposição, dá ênfase ao aspecto nominal do valor da moeda. Nas "Leis" insiste na moeda-sinal. Seria, contudo, exagero crer que a concepção de Platão se filia, de modo refletido e científico, a uma tese nominalista. Razões outras há que podem explicar a sua preferência:

13. Zur Kritik der Politchen Oekonomie, 1859 (p. 137 da ed. K a u t s k y ) . 14. C o n s u l t a r em particular, Charles R I S T : Histoire des Doctrines Relatives au Crédit et

à la Monnaie depuis John Law jusqu'à nos Jours, Paris , 1938, p. 328.

Page 39: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

— vivendo numa época em que a onipotência do Estado é um dog­ma incontestado, só isso bastaria para justificar estatismo monetá­rio;

— mas, além disso, passou a Grécia, no século V, por.rápidas trans­formações econômicas. O brusco desenvolvimento da riqueza mo­biliária é acompanhado de um desequilíbrio social que atemoriza os filósofos. Segundo alguns, caberia à moeda a responsabilidade dessas transformações. O metal precioso parece ser o agente cor­ruptor; o remédio deve, portanto, estar naturalmente na moeda--sinal, simples símbolo. Isso leva Platão a olhar a "Idade de Ouro" como a feliz era do banimento do ouro nas trocas. Todavia, dada a impossibilidade de conceber o seu experimentado espírito, a su­pressão do metal nos pagamentos ao exterior prevê um duplo sis­tema monetário: utilização da moeda fiduciária, para uso interno, e conservação da plena vigência da moeda-metal-prncioso, para o uso externo.

Vê-se, pois, ter sido Platão partidário, como as reservas acima indi­cadas, de uma teoria monetária nominalista.

Estas idéias serão retomadas pelos adeptos da teoria regalista medie­val e constituirão a teoria mais geralmente em voga, mesmo em nossos dias, servindo de justificação às inúmeras mutações, inflações e desvalori­zações por que tem a moeda passado no decurso dos séculos.

Essas mesmas idéias são na atualidade retomadas e levadas ao extre­mo por F. Knapp. 1 5

Aristóteles, na sua "Política" e na "Ética de Nicômaco", não se define claramente, oscilando entre uma e outra dessas concepções. Alguns, como Roscher, por exemplo, julgam-no partidário do valor nominal da moeda. A posição de Aristóteles seria, entretanto, menos nítida que a de Platão, pois, em certas passagens de suas obras, 1 6 acentua também o fato de ha­verem os homens escolhido a moeda dentre as coisas para eles dotadas de certo valor. A esse valor intrínseco do metal precioso acrescenta o cos­tume, senão a lei, outro elemento de valor.

É possível admitir haver Aristóteles observado essas duas espécies de valor que se superpõem na moeda, constituindo, assim, as suas idéias uma síntese das duas opiniões contrárias, de Xenofonte e de Platão.

Sem insistir muito nesta questão, que suscitou inúmeras discussões dou­trinárias, observaremos haverem exercido as idéias de Aristóteles grande influência tanto pela parte de verdade que encerram quanto pelos seus erros, pois desempenham estes, muitas vezes, um papel útil, conforme tive­mos oportunidade de dizer.

h a v ' F - K N A P P : Staatliche Theorie des Geldes. É interessante notar que esse autor, após e . r P r e c ° m z a d o uma moeda fiduciária p a i a a c i r c u l a ç ã o interior, é levado, como P l a t ã o , a

do C a ií i r-j a. " e c e s s i d a d e de uma moeda internacional para as trocas com o e x t e r i o r : é o caso „„j C o n n e c 'dissimo sistema do padrão-ouro de trocas (gold exchange standard), cuia paternidade

V e V t r Í b u í d a a P L A T Ã O .

, ? j . E s P e c ' a l m e n t e n a p a s s a g e m d o l ivro V d a Ética d e Nicômaco, S A I N T - G E R M È S : n . » 2 * M o n i t a i ' * s <><> I a Grèce. in R e v u e d 'Histoire É c o n o m i q u e et S o c i a l e , Paris, 1928,

Page 40: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Além dos socráticos, inúmeros autores gregos fizeram também obser­vações muito exatas relativamente aos fenômenos monetários. Aristófanes, entre outros, em uma das suas comédias, "As Rãs", pôs habilmente em evidência o fato de preferirem os habitantes de Atenas, segundo parecia, as peças monetárias más às boas. Indicou, assim, os efeitos de uma lei eccnômica, formulada no século XIV por Nicole Orèsme, à qual, no século XIV, ligará o seu nome o grande financista inglês, Sir Thomas Gresham. 1 7

Em resumo, as idéias monetárias dos gregos se apresentam sob forma muito mais desenvolvida e precisa que as idéias econômicas propriamente ditas.

Entretanto, os juízos emitidos a respeito da moeda não escapam à influência filosófica da época: a filosofia leva os espíritos, mesmo de quan­tos, com mais argúcia, percebem o papel da moeda, ao desprezo dos me­tais preciosos, e isso por ser conveniente, de um lado, procurar reduzir as trocas e, de outro, suprimir no homem o gosto do luxo, que a posse dos metais preciosos jamais deixou de acarretar.

O pensamento grego, econômico e monetário permanece, assim, su­bordinado ao filosófico.

Seção II

A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO ECONÔMICO ENTRE OS ROMANOS

O pensamento econômico romano está subordinado não mais à filo­sofia, mas à política.

Encontraremos de novo, na Roma antiga, o paradoxo da ausência de um pensamento econômico geral e indepenüente, a despeito da existência de uma vida econômica.

§ 1." — Os fatos econômicos

O meio econômico é mais intenso que na Grécia. 1 8

Trata-se de um enorme império cuja unidade econômica tem por só­lidos alicerces as admiráveis vias de comunicações: a Itália é cortada, em todos os sentidos, por estradas em excelentes condições, e, no período im-

17. E s t a lei se enuncia da seguinte m a n e i r a : Q u a n d o , em um país, c i r c u l a m s i m u l t a n e a ­mente duas m o e d a s , uma delas considerada boa pelo p ú b l i c o e a outra má, "a moeda má expulsa a moeda b o a " Cf. L. B A U D I N : A Moeda, na excelente tradução de A B E L A R D O V E R G U E I R O C É S A R , São P a u l o , 1940, cap. V I .

18. M. R O S T O V T Z E F F : Social and Economic History oi the Roman Empire, O x f o r d , 1926; J. T O U T A I N : L'Économie Antique, P a r i s , 1927, Dureau de LA M A L L E : L'Economie Politique des Romains, 1840, 2 v o l s . : Jesus S I L V A H E R Z O G , op. c i t . ; T. F R A N K : An Eco­nomic History oi Rome, B a l t i m o r e , 1927; H E I T L A N D , W. E . : Agrícola, a Study oi Agricul-ture and Rustic Liíe in the Grecoroman World, irom the Point oi View oi Labour, C a m b r i d g e , 1921; C H A R L E S W O R T H , M. P . : Trade-Routes and Commerce oi the Roman Empire, C a m ­bridge, 1924; P I R E N N E , H . : Les Grands Courants de l'Histoire Universelle, (t. I ) , P a r i s , 1944-1957.

Page 41: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

perial, essa rede rodoviária se estende por todas as províncias, expandin-do-se ao redor dos grandes centros.

O estabelecimento da Pax Romana foi um dos fatores mais favorá­veis à expansão das trocas: a navegação no Mediterrâneo é, no decurso desse período, próspera e segura. Roma torna-se grande mercado para onde afluem os produtos de todas as províncias. As transações são parti­cularmente ativas, assitindo-se, então, à criação de poderosas companhias mercantis e sociedades por ações.

Mas essa atividade econômica não gera qualquer pensamento doutri­nário interessante.

Enquanto, entre os gregos, a explicação deste fenômeno estava na fi­losofia do desprezo à riqueza, vamos encontrá-la, entre os romanos, no es­pírito político preponderante em todas as suas atividades.

A missão histórica da Roma antiga foi militar e política. Aí reinou imperativamente o espírito de dominação. A riqueza constituía apenas um meio de assegurar esse domínio, nunca uma promessa de bem-estar.

As grandiosas realizações da época — quer se tratasse de estradas, de aquedutos, enfim, de magníficos trabalhos de arte, de qualquer espécie — tinham sempre em vista o fim político, nunca o econômico: necessário era garantir, de forma rápida e segura, o transporte e o abastecimento das tropas; exercer, até aos pontos mais afastados do Império, vigilância e fis­calização.

O romano é consumidor, mas não quer ser produtor. Sem dúvida era próspera, a princípio, a agricultura romana; mas logo os lavradores indí­genas, pequenos proprietários de suas terras, foram sendo substituídos por escravos, enquanto a pequena propriedade, de cultura intensiva, cedia o passo ao latifúndio, de cultura extensiva. Dentro em pouco passaram as artes e os ofícios industriais e o comércio a ser considerados atividades indignas de um homem livre: Roma faz com que as províncias, conquis­tadas e escravizadas, produzam e abasteçam-na do necessário ao seu con­sumo.

O pensamento romano concentra-se, pois, inteiramente no fato polí­tico. E além disso, se levarmos em conta a carência de originalidade espe­culativa de que padecem os romanos — suas idéias foram, de maneira geral, tomadas de empréstimo aos gregos —, compreender-se-á por que, a despeito de existir uma ativa economia de troca, nota-se, nçste campo, a ausência de pesquisas teóricas sérias.

§ 2." — As idéias econômicas

Nas obras dos teóricos romanos pode-se, contudo, perceber traços de duas tendências doutrinárias opostas: intervencionista, uma; individualis­ta, a outra. A primeira exerceu acentuada influência sobre os aconteci-

Page 42: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mentos econômicos da época; a segunda desempenhou um importante pa­pel, mediato e indireto, sobre a evolução da história das doutrinas.

1 . A TENDÊNCIA INTERVENCIONISTA

Esta tendência prepondera na antigüidade romana e se manifesta de modo característico na política chamada anonária-

A intervenção do Estado é provocada por dificuldades de abasteci­mento, que se tornaram agudas no ano 495 e, sobretudo, em 440; a len­tidão dos transportes e um estado de guerra bastante prolongado são suas causas principais.

O Estado açambarca, então, o mercado dos cereais. Leis famosas or­ganizaram essa intervenção que, de século para século, se torna mais es­trita. Citemos, à guisa de exemplo:

— a lei Semprônia, de 123 a . C , encarregando o Estado da distribui­ção de cereais abaixo do preço de mercado;

— a lei Clódia, do ano 58 a . C , reservando o benefício de tal distri­buição aos indigentes;

— uma lei Aureliana, do ano 270 da nossa era, determinando fosse feita a distribuição do pão diretamente pelo Estado.

Bem conhecidas são as desastrosas conseqüências dessa ampla inter­venção :

— do ponto de vista das finanças públicas, concorreu para aumentar o déficit orçamentário;

— do ponto de vista social, encorajou a plebe à indolência e serviu de incentivo a inúmeras fraudes;

— do ponto de vista econômico, constituiu uma das causas mais pro­váveis da decadência da agricultura itánca e, sobretudo, acarretou a regulamentação total da economia iomana.

Com efeito, a fim de assegurar o funcionamento dessa política anoná­ria, foi o Estado obrigado a regulamentar a produção agrícola e a troca de produtos.

Os regulamentos pulularam; nas regiões produtoras de cereais, como a Sicília, por exemplo, legislou o governo no sentido de impedir vendes­sem os lavradores suas colheitas a outrem que não os compradores oficiais de Roma; a semeadura era controlada, a colheita fiscalizada e monopoli­zados os transportes. Sistema semelhante se encontrará de novo nos sé­culos XVI e XVII, na era mercantilista, sob o nome de pacto colonial. E, a partir do segundo terço do século XX, vamos observar a adoção de complicada política de regulamentação, não muito diferente do sistema anonário em alguns de seus aspectos.

Page 43: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Contra este abuso de regulamentação não se encontra, então, uma oposição doutrinária deliberada e firme. Mas, ante a decadência em que caíram, a um tempo, a agricultura, o povoamento do solo e os costumes, numerosos autores fizeram ouvir a sua voz de protesto. Exprimiu-se este, na maioria das vezes, sob a forma bucólica de hino, celebrando, no retor­no à terra, o meio de se encontrar, de novo, a prosperidade material e o equipamento moral. Esses autores são agrupados sob a denominação geral de "scriptores de re rústica", incluindo-se entre eles particularmente: Ca­tão ("De re rústica"), Varrão ("De agricultura"), Virgílio (principalmen­te as "Geórgicas") e Columella ("De agricultura").

Esses escritores legaram-nos verdadeiros tratados agrícolas muitas ve­zes poéticos, sempre práticos, mas quase que inteiramente desprovidos de qualquer observação de ordem econômica propriamente dita.

Essas diferentes obras traduzem, sobretudo, a necessidade de retornar à terra, a qual tanto mais premente se torna quanto é fato se agravar a situação material e social. Poder-se-ia comparar esse estado de espírito ao que animará os fisiocratas franceses no século XVIII. 1 9

2. A TENDÊNCIA INDIVIDUALISTA

Esta tendência é representada pelos jurisconsultos romanos. Em seus notáveis trabalhos, que souberam desafiar os séculos, assentaram as sóli­das bases do direito de propriedade privada e instituíram a sistemática do direito das obrigações.

Esses jurisconsultos, dotados de acurado senso econômico, lançaram, assim, os fundamentos essenciais do individualismo.

Sua influência doutrinária não se fará sentir imediatamente na econo­mia política; será necessário que os sábios da renascença descubram os seus trabalhos para que, no século XVIII, e somente então, apoiando-se nessas bases romanas, se desenvolva o liberalismo através das escolas fisio-crática e clássica.

E, necessário fosse sistematizar a contribuição doutrinária da época romana à nossa disciplina, por certo dar-se-ia preeminência à obra desses jurisconsultos, da mesma forma que a mereceu, na Grécia antiga, a con­cepção estatal de Platão.

19. As idéias monetárias dos romanos são pobres e não merecem, nos l i m i t e s desta ex­posição, que lhes seja dedicado um d e s e n v o l v i m e n t o especial . A moeda aparece muito m a i s tarde em R o m a : bs " a s " , unidade monetária p r i m i t i v a dos povos da Itál ia Central , não cir­culam senão a partir do ano 430 a . C . ( S e g u n d o B e b e l d o n ) . A primeira moeda de prata só foi cunhada um século mais tarde. T o d a v i a , tão logo se generalizou o uso da moeda, inúmeras foram as alterações por que passaram. E, pois, à falta de teorias interessantes sobre a moeda, iegaram-nos os romanos e x p e r i ê n c i a s monetárias múltiplas e instrutivas. Ler a esse respeito L O U I S B A U D I N , La Monnaie et la Formation de Prix, Paris , 1.» parte, 1938; R E N É G O N -N A R D : Histoire des Doctrines Monétaires. Paris, 1." tomo, 1936; G R A N T , R i c h a e l : Roman Imperial Money, 1954.

Page 44: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Essas duas correntes antagônicas, emergidas do pensamento antigo, jamais deixarão de — ora uma, ora outra — fazer sentir a sua influên­cia na evolução das doutrinas econômicas.2 0

20. P a r a fazermos com que a história do pensamento econômico da A n t i g ü i d a d e conserve o lugar, n e c e s s a r i a m e n t e restrito, que lhe cabe em um estudo geral das doutrinas, somos obrigados a s i n t e t i z a r extremamente uma e v o l u ç ã o c o m p l e x a . E s t e esforço de síntese e n v o l v e sempre um certo risco. T o d a s i m p l i f i c a ç ã o está faci lmente sujeita a uma deformação. T o d a ­via, como o essencial , em obra deste gênero, é a apresentação dos aspectos m a i s importantes, gerais e pe r m an e n t e s de um longo período histórico, com as mais diversas fases h i s t ó r i c a s e econômicas, somos forçados a dar realce às p o l í t i c a s econômicas intervencionistas que foram as adotadas com maior freqüência. M a s é e v i d e n t e que se deve concluir daí que a intervenção foi uma única pol í t ica, o único pensamento então elaborado e adotado.

Q u a n d o , por exemplo, a Grécia saiu venced o ra nas guerras contra os p ° r s a s , a vi tória transformou A t e n a s em campeã da l iberdade i n d i v i d u a l . T o m a forma, então, um pensamento liberal, cujos princípios elaboradores foram os sofistas. E entrega-se a Grécia, ao mesmo tempo, à o r g a n i z a ç ã o liberal do seu comércio e de suas finanças.

E s t e período de expansão econômica de A t e n a s pode ser comparado à época v i t o r i a n a dc Império b r i t â n i c o . A t e n a s importa as m a t é r i a s - p r i m a s do Oriente e do O c i d e n t e e vende ao mundo inteiro os seus produtos acabados. A tetradracma ática, por v o l t a dos meados do século V a . C . é a da mesma forma que a libra esterlina do século X I X , a moeda mundial . O seu c o m é r c i o — transformado, por assim dizer, em alma da economia g r e g a — apóia-se, a um tempo, sobre a liberdade dos mares e das trocas.

No caso trata-se, de fato, de uma fase de economia liberal que, em uma história consa­grada aos fatos econômicos, mereceria um estudo mais aprofundado. M a s , do ponto de v i s t a da doutrina e c o n ô m i c a é de pouco relevo, pois, se por um lado deu lugar a uma m a n i f e s t a ç ã o de idéias l i b e r a i s de todos os matizes, por outro não chegou à e l a b o r a ç ã o de uma verdadeira doutrina de economia liberal.

E o m e s m o acontece em relação 3o p e n s a m e n t o romano.

A partir da fundação de Roma (753 a . C ) , através de todo o período da realeza até ao apogeu da r e p ú b l i c a (por v o l t a da 2. a Guerra P ú n i c a ) , ficou a economia subordinada sobretudo à i n t e r v e n ç ã o do grupo e da cidade. M a s na era da expansão romana para fora da I t á l i a , assiste-se a uma fase de economia i n d i v i d u a l , de tendência liberal. As trocas internacionais consti tuem, então, a razão de ser da economia romana, tal como se dera com a A t e n a s v i t o ­riosa e,. modernamente, com a Inglaterra do século X I X . F o i com grande acerto que Jean E O D I N , em sua " R e p ú b l i c a " , comparou esta a t i v i d a d e , que carreia para R o m a os tesouros do mundo de A l e x a n d r e , à Renascença, a b a s t e c e n d o a Euro p a com as riquezas do n o v o mundo.

M a s a fase l iberal é de curta duração. C o m o advento da restauração — cujo apogeu é assinalado pelo século de A u g u s t o — e, posteriormente, do alto e .do b a i x o I m p é r i o e, afinal, com a i n v a s ã o dos bárbaros (476 d . C . ) e conseqüente queda do Império romano, a economia autoritária e d i r i g i d a passou a constituir a regra. T a l como sucedera com a a n t i g ü i d a d e grega, foi o i n t e r v e n c i o n i s m o que, quer nos fatos, quer nas doutrinas, predominou na R o m a antiga. E foram esses aspectos do intervencionismo, em p o l í t i c a e em doutrina, que então melhor carac­terizaram a e v o l u ç ã o econômica desse período da A n t i g ü i d a d e , considerada no seu conjunto. N ã o e s q u e ç a m o s , contudo, que, neste mundo romano, o indivíduo encontrará sua força na obra dos j u r í s c o n s u l t o s , ao mesmo tempo em que a pessoa humana afirmará o seu valor através do c r i s t i a n i s m o .

A b i b l i o g r a f i a indicada nas duas seções deste capítulo I permitirá o estudo mais aprofun­dado dessa época, de modo a se apreenderem os aspectos complementares das idéias essenciais apresentadas no texto.

Page 45: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O P E N S A M E N T O E C O N Ô M I C O N A IDADE M É D I A

Seção I

OS FATOS

Do ponto de vista econômico, a Idade Média pode ser dividida em dois períodos principais:

1. DO SÉCULO V AO XI

Com as invasões dos bárbaros, desaparece a economia antiga, e o feudalismo, então na sua plenitude, cria, com o fracionamento político, a fragmentação econômica.

A produção é quase que exclusivamente rural e as trocas, insignifi­cantes e na maioria das vezes familiais, jamais ultrapassando o quadro local: é à sombra do castelo senhorial que a vida econômica transcorre. Sofrível o estado dos meios materiais de troca: as grandiosas estradas ro­manas, mal conservadas, tornam-se logo intransitáveis. E rudimentares também são os meios jurídicos de troca: a moeda é de mau quilate e de circulação restrita.

2. DO SÉCULO XI AO XIV

Após esse longo período de decadência e obscuridade, a civilização Vai reanimando-se, a partir do século XI, para expandir-se do século XII em diante. Ressurge uma vida econômica de trocas. As causas dessa reaparição encontram-se essencialmente no esforço desenvolvido pela Igre­ja e pela Realeza em prol do estabelecimnto da ordem, no campo social, e da organização, no político. 45

Page 46: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O quadro onde se dá esse reaparecimento é a região. A região tor-nar-se-á um centro quase que único de colaboração, produção e trocas; sua autonomia econômica se acentuará de modo bem nítido e dentro de seus limites funcionará uma autarquia mais ou menos pronunciada, não tanto por sistema quanto por necessidade.1

O agente dessa nova vida econômica será a cidade que desperta, se desenvolve e se transforma no elemento ativo da região. Lugar de prote­ção contra a insegurança passa logo a constituir um centro de comércio.2

Nessas cidades os homens se agrupam e se defendem, a um tempo, contra os perigos do banditismo e os excessos dos senhores. Graças ao trabalho, as cidades se enriquecem e podem adquirir suas franquias. Nessa indepen­dência nascente se desenvolve a burguesia e as classes laboriosas se li­bertam.

A associação rege o trabalho; a corporação se organiza. Nessa eco­nomia de trocas, ainda restritas, que surge, justifica-se a regulamentação corporativa,3 encarregada de adaptar a produção a uma procura fraca e incerta. Dá-se especialização em ofícios. A divisão do trabalho aumenta as quantidades produzidas. O mercado se expande. A cidade, com as suas profissões especializadas, necessita, para sua manutenção, dos pro­dutos agrícolas das cercanias. As trocas urbano-rurais se generalizam e completam.4

A produção cresce o suficiente para poder o artífice atender não só às encomendas feitas, mas também às exigências de uma procura mais ge­neralizada. O comércio se estende, tornando-se inter-regional com o apa­recimento das feiras. Estas são grandes mercados onde já se efetuam trocas de monta: têm por objeto sobretudo produtos de luxo e, por vezes, agrí­colas também. As feiras exigem meios materiais para uma comunicação mais rápida e segura. Realmente há um esforço no sentido de melhorar as vias de transporte, oferecendo também garantia aos mercadores que por elas transitam. As feiras exigem, igualmente, meios jurídicos de troca mais estáveis e em maior número: a meda e o crédito tornando-se necessários, expandem-se. Justo será reconhecer constituírem a organização e a ati­vidade dessas feiras — das quais as de Flandres, de Champagne e de Beau-

46

1. L e r a p r o p ó s i t o : L. B R O C A R D : Conditions Générales de 1'Activité Économique, Paris,-1934, p. 499 e segs. Lucien B R O C A R D , professor universitário da F r a n ç a , estudou, nessa obra n o t á v e l , principalmente, os diferentes aspectos dessa economia regional. De grande uti­l idade será t a m b é m a consulta de sua obra p r i n c i p a l : Príncipes d'Éconcmie Nationaíe et Inter­nationale, P a r i s , 1929-31, 3 vols.

2. P I R E N N E , H . : Les Villes et les Institutions Urbaines (2 v o l s . ) , 1939; Histoire Écono­mique de 1'Occident Medieval, Paris , 1 9 5 1 , C A L M E T E , J . : Le Monde Féodal, Paris , 1 9 5 1 ; Les Villes du Moyen-Age. Essai d'Histoire Économique et Sociale, B t u x e l l e s , 1927.

3. C.c L'Organisation Corporative du Moyen-Age à la fin de 1'Ancien Regime (obra de vários c o l a b o r a d o r e s ) , publicada pela U n i v e r s i d a d e de L o u v a i n , L o u v a i n , 1937- B O I S S A N N A -D E : Le Travail dans VEurope Cbrétienne au Moyen-Age ( X V et X V I è m e s s i è c l e s ) , Paris , 1921; C O O R N A E R T : L'Organisation Corporative du Moyen-Age à la fin de VAncien Regime, L o u v a i n , 1939.

4. Cf. R. G R A N T : L'Agricutture au Moyen-Age, de la fin de L'Empire Romain au XVI-ème dècle, P a r i s , 1950; N E I L S O N , N . : Medieval Agrarian Economics, 1935; C L A P H A M , J. H. e P O W E R , E . : The Cambridge Economic History of Europe fiom the Decline cf the Roman Empire (vol . I ) , The Agrarian Life of the Middle Age, 1932; Maurice L O M B A R D : L'Évolution Urbaine au Moyen-Age, in Annales, j a n v . - m a r s , 1957; H E E R S , I.: L'Occident aux XIV et XVèmes Siècles. Aspects Économiquès et Sociaux, 2.ed. (Colléction Clio), Paris, 1966.

Page 47: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

caire foram as mais célebres — a origem do grande capitalismo comercial moderno.5

O impulso que se imprimiu, assim, ao comércio, teve, com as cruza­das, desenvolvimento ainda maior.

Iniciadas no século XI, por ocasião da partida dos cruzados, em 1096, para libertar Jerusalém do domínio turco, renovar-se-á o movimen­to nos séculos seguintes.

Sua influência é importante, pois:

— criam as cruzadas uma atmosfera propícia a deslocamentos para regiões longínquas e ao grande comércio, pondo em contato as civilizações orientais e ocidentais;

— estimulam a economia: o comércio, pelo fomento das trocas; a indústria, pela imitação dos processos observados alhures. 6

. O comércio mediterrâneo retoma um novo impulso. Gênova, Pisa, Florença e Veneza tornam-se os grandes centros comerciais da época, tra­ços de união — voltados para o Oriente — entre duas civilizações que novamente se encontram.

O comércio oceânico se implanta: a partir do século XII, sobretudo Bruges — a Veneza do Norte — começa a vibrar com a atividade nas­cente desse mercado colossal.

As permutas entre mercados distantes são, sem dúvida, ainda uma exceção: a Idade Média antes aponta para a sua possibilidade do que propriamente as realiza. E assim também as grandes transformações eco­nômicas são retardadas, seja em virtude das inúmeras restrições impostas pela regulamentação corporativa à economia, seja devido às grandes catás­trofes ocorridas no decurso desses séculos, tais como guerras intermináveis — a guerra dos 100 anos e epidemias devastadoras — a peste negra de meados do século XIV.

O que se deve, entretanto, deixar bem claro é o fato de se ter assis­tido, nessa época, à ressurreição do comércio e da manufatura e à passa­gem da atividade econômica, de local a regional; à Idade Média cabe, pois, o grande mérito de haver criado, desenvolvido e organizado o mer­cado regional, tal como caberá, mais tarde, ao mercantilismo, a glória de — na evolução dos fatos econômicos — ter constituído o mercado na­cional.

5. Cf. J. LE G O F F : Maichands et Banquiers du Moyen-Age, Paris, 1956; M. B O U L E T : Le Commerce Medieval Européen ( H i s t o i r e du Commerce, dirigée nar J. L A C O U R T - G A Y E T , t . I I ) ; F r a n ç o i s G A N S H O F F : Le Moyen-Age (Histoire des R e l a t i o n s Internationales, publiée sous la direction de P. R e n o u v a i n ) , Paris . 1953.

6 Ler S. R U C I M A N : A History oi tbe Crusades, C a m b r i d g e . 1 9 5 1 ; P I R E N N E : Le Mou-vement Économique et Social (in Pirenne, G. Cohen, H. F c c i l l o n : La Civilisazion Occiden-tale au Moyen-Age), Paris , 1933.

Page 48: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção II

AS IDÉIAS ECONÔMICAS

A Igreja exerce poderosa influência na vida de toda a Idade Média, cujo pensamento também domina.

Teólogos, canonistas e moralistas são os mestres de então 7 e a fonte onde se abeberam são os livros sagrados e, para alguns, as obra de Aris­tóteles, "A Moral" e, sobretudo, a "Política".

Na religião cristã, buscará o pensamento econômico a concepção mo­ral: tratar-se-á, para os autores da época, de moralizar o interesse pessoal. E esse princípio,de moderação imprimirá o seu cunho principalmente às idéias relativas à propriedade e ao lucro.

A Aristóteles tomará de empréstimo principalmente a concepção do "equilíbrio" necessário a todas as coisas, noção, aliás, intimamente ligada à anterior e expressa sobretudo através da constante preocupação de rea­lizar a justiça nas trocas. Esta a fonte direta, donde emanam as idéias .de justo preço e justo salário, com toda sua longa série de conseqüências.

§ 1." — Princípio de moderação: tornar moral o interesse pessoal

1. ESSE PRINCÍPIO DE MODERAÇÃO DOMINA A CONCEPÇÃO MEDIEVAL DE PROPRIEDADE

A propriedade privada é admitida como legítima.8 Mas não se trata de um direito absoluto, tal como o solidamente estabelecido pelos juris-consultos romanos. É um direito mais moderado. Sua legitimidade repou­sa, então, em argumentos individualistas — que atribuem aos proprietá­rios diretos — e, em argumentos sociais — que lhes impõem deveres.

a) Os argumentos de ordem individualista

O homem tem necessidades constantes; para garantir a sua satisfação mister se faz, pois, poder apropriar-se dos bens produtivos. Somente por

7 . N - s séculos X I e X I I : S A N T O A N S E L M O 0 0 3 3 - ' 1 0 9 ) ; A B E L A R D O ' 1 0 7 9 - 1 1 4 2 ) . N o s séculos X I I I e X I V : S A N T O T O M A S D E A Q U I N O ( 1 2 2 6 - 7 4 ) : S u m a , D e regimine

príncipes. D e Usuris: R a y m o n d de P E N N A F O R T (falecido em 1 3 9 7 ) : S Ã O B O A V E N T U -R A ( 1 2 2 1 - 7 4 ) ; Henri d e L A N G E S T E I N ; Johan B U R I D A M (1364-1429); R a u l d e P R E L -L E S ; o historiador V I L L I A N I ( 1 2 7 6 - 1 3 4 8 ) ; V I N C E N T D E B E A U V A I S (falecido por v o l t a d e 1 2 6 4 ) ; B A R T H O L E ( 1 3 1 3 - 1 3 5 0 ) ; Á l v a r o P A I S . bispo d e S i l v e s etc. E a i n d a : N i c c l e O R É S -M E ( f a l e c i d o e m 1382) e Phil ippe B E A U M A N O I R (1246-1296).

L e r sobre esses autores e sobre o p e n s a m e n t o da Idade M é d i a : B R A N T S : Les Théories Économiquès aux XlIIème et XlVème Siècles: L->uv?in, 1895- C O N T Z E N : Geschichte der Vol-kswirtschaftlichen Li*eratur in Mi'telal-er: I. W. T H O M P S O N : Economic and Social History oi the Middle Age, N o v a Iorque, 1928: G » o r e e s 0 ' O B R I E N : An Essay on Medieval Economic Teacbing, L o n d r e s , 1920; A L C E U A M O R O S O D E L I M A ( T r i s t ã o d e A t a ; d e ) : Introdução à Economia Moderna. São Paúln, 1933 (em part icular cap. I V : A E c o n o m i a C r i s t ã ) ; U L M A N N , W . : A History of Political Though*: The Middle Age'

8. L e r sobre este ponto: P. S C H W A L M : Revue Thomiste, 1805.

Page 49: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

esse meio -poderá constituir as reservas de recursos necessários para as eventualidades futuras. A apropriação é, assim, tanto mais legítima quan­to deverá contar o homem com necessidades crescentes, entrando a consti­tuição da família na ordem natural das coisas. Ele deve perpetuar a raça. Note-se que o pensamento medieval se exprime sempre em termos de uma doutrina populacionista.9

Além disso, reconhece o direito natural, ao homem, a posse e o gozo de suas energias físicas e intelectuais. O direito de propriedade deve, por­tanto, estender-se a tudo quanto sua atividade lhe permita adquirir.

Mas se a propriedade privada é legítima e confere direitos a seu ti­tular, também lhe impõe deveres por ter este instituído uma função social.

b) Os argumentos de ordem social

O pensamento medieval é nesse ponto muito elevado. Indica, com bas­tante precisão, as vantagens econômicas e sociais decorrentes da institui­ção da propriedade privada. Enumera os efeitos favoráveis, daí advindos, à organização e ao rendimento da produção. Insiste sobre o fato de repre­sentar ela um elemento de ordem e de paz social. Descreve-a, judiciosa-mente, como o quadro apropriado ao perfeito desenvolvimento da digni­dade humana. A essência dos argumentos desenvolvidos pelas doutrinas ulteriores, para justificar o interesse de ordem geral, oferecido pelo insti­tuto da propriedade privada, já se encontra exposta nas obras dos auto­res desta época.

Mas — e eis onde aparece o princípio de moderação —, como a pro­priedade se legitima por motivos de ordem social, deve-se impedir que desse direito abuse o seu titular em detrimento da coletividade. E os au­tores são unânimes em reconhecer, então, certo número de limitações ao direito de propriedade.

A exagerada ampliação desse direito, em benefício de um só indiví­duo, é condenada. E isso porque daí resultaria: por um lado, um excesso de fortuna e, por conseguinte, a criação de novas necessidades supérfluas — o que a moral reprova. E, por outro, ficar a maioria dos homens pri­vada desses bens. De fato, fazendo os bens da terra parte de um patrimô­nio comum, pertencente a todos os homens, se a uma minoria de grandes proprietários coubesse a maior parte desses bens, espoliada ficaria a gran­de massa da população. E em conseqüência de se reconhecer a legitimi­dade do direito de propriedade privada, aceita-se também a desigualdade de condições daí resultante. Esta se justifica, aliás, em virtude da diver­sidade dos serviços sociais. Todavia, jamais deve a desigualdade ser leva­da ao extremo: terá de ser igualmente moderada.

9. Sobre a doutrina demográf ica da Idade M é d i a , René G O N N A R D : Histoire áes Doc­trines de la Population, Pari», 1923.

Page 50: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Na verdade já se admitia, então, escaparem certos bens, por sua na­tureza, à apropriação privada, tais como, entre outros, Ms estradas, os rios navegáveis etc , ou seja, todos aqueles reservados ao uso direto da coleti­vidade.

A medida exata para a delimitação da propriedade legítima não foi fixada. Nem seria mesmo possível fazê-lo. O pensamento medieval admite o direito de propriedade quando contido dentro de dois limites extremos necessariamente pouco precisos: um — o máximo — que vai até onde o interesse social começa a ser lesado; e outro — o mínimo — que começa onde surge uma ameaça para o rendimento econômico. As restrições im­postas e as medidas de controle adotadas visam manter o exercício do direito de propriedade dentro desses limites.

Mas é sobretudo para a consciência pessoal que o pensamento da Idade Média apela: a moderação no uso do direito de propriedade, por parte de seu titular, constitui essencialmente um assunto entre ele e Deus.

2. A IDADE MÉDIA RECONHECE A PLENA DIGNIDADE DO TRABALHO HUMANO

Essa reabilitação, após c descrédito em que a Antigüidade fez cair o trabalho, constitui uma das contribuições mais notáveis do pensamento me­dieval.

A ociosidade é formalmente condenada; exalta-se o trabalho, tanto manual quanto intelectual. Isso, aliás, não significa fossem todas as es­pécies de trabalho igualmente apreciadas. A Idade Média, diretamente ins­pirada na distinção feita por Aristóteles em duas crematísticas, diferencia dois grupos de atividades:

a) compreende o primeiro todas aquelas nas quais o trabalho é apli­cado à produção da riqueza diretamente utilizável pelo homem — artes possessivae vel acquisitivae — e, pois, são louvadas sem restrição. Os trabalhos agrícolas, tal como na Antigüidade, são particularmente apreciados; a seguir vêm os trabalhos industriais e os de administração;

b) o segundo grupo é o daquelas nas quais o trabalho se aplica à obtenção de riquezas "artificiais" — artes pecuniativae — e, portanto, são admitidas com reserva. Há um preconceito contra essas atividades, pois o manuseio do dinheiro, que as caracteriza, as predispõe, mais do que as do primeiro grupo, à especulação e à busca do lucro excessivo.

Mas, ainda aqui, o espírito de moderação se faz sentir: pouco a pou­co os canonistas admitirão a utilidade dessas atividades do segundo grupo, e especialmente as do comércio. Serão havidas como úteis quando — tal como se dá com a propriedade — seu exercício moderado as mantiver entre dois limites — um superior, que não poderá ultrapassar sem lesar

Page 51: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

a sociedade (o comércio não deve dar lucros usuários, nem constituir monopólios contra os quais o consumidor não possa lutar: Santo Antônio de Florença), e um inferior, abaixo do que não deverá cair essa ativida­de, pois nesse caso viria a sofrer a própria sociedade, dada a sua utilida­de para o consumidor e para o Estado (Duns Scott, Gilles de Roma, Fran­cisco de Mayronis).

E nesse sentido aplicam-se regulamentos tendentes a moralizar, na prática, o interesse pessoal do comerciante.

O princípio de moderação, que acabamos de analisar em suas prin­cipais aplicações, visa, sobretudo, ao agente econômico.

Ao ato econômico e particularmente à troca aplica-se o princípio do equilíbrio.

§ 2." — Princípio de equilíbrio: tornar justa a troca

Atualmente as pesquisas econômicas giram em torno da utilidade. Na Idade Média giravam em torno da justiça: o pensamento econômico esta­va subordinado à moral.

Para que essa justiça seja alcançada, necessário é que a permuta.rea­lize um equilíbrio entre os interesses em jogo. Em outras palavras, é pre­ciso que o preço seja justo. Os escolásticos se esforçarão por deixar clara essa noção: justo preço é aquele bastante baixo para poder o consumidor comprar (ponto de vista econômico), sem extorsão (ponto de vista mo­ral), e suficientemente elevado para ter o vendedor interesse em vender (ponto de vista econômico) e poder viver de maneira decente (ponto de vista moral).

Esse duplo ponto de vista — econômico e moral •— levará os teólo­gos a procurarem uma base para o preço, isto é, o valor.

Suas idéias a esse respeito são bem vagas e diversas e por vezes inte­ressantes. Buridan liga o valor à utilidade e o explica pelas necessidades e pela raridade. O trabalho despendido é também levado em considera­ção, bem como o preço de custo, as invenções e o talento necessário. São em geral observações isoladas e breves.

De fato, a apreciação desse justo preço sofre a influência dos costu­mes e da tradição e depende da perícia de pessoas alheias à discussão ou, na maioria das vezes, tão-somente da consciência dos interessados.

Essa noção de justo preço é aplicada ao salário, remuneração do ope­rário em troca do trabalho prestado.

O justo salário deve permitir ao operário viver, com sua família, de acordo com a tradição da sua classe e com os costumes locais. Os teólo­gos distinguem entre salário em dinheiro e salário em espécie, distinção

Page 52: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

que se impunha em razão da instabilidade da moeda e dos níveis de preços.

A fixação dos salários fazia-se, nessa época, no quadro das corpora­ções. Na maioria das vezes era retribuição máxima que constituía objeto das regulamentações oficiais e não a fixação de um mínimo, conforme se dá atualmente. Parece, entretanto, que, sobretudo no século XIII, a taxa dos salários era satisfatória.

A noção de justo preço se aplica igualmente na determinação do lu­cro. O lucro do artesão deve resultar dò equilíbrio entre o trabalho4 em­pregado, a aplicação da inteligência e a utilidade do serviço. Essas, as bases a considerar na fixação da taxa mínima. Se o lucro ultrapassar de muito esse limite, deve ser condenado por não estar mais de acordo com a noção de justiça nas trocas; o lucro imoderado é prejudicial, tanto para o indivíduo como para a sociedade. Vê-se, portanto, constituir a determi­nação do justo lucro problema delicado. O que os autores nos indicam é dever este permitir, ao artesão e à família, viver e economizar as sobras, não só para os dias de velhice, mas também para as "obras pias".

Trata-se, pois, de noções bastante relativas, profundamente interes­santes do ponto de vista moral, mas com pouca probabilidade de aplica­ção do ponto de vista econômico.

O justo lucro não deve permitir ao artesão enriquecer; esta, a própria condição da igualdade nas trocas.

Foi ainda essa idéia de justiça comutativa que determinou, então, a proibição do empréstimo a juros. Sem dúvida sofreram os teólogos, nessa matéria, a influência de Aristóteles. Todavia, o empréstimo a juro era condenado pela Igreja (Evangelho de São Lucas) antes mesmo de terem os escolásticos conhecimento das obras do filósofo grego.

Ao argumento aristotélico da esterilidade do dinheiro, juntam-se, a partir do século XII, argumentos de ordem jurídica, que Santo Tomás de Aquino 10 e São Boaventura, em particular, irão desenvolver durante o sé­culo XIII. São esses os dois séculos do mais elevado pensamento da Ida­de Média cristã. O dinheiro é coisa fungível, cujo uso não pode ser se­parado de sua propriedade: desaparece com o primeiro consumo. Uma coisa não fungível, pelo contrário, não desaparecendo com o uso, pode ser emprestada.

O detentor de um bem não fungível pode reservar para si a proprie­dade, embora ceda o uso da coisa, e pode reclamar uma compensação por se privar do uso e gozo dessa coisa: é o que acontece, em geral, nos con­tratos de locação. Mas, quando se trata de empréstimo de coisa fungível,

10. Sobre Santo T o m á s de A q u i n o , l e r : J O U R D A I N : La Philosophie de St. Th. d'Aquin; F E U G U E R A Y : Essai sur les Doctrines de St. Th. d'Aquin, B e n t o C A R Q U E J A : Economia Política, Porto, 1926, insiste sobre a i n f l u ê n c i a exercida pela filosofia t o m i s t a sobre as dou­trinas e c o n ô m i c a s da Idade M é d i a . E. R. P. H U G O N : Les Vingt-Quatre Thèses Thomistes, Paris , 1937: Cursus Philosophiae and Theologiam-Doctoris Angelici Propraedeuticas, 6 vols. P a r i s , 1 9 1 4 ; L. P O L I E R : La Théorie du Juste Prix, T o u l o s e . 1903; W A L T E R : Thomas von Aquino, in Handwoerterbuch der Staatswiessennschatien der Conrad (t. V I I ) , 3 . 4 ed., 1 9 1 1 ; G I L S O N : Saint-Thomas d'Aquin, P a r i s , 1 9 2 5 .

Page 53: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

o mutuante terá de ceder, simultaneamente, a propriedade e o uso da coi­sa (poder-se-á alugar um carro, mas não um pedaço de pão). A justiça e o justo preço serão respeitados, havendo equivalência nas prestações, e essa equivalência se realizará quando o mutuário restituir um objeto da mesma natureza que o emprestado e nada mais.

O dinheiro não pode, portanto, constituir objeto de empréstimo a ju­ro. O princípio dessa proibição será rigorosamente mantido. Mas, embo­ra jamais dê o empréstimo de dinheiro direito à percepção de um juro de fato, começou-se, pouco a pouco, a admitir a possibilidade de encontrar o mutuante, seja nas condições em que o empréstimo se efetua, seja nas suas conseqüências, razões que legitimem a percepção e até mesmo a esti-pulação de uma compensação especial.

Tais razões vão-se ampliar e generalizar. Admitir-se-á, na prática, a possibilidade de previsão e recebimento

de um juro: Em virtude de dano sofrido pelo mutuante em razão do empréstimo

concedido (damnum emergens); em razão do lucro a que renuncia (lu-crum cessari); em virtude do risco de não reembolso no vencimento (pe-riculum sortis).

Exceções serão estabelecidas, em geral:

— rationae personae: aos lombardos e israelitas será permitida a per­cepção de um juro;

— rationae materiae: admitir-se-á uma presunção geral"de dano e ris­co permanentes para aquelas profissões nas quais "trabalha" sem­pre o dinheiro, tais como, por exemplo, o comércio.

Na realidade se difunde a prática de se concluírem certos contratos simulados, tais como: de sociedade, de comandita, de arrendamento, com o objetivo de obviar os inconvenientes dessas proibições.

Mas somente a partir do século XIV se generalizam as exceções ao princípio. Sofreram a mesma evolução por que passou o papel desempe­nhado pelo crédito na economia. Enquanto os empréstimos atendiam es­sencialmente às exigências do consumo, as exceções constituíam caso raro; à medida, entretanto, que o comércio e a indústria se desenvolvem e os empréstimos são concedidos como auxílio à produção, as exceções se ge­neralizam a ponto de anular o princípio. Exemplo dessa influência inces­sante dos fatos sobre o pensamento que conduz os doutores da Igreja ca­tólica a aceitar aos poucos a atividade comercial, a riqueza que ela obtém e os empréstimos que a estimulam é a influência histórica que permitirá ao calvinismo exaltar sem reserva essa atividade, a ponto de ligar o su­cesso à própria revelação do indivíduo.

Em grande parte foi graças à idéia de justiça comutativa, de justo preço, de justiça nas trocas, que tivergfflros autores medievais de se ocupar de questões monetárias.

Page 54: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A moeda, por lhes parecer instrumento prático de justiça nas trocas e por lhes permitir avaliar bem o justo preço, atraiu, na época, a aten­ção geral. E, conforme adiante veremos, em virtude de constituírem as reiteradas variações da moeda um óbice ao bom desempenho do seu pa­pel de mediadora das trocas, perturbando-as, assim, em .lugar de facilitá--las, foram os problemas monetários estudados.

Seção III

AS IDÉIAS MONETÁRIAS

Embora tenham sempre existido mutações monetárias, as quais, con­forme tivemos oportunidade de indicar, se revestiram de grande importân­cia, principalmente na Antigüidade grega, foi a partir de fins do século XIII que se tornaram mais freqüentes. E, principalmente com Filipe, o Belo, e seus sucessores — exceto Carlos V —, generalizou-se essa práti­ca de tal modo que, só no ano de 1351, por exemplo, o valor da moeda foi alterado 18 vezes. . .

Tais medidas se justificavam ante as concepções feudais concernentes à moeda: era a moeda coisa do rei; a esse título cabia-lhe, portanto, fa­zer com ela o que bem lhe aprouvesse. Além disso, sendo escassa a ma­téria sujeita a impostos, mas crescente as despesas públicas, os reis justifi­cavam essas mutações, do ponto de vista prático, equiparando-as a opera­ções fiscais necessárias à boa marcha dos seus reinos.

Tais razões, aceitas por muitos séculos, passaram a ser discutidas quando, ao se desenvolver o comércio — sobretudo nos séculos XIII e XIV —, se verificou representar a instabilidade da moeda um óbice à boa regularidade das transações, que então se intensificavam.

Inúmeros foram os escolásticos a se insurgirem contra o princípio das mutações monetárias. Dentre os autores medievais que apresentaram, so­bre o assunto, estudos bem aprofundados e interessantes destacam-se: Bu-ridan, reitor da Universidade de Paris, e, principalmente, Nicolau Orèsme, bispo de Lisieux e conselheiro do Rei Carlos V.

Orèsme 11 foi um dos sábios mais notáveis da Idade Média e um dos nomes mais ilustres do século XIV. Seus vastíssimos conhecimentos pos­sibilitaram-lhe o estudo dos mais variados assuntos e, por seus trabalhos, pode ser considerado um precursor de Copérnico, em astronomia, de Des­cartes, em geometria descritiva, e, em nossa ciência, dos autores que irão estudar mais tarde os problemas monetários: com dois séculos de antece­dência já nos anuncia Jean Bodin, de que adiante trataremos.

1 1 . L e r E m i l e B R I D E Y : Nicole Orèsme et la Théorie de la Monnaie au XlVème Siè-cle. Paris , 1906; Constantino L. M A C - G U I R E : Os Mercados Monetários e a Política Pública, in R e v . de C i ê n c i a s E c o n ô m i c a s , S ã o P a u l o , v o l . I I I , n.° 1 , 19+1; F. M E U N I E R : Essai sur la Vie et les Ouvrages de Nicole Orèsme, P a r i s , 1857; A. L A N D R Y : Essai Économique sur les Mutations des Monnaies dans VAncienne France de Philippe le Bel à Charles VII. P a r i s , 1910.

Page 55: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A obra de Orèsme, — "Breve Tratado da Primeira Função das Moe­das e das suas Causas e Espécies"1 2 (1336) — é a primeira obra escrita sobre questões puramente monetárias.

Critica Orèsme as mutações monetárias e contesta ao soberano a le­gitimidade desse direito; estuda suas formas e expõe seus inconvenientes.

§ 1.° — Contestação da legitimidade das mutações monetárias

Para tal fim, parte Orèsme do estudo da natureza e origem da moe­da. Seu pensamento se aproxima muito, nesse terreno, do de Aristóteles. Foi ele, aliás, quem primeiro traduziu, para o francês, a "Moral" e a "Po­lítica".

Mostra o valor do cunho aposto à moeda. Esse cunho indica tanto a qualidade da peça monetária quanto seu peso. Todos aceitam essa ga­rantia, prestada à vista, e, assim, são facilitadas as trocas. Esta confiança provém do fato de ser o rei quem imprime seu cunho à moeda. Mas, ten­do a moeda se transformado em instrumento de trocas, passou a perten­cer aos agentes dessas trocas, isto é, aos comerciantes e à coletividade. Por conseguinte, caberá à comunidade, e não ao rei, o direito de decidir da conveniência, ou não, de se lhe alterar o valor. A mutação não pode, portanto, legitimar-se por um pretenso direito de propriedade do soberano sobre a moeda.

Passando, em seguida, das considerações sobre a natureza da moeda para o estudo das mutações, examina Orèsme, judiciosamente, as formas e conseqüências.

§ 2." — As diferentes formas de mutações monetárias

Orèsme observa cinco formas principais de mutações, praticadas na sua época:

a) Mutação da "efígie". É obtida mediante a transformação, total ou parcial, da efígie das peças. É uma transformação normal quando um príncipe, que acaba de assumir o governo, manda fa­zer novas peças com o seu cunho; mas, condenável se acompa­nhada da interdição de circulação das antigas moedas.

b) Mutação da "proporção". Consiste na mudança da relação legal estabelecida para os valores dos dois metais — ouro e prata — empregados como moedas. A modificação dessa relação só se justifica quando o valor dos dois metais, como mercadoria, varia também; do contrário é inaceitável.

1 2 . E s s e tratado apareceu primeiro em latim, sob o seguinte t í t u l o : De Origine, Natura, Jure et Mutationibus Monetarum e, entre 1356-1361, em f r a n c ê s : Traité de la Premiire Fonction des Monnaies et des Causes et Manières d'Icelles.

Page 56: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

c) Mutação "nominal" da moeda, isto é, modificação dos preços em moeda corrente. Havia, com efeito, uma moeda corrente na qual se exprimiam os preços: no tempo de Orèsme a unidade dessa moeda corrente era a "libra" que se subdividia em "soldos" e "dinheiros". Existia também uma moeda real que servia efeti­vamente aos pagamentos: os francos-ouro, dinheiros-ouro etc. O rei decidia sobre a quanto deveria uma moeda real eqüivaler em moedas correntes. A mutação consistia, pois, em se alterar o pre­ço das espécies. Consistia em se decidir, por exemplo, que o franco-ouro, o qual legalmente devia corresponder a 16 soados, passasse, de então em diante, a valer 15 ou 17 soldos. Agindo dessa maneira fazia o rei, segundo as palavras de Orèsme, com que aumentassem ou diminuíssem os rendimentos e as pensões fixas, em prejuízo de um grande número de pessoas. Esta, a es­pécie de mutação mais freqüente, cujo único inconveniente, para o soberano, consistia em ser visível.

d) Mutação do "peso" da moeda. Consiste em reduzir o rei o peso da moeda sem lhe mudar o nome. Orèsme a compara ao ato de um particular que fraudasse contra alguém na medida do trigo.

e) Mutação da "matéria". Consiste na substituição de um metal por outro e — caso mais freqüente — na modificação das propor­ções de uma liga.

§ 3.° — Conseqüências das mutações

As conseqüências decorrentes das mutações são raramente favoráveis. Só devem elas ser admitidas, pois, a título de exceção, em casos de guerra ou de resgate de um prisioneiro. As mutações desempenham, então, um papel muito semelhante ao de um imposto extraordinário, de alto rendi­mento e rápida cobrança. E, em casos tais, a decisão deve caber à co­munidade.

As mutações são também úteis quando se trata de substituir uma moeda gasta: a mutação da "efígie" permite, então, elidir o funcionamen­to da lei de Gresham — que Orèsme estuda acuradamente — e oferecer a estabilidade imprescindível à sua atividade. A moeda boa e a nova. Mas, na realidade, estes são casos raros.

Ora, sendo as mutações muito freqüentes, isso prova procurarem os reis, com tais processos, auferir lucros: e, assim agindo, cometem atos de injustiça, que Orèsme — com plena liberdade de crítica — não hesita em qualificar de "contra a natureza e piores que a usura".

Essa prática é tanto mais condenável quanto cria graves inconvenien­tes para o príncipe e para a comunidade. Com tais operações põe o rei sua honra a perder, priva-se da confiança de seus súditos e arrisca seu reino.

Essa reprovação moral, em que incorre o soberano, é tanto mais se­vera quanto é fato sofrer a coletividade, profundamente, com as mutações.

Page 57: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

As relações de troca, que a moeda devia simplificar, são atingidas pelas alterações do seu valor; o comércio tem seu desenvolvimento detido por falta de um sólido instrumento monetário que ofereça a estabilidade im­prescindível à sua atividade. A moeda boa deixa o país, partindo para o estrangeiro. A "ordenação" de Filipe, o Belo, de 28 de julho de 1303, tentará impedir esse êxodo, sem, entretanto, consegui-lo.

Com o decurso do tempo, a multiplicidade de moedas incitará à frau­de: os moedeiros falsos pulularam tanto no estrangeiro como no interior do país.

Orèsme já indicava acarretarem as mutações desastrosas conseqüên­cias, não somente econômicas, mas também sociais. Criam desequilíbrios em certas classes da sociedade: os juizes, os cavaleiros, os eclesiásticos serão os mais atingidos, quer por perceberem vencimentos ou rendimentos fixos, cujo poder aquisitivo decresce com as mutações, quer em virtude da impossibilidade — privados que são do direito de comerciar — de evita­rem a diminuição de valor de suas reservas. Os trabalhadores terão igual­mente que pagar tudo mais caro, por acarretar a depreciação das espécies uma alta dos preços.

Prenuncia Orèsme, assim, as célebres controvérsias do século XVI, entre Malestroit e Jean Bodin, por exemplo, acerca da relação existente entre moeda e preços.

A obra de Orèsme teve uma repercussão assaz profunda em sua épo­ca: suas idéias considerável influência exerceram sobre muitos espíritos, inclusive de Carlos V, cuja preocupação foi sempre evitar, no decurso do seu reinado, as modificações do valor das moedas. Mas depois dele res­surgiu a prática das mutações sucessivas com o vigor dos seus mais belos tempos.

Às idéias monetárias da época, expressas por Orèsme com tanta ên­fase, não falta nem precisão nem amplitude. A origem, natureza e fun­ção da moeda, a lei de Gresham, as condições de funcionamento do bi-metalismo, tudo isso é aí estudado com muita justeza. As mutações são condenadas em virtude de seus efeitos contrários, conforme se observou, ao interesse geral, quer do ponto de vista econômico, quer do social.

O absoluto e onipotente direito sobre a moeda que, por muitos sé­culos, senhores e reis conservaram ciosamente é combatido ou, pelo me­nos, restringido.

O soberano deve, na defesa de seu interesse privado, levar em con­sideração o interesse geral, da mesma forma que, nas suas atividades eco­nômicas, deve o simples particular, em sã consciência, ter sempre em vista o interesse social.

Segundo, pois, acabamos de ver, contém o pensamento medieval, em todas as suas expressões, esses dois caracteres principais que ressaltamos: moderação e equilíbrio.

Page 58: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Por es»as características se mantém a igual distância do socialismo e do individualismo: não é socialista, uma vez que reconhece a legitimi­dade e as vantagens da propriedade privada, instituto jurídico base da li­berdade e da dignidade humana. Chega mesmo a afirmar a dignidade da personalidade humana, dando-lhe expressão econômica através da reabi­litação do trabalho.

E leva, assim, à libertação da classe trabalhadora da condição de serva da gleba, o que constitui um dos grandes resultados práticos da Ida­de Média. E eleva essa dignidade humana acima das simples contigên-cias materiais, indicando ao indivíduo que as riquezas não constituem a meta a atingir.

Não é também individualista: concebe um interesse pessoal limitado, em todas as suas manifestações, pelo interesse da comunidade humana. Procura a conciliação — que aliás muitas doutrinas buscarão também mais tarde — entre os direitos do Estado e os do indivíduo, através da cons­tante preocupação com o aperfeiçoamento do gênero humano. E na as­sociação encontrará a "fórmula prática" dessa conciliação: a associação no quadro da família, das profissões etc. A grandiosidade desse pensa­mento medieval tem por expressão esse conjunto de preceitos morais ins­pirados nos generosos princípios da religião católica. A moral abrange todas as formas de pensamento: as ciências são servas da teologia.

E, em suma, as idéias econômicas do período que acabamos de exa­minar se caracterizam por esse cunho prático e dependente.

Por três séculos subsistirá ainda esta dependência ou subordinação; todavia, a partir de meados do século XV até à segunda metade do sé­culo XVIII, o pensamento econômico não se subordinará mais à moral, e, sim, à preocupação metalista.

Page 59: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O M E R C A N T I L I S M O

Chama-se "mercantilismo" ao conjunto de idéias e práticas econômi­cas que floresceram, na Europa, entre 1450 e 1750. O exame dos fatos é indispensável à boa compreensão da evolução do pensamento econômi­co no decurso desses três séculos.

Uma tríplice transformação — de ordem intelectual, política e geo­gráfica — assinala, na aurora desse período, o início dos tempos mo­dernos.

Seção I

OS FATOS

§ 1.° — Transformação intelectual

É o Renascimento. Houve, no início dessa época, a ressurreição do antigo espírito e — por ele fecundado — um maravilhoso renovamento da civilização.1

Viera da Itália essa Renascença, onde, no século XVI, expandira em magnífica floração de arte: é o momento em que ressoam os nomes pres­tigiosos de um Leonardo da Vinci, de um Miguel Ângelo, de um Rafael, de um Ticiano.

I. "E qual foi o gri to de liberdade, a explosão de entusiasmo e esperança, o sentimento e a certeza de 'renascimento' , quando, dez ou doze séculos depois desse império cristão, encontra a Europa, um dia, os caminnos de R o m a e da Grécia e reconhece a voz dos helenos e dos l a t i n o s ! N e s s e 'renascimento' teve de súbito a Europa a clara visão de suas forças e d e s t i n o : com a c o n s c i ê n c i a perfeita do seu querer e do seu ideal, formulou nit idamente o que podia e o que devia fazer, pelo belo nome de 'humanismo', que lhe resume a obra eterna e a própria essência de sua e n e r g i a . " V i c t o r B É R A R D : La Revolte de l'Asie (p. 18), Paris , 1905. Cf. A. R E N A U D E T : Humanisme e t Renaissance, Genéve, 1958; L. F E B -V R E : Au Coeur Religieux Ou XVI siècle, P a r i s , 1957.

Page 60: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

De par com as artes, transforma-se a vida intelectual com o retorno às antigas fontes. Assiste-se a um brilhante renascimento literário, do qual salientaremos os aspectos particularmente úteis à nossa disciplina:

Em primeiro lugar, o pensamento laiciza-se. A idéia materialista se junta às preocupações até então quase que exclusivamente de ordem espi­ritual. Esta evolução, que se inicia no século XIV, na Itália, com Petrar-ca, que Renan denominou, com justeza, o primeiro homem moderno, pros­segue com Erasmo, o grande humanista desde o fim do século XV, e a partir dos primórdios do século XVI espalha-se pelo mundo, com Rabe-lais.

Em primeiro lugar, observa-se um retorno aos métodos de observa­ção e experiência que possibilitarão o desenvolvimento da ciência moderna (Copérnico). O estudo científico vai, pois, substituir, em parte, a tradi­ção; a noção de progresso se impõe; a estagnação econômica da Idade Média cede o passo ao movimento, à dinâmica econômica dos tempos mo­dernos. A idade de ouro não é mais um sonho de retorno ao passado, mas a ambição de progresso futuro. Este olhar da humanidade, durante tanto tempo voltado para a perfeição do passado, se volta resolutamente para o futuro com Bacon e Descartes. Esta evolução do pensamento de­senvolve ao mesmo tempo no homem da Renascença a curiosidade do saber e um ideal novo de bem-estar, de consumo, de luxo. São condições favoráveis ao progresso econômico sob várias formas.

A habitação se transforma; aos severos castelos medievais se sucedem as magníficas residências dos reis, nobres e burgueses, mobiliadas e deco­radas com belos móveis, quadros e tapeçarias. A alimentação se diver­sifica, tornando-se de uso corrente as especiarias e o açúcar. O prazer pelas viagens se desenvolve; o correio começa a funcionar no decorrer do século XV; a melhoria das estradas permite mais fáceis deslocamentos de homens e de mercadorias. Os contatos de uma região com outra tornam--se mais freqüentes, o que permite a programação de idéias novas, bem como aos viajantes a observação de novas maneiras de viver e de pensar, libertando-se, assim, do absolutismo de suas próprias tradições. Mas é sobretudo pela imprensa que essa transmissão de idéias se desenvolve de maneira decisiva e ilimitada. A partir da primeira Bíblia impressa por Johannes Gutenberg em 1450, a técnica e o uso da imprensa se generali­zam.2 Surge, assim, a possibilidade de se corresponder ao desejo de apren­der, ao amor pelo saber, tão fortes no homem do Renascimento.3

A essa curiosidade intelectual se junta uma vontade de criar, e de criar em todos os domínios. "Rien de trop" é um preceito antigo retoma-

2. C o n s u l t a r sobre esta questão fundamental a obra m a g n í f i c a de L u c i e n F E B V R E e H e n r i q u e Jean M A R T I N , " L ' A p p a r i t i o n d u L i v r e " , publicada (1958) pela c o l e ç ã o " L ' Ê v o l u t i o n de l ' H u m a n i t é ' V E s t e s autores a s s i n a l a m (p. 281) que, no fim do século X V , "cerca de cinqüenta anos depois do aparecimento do primeiro l ivro impresso, 35 000 e d i ç õ e s , no mínimo, representando mais ou menos 15 a 20 milhões de exemplares, foram p u b l i c a d a s , tendo a im­prensa se -generalizado em todos os p a íses da E u r o p a " .

Sobre a invenção da imprensa na China, no fim do século I X , com mais de meio m i ­lênio de adiantamento sobre a E u r o p a , cf. R. G A R A U D Y , Le Piobléme Chinois, Paris, 1967.

3. É o que traduz bem o h u m a n i s t a v e n e z i a n o A L B E R T , L. B. , sábio, moralista, e c o ­n o m i s t a e filósofo, nos seus " C o n s e l h o s " , trecho de "I L i b r e d e l i a F a m i g l i a " , escrito em

Page 61: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

do na Renascença e através do qual se exprime esta vontade de descobrir o "homem e o mundo", esta vontade de fazer recuar todos os limites do conhecido, a fim de ver cada vez mais longe na terra, no céu e no pró­prio homem. Tal espírito é eminentemente favorável ao desenvolvimento da atividade econômica; essa necessidade de viver — e de viver melhor —, essa vontade de empreender e de realizar implicam para o indivíduo, para o grupo e para a nação um esforço novo e poderoso de produção.

A esse espírito da Renascença convém associar o trazido pelo movi­mento da Reforma. Não a reforma de Lutero, que permanece medieval e estática, mas a de João Calvino (1509-1564), (Institutio religionis chrís-tianae, 1536), dos calvinistas e dos puritanos anglo-saxões, que exalta o individualismo e a atividade econômica. O dogma calvinista da predesti­nação se concilia com o êxito material do indivíduo, estimulando sua ati­vidade econômica, condenando sua ociosidade, apelando para sua cons­ciência profissional, justificando seus sucessos nos negócios e, portanto, a busca do lucro. Ele reabilita teologicamente a vida material contra o as-cetismo. E, contra as proibições do catolicismo, Calvino justifica o em­préstimo a juros, justificação particularmente importante no momento em que os capitais dão à função bancária um papel econômico de magna im­portância.

Essas características do espírito da Reforma levam a aproximá-la do espírito "capitalista". E como é justamente nos países "reformados" que o sistema capitalista aparece em primeiro lugar e nc'~ c atinge seu maior desenvolvimento, a influência das idéias da Reforma sobr^ a formação e a evolução da mentalidade e do sistema capitalista surge como fato histó­rico inegável.4

§ 2." — Transformação política

O século XVI vê surgir o Estado moderno. A centralização monárquica vai, a partir do século XV, tomando o

lugar dos pequenos núcleos feudais. Realiza-se, na França, com Carlos VII e Luís XI. Na Inglaterra, com a subida ao poder dos Tudores; na Espanha, com Fernando de Aragão e Isabel de Castela; em Portugal, com D. João III. Processar-se-á um pouco mais tarde, a partir de fins do sé-1441: " J u v e n t u d e , d e d i c a i todos vossos esforços ao estudo das l e t r a s ; fazei-o sem p r e g u i ­ç a ; procurai conhecer as coisas do passado, d i g n a s d* serem l e m b r a d a s . . . D e s f r u t a i a alegria de nutrir v o s s o espírito com bela c i ê n c i a , o prazer de aprimorar v o s s a a l m a com qualidades a d m i r á v e i s . . . Procurai conhecer as coisas humanas que, com toda razão, são adaptadas às letras. N ã o há sinfonia musical , por m a i s bela e mais harmoniosa, que possa eqüivaler à d e l i c a d e z a e à e legância de um verso de H o m e r o ou de V i r g í l i o . . . nem p a s s e i o , por mais m a r a v i l h o s a m e n t e florido, que proporcione o deleite e o encanto de um discurso de Demóstenes, de C í c e r o , de T i t o L í v i o ou de X e n o f o n t e . "

4. A reforma e sua influência sobre o c a p i t a l i s m o moderno têm sido objeto de abun­dante literatura e de discussões ainda v i v a s . I n d i c a m o s , para maior contato com tão im­portante problema, T A W N E Y , R. H., Religion and Capitalism, 1957; Z E L L E R , G A S T O N , La Réiorme, 1950; John U. N E F , La Naissance de la Civilisation Industrielle et le Monde Contemporain, P a r i s , 1954 ( D . 128-153); B I E L E R , A N D R É : La Pensée Économique et Sociale de Calvin (préf. Prof. A n t h o n y B A B E L ) , G e n e v e , 1959; W E B E R , M A X : L'Etique Protes­tante et l'Esprit du Capitalisme. Paris, 1964 ( t r a d . ) .

Page 62: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

culo XVI, na Holanda, e depois nos reinos escandinavos e na Rússia. É um fenômeno que se generaliza em toda a Europa.

Sem dúvida a Idade Média tivera o seu sistema de Estado; todavia, em virtude mesmo de não passarem tais Estados de aglomerações feudais, não possuíam uma verdadeira política nacional. A Idade Média conheceu apenas uma unidade aparente, constituída de elementos agrupados, mas não fundidos. Os príncipes, a pobreza, o clero e, mais tarde, a burguesia subsistem como forças individualizadas, tratando-se entre si como potên­cias. Sua submissão ao chefe de Estado é apenas nominal. v

Foi necessário vencesse o monarca seus vassalos para que essa uni­dade mecânica se transformasse em unidade política e econômica. E então surgiu a idéia de economia nacional no sentido moderno dessa expressão, isto é, a concepção de Estado que coordena todas as diferentes forças ati­vas da nação — materiais e humanas. O comércio, principalmente, trans­forma-se em negócio público; seus interesses perdem o caráter de coisa exclusivamente privada; a noção de balança comercial — noção estatal — suplanta a de balança de contratos — noção individualista.

Em suma, a nação doravante é um organismo econômico. Sob esse novo impulso dirigido, o mercado se expand : de regional

que era, passa a nacional. Este, o grande acontecimento econômico des­ses três séculos, de cujo significado e importância adiante trataremos.

Mas esta política não atua apenas no sentido de criar as economias nacionais, e, sim, também, de suscitar conflitos entre estas. Parece, ainda mesmo aos espíritos mais adiantados da época, que o "lucro de um im­plica o prejuízo do outro". Daí medidas estritas de intervenção que acar­retam antagonismos violentos.

A vida econômica, sob a influência dessa transformação política, am­plia-se e se organiza, pois, no quadro nacional.

Um terceiro grupo de transformações, estas de ordem geográfica, am­plia o mundo e lança os primeiros fundamentos da economia internacional.

§ 3.° — Transformações geográficas

O fim do século XV marca o início da era das grandes descobertas. Os limites do mundo parece que recuam. Não se trata de um aconteci­mento espontâneo, mas que está ligado aos grandes esforços anteriormen­te feitos pelos europeus para devassar os caminhos terrestres do Oriente, permitindo-lhes atingir as riquezas das Índias e da China. As descobertas marítimas prolongam essas descobertas de caminhos da terra — o espíri­to e o fim são os mesmos.

Mas, para abordar o oceano imenso — "o mar tenebroso" —, miste­rioso e temido, grandes esforços foram igualmente necessários a fim de melhorar a técnica da navegação.

Page 63: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A bússola, conhecida há longo tempo na China, é utilizada pelos ma­rinheiros ocidentais desde princípios do século XIII. As primeiras cartas marítimas aparecem no último terço desse mesmo século e são pouco a pouco aperfeiçoadas. No início do século XV Portugal constrói um novo barco, a caravela, capaz de enfrentar o alto mar. Todos esses conhecimen­tos sobre a arte de navegar, todos os progressos na construção de navios são estimulados pelos soberanos portugueses que desde o século XIII têm a justa noção de vocação marítima de seu país. É com o Rei Dinis, que se estabelecem as bases da marinha portuguesa; seus esforços são conti­nuados pelos seus sucessores, nos séculos XIV e XV, sobretudo pelo Infante D. Henrique, o Navegador. De 1415 a 1460 explora ele as costas africa­nas e prepara cientificamente — rodeado de sábios e de marinheiros por­tugueses e estrangeiros — a navegação em alto mar, condição necessária à descoberta do caminho das Índias, descoberta que ele não realizará, mas da qual será um dos principais artesãos. Somente em fins do século XV é que esse sonho se concretizará.

As descobertas se multiplicam. As datas são conhecidas de todos e ressoam como um canto de epopéia: 1487, Bartolomeu Dias dobra o cabo das Tormentas; 1492, Colombo desembarca em Guanaani; sete anos mais tarde Vasco da Gama atinge as Índias e Albuquerque funda aí um império lusitano; 1500, Cabral desembarca no Brasil; 1514, Magalhães empreende, pela primeira vez, uma viagem de circunavegação, concluída por seu lugar--tenente Sebastião dei Cano; 1519-1521, Cortez conquista o México; 1531, Pizarro apodera-se do trono dos incas e das riquezas da Cordilheira dos Andes; 1534, entra Jacques Cartier na embocadura de Saint Laurent e coloca uma cruz de madeira na rocha de Gaspé. Nestas caravelas que par­tem para a descoberta de novos mundos, quanta coisa se mistura! Há ho­mens corajosos decididos aos riscos da grande aventura, há a cruz, há a bandeira das nações conquistadoras, há o desejo de riquezas fabulosas. Há tudo isso e há também, acompanhando o homem no seu destino, o sonho que o leva até ao fim do oceano, como o eleva hoje aos confins do espaço.

Essa grande aventura de mil epopéias, digna de inspirar um Homero, teve os seus aspectos, grandiosos e trágicos, traçados pela pena de um Camões: grande aventura na qual se exauriram os povos aue a viveram e foram os primeiros a se entregar, de corpo e alma, à conquista de impé­rios demasiado vastos para perdurar.

E, embora nem sempre pudessem os conquistadores conservar estes impérios, iriam suas descobertas, durante três séculos e meio, permitir a outros povos "fazer muito arruído", segundo a expressão usada por Virgí­nia de Castro e Almeida, no seu sedutor livro consagrado ao poeta de "Os Lusíadas".

Realmente essas descobertas fizeram "muito arruído". À vida econô­mica rasga-se, então, o horizonte universal. Os metais preciosos do novo mundo afluem para a Europa, deslocando rapidamente o eixo econômico mundial. Os grandes centros comerciais marítimos, localizados até então

Page 64: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

no Mediterrâneo, desenvolvem-se agora também no Atlântico e no mar do Norte: é o início da prosperidade de Londres, Amsterdã, Bordéus e Lisboa.

Uma tríplice transformação imprime o seu cunho ao meio econômico, a partir da segunda metade do século XVI. Fornece um novo quadro à atividade dos homens; traça, também, conforme veremos, novos rumos ao pensamento econômico.

A transformação geográfica foi talvez o fenômeno mais importante. O aíluxo de metais preciosos, a que dá origem, vai — numa Europa mo­dificada pelas transformações intelectuais e políticas a que nos referimos — determinar duas conseqüências essenciais para o pensamento econô­mico:

— o desenvolvimento de idéias interessantes sobre moeda; — a possibilidade de elaboração da concepção metalista, base dos sis­

temas mercantilistas.

Seção II

AS IDÉIAS ECONÔMICAS E MONETÁRIAS

§ 1." — As idéias referentes à moeda

Verifica-se, no século XVI, na Europa, um considerável afluxo de metais preciosos.5 Ora, nessa mesma época, e sobretudo na segunda me­tade desse século, experimentaram os preços, nos principais países da Eu­ropa, uma rápida e considerável alta, alta essa que transforma e desequili­bra as condições da vida econômica e social.6 Os trabalhadores, principal­mente, são seriamente atingidos pelo fenômeno. \ sobrevivência das idéias medievais do justo preço e justo salário cristal ia a taxa dos salários, a despeito da elevação do custo de vida, em nível imutável. O desconten­tamento se generaliza, a opinjão pública sc inquieta.

O Rei Carlos IX encarrega, então, seu conselheiro De Malestroit ("maitre de la Chambre des Comptes") de estudar essa alta, indicando a causa da elevação dos preços e o meio de remediá-la.

Era opinião de todos quantos nessa época se interessavam pela vida econômica terem as mutações monetárias parte na elevação do nível dos

5. E n c o n t r a m - s e importantes informações e e s t a t í s t i c a s r e l a t i v a s aos fatos econômicos e ao m o v i m e n t o dos metais preciosos dessa época na notável História Econômica do Brasil, de Roberto Cochrane S I M O N S E N , São P a u l o , 1937. Ler, em particular, tomo I, p. 43 e seguintes.

Cf. t a m b é m E. G. H A M I L T O N : American Treasure and the Price Revolution in Spain. 1501-1SS0, 1934; F. B R A U D E L : La Méditerranée et le Monde Méditerranéen au Temps de Philippe II, Paris , ( 2 . a ed.) 1967.

6 . V e r : E . T r . H A M I L T O N , op. cit.- para a E s p a n h a : V i t o r i n o M A G A L H Ã E S G O -D I N H O , Prix e t Monnaies au Portugal, (1750-1850), Paris , 1955; P O S T H U M U S , N. W . : Inquiry into the History oi Prices in Holland ( X V I - 1 9 9 , L e y d e — 2 v o l s . ) . 1946; B E V E -R I D G E , W . : Prices and Wages in England írom the Xllth to the XIXth Century. t. I, 1939;

Page 65: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

preços. Esta, aliás, a tese adotada por De Malestroit, no relatório apresen­tado ao rei, em 1566, sob o título "Paradoxes sur le fait des monnaies". Julgava De Malestroit não ter havido realmente elevação de preço algum; a alta seria apenas aparente, ocasionada pela redução do valor das moe­das. Na verdade, para se adquirir uma coisa não seria necessário entre­gar quantidade maior de metal precioso que a anterior, mas, sim, apenas maior número de peças de moedas. Se tais moedas perdiam metade de seu valor em conseqüência das mutações, fazendo-se mister, portanto, en­tregar o dobro delas para a aquisição de um mesmo objeto, isso não sig­nificava haver entrega de uma quantidade de metal precioso duas vezes maior que a anterior; a quantidade entregue era mesma: não houvera uma valorização real das coisas, mas, sim, apenas uma alta nominal de preços.

Contra essa tese se levanta Jean Bodin 7 que, em 1568, a refuta em sua "Réponse aux paradoxes de Monsieur De Malestroit". Observando os fenômenos e raciocinando com vigor e originalidade, Bodin se afasta da tese tradicional sustentada por De Malestroit e mostra não explicarem as mutações monetárias, por si só, a alta dos preços. Com o auxílio de es­tatísticas demonstra ser a elevação dos preços superior à redução havida no valor das moedas e a verdadeira causa do fenômeno residir, portanto, no enorme aumento do estoque monetário metálico.

Põe, assim, em evidência existir uma relação direta entre o movimen­to do estoque de metal precioso e os movimentos de preços. Bodin já desenvolve aí o que de essencial há na teoria "quantitativa". E, para tanto, coloca-se acima das circunstâncias .especiais a serem explicadas: es­tuda o problema no seu aspecto geral, fazendo, assim, obra científica.

A abundância de metais preciosos não constitui apenas o fundamen­to dessa controvérsia sobre a moeda, mas é, ainda, a determinante de uma concepção central do mercantilismo: a idéia metalista.

§ 2.° — A idéia metalista

Essa idéia fci deduzida da seguinte observação: a prosperidade dos países parece estar na razão direta da quantidade de metais preciosos que possuem. O espetáculo da Espanha, no século XVI, é característico: es-plendorosa a sua prosperidade e, além disso, é o país que importa e pos­sui o mais considerável estoque de ouro e prata do mundo.

Daí nasce a convicção — predominante nos séculos XVI e XVII — de serem riqueza e quantidade de metal precioso, possuídas por um país, expressão dè um só e mesmo fenômeno.

S I M I A N D , F . : Recherches Anciennes et Actuelles sur le Mouvement General des Prix des Revenus du XVI au XIXème Siècle, 1932; H A U S E R , H. : Recherches et Documents sur 1'His-toire des Prix en France de 1501 a 1560, 1936; M A U R O , F . : Le XVIime Siècle Européen, Aspects Économioues, P a r i s , 1966.

7. Jean B O D I N (1530-1596) é um dos sábios m a i s n o t á v e i s do século X V I . V a s t a e profunda a sua cultura e considerável a sua obra. V e j a - s e especialmente La Republique, 1576, em 6 v o l u m e s .

Page 66: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

É preciso dar a essa idéia "metalista" seu verdadeiro sentido.8 Os mercantilistas não vêem o ouro e a prata como a única riqueza, mas os Consideram como o mais perfeito instrumento de aquisição da riqueza.

"O ouro e a prata — escreve Montchrétien — suprem as necessida­des de todos os homens." "Tudo é seu, se tiver dinheiro — escreve Sci-pion de Grammont —; o dinheiro é um verdadeiro Proteu que se trans­forma em tudo quanto se quer; é pão e é vinho, é tecido, será um cavalo, uma casa, uma herdade, uma cidade e uma província."

Ouro e prata são, pois, para a nação, a forma eminente da riqueza. É assim que se deve entender a idéia metalista, em sua acepção mais am­pla. Entretanto, não foram poucos os mercantilistas que confundiram a riqueza com o dinheiro. Até aos primórdios do século XVII, principal­mente, muito comum era tal confusão em obras de autores espanhóis, ita­lianos e, às vezes, mesmo ingleses.

Adam Smith, que no século XVIII examinou — aliás conscienciosa-mente — o mercantilismo, insiste numa outra razão explicativa da idéia metalista. Encontra-a em Locke: o caráter de durabilidade das riquezas metálicas.

"O dinheiro — escreve Locke — é um amigo firme que, embora viaje muito de cá para lá, passando de mão em mão, não corre o risco de ser dissipado ou consumido, contanto que não o deixemos sair do país." A idéia é simples e muito clara.

Existe ainda um terceiro fundamento para a idéia metalista: a neces­sidade de dinheiro para se fazer a guerra. Montchrétien exprime, com cla­reza, esta preocupação no seu "Traité d'Économie Politique" (1615): "O ouro e a prata são dois grandes e fiéis amigos; quem disse, pela primeira vez, ser o dinheiro o nervo da guerra não se enganou, pois, se não é o único, tem sido sempre, segundo nos mostra a experiência de muitos sé­culos, o principal: o ouro é algumas vezes mais poderoso que o ferro. Eis por que, em todos os grandes Estados, atacantes ou atacáveis, jamais se deixou de achar, sempre que possível, os meios de inventá-lo."

Aliás, lá estava a experiência da Espanha para corroborar essa con­vicção. Nessa época Carlos V e Felipe II pareciam prestes a conquistar o mundo.

A tal ponto dominante era essa preocupação metalista — em função da guerra — que a vamos encontrar na própria "Utopia", de Thomas

8 . E s s e p o n t o d e v i s t a f o i p o s t o e m e v i d ê n c i a n o s t r a b a l h o s , s o b r e o s m e r c a n t i l i s t a s , d e R o s c h e r , S c h m o l l e r , C u n n i n g h a m , L u c i e n B r o c a r d , M o r i n i - C o m b y e A . M a r c h a i .

L e i a , em p a r t i c u l a r , A n d r é M A R C H A L : La Conception de VÉconomie Nationale chez les Meicantilisies Français, P a r i s , 1 9 3 1 ( o r e f á c i o d o P r o f . L u c i e n B R O C A R D ) : I . M O R I N I - C O M ­B Y : Mercantilismo e i Protectionnisme, P a r i s , 1 9 3 0 ; W. C U N N I N G H A M : The Growth o f En-glish Industry and Commerce in Modem Times, C a m b r i d g e , 1 9 0 7 , 2 v - i l s . ( v o l . I: T n e M e r -c a n t i l e S y s t e m ) ; G. S C H M O L L E R : Das Merkantilsystem in Seiner Historischeu Bedeutung: Stadtiche, Terri'oriaIe und Staatliche Wirtschaftspolitik (O s i s t e m a m e r c a n t i l i s t a e s u a s i g ­n i f i c a ç ã o h i s t ó r i c a ) , 1 8 8 4 .

S o b r e o m e r c a n t i l i s m o l e r t a m b é m C a r i o G I G L O : Mercantilismo, P á d u a , 1 9 4 0 ; E l i F . H E C K S C H E R : Mercantilism ( t r a d . d e M . S h a p i r o , 2 v o l s . ) , L o n d r e s , 1 9 5 5 ; W i l l i a m A . S C O T T : The Development o f Economics. N o v a I o r q u e , 1 9 3 6 ( P a r t e s , I , I I e I I I ) .

Page 67: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Moras, publicada em 1516. Na organização comunista, descrita por Mo­ras, não há trocas; parece, portanto, que, inexistindo a moeda como ins­trumento de troca, não haveria lugar para um estoque metálico. Moras, entretanto, o prevê e acha necessário, como "tesouro de guerra, a fim de manter um exército e corromper os chefes inimigos..."9

Em resumo: três são os principais fundamentos da idéia metalista. Um, decorrente do fato de se associar à idéia de moeda riqueza (isto, aliás, com as devidas reservas já indicadas); outro, consistente no caráter de durabilidade da riqueza metálica, e o último, enfim, oriundo da neces­sidade de dinheiro para a guerra.

Essa idéia metalista é a alma do pensamento mercantilista e se en­contra subjacente em todas as suas expressões.

Não se manifestará esse pensamento sob a forma de um sistema úni­co. Tendo o mercantilismo durado três séculos e reinado em diferentes países, foi necessariamente obrigado a evoluir no tempo e no espaço. Ex­primiu-se, pois, através de um grande número de sistemas, dos quais dis-tinguiremos as cinco formas seguintes: a espanhola ou bulionista; a fran­cesa ou industrialista; a inglesa ou comercialista; a alemã ou cameralista e a fiduciária.

A sucessão dessas diferentes formas representa uma classificação cro­nológica e lógica do mercantilismo.

Foi nessa ordem que o pensamento mercantilista se desenvolveu de 1450 a, mais ou menos, 1750: passando por essas formas, diversas e su­cessivas, evoluiu o mercantilismo, indo, nas suas principais aplicações, de um intervencionismo rigoroso a um intervencionismo mais inteligente e sutil.

Seção III

OS SISTEMAS MERCANTILISTAS

§ 1.° — A forma espanhola

Trata-se da primeira forma do mercantilismo, mais rudimentar, tam­bém chamada de "metalista" ou "bulionista".

Essa primeira manifestação do pensamento mercantilista coincide com a descoberta e exploração das minas de ouro da América; tem nascimen­to no país que recebe este metal precioso: a Espanha.

9. "É com este único fim (fazer a guerra) que c o n s e r v a m eles a t o t a l i d a d e do tesouro que possuem. C o m esse dinheiro p a g a m g r a n d e s soldos aos mercenários estrangeiros, que v ã o combater no lugar dos seus concidadãos. S a b e m que se pode comprar os próprios i n i m i g o s a peso de ouro e fazê- los matarem-se entre si, seja por t r a i ç ã o , seja m e s m o em luta armada. Por essa única razão g u a r d a m para si m e s m o s um tesouro i n e s t i m á v e l . " I lha da U t o p i a , ou a melhor das R e p ú b l i c a s (trad. fr., p. 146, P a r i s , 1935).

Page 68: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Os principais representantes do mercantilismo "bulionista" são espa­nhóis, ou italianos, que vivem sob o domínio da Espanha: Ortiz, Botéro, Olivares, Serra e Mariana, principalmente.1 0 Parece que nessa época — no século XVI, sobretudo, e no XVII — os representantes mercantilistas cometiam o erro "creso-hedonista", confundindo riqueza com metal pre­cioso. Para se conseguir acumular o máximo de ouro e prata, dois são os processos preconizados e empregados:

a) Trata-se, primeiro, de impedir que o metal precioso saia do país. Para isso se toma toda uma série de medidas intervencionistas, nos diversos campos: umas indiretas, tendo em vista evitar as importações, e outras diretas, para impedir a evasão do metal. A partir de fins do século XV, proíbem Fernando e Isabel a ex­portação de metais preciosos, ou seja: "ouro e prata em barra, ouro e prata amoedados, baixelas de ouro e prata e uma infini­dade de objetos de luxo em cuja fabricação se faça uso destes dois metais". A inobservância dessas proibições é punida com penas severas e, até mesmo, com a pena de morte.

Atraem-se também as moedas estrangeiras para o interior do país, mediante a adoção de uma política de taxa de juros elevada; depois, a fim de impedir a saída do metal, falsificam--se as moedas.

b) Trata-se, em seguida, do processo conhecido pelo nome de "ba­lança de contratos".

A fiscalização concentra-se, agora, sobre os contratos assinados entre nacionais e estrangeiros. Sem dúvida os mercantilistas compreendem a im­portância das trocas entre nações: as grandes descobertas, conforme dis­semos, criaram um ambiente propício ao comércio internacional. Mas, em contraposição, perceberam, também, acarretar esse comércio deslocamen­tos dos estoques metálicos. Dominados por essa preocupação, entregam-se à prática de medidas de controle, das mais severas e embaraçantes para as trocas. Assim, os navios espanhóis, que vão vender mercadorias no exte­rior, devem, obrigatoriamente, trazer para a Espanha o valor de sua carga em ouro. Por outro lado, os navios estrangeiros, que desembarcam os pro­dutos de seus países de origem na Espanha, devem, necessariamente, le­var, ao partir, o valor de sua carga em produtos espanhóis (Lei de 1941, posta de novo em vigor em 1498 e 1503).

Tais processos esbarravam com duas dificuldades essenciais: a) a fis­calização dos contratos devia ser contínua, adaptando-se às modalidades particulares incessantemente renovadas. Realmente, a fraude não podia ser descoberta senão em parte; b) a prática de tais processos só seria possí­vel por parte de um apenas, ou de pequeno número de países: o seu pró­prio mecanismo constituía um óbice à sua generalização. Apreendemos aí

10. O R T I Z : Mémoire au Roi pour Empêcher la Sortie de 1'Ot, 1588; S E R R A : Breí Trai-té des Causes qui Font Abonder VOr et VArgent dans un Pays qui n'a pas de Mines, 1641.

Na I n g l a t e r r a , um dos principais m e r c a n t i l i s t a s b u l i o n i s t a s foi G e r a l d de M a l y n e s (1586--1654), mercador e autor de d i v e r s o s t r a t a d o s : A Treatise on tbe Conker of England's Com-monwealth, Londres, 1601; The Mantenance of Trade, L o n d r e s , 1622; Centre of the Circle oi Commerce, Londres, 1623. C i t a m o s i g u a l m e n t e Misseldeir , E D W A R D : Free Trade on the Means to Make Trade Flourisb, L o n d r e s , 1622.

Page 69: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

um dos aspectos peculiares à política mercantilista: política de economias nacionais em antagonismo.

Essa noção de balança de contratos torna-se, em breve, demasiado restrita. O Estado — para exercer o seu controle — passa, então, a to­mar em consideração não mais os contratos estabelecidos pelos indivíduos entre si, mas, sim, o conjunto do comércio do país, com um ou outros paí­ses; ou melhor, o conjunto do seu comércio com todos os outros países. A noção de "balança de comércio" vai, assim, aos poucos substituir a de "balança de contratos". A concepção mercantilista se alarga: admite-se a entrada e a saída do ouro, contanto que ao mesmo tempo seja tomada uma série de medidas indispensáveis, tendentes a assegurar ao país uma "balança de comércio" credora.

Esse ponto de vista será o adotado pelas formas francesa e inglesa do mercantilismo.

§ 2.° — A forma francesa 1 1 1 )

Costuma-se dar-lhe o nome de mercantilismo "industrialista" ou "col-bertismo".

O objetivo é sempre o mesmo: procurar aumentar os estoques mone­tários; mas a França, não podendo beneficiar-se das fontes diretas de me­tais preciosos, entende obtê-los indiretamente e, para isto, o meio empre­gado é o fomento da indústria.

A indústria é preferida à agricultura.1 2 Isso, por um lado, em virtude de ser sua produção mais certa e regular e, por outro, à vista de terem os produtos fabricados para a exportação valor específico maior.

1 1 . D e n t r e o s m e r c a n t i l i s t a s franceses p o d e m o s m e n c i o n a r : Jean B O D I N (obra c i t a d a ) ; M O N T C H R Ê T I E N : Traité d'Économie Politique, 1 6 1 5 ; L A F F E M A S , Controlador geral do comércio, sob H e n r i q u e I V : Rêglément pour Dresser les Manuíactures du Royaume, 1597; De M A L L E S T R O I T : Les Paradoxes, 1568; Le B I È G U E : Traité et Avis sur les Désordres de la Monnaie, 1600; S c i p i o n de G R A M M O N T : Le Denier Royal, 1620; S U L L Y (um dos poucos mercanti l istas a g r á r i o s ) : Mémoires de Sages et Royales Économies d'Ètat; C O L B E R T : Lettres, Instructions et Mémoires, 1651 a 1669. F o i M i n i s t r o da F a z e n d a de L u i z X I V , de 1661 a 1683. Sobre suas r e a l i z a ç õ e s (marinha m e r c a n t e , manufaturas, sociedades c o m e r c i a i s , empre­sas coloniais etc .) l e r : P I E R R E C L É M E N T , Histoire de la Vie et de l'Administration de Colbert, P a r i s , 1846.

R I C H A R D C A N T I L L O N (1680-1734) e x p ô s no seu Essai sur la Nature du Commerce en general (escrito por v o l t a de 1730 e editado apenas em 1755 após sua morte) idéias sobre a_ riqueza n a c i o n a l , de interesse geralmente superior àquelas de seus contemporâneos mercan­ti l istas. L i b e r t a - s e ele do complexo e s t r i t a m e n t e m e t a l i s t a e vê no trabalho e nas terras as verdadeiras r i q u e z a s de uma N a ç ã o . É em c o n s e q ü ê n c i a do saldo beneficiário da b a l a n ç a comercial que o m e t a l precioso entra no p a í s , trazendo proveito à sua E c o n o m i a até que, pelo m e c a n i s m o da teoria q u a n t i t a t i v a , os p r e ç o s sobem, tornando a b a l a n ç a d e f i c i t á r i a . Suas idéias r e l a t i v a s ao comércio internacional e à m o e d a se enquadram na doutrina m e r c a n t i l i s t a , mas são mais o r i g i n a i s que as da maioria dos e c o n o m i s t a s franceses da época e repousam sobre um c o n h e c i m e n t o mais amplo e c i e n t í f i c o dos p r o b l e m a s econômicos. A n u n c i a ele i g u a l ­mente os f is iocratas ao insistir sobre a i m p o r t â n c i a econômica da agricultura e ao colocá- la no centro de sua teoria do valor e dos p r e ç o s . O E n s a i o de Canti l lon é considerado com j u s t i ç a como um dos mais interessantes l i v r o s de E c o n o m i a Pol í t ica aparecidos antes do Q u a d r o E c o n ô m i c o de Q u e s n a y .

E c o n t r a r - s e - ã o interessantes precisões sobre a obra de C A N T I L L O N no estudo de M O N -R O E , A. E. , Early Economic Thought (cap. X I ) , C a m b r i d g e , Mass. , 1924.

1 2 . C) que não quer dizer que os m e r c a n t i l i s t a s não regulamentem a a g r i c u l t u r a ; ber ao contrário: t ê m eles um perfeito sentimento da sol idariedade entre a p r o d u ç ã o a « r í c o l a a industrial (a primeira posta a s e r v i ç o da s e g u n d a ) . Percebe-se aí a idéia de d'isenvol\ •

Page 70: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esse esforço em prol do desenvolvimento industrial é acompanhado de numerosas medidas intervencionistas: o Estado outorga monopólio de produção e regulamenta a indústria de modo estrito; o regime corporati­vo se estende a todas as profissões e há interdição do trabalho livre. O preço do trabalho é fiscalizado pelos poderes públicos: a mão-de-obra re­presenta, com efeito, nessa produção — muito mais manufatureira do que industrializada —, a parte mais importante do preço de custo dos produ­tos. Por conseguinte, é taxada, fixando-se o "salário máximo" — e não o "mínimo", como se faz hoje —, a fim de colocar os produtos nacionais em condições vantajosas no mercado internacional. A taxa de juros é tam­bém fixada pelo Estado, sempre com a mesma finalidade: agir no sentido de compreensão do preço de custo, para favorecer a expansão da expor­tação e, indiretamente, do estoque metálico "nacional.

A importância sempre crescente da indústria constitui uma das razões pelas quais são levados os mercantilistas à adoção de uma política demo­gráfica populacionista: uma população numerosa é favorável à produção. Note-se ser também condição para a organização de um exército forte: a preocupação econômica e a política estão, sempre intimamente associadas no espírito mercantilista.

A ingerência do Estado no campo da produção acarreta também a sua intervenção no setor do consumo: para aumentar o volume das expor­tações de objetos de luxo limita-se o seu consumo no mercado interno. Nesse sentido são promulgados os editos suntuários, regulamentando o uso, no país, dos produtos das manufaturas de tecidos de ouro, de tapeçarias, de couros dourados, enfim, das indústrias de luxo. O luxo da mesa e do traje é regulamentado com maior rigor. 1 3 Aliás, o fato nada tem de novo. Mas, enquanto a condenação do luxo (da qual eram excluídas certas clas­ses) significava, no regime feudal, por exemplo, a preocupação de hierar­quia social, no sistema mercantilista indica a preocupação metalista.

O que se deve fixar, relativamente a essa política e seus resultados, é a existência de uma acentuada intervenção do Estado na produção e, por via de conseqüência, no consumo.

§ 3." — A forma inglesa

Na Inglaterra o mercantilismo reveste a forma chamada "comercialis-ta". Já era a Inglaterra, nessa época, uma grande potência marítima. Nes­se período de grandes descobertas, suas possibilidades comerciais parecem

mento complexo da nação, ou seja, o aumento harmonioso de todas as suas forças produtivas. A l i á s , tal noção é de novo encontrada em numerosas formas da e c o n o m i a contemporânea, cujo o b j e t i v o essencial é tornar o país independente do estrangeiro.

1 3 . E s s e s editos foram objeto de sátiras, das quais M o l i è r e , entre outros, se faz intér­prete na L'École des Maris:

" S g a n a r e l l e : O h ! trois ou quatre fois béni cet édit Par qui des v ê t e m e n t s , le luxe est i n t e r d i t ! L e s peines des maris ne seront plus st grandes Et les femmes auront un frein à leurs d e m a n d e s . O h ! que je sais au R o i bon gré de ces d é c r e t s ! "

Page 71: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

extraordinárias. Foi então que solicitaram os negociantes a abolição da proibição da saída de metais preciosos do país. Em apoio dessa reivindi­cação apresentaram um argumento de ordem prática e outro de ordem histórica: as Índias Orientais, por exemplo — diziam eles —, fornecem aos compradores preciosas especiarias, as quais são revendidas aos estran­geiros pelo cêntuplo de seu preço de compra. Ora, os indígenas não que­rem vender contra pagamento em outros produtos, mas, sim, em metal precioso. A exportação desse metal permitiria, portanto, ao comerciante inglês, auferir lucros que se traduziriam, no fim de contas, em importação do metal precioso, com vantagem para o país. Além disso — alegavam eles —, tomando-se o testemunho da história, verifica-se haverem enrique­cido, outrora, Sidon, Tiro, Cartago e Alexandria, com operações realizadas graças à liberdade concedida à saída de ouro e prata.

Os mercantilistas ingleses lutaram energicamente pelas suas reivindi­cações,1 4 cuja legitimidade, uma vez reconhecida, determinou a revogação, em benefício dos comerciantes, da proibição da saída dos metais preciosos.

Note-se que na concepção mercantilista é a nação — e não o indi­víduo — o comerciante. Cabe-lhe, pois, envidar todos os esforços para

14. T h o m a s M U N (1571-1641) mercador londrino, u m dos diretores d a C o m p a n h i a das ín­dias O r i e n t a i s : A Discourse oi Trade from England into the East Indies, 1621; England's Trea-sure by Foreign Trade, 1664; as idéias c o n t i d a s neste T r a t a d o foram expostas a partir de 1622. T i v e r a m n í t i d a inf luência sobre a polít ica e c o n ô m i c a da Inglaterra e sobre outos países euro­peus. O l i v r o foi reeditado por Mc C u l l o c h em Eaily English Tracts on Commerce, London, 1856. Josias C H I L D (1639-1690), (dono de um estaleiro em Portsmouth e diretor da C o m p a ­nhia das í n d i a s ) : Brief observations concerning Trade and the Interest oí Money, 1668 e 1690; W. P E T T Y (1623-1687), filho de um comerciante de tecidos como C O L B E R T : Treatise o í ta­xes and Contributions, 1662; Observations upon the United Provinces oí the Netherlands, 1672; Essay on the East-India Trade, 1696-97: Polizical Arithmetic (1690). E l e c o n s a g r a seus p r i m e i ­ros trabalhos (1662) a uma análise científ ica da t r i b u t a ç ã o . Insiste, em particular, sobre a im­portância do imposto para a E c o n o m i a nacional , não apenas como fonte de riqueza em benefício do E s t a d o , m a s t a m b é m como elemento regulador da a t i v i d a d e e para i s to sua t a x a deve ser moderada, sobretudo aquela que incide sobre as e x p o r t a ç õ e s a fim de favorecer as manufaturas que produzem para o exterior. Os impostos sobre as importações precisam ser s e l e t i v o s , para tomar em c o n s i d e r a ç ã o as necessidades da p r o d u ç ã o nacional em matér ias -primas estrangeiras. De modo g e r a l , o i m p o s t o deve ser adaptado aos recursos dos contribuintes e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , f ixado de acordo com a importância de " s u a s propriedades e de suas r i q u e z a s " . Do estudo das finanças p ú b l i c a s , P e t t y passa ao de uma teoria da riqueza nacional. E l a b o r a uma e x p l i c a ç ã o do valor b a s e a d o no t r a b a l h o ; "o trabalho é o pai e o princípio ativo da r iqueza, assim como a terra é a m ã e " . Um século antes de A d a m S m i t h , ele insiste na d i v i s ã o do trabalho, vê com razão seu progresso favorecido pelo d e s e n v o l v i m e n t o das grandes cidades e pelo c r e s c i m e n t o da p o p u l a ç ã o : " P o u c o s homens denotam, na real idade, p o b r e z a . " É no Quantulum cumque Concer­ning Money (1862) que ele expõe suas c o n c e p ç õ e s monetárias. As idéias de P e t t y são c a r a c t e ­ríst icas da doutrina mercanti l ista, mas seu cunho c i e n t í f i c o anuncia o espírito dos e c o n o m i s t a s c lássicos. Em r e l a ç ã o a alguns problemas, suas s o l u ç õ e s intervencionistas são menos r í g i d a s que as da maioria dos mercanti l istas. N e s t e sentido anuncia a reação liberal do fim do século X V I I .

I n d i c a m o s ainda entre o s Drincipais m e r c a n t i l i s t a s i n g l e s e s : Sir T h o m a s C U L P E G E R (1578--1662), A Tract against the Hight Rate of Usuries, L o n d r e s , 1621; Charles D A V E N A N T (1656-1714) foi um m e r c a n t i l i s t a relativamente l iberal cujas obras principais s ã o : Essay on East In-dian Trade, Londres, 1699, Essay on the Probable Means of Making People Guiners in the Balance of Trade, L o n d r e s , 1699; John L O C K (1632-1704) como filósofo concordou com o con­ceito geral da doutrina mercanti l ista. S u a s idéias a respeito desta doutrina estão e x p o s t a s em Consequences of the Lowering of Interest and Raising the Value of Money, L o n d r e s , 1692. Em Of Civil Government, encontra-se a e x p o s i ç ã o e a defesa da teoria do valor trabalho. Sir James S T E U A R T ( 1 7 1 2 - 1 7 8 0 ) , An Inquiry of Political Economy ( 1 7 6 7 ) , um dos últ imos m e r c a n t i l i s t a s . Seu l ivro expõe o conjunto dos problemas econômicos, de modo sistemático. E d i t a d o pouco tem­po antes de aparecer a " R i q u e z a das N a ç õ e s " , teve sua d i v u l g a ç ã o prejudicada nelo sucesso do livro de S m i t h .

Sobre o m e r c a n t i l i s m o inglês, indicamos, para maiores detalhes, a obra de E. L I P S O N , The Economic History of England, 3 vols. — I I I : " M e r c a n t i l i s m " , Londres, 1931. P a r a um me­lhor c o n h e c i m e n t o das idéias dos m e r c a n t i l i s t a s — sobretudo ingleses — r e l a t i v a s ao comercio, um dos melhores l ivros para consulta é o de Jacob V I N E R , Studies in the Theory of Interna­tional Trade, 1937.

Page 72: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

conseguir uma balança de comércio exterior saldada mediante entrada de metal. É nesse espírito que se concede autorização para a saída de metal. Todavia, como se exige, para que a balança seja favorável, sererri as im­portações de ouro e prata superiores às exportações, todo um sistema de regulamentações é elaborado: o Estado regulamenta a produção, fiscaliza as exportações e controla as vendas no exterior, certificando-se de voltar ao país o montante correspondente a essas operações (regulamentações al­fandegárias, coloniais, pacto colonial e tc ) .

Essa regulamentação é tanto mais rigorosa quando, na verdade, à preo­cupação metalista se vai juntar — como em todas as formas do mer­cantilismo — a preocupação política: é assim que a fiscalização das ex­portações visará também impedir a saída de produtos e matérias-primas que possam ser úteis à defesa do país ou à condução da guerra.

Esta preocupação política constante, que corresponde a acentuada tendência do mercantilismo à autarquia econômica, exprimiu-a bem o eco­nomista mercantilista Montchrétien, no seu "Tratado de Economia Políti­ca": "Toda sociedade deve ser abundantemente abastecida por si própria; não deve tomar de empréstimo aquilo que tenha por necessário, pois, não podendo tê-lo a não ser por misericórdia de outrem, com isto se enfra­quece."

§ 4." — A forma alemã

Insistimos sobre a unidade das idéias principais da doutrina mercan­tilista, mostrando que suas modalidades evoluíram com ô processo da ati­vidade econômica, durante os séculos considerados. Estudando-se esta evo­lução em países como a Inglaterra e a França, observa-se facilmente a identificação dos princípios, seja qual for a diversidade das aplicações, di­versidade devida, sobretudo, às diferenças das situações geoeconòmicas. O estudo mais completo das modalidades da doutrina mostraria diversidades mais acentuadas, principalmente quando resultantes de concepções filosó­ficas e de evoluções políticas muito diferentes. É o caso, por exemplo, do mercantilismo alemão.

Esta doutrina, conhecida pelo nome de "cameralismo", é dominada por uma filosofia e por uma situação política que diferem daquelas dos países já citados.

A situação política é conhecida. Enquanto a maioria das nações do mundo ocidental já realizou ou está para realizar sua unidade, a Alema­nha permanece dividida. Grande número de principados luta entre si para impor sua soberania; constituem eles pequenos Estados, isolados na sua economia e opostos pela sua política.

Filosoficamente, as idéias de Pufendorf (1632-1694) dominam. Afir­mam a autoridade direta e alienável do Estado sobre o povo, justificando assim o paternalismo político. Afirmam a estrita subordinação dos inte-

Page 73: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

resses do indivíduo aos da coletividade, justificando a intervenção do Es­tado em todos os domínios, de forma ainda mais rigorosa do que nas ou­tras formas do mercantilismo.

A preocupação política se revela, então, aqui, nitidamente principal e dominante: é a unidade política e o poder absoluto do Estado que se impõe edificar; a preocupação econômica é apenas secundária e subordi­nada: é limitada, sobretudo nos séculos XVI e XVII, à necessidade de fazer viver, sobre si mesmas, economias semifeudais de pequenas dimen­sões.

São estas idéias que inspiram, durante três séculos, as obras dos ca-meralistas.

No século XVII um dos mais importantes cameralistas foi Ludwig von Seckendorff (1626-1692). Partidário de uma população numerosa, pre­coniza medidas para aumentar a produtividade da agricultura e das ma­nufaturas. Insiste na necessidade de leis suntuárias a fim de diminuir as importações dos bens, não necessários, e reservar a mão-de-obra e as ma­térias-primas às produções indispensáveis. Propõe medidas severas para lutar contra a ociosidade e medidas que favoreçam os trabalhadores em­penhados nas atividades mais produtivas, notadamente aquelas que contri­buem para a exportação.

Johan Joachim Becker (1625-1685) insiste nos problemas do comer- ' cio; condena a importação e a exportação, quando realizadas em proveito dos particulares — que devem ser tratados como "os mais indignos cri­minosos", por importarem produtos que poderiam ser obtidos no próprio país, contribuindo assim para a "destruição de sua própria comunidade". É, pois, o Estado que deve tomar conta do cornércio exterior. A consti­tuição de sociedades comerciais estatizadas é recomendada. Os produtos exportados devem ser vendidos pelo menor preço possível: reaparece aqui uma das preocupações dos mercantilistas franceses que viam, na venda no estrangeiro de produtos manufaturados, uma fonte abundante de metal pre­cioso.

Todas essas medidas são acompanhadas de tão grande número de aplicações especiais que perdem todo alcance geral. No século XVIII sur­ge uma reação no sentido de colocar em ordem todas essas idéias espar­sas e dar-lhes mais generalidade.

É no sentido de sistematização da doutrinação mercantilista alemã que o professor vienense Johannes Heinrich von Justi (1717-1771) entre outros, tenta uma classificação das funções econômicas do Estado a fim de distinguir os princípios de uma política econômica. Tais princípios constituem o essencial da ciência cameralista, que se esforça no sentido de separar a ciência da Administração Geral do Estado. Trata-se de es­forço louvável para distinguir o estudo econômico do político, esforço tanto maior se considerarmos que, no seu conjunto, os teóricos da Escola 2ameralista sp interessam mais pelos problemas políticos colocados pelo

Page 74: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

florescimento monárquico do que pelos problemas econômicos que pro­vocam o afluxo das riquezas.

Von Justi tenta igualmente sistematizar as regras de tributação, insis­tindo na necessidade de simplificar a avaliação e o recebimento do impos­to, limitar as taxas para assegurar a produtividade e se mostra favorável à igualdade de todos diante do imposto. Há nos trabalhos de Justi os fundamentos da ciência financeira que os cameralistas buscam constituir. Mostra-se ainda muito favorável ao comércio exterior, no qual vê a fonte principal da riqueza da coletividade. Interessa-se pela agricultura e yisiste na necessidade de o explorador ser proprietário da terra, para que tenha es­tímulo em aumentar a produtividade. É populacionista tal como todos os mercantilistas: a importância quantitativa da população e o homem como fator da produtividade é que estão em primeiro lugar.

O destaque dado ao quantitativo se encontra na maior parte das preo­cupações cameralistas. O pequeno interesse pelos aspectos qualitativos dos problemas econômicos distingue os cameralistas dos outros mercantilistas, franceses e italianos em particular.

É sem dúvida por haver sido menos profundamente atingido pelo hu­manismo do Renascimento que o cameralismo tende a negligenciar os as­pectos qualitativos dos problemas econômicos. Encontra-se estética entre os mercantilistas franceses e italianos, por exemplo, quando procuram orientar a produção para a exportação: os produtos de luxo — sedas, ve-ludos, brocados de prata e ouro, rendas, tapetes, cristais, louças, baixelas — é que devem ser mais vendidos no exterior. COLBERT e seus seguido­res querem ganhar e conservar os mercados estrangeiros pela qualidade. Esta preocupação domina a organização de manufaturas-modelo e os re­gulamentos de fabricação pelas corporações.

Os cameralistas deixaram estudos interessantes e volumosos. É em particular nas obras de JUSTI (System der Finanzwesen, 1766; Grundsãtze der Polizeiwissenschaft, 1756 e sobretido no Stiatswirtschaft, em 2 volu­mes, 1775 que J. F. BELL qualifica justamente de "summa cameralista") que se encontram as principais idéias e a prática do cameralismo alemão dos séculos XVII e XVIII.

Quanto ao esforço de sistematização, trata-se apenas de tentativa. Os princípios são sufocados pelos fatos; perdem-se na massa dos detalhes regulamentares e nos minuciosos ensaios de classificação. Tanto na forma como no fundo, a obra dos cameralistas carece de síntese. É uma análi­se de casos e de medidas particulares. Não atinge a clareza e o alcance de grande número de Tratados e de Ensaios de mercantilistas ingleses e franceses. O que não quer dizer, porém, que não tenham exercido im­portante influência na solução dos problemas políticos e econômicos da Alemanha. Ao contrário. As aplicações da doutrina cameralista contri­buíram de maneira decisiva para assegurar a evolução estrutural da econo­mia alemã, criando — quando o mercantilismo deixou de se manifestar

Page 75: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

e quando, a partir de 1848, se realizou a unidade política dos Estados da Confederação Germânica — as condições favoráveis ao progresso rápido de sua industrialização.15

§ 5.° — A forma fiduciária

O mercantilismo reveste, nos primórdios do século XVIII, a forma chamada fiduciária. Seus principais representantes são Dutot, Melon e so­bretudo John Law. 1 6 A experiência deste último, teórico e banqueiro es­cocês, é que deve merecer a nossa atenção, pois aí aparecem certas idéias mestras do mercantilismo — sempre as mesmas quanto ao fundo, mas ou­sadamente renovadas quanto à forma — e delas decorrerem, no setor da moeda e do crédito, importantes conseqüências imediatas e mediatas.

A experiência de Law constitui, com efeito, um sistema mercantilista. Seus fundamentos são sempre da mesma ordem: se não é mais a quanti­dade de metal precioso que constitui diretamente o centro do sistema, é, entretanto, a quantidade de moeda que continua sendo o elemento primor­dial: necessidade de aumentar o volume de moeda para aumentar a rique­za pública. Mas, partindo desse postulado, vai Law ampliar sua aplicação, fazendo, assim, de seu sistema o termo último da evolução mercantilista.

Ao examinar os meios de que o Estado pode lançar mão para aumen­tar o volume monetário, rejeita Law — como todos os mercantilistas do seu século — as restrições à exportação de moeda, bem como as medidas que asseguram o repatriamento obrigatório, em metal precioso, do valor das exportações. Elimina também a possibilidade de aumento das unida­des monetárias mediante a utilização do crédito bancário: processo bom em si, parece-lhe de realização demasiado lenta. Detém-se na criação do papel-moeda: a moeda lhe parece um simples "bônus" que permite a aqui­sição de mercadorias.

Para desempenhar as funções de tal "bônus", o metal precioso é dis­pensável, por supérfluo, apresentando mesmo certos inconvenientes: a moe-da-ouro e sobretudo a moeda-prata sofrem variações de valor que tornam difícil e discutível o seu emprego como padrão monetário. O papel-moe­da é, pois, suficiente e, além disso, mais barato que o metal. Pode ser produzido à vontade e em função das necessidades.

15. P a r a estudar o mercanti l ismo a l e m ã o deve-se consultar a obra de S M A L L , A. W . , The Cameralistes, 1909, assim como Geschichte der Natwnalpek.nomik in Deutschland, 1874, do eco­nomista historiador W. R O S C H E R . Interessante resumo da doutrina é encontrado na History oi Economic Thought, 1953, do professor norte-americano John Bel l , Parte I I . Sobre os resul­tados práticos da p o l í t i c a econômica do c a m e r a l i s m o pode-se consultar a obra de G. S C H M O L -L E R , Die Deutschen Kleingewerbe in 19 Jahrundert, 1870.

16. D U T O T : Réiléxions Politiques sur les Finances et le Commerce, 1738; M E L O N : Es-sais Politiques sur le Commerce, 1 7 3 1 ; L A W : Considérations sur le Numéraire et le Commerce, 1705; Mémoires sur les Banques; Mémoires sur 1'Usage des Monnaies; Lettres sur les Banques etc. As obras de L A W foram p u b l i c a d a s sob a direção de H A R S I N , com o t í t u l o : Oeuvres Completes de John Law, Paris, 1934. Sobre L A , W ler: H A R S I N : Doctrines Monétaires et Fi-r.ancières en France du XVIème ou XVIIème siècle, Paris, 1928; Charles R I S T : Histoire des Doctrines relatives au Crédit et à la Monnaie, P a r i s , 1938.

Page 76: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Sendo boa, para Law, a moeda abundante 17 e emitida em quantida­de sempre igual à procura, o papel-moeda deve ser escolhido como ins­trumento de trocas.

Law porá em prática suas idéias, durante a Regência, em Paris. Fun­da, em 1716, um banco particular; em 1717 reorganiza a Companhia do Ocidente, sociedade comercial para a exploração do Mississípi, transfor­mada, em 1719, em Companhia das Índias e à qual é anexada a Compa­nhia da África. Controla, assim, quase todo o comércio marítimo francês. Em 1718 transforma-se seu banco privado em banco real: o Estado Subs­titui os acionistas, aos quais reembolsa, e torna-se proprietário do capital. Recebe Law também a incumbência de cunhar moeda. É ainda encarre­gado da percepção dos impostos e do reembolso da dívida pública por conta do Estado. Em 1729 — ano do apogeu do sistema — Law, no­meado Controlador Geral das Finanças, opera a fusão da Companhia Co­mercial com o banco.

Durante todo o decurso da sua experiência, Law, desejoso de multi­plicar o numerário — finalidade do sistema — emite notas de bancos sem a garantia de lastro metálico; a diferença entre o valor das notas emitidas e a cobertura metálica representa o lucro da operação. Law age, assim, partindo de uma observação exata, a saber: jamais exigirem os clientes de um banco — enquanto lhes merecer este confiança — a conversão total de suas notas em espécies metálicas. O caso de reembolso por necessida­de pessoal seria sempre um caso esporádico. Mas, mesmo que se multi­plicasse, tal hipótese jamais se verificaria para todos simultaneamente. A esta observação justa apõe uma idéia inexata: a de que a emissão do pa­pel-moeda, com o objetivo de fomentar novas produções, constitui um ins­trumento eficiente, se puser em risco o desenvolvimento econômico. Igno­ra as inevitáveis repercussões que semelhantes emissões teriam sobre a circulação (mesmo quando produzissem novas riquezas) e principalmente sobre os preços, no sentido de elevá-los. Ora, as contínuas emissões, fei­tas, assim, por Law, puseram rapidamente um ponto final na confiança dos portadores dos títulos. Ao ser o Banco autorizado a emitir notas, tendo em vista possibilitar aos capitalistas a subscrição de ações da Com­panhia das índias, a confiança se transforma subitamente em desconfiança generalizada. Todos perceberam o caráter artificial e "inflacionista" des­sas emissões. Os pedidos de reembolso se precipitaram e, a despeito do estabelecimento de curso para as notas bancárias, o seu valor volatilizou-se.

Termina, assim, a experiência por uma catástrofe.1 8 Ütil é, todavia, recordá-la, não só por integrar-se no conjunto das idéias mercantilistas,

17. "O poderio e a riqueza de uma nação são consti tuídos por uma população numerosa e entrepostos de mercadorias estrangeiras e nacionais. Os objetos dependem do comércio e o c o ­mércio do numerário. T a m b é m para sermos poderosos e ricos, em comparação com as outras nações, d e v e r í a m o s possuir numerário na mesma proporção, pois, sem numerário, as melhores leis não poderiam dar e m p r e g o aos indivíduos, nem aperfeiçoar as produções, nem aumentar as manufaturas e o c o m é r c i o . . . " (Considérations sur le Commerce et sur VArgent, p. 506).

18. " L a w — observa L o u i s R O U B A U D (La Bourse, 1929) — apresentou à F r a n ç a a m i r a ­g e m do vale do M i s s i s s í p i ferti l izado pelo ouro da rua Q i u m c a m p o i x , (era ali que se encontrava, em Paris , a sede do B a n c o de L a w ) . E este grande rio, que se tornou uma espécie de afluente monstruoso do Sena, inundou P a r i s . . . " .

Page 77: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mas também por evidenciar certas noções fecundas e certo número de gra­ves erros muito ilustrativos.

O erro capital de Law foi ter colocado, como centro do sistema, o volume da moeda em circulação, sem levar em conta a procura efetiva dessa moeda em função do real desenvolvimento da riqueza. Esta desas­trosa experiência deixa também patente a confusão que, no espírito de Law, existia entre crédito e moeda, entre volume monetário e velocidade da sua circulação. Indica ainda o perigo de se ignorar uma das principais funções, peculiar a toda boa moeda — a de reserva de valor —, que não poderia ser desempenhada pela moeda-papel do banco de Law. É de se notar assumir esta função maior importância nos períodos de convulsão econômica e social, quando, mais do que nunca, sentem os homens difi­culdades em conservar o produto de sua atividade e de seu trabalho. De fato, se essa experiência agravou ainda mais as finanças da França, sua lembrança, entretanto, não será esquecida tão cedo e será a causa da aversão que o século XVIII conservará ao crédito, o que vai retardar o desenvolvimento da atividade dos bancos.

Smith qualificou a tentativa do banqueiro escocês de "o mais extra­vagante projeto de banco e de especulação que o mundo já tenha conhe­cido". Os seus efeitos imediatos justificavam este juízo severo. Todavia, injusto seria não ressaltar, em contraposição, o valor de certas de suas ousadas idéias e interessantes sugestões — por vezes proféticas, conforme a experiência veio depois confirmar.

Apoiando-se na prática de substituir, no sistema monetário, a moeda--metal pela moeda-papel, a experiência de Law fez com que se desse aten­ção principalmente aos inconvenientes do emprego dos metais preciosos como moeda. Pôs em realce as vantagens da nota bancária como fator de elasticidade da circulação e concorreu para que também se visse ser útil a concentração do estoque de metais preciosos em um banco central.

Desejosos de mostrar o papel do erro (sobretudo nas ciências econô­micas, onde, por ser impossível a experimentação, devemos supri-la, recor­rendo ao conhecimento das experiências do passado), insistiremos, ao terminar, no imenso serviço prestado pelo sistema de Law, uma vez pos­to em evidência seu erro fundamental, ou seja, ter sido arquitetado com base em uma riqueza artificial e não, como deveria, na prosperidade real. Ricardo irá, mais tarde, reagir energicamente contra tais idéias e, de en­tão para cá, muito deverá o progresso dos estudos relativos ao crédito e à moeda e, particularmente, ao mecanismo da teoria quantitativa da moe­da, ao erro de que a falência do sistema de Law constitui uma ilustração. O fracasso do sistema coloca igualmente em evidência os riscos da in­flação proveniente de uma concepção inexata dos efeitos do multiplicador de renda. Isso porque Law teve o mérito de haver concebido a idéia do mecanismo desse multiplicador; seu erro foi haver esquecido os perigos.

Compreendeu ele, de fato, que o aumento da massa monetária podia agir sobre o crescimento das riquezas reais; que esta ação se realizava

Page 78: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

pelo aumento do emprego e da renda suplementar daí resultante e que era ela assim suscetível de aumentar o consumo e de agir favoravelmente sobre a produção. Esta é a idéia do multiplicador real que se encontrará em Keynes.

Mas esse mecanismo do multiplicador Law o faz repousar sobre o aumente do numerário, negligenciando sua velocidade de circulação. Isto o conduz a admitir que o suplemento de renda criado não será igual senão ao suplemento de moeda, quando na realidade é o múltiplo.

Este raciocínio, porque inexato, permitiu a Law pôr de lado o efeito da inflação criada pelo multiplicador: daí, a morte de seu sistema.

Outros mercantilistas tiveram igualmente a idéia do multiplicador. Boisguilbert e Cantillon, sobretudo. Este último, irlandês naturalizado francês, banqueiro como Law, insiste em seu ensaio sobre o perigo do multiplicador monetário.

§ 6.° — A política colonial do mercantilismo

Acabamos de ver que durante três séculos a política econômica das nações foi dominada na Europa pelas idéias mercantilistas. Mas é igual­mente fora da Europa e no quadro das políticas coloniais que essas idéias se impõem.

São elas que vão presidir a organização e a evolução desses territórios do Novo Mundo que os descobridores, sobretudo portugueses e espanhóis, dão à Europa desde fins do século XV.

Em todas as manifestações das políticas coloniais praticadas pelas principais nações ocidentais, encontramos as conseqüências das mesmas idéias mercantilistas que orientam a construção de suas economias nacio­nais; encontramos o mesmo princípio fundamental, que liga estreitamente a riqueza e o poderio da nação à importância dos metais preciosos que ela possui, e a mesma preocupação essencial de assegurar uma favorável balança de comércio.

A política colonial desta época é uma conseqüência lógica do mer­cantilismo, dele se deduzindo integralmente. E nos territórios longínquos, subjugados e dependentes, sem possibilidade de tomar medidas de repre­sálias econômicas, o caráter unilateral da política comercial do mercan­tilismo encontrará ambiente favorável ao seu desenvolvimento. É aí que ele aparece, tal como através de uma lente de aumento, em toda a sua amplitude; é aí que ele é mais nítido e, muitas vezes também, mais brutal.

Essa política mercantilista da metrópole para com as suas colônias é conhecida como "pacto colonial", denominação tradicional, embora fal­sa e enganadora quanto ao fundo, porque a noção de "pacto" lembra a idéia de convenção, de acordo, segundo o qual as partes contratantes acei­tam obrigações recíprocas, quando na realidade as medidas políticas, so-"

Page 79: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ciais e econômicas que constituem as relações entre a "mãe-pátria" e suas colônias são impostas a estas sem consulta e sem prévia discussão.

Isso dito, consideramos essa política colonial — em suas grandes li­nhas — em função de seu fim, de seus meios e de suas conseqüências.

A Metrópole procura na colônia elementos materiais suscetíveis de aumentarem sua riqueza e seu poderio. Deseja, sobretudo, encontrar aí. produtos diferentes dos seus, o que a leva, em regra geral, a possuir co­lônias em zonas de latitudes diversas das européias. Se a colônia tiver metais preciosos, sua importação permitirá atingir diretamente o fim alme­jado, ou seja, o aumento do estoque metálico da nação. Esse fim será igualmente atingido, embora indiretamente, importando da colônia produ­tos outros que não o ouro e a prata, os quais serão vendidos no estran­geiro, ajudando assim a tornar favorável a balança metropolitana de co­mércio. Dentre esses produtos vêm em primeiro lugar os gêneros tropicais e as pedras preciosas, isto é, toda a gama tão diversa de especiarias. Ven­didas às outras nações, alimentarão elas um comércio remunerador por­que representam produtos raros e de alto valor específico. Além disso, quando utilizadas em parte pelo consumidor da Metrópole, as especiarias contribuirão para elevar o padrão de vida nacional. Um segundo grupo de produtos é constituído pelas matérias-primas. Úteis k indústria do país colonizador, permitirão elas desenvolver as manufaturas cuja produção ali­mentará o mercado interno ou frutuosas exportações.

Coloquemos bem o problema para compreender os meios que vão ser empregados para atingir os fins da política colonial. Todos esses pro­dutos, metais preciosos, especiarias e outros, devem ser obtidos da colô­nia em condições suficientemente vantajosas para que o conjunto dessas operações comerciais com a Metrópole seja nitidamente favorável a esta última. Para que isso seja possível é necessário que a Metrópole seja dona absoluta e exclusiva da economia de sua colônia. É indispensável que a política imposta não suscite nenhuma reação, nenhuma competição de ordem econômica da própria colônia ou de outras nações estrangeiras.

Para obter tais resultados a Metrópole se arroga em monopolizadora das compras e vendas dos produtos de sua colônia, o que significa que to­das as exportações da colônia se destinam à Metrópole e todas as impor­tações da colônia provêm da Metrópole. E, para assegurar integralmente a aplicação desses dois monopólios, a Metrópole reserva a si também o monopólio dos transportes: somente seus navios têm o direito de realizar o comércio com a colônia, salvo exceções autorizadas e controladas pelo país colonizador.

Esses três monopólios, quando aplicados de maneira integral, permi­tem facilmente à Mãe-pátria obter uma balança favorável ao seu comércio colonial. É ela — e somente ela — que, de uma parte, fixa os preços das importações e exportações, de modo que serão elevados os preços de produtos manufaturados e de gêneros alimentícios vendidos à colônia e, de outra parte, fixa e baixa o preço de tudo o que importará da sua co­lônia.

Page 80: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Aí está evidentemente o meio de criar essa ligação "exclusiva" que realiza a política colonial mercantilista. Objetar-se-á, sem dúvida, que como contrapartida de suas obrigações, a colônia se beneficia também de um monopólio: o de prover de gêneros coloniais o mercado metropolita­no. Todavia, na prática, essa vantagem pouco significa, porque, quando existe tal monopólio, o que nem sempre acontece, a colônia não tem meio de controlar sua execução e, mesmo que isso fosse possível, o problema continuaria sendo o mesmo. A colônia, com efeito, está sempre forçada a vender seus produtos a preços impostos e em lugares indicados (as ci-dades-depósito, Sevilha, Cádis, Lisboa, Bristol etc.) pela Metrópole. Não tem ela nenhum meio de defesa contra o preço arbitrário, pois mesmo quando este não é fixado pelo Governo, resulta de decisão unilateral e arbitrária das companhias de compra, companhias organizadas pelos nego­ciantes do país colonizador.1 9

Nessas condições, a colônia tem de aceitar a venda de seus produtos a preço vil, sem discussão, nem escapatórias possíveis, porque está proibi­da de vendê-los a outros mercados e, além disso, não lhe é permitido va­lorizar seus produtos primários mediante transformação industrial. Nesse sentido, há toda uma série de medidas severamente aplicadas a fim de que a colônia jamais possa reagir contra as restrições impostas.

Conseqüentemente, compreende-se que a balança comercial dessas tro­cas seja sempre favorável ao país colonizador, o qual, não tendo — salvo raras exceções — que pagar um saldo devedor, não deixará sair o metal precioso; a essa vantagem junta-se a de obter grandes benefícios ao reven­der na Europa esses produtos coloniais comprados a baixo preço.

Essa política colonial merece, portanto, seu nome de regime do ex­clusivo. Josias Child, mercantilista inglês, dono de um estaleiro de cons­truções navais em Portsmouth e diretor da grartde Companhia das Índias, definiu esse regime em 1668, nos seus Brief Observations Concerning Tra­de, como o que consiste em "confinar e limitar à metrópole, através de boas leis e severa execução das mesmas leis, o comércio das colônias". Es­sas "boas leis", precisemos bem, são aquelas que dão à Metrópole os privi­légios de compra, venda, transporte, taxação de impostos e direitos adua­neiros, aliás medidas naturais no espírito dos mercantilistas, para quem "as colônias são feitas pela Metrópole e para a Metrópole". 2 0

As conseqüências dessa política colonial são diversas e contraditórias. Para as Metrópoles, o comércio colonial representa importante elemento

19. Interessantes e x e m p l o s dessa f ixação de preço de compra de produtos' da colônia pela Espanha são encontrados em H A R D I N G : Trade and Navigation between Spain and Indies (ed. esp., M é x i c o , 1937; pela I n g l a t e r r a , na obra já citada de E. F. H E C K S C H E R e na B E E R : Origins of the British Colonial System, 1578-1660; por P o r t u g a l , no trabalho de Ch. de L A N -N O Y e H. V A N D E R L I N D E N : Histoire de l'Expansion Coloniale des Peuples Européens (tomo I) B r u x e l a s , 1907 e de F. C. D A N V E R S : The Portuguese in índia, Londres, 1894.

20. C H I L D é um dos melhores teóricos desse regime de exclusivismo. Para maiores co­nhecimentos das m o d a l i d a d e s dessa polít ica colonial, cf. a obra de G. L. B E E R , The colonial System, 1660-1754. N. Y . , 1912, e o estudo de J. F. R E E S , Mercantilism and the Colonies, tomo I, de The Cambridge History of the British Empire, C a m b r i d g e , 1929.

Page 81: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

de riqueza e poderio que, ajudado e estimulado, servirá unicamente — em muitos casos — para o desenvolvimento de suas economias nacionais. Essa riqueza, entretanto, foi provisória, muitas vezes, deixando certos paí­ses colonizadores mais esgotados em virtude do imenso esforço realizado do que enriquecidos de modo durável.

Daí, muitos mercantilistas, sobretudo portugueses, prodigalizarem aos seus soberanos, desde o início do século XVII, sábios conselhos no sen­tido de. diminuírem a extensão excessiva das conquistas a fim de não per­derem definitiva e completamente as vantagens econômicas tão caro obtidas. Encontrar-se-á a expressão desse estado de espírito no "Sítio de Lisboa", escrito em 1608 por Luís Mendes de Vasconcelos, antigo governador do Reino de Angola, nos "Discursos sobre os comércios das índias", de 1622, do negociante Duarte Gomes Solis, e sobretudo no "Discurso sobre a in­trodução das artes no Reino", uma das obras essenciais do pensamento econômico mercantilista português, escrita em 1675, por Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador em Paris.

A instabilidade dessa riqueza colonial não escapa a Montesquieu no início do século XVIII: "Podem-se comparar os impérios a uma árvore", faz ele escrever Usbek a Rhedi, nas suas cartas persas (Carta CXXI), "uma árvore cujos ramos muito longos sugam toda a seiva do tronco". E mais adiante: "Ê destino dos heróis o arruinar-se na conquista de paí­ses que eles perdem rapidamente."

De qualquer forma, essas riquezas do Novo Mundo desempenharam importante papel, a partir do século XVI, no desenvolvimento das econo­mias nacionais européias e na formação do capitalismo comercial e finan­ceiro, contribuindo de maneira decisiva para o progresso econômico oci­dental moderno.

Para as colônias, essa política teve ao mesmo tempo efeitos favorá­veis e desfavoráveis. Essa política deu origem a uma nova vida para as populações dos países descobertos, permitindo-lhes evoluir do estado pri­mitivo à civilização. Eis aí uma das funções históricas da colonização que é necessário julgar com objetividade em função do mundo do século XVI. Mas, ao lado dessas vantagens, a política colonial trouxe às colônias sé­rios inconvenientes, feita que era no interesse da Metrópole. Sem dúvida este fim pode, às vezes, coincidir com o interesse da colônia, mas não im­plica a preocupação de construir sua "economia nacional". Uma economia nacional — nós a analisaremos detalhadamente na parte deste livro rela­tiva a F. List — resulta de longa evolução concentrada e dirigida no sen­tido do desenvolvimento harmonioso das riquezas existentes nos limites geográficos de uma nação. É uma nação orgânica, complexa, que suben­tende os esforços e sacrifícios realizados com o fim de permitir à nação desenvolver todas as formas quantitativas e qualitativas de sua riqueza, a fim de elevar seu nível de vida e afirmar sua independência política.

É evidente que tal fim não era de forma alguma o da política colo­nial mercantilista, de modo que o resultado era a exploração de certas

Page 82: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

riquezas naturais do solo e subsolo para a satisfação das necessidades da Metrópole, sem preocupações quanto ao futuro econômico da colônia. Com o desaparecimento do mercantilismo, na segunda metade do século XVIII, sua função estará cumprida na Europa. As principais nações do mundo ocidental terão, graças à sua política, elaborado sua economia nacional, encontrando-se eui fortes condições para participar com proveito da con­corrência internacional no quadro do livre-cambismo. Mas as colônias. . ., ainda submissas, ou no início de sua independência, deverão começar essa obra grandiosa, ingrata, difícil, longa de elaboração, de organização de suas próprias economias nacionais. E, para isso, terão elas de lutar, não somente contra as deformações econômicas e psicológicas de longo passa­do colonial, mas também contra a concorrência internacional, imposta no último século pelas potências dominantes, política pouco compatível com o protecionismo indispensável às delicadas evoluções de estruturas econô­micas exigidas pela formação de uma economia nacional. Este aspecto negativo da política colonial pesará fortemente nas economias recém-inde-pendentes e tornará sua evolução lenta e difícil no século XVIII e sobre­tudo no século XIX.

Resumindo: a política colonial do mercantilismo ajudou fortemente as grandes nações européias a constituírem suas economias nacionais, mas, de outro lado, opôs-se à formação de economia nacional nas colônias. Oposição profunda que até hoje complica o crescimento econômico de certas nações, oposição geradora de graves desequilíbrios internacionais.

Seção IV

INFLUÊNCIA DO MERCANTILISMO

As formas fiduciária, cameralista, comercialista, industrialista e bulio-nista e a política colonial representam, pois, os diferentes aspectos do pen­samento mercantilista no decurso de sua evolução.

Durante três séculos serão os seus preceitos aplicados na maioria dos países.

No século XVIII, em razão mesmo dos excessos dessa política, surge uma reação bruta. Tão violenta foi ela que faltará objetividade — aliás só possível, reconheçamos, na perspectiva do tempo — aos juízos então emitidos sobre o mercantilismo.

Só mais tarde, por volta de fins do século XIX, quando em Econo­mia Política se separaram, nitidamente, os problemas de economia pura dos de economia aplicada e de arte econômica, houve possibilidade de se dar desapaixonado balanço à contribuição mercantilista.

Sua falha principal reside no fato de haverem atribuído os mercan­tilistas, na sua concepção de riqueza, demasiado valor ao metal precioso. Sem dúvida, só muito raramente se poderia falar aí em erro creso-hedo-nista propriamente dito, mas, não obstante, sempre exagerada era a preo­cupação metalista.

Page 83: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Outra falha é a de haverem considerado a produção apenas em fun­ção da prosperidade do Estado, sem jamais examinar a relação existente entre aquela e o bem-estar individual. E, assim, com essa preocupação, quase que exclusiva, de enriquecimento do poder público, focalizam os mercantilistas a sua atenção sobre medidas de intervenção em todos os se­tores. São, por essa forma, levados a organizar um vasto sistema de eco­nomia dirigida, cujos excessos entravarão os mecanismos econômicos, em­preendendo a atividade individual e paralisando o desenvolvimento da vida econômica.

E falharam ainda os mercantilistas na sua concepção de comércio in­ternacional que, por estar diretamente ligada à preocupação metalista, cons­titui um dos aspectos mais criticáveis do sistema. Conforme tivemos opor­tunidade de salientar, trata-se de uma concepção "unilateral" e, portanto, não suscetível de aplicação geral. Assenta inteiramente na idéia de anta­gonismo entre as economias nacionais: "O lucro de um é o prejuízo de outro", escreve Montaigne em seus "Ensaios". E Montchrétien, no seu "Tratado", expressa a mesma idéia: "As nossas perdas são equivalentes aos lucros realizados pelo estrangeiro"; ou, ainda: "Um país não ganha sem que o outro perca." É a concepção guerreira de trocas, que leva ao antagonismo das economias dos diferentes países e gera conflitos inevitá­veis.

Mas, por outro lado, deve-se reconhecer aos mercantilistas o mérito de haverem também desenvolvido uma ação favorável sob um duplo as­pecto:

a) no campo intelectual elaboram, com vigor, a noção de economia nacional, baseada na unidade e na solidariedade nacional. Indi­cam a vantagem e a necessidade de exploração de todos os recur­sos da nação — materiais e humanos — sob controle e direção do Estado;

b) no campo dos fatos criam, aplicam e desenvolvem a economia nacional tal como a conceberam.

O grande mérito do mercantilismo — justo é reconhecer com o Pro­fessor Brocard — reside na sua função histórica, qual seja, a de ter concorrido para que vencesse a nossa civilização a decisiva etapa de tran­sação da economia regional para a economia nacional.2 1 Notemos enfim que, durante esse período mercantilista, a evolução capitalista, esboçada na época medieval, se acentua e — na diversidade das políticas nacionais — se distingue uma primeira forma do sistema capitalista, a forma comer­cial e regulamentar.2 2

2 1 . "A d e s p e i t o dos erros e abusos a q u e deu l u g a r , o m e r c a n t i l i s m o a u x i l i o u de fato a nossa c i v i l i z a ç ã o a vencer uma etapa d e c i s i v a : a da t r a n s i ç ã o da economia regional para a eco­nomia n a c i o n a l " , Príncipes d'Économie N ationale et Internationale, tomo I, o. 10 e 11, P a r i s , 1928.

22.^ P a r a maiores detalhes sobre o s i s t e m a c a p i t a l i s t a da época acima considerada, sua formação, suas c a r a c t e r í s t i c a s , sua e v o l u ç ã o , cf. as obras gerais indicadas na i n t r c d u ç ã o deste l ivro, além das seguintes obras f u n d a m e n t a i s : H A U S E R , H . : Les Origines Historiques des Problemes íconomiques Actuels, Paris , 1930; s o b r e t u d o : Les Débuts du Capitalisme, Paris ,

Page 84: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Nos sistemas mercantilistas do século XVI até ao século XVIII, o principal personagem da atividade econômica é o comerciante, sobretudo o comerciante exportador e "aventureiro". É ele quem negocia, empres­ta, organiza sociedades e expedições, sendo encontrado nas mais diversas organizações econômicas: empréstimo para as grandes aventuras, socieda­des por ações, sociedades privadas, mistas ou estatais, bancos, esses ban­cos que desde o século XV subvencionam o comércio colonial, as mo­narquias nascentes, bancos que se tornam poderosas dinastias, tais como as do Thurzo, dos Fugger, na Áustria, dos Médicis, em Florença, dos Hochstetter, em Francforte. 2 3

É com o comerciante, sobretudo em torno de sua atividade no co­mércio internacional, que a economia interna se desenvolve. É ele quem recebe as matérias-primas, é ele quem as distribui nos mercados, os quais passam, aos poucos, do plano regional aos planos nacional e internacio­nal. É ainda dele que depende o progresso das manufaturas, pois, com o aumento dos mercados, é necessário produzir mais, o que exige capitais monetários cada vez maiores. É somente o comerciante-banqueiro quem pode fornecê-los; é ele quem assume, assim, a direção da produção, di­reção que não é técnica, mas tipicamente capitalista, pois fornece capitais visando a maiores lucros.

Essa atividade econômica que se desenvolve ao redor do comerciante imprime a característica essencial do regime capitalista da época, mas ao lado dela persistem atividades corporativas e artesanais. As corporativas, fortemente regulamentadas, perdem progressivamente sua força, fecham suas portas a elementos humanos jovens e dinâmicos, a fim de conservar os privilégios adquiridos dos mestres; fecham ainda suas portas ao pro­gresso técnico, tornando-se pesadas, esclerosadas, estáticas, pelos excessos de regulamentação. As atividades artesanais, livres, também perdem aos poucos sua importância: o desenvolvimento do setor capitalista dominado pelos comerciantes vem procurar empregados e operários da massa de ar­tesãos que se tornam, assim, progressivamente, uma massa de assalariados.

Este sistema do capitalismo comercial e regulamentar, que se desen­volve no decorrer do longo período mercantilista, prepara o advento do capitalismo industrial — que aparecerá com a revolução técnica do último terço do século XVIII e se generalizará no século XX.

A influência do mercantilismo se fez sentir, diretamente, durante três séculos. Posteriormente, após quase um século de hibernação, vai exer­cer-se de novo sobre o pensamento e sobre os fatos econômicos: será, com todo o vigor, retomada a sua concepção de economia nacional, principal­mente por F. List, na Europa, e Carey, na América.

1930 e: La Modernité du XVIème Siècle, P a r i s , 1930; S E E , H . : Les Origines du Capitalisme Moderne (4 . a e d . ) , P a r i s , 1940, e o l i v r o básico de F. B R A U D E L : La Mêditerranée et le Mon­de Méditerranéen à 1'Êpoque de Philippe II, 1967 (2." parte destinada aos problemas e c o n ô m i ­c o s ) ; R. H. T A W N E Y : La Réligion et l'Essor du Capitalisme, Paris , 1951.

23. L e r s o b r e t u d o : R. E H R E N B E R G : Le Siècle des Fuggers, Paris, 1956; H. L A P E Y R E : Une Famille de Marchands. Les Ruiz, Paris , 1955; P. T E A N N I N : Les Marchands au XVIème Siècle, Paris, 1957.

Page 85: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E, no século XX, a partir da guerra de 1914 até à atualidade, a eco­nomia dirigida, tal qual os mercantilistas a haviam aplicado, será revivida em suas concepções fundamentais — não raro com mais rigor ainda — em grande número de países: aí está um exemplo característico da sobre­vivência do pensamento doutrinário econômico, cuja freqüência e interesse assinalamos na Introdução Geral deste trabalho.

O estudo do mercantilismo serve-se mais de sistemas e de políticas que de teoria. Os mercantilistas não constituíram uma escola científica. Isto em razão da natureza das obras mercantilistas: vários de seus auto­res — entre os mais célebres, Hume, Locke, Cantillon, Petty — captaram muitas idéias importantes, mas as trataram de maneira fragmentária, fre­qüentemente isoladas do conjunto dos problemas da atividade econômica.

Aí está, sem dúvida, a razão que explica o fato de tais idéias só te­rem encontrado bem mais tarde seu lugar na história do mercantilismo e do pensamento econômico.

Entretanto, numerosas idéias interessantes foram exprimidas pelos mer­cantilistas; o conhecimento das mesmas, cada dia mais precioso, revela quanto foram injustas certas críticas feitas pelos seus sucessores.

É assim, por exemplo, que uma análise mais exata do preconceito creso-hedonista pode deixar supor que ele repouse, exata e justamente, so­bre o conhecimento do papel ativo da moeda na economia. Abundante, a moeda permite uma taxa de juro reduzida, o que estimula o investimento e o consumo, influindo este, por sua vez, favoravelmente sobre os investi­mentos. É neste espírito mercantilista que Keynes interpretou grande par­te da política monetária de sua época.

Foi assim, igualmente, que se encontrou em certos mercantilistas ou neomercantilistas a idéia do multiplicador de renda.

Boisquilbert (Détail de la France, 1697, cap. XIX: "O aumento da renda nacional é proporcional não ao aumento da soma de numerário, mas ao progresso do consumo") estuda esse mecanismo.

John Law teve a idéia disso, mas para provocar o aumento das ren­das e das riquezas ele contava bem mais com o acréscimo da massa mone­tária que com a aceleração da velocidade de circulação da moeda. Racio­cínio perigoso que o levou a considerar o suplemento da renda monetária simplesmente como igual ao suplemento de moeda — quando, na realida­de, ele é o múltiplo. Esta negligência do multiplicador da renda nominal, que amplia necessariamente os efeitos do crescimento da massa monetá­ria, levou-o a menosprezar o perigo da inflação, perigo, entretanto, que foi a causa do fim do seu sistema.

Cantillon (Ensaio. . . reedição 1953, INED; l . a parte, cap. XVI, p. 50), banqueiro como Law, não cometerá tal erro e insistirá, ao contrá­rio, sobre os perigos do multiplicador monetário.

Apesar da importância considerável da literatura mercantilista, a es-quematização isolada de muitas de suas idéias econômicas fundamentais

Page 86: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

nos leva a desenvolver o conceito mercantilista mais em função de atos c de política econômicos dos Estados, que em função da análise ou da teo­ria econômica.

Não esqueçamos, contudo, que Keynes homenageou as idéias mercan­tilistas e nelas se inspirou largamente (cf. Livro VI da Teoria Geral, cap XIII).

Page 87: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mi

Título 11

D O U T R I N A LIBERAL E INDIVIDUALISTA

O pensamento mercanti l ista apresentava-se , portanto , sob a forma de s is tema ou "arte" econômica . H o m e n s de ação , empiristas, presos à rea­l idade, n ã o conceb iam os mercanti l istas a existência de leis econômicas .

E por faltar o apo io e a or ientação da teoria aos seus vários siste­m a s , n ã o puderam estes adaptar-se às novas condições da evo lução e c o ­n ô m i c a d o sécu lo XVIII, e s tando , assim, fadados a desaparecer , definiti­vamente , segundo pensavam os h o m e n s da época.

C h e g a n d o , aliás, ao apogeu , produziria o mercant i l i smo suas conse ­qüências lógicas , consistentes:

a) Em primeiro lugar, em uma abusiva regulamentação Ao comér­cio e à indústria tornara-se esta tanto mais insuportável quanto, na verdade, freava o surto de progresso econômico facultado pelo aperfeiçoamento da técnica de produção. Mas, em relação à agri­cultura, sobretudo, parece caber a essa regulamentação a respon­sabilidade pela situação lamentável e crítica em que se encontra­va aquela. A política mercantilista, protegendo a indústria em detrimento da agricultura, era a causa direta do estado de aban­dono em que então se encontrava a terra na maioria dos países da Europa. Mas, além disso, a política mercantilista procurava baixar o preço dos gêneros alimentícios a fim de obter, per meio de salários irrisórios, preços de custo industrial mais favoráveis à exportação. Esta, a fonte da infinidade de medidas regulamenta-res que acabaram por desencorajar o agricultor e arruinar a pro­dução agrícola.

As crises de 1725 e de 1740 indicam quão agudo era o mal, cuja gravidade se revela através de vários sintomas.

A população rural vivia na miséria e apresentava um índice de natalidade decrescente; 1 as rendas imobiliárias caíam; redu­ziam-se as áreas de cultivo de trigo.

1. Foi em 1689 que LA B R U Y È R E escreveu nos "Caracteres": " L ' o n voit certains ani-m a u x farouches, des males et des femelles, répandus par la c a m p a g n e . . . ils sont des hommes.

Page 88: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

b) Em segundo lugar, em um perigoso oposicionismo, gerado por um crescente descontentamento,; que se generalizava. E, precisa­mente em relação a este segundo ponto das suas conseqüências lógicas, sofreu o mercantilismo sérios ataques. As oposições que suscitava eram tanto de ordem externa como interna.

O intervencionismo era para todos a brutal expressão do poder arbi­trário do Estado, que para si reservava todos os direitos, enquanto impu­nha aos indivíduos tão-somente deveres. Assim se acentuava, cada vez mais, a oposição existente entre os interesses dos indivíduos, de um lado, e o interesse do Estado, de outro.

Além disso, a extensão do intervencionismo no plano internacional gerava antagonismos entre as economias nacionais, os quais não pareciam estranhos às guerras do século XVII e dos começos do século XVIII.

Assim, pois, em virtude de suas conseqüências, provocou o mercanti­lismo uma tríplice reação:

— uma, de caráter científico, contra aquela preocupação, demasiado exclusivista, de "arte" econômica;

— uma, liberal, contra aquele intervencionismo excessivamente abu­sivo;

— e outra, individualista, contra a sujeição do indivíduo ao Estado, numa subordinação estrita em demasia.

Essa tríplice reação começou a se esboçar em fins do século XVII:

— a necessidade de se buscar, de modo científico, a explicação dos fenômenos econômicos, é insistentemente exaltada por W. Petty, em seus "Essays in Political Arithmetic" (1655) e em sua "Poli-tical Anatomy" (1691) ; 2

— a necessidade de reagir contra abusiva regulamentação é demons­trada, no plano nacional, pelo francês Boisguibert, no seu "Détail de la France" (1679) e no seu "Factum de la France" ( 1 7 0 7 ) , e, no plano internacional, por Duddley North, em seus "Discourse upon Trade" (1961) ; 3

— e, finalmente, o Marquês d'Argenson, nas suas "Memórias" ( 1 7 3 6 ) , ergue-se contra a opressão do indivíduo e põe em evidência as vantagens do interesse pessoal.

Mas, só em meados do século XVIII se ampliará essa tríplice reação, apresentando-se sob a forma de um verdadeiro corpo de teoria e de dou­trina, ao qual se dará o nome de liberalismo econômico.

Será a obra de duas escolas: uma, a fisiocrática, francesa; outra, a clássica, inglesa.

I ls se retirent la nuit des tanières, oü ils v i v e n t de pain noir, d'eau et de racines. I l s é p a r g -nent aux autres h o m m e s la peine de semer, de labourer et de recueil l ir pour v i v r e , et méritent de ne pas manquer de ce pain qu'i ls ont semé."

2. Sobre P e t t y , leur Faure — S O U L K T , F . : Kconomie Politique et Progrès au Siècle des Lumières, Paris , 1964.

3. " N e n h u m p o v o — escreveu ele — se enriquece através de medidas a d m i n i s t r a t i v a s , m a s sim pela paz e pela l i b e r d a d e . "

Page 89: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A E S C O L A FISIOCRATICA

É a primeira escola econômica. Seus representantes são franceses que, juntos, trabalharam na elaboração de uma explicação geral da vida econômi­ca. Suas obras se situam entre 1756 e 1778. Reúnem-se em volta de um chefe, Doutor Quesnay.1 Médico da Corte e do Rei, é Quesnay um sábio que, por volta de 1756 — conta então 60 anos —, orienta suas pesqui­sas para os problemas econômicos, Mirabeau, o pai do tribuno da Revo­lução, Mercier de la Rivière, conselheiro do Parlamento, o abade Bau-deau, le Tronse, representante do Parlamento de Orléans, Dupont de Ne­mours, secretário da Escola, e Turgot, o futuro ministro de Luís XVI, são seus discípulos principais. Reúnem-se em Versalhes e trabalham com paixão, sinceridade e aquela fé na força da razão, peculiar à filosofia da época.

1. O Dr. Q U E S N A Y (1694-1774), descendente de uma família rural, autodidata, foi médi­co do R e i L u í s X V . Seus primeiros estudos econômicos apareceram na Grande Enciclopédia, sob a forma de dois a r t i g o s : Fermiers (1756) e Grains ( 1 7 5 7 ) . D e p o i s , iá contando 64 anos. es­creveu a principal das suas obras, o Tableau Économique (1758) e, em 1760, as Maximes Géné-rales d'un Gouvernment Économique d'un Royaume Agricole.

O M a r q u ê s d e M I R A B E A U ( 1 7 1 5 - 1 7 8 9 ) , nit idamente inspirado nas idéias d e C A T I L L O N , publicou, em 1757, L'Ami des Hommes, l ivro que alcançou enorme s u c e s s o : 20 edições foram tiradas em 3 anos. E s t a s novas e d i ç õ e s trazem uma Explication du Tableau Économique de Quesnay. M I R A B E A U escreveu t a m b é m uma Théorie de l'Impôt (1760) (que lhe valeu ter ficado preso por algum tempo) e a Philosopbie Rurale (1763).

M e r c i e r de LA R I V I È R E ( 1 7 2 1 - 1 7 9 3 ) publicou, em 1767, L'Ordre Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques, onde vem resumido o essencial da teoria f isiocrática.

O abade B A U D E A U (1730-1792), de cuja considerável obra a principal é a Introduction à la Philosopbie Économique ( 1 7 7 1 ) .

O m a r g r a v e de B A D E N , fiel d i s c í p u l o de Q U E S N A Y , fez v á r i a s t e n t a t i v a s de a p l i c a ç ã o da doutrina em seu principado e escreveu, em 1771, L'Abrégé des Príncipes de la Science Éco­nomique.

LE T R O S N E publicou, em 1777, L'Intérêt Social par rapport à la Valeur, à la Circulation, a 1'Industrie et au Commerce. LE T R O S N E é um dos últimos escritores da E s c o l a ; sua obra é uma resposta à .̂ críticas suscitadas pelas teorias f is iocráticas; representa um ajustamento en­tre teoria e douYiina.

Dupont de N E M O U R S ( 1 7 3 9 - 1 8 1 7 ) , verdadeiro secretário-geral da E s c o l a . Foi ele quem recolheu os escritos dos f is iocratas; reuniu e ccmentou os de Q U E S N A Y . na obra cujo t ítulo serviu, posteriormente, de nome à E s c o l a : La Physiocratie (1768). S o b r e v i v e u aos demais mem­bros da E s c o l a , representando a fisiocracia nas assembléias da R e v o l u ç ã o de 1789, da Consti ­tuinte e da C o n v e n ç ã o ; e, sob o Império, foi por seu intermédio que, pela primeira vez, entrou a fisiocracia no Insti tuto de França.

T U R G O T (1726-1781), escreveu, em 1748, Mémoire sur le Papier-Monnaie, e, em 1766, as Rétléxions sur la Fotmation et la Distribution des Richesses. T U R G O T é um fisiocrata que 89

Page 90: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A escola é ouvida. A gravidade de seus propósitos e a solenidade de sua forma comovem, a um tempo, na Corte, os fidalgos de punhos de renda e, no resto do mundo, todos a quantos cabem as mais altas respon­sabilidades públicas. A grande Catarina, da Rússia, Gustavo III, da Sué­cia, Estanislau, da Polônia, José II, da Áustria, e muitos outros ainda ouvem atentamente as discussões da novel Escola e aplicam um grande número de suas sugestões.

O sucesso dos "Economistas" foi rápido e imenso. A época tornava os espíritos extremamente sensíveis às suas indagações: faziam parte^ inte­grante do magnífico movimento intelectual e científico — o Enciclopedis-mo — desenvolvido a partir de 1750, com Voltaire, Diderot e, mais tar­de, Rousseau, Mably e Montesquieu, enquanto ganhavam as ciências novo brilho com Lagrange, Lalandre, Lavoisier, Monge, os ingleses Gilbert, Priestley e Walt e o americano Franklin.

Época de intensa vitalidade. Vibra-se com as réplicas de um Fígaro. Sonha-se com o progresso ante o balão de Montgolfier, que lentamente ascende aos céus; o primeiro barco a vapor, que o Marquês de Jouffroy faz avançar no Sena; a primeira locomotiva a vapor que Evans faz mover nas estradas dessa América do Norte para onde, entusiasmados, partem Lafayette e seus companheiros.

Nesse século, cuja tradicional organização social e política parece pe-riclitar, mas que resplandece das maiores esperanças, espíritos inquietos — certos de ser toda evolução filha da dor — buscam e encontram a quie-tude na explanação fisiocrática de uma ordem natural e providencial, or­dem otimista, solidamente ligada à terra e cuja lógica e serenidade se opõem às tristezas e inquietação do momento.

A ordem natural e a ordem providencial são, com efeito, as duas concepções principais da doutrina da nova Escola.

expôs idéias m u i t o j u s t a s e esclarecidas. Por m u i t a s delas s e aproxima d e A D A M S M I T H . Suas e l e v a d a s funções — foi intendente de L i m o g e s e ministro de L u í s X V I — p e r m i t i r a m - l h e aplicar a idéia de l iberdade econômica da E s c o l a , p a r t i c u l a r m e n t e nos seus edites sobre o tr igo e sobre a a b o l i ç ã o dos mestrados e das j u r a n d a s na indústria. ( L e r : L A F O N T , J . : L e s Idées Économiquès de Turgot, 1912.)

C i t e m o s ainda J a c q u e s V I N C E N T , senhor d e G O U R N A Y ( 1 7 1 2 - 1 7 5 9 ) , partidário d a l iber­dade do comércio interior, mas que d i v e r g e da E s c o l a por suas concepções m e r c a n t i l i s t a s inspi­radas de C H I L D (A N e w D i s c o u r s e of T r a d e ) , r e l a t i v a m e n t e ao comércio internacional e p e l a sua não a c e i t a ç ã o da teoria agrária, centro da teoria f is iocrática.

Sobre a F i s i o c r a c i a : L. de L A V E R G N E : Économis.es Ftançais du XVIIIème Siècle, 1876; O N C K E N : Oeuvres Économiquès et Philosophiques de Quesnay, 1888; S C H E L L E : Dupont de Nemours et VÉcole Physiocratique, 1888; S. F E I L B O G E N : Smith and Turgot, V i e n a , 1892; H I G G S : Six Lectures on the'Physiocrats, 1897; The Physiocrats, N. Y. ( 2 . a e d . ) , 1952; T R U -C H Y : Le Iibéralisme Économique de Quesnay, in R e v u e d ' É c o n . Pol. , 1809; O N C K E N : Geschi-chte der Nationaloekonamie, L e i p z i g , 1902; B R O C A R D : Les Doctrines Économiquès et Sócia-les du Marquis de Mirabeau, 1902; B A R T H É L E M Y - R A Y N A U D : Les Discussions sur 1'Ordre Naturel, 1905;, W E U L E R S S E : Le Mouvement Physiocratique en France, de 1756 a 1770 ( e x t e n ­sa b i b l i o g r a f i a ) , 1910; C. L A N D A U E R : Die Theorien der Merkantilisten und der Physiocraten über die okonomische Bedeutung des Luxus, M u n i q u e , 1 9 1 5 ; R. S A V A T I E R : La Thêorie- du Commerce chez les Fhysiocrates, 1876; G I D E e R I S T : Histoire des Doctrines Économiquès, P a ­ris, 1930; M A R X , K. Histoire des Doctrines Économiquès, Les Physiocrates, in Oeuvres Com­pletes, II. (Costes), P a r i s , 1930; M O S É S B e n s a b a t A M Z A L A K : O Fisiocratismo. As Memó­rias da Academia e os seus Colaboradores, 1922. E n c o n t r a r - s e - á nesse l ivro uma e x p o s i ç ã o bastante interessante sobre o d e s e n v o l v i m e n t o das idéias f is iocráticas em P o r t u g a l ; B E E R , M . : An Inqu'ry into Physiocracy, London, 1939; M E E K , R. L. f Economic oi Physiocracy, L o n d o n , 1962; B E R N A R D , M . : Introduction à une Sociologie des Doctrines Économiquès des Physio­crats à Stuart Mill, P a r i s , 1963.

Page 91: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção I

A NOÇÃO DE ORDEM NATURAL

Os fenômenos econômicos — pensam os fisiocratas — processam-se livre e independentemente de qualquer coação exterior, segundo uma or­dem imposta pela natureza e regida por leis naturais. Cumpre, pois, co­nhecer essas leis naturais e deixá-las atuar.

O "Tableau Économique", do Dr. Quesnay, tem exatamente a finali­dade de pôr em evidência essa ordem natural. A sociedade se compõe de três classes: uma "produtiva", formada de agricultores; outra, consti­tuída pelos proprietários imobiliários, e, finalmente, a classe chamada "es­téril", compreendendo os que se dedicam ao comércio, à indústria, aos serviços domésticos e às profissões liberais.

A circulação das riquezas por entre essas diferentes classes indica a importância relativa de cada uma e explica a repartição dos bens produ­zidos. Suponhamos seja o valor dos gêneros agrícolas, colhidos pela clas­se "produtiva", de 5 2 e o custo de produção igual a 2. Resta, pois, para a classe produtiva um lucro de 3. Desse lucro, 2 vão para a classe dos "proprietários", em pagamento de aluguel ou renda e 1 irá para a classe "estéril", em troca de artigos manufaturados e de serviços. A classe dos "proprietários", detentora de 2 unidades, devolve à classe "produtiva" uma unidade, para aquisição de gêneros alimentícios, e entrega a outra unidade à classe "estéril", em pagamento dos produtos manufaturados de que necessita. A classe "estéril", por sua vez, tem de restituir à classe "produtiva", em troca dos produtos agrícolas, necessários à sua subsis­tência, a unidade de valor que recebera. De maneira que, completado esse conjunto — cujo esquema apenas indicamos —-, as cinco primitivas unidades de valor se acham reconstituídas nas mãos da classe "produtiva" e o ciclo pode, nestas condições, recomeçar indefinidamente.

Esse quadro, assim resumido, merece que se lhe façam duas obser­vações, quanto à forma e quanto ao fundo.

Quanto à forma inspira-se diretamente na descoberta feita, em 1628, por Harvey, relativamente à circulação do sangue no organismo humano. O Doutor Quesnay, por analogia, a aplica ao organismo econômico. Pela leitura do "Tableau" pode-se mesmo verificar tão certas lhe terem pare­cido as semelhanças existentes entre os dois sistemas circulatórios, que de­las abusou.

Além disso, o quadro apresenta-se sob uma forma a tal ponto precisa e matemática que Stephan Bauer, entre outros, vê em Quesnay, não sem razão, um dos precursores do espírito matemático no estudo dos fenôme­nos econômicos; precursor, portanto, de uma escola que se desenvolverá no último terço do século XIX.

2. Q U E S N A Y parte, com efeito, de um valor inicial de 5 bi lhões de francos da é p o c a ;

era, a p r o x i m a d a m e n t e , o valor da colheita agrícola total da F r a n ç a .

Page 92: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Quanto ao conteúdo, uma primeira idéia interessante é posta em evi­dência pelo "Tableau", a saber, não se fazer ao acaso a circulação da ri­queza, mas estar sujeita a certas leis, das quais dependem os rendimentos de cada um. Há aí a primeira tentativa de elaboração de uma teoria sin­tética da circulação das riquezas, isto é, do fluxo das rendas, tentativa que será retomada e completada pelos economistas modernos.

É a primeira expressão racional do funcionamento da vida econômi­ca, em seu conjunto. Contém já expressa, relativamente a um estado eco­nômico estacionário e sob uma forma rudimentar, a idéia fecunda de equi­líbrio econômico geral, idéia que Léon Walras desenvolverá de maneira precisa em fins do século XIX.

Essa concepção de equilíbrio econômico impôs-se a Quesnay graças à sua formação médica — formação sem dúvida a esse tempo (muito an­terior a Claude Bernard) mais racional que experimental — que lhe per­mitiu, já em seu "Essay Physique sur 1'Économie animale" (1736), asso­ciar a noção de equilíbrio físico à de saúde orgânica. E dentro em pouco se utilizará desta noção, transferindo-a do organismo humano para o or ­ganismo econômico.

Por outro lado, o lugar ocupado pelo agricultor no "Tableau" é, se não único, pelo menos preponderante; e isto constituirá a fonte de um exagero que irá pesar em todas as teorias da Escola.

Esse exagero se nota nitidamente na própria divisão da sociedade em classe "produtiva" e classe "estéril". Os fisiocratas pretendem dizer com isso ser apenas a produção agrícola aquela que permite a obtenção de ri­queza gerada em maior volume que a riqueza consumida; a natureza cola­bora diretamente com o homem e lhe dá um lucro em produto real, ao qual dão os fisiocratas o nome de "produto líquido".3

É uma noção economicamente falsa e estreita, decorrente de uma errada concepção dos fisiocratas sobre o valor. Sua idéia de valor gira em torno da idéia de produção. Confundem riqueza e valor; não vêem os liames existentes entre o valor e o consumo; não apreendem a idéia de valor como relacionada com a satisfação das necessidades do homem, idéia que corresponde à realidade e cujo conhecimento os teria levado a admitir que a indústria e o comércio — tanto quanto a agricultura — ge­ram utilidade e aumentam a utilidade das coisas.

Dentre os inúmeros erros que essa falsa noção vai difundir na dou­trina fisiocrática, é interessante ressaltar a aversão ao comércio, tanto interno, como internacional. O comércio, segundo a concepção da Esco­la', não produz riqueza; portanto, não é útil. Todavia — e aí se depara novamente a influência da noção das duas crematísticas de Aristóteles —, distinguem os fisiocratas entre tráfico e comércio, o primeiro absoluta­mente condenável, gerador não de riqueza, mas apenas de lucro para os

3. " L a richesse, escreve Mercier de la R I V I È R E (em Otdie Naturel et Essentiel des Idées Politiques, p. 287, e d i ç ã o de 1767), est une masse de valeurs qu'on puisse c o n s o m m e r au gré de ses désirs sans s 'appauvrir, sans altérer le principe qui les réproduit sans c e s s e . "

Page 93: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

intermediários,4 o segundo tolerável à medida que concorre para serem os produtos da terra postos à disposição do consumo.

Entretanto, esse exagero do papel da agricultura, ainda que falsa, não será de todo inútil: facilitará a necessária reação contra dois erros de mercantilismo.

Em primeiro lugar, a desamasiada importância atribuída à produção agrícola irá impressionar os espíritos e conduzi-los a uma melhor apre­ciação da utilidade da agricultura, utilidade essa até então quase que de todo olvidada.

Em segundo lugar, a noção de classe "estéril" — ainda que intrinse-camente falsa — torna-se também útil por conter em si uma reação con­tra a idéia metalista dos mercantilistas. A riqueza material — isto é, a produção agrícola, segundo os fisiocratas — volta a ocupar uma posição central na economia: a moeda passa a simples auxiliar de trocas; retoma, assim, o lugar qüe jamais devia ser abandonado, isto é, o de riqueza su­balterna, cujo volume é naturalmente regulado pela necessidade da cir­culação e pela abundância da produção.5

Observemos ainda que o lugar e o papel atribuído pelos novos eco­nomistas à produção agrícola os levarão necessariamente a justificar o instituto jurídico em que se enquadra. E, de fato, os fisiocratas envidam esforços no sentido de estabelecer bases sólidas para o direito de proprie­dade.

Dentre os argumentos apresentados sobre a matéria — na maioria os mesmos forjados vinte séculos antes pelos jurisconsultos romanos 6 — des­tacam-se os que justificam o direito de propriedade fundiária pela sua utilidade social, teoria que ressurge em nossa época. "Sem a garantia da propriedade, a terra permaneceria inculta", escreve Quesnay. Semelhante justificação da propriedade imobliária importa na afirmação não só de di­reito, mas também de deveres. Insistem os fisiocratas sobre estes, últimos. O direito de propriedade implica, para o titular, a obrigação de manter a terra em estado de cultura e assegurar a repartição dos produtos obtidos de forma a melhor atender ao interesse geral e impõe-lhe — conforme ve­remos — o ônus do pagamento integral das taxas fiscais.

Do direito de propriedade agrícola passam os fisiocratas à justifica­ção do direito de propriedade de modo geral. Mercier de la Rivière assim resume a maneira de ver da sua escola sobre a matéria: "Podeis encarar o direito de propriedade como uma árvore cujos galhos são as instituições sociais que espontaneamente faz brotarem."

4 . E s t a idéia será retomada, n o S é c u l o X I X , pelo economista norte-americano C A R E Y ; cf. infra, p. 383 e segs.

5. "O dinheiro não é a verdadeira riqueza de uma nação. N ã o é a riqueza que se conso­me e renasce perpetuamente, pois dinheiro não gera dinheiro", Q U E S N A Y . " L ' a r g e n t considere en lui m ê m e est une richesse stérile et ne peut procurer de revenu que par 1 ' intermédiaire d'un bien que en produit", Q U E S N A Y . " L a vraie richesse d'un p a y s consiste dans 1'abondance des denrées dont 1'usage est si nécessaire au soutien des hommes qu' i ls ne sauraient s'en passer", V A U B A N .

6. Q U E S N A Y , Droit Naturel. p. 56.

Page 94: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E sobre essa base jurídica, devolvido ao interesse pessoal o enérgico estímulo que as medidas mercantilistas tendiam a tornar ineficaz, irá de­senvolver-se o individualismo.

Eis o essencial dessa primeira concepção fundamental da Escola Fi­siocrática.

Mas a ordem natural não é uma noção isolada: para ser compreen­dida, segundo a verdadeira acepção fisiocrática, deve ser completada pela noção de ordem providencial.

Seção II

A NOÇÃO DE ORDEM PROVIDENCIAL

Os fisiocratas julgam ser a ordem natural uma ordem providencial, isto é, desejada por Deus para a felicidade dos homens. "As leis são irre­vogáveis — escreve Mercier de la Rivière —, emanam da essência dos ho­mens e das coisas, são a expressão da vontade de Deus."

Essa ordem, por isso que providencial, é a melhor pocsível, a mais vantajosa para o gênero humano. Portanto, necessário é possa vigorar de modo natural, isto é, livremente: "As leis (de ordem natural) não restrin­gem a liberdade do homem, pois as vantagens destas leis supremas são ma­nifestamente objeto de melhor escolha da liberdade." 7

À noção providencial da ordem natural está intimamente ligada a de liberdade. Esta liberdade é para os fisiocratas a base do progresso eco­nômico e social.

Já vimos apoiar-se a noção de ordem natural no direito de proprie­dade privada. Ora, um direito nada é sem a possibilidade de ser exercido. Para a eficácia do direito de propriedade é imprescindível a liberdade: esta serve de estímulo à propriedade — principalmente à propriedade fun­diária — e a expansão desse direito constitui o principal fator do progres­so social.

A conservação da liberdade é tanto mais indispensável quanto, na verdade, concorre para assegurar o "bom preço". E essa noção de "bom preço" é importante na doutrina fisiocrática, a qual o considera no inte­resse da produção. Deve garantir abundância e um preço alto: "Abun­dância com ausência de valor — escreve Quesnay — não é riqueza; preço alto com penúria é miséria; abundância com preço alto é opulência." 8

O preço "alto" é o fixado pela livre concorrência, aquele que resulta da adaptação automática da produção ao consumo e permite a repartição dos produtos por todos os mercados, independentemente de regulamenta-

7. Q U E S N A . Y , Droit Naturel, p. 55. 8. Q U E S N A Y , Maximes Gênérales d'un Gouvemment Économique, p. 246, c i tado por G O N -

N A R D , op. cit., p . 221: " L a non-valeur avec 1 'Abondance n'est point r i c h e s s e ; la Charté avec Pénurie est Misère; 1 'Abondance avec Charté est O p o u l e n c e . "

Page 95: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ção. Eis como se exprime a reação contra a taxação do "mínimo" para os produtos agrícolas, freqüentes na época.

A garantia de mercados remuneradores estimulará a produção — tra­ta-se sempre da produção agrícola —, donde resultará um aumento do "produto líquido" e, por conseguinte, um aumento da riqueza geral.

Os fisiocratas acreditavam não colidir o bom preço — embora favo­recendo diretamente o produtor agrícola — com os interesses do consumi­dor, pois aproveitaria às três classes da sociedade, aumentando a riqueza total, e, paralelamente, a parte que caberia a cada uma delas na reparti­ção. O bom preço atuaria no sentido de elevar todos os preços — quer os da remuneração do trabalho, quer os do capital, quer os da terra.9

Essas idéias serão retomadas no século XX, servindo de base para inúmeras experiências, visando aos preços como meio de defesa contra as crises econômicas.

O que merece ser sublinhado nesta concepção é a noção de harmo­nia, daí deduzida pelos fisiocratas; harmonia entre interesse individual e geral, a qual doravante servirá de base ao liberalismo econômico.,

O pensamento e o raciocínio dos fisiocratas aparecem, a esse respei­to, de maneira explícita, na seguinte passagem de Dupont de Nemours:

"Quanto mais considerável for o produto líquido e mais vantagens houver em ser alguém proprietário de terras, tanto maior o número de quantos dedicam despesas e trabalho para criação, aquisição e melhoria das propriedades fundiárias; quanto maior o número daqueles que dedicam despesas e trabalhos para criar, adquirir e melhorar as propriedades fun­diárias, tanto mais se estende e se aperfeiçoa a cultura; quanto mais se estender e aperfeiçoar a cultura tanto maior será o número de produtos anualmente consumíveis; quanto mais se multiplicarem os produtos consu-míveis, tanto mais aptos estarão os homens a satisfazer seus desejos e maior, portanto, a sua felicidade."

E, quanto ao ponto de partida do mecanismo econômico, têm os fi­siocratas o cuidado de insistir em ser o interesse, geral e permanente, exis­tente em todo homem, o qual permite a cada um encontrar por si mesmo — quando livre — a solução econômica mais vantajosa: "Obter o má­ximo aumento possível de satisfações com a máxima redução possível de dispêndio, eis a conduta econômica perfeita."

Quesnay assim exprime, com a antecipação de um século, o princípio fundamental em que apoiarão as escolas hedonistas o seu raciocínio: "O homem busca obter o máximo de satisfação com o mínimo de esforço."

Esta noção de ordem natural e providencial sugere certo número de considerações:

9. E s t a solidariedade dos preços, do ponto de v i s t a e s t á t i c o , constituirá posteriormente objeto de numerosos estudos. E n c o n t r a - s e sua mais perfeita expressão na g e n i a l obra de L é o n W A L R A S : Économie Purê. E s t a sol idariedade dos preços, não somente sob o aspecto e s t á t i c o m a s t a m b é m dinâmico, será u t i l i z a d a p e l o Prof. J. L E S C U R E , para e x p l i c a r principalmente o m o v i m e n t o dos preços em longa d u r a ç ã o (Jean L E S C U R E , Hausse et Baisse des Prix de Lon-gue Durée, p. 192, Paris , 1938).

Page 96: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

a) Em primeiro lugar, uma observação de ordem metodológica. O trecho de Dupont de Nemours, acima citado, indica de maneira característica o uso que fazem os fisiocratas da dedução. Foi--lhes censurado, com justiça, o haverem negligenciado a observa­ção dos fatos e a história, para recorrer quase que exclusivamen­te à dedução. A ciência econômica conservará tal tendência até que se manifeste a reação por ela suscitada e cuja expressão má­xima se encontrará, por volta de 1840, nos trabalhos da Escola histórica.

Esta generalização do método dedutivo leva os fisiocratas à elaboração de leis gerais e permanentes; a noção de ordem na­tural é afirmada como verdade evidente e sempre exata, tanto no tempo, como no espaço.

Chegam, assim, à sua sistematização muito extremada, sem dúvida, mas cujos excessos seriam indispensáveis à consolidação da ciência nascente.

b) As leis, assim apreendidas, vão revestir-se do caráter peculiar que lhes empresta a concepção providencial. Uma lei científica nada mais é que a simples formulação de uma relação, perma­nente e necessária, entre dois fenômenos. Independe de toda e qualquer metafísica. Ora, a lei fisiocrática não é neutra, não é "indiferente", mas, ao contrário, traz o cunho "providencial" ca­racterístico da doutrina: tem, de certo modo, o colorido de me­tafísica otimista. Daí perder sensivelmente de valor. Adam Smith liberará a lei econômica dessa característica, tornando-a, por isso mesmo, mais científica.

c) Finalmente, convém observar constituir a ordem natural e pro­videncial, para os fisiocratas, uma concepção que ultrapassa o campo de aplicação da economia: nela vêem a base da organi­zação de toda a sociedade.

Dupont de Nemours assim se exprime: "Impossível atingir um pon­to a não ser pelo caminho que a ele conduz. Existe, portanto, uma estrada que nos aproxima o máximo possível do ponto abjeto de associação entre os homens; há, pois, uma ordem natural, esseucial e geral, que contém em si as leis constitutivas e fundamentais de todas as sociedades, ordem da qual não podem as sociedades afastar-se sem perder um pouco do que são, sem adquirir o estado político menos consistência, sem se encontra­rem seus membros mais ou menos desunidos e em situação de violência, uma ordem, enfim, impossível de ser inteiramente abandonada sem provo­car a dissolução da sociedade e, dentro em pouco, a destruição absoluta da espécie humana."

Se, por conseguinte, foram os fisiocratas os primeiros a conceber a ciência econômica, ultrapassa essa concepção, de muito, os limites da Eco­nomia e se estende — não sem ambição — à completa e total organização da vida das sociedades.1 0

10. Sobre este caráter da fisiocracia, ver sobretudo D e n u o s , Hector, Histoire des Systèmes Économiquès et Socialistes, Paris , 1904.

Page 97: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Este ponto de vista deve ser sempre lembrado ao se tratar da doutri­na fisiocrática: a Economia é para esta o problema fundamental, mas não o único; deverá conduzir, segundo os expressos termos do subtítulo da obra de Dupont de Nemours, "à constituição natural dos governos".

Seção III

AS APLICAÇÕES DE ORDEM NATURAL E PROVIDENCIAL

Constituindo a ordem natural e providencial o ponto de partida de uma doutrina social ampla, convém considerá-la em suas aplicações não apenas econômicas mas também políticas.

§ 1.° — As aplicações na esfera econômica

Para que possa essa ordem natural e providencial produzir todos os seus efeitos, imprescindível é a liberdade. Os fisiocratas vão protestar, as­sim, pelo exercício pleno dessa liberdade na esfera econômica:

— Liberdade para exercer o homem a sua atividade como bem lhe aprouver; liberdade, portanto, de trabalhar, mas também de não trabalhar. Essa a condição indispensável à realização da justiça e à obtenção de rendimento econômico, a qual encontra uma de suas concretizações particularmente no Edito de Turgot, de 1776,11 de­terminando a dissolução das corporações.

— Liberdade de conservar o homem o produto de seu trabalho e dele dispor, isto é, afirmação e defesa do direito de propriedade sob todas as suas formas, mobiliária ou imobiliária.

— Liberdade, enfim, de plena alienação, seja vendendo o produto de seu trabalho, seja adquirindo o dos outros, isto é, liberdade de comércio: livre concorrência. A despeito da aversão que os fisio­cratas votam ao comércio — "esse mal necessário", como dirá Mercier de la Rivière —, crêem dever ele funcionar livremente, tanto no plano interior como no exterior. Na verdade têm os fi­siocratas em vista sobretudo o comércio interno e o dos produtos agrícolas. Mas, por abranger o seu raciocínio os aspectos gerais das coisas, são levados a aceitar idêntica idéia para o comércio in­ternacional.

A idéia pela qual se norteiam é sempre a mesma: a liberdade gera o "bom preço". Os principais argumentos, utilizados no século XIX para justificar e defender a liberdade de comércio, já são examinados e susten­tados pelos fisiocratas. Os editos de 1756 e de 1766 põem em vigor o regime de liberdade e de livre concorrência para o comércio de cereais, o

1 1 . Em 1776, obtém T U R G O T a supressão de todas as corporações de artes e ofícios. E s t e edito provoca v i v a oposição na Corte, no P a r l a m e n t o e no seic das corporações. C o m a queda de T U R G O T outro edito as restabelece seis meses depois. M a s , em 1791, dois decretos, um rje 2 e outro de 17 de março, suprimem d e f i n i t i v a m e n t e as corporações, estabelecendo a l i b e r d a ­de de trabalho.-

Page 98: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

primeiro no interior do país, o segundo no exterior. Revogados em 1770, logo após uma sucessão de vários anos de colheitas parcas, serão revigo­rados por Turgot em 1774.

No terreno fiscal chega a doutrina fisiocrática a um sistema original: partindo da convicção de provir tão-somente da terra o "produto líquido' — a riqueza real — entendem dever incidir o imposto unicamente sobre ela. Daí a elaboração de um sistema tributário de taxação direta e única da renda dos proprietários de terras.

Inútil recolher esse imposto em outras classes da sociedade, pois,v sen­do a classe "estéril" e a "produtiva" assalariadas dos proprietários de terras, o ônus do imposto acabaria necessariamente, em virtude da reper­cussão, por recair sobre estes últimos: mas valia, assim, a bem da econo­mia e rapidez da percepção, coletar o imposto diretamente na sua fonte. É, portanto, a teoria da produtividade exclusiva da agricultura que, logi­camente, conduz a doutrina fisiocrática a esta concepção tributária.

Esse imposto único jamais conheceu plena aplicação. Foi objeto ape­nas de uma experiência, em pequena escala, e aliás sem êxito, nos domí­nios do principado do margrave de Baden, fisiocrata convicto.

Mas a concepção fiscal fisiocrata servirá, posteriormente, de fonte de inspiração a numerosos outros sistemas tributários. A Assembléia Consti­tuinte da Revolução Francesa, por exemplo, exigirá da terra quase que metade da contribuição nacional total. E, também, a exemplo do que se fazia, na Inglaterra, com o income-tax, preconizaram inúmeros autores, nos primórdios do século XIX, a adoção de um plano de imposto único sobre os rendimentos. Em meados do mesmo século, propôs-se, na Fran­ça, o imposto único sob a forma da "lei do selo" 12 e, mais tarde, um projeto de imposto único sobre o capital obteve muitos adeptos (Menier). Nos Estados Unidos da América do Norte, o imposto único, tal como o conceberam Henry George e Seligmann, aproxima-se muito da concepção fisiocrática.

De modo geral observa-se que os sistemas tributários modernos, imbuí­dos da mesma concepção, dão preferência ao imposto direto. 1 3

§ 2.° — Aplicações na esfera política

Na «sfera política a concepção de ordem natural, e principalmente a de ordem providencial, levará os fisiocratas a propor, como melhor forma de governo, a despótica, ou "o despotismo", conforme a denominam, ou a monarquia absoluta e hereditária, como também se diz.

Estranha e bastante paradoxal pode parecer a escolha desse regime por-parte de adeptos da. liberdade econômica. Mas de fato a tese fisio­crática é lógica.

12. A. W I L H E L M : Proiet d'Impôt Unique et Universel sur la Fortune, P a r i s , 1850. 1 3 . A respeito da influência exercida pela f isiocracia no setor fiscal, cf. P A U L H U G O N :

O Imposto, Teoria Moderna e Principais Sistemas, 2." ed., Rio, 1951.

Page 99: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O interesse essencial do país se confunde com o dos proprietários de terras. Ora, o interesse destes é um único: a obtenção do "produto lí­quido". Nada mais lógico, portanto, tenha também a nação um único re­presentante. E isso é tanto mais compreensível quanto, na verdade, se legitimava a monarquia absoluta e hereditária para os fisiocratas, pelo fato de se identificar com os interesses dos proprietários de terras, ou seja, com os da própria nação.

Com efeito, dizem eles, sendo os proprietários fundiários os únicos tributados, as rendas do reino dependem deles, isto é, da importância do seu produto líquido. O soberano está então interessado, «tanto quanto eles, em desenvolver este produto líquido, única fonte de renda fiscal, e tam­bém em desenvolvê-lo em função de interesses duráveis do país, pois a monarquia será hereditária. O poder do soberano deve igualmente ser ab­soluto porque provém de Deus, não podendo ser discutido por qualquer outra autoridade.

Há nesse sistema político uma interessante ^tentativa de justificação da monarquia absoluta e hereditária com base na sua utilidade social. Esta teoria (aliás revivida na época moderna) foi sintetizada por Dupont de Nemours nestes termos: "Os monarcas hereditários são os únicos sobe­ranos cujos interesses podem estar ligados aos da nação, através da co-pro-priedade de todos os produtos líquidos ou territoriais à sua soberania."

Poder absoluto não significa, na acepção fisiocrática, poder arbitrá­rio. O soberano não deve "fazer" as leis, mas, sim, apenas torná-las co­nhecidas em função da ordem natural, ou melhor, declará-las, fazendo com que sejam respeitadas. Trata-se, portanto, de um despotismo "legal", de­corrente da "evidência" da ordem natural e que por isso mesmo se con­trapõe ao despotismo arbitrário. Os fisiocratas reagem, assim, contra os consideráveis poderes que o Estado se tinha arrogado na esfera econô­mica.

* * * Sintetizando: a Escola Fisiocrática é a primeira "escola" econômica.

"Os fisiocratas, escreve Léon Walras, foram não somente a primeira, mas a única escola de economistas que, na França, apresentou uma Economia Política pura e original." Busca a explicação racional e lógica do meca­nismo da vida econômica em seu conjunto. Subministra à novel ciência "leis" cujas particularidades indicamos acima.

Sua análise gira essencialmente em torno dos fenômenos da produ­ção. Apresenta ainda uma tentativa de explicação sintética da circulação e da repartição.

Seu método carece, sem dúvida, de sentido histórico. Profundamente falsos são, com efeito, os conceitos emitidos sobre o valor, levando-a, as­sim, a exagerar a função econômica da produção agrícola e a menospre­zar a produtividade da indústria e do comércio.

Ocupa, entretanto, a Fisiocracia, na história do pensamento econô­mico, um lugar de primeira plana: foi a primeira escola a lançar os

Page 100: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

fundamentos da ciência econômica, a assentar solidamente o direito de propriedade sobre a noção de utilidade social, a justificar e exaltar a li­berdade econômica. Deixa com isto — em uma reação contra os mer­cantilistas — definitivamente implantados os marcos do individualismo e do liberalismo, caracteres esses que vão ser, aliás, retomados e reforma­dos por Adam Smith e pela Escola Clássica.1 4

V

14. N o t e m o s que o estudo dos trabalhos dos f isiocratas tem sido atualmente encarado sob novos aspectos. Numerosos são os e c o n o m i s t a s modernos que insistem sobre a importância, o valor e o " m o d e r n i s m o " de certos trechos da obra científ ica de Q U E S N A Y e de seus discípulos. I n d i q u e m o s i g u a l m e n t e o livro aparecido em P a r i s , em 1964, de Faure — S O U L E T , F . : Éco-nomie Politique et Progrès au Siècle des Lumières. Cf. nesse sentido History of Economic Ana-lysis d e S C H U M P E T E R ( N . Y . , 1954, cap. I V , parte I I , p . 209-50. R e c e n t e m e n t e traduzido para o p o r t u g u ê s ) . É com razão que se a s s i n a l a i g u a l m e n t e a e x i s t ê n c i a de idéias semelhantes entre Q U E S N A Y e K E Y N E S . A e x p l o r a ç ã o de todas as rendas d i s p o n í v e i s da economia na­cional é uma das preocupações fundamentais dos dois e c o n o m i s t a s ; sua atitude é t a m b é m seme­lhante em r e l a ç ã o ao entesouramento — que a m b o s condenam — e à t a x a de juro — que os dois desejam seja reduzida.

Sobre a l g u n s aspectos da atualidade do p e n s a m e n t o de Q U E S N A Y , encontraremos interes­santes d e s e n v o l v i m e n t o s no livro do Prof. E m i l e J a m e s , Histoire Générale de la Pensée Écono­mique au XXème Siècle, Paris, 1955; t a m b é m no l i v r o de V I L L E Y , D . : Petite Histoire des Grandes Doctrines Économiquès ( 2 . a ed., P a r i s , 1954 — traduzido para o português em 1960) do qual d e s t a c a m o s , a respeito da influência da F i s i o c r a c i a sobre o pensamento e c o n ô m i c o moder­no, a c o n c l u s ã o seguinte (p. 1 1 0 ) : " O s f i s i o c r a t a s criaram um método, uma d i s c i p l i n a . C o n s -t r u * r a m . Quadros cujo conteúdo variará m a i s tarde, mas que continuarão sendo os da ciência econômica c l á s s i c a e mesmo da moderna. P o d e - s e hoje ver no Tableau Économique de Q U E S N A Y o ancestral de nossos c á l c u l o s sobre a renda nacional, dos orçamentos de setores elaborados pelos nossos estatíst icos e, sobretudo, no método " input, o u t p u t " , de L E O N -T I E F F . "

Page 101: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A E S C O L A C L Á S S I C A

No mesmo instante em que surge, na França, a ciência econômica com os fisiocratas, elabora-a, na Inglaterra, Adam Smith que, em 1776, publica a "Riqueza das Nações".1 Trata-se de um esforço de revisão das idéias econômicas mercantilistas e também da constituição de uma "Escola Econômica": terá por chefe Adam Smith e por obra-prima a "Riqueza das Nações", do mesmo modo que a Escola Fisiocrática tivera Quesnay e o seu "Quadro Econômico".

Mas, enquanto, na Fisiocracia, os numerosos discípulos do mestre o seguiam cegamente, contentando-se, na maioria das vezes, com difundir apenas suas idéias, e se concentrara o movimento em um lapso de tempo assaz curto (desapareceu de fato no início do século XIX), na escola in­glesa, ao contrário, além de se prolongar ela até meados do século XIX, não se limitaram os discípulos a inspirar-se no mestre, mas vão também completar e precisar seu pensamento, modificando-o mesmo muitas vezes; e, assim, é elaborado um conjunto de preceitos teóricos e doutrinários ao qual se dará o nome de "Escola Clássica".

A Escola Clássica propriamente dita consiste, portanto, naquela cor­rente científico-econômica iniciada, em 1776, com Smith, continuada par­ticularmente com Malthus e Ricardo e completada, em 1848, por Stuart Mill e seus "Princípios de Economia Política".2

Todavia, não desaparece nos meados do século a influência exercida por essa escola, tal como a definimos, nem se circunscreverá apenas à In­glaterra. Continuará até nossos dias, sofrendo inflexões aqui e acolá. A autoridade da Escola impõe-se ao mundo: dará nascimento, na França, com Jean Baptiste Say, a importante corrente clássica, cuja expansão vai concorrer para a difusão das idéias de Smith por inúmeros outros países.

A Escola Clássica deve a originalidade de suas concepções fundamen­tais a quatro homens: Adam Smith, Malthus, Ricardo e Stuart Mill.

1. A d a m S M I T H : An Inquiry into the Sature and Cause oí the Wealth ol Nations, 1776.

2. J. S. M I L L : Principies of Political Economy, 1848.

101

Page 102: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção I

ADAM SMITH E O SISTEMA DE LIBERDADE NATURAL

Smith foi um teórico; dedicou sua existência quase que exclusiva­mente ao magistério. Nascido na Escócia, em 1723, matriculou-se na Uni­versidade de Glasgow, freqüentando-a de 1737 a 1740. Teve aí por mes­tre o filósofo-historiador, da escola do senso moral, Francisco Hutcheson.3

Passou, em seguida, para Oxford, onde estudou até 1746. Foi professor em Edimburgo e depois em Glasgow. Em Glasgow, em 1740, Smith co­nheceu Hume, amizade que durou até à morte deste e cuja influência so­bre o pensamento de Smith foi considerável. É com razão que Richard Haldane escreve que "Smith não poderia ter existido sem Hume". 4 Em Glasgow, Smith regeu a Cadeira de "Filosofia Moral", ciência bem mais extensa que a sociologia moderna, pois abrangia a teologia, a ética, a jurisprudência, o direito político e a economia política. Movido pela ne­cessidade de fazer um estudo sintético dessas ciências, diversas e com-plementares, dá início à sua análise, primeiro, na sua "Teoria dos senti­mentos morais" (1759), sistema da moral da simpatia, o qual rivaliza com a moral utilitária de Benthan 5 — trabalho que lhe assegura desde logo grande renome —, depois, na "Riqueza das Nações" (1776), 6 a prin-

3 . Cf. S c o t t , W . R.: F r a n c i s c o H U T C H E S O N , C a m b r i d g e , 1900. N o s i s t e m a d e filosofia moral de H u t c h e s o n ( 1 7 5 5 ) , Smith encontrará numerosas teorias e c o n ô m i c a s que o interessarão, em part icular as da d i v i s ã o do trabalho, do valor, do preço, da moeda e do imposto.

4. L i f e of A d a m S M I T H , p. 19. 5. J e r e m y B E N T H A N : A Manual ol Political Economy, 1789. 6. De 1764 a 1766 viaja S M I T H peia E u r o p a com o j o v e m duque de- B u c c l e u g h , enteado

de C h a r l e s T o w n s h e n d . Era costume, então, um aristocrata i n g l ê s empreender uma grande v i a ­g e m pela E u r o p a a fim de aperfeiçoar sua cultura e sua educação. T o w n s h e n d , pouco feliz sem d ú v i d a quando, como Ministro das F i n a n ç a s , acelerou a r e v o l u ç ã o americana ao recusar aos colonos o direito de escolher seus j u i z e s e ao t a x a r fortemente seu chá — foi, em compensa­ção, bem e s c l a r e c i d o ao confiar a S M I T H o cuidado de acompanhar o j o v e m filho da v i ú v a do D u q u e de B u c c l e u g h que a c a b a v a de esposar. Na F r a n ç a , durante os v i n t e e dois meses que aí p a s s a r a m , conheceram eles V o l t a i r e e entra ra m em contato com os f is iocratas. A i n d a na F r a n ç a , S M I T H começou a escrever sua obra Riqueza das Nações, que terminou quando de seu regresso à E s c ó c i a e que publicou em 1776. Em 1778 foi nomeado c o m i s s á r i o das a l f â n d e g a s de E d i m b u r g o . T e m - s e feito notar, por v e z e s , a ironia que tal n o m e a ç ã o representa para um chefe do l iberal ismo. Sem d ú v i d a ; mas pode-se t a m b é m ver, na a c e i t a ç ã o desse cargo, um dos traços fundamentais do l iberal ismo smithiano, ou seja, a u s ê n c i a de part idarismo e de e x c l u s i v i s m o , ao lado da contínua preocupação com reais e p r i m o r d i a i s interesses da n a ç ã o . S M I T H faleceu em 1790, no a p o g e u da fama, cercado de c o n s i d e r a ç ã o universal .

Sobre S M I T H , ler: D u g a l d S T E W A R T : Bigraphical Memoirs oi A. Smith, E d i m b u r g o , 1 8 1 1 ; B A G E H O T : Economics Studies, 1880; W. H A S B A C H : Die AUgemeinen philophischen Grundlagen der von Quesnay und A. Smith begruendeten politischen oekonomie, Leipzig, 1890; John R A E : Life of A. Smith, London, 1895; C A N N A N , E . : History oi the Theories of Produc-tion and Distribution in English Political Economy írom 1776 to 1848, L o n d o n , 1903. S M A L L : A. Smith and Sociilogy, 1907; W. R A P P A R D : L'Économisme Historique d'A. Smith, Genebra, 1 9 1 6 ; C. W. H A S E K : The Introduction of A. Smith's Doctrines into Germany, N o v a Iorque, 1925; W. R. S C O T T : A. Smith as Student aid Professor, 1937; G I D E e R I S T . op. cit.. Renné G O N N A R D , op. cit., Londres, 1 8 9 5 ; I N G R A M : Sketch of the History of Political Economy, Londres, 1893; H A L D A N E , R. B . : Life of A. Smith, Londres, 1887.

A l é m de cinco edições da Riqueza das Nações, p u b l i c a d a s em v i d a de S M I T H (1776, 1779, 1784, 1786 e 1789), um grande número de e d i ç õ e s v e i o posteriormente à luz, a c o m p a n h a d o de no­tas e a c r é s c i m o s de vários autores. Cf. em part icular a e d i ç ã o de J. S. N I C H O L S O N , profes­sor em E d i m b u r g o , 1884, e, sobretudo, t a m b é m a do Prof. Ed. C A N N A N , L o n d r e s , 1904. C A N ­N A N p u b l i c o u igualmente, sob o t í t u l o de Lectures on Justice, Police Revenue and Arms ( O x f o r d , 1896), apontamentos do curso de E c o n o m i a P o l í t i c a dado por S M I T H na U n i v e r s i ­dade de G l a s g o w á partir de 1763. E s s a s notas apresentam um grande interesse por permiti ­rem situar o pensamento econômico de S M I T H anteriormente à sua v i a g e m à Europa, antes, por conseguinte, de haver ele conhecido os f is iocratas. M o s t r a m esses apontamentos que, a despei-.to_de não conhecer S M I T H , a esse t e m p o , os e c o n o m i s t a s franceses, nem su?s obrss. as suas idéias já então muito se a p r o x i m a v a m em v á r i o s pontos. L e r t a m b é m , de C A N N A N , Theories of Production and Distribution (1776-1848), 1893.

Page 103: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

cipal das suas obras. Morreu antes de ter podido realizar a síntese, obje­tivo e coroação de seus estudos anteriores.

O grande livro de Smith constitui um marco na história da Economia Política. O economista alemão, Roscher, referindo-se a essa obra, disse haver ela "tornado inútil tudo o que a precedera e inspirado tudo quanto se lhe seguira". A primeira parte desse juízo é exagerada e falsa; a se­gunda, perfeitamente exata: a esse título participa Smith, com os fisio­cratas, da paternidade da Economia Política.

Smith cria uma ciência econômica que apresenta inúmeros pontos de semelhança com a dos fisiocratas. Tal como estes, busca estabelecer as leis naturais explicativas dos fenômenos econômicos e das suas relações. E como eles acaba também no liberalismo. Mas soube, melhor que eles, as­sentar solidamente o estudo dos problemas econômicos em bases mais científicas e vastas.

Partindo de um ponto de vista menos acanhado que o dos fisiocratas, amplia o seu campo: ao invés da produtividade agrícola toma como pro­blema econômico central o trabalho, entendido como "trabalho ajudado pelo capital", ou seja, atividade produtiva. E, fazendo do trabalho, assim compreendido, a fonte da riqueza, reage contra a concepção metalista dos mercantilistas e a noção exageradamente agrária dos fisiocratas.7

Enquanto os mercantilistas faziam depender a riqueza do ouro e os fisiocratas, da terra, vê Smith a sua origem no trabalho do homem.

Este ponto de vista fundamental surge logo às primeiras linhas da "Riqueza das Nações". Assim começa, com efeito, a obra:

"O trabalho anual de uma nação é o mundo primitivo que a abastece de todas as coisas necessárias e confortáveis da vida, por ela anual­mente consumidas, as quais consistem, sempre, em produtos ime­diatos do trabalho ou no que é adquirido às outras nações com es­ses produtos."

Essa noção de trabalho, com que substitui a de produtividade exclu­siva da agricultura, é característica da sua concepção de "liberdade natu­ral".

Smith faz um aprofundado estudo do trabalho e de sua produtivida­de. Servirá essa produtividade de base à explicação da riqueza das dife­rentes nações:

"Não se vêem, porventura — escreve ele — povos pobres em terras vastíssimas, potencialmente férteis, em climas dos mais benéficos? E, inversamente, não se encontra, por vezes, uma população numerosa vivendo na abundância em um território exíguo, até algumas vezes em terras penosamente conquistadas ao oceano, ou em territórios que

7. Isto não signif ica ser A. S M I T H inimigo da a g r i c u l t u r a . Conserva-se, ao contrário, t a l v e z sem o saber, fiel à idéia de certa superioridade da p r o d u ç ã o a g r í c o l a ; sofre, assim, de certo modo, a influência dos fisiocratas com os quais p r i v o u ; sem, todavia, incidir no e x c l u s i -v i s m o que nesse terreno lhes é peculiar, evita adotar sua c o n c e p ç ã o de " e s t e r i l i d a d e " do co­m é r c i o e da indústria.

Page 104: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

não são favorecidos por dons naturais? Ora, se essa é a realidade, é por existir uma causa sem a qual os recursos naturais': por preciosos que sejam, nada são, por assim dizer; uma causa que^ ao atuar, pode suprir a ausência ou insuficiência de recursos naturais. Em outros termos, uma causa geral e comum de riqueza, causa que, atuando de modo desigual e vário entre os diferentes povos, explica as desigual­dades de riqueza de cada um deles; essa causa dominante é o traba­lho."

E para Smith, a proporção segundo a qual o produto desse trabalho se reparte por entre um número maior ou menor de consumidores é que torna uma nação mais ou menos rica:

"Segundo seja maior ou menor a proporção existente entre o produto do trabalho — ou aquilo que no estrangeiro se adquire em troca des­se produto — e o número de consumidores, encontrar-se-á a nação nçuis ou menos abastecida de todas as espécies de coisas necessárias ou cômodas de que necessita."

Essa proporção entre o produto do trabalho e o consumo é deter­minada por um elemento quantitativo do trabalho, isto é, pela relação existente entre o volurríe da população ativa e o da inativa e, sobretudo, por um elemento qualitativo do trabalho: sua eficácia.

Smith mostra ser a eficácia do trabalho, quanto ao rendimento, mais importante do que a quantidade de trabalho empregado.

Observa que, nas nações civilizadas, embora elevado seja o número dos ociosos — na maioria^, dos casos também grandes consumidores —, a quantidade dos objetos de consumo é mais do que suficiente para todos: os mais pobres, se sóbrios e laboriosos, podem aí dispor de bens de con­sumo em escala muito maior do que a existente à disposição do mais fa­vorecido dos indivíduos em uma aldeia primitiva.

Nestas circunstâncias, deve ser a eficácia do trabalho maior entre os povos civilizados do que entre os primitivos, uma vez que, proporcional­mente muito menor é, entre os primeiros, o número dos indivíduos traba­lhando produtivamente.

A eficácia do trabalho nas nações progressivas provém essencialmente da divisão do trabalho; demonstra-o. Smith com exemplos tomados aos fatos.

Em páginas que se celebrizaram 8 cita, como exemplo dessa superio­ridade do trabalho dividido, a fabricação de alfinetes. Observa ser pos­sível produzirem, facilmente, dez operários, por entre os quais estejam divididas as diferentes tarefas de fabricação de um' alfinete, 48 000 alfi­netes por dia, enquanto, tendo um operário de realizar todas as opera­ções sozinho, por hábil que fosse, conseguiria, talvez, fazer um alfinete por dia. . .

Wealth oi Nations, e d i ç ã o C a n n a n , tomo I, p. 6, l ivro 1.

Page 105: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Generalizando esse exemplo e estendendo a divisão do trabalho a to­das as profissões e, principalmente, a todas as nações, mostra Smith pos­sibilitar ela a produção de cada coisa no lugar onde maiores facilidades existem para a sua criação.

A teoria da produtividade do trabalho de Smith é, portanto, um hino de glória à divisão do trabalho.

Mais do que nunca, devemos inclinar-nos com reflexão e carinho so­bre esta grande característica da produção moderna, a qual, não obstante, nos passa muitas vezes despercebida de tão familiar que se tornou. Na verdade, como dizia Lucrécio, "nada há, por grande e admirável que de início nos tenha parecido, a que não nos habituemos e, pouco a pouco, passemos a admirar menos".

No plano nacional, proporcionando a divisão do trabalho altos ren­dimentos, é fator de bem-estar, para o indivíduo, e de riqueza, para cada um dos países. No campo internacional, transforma o mundo em uma vasta oficina, executando-se, assim, o trabalho onde se exige menor dispo­nibilidade de tempo e de esforço, graças à colaboração da natureza e ao aproveitamento das aptidões humanas.

Ressalta aí, em virtude da estreita dependência existente entre divisão do trabalho e trocas, uma das características mais simpáticas do pensa­mento smithiano, ou seja, o seu pacifismo. A divisão do trabalho, quer no plano nacional quer no internacional, tornando as trocas obrigatórias e vantajosas, cria — mediante o desenvolvimento de atividades diferentes e complementares — a solidariedade entre os homens, as economias e as nações.9

O pensamento de Adam Smith, hoje, mais do que nunca, adquire, neste particular, o seu pleno sentido. De fato, levando-se em conta a di­visão do trabalho entre as nações, a organização econômica será feita no plano internacional ou estará destinada à falência.

Conforme muito bem escreve Wendel Wilkie, o "mundo é um só"; indispensável, pois, que todas as partes desse mundo único tomem defini­tivamente a consciência de ser ele também aquela única e vasta oficina com a qual sonhara Smith: oficina criadora de riquezas a preço mínimo, símbolo de solidariedade e fiadora da paz. Então, e "então somente", no dizer de Paul Fort:

"on pourrait faire une ronde autor du monde, si tous les gens du monde voulaient se donner la main."

Mas essa teoria da produtividade do trabalho, além de hino à divi­são do trabalho, é um canto de louvor entoado ao poderio e à eficácia do interesse privado.

9. "A sociedade é uma imensa e a t iva colmeia, onde cada um está a serviço dos d e m a i s , e, afinal, todos a s e r v i ç o de cada u m . " P r e c i s a m e n t e nestes termos descreveu M O N T P E T I T , em sua interessante obra, í .a Conquête Économique (tomo 3, p. 23), a solidariedade i m p o s t a pela divisão do trabalho.

Page 106: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Com efeito, nessa imensa oficina — imagem do mundo para Smith a divisão do trabalho é eficaz, não apenas pelas qualidades econômi­

cas que lhe são peculiares, mas também por ser o homem levado espon­taneamente à atividade graças ao seu interesse pessoal e, além disso, por coincidir esse móvel egoísta com o interesse geral.

Assim se exprime ele numa passagem célebre da "Riqueza das Na-M ções" (capítulo 2, livro IV) :

"... dirigindo essa indústria — a doméstica — de modo a obter pro­dutos do máximo valor possível, o indivíduo visa apenas ao prbprio lucro; aí, como em muitos outros casos, é levado, por mão invisível, à consecução de um objetivo que de modo algum entrava em seus cálculos." E acrescenta: "Ao buscar a satisfação do seu interesse par­ticular o indivíduo atende freqüentemente ao interesse da sociedade de modo muito mais eficaz do que se pretendesse realmente defen­dê-lo." 'o

Smith, tal como os fisiocratas, confia no interesse privado como meio de assegurar ao homem o progresso geral da riqueza e é também otimista quanto aos resultados desta ação individual, mas não aceita a concepção providencial que, na Escola de Quesnay, servia de traço de união entre o interesse privado e o geral.

Para Smith, o fundamento metafísico deve ser posto de lado: a psico­logia individual explica, por si só, resultar o interesse geral — espontânea e não mais providencialmente — da soma dos interesses pessoais

O liberalismo econômico assenta-se sobre essa base: uma rez que o interesse individual coincide com o interesse geral, deve-se, na prática, deixar plena liberdade de ação aos interesses privados.

O liberalismo não só se impõe, mas também muda de caráter: laici-za-se. Daí por diante a ciência econômica, graças a essa motivação psi­cológica, poderá, com maior flexibilidade, evoluir no sentido de tornar mais exatas suas concepções, as quais, aliás muito posteriormente à Esco­la Clássica, vão-se tornai bem precisas nas teorias modernas das escolas hedonistas.

Essa divisão do trabalho, cuja eficácia Smith aponta, não pode entre­tanto ser aplicada ou levada ao extremo em qualquer lugar ou em qual­quer tempo. Ela requer a existência prévia de duas condições imperati­vas: a extensão do mercado e a abundância dos capitais. Para se poder produzir em abundância, indispensável é ter mercados suficientes à dispo­sição: a produção de uma nação depende da extensão de seus mercados.

10. É mais ou menos o que, em uma l i n g u a g e m mais pitoresca, escrevera, cem anos antes, B O I S G U I L B E R T , em sua Dissertation sur la Nature des Richesses, de l'Argent et des Tributs: " O s homens procuram enganar-se e i ludir-se de manhã à n o i t e ; aspiram sempre a fundar sua o p u l ê n c i a na ruína de seus viz inhos e, t o d a v i a , cuidando dia e noite da r i q u e z a — tendo em v i s t a seus interesses particulares — af irmam v i s a r ao bem geral, embora seja aquilo em que menos p e n s a m . "

F o i o que i g u a l m e n t e escreveu o médio filósofo Bernardo de M A . N D E V I L L E , em 1704, sob o t í t u l o : Fable des Abeilles, ou Vices Prives, Bieníaits Publics. S M I T H em sua Teoria dos Sentimentos Morais (cap. I V , s e ç ã o I I , parte I I I ) , critica M a n d e v i l l e que, não obstante, serviu-

106 1 , 1 6 d e f o n t e d e inspiração. L e r : S C H Ã T Z , A . : L'Individualisme Économique e t Social, P a r i s ,

Page 107: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A política mais favorável à ampliação dos mercados é a da liberdade de comércio.

E a intensificação da divisão do trabalho exige ainda a satisfação de uma segunda condição: capitais acumulados de modo crescente e con­tínuo.

Reagindo contra os mercantilistas — que haviam exagerado o papel do metal precioso e desconhecido, o do capital —, é Smith o primeiro a indicar a maneira pela qual as diferentes espécies de capital atuarão no sentido de aumentar a divisão do trabalho.

Os capitais circulantes são necessários para permitir ao empreendedor pagar o salário de seus operários sem ter de esperar que a produção esteja terminada e vendida. Os capitais fixos são necessários à aquisição do ins­trumental, da maquinaria etc, tudo, enfim, o que Boehm-Bawerk chama­rá de capital indireto da produção capitalista.

Para que esse aumento de capital se processe nas melhores condições, indispensável é, ainda, o regime de liberdade.

E Smith o demonstra.

A causa imediata do aumento do capital é a poupança. A economia resultante de determinada indústria provém essencialmente da diferença en­tre o valor do produzido e o valor do consumido na produção. Portan­to, será conveniente — para que se consiga o máximo de economia possí­vel — canalizar os capitais para as produções nas quais se realizem os mais elevados lucros. O interesse pessoal dos capitalistas é que vai fazer com que se possa, a qualquer momento, imprimir aos capitais a direção mais favorável ao interesse social.

É, aliás, o que tinha escrito Quesnay: "Dê-se liberdade de ação (lais-sez-faire) que os capitais se multiplicam e afluem para onde mais livre­mente se pode dispor deles."

Smith retorna sempre a essa espontânea harmonia entre o interesse geral e o individual; é o "leit-motiv" de sua obra. Indica seus efeitos em todos os ramos da Economia: e, pois, não só a propósito da divisão do trabalho e da multiplicação dos capitais — conforme vimos —, mas tam­bém a propósito das leis econômicas em geral, das teorias sobre a moeda e sobre o comércio exterior, e, ainda, da lei da oferta e da procura e da doutrina, da população.

Essa espontaneidade, acionada pelo interesse pessoal, constitui a peça mestra do "sistema de liberdade natural" smithiano. Levaria naturalmente Adam Smith a conclusões liberais. Com efeito, a liberdade se impõe em seu sistema como conseqüência da benfazeja harmonia espontânea entre o interesse do indivíduo e o da sociedade e como corolário do fato de ser o indivíduo o único apto para discernir e buscar a satisfação de seu próprio interesse.

Page 108: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E realmente Smith chega a conclusões econômicas liberais. Mas, se com os fisiocratas — foi o campeão do livre-cambismo, soube sê-lo

com sabedoria e moderação.1 1

Espírito ponderado, observador vigoroso e sagaz, não caiu, nesse campo, em um absolutismo est' H e perigoso.

Sem dúvida, Smith acredita deverem ser reduzidas as funções do Es­tado; é coerente com suas teorias e lógico no seu ataque ao intervencionis­mo mercantilista que, a esse tempo, ainda imperava.

Num discurso pronunciado em 1755 — 21 anos, portanto, antes da publicação da "Riqueza das Nações" — afirmava Smith serem três as coi­sas que caberia ao Estado fazer a fim de assegurar o desenvolvimento eco­nômico do país: "Para arrancar um Estado do mais baixo grau de barbárie e elevá-lo à mais alta opulência — dizia ele — bastam três coisas: a paz, impostos módicos e uma tolerável administração da justiça. Tendo-se isso, tudo o mais virá com o decurso natural das coisas."

Na "Riqueza das Nações" insistirá Smith em que seja o primeiro de­ver do Estado poupar à sociedade os atos de violência ou a invasão por parte de outras sociedades independentes.

Estende-se longamente sobre essa função essencial do poder público e, a fim de tornar possível seu exercício, abranda suas conclusões liberais, fazendo concessões conciliadoras.

"Defesa é mais importante que riqueza", escreve ele. E, por essa ra­zão, admite a necessidade de se oporem certos entraves à concorrência estrangeira, a fim de ser possível o desenvolvimento, dentro do país, de indústrias indispensáveis em caso de guerra.

É este modo de ver que o leva a aprovar as leis inglesas de navega­ção —- como, por exemplo, o "Navegation act" de Cromwell — que pro­curavam dar à marinha britânica o monopólio da navegação, impondo pesados ônus — ou mesmo interdição absoluta — às marinhas estran­geiras.

Sem entrar na apreciação dessas limitações traçadas por Smith às con­seqüências de sua "liberdade natural", os exemplos precedentes servem para indicar quanto soube ele ser liberal e prudente, levando sempre em conta a realidade.

Seu gosto instintivo pela observação dos fatos preservou-o de incidir nos exageros em que caíram muitos de seus sucessores.

Deve Smith, em grande parte, a essa moderação e relativismo das suas conclusões a influência que a sua grande obra exercerá, direta e ime­diatamente, sobre a evolução dos acontecimentos. Pitt, ao subir ao poder,

1 1 . E n t r e t a n t o , S M I T H , ao se tornar apóstolo da l ivre-concorrência, comete o erro de as­similar as v a n t a g e n s da liberdade às de concorrência — erro que v a i ser repetido por grande número de seus discípulos. A o b s e r v a ç ã o mostra que a concorrência é r a p i d a m e n t e destruída em regime j u r í d i c o de liberdade. O neol iberal ismo, que examinaremos mais adiante, é levado a pedir a i n t e r v e n ç ã o do E s t a d o , a fim de manter a concorrência.

Page 109: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

nela irá inspirar-se e sob seu influxo firmará, em 1786, o primeiro trata­do liberal de comércio, cujo espirito caracterizará a política comercial de parte do último século. Lord North faz suas as idéias de Smith e as apli­ca na esfera fiscal.

No campo das idéias sua influência é maior ainda. 1 2 Já dissemos que Roscher tivera razão ao afirmar haver a "Riqueza das Nações" inspirado todos os escritos econômicos que se lhe seguiram.

Foi o que se deu, principalmente, com seus discípulos imediatos, Mal­thus e Ricardo, e, posteriormente, também com Stuart Mill.

Mas, para bem apreciar a contribuição dos sucessores de Smith à Es­cola Clássica, é preciso considerar não só o prestígio ímpar com que a todos se impõe a "Riqueza das Nações", mas também os fatos ocorridos na época, principalmente a "revolução industrial" que, se bem já se viesse esboçando por volta de 1776, só mais tarde teve plena expansão. Assim, pois, o valor e o alcance desse movimento só poderiam ser observados e medidos pelos discípulos de Smith.

Esta influência profunda dos fatos emprestará à Escola Clássica, pos­teriormente a Smith, um caráter mais nitidamente industrialista.

No último quartel do século XVIII, o progresso da técnica, além de transformar os processos e o ritmo da produção, vai modificar, ainda, o sistema de trocas e afetar profundamente a repartição das riquezas.

Já por volta de 1760, quando elaborava ainda Smith a sua "Riqueza das Nações", se positivavam progressos técnicos nas indústrias têxteis e metalúrgicas. Naquelas, o maquinismo se introduz com Hargraves e Cromp-ton, os quais, respectivamente, inventam e aperfeiçoam a típula ou máqui­na de fiar "Jenny"; com Cartwright, que tira patente do primeiro tear me­cânico; com Arkwright, que aplica à tecelagem a cilindro as descobertas de Highs e Watt.

Na metalurgia, 30 anos antes, fundira Darby o minério de ferro altos fornos de coque; Roebuck, por volta de 1765, torna industrialmen­te utilizável o minério de ferro por meio do carvão vegetal. E com Cra-nege, Onions e Cort aperfeiçoa-se a finagem do minério de ferro, bem como o seu caldeamento (pudling).

As grandes fábricas têxteis e as usinas rnetalúrgicas vão desenvolver --se rapidamente: a transformação é tão brusca que não se fala mais de evolução, mas de "revolução industrial".1 3 Essa revolução só foi possível

12. A l é m de se fazer sentir sobre os d iscíp ulo s imediatos, a sua profunda i n f l u ê n c i a v a i exercer-se em todos os p a í s e s , até nossa época. E por ser o pensamento de S M I T H m a i s hu­mano, mais e q u i l i b r a d o e moderado do que o da maioria dos outros clássicos i n g l e s e s , a ele retornam os l iberais da a t u a l i d a d e , ao pretenderem criar ou aperfeiçoar uma doutrina neolibe-ral, que corresponda às e x p e r i ê n c i a s dos contemporâneos e aos ensinamentos da c i ê n c i a econô­mica moderna. Em particular, W a l t e r L I P P M A N : La Cite Libre, Paris, 1938; J a c q u e s R U E F F : Pourquoi Je Reste, malgré tout Liberal ( X - G r i s e ) , Paris , 1934; L o u i s R O U G I E R ; Les Mystiques Économiques, P a r i s , 1938, Cf. sobre o neol iberal ismo, infra p. 147.

1 3 . Ler a r e s p e i t o : Laurent D E C H E S N E : História Econômica Contemporânea, t r a d u ç ã o de A. C. Couto de Barros, S ã o P a u l o , 1941; M A N T O U X : La Révolution Industrielle au XVIII-ème Siècle, P a r i s , 1905; P A U L H U G O N : Le Progrès Tecbnique (in Traité d'Économie Politl-que, dir. L o u i s B a u d i n , tomo I, 2." parte, cap. I I I ) , Paris , 1961; R. L. H E I L B R O N E R : Les Grands Penseurs de la Révolution Économique, Paris , 1957.

Page 110: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

graças à circunstância de haver posto Watt, em 1769, logo após as desco­bertas dos franceses Salomon de Caus e Denis Papin, a máquina a vapor à disposição da indústria.

O fato de ter surgido essa revolução na Inglaterra deve-se ao privi­légio de já ser ela então uma grande nação comercial e possuir, portanto, os mercados necessários a qualquer aumento de produção. E mais ainda à circunstância de se ter processado o despovoamento dos campos em virtude da evolução rural aí iniciada com a Reforma, fornecendo à in­dústria o contingente de mão-de-obra de que necessitava. v

Evolução da técnica, possibilidade de mercados novos, disponibilida­de de mão-de-obra, tais as principais razões que tornaram então possível o desenvolvimento da indústria na Inglaterra, com amplitude e rapidez excepcionais.

Ao tempo, pois, em que Smith estava escrevendo o seu magnífico tra­balho, podia, como seus contemporâneos, pressentir a evolução que se es­boçava: todavia, impossível lhe era ainda vê-la. Seus discípulos poderão não apenas assistir à sua expansão, como também observar seus primeiros efeitos econômicos e sociais.

É, pois, em um ambiente diverso daquele em que viveu o mestre que se acham colocados os discípulos: acrescentem-se as diferenças pessoais de temperamento e ter-se-á explicado o porquê das modificações às quais será posteriormente submetido o pensamento de Smith, embora servindo de base científica a toda a Escola Clássica.

Seção II

MALTHUS E A TEORIA DA POPULAÇÃO

Malthus, 1 4 tal como Smith, é um teórico. Sua contribuição à Escola Clássica é considerável e os seus "Principies of Political Economy" (1820) contêm o essencial da doutrina inglesa.

14. R o b e r t M A L T H U S nasceu em 1766. Era filho de f idalgo provinciano que mantinha relações de amizade com o filósofo D a v i d H U M E . Foi t a m b é m d i s c í p u l o de G O D W I N e adep­to de J. J. R O U S S E A U . O b r i g a r a - o seu pai a fazer sérios estudos, p r i n c i p a l m e n t e em C a m ­b r i d g e , dest inando-o ao clero. M A L T H U S vai ser, com efeito, pastor em uma vi la . É nesse período de sua v i d a que escreveu seu Essay. E s t e l ivro apareceu em 1798, sob anonimato, com o t í tulo Essay on the Principies of Population as It Aífects the Future Improvement of Society. V i a j a M A L T H U S de 1799 a 1802 pela Euro p a — excetuada a F r a n ç a — e se consagra ao e s ­tudo da p o p u l a ç ã o nos diversos países e, em 1803, publica, agora com o seu nome, a segunda e d i ç ã o do Essay on the Principies oi Population, or a View of its Past and Present Aítfcts on Human Happiness. ^

Em 1807 é nomeado professor de H i s t ó r i a e de E c o n o m i a em um c o l é g i o da Compannia das í n d i a s O r i e n t a i s , em H a i l e y b u r y , nas cercanias de Londres. Casou-se aos 39 anos -de idade, tendo tido 4 filhos. Em 1843 falece, d e i x a n d o , além de seu ensaio — do qual foram tiradas 5 edições em v i d a do autor —, inúmeros t r a b a l h o s : Jnquiry into the Nature and Progress oi Rent ( 1 8 1 5 ) , Principies of Political Economy (1820), com considerações a respeito de suas a p l i c a ç õ e s p r á t i c a s etc.

Sobre M A L T H U S , ler: James B O N A R : Malthus and his Work, L o n d r e s , 2." ed., 1924; S O E T B E R : Die Stellung der Sozialisten zur malthuschen Bevoelkerungslehre, B e r l i m , 1886; F E T T E R : Versuch einer Bevoelkerungslehre, lena, 1894; G. M O L I N A R I : Malthus, Guillaumin.

Page 111: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esta obra não teve durante muito tempo o sucesso merecido.

Hoje, o estudo dos Princípios foi retomado e permitiu conhecer-se não somente o interesse que apresenta o pensamento econômico de Mal­thus, como também sua originalidade dentro da doutrina clássica.

É da revolução keynesiana que data a redescoberta desses Princípios. Mostra ela, sobretudo, que entre os clássicos somente Malthus não aceitou a lei das saídas de Say. A esta lei que estabelecia o equilíbrio do ajusta­mento automático da oferta e da procura, dos produtos e dos rendimentos, dos fluxos -reais e dos fluxos monetários, do emprego e da população. Malthus opõe o princípio da "procura efetiva", isto é, de uma procura feita por aqueles que têm a vontade e os meios de se comportarem como compradores de produtos e de serviços. Enquanto para Say, seguido pelos economistas clássicos, é o produtor que desencadeia a atividade econômica, conduzindo a oferta à procura e criando seus próprios mercados, para Mal­thus é, ao contrário, b consumidor com sua vontade efetiva de comprar que suscita a produção.

Keynes retomará e desenvolverá essa noção de procura efetiva e, ul­trapassando Malthus, oporá os mecanismos dos equilíbrios parciais ao princípio do' equilíbrio geral dos clássicos. Nesse ponto, como em mui­tos outros, o pensamento de Malthus era mais exato do que o de Say, mas este último, ao acentuar a importância determinante da produção, estava em harmonia com as esperanças que nasciam com a revolução industrial. Malthus, ao contrário, ao mostrar logicamente que a poupança, diminuin­do a procura efetiva, podia ser causa de desequilíbrio e de crises de su­perprodução, colocava assim em dúvida as virtudes dessa poupança, vir­tudes que pareciam incontestáveis para seus contemporâneos.

Os clássicos preferiram, portanto, Say e Malthus, o que é de se la­mentar para a orientação do pensamento econômico dessa época.

É justo igualmente observar que o interesse dedicado aos Princípios de -Malthus foi em grande parte eclipsado pelo sucesso que suscitara o "Ensaio sobre a População". Esse interesse, aliás, continuava a se mani­festar até nossos dias. O Ensaio foi a origem e permanece o centro da reflexão demográfica moderna.

Na doutrina clássica do século XIX a teoria da população de Mal­thus ocupa lugar preponderante: se a suprimirmos, com ela virá por terra a maior parte das demais teorias dessa doutrina.

Paris , 1889; I N G R A M : Sketcb of the History of Political Economy, 1893, p. 70; C O S S A : I principii di popolazione de T. H. Malthus, M i l ã o , 1 9 1 5 ; Alfred M A R S H A L L : Principies oi Economics, 1907; G I D E e R I S T : O D . c i t . ; René G O N N A R D : op. cit. e Histoire des Docttines de la Population, P a r i s , 1923; B O N A J R , F A Y e K E Y N E S : The Commemoration oi Malthus, in E c o ­nomic Journal, 1933; G L A S S , D. V . , Introduction to Malthus, Londres, 1953; H U G O N , P a u l : D e m o g r a p h i e (3ème partie, chap. 3), Paris, 1971 ( t r a d u z i d o para o português pela E d i t o r a A t l a s , 1 9 7 2 ) ; F R É V I L L E , I . : L'Epouvantail Malthusien, P a r i s , 1956; S T A S S A R T , J . : Malthus et la Population, L i é g e , 1957; S A U V Y , A . : Malthus et les Deux Marx, Paris, 1963.

Page 112: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ i.° — As idéias sobre a população no Ensaio de Malthus

A teoria da população tem origens bem antigas. 1 5 Mas propaga-se com Malthus sob uma forma científica. No seu "Essay on the Principies of Population", de 1798, lança as bases da teoria que desenvolve e conso­lida numa segunda edição de 1803.

O problema, cuja solução Malthus busca, se apresenta pela tríplice consideração de um fato, de um remédio e de um livro:

— o fato é o empobrecimento das massas em conseqüência da ex­ploração dos trabalhadores, ocasionada, na Inglaterra, pelo adven­to da Revolução Industrial;

— o remédio é a "lei dos pobres", cuja aplicação levava o Estado inglês a prover as necessidades de considerável parte da popula­ção;1 6

;— o livro é o escrito por Gddwin, em 1793: "Inquiry concerning Political Justice",17 livro esse no qual o amigo do pai de Malthus sustentava resultarem a miséria e a pobreza da má organização da sociedade — principalmente no que se refere à propriedade privada. O remédio para o mal consistia, portanto, em introduzir no Estado modificações na ordem social e econômica. Contra essa tese do primeiro socialista moderno levantou-se Malthus, con­trapondo àquela obra o seu "Essay".

O essencial da teoria de Malthus se resume no seguinte: há uma falta de concordância entre o poder de reprodução da espécie humana e a ca­pacidade de produção dos meios de subsistência. O excedente deve desa­parecer: "Um homem que nasce em úm mundo já ocupado não tem direito a reclamar parcela alguma de alimento. No grande banquete da Natureza não há lugar para ele. A natureza intima-o a sair e não tarda em executar essa intimação."

Malthus dá à sua teoria uma forma científica. Considera, em primeiro lugar, a diferença existente entre a taxa de

crescimento da população e a dos meios de subsistência, estabelecendo-a de modo preciso. "Pode-se seguramente declarar — escreve ele — que, se não for a população contida por freio algum, irá ela dobrando de 25 em 25 anos, ou crescerá em progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16, 32, 64. . .). Pode-se afirmar, dadas as atuais condições médias da terra, que os meios de subsistência, nas mais favoráveis circunstâncias, só poderiam aumentar, no máximo, em progressão aritmética (1, 2, 3,4,5,6.. .)."

A idéia de aumento' dos meios de subsistência subordina-se, nessas conclusões, à de rendimento decrescente, representando um esboço da teo-

1 5 . Cf. René G O N N A R D : Histoire des Doctrines de la Population, P a r i s , 1923; J. B O -N A R : Theories of Population from Raleigh to Arthur Young, L o n d r e s , 1931.

16. E s t a lei dos pobres, acarretando, para os poderes p ú b l i c o s , despesas consideráveis e crescentes, p r o v o c a v a necessariamente um aumento de imposto e c e m isso s u s c i t a v a n u m e i o s a s controvérsias. Custou à- I n g l a t e r r a , em 1775, àZ 2 m i l h õ e s ; em 1801, £ 4 milhões e, em 1812, £ 6 m i l h õ e s e meio.

17 . Cf. K i g a n , P . : L i f e o f W . G O D W I N ( 2 v o l s . ) , 1876; G R A Y , A l e x . : T h e Social ist T r a d i t i o n , N . Y . ( Cap. V ) , 1946.

Page 113: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ria do rendimento não proporcional, preponderante na doutrina inglesa, retomada e ampliada por Ricardo e Stuart Mill. 1 8

A idéia de redimento decrescente é a seguinte: se, em dada terra, fo­rem duplicadas as quantidades de trabalho e de capital (despesas de cul­tura, adubo e t c ) , obter-se-á, talvez, de início uma colheita dobrada; mas, ao se repetir a operação, ao se duplicarem de novo as quantidades de ca­pital e de trabalho, já não se conseguirá obter o duplo do rendimento.

A um aumento de trabalho e de capital da ordem de 1, 2, 4, 8. . . corresponderá um rendimento apenas de ordem 1, 2, 3, 4. . . O acrés­cimo de rendimento torna-se cada vez menor e, em dado momento, a des­peito do progressivo acréscimo de capital e de trabalho, será nulo.

A taxa de crescimento da população é, pelo contrário, elevada. Mal­thus retoma uma idéia comum em sua época, e da qual já se encontra o eco na "Riqueza das Nações": "Nas colônias inglesas da América Seten­trional — escrevia Smith — verificou-se que o número de habitantes do­brava entre 20 e 25 anos."

Malthus afirma, pois, aumentar a população numa progressão geomé­trica enquanto os meios de subsistência cresciam segundo uma progressão aritmética.

O desenvolvimento processado de acordo com essas progressões con­duzirá inevitavelmente à catástrofe.

Ora, continua Malthus, se a catástrofe não se produziu ainda após o aparecimento do homem na face da terra, se a espécie humana não de­sapareceu à míngua de alimentos, deve-se ao fato de haver sido freada a sua propagação. Duas são as espécies de óbices opostos ao crescimento indefinido do homem: repressivos e preventivos.

Os repressivos são os que, no passado, atuaram de modo natural e com o máximo vigor, ou seja, aqueles cujo efeito restritivo da população se faz sentir através do aumento da mortalidade. São constituídos pelas epidemias e doenças resultantes de uma alimentação insuficiente, pelas guerras que entre si travam os povos, tendo em mira a posse dos meios de subsistência e dos fatores de produção, principalmente o solo.

O obstáculo preventivo consiste na limitação voluntária da natalidade. Este é o meio cujo emprego deve ser, segundo Malthus, doravante, acon­selhado e generalizado. O homem é, por natureza, imprevidente. Malthus, através das observações feitas em seu tempo e das colhidas na História, mostra ser o número de filhos, na maioria das vezes, inversamente pro­porcional à fortuna dos pais. Para Malthus seria de se desejar que as fa­mílias ricas contassem numerosos membros e se limitassem as pobres a pôr no mundo apenas os filhos que pudessem sustentar.

Esclareçamos bem o pensamento de Malthus sobre este ponto, que tem sido freqüentemente mal compreendido: o homem só deve casar-se,

18. L e r a respeito a notável obra de M a u r i c e B Y É : h» Lei des Rendements non Propor-tionnels, 1928.

Page 114: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

constituindo família, quando dispuser de meios para o seu sustento; do contrário, deve optar, voluntariamente, pelo celibato e pela castidade.

Malthus repele decisivamente a intervenção do Estado, principalmente sob a forma de auxílio material prestado ao homem inapto a ganhar o suficiente para a manutenção de uma família; julga tal intervenção inútil e mesmo perniciosa para a sociedade.

A única ajuda eficaz por parte do Estado seria a dada no sentido de incrementar a disponibilidade dos meios de subsistência. Enquanto constante se mantivesse a quantidade dos gêneros de primeira necessida­de, impossível seria dar mais a um sem reduzir a quota a ser distribuída a outro. É justamente — diz ele — o que faz o Estado com a lei dos po­bres. Liberal, combate, nesse campo, qualquer interferência que não seja a do interesse privado do indivíduo em questão.

Como julgar tal teoria? Esse julgamento, nós o limitamos ao plano estritamente econômico, deixando de lado as conseqüências sociais e polí­ticas da teoria, implacavelmente injustas para as classes pobres e profun­damente desumanas. Feita esta reserva, cumpre salientar, antes do mais," conter ela certa dose de verdade. Há, na idéia de desproporção do cres­cimento da população em relação aos meios de subsistência, uma noção, em princípio, assaz justa: a população obedece, na sua expansão, a uma lei fisiológica que nos permite supor a possibilidade de um crescimento indefinido. Mas, em contraposição, a observação indica-nos que, na rea­lidade, a lei de crescimento da espécie humana não é geral, nem contínua, nem geométrica.

Todavia, se bem não seja a teoria de Malthus falsa, em tese, ela o é em suas aplicações. Na prática verifica-se, atualmente, dar-se o cresci­mento dos meios de subsistência de modo mais rápido que o da popu­lação.

A limitação voluntária do número de filhos, adotada por muitos po­vos civilizados modernos, não é, sem dúvida, estranha a esse resultado. A principal causa deste reside, entretanto, nos progressos da ciência agrícola que reduziu, numa larga escala, os efeitos da lei do rendimento decrescen­te. Os processos de cultura, as obras públicas, os adubos, a melhoria do rendimento em virtude da seleção de sementes e das espécies, a expansão dos meios de transporte etc. constituem outras tantas causas a impedir o aparecimento de um rendimento decrescente.

Mas, o que há de errado na teoria malthusiana é, precisamente, a sua idéia fundamental, a saber: acarretar o aumento da população, necessa­riamente, uma redução da riqueza "per capita". Em outros termos, Mal­thus liga sua teoria da população não somente à lei do rendimento não proporcional, mas também à lei do fundo de salário, segundo a qual exis­tiria uma parte fixa da riqueza de cada nação destinada ao pagamento dos salários. Nessas condições, se o número dos assalariados aumentasse, a quota de cada um deles decresceria necessariamente. Essa lei, uma vez

114 generalizada, levou certos autores — e entre eles Malthus — à crença de

Page 115: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

variarem, necessariamente, a curva da riqueza "per capita" e a do núme­ro de habitantes, em sentido inverso.

É uma idéia fundamental falsa que vamos de novo encontrar difun­dida entre inúmeros economistas, sociólogos e filósofos do século XIX, como, por exemplo, em Sismondi e na maior parte dos socialistas. A ob­servação dos fatos, à luz da estatística, indica que, pelo contrário, o au­mento da população serve de estímulo à produção; fornece-lhe não só mão--de-obra, mas também consumidores.

Graças a uma população numerosa, a concentração da produção pode ser levada ao máximo, com redução do preço de custo: cresce, assim, o consumo e, em conseqüência, também a produção. Daí aumentar a pro­cura da mão-de-obra e, concomitantemente, elevarem-se a taxa dos salá­rios e a dos outros elementos da repartição. A riqueza "per capita" cresce paralelamente com o enriquecimento geral da nação.

Esse é um fenômeno que escapou a Malthus e cujo desconhecimento levou-o a cometer, em sua teoria, um grande engano. Mas nem por isso menos considerável foi a influência por esta exercida.

Mal surgira a obra de Malthus e já enorme era a atenção que des­pertava: os neomalthusianos dela se apossaram, transformaram-na, defor­maram-na. Serviram-se da idéia de coibição voluntária, não mais com ob­jetivos econômicos, mas político-sociais e, para pôr em prática essa idéia, não se limitaram a preconizar — como o fizera Malthus — a adoção da coibição moral como meio único.

Esse neomalthusianismo, que — repitamos — é contrário ao pensa­mento de Malthus, desenvolveu-se em um grande número de países: na Inglaterra, com Charles Bradlaugh e Annie Besant, 1 9 na Alemanha, com Weimhold,20 W. Friedrich, Kuhlmann, entre outros.

Mas, afora o neomalthusianismo, as conseqüências da teoria da popula­ção de Malthus, no plano social, suscitaram problemas que se tornaram objeto das mais vivas controvérsias. Caso fosse a teoria exata, estariam o Estado e a sociedade isentos de qualquer responsabilidade, não lhes ca­bendo intervir para minorar a miséria da classe assalariada. O otimismo ou pessimismo, não só no plano econômico, mas também nos planos filo­sófico e religioso, dependia de serem verdadeiros ou falsos os fundamen­tos da teoria.

No terreno econômico, e principalmente no quadro da Escola Clássi­ca, imensa e duradoura vai ser a influência por ela exercida. Passará a fazer parte integrante da ciência clássica, a cujas teorias principais impri­mirá, daí por diante, o seu cunho:

19. Fruits of Phylosopby. Law of Population, 1877. 20. W E I M H O L D , conselheiro do rei da S a x ô n i a : De l'Excés de Population dans 1'Europe

Centrale, 1827. Ler, a respeito dos n e o m a l t h u s i a n o s : R e n é G O N N A R D : Histoire des Doctrines de la Population, P a r i s . 1923, p. 306 e segs.

Page 116: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

— vai inspirar e servir de justificativa à teoria do "fundo de salá­rio";21

— servirá de axioma da renda fundiária, de Ricardo; — está subjacente em toda a obra de Stuart Mill.22

É bem de ver que, ultrapassando os limites da Escola Clássica, ser­virá de base à concepção socialista de luta de classes e, transpondo as lin­des das doutrinas econômicas, irá inspirar Darwin na elaboração de sua célebre teoria da luta pela vida e da seleção das espécies.

Em resumo, exerceu Malthus, através da sua teoria da população, profunda influência sobre a orientação científica da Escola Clássica, que antes dele foi, com Smith, liberal e otimista, e se tornará — com ele e depois dele — pessimista, embora permaneça liberal.

§ 2." — Conseqüências doutrinais do Ensaio de Malthus

1. AS ATENUAÇÕES AO PESSIMISMO DE MALTHUS .

As conseqüências doutrinais do Ensaio foram muito importantes. Para os liberais da Escola clássica inglesa, a lei de Malthus, nas suas grandes linhas e conseqüências sociais, foi aceita.

Entretanto, certas atenuações ao pessimismo antipopulacionista do En­saio aparecem, de início, por parte do próprio Malthus, e, depois, na obra de Stuart Mill e nas dos neoclássicos.

A evolução de Malthus é progressiva e se observa à medida que no­vas edições de seu Ensaio são publicadas:

1 — Relativamente cedo Malthus mostra que a evolução da miséria, conseqüência da expansão demográfica, não é necessariamente" contínua, mas pode sofrer paradas, períodos de repouso, pelo fato de que quando os salários baixam, os empreendedores podem aproveitar tais fases para empregar maior número de trabalhadores, o que pode provocar — ape­sar da lei dos rendimentos decrescentes — o aumento das subsistências e a melhoria temporária do nível de vida. As variações dos salários em tor­no do mínimo vital são, nessas condições, cíclicas e apresentam períodos favoráveis aos trabalhadores.

2 — A propósito da evolução do lucro, Malthus se opõe a Ricardo e mostra — servindo-se da noção de procura efetiva 23 — que a baixa do

2 1 . E s t a teoria, iá e s b o ç a d a p e l o p r ó p r i o M A L T H U S , será retomada e d e s e n v o l v i d a por S Ê N I O R (1790-1864), "em seus Principies. 1830.

22. A t ítulo de exemplo p o d e m ser c i t a d o s , entre os e c o n o m i s t a s adeptos do malthusianis-m o , depois da E s c o l a C l á s s i c a = na F r a n ç a : R O S S I , Introduction à 1'Essai (de Malthus): Jo-seph G A R N I E R , Traité d'Économie Politique — Du Príncipe de la Population; DE M O L I N A -R I , Questions d'Économie Politique, 1851. Na A l e m a n h a : R G S C H E R , Grundlagen; Robert von M U H L , Die Geschichte und Litteratur des Staatswissenschaíten, 1958. Na Itália: B O S E L I N I , Nuovo Ezame delle sorgenti deite privata e publica ricbezza, 1 8 1 6 ; B O C A R D O , Trattafo teó­rico político di economia política, 1863.

23. Para M a l t h u s , não é a oferta que cria a procura, é a procura que suscita a p r o d u ç ã o ; é a v o n t a d e de compra que c o m a n d a a p r o d u ç ã o . (Cf. P r i n c í p i o s de E c o n o m i a P o l í t i c a de M a l ­thus, cap. I.)

Page 117: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

lucro não é tendencial, mas resulta do confronto entre a oferta e a pro­cura efetiva. Admitindo altas provisórias do nível de vida, ele é levado a admitir aumentos da procura efetiva. O lucro evolui, então, de modo cí­clico e sua baixa será retardada pelo aumento da população à.medida que ela acarreta um aumento da procura efetiva.

3 — Malthus distingue, finalmente, dois estados estacionários. Um real, do qual se sairá graças ao progresso técnico; é o caso de país econo­micamente atrasado. O outro, virtual, que a longo prazo é inelutável, mas cuja chegada pode ser adiada. Adiamento possível pela extensão dos mer­cados graças ao livre-câmbio; pelo desenvolvimento do comércio interno; por processos que aumentem a fertilidade das terras ou ainda por proces­sos econômicos de utilização da mão-de-obra. (Cf- Progresso Recessivo de A. Saúvy.)

Na realidade, Malthus, no fim de sua vida, atenua sensivelmente suas conclusões pessimistas: ele adquire confiança no progresso técnico que se afirma com o desenvolvimento da revolução industrial. Ele adquire con­fiança, igualmente, na eficácia dos obstáculos preventivos dos quais ele próprio fora propagador e cujos efeitos sobre a natalidade já se faziam sentir na Europa.

Stuart Mill (Princípios de Economia Política, 1848) não considera o estado estacionário com pessimismo. Ao contrário, ele reserva suas críti­cas ao estado progressivo "no qual os economistas das duas últimas gera­ções colocavam tudo o que é economicamente desejável"; ele vê nisso, simplesmente, "uma fase desagradável do progresso industrial" e deseja "que a posteridade se satisfaça com o estado estacionário, bem antes que a necessidade a obrigue". É, pois, favorável à limitação voluntária dos nas­cimentos, "previdência judiciosa" que, com boas instituições, permitirá à humanidade "que as conquistas realizadas p-i-.s forças da natureza, pela inteligência e energia dos exploradores científicos" se tornem "a proprieda­de comum da espécie e um meio de melhorar e de elevar o destino de to­dos" (Op. cit., Livro IV, cap. VI) . Esta posição, mais filosófica que eco­nômica, aproxima o conceito do estado estacionário de Mill do conceito de Platão.

OÍ neoclássicos aceitam em geral as conseqüências do Princípio de População. As restrições que alguns formulam não põem em dúvida o próprio Princípio. Walras prefere falar de "diferenças de crescimento" en­tre população e subsistência, do que utilizar as duas progressões rigorosas de Malthus. Alfred Marshal (Princípios de Economia Política, 1890) também aceita o Princípio e suas conseqüências principais. Entretanto, como a maioria dos neoclássicos, ele recusa a teoria do fundo dos salá­rios, essencial no raciocínio de Malthus. Ele introduz sua distinção dos dois períodos e deduz dois esquemas diferentes que explicam a ação do crescimento da população sobre a economia: a longo prazo ele adota as conclusões pessimistas de Malthus e dos clássicos; mas a curto prazo sus­tenta o contrário, isto é, que o crescimento demográfico é favorável ao

Page 118: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

crescimento econômico, pois uma elevação de salários só provocará um aumento de natalidade após um prazo relativamente longo, durante o qual a melhoria do nível de vida obtido terá tempo, pelo desenvolvimento da procura, de estimular a oferta.

2. AS REAÇÕES POPULACIONISTAS

Alguns liberais clássicos da Escola Francesa não aceitam o pessimis­mo de Malthus: de um lado porque a agricultura francesa não apresenta, no início do século XIX, os graves problemas da agricultura inglesa e, de outro lado, porque a baixa da natalidade na França diminui cedo o perigo de um superpovoamento.

Há, igualmente, reações populacionistas dos autores de doutrinas de economia nacional que só verão para seus países vantagens econômicas e políticas no crescimento demográfico. Este otimismo demográfico, resolu­tamente oposto ao pessimismo- málthusiano, nós o encontramos na obra de Carey, nos Estados Unidos, assim como na de List, na Alemanha, e nas de seus discípulos. No domínio da produção, estes autores insistem sobre as vantagens de uma população numerosa: que favorece a divisão do tra­balho e deste modo a produtividade; que torna mais rendosos os investi­mentos privados e públicos; que amplia o mercado — argumento sobre o qual insistem Carey e List, que são protecionistas — e vêem assim, no crescimento da população, a possibilidade de desenvolver a economia na­cional sem recorrer ao livre-câmbio. No domínio da repartição, eles vêem, nesse crescimento demográfico, um fator favorável ao aumento da pro­cura e, em conseqüência, dos lucros; o que não apresenta qualquer in­conveniente, uma vez que a lei das saídas, que aceitam, afasta toda a pos­sibilidade de superprodução. Além disso, estes autores confiam nas possi­bilidades do progresso técnico para anular os efeitos da lei dos rendimentos não proporcionais: encontra-se em Carey e em List a afirmação otimista do progresso industrial. Finalmente, eles insistem sobre os efeitos psico­lógicos de uma população crescente sobre uma atividade econômica, tanto em matéria de previsão dos investimentos quanto em matéria de repartição.

Mas ao lado de tais considerações otimistas, resultantes de situações demoeconômicas nacionais particulares, reações violentas aparecem contra as conclusões sociais do Ensaio: elas provêm, na Europa, de autores so­cialistas.

Reações lógicas, pois Malthus se opusera, no seu Ensaio, a Godwin e ao socialismo em geral, negando a eficácia, para diminuir a miséria, das medidas legislativas, das intervenções do Estado e das reformas institu­cionais.

A oposição ao Ensaio é, pois, comum a todos os socialistas, quer "utópicos" como Fourier, Louis Blanc ou Proudhon, quer sejam "cientí­ficos". E é sobremaneira a crítica marxista que foi a mais importante e a mais violenta.

Page 119: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Marx nega, inicialmente, a existência de uma lei de população abstrata e imutável: cada período da História tem uma lei de população que lhe é peculiar. Entretanto Marx reconhece que Malthus teve razão em mostrar que a lei do superpovoamento era a lei do capitalismo. Malthus cometeu um erro, entretanto, ao considerar que a insuficiência das subsistências era a causa deste superpovoamento, quando ela se encontra nas condições particulares da repartição em sociedade capitalista e nas do regime d propriedade privada.

A reação é, antes de tudo, sentimental, contra as conseqüências sociais do Ensaio como elas são expostas, por exemplo, na "'parábola do Ban­quete". A reação é política, também; Marx mostra que a tese de Malthus é apologética, uma teoria de classe que tende a justificar os direitos da burguesia capitalista. Por essa razão, a crítica marxista do malthusianismo se integra na sua concepção da luta de classes, concepção que só pode ser favorável a uma política populacionista, em primeiro lugar porque o au­mento demográfico, sendo um freio ao crescimento econômico (de acordo com Malthus), precipitará o "movimento das coisas" que porá fim ao regime capitalista; em segundo lugar, porque o aumento da classe operária vai acelerar o "movimento dos homens", tornando a revolução mais rápida e mais fácil.2 4

Finalmente, uma última reação populacionista aparece em fins do século XIX: a dos sociólogos. Não mais sentimental e política, como a dos socialistas; ela resulta da observação de uma situação de fato inquie-tante. A situação demográfica da França, de início, e, depois, a da Europa, se transformou, com efeito, no decorrer do século: à expansão demográ­fica do fim do século XVIII e da primeira parte do século XIX sucede uma baixa da natalidade em todos os países da Europa Ocidental. Nos fins do século não é mais o excesso, mas sim a insuficiência de população que constitui perigo.

O problema demoeconômico se coloca, pois, em termos novos, e fo­ram os sociólogos franceses — ou de língua francesa — os primeiros intérpretes do perigo do despovoamento. Arsène Dumont, em 1890, no seu livro de título significativo "Despovoamento e Civilização" recusa o princípio de Malthus e, entre as causas da baixa da natalidade, ele insiste sobre a importância do comportamento dos casais, mostrando que a restri­ção voluntária dos nascimentos estava ligada à "capilaridade social", isto é, à vontade dos pais, para eles mesmos e para seus filhos, de se eleva­rem na escala social.

A necessidade de uma população numerosa, para a riqueza e o poder da nação — noção mestra da época mercantilista — c retomada com energia (Durkheim, Dupréel, Coste e outros) e reafirmada sob o ângulo sócio-econômico por Mareei Huber, Landry e Sauvy.

Falemos; finalmente, da posição da Igreja Católica, favorável no sé­culo XIX, como o foi sempre, a uma política populacionista. A vida é um

24. A r e s p e i t o d e s t a s e x p r e s s õ e s , l e r a d i a n t e p . 209 e s e g s .

Page 120: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

bem providencial ao qual não se pode impor limite: são as subsistências que devem ser adaptadas ao nível da população.

Tal posição, que é dos fundadores da Igreja e que será reafirmada pelos seus grandes doutores da Idade Média, se encontra de novo, no século XIX, nas Encíclicas, notadamente na Rerum Novarum (1891) de Leão XIII. Este populacionismo será reafirmado no século XX, seja no Quadragésimo Ano (1931) de Pio XI, na Mater et Magistra (1961) de João XXIII ou na Humanae Vitae (1968) de Paulo VI.

No Século XX:

Vê-se então que a apreciação da relação população-economia deu ensejo à coexistência de duas principais correntes de pensamento: uma, pessimista, diretamente ligada a Malthus, para a qual o aumento demo­gráfico é um fator "freio" do crescimento econômico, outra, otimista quan­to à ação do número da população sobre a atividade econômica.

Ora, no século XX duas situações de fato, opostas, darão uma impor­tância excepcional à relação demoeconômica:

De um lado, nos países "demograficamente velhos", a baixa da nata­lidade continuou, ampliada pela considerável perda de homens provocada pelas duas guerras mundiais. Isto reforçou a corrente populacionista, esti­mulou a análise demográfica e obrigou a adoção, em vários países, de medidas legislativas, fiscais e sociais, para lutar contra a baixa de natali­dade, medidas que contribuíram para o aumento dos nascimentos a partir da segunda guerra.

De outro lado, a extraordinária expansão, sem precedentes na histó­ria, da produção do Terceiro Mundo, faz com que reapareça, no plano mundial, o perigo do superpovoamento. Foi logo após o término da se­gunda guerra que se tomou consciência da realidade demográfica em escala mundial e que a situação das economias em via de desenvolvimento — demograficamente mais numerosas, territorialmente mais extensas —, le­vantando o problema da fome (ver Vogt, A Fome no Mundo, 1948) e atualizando a inquietação de Malthus, atraiu ainda mais a atenção sobre os laços estreitos entre os determinismos demográfico e econômico. E, assim como após as violentas desordens monetárias que se seguiram à Primeira Guerra Mundial os economistas tiveram que reintegrar a moeda no equi­líbrio econômico, há aproximadamente trinta anos os problemas funda­mentais surgidos com a expansão demográfica obrigaram os economistas a uma reconsideração dos dados demográficos de seus próprios problemas, levando-os a reintegrar a "variável" população na análise econômica, dan­do-lhe importância cada vez maior. Esta importância de primeira ordem do problema demográfico obrigou a pesquisa demoeconômica a sair da reflexão sistemática, de início procurando utilizar a noção de ótimo de população e em seguida aprofundando a análise da ação da variável popu­lação sobre o crescimento econômico.2 5

25. Sobre o enunciado geral destes problemas relat ivos ao ó t i m o da população e à reinte­g r a ç ã o d i v a r i á v e l demográfica na análisee econômica, nós i n d i c a m o s nosso e s t u d o : D e m o g r a -phi- | ' ' t i s , 1971, p. 294 e seg. ( t r a d u z i d o para o português pela E d i t o r a A t l a s , 1972).

Page 121: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção lil

DAVID RICARDO E A TEORIA DA RENDA

Os "Principies of Political Economy and Taxation", publicados em 1817, constituem a obra principal de Ricardo 26 e sua principal contri­buição à Escola Clássica. Escreveu-os por imposição dos fatos: na época

E n c o n t r a r - s e - ã o i n d i c a ç õ e s bibl iográficas sobre as inúmeras discussões r e l a t i v a s ao p r o b l e m a da p o p u l a ç ã o , s u s c i t a d a s na Inglaterra, pelo Essay de M A L T H U S , entre 1803 e 1883, em H. H A N E Y , History of Economic Thought; 3." ed., N o v a Iorque, 1936, p. 279.

26. R I C A R D O (1772-1823) nasceu em L o n d r e s . Corretor da Bolsa, consegue fazer imensa fortuna. A partir de 1799, após a leitura da Riqueza das Nações, consagra-se a estudos profun­dos sobre os princípios da ciência econômica. Suas obras espelham os a c o n t e c i m e n t o s e as a g i ­tações de época sob o â n g u l o da ciência. A opinião p ú b l i c a se mostrava preocupada com a de­preciação das notas de banco, em conseqüência da guerra contra a França. R I C A R D O aborda o problema e o trata, a princípio, de maneira anônima ( c o m o M a l t h u s o fizera na primeira edi­ção de seu Essay), sob a forma de Cartas ao Morning Chronicle (1809). M e s e s d e p o i s , dá às suas idéias maior d e s e n v o l v i m e n t o e uma forma m e t ó d i c a , publicando, desta v e z com o seu nome, o primeiro e s t u d o : The High Price of Bullion a Prof of the Depreciation of Bank Notes. Os princípios e m e d i d a s aconselhados nesse tratado são adotados, alguns meses m a i s tarde, pela comissão de metais preciosos, constituindo, entretanto, objeto de certas crí t icas ( p a r t i c u l a r m e n ­te por parte de B o s a n q u e t ) . Em 1811 R I C A R D O responde e refuta estas c r í t i c a s na Reply to Mr. Bonsaquet's Practical Observation of the Bullion Committee.

Como fossem posteriormente discutidas as leis aduaneiras relat ivas à i m p o r t a ç ã o do trigo estrangeiro e, portanto, e s t i v e s s e em j o g o todo o problema agrícola, publica R I C A R D O , em 1815, o seu Essay on the Influence of a Law Price of Com on the Profits of Stoçk, no qual estuda a questão a t r a v é s de suas repercussões nos lucros e no salário.

Em 1816 p u b l i c a suas Proposals for an Economical and Scure Currency, com o b s e r v a ç õ e s sobre os lucros do B a n c o da Inglaterra, e, em 1817, a sua grande obra: On the Principies of Political Economy and Taxation ( traduzida para a l í n g u a portuguesa por C á s s i o M a c h a d o F O N ­S E C A , 1937). E s t e l i v r o não se d e s t i n a v a ao p ú b l i c o ; pensam alguns ha v ê - l o escri to o autor por mera s a t i s f a ç ã o p e s s o a l ; crêem outros — tais c o m o R O S C H E R e F O N T E Y R A U D — h a v ê --lo destinado R I C A R D O a um público restrito e e s p e c i a l i z a d o , composto de homens de n e g ó c i o s e estadistas. De fato, trata-se de uma série de estudos sobre as principais q u e s t õ e s da econo­mia p o l í t i c a : o valor, os p r e ç o s ; *a renda, os lucros e os s a l á r i o s ; a indústria e o c o m é r c i o ; a moeda e os b a n c o s ; os impostos, sob seus p r i n c i p a i s aspectos e incidências.

F a l t a à obra um plano de conjunto. C o m o quer que seja, se as partes de que se compõe pecam, quanto à forma, por ausência de a r t i c u l a ç ã o entre si, o mesmo não se pode dizer das idéias fundamentais , int imamente l i g a d a s a t r a v é s d e s s a s diferentes partes.

São p r i n c i p a l m e n t e os problemas r e l a t i v o s à r e p a r t i ç ã o que R I C A R D O estuda em suas Car­tas a M A L T H U S ( e d i t a d a s por J . B O N A R em 1889 e ci tadas por I N G R A M ) . R I C A R D O deixa bem nít ido o seu ponto de v i s t a : "A E c o n o m i a P o l í t i c a , pensais, é um estudo sobre a natureza e as c a u s a s da r i q u e z a ; para mim seria preferível defini-la como a b u s c a das le is que presidem à d i v i s ã o da produção industrial entre as c l a s s e s que colaboram na sua f o r m a ç ã o . "

Seus Principies t i v e r a m imenso sucesso — 3 foram as suas edições, em v i d a do autor — e provocaram c o n t r o v é r s i a s tão apaixonadas como as que acolheram o l ivro de M A L T H U S .

R I C A R D O e m p r e g a , em suas obras, p r i n c i p a l m e n t e o método dedutivo. M u i t o s o censura­rão por isso, ac usan do-o de haver, assim, i m p r e g n a d o toda a E s c o l a C l á s s i c a de uma estéril a b s t r a ç ã o ; a c h a r a m outros, ao contrário, ter sido g r a ç a s ao emprego desse m é t o d o que se im­primiu à E s c o l a C l á s s i c a o impulso científ ico suficiente para não somente lhe p e r m i t i r dominar o pensamento e c o n ô m i c o durante grande parte do século X I X , como ainda s o b r e v i v e r , a t u a l ­mente, nas teorias das escolas hedonistas.

Em 1819 é R I C A R D O eleito para a C â m a r a dos C o m u n s . Em 1821 funda, em L o n d r e s , o Clube de E c o n o m i a P o l í t i c a — primeira sociedade desse gênero.

F a l e c e em 1823, d e i x a n d o uma obra m o n u m e n t a l , que lhe valeu ser c l a s s i f i c a d o c o m o o maior teórico da E s c o l a C l á s s i c a e um dos m a i o r e s e c o n o m i s t a s .

Sobre R I C A R D O l e r : A l c i d e F O N T E Y R A U D : Notice sur la Vie et les Travaux de Ricardo, in Oeuvres Completes

de D. Ricardo, P a r i s , 1847; J. R. M A C C U L L O C H : Mémoir, na introdução das suas WorJcs of David Ricardo, 1846; D I E H L : Sozialwissenschafliche Erlaeuterungen zu David Ricardos Grundgesetz des Wolkswirtschaft und Gesteurung, L e i p z i g , 1905; G L O S H : A Study of Enghsh Theory of Rent, 1900; H O L L A N D E R : David Ricardo, in A Centenary Estimale Johns Hopkins University Studies in Historical and Political Science, 28. a série, n.° 4, B a l t i m o r e 1 9 1 0 ; B. B O L D E S : Ricardo, in Jahrbuecher fuer Nationaloekonomie, 1920; P A T T E N : Malthus cardo, A m e r . E c o n . A s s . Pub. , 1889; A. G R A Z I A N I : Ricardo e Stuart Mill, 1 9 2 1 ; J. R- T U * J -N E R : The Ricardian Rent Theory, in Early American Economy, N o v a Iorque, 1 9 2 1 : A. A M -M O N -.Ricardo al Begruender der theoreti chen Nationaloekonomie, Iena, 1924; A. L O R I A : D. Ricardo, R o m a , 1926; G . S E N S I N I : L a Teoria delia Rendita; H . B I A U J E A U D : E s s a J J*}1* / * Théorie Ricardienne de la Valeur, Paris, 1934 (prefácio do Prof. P i r o u ) ; E N C I C L O P É D I A B R I T Â N I C A , vb. Ricardo (estudo scbre sua vida e suas obras) , 9." e d ' ç ã o . B u r t F r a n k l i n e G. L i z m a n : D. Ricardo and Ricardian Theory. A Bibliographical cheklist, N. Y . , 1949. 1̂ 1

Page 122: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

em que compôs seu grande livro, o problema preponderante era o conflito entre os interesses da indústria e os da agricultura.

Esse antagonismo se acirra ao ser suspenso o bloqueio continental: percebe a Inglaterra que, por diversas razões, entre elas o monopólio da navegação, se haviam desenvolvido nos anos anteriores, no continente, indústrias que faziam agora concorrência às exportações inglesas.

Para poder competir nos mercados exteriores, necessário seria às in­dústrias britânicas reduzir o preço de venda e, portanto, o custo de pro­dução. Ora, esse custo de produção dificilmente poderia ser comprimido em virtude do elevado custo de vida na Inglaterra. Às tarifas protecionistas do trigo parecia caber a responsabilidade do encarecimento da vida.

O agricultor e os proprietários fundiários, sob a proteção das "Corn--Laws", 2 7 percebiam tranqüilamente, as suas rendas, enquanto os indus­triais e capitalistas lutavam procurando manter e desenvolver a produção e a sua renda. Tudo indicava, pois, impor-se uma opção entre os interesses da classe industrial e capitalista e o da classe agrícola.

Ricardo analisa o problema nos seus "Principies" e, com a sua célebre teoria da renda, vai indicar que as reivindicações dos industriais e dos ca­pitalistas eram procedentes e deviam ser atendidas, ainda que com o sa­crifício dos proprietários fundiários; conclui pela supressão das taxas so­bre a importação de cereais.

§ 1." — A teoria da renda

1. EXPOSIÇÃO DA TEORIA

Partindo, assim, do estudo de um problema particular, de grande importância prática, chega Ricardo à elaboração de uma teoria da renda, abstrata e geral. 2 8

Ricardo se inspira nos fatos que o cercam; mas, ao dar início à elabo­ração da sua teoria, afasta-se do meio que observa e se coloca no plano do raciocínio puro. Reporta-se a uma época indeterminada onde, posto o homem — o homem de todos os tempos, aquele que os autores da Escola História chamarão, não sem ironia, de homo oeconomicus — ante opu­lentas terras livres, ele as escolhe e ocupa.

E, formulando o problema nesses termos, passa Ricardo a considerar, não o realmente ocorrido no passado, mas o que logicamente devia ter acontecido.

27. Cf. P R ^ N T I C E : History of the Anti-corn Law League, 1853. 28. R I C A R D O , já na primeira p á g i n a do prefácio de seu l ivro, reconhece ter sido "a dou­

trina da renda" estudada antes dele por M A L T H U S (Inquiry into the Nature and Progress of Rent, 1815) e por E d w a r d W E S T ( O n the Application of Capital to Land, 1815). M a s , de fato, James A N D E R S O N , já em 1777, h a v i a indicado os principais dos seus aspectos nas suas Obser-vations on the Means of exciting a Spirit of National Inóustry. C a b e , entretanto, a R I C A R D O o mérito de ter dado a este estudo um d e s e n v o l v i m e n t o c o m p l e t o e uma forma científica.

Page 123: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O homem — pensava ele —, tendo a possibilidade de escolha, ocupou para o cultivo, em primeiro lugar, as terras mais férteis. O preço de custo, em todas essas fertilíssimas terras, é um único, para qualquer de seus proprietários. Estes vendem o produto, que é da mesma qualidade, ao mesmo preço; realizam um lucro, igual para todos: não há renda. Mas — de acordo com a lei de Malthus — a população aumenta. Para nutri-la, novas terras tiveram de ser lavradas. E, como as cultivadas em primeiro lugar eram melhores — e limitada, por hipótese, a sua quantidade —, as que vão ser exploradas em seguida serão de fertilidade inferior.2 9

Para essas terras de segunda categoria, o preço de custo dos produtos será mais elevado. Esse preço de custo constituirá o regulador do preço de venda, porque — em função da lei da unidade dos preços ou da indi- • ferença —, em um mesmo mercado não pode haver, em dado momento, senão um preço único para produtos de qualidade semelhante. E, real­mente, não pode ser de outro modo. Se o preço de venda fosse inferior ao de custo dos produtos das terras de segunda categoria, deixariam essas terras de ser cultivadas, o que não é possível, pois a cultura delas foi di­tada pelo aumento da procura dos produtos alimentícios em conseqüência do crescimento da população. Os proprietários das terras de primeira ca­tegoria vendem, portanto, seus produtos por preço igual ao dos produtos das terras de segunda ordem. Obtêm, com isso, um lucro suplementar, independente do trabalho e do capital consagrado à produção. A renda nasceu no dia em que esse lucro foi obtido. E, uma vez criada, jamais deixará de crescer. Admite — sempre em função da lei de Malthus — aumentar o volume da população progressivamente. Os preços continuam, pois, a subir; as terras de terceira categoria passam a ser exploradas e, por serem menos férteis, implicam um preço de custo mais elevado que o das de primeira e segunda categorias.

Os preços de venda dos produtos das terras das duas primeiras cate­gorias se elevarão, portanto, para ajustar-se ao preço de custo dos pro­dutos das terras de terceira categoria: surge uma renda para as terras de segunda categoria; a renda das terras de primeira categoria aumenta outra vez. E assim por diante: a população, ao aumentar o seu volume, recla­ma uma quantidade suplementar de gêneros alimentícios e, implicando isso a exploração de terras cada vez menos férteis, vai provocar o aparecimen­to de novas rendas e o aumento das taxas das rendas antigas.

Essa renda, devida à diferença de preços de custo para terras de fer­tilidade decrescente, é chamada renda diferencial.

Mas Ricardo vai mais longe em seu raciocínio. Considera o proble­ma sob o aspecto que há de revestir no momento em que todas as terras

29. N o t e - s e que R I C A R D O admite o princípio da raridade relativa da terra m a i s fértil. E s s a c o n c e p ç ã o faz com que a sua noção de renda surja como conseqüência da avareza da terra. Note-se aí a fundamental divergência com a n o ç ã o de "produto l íquido" dos f is iocratas, p r o v e ­niente da generosidade, da fecundidade da natureza. A noção de renda conduz ao pessimismo, enquanto a de produto líquido é uma a f i r m a ç ã o de ot imismo. A noção da renda i m p l i c a a idéia de luta do homem contra a natureza; a renda, escreve muito judiciosamente R I C A R D O , "é uma c r i a ç ã o de v a l o r , não de riqueza".

Page 124: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

disponíveis já estiverem sendo exploradas: nesse momento, como a popu­lação continua crescendo sempre, os preços prosseguem em ascensão. Essa alta vai proporcionar aos proprietários das terras exploradas em último lugar — as terras chamadas marginais — uma renda suplementar, isto é, uma renda que não provém do fato de se passar a explorar terras de ferti­lidade inferior. Não se trata de uma renda diferencial, mas de uma renda absoluta, que se chama renda de monopólio. Ricardo entrevê este aspecto absoluto da renda, mas não irá aprofundá-lo. Preocupar-se-á, sobretudo, com outro aspecto do problema geral. k

Quando se torna necessário lavrar novas terras menos férteis, os pro­prietários de terras de categorias superiores, para aproveitar a alta dos preços proporcionada por uma procura crescente de produtos, procuram intensificar a produção das suas antigas terras.

Essa cultura intensiva provocará a estabilidade ou a redução da ren­da? Nem uma nem outra coisa, responde ele, pois muito em breve os proprietários esbarrarão com a lei do rendimento decrescente, já entrevis­ta por Malthus. Essa lei vai impedir se dê a frustração do fenômeno da" renda. E, o que é mais importante, atuará ainda de modo a não obstar o fenômeno da renda, e, sim, facilitar a sua ocorrência. Com efeito, para se obterem os produtos suplementares por via da cultura intensiva, é pre­ciso incorporar quantidades — cada vez mais ponderáveis e maiores — de trabalho e capital. É, portanto, indispensável remunerar esses dois fatores produtivos. Ora, o capital, principalmente, vai produzir um rendimento decrescente — sempre em virtude da lei do rendimento não proporcional — e a sua remuneração, tratando-se de capitais investidos em último lu­gar, será, pois, menor do que a dos capitais empregados no início da in­tensificação da cultura; os capitais primeiramente incorporados, aqueles cujo rendimento in natura é maior, vão gozar da vantagem de um rendi­mento suplementar que também constitui uma renda do capital e se so­brepõe à da terra. Dessa maneira a ascensão da renda não será nem frustrada nem retardada.

A renda surge, assim, como um fenômeno cuja expansão se dará, perpétua e indefinidamente, à medida que o globo se povoa.

Ricardo tem, entretanto, o cuidado de indicar independer essa alta da vontade do proprietário fundiário. (Karl Marx insistirá, igualmente, nesse ponto, isentando, assim, o empreendedor capitalista de responsabili­dade pela maior valia.) A renda não constitui a causa do preço elevado, mas sim o seu efeito. "O.trigo não é caro por se dever pagar uma renda, mas ao contrário, por ser o trigo caro é que se paga a renda." E mais ainda: "A elevação da renda é sempre o efeito da riqueza crescente do país e da dificuldade de garantir alimento à sua população aumentada. Ê um sintoma e nunca uma causa de riqueza" (Principies, edit. 1821, p. 56).

Ainda que os proprietários fundiários se recusassem a perceber ren­da, o preço dos produtos agrícolas não deixaria de subir; essa alta é devi-

124 da à imperiosa necessidade de — sob a pressão demográfica — se culti-

Page 125: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

varem terras cuja fertilidade é cada vez menor e de se lhes incorporar mais trabalho e capital.

Como quer que seja, voluntariamente ou não, verdade é que o pro­prietário territorial percebe uma renda cada dia mais ponderável. E, en­quanto isso, os salários e os lucros vão decrescer.

O total da venda dos produtos agrícolas se divide em três partes. Uma é destinada aos proprietários territoriais: é a renda. A outra remu­nera o trabalho: é o salário. A terceira paga os capitalistas: é o juro, a que Ricardo chama de lucro (confundindo, assim, o juro, remuneração do capitalista, com o lucro propriamente dito, ou seja, a remuneração do empreendedor).

A medida que aumenta, nesse total, a parte atribuída à renda, as re­servas ao salário e ao lucro diminuem.

O operário fica de certo modo comprimido entre a alta de preços de­correntes da necessidade de explorar terras cada vez menos férteis, de um lado, e, de outro, a baixa dos salários, em conseqüência de o aumento do número de trabalhadores ser mais rápido do que a procura de mão-de--obra. "No desenvolvimento natural das sociedades — escreve Ricardo — os salários, enquanto forem regulados pela lei da oferta e da procura, ten­dem a baixar, pois o número dos trabalhadores continuará a crescer um pouco mais rapidamente do que a procura da mão-de-obra."

Sem dúvida, admite Ricardo haja um aumento do salário nominal, pa­ralelo com a alta do preço dos gêneros alimentícios, enquanto o salário real, sofrendo a pressão da oferta de mão-de-obra, tende a cair.

Quanto ao lucro (isto é, repitamo-lo, a parte que toca ao capitalista no preço do produto), continuará a se restringir, uma vez que a parte da renda vai aumentar.

Ricardo conclui, pois, afirmando apresentar o lucro uma tendência para a baixa. Reduzindo-se o lucro do capital, a poupança, descoroçoada pela diminuição da taxa de juros, decresce. E, como a poupança atua no sentido de concorrer para a expansão da indústria, esta sofrerá as conse­qüências desastrosas da redução dos lucros e, portanto, da elevação da renda.

Eis o essencial de Ricardo. Vê-se que sua teoria — em face do pro­blema do antagonismo existente entre a agricultura e a indústria, com o qual se defronta a opinião pública de seu tempo — ia em auxílio da tese industrialista, com prejuízo daquela defendida pelos proprietários territo­riais. E, com base nessa teoria, propugna Ricardo a adoção de uma po­lítica econômica tendente, nesse campo, à supressão das taxas sobre a im­portação de cereais.

Page 126: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

2. APRECIAÇÃO DA TEORIA

Para apreciar a teoria de Ricardo é preciso distinguir os dois aspec­tos diferentes da explicação por ele dada.

Ricardo, com a sua teoria, pretende, em primeiro lugar, dar explica­ção de um fenômeno circunscrito no tempo e no espaço: a alta da renda fundiária, no século XIX, na Inglaterra.

A explicação que fornece, mediante a aplicação da lei do rendimento não proporcional aos casos nos quais se vê o homem forçado a explorar terras de fertilidade decrescente ou a empregar quantidades, cada vez mais ponderáveis, de capital e trabalho, com rendimento menor, não suscita sérias críticas.

Mas, quando pretende Ricardo extrair dessa teoria uma explicação não apenas de ordem particular, mas também de valor absoluto e geral, extensiva a todos os casos de renda fundiária, surgem numerosas e bem fundadas críticas à sua teoria.

A ordem de exploração das terras, adotada por Ricardo, correspon :

de ao ocorrido em seu país, principalmente entre 1795 e 1315, durante o bloqueio das ilhas britânicas. Mas, não constitui uma lei histórica imu­tável. O economista norte-americano Carey 30 contesta Ricardo, apresen­tando uma ordem inversa de exploração das terras.

Tomando para exemplo o que se passa em um país novo, mostra co­meçarem os primeiros imigrantes pela exploração das terras menos férteis, e isso não só por se tratar de terras situadas nas elevações e, portanto, mais seguras, ao abrigo de invasões e incursões hostis, mas também por serem de fácil cultivo, uma vez que, recoberta de vegetação agreste, me­nos penoso é o seu desbravamento. O imigrante, sendo um operário que dispõe sobretudo da força dos seus braços e, por vezes, de um pequeno capital para aquisição de ferramentas e máquinas caras, dará por certo preferência às terras fracas das encostas, abandonando as situadas nos va­les férteis. Aliás, convém notar que a História confirma essa ordem de exploração mesmo na Europa.

Mas, à medida que a população aumenta, passam os homens a explo­rar as terras férteis. Por conseguinte, essa ordem de cultura, ao invés de dar origem a uma renda, dá margem a uma possível baixa progressiva do preço dos produtos e daí, também, do valor da terra.

Desse confronto histórico, oposto por Carey e Ricardo, não se deve concluir ser necessariamente falsa uma ou outra dessas teorias. E isso porque se, na verdade, descreve Carey com justeza o processo de explo­ração correspondente a uma primeira fase da evolução econômica, Ricardo dá uma explicação satisfatória, sem dúvida, para os países onde as terras férteis já estavam ocupadas, como era o caso da Europa de então, o qual se generalizou depois, estendendo-se à América do século XX.

30. C h a r l e s H e n r y C A R E Y (1793-1879), em uma de suas obras, publ icada em 1848, The Past. the Present and the Future, estuda, em especial, a teoria da renda.

Page 127: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Será de se admitir, portanto, a possibilidade de uma elevação inces­sante do preço dos produtos agrícolas, onde as terras férteis estão sendo exploradas? Parece que, tal como se deu em relação à parte histórica da sua doutrina, houve também, quanto a essa tendência para alta, uma ge­neralização indevida por parte de Ricardo. A idéia que lhe serve de ponto de partida, isto é, a existência da lei de rendimento decrescente na agri­cultura, é exata. Todavia, demonstraram no século XIX a possibilidade de tornar-se tal lei inoperante — como de fato tem acontecido pelo me­nos até ao presente — graças ao progresso técnico da agricultura e ao prodigioso desenvolvimento dos meios de transporte, fenômenos esses que jamais podem ser postos de lado ao se tratar de problemas de Economia I Política. Enquanto Ricardo acreditava ser inevjtável a alta, como decor-rência do funcionamento da lei dos rendimentos decrescentes, a experiên­cia mostrou existir apenas possibilidade de entrar em ação, uma vez que a técnica se tem revelado, até agora, mais forte do que ela. As estatísticas — especialmente as relativas à Inglaterra, França e Alemanha — provam haver a renda, após um período de elevação, mais ou menos entre 1800 e 1875, baixado na mesma pronorção, no último quartel do século.

Vemos que os fatos confirmam a teoria da renda, se não em sua es­sência, pelo menos na maneira pela qual se vêm comportando até agora.

Aliás, apresenta a teoria da renda, de Ricardo, uma deficiência no plano puramente científico, a qual consiste no fato de descurar ele, siste­maticamente, o fator procura, para considerar tão-somente a oferta, isto é, o custo de produção.

Stuart Mill evitará esse erro mostrando ser perfeitamente possível a terra produzir uma renda, afora a hipótese de diferença de fertilidade. No caso, por exemplo, de se tornar necessária à cultura toda a terra do país, esta, qualquer que fosse a sua qualidade, daria uma renda. Ricardo entre­viu apenas o efeito da raridade na formação da renda. E por essa razão — conforme tivemos já oportunidade de indicar — não atribui a devida importância ao fenômeno da renda absoluta.

Como quer que seja, essa teoria — a despeito de incompleta — põe em evidência o aspecto científico do fenômeno da renda. Sua influência é grande na evolução dessa noção de capital importância.

3. EVOLUÇÃO DA TEORIA DA RENDA

Três correntes doutrinárias, apropriando-se dessa teoria, imprimirão à sua evolução sentidos diversos e, às vezes, até opostos.

— O socialismo — sob forma agrária e geral — vai, nas pegadas de' Ricardo, afirmar a noção de renda;

— os liberais otimistas vão, ao contrário, concluir pela negação da renda;

— os economistas modernos, enfim, não somente reafirmarão a exis­tência da renda, mas ainda ampliarão o alcance do fenômeno, ve­rificável em todos os diferentes setores da Economia Política. 127

Page 128: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Resumamos o essencial dessas três correntes. a) Stuart Mill, conforme observamos, retoma a teoria ricardiana e

a completa, pois leva também em consideração o fator procura. E chega assim a afirmar a existência da renda absoluta ao lado da renda diferen­cial. É sobretudo aquela, sob a forma imobiliária urbana, que lhe inte­ressa. Stuart Mill, que é um clássico, a despeito de, em muitos pontos, aproximar-se do socialismo — conforme veremos —, opina pela confis-cação da renda de monopólio nas cidades, mediante a imposição de um tributo, onerando as sobrevalias imobiliárias. Essa idéia vai, nestes últimos anos, encontrar aplicações principalmente na Inglaterra e na Alemanha.

Na Grã-Bretanha, Spencer, sociólogo individualista, preconiza a na­cionalização do solo, justificando-a em razão da existência da renda. Na América, Henri George, em seu famoso livro "Progresso e Pobreza", ex­plica a alta de preços e o paradoxo do aumento da produção a par da miséria, através da renda. Na Itália, Aquiles Loria faz do abuso da pro­priedade fundiária o tema principal de suas doutrinas.

E mesmo as formas utópicas do socialismo aceitam a idéia de renda e Proudhon, particularmente, a utilizará.

Mas será sobretudo o socialismo científico que, apossando-se dessa idéia, a integrará em sua doutrina. Marx introduzirá, assim, a noção de renda na sua teoria da "sobrevalia", cuja importância será ulteriormente indicada. E, de dedução em dedução, concluirá ser a propriedade imobi­liária um instrumento aperfeiçoado de exploração da mão-de-obra. Seme­lhante conclusão levará o marxismo a se bater pela nacionalização da terra.

b) A noção de renda, se por um lado se afirma com os socialistas, tornando-se um dos elementos mais violentos de sua doutrina revolucio­nária, vai, por outro, sofrer sorte inversa com os autores da escola libe­ral otimista.

O americano Carey servindo-se, conforme dissemos, de argumentos históricos, nega a possibilidade de existência da -enda. Ou, pelo menos, a ordem de exploração das terras, por ele adotar a em contraposição à de Ricardo, leva-o a eliminar a noção de renda crescente — ou positiva — para adotar a de renda decrescente — ou negativa.

Frederico Bastiat usará outro processo para negar a existência de ren­da, qual seja o de atribuir às diferenças de habilidade entre os agriculto­res, e não à fertilidade das terras, o fato dessa desigualdade de rendimen­to da terra. Nessas condições as diferenças de preço de custo, aí verifica­das do mesmo modo que na indústria, são explicadas pela maior ou menor capacidade do chefe da exploração agrícola e não por causas naturais. Em outros termos, Bastiat, eliminando a existência de diferenças de fertilidade das terras, com isso suprime a noção de renda.

Esta é, sem dúvida, uma tese exagerada, contém uma parte de verda­de, muito descurada por Ricardo, qual seja, a importância do papel de­sempenhado pelo agricultor na obtenção do rendimento das terras; mas

Page 129: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

contém também uma parte falsa, precisamente a consistente nessa elimi­nação das diferenças de fertilidade das diversas terras, as quais constituem, sem dúvida, o fator primordial da desigualdade de rendimentos.

c) Os economistas modernos vão incumbir-se de ressuscitar a noção de renda, ampliando ao mesmo tempo o campo de sua aplicação aos seto­res mais diversos da Economia Política.

Reagindo, — conta Carey e Bastiat — a princípio as escolas moder­nas, principalmente as hedonistas, admitirão a renda como uma realidade indiscutível.

Com Ricardo, reconhecem a existência da renda territorial; com Stuart Mill, a da^ imobiliária urbana. Mas vão além. Admitem a existên­cia de renda, não somente na agricultura e nos terrenos urbanos, mas também nos demais setores da produção e no da indústria em particular. O fato de se distribuírem as indústrias geograficamente, disseminando-se pelas diversas partes de um território, proporciona-lhes vantagens decor­rentes dessas diferenças de localização. Ficam, assim, umas mais outras menos, afastadas dos centros de aprovisionamento e de entrega, servindo-se de meios de transporte, vários também etc. Tudo isso constitui outras tan­tas causas de renda, existentes tanto dentro dos limites da região quanto da nação e do mundo. Eis como a noção de renda se aproxima da de lu­cro: torna-se difícil separar as partes que, no custo da produção, devem ser atribuídas, respectivamente, ao homem e ao meio. E isso tanto mais quanto o mérito de um bom empreendedor consistirá, muitas vezes, na es­colha do lugar mais apropriado à sua indústria ou ao seu comércio.

Isso leva as escolas modernas à convicção cie não haver renda dife­rencial alguma ilegítima por si mesma. E, então, o alvo único dos ataques passa a ser a renda absoluta, renda de monopólio, que não se justifica, quer pelas diferenças das qualidades humanas quer das físicas.

O conceito de renda passa, então, a abranger o vasto quadro da produção, tendendo, cada vez mais, a aplicar-se a todos os seus fatores. Estende-se, igualmente, ao campo do consumo, passando, então, a justi­ficar-se da seguinte maneira:

Em dado momento existe, no mercado, um preço único para os pro­dutos de uma mesma qualidade. Ora, as necessidades do consumidor são diferentes. E acontece satisfazer-se a mais premente ao mesmo preço da satisfação de outra menos intensa. Um homem faminto comprará, por exemplo, o pão ao mesmo preço pago por outro indivíduo cujo apetite é apenas perceptível. Entretanto, de tal modo essencial era a necessidade do primeiro que, para satisfazê-la, se disporia a pagar muito caro o pão, pelo menos um preço mais elevado do que aquele que estaria o segundo disposto a pagar. O primeiro é, portanto, favorecido com uma renda. Essa é uma noção deduzida da noção de utilidade marginal e carinhosamente desenvolvida pelos economistas da Escola Psicológica austríaca.

Page 130: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Não há um só exemplo de extensão que não se faça em detrimento da profundeza e da força: a noção de renda, ao se ampliar, perde algo de sua autoridade.

Com Ricardo tem, pois, a teoria da renda seu ponto de partida cien­tífico.

Considerável é a influência por ela exercida. Ao evoluir essa teoria, conforme acabamos de indicar, inúmeras foram as aplicações dos diferen­tes conceitos de renda. Mas essa influência se fez sentir sobretudo na so­lução de problemas gerais de magna importância. *

Com efeito, uma vez aceita a teoria ricardiana da renda, a agricultu-" ra é atingida. A produção agrícola, reabilitada com tanto esforço pelos

fisiocratas e respeitada por Smith, é seriamente combatida. Ela sai como que marcada pelo vício da avareza, que não lhe atrai qualquer simpatia nem lhe permite reivindicar qualquer privilégio. Mas, o mais grave é que, se exata a teoria da renda, a ordem providencial dos fisiocratas e a har­monia entre os interesses privados e o geral tornam-se discutíveis. Se os interesses dos proprietários territoriais, simbolizados na renda, devem ex­pandir-se em detrimento do interesse dos capitalistas, dos assalariados e dos industriais, não há mais harmonia, porém conflito; não há acordo, mas sim antagonismo. E todo o sistema da ordem natural de Smith, bem como as próprias bases do liberalismo, sofre profundo abalo.

E, tal como se dera em relação à lei da população de Malthus, sus­cita a teoria ricardiana da renda, quer no campo econômico quer no plano filosófico, e, assim, também no religioso e no político, o grave problema do otimismo e do pessimismo. Esse pessimismo, peculiar tanto a Ricardo como a Malthus, dará um tom sombrio à teoria geral da Escola Clássica inglesa.

Limitar a explanação da obra de Ricardo ao exame da sua teoria da renda é indicar um dos aspectos de sua obra. Mas é, brevitatis causa, apontar o mais importante deles, assinalando, no quadro da doutrina clás­sica, a contribuição mais positiva e original deste autor que, depois de Smith, é o seu representante mais autorizado e original.

§ 2.° — A teoria do valor de Ricardo

Ricardo desenvolveu uma teoria do valor baseada no trabalho, a qual, sendo um prolongamento da teoria de Smith, constitui, todavia, uma ela­boração mais sistemática. Teremos oportunidade de indicar a sua princi­pal influência quando estudarmos a teoria do valor de Marx, que, por sua vez, é um prolongamento da teoria ricardiana.

Limitamo-nos, por ora, a resumir suas principais idéias. Ricardo rejeita a utilidade — isto é, a capacidade que tem uma coi-

130 sa de satisfazer nossas necessidades — como causa e medida do valor.

Page 131: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Distingue duas categorias gerais de bens:

— primeiro, os bens não suscetíveis de reprodução ( c o m o os quadros de um grande artista m o r t o ) : o valor desses bens tem por causa e medida a sua raridade; seu valor oscila à mercê da oferta e da procura, sem ponto algum de equilíbrio;

•— em seguida, os bens suscetíveis de reprodução indefinida, a um mesmo preço de custo: é o caso mais geral.

Enquanto Smith distinguira o período primitivo — no qual o traba­lho era o regulador do valor — do período moderno, em que o regulador do valor é o custo de produção —, Ricardo, abandonando essa distinção, afirma ser o valor — em todas as épocas — determinado pelo trabalho.

E, ao passo que Smith anunciava uma "relação de concordância" apro-ximativa entre o trabalho e o valor, afirma Ricardo existir entre os dois uma relação estrita, absoluta.

"Considero o trabalho — escreve em seus "Principies" — como a fonte de todo valor e a sua quantidade relativa, a medida que regula, qua­se que exclusivamente, o valor das mercadorias."

Por trabalho entende Ricardo o trabalho acumulado, isto é, a soma de todos os trabalhos exigidos para se chegar finalmente à produção da riqueza. Por conseguinte, associa Ricardo ao trabalho, em certa medida, o capital. Serve-se de uma idéia acidentalmente expressa por Smith: "O valor de um par de meias de algodão — observa Smith — depende do trabalho acumulado pelo operário que as teceu, adicionado ao trabalho acumulado pelas pessoas que prepararam e transportaram o algodão, ao dos que o cultivaram e ao dos que fabricaram as máquinas etc."

Ricardo daí deduz não ser possível ao operário adquirir, com o seu salário, o produto de seu trabalho. Mas não desenvolve as conseqüências sociais do seu raciocínio.

O trabalho, portanto, é a causa do valor; não há valor sem trabalho. 3 1

3 1 . E s t a teoria d o v a l o r - t r a b a l h o é u m d o s p o n t o s fracos d a E s c o l a C l á s s i c a . D e h á muito estão os e c o n o m i s t a s concordes q u a n t o à i n e x a t i d ã o dessa teoria. O próprio R I C A R D O tinha c o n s c i ê n c i a das imperfeições de s u a t e o r i a . " N ã o estou satisfeito com a e x p l i c a ç ã o que dei dos princípios que r e g e m o valor. E u g o s t a r i a q u e a l g u é m mais experimentado o f , z e s s e . " ( C a r t a a M a c C u l l o c h , 18-12-1819.) A m a i o r i a d o s s o c i a l i s t a s abandonou-a i g u a l m e n t e , após os traba­lhos das e s c o l a s hedonistas sobre o a s s u n t o . C o m efeito, o trabalho não pode, por si só, e x p l i ­car sat isfatoriamente o valor. M e s m o p a r a S M I T H e R I C A R D O a teoria d o v a l o r - t r a b a i h c não era p a s s í v e l de a p l i c a ç ã o g e r a l : n ã o e x p l i c a v a o v a l o r de inúmeros produtos não s u s c e t í v e i s de reprodução. A l é m disso, para t o d o s o s d e m a i s produtos, a observação indica ser insuficiente e inexata a e x p l i c a ç ã o d o valor p e l o t r a b a l h o . E m primeiro lugar, não h á necessária concordân­cia entre o valor e o t r a b a l h o : o d i a m a n t e , p o r e x e m p l o . E x i s t e , ainda, t r a b a l h o sem valor (trabalho d e m á q u a l i d a d e ) . E m s e g u n d o l u g a r , n ã o h á concordância relativa entre o trabalho e o v a l o r ; produtos tendo e x i g i d o a m e s m a q u a n t i d a d e de trabalho têm valor diferente (produ­tos extraídos d e uma mina d e f e r r o e d e o u t r a d e o u r o ) ; e m contraposição, produtos idênticos, tendo e x i g i d o diferentes quantidades d e t r a b a l h o , t ê m o mesmo valor (lei d a unidade dos pre­ç o s ) . E m terceiro lugar, a s v a r i a ç õ e s d o v a l o r e d o trabalho, para produtos i d ê n t i c o s , não são paralelas: as garrafas de um m e s m o v i n h o t ê m , conforme o ano, valores d i f e r e n t e s ; lotes se­melhantes d e u m m e s m o terreno, e m u m a c i d a d e e m d esenvolvimento, adquirem v a l o r e s diversos conforme as épocas.

E s t e s vários e x e m p l o s m o s t r a m q u e , e n t r e t r a b a l h o e valor, a concordância não é completa, nem relativa, n e m necessária, n e m p a r a l e l a . A teoria clássica, que repousa em uma relação causai entre o trabalho e o v a l o r , é, p o i s , f a l s a . M T T j k r . e a teoria d o v a l o r - t r a b a l n o c f . a s c o r r e ç õ e s feitas à teoria c lássica d o v a l e r por Stuart M I L L (infra, p. 139) e o p r o l o n g a m e n t o da t e o r i a do valor dos clássicos, na obra de M A R X (infra, p. 240).

Page 132: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Ao eliminar, assim, para os tempos modernos, a explicação smithiana do valor pelo custo de produção, devia Ricardo, logicamente, condenar todos os elementos da repartição, deduzidos do produto do trabalho, isto é, juros, lucros etc. Mas, ainda aqui não extrai da sua teoria todas as conseqüências. Isso será obra de Marx e dos socialistas.

§ 3.° — A moeda, o comércio internacional e o crédito

As idéias de Ricardo sobre a moeda, o comércio internacional e o édito formam um todo complementar e constituem uma interessante par­

te de sua obra. No "The High Price of Bullion", publicado em 1809, ex­põe 4«a teoria da repartição dos meios preciosos pelo mundo, teoria que Hume, em 1752 (Political Discurse, ensaio: Balance of Trade) e sobre­tudo Thorton, em 1802 ("Pesquisa sobre a natureza e os efeitos das no­tas de crédito da Grã-Bretanha"), haviam em grande parte exposto, mas que só se tornará célebre sob a forma sistemática que o nosso autor lhe soube dar.

Ricardo parte da noção de "equilíbrio monetário": em cada país exis­te, em dado momento, certo estado de equilíbrio monetário que lhe é pe­culiar, em função de sua atividade econômica, de seu sistema monetário, de sua organização bancária. Este equilíbrio independe da quantidade ab­soluta de metais preciosos existente no mundo. Nesse estado de equilíbrio os metais preciosos possuem, em cada país, a mesma capacidade de aqui­sição frente às mercadorias.

Inexistisse esta igualdade do poder aquisitivo, automaticamente ela se estabeleceria: os países estrangeiros iriam comprar nos países "barateiros"; essas operações comerciais seriam acompanhadas de movimentos monetá­rios que provocariam um fluxo de metal precioso para os países "baratei­ros" e a baixa do seu nível nos países "careiros".

O mecanismo seria, portanto, o seguinte: tomemos, de início, um país cuja balança de contas apresente um "superávit" — país "careiro". O equi­líbrio se restabeleceria por uma sucessão de fatos, cujo esquema geral é este: o excedente da balança de contas provoca entradas de ouro em quantidade igual a esse mesmo excedente; a abundância de ouro determi­na no país uma alta de preços (entrando em ação a teoria quantitativa); a alta de preços provoca um aumento das importações e uma retração das exportações; portanto, um "déficit" na balança comercial. Esse "déficit" provoca, por sua vez, saídas de ouro e, portanto, uma baixa de preços (sempre pelo mecanismo da teoria quantitativa), e esta baixa perdura até que se atinja o equilíbrio entre os preços e a distribuição do ouro. (Na

Sobre a crít ica racional do valor-trabalho, cf. obras e s p e c i a l i z a d a s e, em p a r t i c u l a r : B O E H M - B A W E R K : História Crítica das Teorias do Juro e do Capital; H. B I A . U J E A U D , op. c i t . ; E d m u n d o W H I T A K E R : A History oi Economic Ideas, cap. I X , N o v a Iorque, 1940; P a u l H U G O N : Esquema Histórico da Teoria do Valor, in Revista de Ciências Econômicas, vol . I I , n.° 5, São P a u l o , 1949; J. H. H O L L A N D E R : The Development oi Ricardos Theory oi Value, in Quarzerly Journal oi Economics, X V I I I , 1904; M E E K : Studies in the Labour Theory oi Va­lue, London, 1956.

Page 133: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

hipótese de uma balança de contas originariamente deficitária, assistiríamos a uma sucessão de fatos semelhantes aos que acabamos de descrever, po­rém em ordem inversa.)

Existe, portanto, um equilíbrio automático.3 2 E, entre países cuja "si­tuação relativa permanece inalterável", as operações de troca se regulam, normalmente, sem movimento de metal, simplesmente por intermédio de letras de câmbio. Os movimentos de metal precioso, de país a país, só se produzirão em duas hipóteses: na primeira, quando se dá em determinado país a exploração da mina de ouro descoberta. O ouro, nesse caso, obe­dece, como qualquer outra mercadoria, à lei da oferta e da procura e tor­na-se um artigo de exportação até que o mecanismo dos preços ponha fim às trocas. O país exportador de ouro recebe, em contrapartida, merca­dorias do estrangeiro. E Ricardo observa ser, nesse caso, vantajosa a si­tuação, ainda que sua balança comercial acuse um déficit, pois isso faculta a troca de uma mercadoria inútil no país — o ouro — por pro­dutos procurados em virtude de sua utilidade.

Na segunda, os movimentos internacionais do ouro se verificam quan­do se altera a situação "relativa dos países" em questão, ou seja, quando de fato um país progride mais rapidamente que o outro. Neste caso, cain­do os preços no país mais progressista, para aí aflui a moeda dos outros países.

São, portanto, os níveis relativos dos preços que regulam os movi­mentos internacionais do ouro e, por sua vez, esses dependem da quanti­dade de metal precioso que circula em dado país.

A teoria conduz Ricardo a conclusões liberais: o equilíbrio entre os preços e a repartição do ouro podem efetuar-se "automaticamente", a não ser que haja liberdade de trocas internacionais. Essa liberdade de comér­cio exterior tem, além disso, para o discípulo de Smith, a vantagem de permitir o funcionamento da divisão do trabalho entre os países. E, para o autor da teoria da renda, é igualmente um meio de lutar contra esta mesma renda e contra a sua conseqüência: a redução de lucros.

Essa teoria — retomada, em parte, na época moderna, sob a desig­nação de "paridade do poder aquisitivo" —, embora bastante criticada, é justamente célebre.

Apóia-se, em primeiro lugar, no mecanismo da teoria quantitativa, a qual, na sua forma primitiva, tem por fundamento o fato de variar o va­lor do ouro na razão de sua quantidade. Uma alta do valor do ouro sig­nifica a baixa dos preços e a queda do valor do ouro indica elevação dos preços (o valor do ouro consiste na sua capacidade aquisitiva de mercado­rias). As variações de preços são proporcionais às variações da quanti­dade do ouro. Esta teoria, sob essa forma, repousa no funcionamento da lei da oferta e da procura, mas não leva em consideração senão o ele­mento quantitativo da moeda. E, por isso, foi abandonada. Por outro

V e r A n g e l l . J . : The Theory of International Prices, C a m b r i d g e . 1926. 133

Page 134: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

lado, a teoria ricardiana faz da quantidade do ouro a causa única de suas deslocações. O raciocínio indica, e a observação o confirma, existirem muitas outras causas para tais fatos: as variações das balanças de contas, os movimentos capitais e — sobretudo nos períodos de instabilidade mo­netária e dificuldades políticas — as razões de ordem psicológica.

A fórmula de Ricardo é, pois, demasiado simplificada. Aqui, como no caso da teoria da renda, é ela passível da mesma censura, ou seja, de haver considerado exclusivamente a oferta (a quantidade), deixando de lado a procura de moeda. E é sempre colocando-se do ponto de vista da oferta que Ricardo estuda outros aspectos dos fenômenos relativos à moe­da e ao crédito.

Na sua "Resposta às Observações de Bosanquet" (1811) e, principal­mente nas "Proposições Relativas a uma Circulação Monetária" (1816), bem como no capítulo XXVII de seus "Princípios", expõe Ricardo, em particular, suas concepções sobre a moeda e sobre o crédito. Acaba por identificar a moeda com um simples "bônus de troca" qualquer que seja a sua forma: moeda metálica ou papel-moeda, conversível ou não. Como Smith, acha Ricardo que o abandono da moeda metálica pelo papel-moe­da constituirá progresso tão grande quanto o foi a sua adoção.

A idéia de ser o metal uma moeda cara e retrógrada é fundamental para as suas concepções nesse terreno. E notemos que essa estreita iden­tificação da moeda com um "bônus de troca", assim como o descrédito em que Ricardo tem a moeda metálica, constituem manifestações da reação (já muitas vezes por nós assinalada) da Escola Clássica contra a concep­ção mercantilista (e muito particularmente contra a experiência de John Law) de moeda como fonte de toda a riqueza.

A identificação da moeda metálica com a nota de banco, conversível ou não, conduz Ricardo a inúmeras conclusões: proposição de um sistema monetário de papel-moeda em circulação e de conversibilidade limitada ao metal em barra ("Propositions", 1816); plano de um banco nacional (pu­blicado somente depois de sua morte); política de deflação, visando à taxa antiga, de equilíbrio com o metal em barra etc.

O erro inicial, nesse campo, consiste ainda em considerar a moeda apenas através do prisma da oferta. Ricardo encara a totalidade da ofer­ta de moeda como reguladora da procura, o que é verdadeiro para a moe-da-ouro, mas falso para a moeda-papel. A moeda metálica é um bem que, até ao presente, tem um valor próprio a lhe assegurar uma procura igual para as qualidades oferecidas em todos os mercados do mundo, en­quanto o papel-moeda — conversível ou não — é simples título jurídico, sem valor real e cuja procura não é constante nem sempre internacional.

Além disso, a moeda metálica, do ponto de vista da procura, preen­che uma função impossível de ser exercida pela nota bancária: a de ins­trumento de reserva de valor — função não raro esquecida e sobre a qual, felizmente, os autores insistiram, em uma reação contra Ricardo. No sé-

134 culo XIX, Took ("A History of Prices and of the States of the Circula-

Page 135: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tion during the Years, 1793-1856) e, modernamente, Menger, Jevons, Walras, Wicksell, Hawtrey e, sobretudo, Ch. Rist (op. cit .) . 3 3

O mesmo erro conduz Ricardo a confundir crédito e moeda confusão que prejudicará o desenvolvimento dos institutos de crédito no decorrer do século XIX e será funesto às idéias então em vigor sobre o crédito. En­contram-se ainda traços dessa confusão nas obras de alguns economistas ingleses, posteriores à guerra de 1914.

Para terminar este breve exame das idéias ricardianas, relativas à moe-, da e ao crédito, insistiremos num dos aspectos da obra desse autor, já res­saltado quando tratamos da "renda". Em função de uma situação mone­tária e financeira particular — a da Inglaterra, por volta de 1810 — foi que Ricardo publicou seus opúsculos de 1809, 1811 e 1816. E, com de­terminado objetivo prático, desenvolveu as suas idéias sobre a matéria: o seu desejo era demonstrar a necessidade de adotarem o Governo e o Ban­co da Inglaterra uma política nova, que consistisse essencialmente em um sistema monometalista-ouro e na prática da deflação, para retornar ao câmbio antigo. Partindo dessa finalidade predeterminada e utilitária, ten­de, depois, Ricardo a imprimir aos seus raciocínios a feição e o alcance de teorias gerais. Cumpre, pois, a quem o lê, ter presente ao espírito a finalidade, particular de seus trabalhos. 3 4

Aliás, por mais severas que sejam as críticas feitas a Ricardo, relati­vamente a essas partes de sua obra, dúvida alguma subsiste quanto a ha­ver ele — dadas as suas qualidades científicas e a sua experiência — con­seguido carrear para a elucidação desses problemas, como de muitos outros, elementos não somente interessantes e úteis pelo seu valor intrínseco, mas também úteis pelas discussões que suscitaram.3 5

Seção IV

STUART MILL E A TRANSIÇÃO DA ESCOLA LIBERAL AO SOCIALISMO

John Stuart Mill ocupa um lugar especial na história das doutrinas econômicas. Interessa ao historiador por se encontrar, na sua obra, a ex­posição mais clara e completa que se poderia desejar da Escola Clássica. E também por outra razão. De fato, não se limitou ele a dar apenas uma súmula perfeita das teorias clássicas. Fez mais: introduziu uma nova or­dem de preocupações, qual seja a da busca da "justiça social". A sua

3 3 • c ' - i g u a l m e n t e a interessante obra de Gotfried K U N W A L D : Das Leben der Erwartungs undKreditwirtschaft, 1924. (A v i d a da E c o n o m i a de Crédito e des c a p i t a i s que a g u a r d a m colo­c a ç ã o . )

. 3 4 • N e s t e sentido, S. N. P A T T E N : The Interpietation oí Ricardo, in Q u a r t e r l y Journal ot E c o n o m i c s , V I I , 1893.

35 Sobre a parte monetária da obra de R I C A R D O , ler: Ch. R I S T : Histoire des Doctri­nes relatives au Crédit et à la Monnaie. P a r i s , 1938; S P R A G U E : artigo Banknotes. in Ency-í , ^ ™ ° < the Social Sciences; R . G . H A W T R E Y : Currency and Credit, 1928: Jacob H O L -L A N D E R : David Ricardo, B a l t i m o r e , 1910.

Page 136: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

obra representa, assim, a transição da Escola Clássica ao socialismo e ao intervencionismo.

136

§ 1.° — Stuart Mill a a Escola Clássica

1. Stuart Mi l l 3 6 apresenta, nos seus "Princípios", um quadro geral bastante completo das teorias e doutrinas da Escola Clássica inglesa. A or­dem e clareza de sua exposição, o seu estilo vigoroso, atraente e cheio de imagens, põem em'relevo as idéias principais dos seus ilustres predeces-sores. Essas qualidades fizeram de seu livro a fonte onde iriam haurir os economistas que lhe sucederam a essência do pensamento clássico. Daí terem sido os seus "Princípios" o livro classicamente adotado nas univer­sidades inglesas e através do qual se puseram várias gerações de estudan­tes, por mais de meio século, em contato com a Economia Política.

Limitar, todavia, a contribuição de Mill simplesmente a essa vulgari­zação da Escola Liberal inglesa seria, além de injusto, inexato. Se a Mill coube desempenhar, em relação à Escola Clássica em geral, a tarefa exe­cutada por J. B. Say, quanto à "Riqueza das Nações", enriqueceu também, como este último, a teoria clássica com importantes contribuições pessoais.

2. Mill não se contentou em elucidar a obra científica dos clássi­cos; aperfeiçoou-a e completou-a. Alguns exemplos o comprovam.

36. John S T U A R T M I L L nasceu em Londres, em 1806. É filho do economista J a m e s M I L L (1773-1836) — Elementos de Economia Política (1821) — e discípulo de R I C A R D O . D e u - l h e seu pai uma e d u c a ç ã o aprimorada. G I D E e R I S T , ao se manifestarem a esse respeito, disseram, com muita propriedade, que essa e d u c a ç ã o " v r a i m e n t surhumaine" teria feito um i m ­becil de qualquer outro que não e l e . . . Foi realmente um menino-prodígio. C o m 8 anos de idade já lia, no original , os autores g r e g o s ; aos 13, tão bons eram os seus conhecimentos de história e literatura lat inas, que escreveu uma História de Roma. J o v e m ainda, entregou-se a e s t u d o s de Fi losofia e E c o n o m i a P o l í t i c a . Os primeiros estão f i l iados à escola dos filósofos r a d i c a i s e à filosofia ut i l i tarista de Jeremias B E N T H A N . Seus estudos sobre a filosofia deste ú l t i m o ti­v e r a m início com a leitura do "Traité de Législation", de D U M O N T , leitura essa feita por o c a ­sião de sua v i a g e m à F r a n ç a (entre 1820 e 1821), onde se hospedou em casa da famíl ia de Sir S a m u e l B E N T H A M , irmão de Jeremias. E, m a i s tarde, o trato das obras dós pensadores franceses, p r i n c i p a l m e n t e de A u g u s t o C O M T E e S A I N T - S I M O N , v a i concorrer para o desen­v o l v i m e n t o d e seu p e n s a m e n t o filosófico. A s obras f i losóficas d e S T U A R T M I L L mais conhe­cidas s ã o : Systerrt oi Logic (1843), On Liberty (1859), Utilitarianism (1863), Examination oi Sir W. Hamilton's Philosophy (1865), Auguste Comte and Positivism (1865) e Three Essays on Re-ligion, obra p ó s t u m a , p u b l i c a d a em 1874. De início seus estudos econômicos f i l iam-se ao pen­samento de seu pai, portanto, à economia ricardiana. Aprofundará, a seguir, as idéias de M A L ­T H U S , incorporando-as às teorias da E s c o l a C l á s s i c a . Inspirar-se-á igualmente em outras fontes, principalmente n o s o c i a l i s m o francês utópico e n o i n t e r v e n c i o n i s m o d e S I M O N D E D E S I S M O N ­D I , S u a s principais obras econômicas s ã o : Essay on Some Unsetiled Questions of Political Eco­nomy (1829), p u b l i c a d a em 1844, e, principalmente, os Principies oi Political Economy witb Some of Their Applications to Social Philosophy. E s s a obra consagrou-lhe o nome, tendo dela saído, entre 1848 e 1871, sete edições. Em 1873 surgiu a sua Autobiography, obra interessante para a boa compreensão da e v o l u ç ã o do pensamento do autor.

Stuart M I L L ocupou, durante 30 anos — de 1823 a 1853 — importantes cargos na C o m p a ­nhia das Índias. E l e i t o membro do Parlamento, ali teve assento de 1865 a 1868. V i v e u na F r a n ç a cerca de quinze anos, lá falecendo em 1873.

Sobre Stuart M I L L , ler T A I N E : Positivisme Anglais, P a r i s , 1964, contém um estudo so­bre Stuart M I L L ; F. A. L A N G E : Mills Ansichten ueber die soziale Frage, D u i s b u r g , 1866; J. E. C A I R N E S : /. Stuart Mill, 1873: W. L. C O U R T N E Y : Metaphysic's oi J. S. Mill. 1879; Life of John Stuart M i l l , L o n d r e s , 1889; D O U G L A S : John Stuart Mill, a Study of His Philoso­phy, 1895; N e y M a c M I N N : Bibliography of the Published Writings, T. S. M i l l , I l l i n o i s , 1945; F r a n ç o i s T R E V O U X : Stuart Mill (textes choisis et préface), Paris, 1953; T H O U V E R E Z : Stuart Mill, Paris , 1908; V A I S S E T - B O A T B I E N : Sfuarf Mill et la Sociologie Française Con-temporaine, P a r i s , 1908; J. L U B A C : Stuart Mill et le Socialisme, Paris , 1902; H u g h E L L I O T : Letters of J. Stuart Mill, 1910, 2 v o l s . ; I. B O N N A R : The Economics of S'uart Mill. in Jour­nal of Political Economy. 1 9 1 1 : A. L O R I A : Versa le Gius'izia Sociale M i l ã - , 1 9 1 5 : B. A L E -X A N D E R : /. Stuart Mill und der Empirismus. 1927; I N G R A M , op. c i t . ; G I D E e R I S T , op. cit. (o cap. II do l i v r o I I I é inteiramente consagrado a Stuart M I L L ) .

Page 137: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Retoma a lei da oferta e da procura — lei essencial do mecanismo econômico clássico — no ponto onde a deixaram seus predecessores, a qual podia então ser assim resumida: o preço varia na razão direta da procura e inversa da oferta. Mill, indicando ser falha essa formulação, substitui a relação de causalidade — entre a oferta e a procura, de um lado, e os preços, de outro — pela relação funcional. Aprendeu Mill, por­tanto, com uma antecipação de cinqüenta anos, a noção de equilíbrio que servirá de fundamento ao desenvolvimento científico da moderna teoria dos preços.

À teoria do valor dá também a sua contribuição pessoal. Partindo dessa teoria, tal como fora elaborada por Smith e Ricardo, recusa-se, to­davia, a dar exclusivamente o trabalho como base direta do valor. Deixa bem claro depender o valor de duas causas principais: a utilidade e a di­ficuldade de aquisição. A utilidade consiste, na teoria de Mill, tal como na concepção smithiana, expressa agora de maneira mais precisa, na ap­tidão de satisfazerem as coisas às nossas necessidades. Uma coisa só tem valor quando útil; essa utilidade, criando desejos, vai determinar o preço máximo que o comprador não há de ultrapassar. Quanto à dificuldade de aquisição, depende esta da possibilidade ou impossibilidade de reprodução das coisas. A dificuldade de aquisição das coisas suscetíveis de reprodu­ção — caso geral — é regulada pelo preço de custo. Se houver quem pague esse custo, haverá vendedores; em caso contrário, eles não surgirão. É o preço de custo que regula, pois, o mercado.

Partindo Mill, assim, da teoria do valor-trabalho, chega a formular uma teoria bem mais simples e mais exata.

Um último exemplo para indicar a importância da sua contribuição à Escola Clássica: retomando a teoria da renda de Ricardo, esclarece, con­forme vimos, um ponto que aquele deixara meio vago — a renda de mo­nopólio. Mas, além disso, extrai da teoria geral uma noção inteiramente nova: a de estado econômico estacionário. Acompanhando a explanação ricardiana, admite Mill acarretar a alta contínua da renda a redução do lucro, redução essa que, por sua vez, vai afrouxar a formação de capitais. Levando essa idéia ainda mais longe, deduzirá provocar, em dado momen­to, essa tendência do lucro para a baixa — uma vez que o capital é gera­dor e fomentador da indústria —, uma interrupção na expansão da produ­ção e, por via de conseqüência, também no crescimento da população. Cessará o progresso econômico, mantendo-se certo equilíbrio: será o "es­tado estacionário".3 7

§ 2.° — O "estado estacionário" de Stuart Mill, problema de atualidade

Essa noção de estado estacionário ganha de novo, hoje, surpreenden­te atualidade, Assiste-se, com efeito, em numerosos meios, a uma condena-

.37. Note-ae a semelhança entre o estado estacionário de Stuart M I L L e o estado de equi­líbrio dos gregos, cf. supra, p. 33. M a s enquanto os gregos o i r i a m , conforme v i m o s , chegar a

Page 138: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ção do crescimento econômico como finalidade e como ideal de vida, as­sim como à apologia do crescimento zero. As controvérsias são vivas a esse respeito, tanto no Congresso de Veneza quanto em Estocolmo e em Paris, nesta última primavera.

As dúvidas quanto aos benefícios de um crescimento econômico con­tínuo — para os países já economicamente desenvolvidos, claro — foram inicialmente exprimidas pelos estudantes da Universidade da Califórnia em 1962; este movimento de reputação à sociedade de abundância, chamada de "consumo", se manifestou violentamente contra os povos ricos do vOci-dente — que não vivem senão para adquirir, sempre e cada vez mais, carros, aparelhos de televisão, bens de consumo —, sociedade nas quais 'o objetivo da vida e os sucessos individual e coletivo parecem medidos pelas taxas de crescimento da economia.

Na Europa uma preocupação da mesma ordem se manifestou por oca­sião das revoltas dos estudantes da Sorbona, em 1968. Foi retomada por certos intelectuais e se concretizou, com grandes repercussões, em feverei­ro de 1972, num relatório elaborado pelo holandês Sicco Mansholt, alto funcionário da C . E . E . , relatório endereçado ao presidente da mesma (Co­munidade Econômica Européia). Analisando e desenvolvendo os incon­venientes do crescimento econômico contínuo, Mansholt prevê para a hu­manidade uma situação catastrófica a partir do ano 2000.

Sem insistir sobre os elementos do problema assim colocado, observe­mos que já há mais de um século Stuart Mill o havia formulado, com seu bom-senso de economista e filósofo. Neste sentido ele escrevia. " . . . tam­bém não posso ter, pelo estado estacionário dos capitais e da riqueza, aquela aversão sincera que se manifestou nos escritos dos economistas da velha Escola. Sou levado a crer que, em suma, ele seria preferível a nos­sa condição atual. Confesso que não estou encantado com o ideal de vida que nos apresentam aqueles que acreditam que o estado normal do homem seja o de lutar sem trégua para sobreviver, que esta confusão — em que um pisa no outro, se empurra, se esmaga —, que é o tipo de so­ciedade atual, seja o destino mais desejável para a humanidade, ao invés de ser simplesmente uma das fases desagradáveis do progresso industrial".3 8

E acrescentava: "Desnecessário recomendar a observação de que o es­tado estacionário da população e da riqueza não implica a imobilidade do progresso humano. Sobraria espaço, como jamais, para toda espécie de cultura moral e de progressos morais e sociais; outro tanto, para melhorar a arte de viver e mais probabilidades de vê-la melhorada quando as almas deixassem de ser tomadas pelo cuidado de adquirir riquezas.

As próprias artes industriais poderiam ser cultivadas, tão seriamente e com o mesmo sucesso, com a única diferença de que, ao invés de só ter e s s e r e s u l t a d o a t u a n d o d i r e t a m e n t e s o b r e a p o p u l a ç ã o , a c r e d i t a M I L L d a r - s e o e n u i l í b r i o d a p o ­p u l a ç ã o a t r a v é s d o l i v r e f u n c i o n a m e n t o d o m e c a n i s m o d a p r o d u ç ã o ; A N O Y A U T : L'État Pio-gressif et VÉtat Stationnaiie de la Richesse Nationale chez A. Smith et S. Mill, thèse, 1 9 0 7 .

3 8 . S T U A R T M I L L , " P r í n c i p e s d ' É c o n o m i e P o l i t i q u e a v e c Q u e l q u e s U n e s d e L e u r s A p ­p l i c a t i o n s à 1 ' É c o n o m i e S o c i a l e " , E d i ç ã o G u i l l a u m i n , t r a d . d e H u s s a r d e C o u r e l l e - S e n s u i l , 2.' ed.. P a r i s , 1 8 6 1 , l i v r o I V , c a p . I , § 2 , p . 2 9 6 : " D o E s t a d o E s t a c i o n á r i o " .

Page 139: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

por objetivo a aquisição da riqueza, os aperfeiçoamentos atingiriam seu fim, que é a diminuição do trabalho."

Estas linhas proféticas merecem séria meditação. Convém seguir com a maior atenção as atuais discussões que se desenvolvem em torno dos inconvenientes apresentados pela busca a todo custo do crescimento con­tínuo.

Tais linhas traduzem bem aquele cuidado com o "ser melhor", o "vi­ver melhor" que a gente sente, mais ou menos confusamente, não mais corresponder à única preocupação do crescimento quantitativo da riqueza.

Vê-se, portanto, não ser possível classificar Mill como simples vulga-rizador das idéias clássicas. E isso porque, se é verdade não haver ele li­gado o seu nome a grandes teorias ou leis célebres, como o fizeram Smith, Malthus e Ricardo, certo é ter sabido aperfeiçoar os trabalhos de seus antecessores, não só quanto à forma, mas também quanto ao fundo: com­pletou-os em muitos pontos, chegando mesmo, por vezes, a sobrepujar os respectivos autores.

§ 3.° — Stuart Mill e o socialismo

Stuart Mill foi, todavia, mais que um continuador da tradição clás­sica liberal. Em dado momento dela se afasta energicamente, aproximan­do-se de modo muito nítido das correntes de pensamento socialista e inter-vencionista.

Essa evolução se processou paralelamente, no plano filosófico e no econômico. Ao passar da filosofia utilitarista à filosofia de Auguste Com-te e de Saint-Simon, passará também do liberalismo ao intervencionismo e ao socialismo.

Enquanto construíram os clássicos ingleses uma ciência econômica sem levar em conta o problema social e suas conseqüências, Stuart Mill deixa-se dominar por essa preocupação. Incorpora à Economia Política clássica o interesse pela "justiça social"; revolta-se ante as conseqüências a que fatalmente conduzem as leis dos economistas ingleses ao serem trans­portadas do plano teórico, sereno e indiferente, onde se entricheiraram os seus antecessores, para o campo social, humano e apaixonado, onde não quiseram tomar conhecimento da sua existência.

E Stuart Mill, embora se conservando fiel à ciência clássica, buscará dar expansão às idéias que tinha sobre "justiça social". Ao tentar realizar essa conciliação estabeleceu uma distinção radical entre os fenômenos da produção e os da repartição. Os primeiros continuam subordinados a leis naturais, cujo rígido determinismo não pode ser modificado pelo homem. Os segundos são, ao contrário, regidos por leis contingentes, elaboradas pelos homens que, portanto, podem modificá-las. "A sociedade — escre­ve ele — pode submeter a distribuição da riqueza a regras que lhe pare­cem melhores."

Page 140: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Stuart Mill vê nessa distinção "sua principal contribuição" à Econo­mia Política. Ela lhe possibilita conciliar suas tendências individualistas e intervencionistas; o apego à ordem de sua época, cuja preservação, ainda por algum tempo, acredita de utilidade, e seus anseios por uma ordem melhor — comunismo — que aguarda para o futuro.

E oscilando entre duas tendências, passando continuamente de uma a outra sem poder decidir-se definitivamente por esta ou aquela, proporá ele, na primeira edição de seus "Princípios" e mais abertamente em cada uma das sucessivas edições, medidas de organização social. v

Pleiteará, assim, a expansão da pequena propriedade agrícola. Esta instituição reforça o individualismo e por esta razão lhe agrada. Mas fa­culta também a restrição do número de filhos (demonstra-o o funciona­mento desta instituição em certos países da Europa). Esta última conse­qüência — aparece Mill aqui como um neomalthusiano — agrada-lhe também como um meio de ação social.

Propõe, igualmente, o desenvolvimento de cooperativas de produção, inspirando-se em Robert Owen. A medida satisfaz ao seu pendor indivi­dualista: a propriedade privada é respeitada e mesmo fomentada, pois a cooperação transforma a classe obreira em capitalista. E atende, também, à sua preocupação de justiça social: permite suprimir o regime salarial e propicia ao proletário justa remuneração ao seu trabalho e às suas eco­nomias. "As distinções de classe serão suprimidas, restando apenas as dis­tinções devidas aos méritos pessoais."

Essa necessidade de conciliar reformas sociais com a ciência clássica aparece ainda nas restrições opostas por Stuart Mill ao direito de sucessão hereditária. G. Pirou 39 cita, judiciosamente, o seguinte exemplo, para mos­trar o esforço desenvolvido por Mill no sentido de satisfazer, a um tem­po, suas preocupações humanitaristas e suas idéias científicas: como indi­vidualista, é favorável ao direito de sucessão hereditária.- Todavia, esse instinto lhe parece ao mesmo tempo contrário à "justiça social", uma vez que o herdeiro recebe um bem sem trabalho e com isso se destrói a pri­mitiva igualdade existente entre os homens.

Mill tenta., então, conciliar esses pontos de vista opostos através do seguinte sistema: mantém em toda a sua plenitude o direito de alienação dos bens particulares, mas estabelece rígidos limites ao de sucessão "causa mc rtis". "O sistema é engenhoso — observa o professor Pirou. Pela ma­nutenção do direito de alienação, satisfaz às legítimas exigências da perso­nalidade humana. Pela limitação dos quinhões hereditários reduz o in­conveniente de se consagrar desde logo a desigualdade na concorrência econômica."

Por hábil e engenhoso que tenha sido Mill, evidente é assentar o seu desejo de conciliação sobre uma frágil base científica. O erro provém da distinção por ele feita, de início, entre os fenômenos da produção e os da

39. G A É T A N P I R O U : Introduction à VÉconomie Politique, p. 247, 1939.

Page 141: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

repartição. Ver, nos primeiros, fenômenos subordinados a leis imutáveis e, nos segundos, fenômenos tão-somente regidos por leis contingentes é uma concepção de todo infundada.

Produção e repartição são fenômenos econômicos estritamente solidá­rios, interdependentes, que não se prestam à divisão referida por Mill. O único interesse dessa divisão reside na idéia por ele tomada de emprésti­mo a Comte: a idéia de evolução, de progresso e, portanto, de relativi­dade.

Essa idéia de transformação, de evolução e, até certo ponto, de "di-, nâmica" — que de maneira tão feliz completa a estática econômica dos clássicos — acarreta conseqüências inexatas e estéreis, quando leva Mill a estabelecer aquela sua divisão arbitrária. Alcança, em compensação, o seu integral valor, ao ser aproveitada nos estudos dos problemas de "Econo­mia Aplicada", como distintos dos de "Economia Pura". Mas, para tal, faz-se mister ainda o decurso de um quarto de século de progresso e evo­lução da Economia Política.

Resumindo: a obra de Stuart Mill apresenta um duplo característico que interessa à história das doutrinas:

— surge e se situa no ponto divisório de duas grandes correntes do pensamento econômico;

— a um tempo, constitui a expressão última da ciência clássica e contém em si o germe das idéias que se lhe oporão doravante.

E situa-se no momento exato em que duas correntes vão chocar-se violentamente nos fatos e na doutrina: 1848 — ano da publicação dos "Princípios" — é, com efeito o ano das revoluções européias e do "Mani­festo Comunista", de Marx e Engels.

Seção V

A INFLUÊNCIA DA ESCOLA CLÁSSICA INGLESA

Profunda foi a influência da Escola Clássica inglesa — manifeste-se ela de modo imediato ou mediato — no domínio das idéias e dos fatos.

Pitt, desde a ascensão ao poder, em 1776, fez suas — conforme já vimos — as principais conclusões de Smith; poucos anos mais tarde, Lord North as aplicava em matéria fiscal. As idéias monetárias de Ricardo fi­zeram-se sentir, diretamente, no famoso "Bullion Report" de 1810, bem como na grande reforma do Banco da Inglaterra, operada pelo "Act" de Peel, de 1844.

E, ainda por influência das idéias de Smith, Ricardo e Malthus, apre­sentaram os negociantes de Londres, em 1820, uma petição em favor do livre-câmbio. Sob o mesmo influxo funda-se, em 1838, em Manchester, a "National anti Corn Law League" ("Liga Nacional contra a Lei do Trigo").

Page 142: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E, em consonância com o raciocínio desenvolvido por Ricardo e as idéias liberais de toda a escola, revoga a lei de 25 de junho de 1846 os direitos de importação sobre cereais, elaborando-se, em seguida, toda uma série de textos legislativos antiprotecionistas. Esse livre-cambismo se expande vigorosamente e torna-se a regra nas relações internacionais entre 1850 e 1860: um exemplo frisante é o tratado comercial franco-inglês de 1860.

A influência da corrente inglesa se fez sentir, não apenas em seu país de origem, mas também na maioria dos demais países.4 0 De fato, criou a Escola Clássica, por um lapso de tempo bem largo, um dos mais vigoro­sos movimentos de idéias do mundo que a história das doutrinas econômi­cas já conheceu.

Essa influência cresceu, ainda, graças ao prestígio de que se viram cercadas as obras dos clássicos ingleses, com a difusão que, fora da In­glaterra, lhes deu o economista francês Jean Baptiste Say.

J. B. Say (1768-1832), 4 1 jornalista, industrial, parlamentar e profes­sor, ocupou a cátedra de Economia Política no "Collège de France". Es­creveu, em 1803, um "Traité d'Économie Politique", em 1815, o "Cathé-chisme d'Économie Politique", "Lettres à Malthus", em 1820, e, em 1828, um "Cours d'Économie Politique", em seis volumes, no qual retoma a obra de Smith, intitulando-se, ele próprio, discípulo do grande escocês. Mas toma-a para dar-lhe uma forma mais clara, mais viva, corrigindo-a e com-pletando-a em muitos pontos. 4 2 Smith era liberal e, entre os escritores de sua escola, o único otimista. Say conserva este traço, reforçando-o. E, se, a despeito de haver haurido o seu otimismo na "Riqueza das Nações", não foi levado como Ricardo e Malthus a evoluir no sentido do pessimis­mo, foi pelo fato de viver ele em um ambiente econômico bem diverso do conhecido pelos autores das teorias da renda e da população.

De modo algum, na França, nesse começo do século XIX, apresenta­va a população tendência a crescer desmesuradamente. As possibilidades oferecidas pela agricultura eram maiores do que as da Grã-Bretanha, já pela extensão, já pela fertilidade das terras exploradas. O cultivo da terra continuava absorvendo uma numerosa população rural, pois não conheceu a França uma "revolução industrial", e, sim, apenas uma evolução que não implicou brutais e repentinas transformações na repartição econômica da demografia nacional. O fenômeno da renda, enfim, não assumiu a mes­ma intensidade nem revestiu a mesma significação social que teve na In-

40. Cf., em r e l a ç ã o à Alema nha , sobretudo R O S C H E R : Geschichte der N ationaloekonomik in Deutschland. O autor mostra a influência das idéias de S M I T H , principalmente na elabora­ção das tarifas a l fan degá ria s prussianas, de 1821, e nas reformas dessa época.

41 Sobre J. B. S A Y , ler = A. L I E S S E : Un Professeur d'Économie Politique sous la Réstauration, in Journal des Economistes, 1901; R o g e r P I C A R D : Glanes bibliographiques sur J. B. Say (Mélanges dédiés au Proí. H. Truchy), 1838; E. A L L I S : /. B. Say et les Origines de VIndustrialisme, in Revue d'Écon. Pol., Paris , 1910; E. T E I L H A C : L'Oeuvre Économique de J. B. Say, 1927; A. S. S K I N N E R : S a y ' s Law; Origins and Conient, in Econômica, v o l . X X X I V , n.° 134, M a i o , 1967.

42. A t r a v é s de J. B. S A Y é que a Riqueza das Nações realmente se difunde. Na A m é r i c a do Norte, em particular, profunda foi a influência de S A Y . Seu Cathéchisme d'Économie Politi­que, traduzido em Londres, por R I C H T E R , em 1816, foi editado nos E s t a d o s U n i d o s em 1817, pelo próprio pai do economista C A R E Y . O Trai'é foi t r a d u z i d o ' em Fi ladélf ia em 1832 e até 1880 foi o c om pê n di o mais usado na A m é r i c a do Norte.

Page 143: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

glaterra, por estar a propriedade agrícola, na França, disseminada por en­tre vasto número de pequenos e médios proprietários rurais.

Essas condições particulares da França explicam o fato de não terem iido as leis de Malthus e de Ricardo — com as quais o pessimismo se in­troduziu na Escola inglesa — guarida no pensamento econômico francês e também o porquê de ir constituir a Escola Clássica, com Say, uma cor­rente distinta, liberal sempre, mas sistematicamente otimista. E mais uma vez se torna bem evidente a profunda influência exercida pelos fatos na evolução do pensamento econômico.

O pensamento de Smith, retomado por Say, permanecerá, pois, ot i -« mista. E, assim, se formará essa corrente liberal otimista, à qual, na his- ^ tória das doutrinas econômicas, se dá o nome de Escola Clássica Francesa. Say e seus principais sucessores irão imprimir-lhe as seguintes característi­cas fundamentais:

— Por um lado, passará a indústria a constituir o fenômeno central da produção;

— por outro, ocupará a produção um lugar proeminente na economia política.

1. Enquanto a Escola inglesa, com Ricardo, dedica especial aten­ção à propriedade territorial e à renda, vai a Escola francesa considerar, em primeiro lugar, o empreendedor e o lucro.

O papel do "empreendedor" — o chefe da empresa industrial — é estudado em seus diversos aspectos. Say distingue nitidamente o empresá­rio do capitalista, pondo termo à confusão que neste ponto reinava entre os ingleses. A atividade do empreendedor é analisada nas suas conse­qüências econômicas e posta em evidência pelo estudo feito sobre o valor, incluindo esta noção a criação de utilidade, e não mais a de matéria apenas.

Afasta-se Say, definitivamente, do erro em que incidiram os fisiocra­tas, ao atribuir valor somente às coisas materiais, e claramente amplia, neste ponto também, a concepção clássica. Embora reconhecendo serem a agricultura, o comércio e a indústria igualmente produtivos, indica ser esta última particularmente apta a criar utilidades, por ter, sobre o comércio e a agricultura, a vantagem de se beneficiar da acumulação do capital e da expansão da maquinaria.

Aplica Say, em proveito da indústria, a noção de rendimento decres­cente, cujos efeitos, na agricultura, haviam Malthus e Ricardo levado ao extremo. E por isso Say e seus sucessores, certos das novas possibilidades — que lhes pareceram infinitas — de progresso da indústria, entoam um hino à produção, tal como aliás então faziam outros autores de orienta­ção doutrinária diferente e, em particular, Saint-Simon e os sansimonistas.

Confiando no esforço do homem, terá, assim, a corrente liberal fran­cesa, mais uma razão para o seu otimismo.

2. Da mesma forma que colocou a Escola francesa a indústria como o centro da produção, vai fazer desta também o centro da Economia. E, 143

Page 144: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ao considerar o problema das trocas, subordina-o Say diretamente à pro­dução, pois é ela a via de escoamento dos produtos: "Les produits s'echan-gent contre des produits." Esta é a lei das saídas, 4 3 à qual está indissolu-velmente ligado o nome de Say,4 4 insuflando à teoria do comércio inter­nacional e das crises um ameno ar de otimismo. De fato esta lei leva inevitavelmente à conclusão de ser impossível existir uma superprodução geral e, portanto, de não residir aí a razão de ser das crises econômicas. Indica, além disso, ser a importação de mercadorias estrangeiras sempre favorável ao desenvolvimento da produção de um país.

As duas idéias postas em evidência demonstram existirem, por um lado, vantagens em se adotar um regime de liberdade e de livre-cambis-mo e, por outro, constituir a produção, em tal regime, um inconteste prin­cípio de harmonia entre todos os países e um dos aspectos mais impor­tantes da solidariedade internacional.

O liberalismo e o otimismo atingirão o apogeu entre 1830 e 1850, período no decurso do qual, conforme muito apropriadamente se expri­mem Gide e Rist, "a liberdade econômica, isto é, de trabalho e de trocas, foi elevada à mesma categoria da liberdade de consciência ou da impren-sa".AS

Charles Dunover (1786-1863), com a sua obra "De la Liberte du Travail ou Simple Exposé des Conditions dans Lesquelles les Forces Hu-maines s'Exercent avec le plus de Puissance" (1845), e sobretudo Bas­tiat, 4 6 com as suas "Harmonies Économiquès" (1850), representam, na França, esse liberalismo triunfante.

Na mesma época dão-lhe expressão, na América do Norte, as obras de um grande economista, Charles Henri Carey (1793-1879), das quais citaremos os "Principies of Political Economy" (1837-1840) e, principal­mente, o "Harmony of Interest" (1850) . 4 7

43. Traité d'Économie Politique, tomo I, cap. X V , 44. É e v i d e n t e que S A Y assimila a troca ao c â m b i o e que, por isso mesmo, considera a

moeda c o m o instrumento passivo da a t i v i d a d e econômica. N e s t e ponto, é ele d i s c í p u l o fiel do pensamento c l á s s i c o . É t a m b é m evidente concluir ele, de sua lei das saídas, que uma crise de superprodução geral não é possível e que a v o l t a ao equil íbrio se realiza necessariamente. A n u n c i a S A Y , nesse particular,, a teoria do equi l íbrio econômico de W A L R A S . Contra essa c o n c e p ç ã o da moeda p a s s i v a e contra a noção do equil íbrio econômico, fortemente e s b o ç a d a em sua obra, os e c o n o m i s t a s modernos v ã o r e a g i r : de W I C K S E L L e K E Y N E S : as crí t icas sobre esses dois pontos são violentas. É interessante lembrar i g u a l m e n t e que na própria época de S A Y , M A L T H U S — o único entre os c l á s s i c o s — h a v i a crit icado esta lei das saídas, mos­trado suas imperfeições e oposto a ela o princípio da demanda efetiva — princípio que K E Y ­N E S d e s e n v o l v e r á e substituirá assim à n o ç ã o c l á s s i c a do equil íbrio geral , a noção do equil í ­brio d i s s o c i a d o que repousa sobre equil íbrios p a r c i a i s (cf. P r i n c í p i o s de E c o n o m i a P o l í t i c a de M a l t h u s , p. 2 9 1 ) .

45. C h . G I D E e Ch. R I S T : Histoire des Doctrines Économiquès, p. 383, P a r i s , 1926. 46. F r é d é r i c B A S T I A T (1801-1885): Harmonies Économiquès, 1850; Petits Pamphlets et

Sophismes, de 1844 e 1848. Sobre B A S T I A T , ler = B. B I D E T : Frédéric B a s t i a t , 1'Homme, 1'Économisie, 1906. Sobre D U N O V E R , v e r : R ené A D E N O T , Les Idées Économiquès et Poli-tiques de Charles Dunover, T o u l o u s e , 1907.

47. C h . H. C A R E Y , cujas principais obras são = Principies of Political Economy, 1837--38-40 (3 v o l s . ) ; The Past, the Present and the Future, 1848; obra já citada a propósito da teo­ria da renda de R I C A R D O ; Harmony of Interest, Agricultural, Manufacturing and Commercial, 1850, e Principies of Social Science, 1858-59.

C A R E Y apresenta certas semelhanças com Stuart M I L L . pois, partindo d e u m l iberal ismo total, v a i modif icar suas conclusões práticas, orientando-as t a m b é m no sentido do intervencio­nismo. V o l t a r e m o s a tratar de C A R E Y — a cuja obra não será possível consagrar neste tra­balho, n e c e s s a r i a m e n t e l imitado, o espaço que merece — quando analisarmos as teorias inter­v e n c i o n i s t a s da E c o n o m i a Nacional .

Page 145: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

À inglesa, junta-se, pois, a corrente clássica tranco-amencana para, di­fundindo suas idéias e generalizando sua prática, propagar a ciência nova e suas conclusões em prol do liberalismo econômico. Indiquemos, de pas­sagem, os principais nomes que confirmam, nos diferentes países, a exis­tência, até aos nossos dias, dessa vigorosa influência.

Na Inglaterra não podemos deixar de mencionar, ao lado dos nomes ilustres de seus fundadores, os de economistas de menor renome e, por isso mesmo, muitas vezes olvidados, mas cuja contribuição à ciência clás­sica está longe de ser desprezível. Citaremos, por exemplo: Nassau Sênior (1790-1864), 4* fervoroso partidário do método dedutivo, que aprofundou a noção smithiana de divisão do trabalho, incorporando na Escola Clássica inglesa certas contribuições pessoais de Say. Professor em Oxford, sua obra econômica está contida no "An Outline of the Science of Political Economy" (1836).

Mac Culloch (1776-1864), economista e estadista, íntimo amigo de Stuart Mill, publica, em 1825, seu "Principies of Political Economy" e em 1837, uma "Statistical Account of the British Empire."

O saudoso professor Ed. Seligmann, julgando necessária, para o me­lhor conhecimento da ciência clássica, a reabilitação desses autores eclip­sados pela glória dos grandes discípulos de Smith, consagrou-lhes, no "Eco­nomic Journal", de 1903, interessante estudo intitulado: "On some neglec-ted British Economists".

Numerosos são ainda os discípulos ingleses da Escola Clássica na se­gunda metade do século. Contudo, mais expostos do que os discípulos franceses a influências várias da época, refletirão a tradição clássica de maneira por vezes menos pura. Uma exceção deve-se abrir ao irlandês Cairnes (1823-1875), advogado, jornalista e professor, discípulo fiel de Ricardo que, com entusiasmo, defende o método dedutivo no "The cha-racter and Logical Method of Political Economy" (1856) e retomará mais tarde, depois de ter professado na cadeira de Economia Política, em Lon­dres, as linhas essenciais das teorias de Smith, Malthus e Ricardo, em seus "Essays in Political Economy Theoritical and Applied" (1873) e "Some Leading Principies of Political Economy Newly Expanted" (1874).

Sua principal contribuição é de ordem metodológica. Distingue-se, no campo da teoria sobretudo, pela análise acurada que fez do custo de pro­dução em relação com o valor. Não obstante seguir as pegadas dos gran­des discípulos, põe-se em franca oposição a Mill, ao restringir o estudo dos problemas ao campo científico, recusando-se a estendê-lo à discussão de suas conseqüências no plano social.4 9

Depois dele a doutrina clássica inglesa se transforma: com Bagehot, em seu célebre livro "Lombard Street", e mais ainda com Mac-Leod 50

48. Sobre N A S S A U S Ê N I O R , ler = L e w i s H. H E N E Y : History of Economic Thought, N o v a Iorque, 1925, cap. X V . A respeito d a influência d e R I C A R D O n a I n g l a t e r r a , ler: C H E K -L A N D : The Propãgation oi Ricardian Economics in England, in E c o n ô m i c a , fase. X V , 1949.

49. L e r T. E. L e s l i e C L I F F E : Essays in Political and Theorical Pbilosophy, 1879. 50 As principais obras de M A C - L E O D s ã o : Theory and Practice oi Banking, 1858; Ele-

ments oi Political Economy, 1858; Dictionary of Political Economy, 1863; Principies of Econo­mic Philosophy, 1873.

Page 146: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

(1821-1902), o relativismo da escola histórica penetra nas doutrinas in­glesas. Mac-Leod, a um tempo economista e jurista, não chegou a des­frutar da fama a que faz jus pelo seu valor. À medida, entretanto, que se estuda melhor a sua obra e se conhecem as influências por ela exercidas, parece que o lugar por ele ocupado na história das doutrinas merece ser posto em relevo. Foi o primeiro economista inglês a esclarecer a natureza real do crédito, assim como o papel do organismo bancário na sua criação: sublinha judicicsamente a semelhança existente entre a nota de banco e os créditos bancários utilizáveis por meio de cheque. Mas o interesse de sua contribuição ultrapassa de muito o quadro desses assuntos especializados, expostos principalmente em seu "Theory and Practice of Banking". Pôs em evidência noções econômicas de real monta, sobretudo nos seus "Ele-ments". J. B. Say insistiria sobre a noção de valor de troca e demonstrou ser necessário substituir a noção de criação de riqueza pela de criação de utilidade. Mac-Leod aprofunda essa idéia e, ampliando-a no tempo, põe em evidência o importante fato de não se confundirem as quantidades eco­nômicas com simples relações materiais existentes em dado momento, cons­tituindo também as dívidas e os créditos, em particular, bens econômicos a se levar em conta. Dessa noção jurídico-econômica ressalta uma noção de utilidade não exclusivamente presente, mas potencial, noção que deixa bem patente, nesse campo da utilidade, a consideração do futuro. Noção que transforma e amplia a análise econômica clássica. Noção de primeira ordem, é retomada hoje, conforme veremos, por um grande número de economistas: na América do Norte, pelos "Institucionalistas", e, na Eu­ropa, por Cassei e Hawtrey, entre outros.

A influência clássica, embora confundindo-se cada vez mais com a de outras correntes doutrinárias da segunda metade do século, persiste. Va­mos encontrá-la de novo na escola atualmente chamada de "Cambridge", cujos representantes mais conhecidos são o professor Pigou e o professor Marshall (1842-1924). Este último, em sua principal obra, "Principies of Economics" (publicada em três volumes sucessivamente aparecidos em 1890, 1919 e 1923), mantém-se fiel, em suas teorias essenciais, à linha dos grandes clássicos ingleses. Mas, de permeio — entre a Escola Clássi­ca e Marshall —, temos a registrar o aparecimento das escolas históricas e hedonistas e das doutrinas intervencionistas. Às primeiras toma Mar­shall de empréstimo o método de análise que, com notável habilidade, concilia com a dedução, realizando assim a conciliação metodológica pre­conizada por Schmoller. Das segundas aproveita a noção de utilidade e de produtividade marginal, pondo-a de acordo com o princípio clássico do custo de produção. Toma-lhes igualmente emprestada a concepção de equilíbrio econômico; contribuirá Marshall para o enriquecimento desta concepção, a qual vai tratar — ao contrário de Walras — sem recorrer necessariamente à utilização das matemáticas. E às últimas vai buscaro

146 intervencionismo do Estado, que ameniza com um liberalismo mdérado.

Page 147: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Essa tríplice conciliação deu à sua obra uma amplitude e um vigor sem par, que lhe grangearam vasta e rápida reputação.

Na França, além dos autores já citados — Say, Dunover, Bastiat —, inúmeros são os que sofrem a influência clássica: Rossi (1787-1848), "Cours d'Économie Politique", 1840. Sucessor de Say no "Collège de France", fez-se seu discípulo, bem como de Ricardo. Adolphe Blanqui reflete a influência liberal em seu "Précis d'Économie Politique". 1825; "Cours d'Économie Industrielle", 1927, e "Histoire de 1'Économie Politi­que", 1937-38. Da mesma maneira Joseph Garnier (1813-1882), em seus "Élements d'Économie Politique", 1845; Batbie, em seu "Cours d'Écono-mie Politique", 1866; Frédéric Passy, em suas "Leçons d'Économie Politi­que", 1869, e seu "Príncipe de Population", 1868; Courcelle-Seneuil, no seu "Traité d'Économie Politique", (1858-59) e seu "Traité des Opéra-tions de Banque"; Emile Levasseur (1828-1911), em seu "Précis d'Éco-nomie Politique", 1883, e Paul Leroy-Beaulieu, no seu "Essai sur la Ré-partion" e no seu "Traité d'Économie Politique", 1905. 5 1

Na Itália, lembramos, entre os numerosos economistas que sofreram a influência clássica, os nomes de Gerolamo Boccardo e, sobretudo, de Francesco Ferrara (1810-1900).

Na Alemanha, citemos os de Lotz (1771-1838), Rotteck, Hermann (1795-1868), von Jakob (1759-1827), discípulos de Smith; os de Henri Rau (1792-1870), Prince Smith (1809-1874), Lehrbuch (1826-1882), Nebenius (1784-1857), Kraus (1753-1807), Sartorius (1766-1878), que já alia ao método dedutivo e histórico, e ainda os do economista e es­tadista Luder (1760-1819) e de Shulz-Delitsch, discípulo de Stuart Mill.

Na Espanha citemos, entre outros, A. Ortiz, que, em 1794, traduziu a "Riqueza das Nações".

Em Portugal, 5 2 o padre Manuel de Almeida (1769-1833), "Compên­dio de Economia Política" (em 1821 publicou-se a primeira parte e, de­pois de sua morte, em 1891, a segunda); Adriano Pereira Forjaz (1810-1874), discípulo de Smith, de Ricardo e também de Stuart Mill, com o qual tem pontos de semelhança, principalmente pela instrução vastíssima que recebeu ainda jovem. Em 1845 publicou, em Coimbra, "Elementos de Economia Política e Estatística".

Ainda na Europa mencionemos: o suíço Cherbuliez, "Précis de la Science Économique", 1862; o húngaro Matlekovitz (1842-1925), "Trata­do de Economia Política"; o russo Henrique Storch (1766-1825), cujo "Curso de Economia Política" inspira-se diretamente na obra de Smith, e o sueco neoliberal, Cassei, "Economia Social Teórica", 1918.

5 1 . E m i l e L E V A S S E U R d e i x o u u m a o b r a bastante i m p o r t a n t e : L e Système d e Law, 1854; L'Or, 1858; Histoire des Classes Ouvières, 1867; La Population Française, 1889-92; L'Ouvrier-Américain, 1898 etc.

Indiquemos, de P a u l L E R O Y - B E A U L I E U : La Ques'ion Ouvrière au XIXème Siècle, 1872; Traité de la Science des Finances, 1 8 7 7 ; Le Collectivisme, 1884; L'État Moderne et ses Fone-tions etc.

52. Sobre os autores p o r t u g u e s e s " c l á s s i c o s " , em particular, e sobre todos os e c o n o m i s t a s portugueses e m geral, ler, d e a u t o r i a d o p r o f e s s o r M o s é s B e n s a b a t A M Z A L A K : D o Estado e da Evolução das Doutrinas Econômicas em Portugal, L i s b o a , 1928, obra preciosa pela sua do­c u m e n t a ç ã o precisa e v a s t a .

Page 148: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

No Canadá, citemos, dentre muitos outros: Joseph Bouchette (1774-1841); Gérin Lajoie (1824-1882) e Errol Bouchette (1863-1912).

Na America do Norte, além de Carey, já referido, citemos mais: Fran-cis Bowen, "Principies of Political Economy", 1856, "American Political Economy", 1870; Perry, "Elements of Political Economy", 1866; E. Pers-kine Smith, "Manual of Political Economy", 1853, e o professor Ed. Se-ligmann, "Principies of Economics", 1906.

Na América do Sul a influência liberal foi profunda e durável. No* Brasil, o ponto de partida dessa influência se encontra na* obra

de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu (1756-1835), em 1808 no­meado professor da primeira Cadeira de Economia Política do Brasil. Exerceu diversas e importantes atividades na administração — magistra­do, jurisconsulto, professor —, na política e no jornalismo. Suas obras sobre assuntos econômicos são numerosas. 5 3

Cairu é, como Adam Smith, liberal. O liberalismo paira "no ar", chega do exterior com as revoluções norte-americana e francesa; três sé­culos de política colonial fazem com que, principalmente aqui, seja arden­temente desejado. Em termos de economia smithiana, este liberalismo re­veste a forma individualista, expressa na harmonia de interesses. Cairu expõe os seus princípios e as conseqüências daí decorrentes: o homem, quando livre e responsável pela sua atividade econômica, está nas melho­res condições para conduzir essa atividade de forma mais consentânea com os seus interesses, constituindo a soma dos interesses individuais a riqueza das nações.

O trabalho que, para Smith, ocupa o centro da atividade econômica — centro no qual colocam os mercantilistas tão-somente o metal precioso — é exaltado por Cairu, que também o estuda. Mas, enquanto o seu mes­tre insistir sobre a divisão do trabalho, a fim de explicar a sua produtivi­dade, preocupa-se Cairu, também, em salientar as vantagens não só do tra­balho "livre", antiescravista que é, mas também do trabalho associado, convencido como está de que, mais do que alhures, aqui, neste grande Bra­sil, onde tão limitado número de homens vê, a união faz a força. Insiste, assim, sobre a necessidade e as vantagens da associação, que nenhum in­teresse desperta na época — com exceção do exemplo de Robert Owen

53. Sobre E c o n o m i a , os seus principais estudos são os s e g u i n t e s : Princípios de Economia Política, Lisboa, 1804; Observação sobre o Comércio Franco no Brasil, R i o de Janeiro, 1808; Discurso sobre a Franqueza do Comércio de Buenos Aires, R i o de Janeiro, 1810; Observações sobre a Prosperidade do Estado pelos Princípios Liberais da Nova Legislação do Brasil, R i o de Janeiro, 1810; Observações sobre a Franqueza da Indústria e Estabelecimento de Fábricas no Brasil, R i o de Janeiro, 1810; Ensaio sobre o Estabelecimento de Bancos, para o Progresso da Indústria e Riqueza Nacional, Rio de Janeiro, 1 8 1 1 ; Estudos do Bem Comum a Economia Políti­ca (2 v o l s . ) , R i o de Janeiro, 1819. (É neste l i v r o que J. S i l v a L I S B O A , apresenta as suas idéias econômicas sob uma forma mais c o m p l e t a e o r i g i n a l ) ; Leitura de Economia Política, R i o de Janeiro, 1827; Considerações sobre a Doutrina Econômica de M. João Batisa Say ( p ó s t u m a ) , R i o de Janeiro 1844-1845. Para maiores d e t a l h e s sobre Cairu, cf. B L A K , Augusto — Cairu, in Dicionário Bibliográfico Brasileiro, R i o de Janeiro, 1899; A u g u s t o A l e x a n d r e M A C H A D O , Cairu e a Escola Liberal, in R e v . do i n s t i t u t o G e o g r á f i c o e H i s t ó r i c o da B a h i a , 1836; M e n d e s da S i l v e i r a , Z. O r i g i n a l i d a d e do l i b e r a l i s m o e c o n ô m i c o brasileiro, em O E S T A D O de S. P, 8-7-1950.

Sobre a obra de C A I R U e dos e c o n o m i s t a s brasileiros, cf. nosso e s t u d o : A' Economia Polí­tica no Brasil, in C i ê n c i a s no Brasil, S ã o P a u l o , 1957.

Page 149: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

no outro lado do Atlântico — e faz-se apóstolo do que posteriormente se conhecerá como cooperativismo.

De uma maneira geral expõe em seu livro idéias basilares da econo­mia liberal clássica inglesa e acentuará, talvez ainda com mais ênfase que Smith, o valor do elemento humano, profundamente humano que é. Per­cebe não se conterem essas idéias no quadro estritamente econômico, es­tendendo a sua influência à própria civilização. Sabe que a civilização não se resume no conhecimento e na técnica, mas se entretece também de hábitos e atitudes morais, tais como o culto da iniciativa e da respon­sabilidade.

Cairu não é, todavia, um simples vulgarizador de idéias de Smith, conforme se tem dito muitas vezes. É algo mais. Se, na exposição das teorias econômicas, mantém-se de modo geral fiel à ciência econômi­ca clássica, desta se afasta tanto em certos pontos que acaba por elaborar uma doutrina que muito difere do liberalismo inglês.

Smith mostra-se muito favorável à agricultura, reservado quanto à in­dústria e pouco confiante no que respeita ao comércio. Cairu, assumindo, ao contrário, uma atitude de reserva em relação à atividade agrícola, é, em compensação, francamente favorável à indústria e ao comércio.

Os seus argumentos em favor da indústria abundam: esta constitui mesmo a condição da prosperidade agrícola, favorece o desenvolvimento demográfico, quantitativa e qualitativamente, e, sobretudo, condiciona o progresso da economia nacional e a sua independência. Em resumo, a in­dústria é o próprio progresso da nação.

"O desenvolvimento da indústria não é, para uma nação, apenas uma questão econômica; é — acima de tudo — uma questão política."

Eis a forma sob a qual retoma Rui Barbosa o mesmo argumento: esta, a tese que, no fim do século, será desenvolvida por Amaro Caval­canti e defendida por Luís Rafael Vieira Souto, do alto de sua cátedra na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, por Aarão Leal de Carvalho Reis e muitos outros.

Cairu será também apologista do comércio. Filho da Bahia, sede do grande comércio do Brasil na época, sente apego a uma atividade de que lhe dava exemplo Portugal, potência comercial, deixando-se influen­ciar sobretudo pelo mercantilista inglês James Stewart, cuja obra "Enquê-te sur les Príncipes d'Économie Politique", aparecida em 1767, admira.

Existe, assim, nessa doutrina que nasce, no Brasil, nesse princípio de século, uma síntese de idéias tiradas do mercantilismo evoluído do fim do século XVIII e do liberalismo inglês, síntese realizada por Cairu exata­mente no quadro das condições do meio brasileiro e de suas possibilida­des de evolução.

Indiquemos de maneira precisa em que consiste esta posição nacional do liberalismo de Cairu, indispensável como é o seu conhecimento para

Page 150: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

a compreensão do pensamento econômico brasileiro posteriormente desen­volvido.

Três séculos de política mercantilista protecionista possibilitaram às nações da Europa a constituição das respectivas economias nacionais, isto é, a transformação das nações em um organismo econômico, tendo '"har­moniosamente" desenvolvido os elementos materiais, espirituais e humanos de seu patrimônio. Ao elaborar Smith o seu liberalismo na segunda metade do século XVIII, o esforço desenvolvido no sentido de se constituírem as economias nacionais já tinha produzido os seus frutos: a doutrina inglesa poderia, pois, dar-se ao luxo de ser cosmopolita e livre-cambista.

No Brasil, entretanto, a situação era muito diferente. Três séculos de política colonial — extremamente severa no último século do ouro — visa­vam exatamente "impedir" a constituição da economia nacional. A agri­cultura desenvolveu-se apenas em função de uma exportação feita em be­nefício da metrópole; a indústria foi proibida sob severas penalidades e sacrificado o mercado interno. Nos primórdios do século XIX tratava-se, pois, de construir uma economia nacional; esta, a preocupação prepon­derante na mente de Cairu e sempre presente em todos os seus trabalhos. Sua doutrina será, pois, liberal, não resta dúvida — pelas razões já indi­cadas —, mas "nacionalista" e não cosmopolita. Com uma antecipação de quarenta anos, apresentará Cairu, em seu "Princípios de Economia Política", o essencial das idéias que List vai reunir em seu célebre "Sistema Nacional de Economia Política".

Graças a Cairu deve-se, pois, o fato de, concomitantemente com a entrada, no Brasil, da ciência econômica clássica, constituir-se aqui uma doutrina liberal que, ao invés de cosmopolita, como a de Smith, é nacio­nalista, comercialista e industrialista.

Esta doutrina "especificamente brasileira", solidamente alicerçada èm uma justa apreciação das condições e das necessidades do meio, manter-se-á subjacente nas mais variadas expressões do pensamento econômico do Bra­sil até aos nossos dias.

As idéias econômico-liberais são também encontradas em obras de destaque em doutrina econômica. Sua influência se faz sentir não somente sobre a evolução das idéias, mas também sobre os fatos; é certa, sobretudo, sua participação na medida — de conseqüências econômicas e políticas decisivas — de abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional (1808) e, em particular, na sua aceitação e aplicação.

As idéias econômico-liberais são também encontradas em obras de muitos autores brasileiros. Indiquemos Carneiro de Campos Autran da Mata e Albuquerque (1805-1881), discípulo de Smith, de Say e de James Mill, "Elementos de Economia Política", Pernambuco, 1844; "Novos Ele­mentos de Economia", Recife, 1859, e Paris, 1862; "Manual de Economia Política", Rio, 1874, 5 4 e muitos outros economistas, dentre os quais J. L.

54. C o m a obra de A p r í g i o G U I M A R Ã E S o p e n s a m e n t o c l á s s i c o evolui . Suas conclusões l iberais absolutas são abandonadas e dão l u g a r a um i n t e r v e n c i o n i s m o moderado. No mesmo

Page 151: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

de Almeida Nogueira, que foi professor de Economia Política na Facul­dade de Direito de São Paulo e deixou um "Curso Didático de Economia Política" (São Paulo, 1936, 5 . a edição), revisto pelo professor Cardozo de Mello Neto, obra de grande erudição e de interesse científico, pela qual se verifica filiar-se seu autor à Escola Clássica e Neoclássica e, sobretudo, a Mac-Leod. 5 5

Na Argentina, lembramos os "Lecciones de Economia Política y Fi-nanzas" de S. Quezada e o "Curso de Economia Política" de Martin y Herrera. No Uruguai, citemos os professores Carlos Maria de Pena e Júlio M. Lamas, discípulos de Leroy Beaullieu; o Dr. Eduardo Acevedo, professor na Faculdade de Direito de Montevidéu ("Economia Política y Finanzas", "Temas de Legislación Social", 1914, "Temas de Legislación Financeira", 1915); Dr. Gabriel Terra ("Política Internacional", 1910); professor Pedro Cosio, cuja orientação econômica liberal se reflete, tal como em Smith, no especial cuidado com que trata os interesses superiores da nação ("La Teoria dei Precio", "Imposto", "Economia y Hacienda", 1926), etc. No Chile, o professor Subercaseaux, que publicou, entre ou­tros: "Questiones Fundamentales de Economia Política Teórica", Santiago, 1912, e Paris, 1920, "El Sistema Monetário y la Organización Bancaria de Chile", Santiago, 1913 etc.

O neoliberalismo atual

Os poucos nomes acima citados indicam quão considerável e dura­doura foi a influência direta da Escola Clássica em todos os países, a partir do século XVIII, e a qual, hoje, se concretiza na doutrina do neoli­beralismo.

Trata-se de uma doutrina recente, surgida em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Reúne certo número de economistas de renome, tais como Mises, Robbins, Hayek, Louis Baudin, Condiliffe, Walter Lipp-mann, Louis Rougier, Van Zeeland, Rustow, Dotoeuf, Jacques, Rueff e ou­tros. 5 6

sentido, a s obras d e V i e i r a S O U T O , V i e i r a d e C A R V A L H O e m a i s recentemente A u g u s t o A l e ­xandre M A C H A D O : Alguns Aspectos do Trabalho Econômico. 1928; Liberalismo Econômico e Proletariado, 1935.

55. Encontraremos, c i tados por A l m e i d a N O G U E I R A , op. cit. , p. 77, um grande número de e c o n o m i s t a s brasileiros, de f i l iação c l á s s i c a , mais d ireta mente aparentados com M A C - L E O D , tal como J. S i l v a C A R R Â O , por e x e m p l o . E também nomes dos principais economistas e finan­c i s t a s brasileiros, estadistas ou professores, de tendência l iberal e ortodoxa - Barão do Rosário, R o d r i g u e s A l v e s , Joaquim M u r t i n h o (cujo Relatório, de 1899, merece particular atenção) ; J. P. da V e i g a F i l h o : Manual da Ciência das Finanças, 1906 etc. A esses conviria juntar os n o m e s de muitos outros contemporâneos, cujo pensamento i m p r e g n a d o de l iberal ismo no amplo sentido moderno, toma em consideração a um tempo dados de interesse social , bem como os de mais re­cente c i ê n c i a econômica. C i t e m o s , part icularmente, E u g ê n i o G U D I N , Capitalismo e sua Evolu­ção, R i o , 1963; Princípios de Economia Monetária, R i o , 1943; Origens üa Crise Mundial, R i o , 1932; .Rumos de Política Econômica, R i o , 1945; A b e l a r d o V E R G U E I R O C É S A R : Os Processos Monetários e o Empréstimo Público Interno, como Receita Extraordinária do Estado, 1940; W a l -demar F A L C Ã O : O Empirismo Monetário no Brasil. S ã o Pi.ulo, 1931, etc. Para maiores d e t a l h e s r e l a t i v o s à influência da E s c o l a L i b e r a l sobre o pensamento e c o n ô m i c o no B r a s i l , cf. nosso es­t u d o : A Economia Política no Brasil, in As Ciências no Brasil, p. 301 e segs., São P a u l o , 1957.

56. t no l ivro do economista francês Jacques R U E F F , L'Ordre Social, Paris, 1945, que se encontram expostos os fundamentos científ icos do n e o l i b e r a l i s m o . Em princípios de 1947, sob

Page 152: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

1. A nova doutrina coloca-se na posição de crítico.

Tendo o liberalismo sofrido o impacto das críticas dos intervencio­nistas e dos socialistas por mais de um século, inicia o neoliberalismo, por sua vez, uma ofensiva contra esses ataques e examina os resultados das numerosas experiências de aplicação dos sistemas de intervenção eco­nômica. Focaliza essencialmente as linhas mestras do problema, isto é, o mecanismo dos preços. Procura mostrar ser impossível uma planificação integral. Todavia, dado que existisse esta, por certo acarretaria o retrocesso econômico. v

Em regime de liberdade, o empreendedor faz seu cálculo com base nos preços dos diferentes fatores, estabelecendo, então, o preço de custo, de acordo com o qual procurará fixar o seu preço de venda. Esforça-se por ajustar, o mais exatamente possível, a produção ao consumo. O preço, em regime de liberdade econômica, formando-se livre e espontaneamente, registra a situação da oferta e da procura e orienta a produção.

As indicações que o preço fornece são tanto mais preciosas quanto mais complexa e variável se torna, dia a dia, a vida econômica. E o neoli­beralismo insiste em mostrar o que representa o preço na atividade econô­mica: em um simples e único número é sintetizado o resultado da análise de inumeráveis elementos materiais e psicológicos, síntese essa, de resto, praticamente irrealizável por outra forma, tão elevado é esse número e diversos os elementos.

Assim, para o neoliberalismo, o defeito mais grave de uma economia planificada consiste no fato de não ser possível, em um regime de con­trole de preços, a utilização deste como de verificação das variações da oferta e da procura. O empreendedor se encontra ante a impossibilidade de efetuar o cálculo econômico: mesmo que colhesse todos os dados esta­tísticos necessários e resolvesse as milhares de equações por estes forne­cidas, mesmo que a pudesse alterar diariamente de acordo com as contí­nuas modificações da vida econômica, ainda assim, impossível lhe seria atribuir justo valor às incontáveis reações psicológicas que se condensam no preço.

2. O neoliberalismo critica, pois, a planificação econômica, princi­palmente do ponto de vista do mecanismo do preço. E, posteriormente, daí partindo, assume uma posição não mais crítica, mas construtiva.

O mecanismo livre dos preços é, segundo essa doutrina, indispensável ao bom funcionamento da vida econômica. Dirige-se, pois, ao poder pú­blico, para pleitear o livre funcionamento desse mecanismo. Propugna, assim, o estabelecimento — ou restabelecimento — do regime da livre

os auspícios do C o m i t ê de A ç ã o E c o n ô m i c a e A l f a n d e g á r i a , o neol iberal ismo francês organizou uma série de conferências sob o t ítulo peral de Por uma Economia Liberada nas a u a i s foram estudados no ponto de vista da l iberdade e c o n ô m i c a , os problemas da produção industrial , agrí­cola e c o m e r c i a l , bem como os p r o b l e m a s monetários. Cf. i g u a l m e n t e W. L I P P M A N N , La Cite Libre, P a r i s , 1946; Louis R O U G I E R : Les Mystiques Économiquès, P a r i s , 1938; L. von M I -S E S : Socialism, N. Y . , 1932; Bureaucracy, Yale Univ. Press, 1944; Human Action, Y a l e U n i v . Press, 1949; L o u i s B A U D I N : L'Aube d'un Nouveeu Libéralisme, Paris, 1953; J. C R O S , Le Néo--Libéralisme, Étude Positive et Critique, Paris . 1951

Page 153: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

concorrência, que, conforme julgam, é o mais favorável ao mecanismo dos preços,

O neoliberalismo reclama, portanto, a intervenção do Estado, a fim de eliminar tudo quanto possa obstar o livre funcionamento do mecanismo dos preços. O Estado deve lutar contra os agrupamentos de produtores, cartéis ou trustes nacionais ou internacionais. Esta função, atribuída ao Estado, é fundamental na doutrina neoliberal. Os neoliberais verificam, com efeito, ser a Economia contemporânea completamente diferente daquela do século XIX, devido à circunstância de, em geral, não revestir a forma individua­lista, mas, sim, associacionista. De fato, são as grandes unidades de pro­dução que atualmente predominam na economia, com acentuada tendência à formação de monopólios, em virtude do fenômeno da concentração.

O Estado deverá, também, procurar reformar as instituições, cuja evolução possa, em dado momento, se fazer de modo a constituir um óbice à salvaguarda da liberdade. Aceitando, assim, a noção de relativida­de das instituições, e admitindo, a despeito da sua aparente cristalização, que elas evoluem, os neoliberais deixam-se influenciar pelos economistas institucionalistas norte-americanos e, portanto, de modo indireto, pelas li­ções de relativismo das escolas históricas.57

O Estado que, segundo a doutrina neoliberal, deverá interferir nas próprias condições internas do mercado, de agente passivo que devia ser, de acordo com a concepção dos clássicos do século XIX, transforma-se em um dos mais ativos agentes econômicos.

A noção do Estado liberal, segundo a qual as funções deste se res­tringiriam à segurança e ao arbítrio, tal como as definiram Mercier de La Rivière, no século XVIII, e clássicos ingleses, no século XIX, trans-muda-se, na doutrina neoliberal, em uma noção de Estado liberador, libe-rador de todos os obstáculos opostos ao livre funcionamento do mecanismo dos preços. E, uma vez obtido esse resultado, sua intervenção se reduzirá a fiscalizar o mercado econômico, a fim de evitar engendre a concorrência, tal como se deu no passado, o monopólio ou quase monopólio. Nesse sentido é que o neoliberal Louis Baudin assim se exprime: "O Estado deve ser um soberano que prepara sua própria abdicação."

O neoliberalismo prevê também a possibilidade de exercer o Estado, não mais temporariamente mas de forma permanente, a sua atuação em certos setores de economia social. As vítimas inevitáveis da ordem econô­mica devem ser socorridas: ao poder público compete tomar as medidas necessárias para reduzir ao mínimo as injustiças econômicas, ou mesmo evitá-las, auxiliando as vítimas. No campo imenso da legislação social há lugar para se exercer a atividade estatal.

Eis aí os principais aspectos do neoliberalismo moderno, sucessoT do liberalismo clássico — doutrina que atualmente toma grande impulso

57. Cf. infra. T í t u l o V, cap. 1: A Reação Histórica, S e ç ã o I I I — A Corrente Instituciona-

Page 154: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tanto na teoria como na prática. Tem a seu favor a força sempre viva da tradição liberal, mas também tira partido dos excessos de regulamenta­ção impostos pelas guerras, bem como das enormes dificuldades com que se deparam as diversas experiências de planificação econômica.

A influência da Escola Liberal e Individualista Clássica não se limitou apenas às numerosas e diretas manifestações que acabamos de assinalar. Exerceu-se também, indiretamente, nas doutrinas, através das reações sus­citadas e que, tendo surgido no decurso do século XIX, perduram até nossos dias. Essas reações serão examinadas nas páginas que se seguem.

Page 155: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Título I I I

R E A Ç Õ E S SOCIALISTAS C O N T R A A D O U T R I N A LIBERAL E

INDIVIDUALISTA

O liberalismo dos clássicos é deduzido da concepção de ordem na­tural. Exprime-se sob a forma de liberdade econômica, quadro em que se realiza o interesse pessoal, em harmonia com o geral. Contra esta concep­ção e suas conseqüências econômicas, delineia-se, já nos primórdios do século XIX, uma vasta reação geral. Bem nítidas se tornam as suas mani­festações, por ocasião das revoluções de 1848, revestindo, ainda, a mais violenta de suas formas, em 1867, em "O Capital", de Karl Marx.

Esta reação originou-se da observação de certos fatos. A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, nas três últimas décadas do século XVIII, se estendera a toda a Europa, t ransformcu a produção. Proces-sando-se essa transformação de modo muito rápido e brusco, acarretou a ambos os setores, da produção e da repartição, ao lado de vantagens indiscutíveis e definitivas, inconvenientes, transitórios por certo, mas bas­tante graves. Os efeitos produzidos pelo funcionamento do mecanismo da livre concorrência impressionavam inúmeros observadores. Entre os pro­dutores a luta era sem tréguas, terminando, na maioria das vezes, pela eli­minação do vencido ou por sua absorção pelo vencedor. Neste último caso, constituíam-se, progressivamente, monopólios. Certos autores começaram a entrever os perigos que estes representariam para o produtor isolado e para o consumidor. Entre os assalariados, a concorrência levava, freqüen­temente, a encarniçadas lutas. A máquina, nos primeiros tempos da sua aparição, tornou inútil um grande número de braços. Crescendo a oferta de trabalho, tinham os assalariados de sujeitar-se a uma redução na taxa de seus salários, a fim de poderem empregar-se e substituir. A lei do "fundo de salário", que Stuart Mill tornara célebre, conduziria inexora­velmente os operários ao nível do mínimo de subsistência. De fato, nos primórdios do século anterior, ver-se-im eles, principalmente na Ingla­terra, a braços com a miséria negra, situação essa à qual não poderiam permanecer indiferentes os contemporâneos. 155

Page 156: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Julgavam muitos caber ao regime de liberdade econômica — o libera­lismo —, à livre concorrência, em suma, a maior responsabilidade por estes males. Este regime, deixando a produção na dependência da vontade dos indivíduos, imprime-lhe este caráter anárquico. Possibilitando, ainda, uma injusta repartição dos produtos, acarreta a miséria. E assim, trans­forma a vida econômica em uma verdadeira brenha inextrincável, na qual a luta pela existência termina fatalmente com a vitória do mais forte e o esmagamento do mais fraco.

Numerosas são as reações irrompidas contra o liberalismo. Será con­veniente agrupá-las em duas grandes correntes distintas, segundo se pro­punham, para corrigi-lo, atacar ou preservar a instituição da propriedade privada.

O primeiro abrange as doutrinas cujos autores, julgando ser a pro­priedade privada o instituto jurídico do liberalismo econômico, se insur­gem diretamente contra ela: é o grupo das reações socialistas.

O segundo — o das reações não socialistas — é formado pelas dou­trinas que, conservando as bases essenciais da propriedade privada, pro­curam estabelecer restrições à liberdade econômica. E isso através de di­ferentes formas de intervenção, tendentes a sujeitar a iniciativa privada ao controle e à supremacia de uma entidade superior, a qual poderá ser ora o Estado, ora a Nação, ora grupos representativos de interesses vários — gerais ou coletivos —, tais como o grupo familial, o confessional, o profissional etc.

No presente Título III estudaremos as reações abrangidas pelo pri­meiro grupo, ou seja, as socialistas.

O socialismo é uma grande corrente de pensamento que se insurge contra o liberalismo econômico.

O pensamento socialista é, sem dúvida, anterior à Escola Clássica. Platão, conforme vimos, fizera-se seu porta-voz na Antigüidade e, no de­curso dos séculos, jamais deixou de ter essa doutrina os seus deíensores. Convém, todavia, considerá-la agora sob a sua forma moderna, ou seja, em antagonismo com o regime de grande produção capitalista. Com efeito, esta grande produção e todas as suas conseqüências econômicas, sociais e políticas — separação entre o trabalho de execução e o de direção, entre trabalho e capital etc. — darão origem ao aparecimento de uma com­pacta massa obreira que coletivamente sustentará os seus defensores. Eti-mologicamente o socialismo poderia ser definido como constituindo a pri­mazia do social sobre o individual, contrapondo-se, assim, ao individualismo que reconhece a primazia inversa. Ora, a observação, mesmo superficial, de todas as idéias socialistas modernas desmente esse sentido que a eti­mologia sugere. De fato, ao passar o socialismo do plano filosófico para o da realidade econômica, perde de todo as suas primitivas características, e tal como o individualismo mais puro, entoa um hino de fé ao indivíduo.1

1. Cf. sobre o asasunto: L A S K I N E : Le Socialisme suivant les Peuples, p. 22; R. G O N -N A R D : Histoire des Doctrines Économiquès, p. 438, Paris, 1930.

I

Page 157: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Estando, assim, de acordo com a idéia principal do individualismo, será mais fácil ao socialismo não só partilhar de suas concepções.teóricas e científicas, mas também ampliá-las e transformá-las em função das fina­lidades de sua política social. Assim, transformado o fim do socialismo, de social torna-se individual: a antítese etimológica desaparece.

Convém, então, em primeiro lugar, antes de examinar as diversas correntes do pensamento socialista, precisar e destacar seus caracteres dis­tintivos principais.

Page 158: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

í l

C A R A C T E R E S GERAIS D O S O C I A L I S M O

§ 1.° — Da igualdade como traço característico

O estabelecimento da igualdade entre os indivíduos consutui o objetivo colimado por quase todas as doutrinas socialistas. É um dos traços de ordem intenta mais geral, embora não se apresente de forma precisa nem de maneira exclusivista.

De que igualdade se trata? Observou Pascal, muito judiciosamente, ser a expressão igualdade empregada em matemática com grande freqüên­cia, sem, entretanto, defini-la esta ciência em parte alguma. Seremos mais bem sucedidos no campo do socialismo?

A igualdade jurídica, tal como aparece nas cartas constitucionais dos diferentes países e particularmente na da França, a partir de 1789, não parece satisfazer às escolas socialistas, que a rejeitam ou a consideram apenas como uma etapa a caminho da plena realização do igualitarismo.

Esta igualdade total, buscada pelo socialismo, seria uma igualdade de fato. Em que consistiria exatamente esta igualdade de fato? Haverá, nas diversas doutrinas socialistas, perfeito acordo quanto à sua definição? Em absoluto!

Inúmeras são as divergências existentes nesse ponto. E três são as espécies de igualdade de fato que se apresentam, nos sistemas socialistas, como três objetivos diferentes.

Os mais teóricos buscam, na realidade, a igualdade aritmética, obje­tivo de quase todas as doutrinas socialistas. Objetivo ideal, que consistiria em proporcionar a cada homem as mesmas oportunidades de aproveita­mento da vida, bem como os mesmos meios de trabalho. Objetivo ideal quimérico, simples em teoria, irrealizável na prática, uma vez que os ho­mens se distinguem, entre si, pela desigualdade de necessidades, bem como

158 de capacidade.

Page 159: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Pensam outros, então, que se deve ter por objetivo a consecução de uma igualdade, não mais aritmética, mas porporcional, ou melhor: todo homem tem direito ao recebimento na proporção de suas necessidades e o dever de trabalhar em proporção com a sua capacidade e as suas forças. Tratar-se-ia, pois, da realização de uma igualdade superior, cuja regra, igual para todos, estaria de acordo com a fórmula sansimoneana: "A cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades." E, para tanto, necessário seria tornar comuns os meios de produção, bem como os de consumo: ter-se-ia, com isso, definido o comunismo 2 pelo seu objetivo e pelos seus principais meios de realização.

Mas, julgam outros existir ainda uma igualdade tanto mais desejável quanto dificilmente realizável parece ser a anterior. Com efeito, quem se incumbirá de apreciar o justo valor das necessidades dos homens, tão diferentes para cada um deles? Quem poderá dosar a "capacidade", a força de trabalho de cada um, dosagem necessária, entretanto, para asse­gurar a igualdade proporcional, pois, do contrário, cada indivíduo tratará de fornecer tão-somente um esforço muito próximo ao desenvolvido pelo menos apto. O homem, conforme observou Proudhon — socialista por sua vez —, pode amar o seu semelhante a ponto de por ele morrer, mas não a ponto de trabalhar por ele.

O objetivo igualitarista torna-se mais modesto: trata-se agora de as­segurar a igual repartição dos meios de produção. Consistindo, então, a igualdade em pôr à disposição de cada um meios de produção iguais, far--se-á a repartição não mais em função das necessidades, mas do traba­lho de cada um. Esta regra, "a cada um de acordo com o seu trabalho", criará divergências do ponto de vista da sua aplicação.

Desejarão alguns pôr em prática o participacionismo (partagisme) nos meios de produção. Tr^tar-se-á, neste caso, de um sistema não socialista, sistema parcelário, no qual cada um se torna proprietário de igual parcela dos meios de produção, gozando da liberdade de troca em relação ao pro­duto do seu trabalho.

Cogita-se, ainda, do apropriacionismo: sistema que confia aos grupos de trabalhadores a propriedade dos meios de produção das empresas, que, por natureza, pedem ser dirigidas em comum, tais como as minas e as fábricas. São, todavia, excluídas da área coletiva todas que não puderem constituir objeto de semelhante tipo de apropriação.

Pensam outros, enfim, no coletivismo, que pretende assegurar a igual­dade, atribuindo a cada trabalhador a co-propriedade não mais de em­presas de produção, de determinadas categorias, mas de todas as fontes de todos os meios de produção. O direito de propriedade privada ou gru-

2. O comunismo e x i g e a supressão do direito de propriedade privada dos m e i o s de produ­ção e dos meios de consumo, tornando-os cemuns. O coletivismo exige apenas a supressão do direito de propriedade p r i v a d a dos meios de produção. Na história das doutrinas estas duas concepções estão compreendidas — com outres s i s t e m a s de tendência semelhante •— na d e s i g n a ­ção de s o c i a l i s m : . Na l i n g u a g e m corrente freqüente é a confusão entre o social ismo, o c o l e t -v i s m o e o comunismo, dando lugar a interpretações falsas e a discussões por v e z e s inúteis.

Page 160: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

pai dos meios de produção será então substituído pelo chamado direito de propriedade "social". Aqui, tal como nos demais casos, não houve possibilidade de se chegar a um completo acordo relativamente à extensão a se dar a esta co-propriedade indivisa: julgam uns ser necessário demar­car-lhes os limites — limites provisórios, pelo menos —, deixando fora de seu campo a pequena produção agrícola, e mesmo artesanal, autônoma. Outros, entretanto, tais como Marx e Engels, recusam-se a estabelecer se­melhantes restrições e exigem se estenda a igualdade, através da co-pro­priedade dos meios de produção, a toda a economia, sem qualquer ex­ceção.

Esse objetivo igualitarista constitui, pois, segundo as escolas socialis­tas, matéria para concepções assaz divergentes e a cujo respeito longe se está de estabelecer acordo. É um traço, pois, insuficiente para caracteri­zar o pensamento socialista. Acresce, ainda, tratar-se de um objetivo que não é apanágio exclusivo do socialismo. A igualdade pertence à essência, tanto do participacionismo (partagisme) quanto do anarquismo. De um ponto de vista mais geral, pode-se afirmar mesmo inexistir doutrina social que de certa forma e certo grau não procure reduzir as desigualdades en­tre os homens. Um Bastiat, líder da escola liberal francesa, adversário do socialismo, escreverá, no prefácio de suas "Harmonies Économiquès": "Je crois que iinvisible tendance sociale est d'une approximation constan­te des hommes vers un certain niveau physique, intellectuel et moral, en même temps d'une élévation progressive et indéjinie de ce niveau."3

Concluindo: a igualdade constitui um traço característico do socia­lismo, podendo-se dizer mesmo um dos seus importantes caracteres inter­nos: todavia é, por si só, insuficiente para distigui-lo e defini-lo. A busca da igualdade e, deste modo a busca da justiça, é, sem dúvida, um dos maiores valores do socialismo, mas esse valor é dividido com outras ex­pressões doutrinárias do pensamento moral contemporâneo.

§ 2." — Da propriedade privada como traço característico

A socialização da economia constituiria um meio de se realizar a igualdade de fato: implicaria a limitação ou a supressão do direito de propriedade privada. Esta posição do socialismo em relação à propriedade privada constitui uma das suas características externas essenciais: todos os sistemas, que aí se inspiram, apresentam este traço distintivo.4

Na história do socialismo o que nos fere é a constância desse caráter de hostilidade à propriedade privada. Qualquer que seja o momento em

3. " C r e i o ser tendência s o c i a l i n v i s í v e l uma constante a p r o x i m a ç ã o dos homens a certo nível f ísico, intelectual e moral, e ao m e s m o temno uma progressiva e indefinida e l e v a ç ã o desse n í v e l . "

4. " T o d o s os s istemas s o c i a l i s t a s se caracterizarão Delo fato de não admitiram t ê n i s um m í n i m o de propriedade p r i v a d a " , V i l f r e d o P A R E T O : Les Systemes Socialistes, t. I, o. 110. " S o ­c i a l i s t a integral — escreve o s o c i a l i s t a i tal iano F E R R I — será tão-somente aquele que reclamar a t r a n s f o r m a ç ã o da propriedade privada em co le t iva" (c i tação de R. G O N N A R D , ob. cit., p.

Page 161: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

que se observe, apresenta-se o socialismo sempre em nítido antagonismo com o regime de propriedade da sua época, embora haja esse regime, como todas as instituições humanas, evoluído incessantemente, uma vez liberto da promiscuidade coletiva.

Platão, na sua "República", ataca a propriedade de seu tempo, e as­sim também Thomas Morus, em relação à do século XVI, e Mably, God-win e Babeuf, quanto à do século XVIII. Os socialistas, às vésperas da revolução de 1789, vão igualmente insurgir-se contra o direito de proprie­dade que o código civil acabava de estabelecer e lutará Marx contra a propriedade no século XIX.

A história do socialismo constitui um protesto, continuamente reno­vado, contra o regime de propriedade privada, regime único em princípio, embora mutável na forma, prolongamento, no tempo e no espaço, da per­sonalidade humana e base essencial, até ao presente, de toda a organiza­ção econômica, instituição fundamental da civilização.

Na era moderna, insurge-se o socialismo, tal como no passado, con­tra a propriedade privada e, particularmente, contra a empresa privada, corolário daquela: e isso por tê-la como a principal causa da má produ­tividade e da injusta repartição das riquezas.

A fim de dar cabo desses inconvenientes, propõe, quer a limitação, quer a supressão da propriedade privada. Daí as duas formas: o coleti­vismo e o comunismo.

O primeiro limita tão-somente a propriedade privada, propondo para tal efeito a comunhão dos meios de produção.

O segundo, visando à supressão completa da propriedade privada, pro­põe o estabelecimento da comunhão dos meios de produção e de consu­mo. Esta será, aliás, a diferença essencial existente entre as duas referi­das formas de socialismo — o comunismo e o coletivismo —•, as quais devem ser bem caracterizadas, a fim de evitar as confusões freqüentemen­te feitas.

A hostilidade do socialismo para com a propriedade privada consti­tui, pois, uma das principais características externas, permanente quanto ao espírito, mutável quanto à sua aplicação.

§ 3.° — Da liberdade como traço característico

O socialismo toma posição também contra o próprio princípio de or­ganização da economia liberal — a liberdade.

Esta liberdade constitui,, para os clássicos, um regime econômico no qual a oferta e a procura se ajustam espontaneamente, através do meca-

Page 162: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

nismo dos preços. Esse mecanismo, quase automático, funciona — e só pode funcionar — em um regime de livre concorrência.5

E sobretudo a livre concorrência parecerá ao socialismo viciosa, uma vez que não está em condições de assegurar a melhor produção dos bens nem a sua distribuição eqüitativa e, muito menos, a harmonia de interes­ses — individual e geral — tão convictamente afirmada pelos clássicos. Assim, pois, enquanto consideram estes últimos a liberdade como o qua­dro indispensável ao funcionamento do mecanismo da vida econômica, vão os socialistas combatê-la, propondo substituí-la por uma organização racional dos elementos econômicos. Para todos os sistemas socialistas a expressão livre concorrência deve ser substituída pela palavra plano. So­cialização da economia significa sua planificação.

Este plano, esta organização premeditada, preestabelecida pelo homem, abrangerá este ou aquele setor da economia, conforme o sistema de que se trate. Uns vão aplicá-lo à produção: esta a linha essencial dos proje­tos de um Fourier ou de um Saint-Simon e outros, tais como Proudhon, que visa ao setor da circulação. Outros, enfim, tais como Marx e os mar­xistas, estenderão esse plano à organização, a um tempo, da produção, da circulação e da repartição.

O resultado que se tem em vista consiste sempre em extinguir-se o que há de espontâneo e livre na iniciativa privada. Para consegui-lo, contam uns com as próprias vantagens oferecidas pelo plano, as quais, impondo-se por si mesmas, levarão à sua aceitação voluntária por parte de todos os interessados: assim pensaram Fourier, Considérant e Owen. Outros há que julgam necessário lançar mão da coerção para garantia da aplicação do plano. Estes constituirão uma corrente autoritária, das mais importantes dentre os sistemas socialistas, representada principalmen­te por Marx.

Tem, pois, o socialismo por traços característicos essas três idéias: igualdade, propriedade e liberdade, através das quais será possível dis­tingui-lo, imprimindo-lhe elas unidade como doutrina.

A igualdade constitui o objetivo colimado. A supressão — total ou parcial — da propriedade privada e da liberdade econômica serão os meios preconizados para a consecução daquele objetivo.

Convém ainda prosseguir nesta análise, a fim de se destacar, ao lado destas características principais, certo número de outros traços distintivos que, a despeito de não serem peculiares tão-somente ao socialismo, servi­rão para melhor apreensão do seu pensamento e natureza.

5 . E s t e é o c o n f l i t o e n t r e "produtividade" e "rentabilidade", a s s i n a l a d o n r i n c i p a l m e n t e p o r R O D B E R T U S e E F F E R T Z . E s t u d a d o d e m a n e i r a a p r o f u n d a d a p o r A . L A N D R Y , e m Utilité dela Proprieté Individuelle, F a r i s , 1 9 0 1 , d i s c u t i d o p o r B O U R G U I N , in Revue de Métapbysique e t d e Morale ( s u p l e m e n t o , j u l h o , 1 9 0 1 ) , f o i r e t o m a d o c o m v i g o r p o r T h o r s t e i n V E B L E N q u e o p õ e a c o n c e p ç ã o d e "indusTy" — c a r a c t e r i z a d a p e l o m á x i m o d e p r o d u t i v i d a d e — à d e "bu-siness" — c a r a c t e r i z a d a p e l o m á x i m o de g a n h o ( c f . p r i n c i p a l m e n t e = The Theory of Business Enterprise, 1 9 0 4 ; The Engineers and the Price System, 1 9 2 1 ; Absentee Ownership, 1 9 2 3 ) .

Page 163: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ 4.° — Características relativas ao espírito

O socialismo se divide, quanto ao espírito, em dois grandes grupos, conforme se tomem em consideração pontos de vista éticos e jurídicos, ou se rejeite, substituindo-os por um ponto de vista materialista, segun­do o qual a vida orgânica constituiria a principal finalidade da vida hu­mana:

A primeira concepção espiritualista será peculiar à grande maioria dos socialistas franceses e ingleses dos séculos XIX e XX. 6 Constituirá a segunda, de maneira mais específica, a base do socialismo alemão que, freqüentemente, lhe acrescentará, como característica, um determinismo quase absoluto.

Este materialismo, secundado pelo determinismo, é o conhecido "ma-terialismo histórico" marxista, concepção impregnada da poderosa influência dos fatos sobre o pensamento.

Em contraposição, a concepção oposta — o espiritualismo — se faz acompanhar quase sempre da característica voluntarista, reconhecendo, as­sim, à vontade humana a possibilidade de atuar sobre a evolução dos acon­tecimentos.

Observemos ainda que o socialismo do último século, em seu espíri­to, não reveste a característica de científico. Não existe uma ciência eco­nômica socialista, no sentido da que nos legaram os clássicos. O socialis­mo não faz obra de ciência: julga, prescreve, sugere e entrega-se à ação. Em resumo, mantém-se sempre nos limites da doutrina.

O próprio socialismo da segunda metade do século XIX, que a si mes­mo se qualificou de "científico", está longe disso. E, se de certa forma, se lhe concede tal característica, isso se dá em grande parte quando e na medida que leva em consideração os resultados da ciência econômica, isto é, quando toma de empréstimo à Escola Clássica as suas teorias.

O socialismo não se caracterizou, portanto, por um traço científico. Será, talvez, conforme diz Durkheim, "um grito de dor e, por vezes, de cólera",7 ou ainda, "uma religião".8 Mas, "o que de propriamente cientí­fico existe no socialismo não é socialista, e o que é socialista não é cien­tífico".*

E, em virtude de se colocar o socialismo, não no plano científico, mas. sim, no plano doutrinário, tenderão as diferentes correntes de idéias, que aí se inspiram, para a multiplicidade e não para a unidade.

6. Ler p r i n c i p a l m e n t e — C h . R E N A R D : Paroles d'Avenir, 1904: " F o s s e o s o c i a l i s m o con­trario à razão e à j u s t i ç a , d e v e r í a m o s recusar-lhe o nosso concurso, ainda que nos d e m o n s t r a s ­sem sermos para lá c o n d u z i d o s pela e v o l u ç ã o h i s t ó r i c a . "

Ch. A N D L E R : Les Origines du Socialisme d'État en Allemangne, 1897. ( " É - s e s o c i a l i s t a tao-somente por c o n v i c ç ã o fi losófica e por s e n t i m e n t o . " )

7. D U R K H E I M : Revue de Métaphysique et de Morale, 1921. 8. Ed. D O L L E A N : Le Caractère Religieux du Socialisme, Revue d'tconomie Politique,

1906.

9. L A S K I N E : Le Socialisme suivant Jes Peuples. p. 62.

Page 164: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Realmente, a partir da primeira metade do século XIX, começam a surgir numerosos sistemas socialistas. Marx qualificou-os de utópicos. De fato, caracteriza-os o traço espiritualista. Franceses e ingleses serão os seus mais célebres representantes.

Na segunda metade do século, subordinar-se-á o pensamento socialista ao marxismo que, em 1848, fez a sua aparição com o "Manifesto comu­nista", e se imporá sobretudo a partir da publicação de "O Capital", em 1867.

Formará, a seguir, o socialismo — sem se identificar com o marxis­mo, a cuja forte influência, entretanto, não escapou —, no campo da táti­ca e da política, os diversos sistemas ainda hoje existentes.

Socialismo espiritualista, chamado utópico; socialismo marxista, dito científico; socialismo post-marxista: eis aí três divisões nas quais, logica­mente, se agruparão as doutrinas socialistas à medida que se constituem. E, através destas correntes, acompanharemos, cronologicamente, a sua evo­lução e transformação, a partir dos fins do século último até aos nossos dias.

Page 165: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O S O C I A L I S M O ESPIRITUALISTA, C H A M A D O U T Ó P I C O

Esta corrente socialista surge com o. advento da grande indústria e desenvolve-se sobretudo até à época em que apareceu "O Capital", de Marx: estende-se, pois, de fins do século XVIII ao último terço do sé­culo XIX.

Difunde-se, principalmente, na França e na Inglaterra. Os autores desses dois países lhe imprimirão as formas mais conhecidas e os seus fi­lósofos vão fornecer-lhe os traços característicos mais acentuados, exceção do marxismo que, mais tarde, irá buscar na filosofia alemã a própria es­sência do seu pensamento.

Esse socialismo utópico apresenta duas características principais: es­piritualista e voluntarista-

Espiritualista, e não materialista, está todo impregnado de um ideal de justiça e de fraternidade. Com a melhoria do meio econômico busca realizar mais do que um acréscimo de bem-estar material, ou seja, uma organização social eqüitativa e mais justa repartição per capita- Este o ideal jamais abandonado por Owen, Fourier, Saint-Simon ou Proudhon. Esse, também, o traço que melhor definirá esse socialismo.

Voluntarista, e não determinista, confia esse socialismo no poder da razão para descobrir as falhas da organização econômica existente e os re­médios conducentes a essa melhoria. Voluntarista, inspira-se esse socialis­mo na tradição da liberdade de Descartes, contrapondo-se à dialética de Hegel. Admite a possibilidade de atuar a vontade humana sobre a evo­lução econômica, de modo a reformá-la, orientando-a no sentido do pro­gresso. Por acreditar na possibilidade de uma ação progressiva, por confiar nas forças humanas e morais, é este socialismo otimista. E por isso evita, na maioria das vezes, o emprego de toda e qualquer violência para a con­secução do seu objetivo. Tal objetivo — ou seja, a correção do liberalismo à medida que os resultados econômicos parecem maus — poderá ser alcançado de diferentes maneiras. A despeito, pois, da homogeneidade dos 165

Page 166: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

seus traços característicos, apresenta o socialismo espiritualista, ao ser apli­cado, inúmeras modalidades. Alguns socialistas espiritualistas procurarão transformar o liberalismo, utilizando-se sobretudo da associação. Outros procurarão atingir o mesmo objetivo, atuando sobre a produção e, parti­cularmente, sobre a produção industrial. Finalmente, julgarão outros in­dispensável, antes do mais, a modificação do regime de trocas, se é que se deseja realizar a necessária reforma da sociedade.

Poder-se-á distinguir, assim, neste socialismo espiritualista, três cor­rentes principais: a corrente associacionista, a industrialista e a corrente de trocas.

Seção I

O SOCIALISMO ASSOCIACIONISTA

O socialismo associacionista vê, no regime de livre-concorrência, « principal causa de um vicioso estado econômico e social. À livre-concor­rência caberá a responsabilidade da má produção e da injusta repartição das riquezas. Seus adeptos vão procurar suprimir o regime da livre-con­corrência, respeitando, todavia, a liberdade: problema difícil, a cujo estudo e solução se entregaram inúmeros sistemas socialistas.

A solução, para os asscciacionistas, está, pois, na transformação do meio econômico e social. O indivíduo isolado, célula econômica do mun­do clássico, seria substituído pela associação, constitutiva do novo meio ambiente. Por esta forma, o antagonismo dos interesses privados, oriundos da concorrência, seria substituído, nos setores da produção e da repartição, pela colaboração destes mesmos interesses, decorrentes da associação.

Os associacionistas dão ênfase ao que, em Sociologia, se chama* de etiologia, ou seja, a subordinação do indivíduo ao meio. Transferem para o campo da economia a teoria biológica de Lamarck, para daí deduzir a possibilidade de transformar o homem através da influência de um novo meio ambiente.

Esse meio ambiente não existe no estado natural; é preciso criá-lo. E tão profunda é a convicção de alguns associacionistas de existir essa

, força de atração e persuasão por parte da associação, que, segundo eles, bastará dar a conhecê-la ao homem para que este a adote livremente. Pensam outros ser indispensável uma autoridade superior que a imponha.

Daí, duas principais correntes associacionistas: uma liberal, outra au­toritária.

O associacionismo liberal constitui a transição do liberalismo clássico ao socialismo: o associacionismo autoritário prenuncia o socialismo mar-

166 xista.

Page 167: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ 1.° — A corrente associacionista liberal

A) ROBERT OWEN

Robert Ovven é um dos mais originais representantes do socialismo associacionista. O pensamento socialista nenhuma novidade era, aliás, para a Inglaterra: exprimiram-no, sob uma forma utópica, Thomas Morus 1 e Harrington, nos séculos XVI e XVII. Perpetuara-o Godwin, de maneira mais científica, no século XVIII. E, no século XIX, o associacionismo nada mais faria do que continuar uma antiga tradição socialista, sob uma forma mais ajustada à evolução da economia e às necessidades práticas da época.

Robert Owen,2 personalidade atraente, grande industrial, já nos pri­mórdios do século passado e com uma energia que jamais esmorece, vai buscar uma solução para o problema social e econômico. A palavra de ordem, em toda sua vida, será: agir! A despeito da falta de êxito das suas iniciativas, mantém-se invencível na sua coragem, constituindo sua vida um perpétuo hino à ação. Owen deve, por conseguinte, ser com­preendido, antes pelos atos que caracterizaram sua vida do que pelos seus livros. Aliás, seus trabalhos doutrinários são pouco interessantes. Faltam às suas idéias filosóficas, e à sua cultura geral, profundidade e extensão. Limitado também é o seu espírito crítico. Em compensação, sua obra prática é, entretanto, importante e de grande valor, quer em si mesma, quer em suas conseqüências. Muito jovem ainda, tem sob sua direção im­portantes fábricas de fiação de New Lanark. Neste meio industrial, ao qual pertence, fará as primeiras tentativas de aplicação das suas idéias socialistas. Em New Lanark, como, aliás, por toda a parte nessa época, deploráveis eram as condições de trabalho do operário. Jornadas de tra­balho excessivamente longas, remuneração insuficiente e segurança precá-

1.' Em 1518 apareceu o trabalho conhecido sob a d e n o m i n a ç ã o de Utopia, cujo t i t u l o e x a t o é, entretanto. De omni republicae statu, deque nova insula Utopia, L o u v a i n , 1518.

Seu autor, e x c e l e n t e h u m a n i s t a e amigo de E r a s m o , c o n t a v a então 35 anos. T c r n o u - s e , em 1531, chanceler da I n g l a t e r r a , tendo sido condenado à morte e decapitado em 1535. C a t ó l i c o fer­voroso, foi a sua fé, sustentada com firmeza, a causa da sua desgraça. A Igreja C a t ó l i c a ins­creveu-o na lista dos santos. ( L e r : O Bem-aventurado Thomas Morus, na Coleção dos Santos do Aba de Brémond, 1904.) A Utopia contém a primeira e x p l a n a ç ã o de um c o m u n i s m o econômi­co e i g u a l i t a r i s t a . C o n t é m , t a m b é m , a obra, uma parte d e d i c a d a à crítica das i n s t i t u i ç õ e s , da polít ica e dos c o s t u m e s da Inglaterra no século X V I . As melhores edições s ã o : a inglesa pu­blicada em O x f o r d , em 1895; The Utopia of Sir Thomas Morus, e francesa: L'Utopie. Intro-duetion et Notes par Marcelle B O T T I C E L L I - T I S S E R A N D . Sobre a utcoia em g e r a l e a de Morus em particular, ler S E R V I E R , J . : Histoire de 1'Utopie, Paris, 1967.

2. Robert O W E N (1772-1858) nasceu no P a í s de G a l e s , provindo de uma f a m í l i a de m o ­destos artesãos. A p ó s haver g a l g a d o os diferentes d e g r a u s da produção, a partir do aprendiza­do, tornou-se, por v o l t a dos 30 anos, co-proprietário e diretor de importantes indústrias esco­cesas, de f iação em N e w Lanark. C o m e ç o u , pois, a pôr em prática, na própria indústria, as suas concepções sociais e econômicas. Entre 1817 e 1822, foi freqüentemente a L o n d r e s , para tentar convencer as autoridades inglesas, bem como as estrangeiras, da necessidade das refor­mas indispensáveis , s e g u n d o a sua opinião, no setor da produção. Partiu em s e g u i d a para a A m é r i c a do N o r t e , onde fundou, aliás sem êxito, a Nova Harmonia, no E s t p d o de I n d i a n a . R e ­gressando à I n g l a t e r r a continuou, até ao fim da sua v i d a — faleceu aos 87 anos — a lutar, sem esmorecimento, pelo triunfo das suas idéias, fazendo-se ora conferencista, ora j o r n a l i s t a e ora escritor. Dentre suas obras podemos destacar as s e g u i n t e s : Report on the Poor. 1 8 1 7 ; What Is Socialist? ( pan fl e t o) , 1841, e, sobretudo, o seu The Book oí the New Moral World, 1820.

Sobre O W E N , consultar Edouard D O L L É A N S : Robert Owen, Paris, 1907; P O D M O R E . F., Robert Owen, ( b i b l i o g r a f i a ) . N. Y . . 1907: D U B O I S : Robert Owen. in Grande Revue, 10 de fevereiro de 1912.

Page 168: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ria; absoluta falta de conforto e higiene na vida do operário. Dentro de alguns anos, transformará Owen este estado de coisas, a despeito dos obs­táculos de toda a natureza, inclusive a desconfiança por parte dos próprios operários. Organiza a educação moral de seus obreiros: cria escolas para eles e seus filhos, uma vez que os seus mais diligentes esforços se orientam no sentido de manter instrução e educação, cujo papel lhe parece de mag­na importância para a melhoria das condições do proletariado.3 Reduz, de 17 para 10 horas, a duração da jornada de trabalho. Recusa-se a admitir no trabalho crianças de menos de 10 anos. Introduz melhoramentos na alimentação e no alojamento de seus operários, instalando refeitórios, ins­tituindo e criando economatos e cidades-jardins confortáveis. Organiza a assistência aos doentes e inválidos. Graças à sua energia realizadora, em doze anos torna-se sua empresa uma indústria-modelo, verdadeiro centro de peregrinação aristocrática, pela qual a Europa inteira se interessa. A despeito da divulgação das suas iniciativas pela Inglaterra e pelo continen­te, poucos imitadores teve de fato seu exemplo entre outros patrões. Não esmorece, entretanto, Owen: volta-se para o governo e pleiteia a obriga­toriedade de realizarem os patrões o que espontaneamente não desejavam fazer em prol dos seus operários. Com esse objetivo vai a Londres. De­fende com ardor sua causa junto às altas personalidades de seu país. Di­rige-se também aos governos estrangeiros.

Sua ação nesse terreno, embora não se possa dizer de tcdo nula, pro­duz poucos resultados. Owen contribuiu, sem dúvida, para que o Parla­mento inglês votasse a lei de 1819, fixando em 9 anos de idade a admissão de menores no trabalho e, em doze horas, a duração da jornada de tra­balho. Mas o campo de aplicação desta lei é muito restrito — abrange tão-somente as fiações de algodão — e aleatória a sua execução, uma vez que, a despeito das suas exigências, Owen não previu a organização de qualquer tipo de fiscalização do trabalho. Verificando a inércia e a má von­tade dos patrões e do Estado, dirige-se Owen, então, diretamente aos ope­rários e, por intermédio da associação, busca criar um novo meio, que julga indispensável à solução dos problemas econômico e social. Concebe esta associação sob a forma de colônias — sobretudo agrícolas — com­postas de 700 a 2 000 indivíduos*, economicamente auto-suficientes. Deve reinar aí o igualitarismo absoluto. A repartição será feita de acordo, não com a capacidade de cada um, mas, sim, com as suas necessidades. Esta idéia fora, aliás, exposta per Brissot, em 1780, em sua obra "La Proprieté et le Vol", sendo, alguns anos mais tarde, retomada por Godwin na sua "Enqüiry cencerning Political Justice", publicada em 1793.

No âmbito, pois, das colônias comunistas, deseja Owen realizar a as­sociação. Este projeto concretiza-se, de fato, em 1824, quando criou nos Estados Unidos — em Indiana — a colônia comunista "New Harmony", formada por 2 500 europeus que para lá consigo levara. Essa tentativa terminou ao cabo de apenas dois anos, com um completo insucesso.

3. Conforme indicamos, sofreria Stuart M I L L , neste ponto, a influência de O W E N .

Page 169: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Volta Owen a Londres e, com a coragem de sempre, entrega-se de novo ao trabalho. O malogro da sua "New Harmony" convence-o da im­possibilidade de criação imediata do novo meio. Seu objetivo torna-se, doravante, menos ambicioso. Procurará, sem dúvida, criar, através da as­sociação, este novo meio, começando, todavia, por preparar o terreno e os espíritos para a progressiva modificação da sociedade econômica existente. Trata de transformá-la, corrigindo algumas de suas falhas essenciais, tais como, em primeiro lugar, a instituição do lucro.

Owen pensa, com efeito, constituir o lucro um dos vícios mais graves e perniciosos da economia: grave por simbolizar ele a desigualdade social, aumentando-a e perpetuando-a; pernicioso, porque, ao se integrar no pre­ço de custo — que é o justo preço —, vai este lucro tornar impossível ao operário a aquisição do produto do seu trabalho, 4 acarretando, em con­seqüência, o subconsumo que, para Owen, constitui a principal causa das crises. Este perigo lhe parece tanto maior quanto acabava de se manifes­tar, de maneira particularmente violenta, a crise de 1815.

Ora, o lucro materializa-se na moeda. Julga Owen, então, ser sufi­ciente a supressão da moeda, para que se suprima o lucro: propõe, assim, substituí-la por bônus de trabalho (" labour notes").

Julga também, secundando Ricardo, ser o trabalho a causa única e medida do valor: cada bônus representará uma hora de trabalho e cada um dos produtos valerá tantos bônus quantas sejam as horas de trabalho exigidas para fabricá-lo.

A troca dos produtos far-se-ia em função do seu valor-trabalho: o justo preço estaria, assim, assegurado, e suprimido o lucro. Põe-se Owen em ação e executa esse projeto. Organiza, em.Londres, em 1832, o "Na­tional Equitable Labour Exchange". É uma espécie de vasta cooperativa, que receberá o produto do trabalho de cada um dos associados e os tro­cará, de acordo com a sua estimativa, em bônus de trabalho.5

O malogro não se fez demorar. As trocas deviam, em princípio, ser feitas pelo justo preço. Mas, os proprietários procuravam elevar o preço dos seus produtos, uma vez que se incumbiam eles próprios da sua ava­liação. Além disso, começaram logo os associados a carrear para a bolsa produtos de difícil venda: a troca tornava-se, assim, impossível. Criara Owen, afinal, a bolsa, com o objetivo de poderem os operários vender o produto do seu trabalho, de modo a obter, em troca, o seu integral valor. Ora, em uma sociedade onde não haja a socialização dos meios de produ­ção, só muito raramente poderá o trabalhador tornar-se proprietário do produto do seu trabalho: nestas condições, de nenhuma utilidade lhe seria essa bolsa de trocas.

4. R o b e r t O W E N torna, assim, evidente a e x i s t ê n c i a de uma mais-val ia , n o ç ã o retomada particularmente por M A R X . W i l l i a m T H O M P S O N , em An Inquiry into the Principies ol Dis-tribution ol Wealth most Conducive to Human Happiness, 1824, insiste no d i r e i t o do operário ao produto integral do seu trabalho.

5. V e r i f i c a - s e de novo, aqui, a influência persistente das duas c r e m a t í s t i c a s de A R I S T Ó ­T E L E S , já b a s t a n t e acentuada — conforme v i m o s — nos canonistas e nos f is iocratas. Influen­ciado por essa n o ç i o , elabora O W E N o seu projeto de B o l s a de T r o c a s , origem das coopera­tiva».

Page 170: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Verificou Owen, assim, desde logo, ser perigoso organizar as trocas pretendendo dispensar o mecanismo dos preços e não levar em conside­ração a lei da oferta e da procura. Era, aliás, evidente, que, desejando-se suprimir o lucro por meio da supressão da moeda, retomava Owen uma idéia tão antiga quanto o próprio socialismo, mas de todo falsa. O lucro nenhuma relação tem com o instrumento de troca: indica a observação a existência de lucro na troca natural. E, precisamente nessa forma primi­tiva de trocas, assume por vezes o lucro vastas proporções por falta de precisão na comparação dos valores possibilitada pela moeda. Este vnovo malogro, menos ai- Ja que os anteriores, abatera Owen. Era seu desejo ver triunfar sobretudo a idéia de associação, necessária à realização do "novo mundo moral". Não se cansa, pois, de difundir suas idéias, através, quer da palavra oral — nas numerosas conferências realizadas —, quer da escrita — em livros, como "O Catecismo do Novo Mundo Moral" (1820) e em artigos de um jornal publicado a partir de 1834.

Essa inesgotável energia, essa atividade sem esmorecimento, imprime à personalidade de Robert Owen uma desenvoltura heróica, que infunde respeito.

Embora contenham as suas tentativas uma parte utópica — sobretu­do aquela em que pretende ignorar certos dados evidentes, tais como o interesse privado do homem, aliás, razão principal do seu malogro —, en­cerram também, em seu bojo, concepções generosas e razoáveis que lhes valeram as repercussões havidas. Com efeito, pela sua atuação junto aos empregadores e ao governo, foi Owen o precursor das inumeráveis reali­zações de iniciativas das instituições patronais e de uma legislação traba­lhista como a atualmente introduzida em todos os grandes países.6

A sua própria experiência associacionista vai deixar traços profundos. Vai, por exemplo, concorrer para pôr em evidência, rio pensamento

socialista, a importância que para o homem teria a modificação do meio econômico. Numerosas serão, pois, subseqüentemente a Owen, as ex­periências tentadas no decurso do século XIX, com o objetivo de criar um novo ambiente onde não mais imperasse c espírito de concorrência, mas, sim, o de associação. Owen é o primeiro a colocar o problema da civilização industrial não somente no plano econômico, mas também, e so­bretudo, no plano humano.

Traços profundos das suas idéias se encontrarão ainda em realizações posteriores: a despeito do desaparecimento da bolsa de trocas, na sua forma primitiva, sobreviveu a idéia da supressão do lucro através da as­sociação. Vamos encontrá-la de novo no Banco de Trocas, de Proudhon, e, sobretudo, nas cooperativas que, a partir de 1842, terão, com a inicia­tiva dos pioneiros de Rochedale, um surto de rápida expansão. Este mo­vimento cooperativista, cujo primeiro impulso proveio de Owen — ao qual deve também a sua grande celebridade —, pouco lhe interessava.

6. N o s seus " D e u x M é m o i r e s " e n v i a d o s , em 1818, ao C o n g r e s s o de A i x - e n - C h a p e l l e , en­contra-se uma das primeiras t e n t a t i v a s de o r g a n i z a ç ã o da projeção do trabalho no plano inter­nacional .

Page 171: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A despeito das múltiplas e duradouras influências exercidas pela sua obra, não chegou Owen a constituir propriamente uma escola. Poucos são os seus discípulos.

William Thompson, que será um deles, imbuído das idéias de Owen relativas à necessidade da criação de comunidades socialistas livres — meio social indispensável à criação do associacionismo —, revela-se, en­tretanto, superior ao mestre no que respeita à elaboração doutrinária. Su idéias relativamente à liberdade de trabalho, bem como à sobrevalia, as sentam sobre sólidos e profundos conhecimentos econômicos. Parece que o discípulo, nesse terreno, chegou a dar lições ao mestre. Owen, ao re­gressar dos Estados Unidos, após o malogro "New Harmony", soube tirar grande proveito da leitura da "An Inquiry into the Principies of the Dis-tribution of Wealth most Conducive to Human Happiness", que Thomp­son acabara de publicar em 1824.

Êtienne Cabet7 inspirou-se em Owen de maneira mais direta. Ex--secretário geral do Ministério da Justiça, da França, no governo de julho, ex-procurador da República revogada, ex-deputado, nada parecia predispor Cabet a pregar a constituição de colônias comunistas, a exemplo de Owen. No entanto, foi o que fez na sua "Voyage en Icarie", onde se encontram também traços da influência da "Voyage en Utopie", de Thomas Morus, bem como do pensamento de Babeuf. Todavia essas conclusões, relati­vamente à necessidade de associação, foram diretamente inspiradas pelas idéias de Owen. Funda, aliás, como este último, uma colônia comunista nos Estados Unidos, a qual, sem se conservar na pureza teórica, subsistiu até 1898.

B) CHARLES FOUR1ER

Com Robert Owen manifestou-se o socialismo associacionista através de tentativas de realizações práticas. Quanto a Charles Fourier,8 seu con­temporâneo, verifica-se exatamente o contrário: sua obra é sobretudo dou­trinária e teórica.

No decorrer de uma vida apagada, deu Fourier livre expansão à sua extraordinária imaginação, por vezes mórbida, escrevendo livros curiosos onde, de mistura com o que há de interessante e profundo, se amontoam,

7. Sobre o s i s t e m a de C A B E T e a H i s t ó r i a de I c á r i a , ler: 1. P R O U D U M - M E A X : L'Icarie et Sou Fondateur Etienne Cabet, Paris , 1923; F. B O N N E A U D : Cabet et Son O e u v r e , Paris , 1900.

8. N a s c e u em F r a n ç a , no Jura, em 1772. A u t o d i d a t a , de imaginação e x u b e r a n t e , parece que — em v i r t u d e da lei das compensações — lhe foi p o s s í v e l introduzir nos seus l i v r o s toda aquela a çã o e p a i x ã o de que lhe privara uma v i d a incolor, monótona, de solteirão e de m o ­desto empregado. Morreu em 1837, deixando m a n u s c r i t o s importantes (em particular, o Discurso Preliminar) dos quais a l ? u n s serão publicados pelo jornal " L a P h a l a n g e " . Suas p r i n c i p a i s obras são as s e g u i n t e s : Tbéorie des 4 Mouvements, 1808; Tbéorie de 1'Unité Universelle, 1822; Le Nouveau Monde Industriei et Sociétaire, 1820; La Fausse Industrie, 1835-36.

Sobre F O U R I E R , ler H u b e r t B O U R G I N : Fourier; GIDE: Oeuvres Choisies de Fourier; M. L A M B U C : Le Socialisme de Fourier, 1899; L A N S A C : Les Conceptions Méthodologiques et Sociales de Fourier, 1926; P O I S S O N , E. Fourier, P a r i s . 1932; F. A R N A U D e R. M A U B L A N C ; Fourier, 1937. 2 v o l s .

Page 172: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

por vezes, o absurdo e o anormal. Esse entrelaçamento pouco habitual e desconcertante vai impedir seja Fourier levado a sério pela maioria dos seus contemporâneos. Foi, pois, preciso o concurso do tempo para que, decantada a sua obra, surgissem os múltiplos aspectos interessantes que lhe asseguram um lugar na história das doutrinas econômicas.

Pela análise, o fourierismo se desdobra em uma concepção — a asso­ciação livre e universal — e um projeto de realização: o "falanstério".

1. A CONCEPÇÃO FOURIERISTA: A ASSOCIAÇÃO LIVRE E UNIVERSAL

Fourier parte da idéia de serem os homens acionados pelas paixões. Estas paixões são, em si, boas e úteis, como forças criadas por Deus. Fa­zem parte do funcionamento do plano divino, tendendo à realização de certa ordem — de uma harmonia desejada pela providência. É como se, no século XIX, soasse ainda o eco das notas da ordem providencial, vi­gorosamente percutidas pelos fisiocratas, no século anterior.

Ora, segundo Fourier, a observação indica-nos que as paixões de iní­cio excelentes, se degeneram freqüentemente em vício. Por quê? Tão-só em virtude de não poderem exprimir-se livre e plenamente. O meio social é que impede a sua livre orientação e expansão.

Na crítica que faz à organização existente revela-se Fourier muito su­perior a Owen. É espirituoso, mordaz e, por vezes, bastante exato. O obstáculo oposto ao livre curso das paixões reside, na sua opinião, na ins­tituição da propriedade privada. Este o instituto que torna o meio social e econômico anárquico e atomizado.

Anárquico, pois, imperando a concorrência, esta dá origem a abusos e explorações de todas as espécies, na ordem social.

Atomizado, determina, na ordem econômica, péssimo rendimento do trabalho, com desperdício das forças humanas e materiais.

A insuficiente produção constitui o vício fundamental do meio em que predomina o individualismo. Fourier insiste neste ponto, pois, socia­lista — e sem dúvida o é —, julga ser o problema mais importante a re­solver, não o da melhoria da produção, e, sim, o da repartição.

A anarquia e a atomização do meio ambiente constituem outros tan­tos obstáculos opostos à livre expansão das paixões humanas. Em outros termos, este ambiente chamado liberal nada tem de livre; daí, ser vi­cioso.

"O mal de que sofre o homem, sobretudo quanto às suas condições de vida, consiste na ausência de liberdade econômica, embora, por estra­nha ironia, seja em nome desta liberdade que defende o estado social exis­tente." Assim se exprime ele, e, através de sua pena — por vezes violen-

Page 173: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

t a 9 —, manifesta-se a reação socialista contra a doutrina liberal e sua conclusão relativamente à liberdade de ação ("laissez-faire"), atribuindo--lhe a responsabilidade pela situação freqüentemente desastrosa na qual, então, se encontravam os trabalhadores da indústria.

Sendo viciado o meio ambiente, exigia-se a sua transformação. Ne­cessário era organizar um meio, social e econômico, que "correspondesse à natureza humana", segundo as expressões do melhor discípulo de Fou­rier, Victor Consideram. 1 0

O exemplo vem-nos de cima: o universo é soberanamente regido pela força de atração física, derivada da lei da gravitação. Newton, ao tornar evidente esta lei, demonstrou a harmonia planetária daí decorrente. O que é verdade para o mundo físico o é também — julga Fourier — para o mundo social. Este mundo é também regido por uma lei de atração, ou seja, a lei de atração moral constituída pelas paixões. É igualmente uma lei de fundamental. importância desde que lhe permitamos funcionar li­vremente.

Neste ponto a imaginação de Fourier se excede, criando uma vasta cosmogonia, à qual chega através de analogias que estabelece entre o mun­do celeste e o mundo terreno social, analogias por identidade de meca­nismos — a atração; analogias por identidade de gênio inventivo, pois Fourier se compara a Newton. . . ; desde então, a história humana se apresenta como um aspecto do movimento universal "que se divide em quatro ramos principais: social, animal, orgânico e material". Trata-se duma concepção do homem francamente naturalista, tão marcada quanto a de Morelly, por exemplo.

No terreno econômico, esta concepção geral leva Fourier a estabele­cer a "associação universal e livre" em contraposição à forma liberal.

Uma vez que a instituição da propriedade privada constitui o prin­cipal óbice oposto à livre expansão das paixões, este regime de proprie­dade deve ser transformado. Dar-se-á esta transformação através Ja as­sociação. A propriedade, de privada que é, tornar-se-á societária e, poi conseguinte, a produção, que é atomizada, passará a ser unitária.

Não se trata, pois, segundo Fourier, de supressão da propriedade. De fato, julga-a, bem como o seu corolário — o direito de sucessão hereditá­ria —, indispensável como estímulo à produção. O que se exige é a su­pressão do traço individualista que a caracteriza. E isto acredita Fourier ser possível através de uma modificação do direito de propriedade.

Não se trata, aliás, de impor obrigatoriamente essa transformação: um ultra-individualista jamais seria autoritário. A transformação jurídica far--se-á pelo livre consenso. Os homens adotarão de boa vontade a forma

9. " E s t a s teorias eloqüentes não a s s e g u r a m ao p o v o senão um patrimônio de trapos, celas industriais, g a l é s e p a t í b u i o s . A economia p o l í t i c a e o l iberalismo são l i b e r a i s apenas em trapos. É tudo quanto recebe o povo com a sua i n t e r v e n ç ã o . " (Oeuvres Ccmplètes, V I , 44.)

10. I d é i a m u i t o semelhante, ou seja, a utilização dos sentimentos e x i s t e n t e s , de preferên­cia à sua modificação, é expressa por V i l f r e d o P A R E T O , em sua Sociologia.

Page 174: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

societária, à medida que reconhecerem as suas vantagens. Essa associação poderá, por isso mesmo, expandir-se livremente e, livremente também, uni-versalizar-se-á graças à capacidade de propaganda dos próprios méritos. Esta associação universal livremente constituída — livre ao funcionar e superior quanto à capacidade de produção — possibilitará o livre jogo das paixões humanas: o novo meio ambiente, criado por esta forma, muito se aproxima da harmonia geral desejada pela providência.

Verifica-se, pois, que Fourier, partindo da apologia da liberação das paixões humanas, se eleva à concepção geral de um mundo subordinado à lei de atração física e moral. Daí deduzir, no plano econômico, a neces­sidade da constituição de um novo meio ambiente, enquadrado em uma as­sociação universal. E, retomando contato com as realidades, constrói seu "Sistema", escrito a seu modo, isto é, onde de mistura se encontram, a um tempo, o razoável e o excêntrico, a idéia geral e o detalhe minucioso, tudo com aquele cunho imaginativo que ultrapassa o equilíbrio normal.

2. A REALIZAÇÃO FOURIERISTA: O "FALANSTÉRIO"

A realização prática da associação deve, pois, ser o falanstério. Este, segundo a expressão de Charles Gide, apresenta-se como um

"hotel cooperativo". A sua constituição é livre: proprietários, capitalistas e operários são "convidados" a pôr em sociedade suas terras, seus capitais, seu trabalho, realizando, por esta forma, a associação voluntária dos três fatores da produção. Cada um receberá, em troca, um número de ações proporcional ao valer da sua contribuição.

Esta associação tem, sobretudo, um objetivo agrícola. Fourier imagi­na cada um destes falanstérios como constituindo pequenos centros de eco­nomia fechada, cujas portas só se abrem para a troca recíproca de produ­tos mais indispensáveis. Cada falanstério se comporá de 1 620 associados, que se dividem em um número igual de homens e mulheres. Seus domí­nios constam de cerca de 400 hectares e o local deve ser escolhido com cuidado, a fim de que a agradabilidade do ambiente se reflita na atividade e no humor dos associados. Fourier nutre uma aversão muito viva pelo industrialismo, cujas conseqüências, refletidas na miséria dos operários, constituem a sua observação. Daí a sua nítida preferência pela agricultu­ra, ao traçar o plano de organização do novo meio, traço pelo qual se aproxima, mais uma vez, dos fisiocratas.

Insistirá Fourier, todavia, principalmente sobre a produção. E isto, não apenas em razão de desenvolver-se e estender-se o falanstério aos pou­cos, através dos resultados da produção, mas, sim, também, por julgar — e neste ponto lembremos ser ele uma figura singular entre os socialistas — residir aí o principal problema de toda a reforma. Está convencido de ser insuficiente a produção de sua época. Se possível fosse, portanto, or-

174 ganizá-la de modo a se tornar superior às necessidades, a repartição se faria

Page 175: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

sem dificuldade: com uma produção abundante, o problema da repartição tomar-se-ia secundário.

Qual o motivo de, em uma sociedade "liberal", produzir o trabalho rendimentos inferiores e tornar-se penoso a ponto de cada um a ele se submeter tão-somente através da coerção?

Fracos os rendimentos? Sim, devido à produção atomizada — res­ponde Fourier. Esta falha será corrigida pela própria constituição do fa­lanstério: a associação permitirá o agrupamento de energias e o desapa­recimento dos antagonismos destruidores. Penoso o trabalho? Sim, antes do mais, em conseqüência de ser o operário obrigado a trabalhar para viver e, depois, pela falta de liberdade de escolha da ocupação à qual se vai entregar, donde resulta não lhe convir esta, na maioria dos casos, nem física nem intelectualmente.11 Simples, para Fourier, é o remédio. Con­sistiria em tornar atraente o trabalho e, para tanto, bastaria torná-lo fa­cultativo e de livre escolha do trabalhador.

No falanstério, não seria o trabalho obrigatório para os associados. Quem não quisesse trabalhar a isso não seria constrangido. Ser-lhe-ia pos­sível, entretanto, viver, uma vez que a satisfação de suas necessidades es­senciais estaria assegurada. Fourier afirma, assim, o direito que cada um tem à existência e ao bem-estar. Retomará esta tese em seu "garantismo" (seguro social) que, sem dúvida, constitui um dos aspectos especificamen­te socialista de toda a sua obra. Aliás, está de fato convencido de ser ínfimo o número dos associados que se há de recusar ao trabalho no fa­lanstério, pois cada um se precipitará aí às suas tarefas como a um jogo, dadas as novas características que o tornarão agradável.

O trabalho tem constituído, até o presente, um constrangimento, por ser executado em condições de molde a não permitir a livre expansão das paixões. As paixões contrariadas são, sobretudo, o amor à mudança e à variedade, a que Fourier chama de "borboletear" ("papillonner"), e o amor à plena satisfação — física e intelectual — ou seja, a paixão "com-pósita" ("la composite").

Ora, no falanstério, seria feito o trabalho em condições favoráveis à livre expansão destas duas paixões, até então contrariadas.

Imagina, então, Fourier, um tipo de produção no qual seria a divi­são do trabalho levada a um grau 12 capaz de possibilitar a cada um a des­coberta do gênero de ocupação agradável, a um tempo, ao corpo e ao espírito. E, assim, satisfeita seria a "compósita". Suprimida seria ainda a monotonia do trabalho, uma vez que cada societário poderia passar, à

1 1 . " Q u a n t o s serão, pois, os homens que se e n t r e g a m a um gênero de t r a b a l h o que lhes agrade? E, no entanto, não seria esta a primeira forma de liberdade econômica, a de trabalhar como s e q u e r ? " , F O U R I E R , rb. cit.

12. F O U R I E R mostra, por exemplo, que dentre os horticultores dos falanstérios se entre­g a r i a m uns à cultura de maçãs e outros à de pêras. Dentre estes últ imos, se e s p e c i a l i z a r i a m alguns em pêras duras, ao passo que outros só c u l t i v a r i a m as pêras moles.

E s t a idéia do trabalho tornado atraente por uma d i v i s ã o extrema de tarefas é que merece ser realçada. Os detalhes apresentados por F O U R I E R são simplesmente d i v e r t i d o s e i lustra­t ivos.

Page 176: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

vontade, de uma a outra tarefa. Atenderia, assim, à "papillone", ou seja, o amor ao "borboleteamento".

Trabalhando de acordo com o seu pendor e vontade, não teria o ho­mem razão de ser preguiçoso. O trabalho, ao invés de representar um constrangimento e um tédio, tornar-se-ia, para o homem, uma necessidade natural e agradável: seria atraente Esta a principal idéia de Fourier, da qual se felicitaria como de uma invenção sensacional e original, embora já a tivesse Melon desenvolvido de modo amplo em seu "Essai Politique sur le Commerce", publicado em Amsterdã, em 1735. v

Assim, pois, para a solução do problema da produção, conta Fourier com as conseqüências da execução deste trabalho atraente.

A repartição dos produtos do trabalho, por entre os associados do falanstério, dá a Fourier ensejo para uma exposição de interessantes idéias.

Esta repartição deveria ser feita de modo simples. Cada associado receberia, de início, um número de ações proporcional ao valor do capital, da terra, da força do trabalho, segundo a contribuição dada por ocasião da constituição do falanstério. Tomando por base os juros dessas ações, a repartição se faria a três títulos: capital e terra, de um lado, trabalho de outro, e, por fim, talento ou capacidade. Cada associado poderia rece­ber uma parte dos juros em função de cada uma dessas três categorias ou em função de duas ou mesmo de todas as três. Fourier chegou a propor se estabelecesse esta repartição na seguinte proporção: 4/12 para o capi­tal, 5/12 para o trabalho e 3/12 para o talento ou capacidade.

O princípio da repartição no falanstério e o seu mecanismo merecem três observações.

Em primeiro lugar, convém notar que a parte — 5/12 — reservada ao trabalho nesta organização socialista é inferior à proporcionada pelo meio econômico real, quer o da época de Fourier quer o dos nossos dias. Em segundo lugar, realça Fourier com muita felicidade as incertezas e as dificuldades da repartição. Exprime-as sublinhando com muita exatidão o entrelaçamento existente entre os fatores da produção, entrelaçamento esse que se refletirá na distribuição, sobre a qual influi. Por várias vezes põe em relevo, nos diferentes tópicos que consagrou à repartição do produto so­cietário, os laços de estreita dependência existente entre os interesses do trabalho, do capital e do consumo.

Esta noção de sistema econômico, formando na realidade um todo, cujas partes guardam entre si uma dependência estreita, reagindo umas so­bre as outras, é uma noção de grande importância. Aliás, mais ou menos na mesma época e sob uma forma científica mais rigorosa, é posta em relevo por Cournot, em suas "Recherches sur les Principies Mathématiques de la Théorie des Richesses" (1838). É a idéia que meio século depois irá ser aprofundada de maneira genial por Léon Walras e constituirá o funda­mento da sua teoria do equilíbrio econômico que demonstra a interdepen-

76 dência existente entre produção, repartição, circulação e consumo.

Page 177: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Em terceiro lugar, devemos observar que pelo mecanismo da reparti­ção, imaginado por Fourier, chega-se à supressão do regime de salário: cada associado recebe dividendos pelo seu trabalho ou pela sua contri­buição. Donde se vê que, a despeito de haver proposto o sistema que, no setor da produção, representa um verdadeiro comunismo, consagra e man­tém, em compensação, no da repartição, a propriedade privada. E, de fato, insistirá Fourier nas suas vantagens "por constituir o espírito de pro­priedade — escreve ele — a mais forte alavanca que se conhece para ele-trizar os civilizados". E, para que perdure esse espírito, vai admitir, e mesmo incentivar, a sucessão hereditária no seu falanstério.

De acordo com a distribuição falansteriana, cada associado tornar--se-á, portanto, co-proprietário, interessado na empresa. Este ponto cons­titui um dos aspectos proféticos do pensamento do autor. Este operário acionista, por ele idealizado, iria, com efeito, conhecer, muitos anos mais tarde, uma tentativa de concretização, principalmente sob a forma de "co-partnership", na Inglaterra e na França, de participação do trabalho (ope­rário) na sociedade.

Foi, pois, Fourier particularmente feliz no tratamento que deu à re­partição, mas, em compensação, discute muito superficialmente os proble­mas relativos à circulação, à moeda e ao preço.

Quanto ao consumo, será no falanstério, individual ou coletivo, à es­colha dos societários. Fourier está persuadido de que, dadas as vantagens da associação no setor do consumo, a economia que propicia, os atrativos que oferece, adotarão os societários, espontaneamente e sem mais delongas, a forma coletiva nesse setor, tal como não desejariam outra no da pro­dução.

Eis aí, em largos traços, a organização e o funcionamento do falans­tério, célula econômica do novo meio ambiente, descrita por Fourier com extraordinário luxo de detalhes. Sem dúvida, percebe ele não ser possível a imediata realização desse falanstério para todos. E, por isso, preconiza a adoção e a aplicação, na fase transitória, do que chama de "garantismo", ou seja, um mínimo de meios de subsistência e bem-estar garantido a cada um.

Mas a Fourier jamais foi dado assistir à realização do seu falanstério. Esse modesto empregado, de fértil imaginação, aguardou durante toda a sua vida viesse um Mecenas bater à porta de sua loja, para ajudá-lo a reformar o mundo.

Quanto às suas idéias, insignificante foi a influência por elas exerci­da enquanto viveu. As extravagâncias que pululam em sua explanação ex­plicam perfeitamente que, à sua leitura, seus contemporâneos fossem leva­dos muito mais ao riso do que à admiração. Todavia, terá o fourierismo, posteriormente, maior difusão e isso por duas razões principais.

Primeiro, ém virtude da divulgação que lhe dará Victor Consideram, quer no plano das idéias, quer no plano dos fatos. Politécnico, espírito

Page 178: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

culto e ponderado, será Considérant o discípulo fiel e convicto que expur­gará a obra do mestre de suas incongruências, tornando-a mais precisa e ampliando-a. O fourierismo deve ser lido através da pena de Considérant, na sua "Doctrine Sociale" (1834-1844). Todavia, o discípulo não se con­tenta com divulgar, em teoria, a obra do mestre. Procurará também pô-la . em prática. Tal como Owen — e aliás sem maior sucesso —, parte para a América do Norte e funda os falanstérios. A seu exemplo, seguiu-se o estabelecimento de cerca de 40 dessas colônias. Posteriormente, em virtu­de de se ter verificado a exatidão de certas teses e sugestões do fourierismo na evolução econômica e social, cresce a sua influência, votando-lhê ainda certos autores da atualidade verdadeira admiração.

É possível ver-se no "garantismo" preconizado por Fourier o antepro­jeto da legislação trabalhista que, nos séculos XIX e XX, se desenvolveu em todos os países do mundo. Incontestável é também haverem as idéias de Fourier servido de fonte de inspiração para o movimento das coopera­tivas de produção. Assim, também, os operários-acionistas constituem uma inovação cujas raízes se encontram, por certo, na organização falansteria-na. Evidente é ademais que, uma vez despida de seus complicados para­mentos, vai a associação fourierista exercer influência sobre certas correntes do pensamento socialista, demonstrando depender a melhoria da sorte do operário, mais da colaboração do que da luta de classe, antes da manuten­ção da instituição da propriedade privada do que da sua supressão. Mas uma das idéias mais exatas de sua obra, tão lúcida e penetrante quanto ao fundo, se se fizer um esforço para separá-la do que contém não raro de extravagante, e de desconcertante quanto à forma, é a reabilitação do tra­balho, para que o homem ao cumpri-lo seja submetido ao mínimo possí­vel de coerção.

Esta idéia é retomada em nossa época, especialmente pelo sociólogo americano Herbert Marcuse que, a partir da psicanálise, analisa a coerção social: é preciso que a "fase quantitativa dê lugar a uma civilização onde a quantidade dos estilos de vida e a qualidade das necessidades satisfeitas teriam mais importância do que o número de homens e a quantidade de bens consumidos".1 3

O pensamento profundo de toda a obra de Fourier se encontra nes­se esforço de liberação dos instintos do homem, a fim de diminuir o mais possível a coerção, "etapa superior na qual a civilização poderia realmente oferecer uma liberação considerável da energia instintiva consagrada à do­minação e ao labor".1*

Em resumo, apresenta-se o fourierismo como uma doutrina socialista, associacionista e liberal. Socialista, em virtude de transformar o regime da propriedade privada e ainda por afirmar o direito à subsistência e ao bem--estar a que faz jus o homem. Associacionista, em razão do meio preco-

1 3 . One Dimensional Man; Studies in the Ideology oi Advanced Industrial Society, Boston. 1 9 6 4 .

1 4 . Cf. F O U R A S T I É , E s s a i de Morale Prospective, p. 182. Encontrar-se-ão as preocupa­ções caras a F O U R I E R sobre o trabalho, em numerosas p e s q u i s a s sociológicas atuais, tais como a s d e G . D O N A R T , G . F R I E D M A N N . Michel C R O Z I E R

Page 179: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

nizado e buscado para fazer desaparecerem as falhas da organização exis­tente. E liberal, enfim, pela sua constante apologia — por vezes mesmo extremada — da liberdade sob todas as suas formas.

Por este último traço, representa Fourier, tal como Owen, a transição das idéias da escola clássica e fisiocrática (e desta última muito se apro­xima, por mais de uma característica) para o socialismo. Esta corrente socialista, representada por Fourier e Owen, visa à criação de um novo meio, através do livre consenso dos indivíduos: associam-se livremente e livremente a associação funciona.

Outros socialistas admitirão também dever estar na associação a so­lução do problema econômico e social. Descrendo, todavia, da adesão vo­luntária dos homens, recorrem à autoridade para a sua realização.

§ 2.° — A corrente associacionista autoritária

Louis Blanc 15 vai exigir a intervenção do Estado para que possa a associação modificar o ambiente econômico e social. De fato, para este autor, tal como para òs socialistas que o precederam, pernicioso era o am­biente existente.

Esta crítica ao meio ambiente constitui a parte mais incisiva da sua obra. A livre-concorrência constituía, como sempre, o alvo visado. Impu-tava-se-lhe a responsabilidade de todos os males econômicos e sociais. Re­presentava, para a massa operária, um sistema de miséria e extermínio e, também, de empobrecimento e ruína para a própria burguesia. Louis Blanc queria, de fato, o desaparecimento do regime de livre-concorrência, como meio de melhorar a sorte, não apenas de uma das partes componentes da sociedade — os operários —, mas também da própria burguesia: as bases do seu socialismo são mais amplas do que as apresentadas pela maioria dos demais autores. Daí poder ele proclamar, com mais energia, caberem a todos os homens, sem exceção, na sociedade, iguais direitos à vida, ao trabalho e a um bem-estar cada vez maior, direitos esses reservados, pelo regime da livre-concorrência, tão-somente a um pequeno número de privi­legiados.

Põe em relevo certos aspectos criticáveis dessa livre-concorrência: a eliminação das empresas fracas, esmagadas pelas mais fortes, e a conse­qüente constituição dos monopólios de fato e, paralelamente, o desapare­cimento de um grande número de produtores independentes, reduzidos, por esta forma, a simples assalariados. A Karl Marx bastará recorrer a esta parte da "L'Organisation du Travail" para encontrar preciosos elementos

1 5 . L o u i s B L A N C (1812-1882), historiador (Histoire de la Révolution et Histoire des Dix ^ n s - > - jornal ista, orador, polít ico posto em foco p e l a r e v o l u ç ã o de 1848. Foi um d e s membros ; ° Boverno provisório. O c u p a L o u i s B L A N C u m l u g a r n a história d i s doutrinas econômicas g r a ç a s a p u b l i c a ç ã o de um pequeno l i v r o : L'Organisation du Travail (1839), reedição de um es-tuao aparecido na Revue du Progrès. Em 1848 p u b l i c o u Le Droit au Travail. K [ . , . ° ° ' E L o u i s B L A N C ler — R E N A R D : L o u i s Blanc. s a Vie. son Oeuvre, P a r i s , 1924; P . ^ E . ^ L l i ! > : L o u i s Blanc und die Révolution von 1841. Zurique, 1926: W A R S C H A U E R : Louis oianc, in Revue de Sociologie. março, 1899.

Page 180: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

para sua tese da concentração capitalista e da crescente proletarização. E se essa livre-concorrência é perniciosa, prossegue Louis Blanc, é tão-so­mente por acarretar, para a maioria dos homens, a privação da liberdade: a revolução francesa de 1879 afirmou, sem dúvida, a idéia de liberdade, afirmação esta que ficou no campo da teoria sem passar ao da realidade. Na verdade, para que cada um pudesse desfrutar a liberdade, indispensá­vel seria que o direito de propriedade privada — direito natural — cou­besse naturalmente a todos. Em outros termos, indispensável seria fosse aplicado, no plano econômico, os instrumentos de produção.

Ora, o regime de livre-concorrência tende a separar, no setor da pro­dução, os detentores dos instrumentos de produção dos que, com o seu trabalho, os põem em ação.

Indispensável, pois, a criação de um meio no qual possa cada um ser co-proprietário desses instrumentos de produção: este meio ambiente, con­traposto, neste ponto, ao regime da livre-concorrência, seria a associação.

Esta associação, concebe-a Louis Blanc caracterizada por traços parti­culares que a diferenciam bastante do tipo imaginado por Fourier e Owen.

Concebe-a realizada sob a forma de "oficina social". Esta oficina social asseguraria, através de seu desenvolvimento, a expansão da asso­ciação e a vitória sobre o regime de livre-concorrência. Isso nos leva a considerar a parte construtiva da obra de Louis Blanc, primeiro, na orga­nização da associação sob a forma de ateliê social e, depois, na sua ex­pansão através da vitória do ateliê na luta contra o regime da livre-con­corrência.

A organização da associação constitui, pois, uma concepção estática e autoritária e a idéia da sua expansão uma concepção dinâmica e liberal.

1. A ORGANIZAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO BLANQUISTA

Embora preveja Louis Blanc a formação de colônias agrícolas — e a esse respeito indica a sua preferência pela grande propriedade —, resolve dar início à sua experiência de associação, tomando como ponto de par­tida principalmente a indústria.

Ao se constituir, apresenta-se a oficina social como uma associação profissional: cada oficina se comporá de trabalhadores do mesmo ramo da produção. Todos serão aí admitidos sob condição de apresentarem "ga­rantias de moralidade", não devendo ultrapassar o seu número a capaci­dade de aquisição de meios de produção, por parte das diferentes oficinas. Surge aqui a necessidade de interferência do Estado para a constituição da associação. Louis Blanc não recorrerá, tal como Owen ou Fourier, à iniciativa privada, mas, sim, à do Estado. Louis Blanc exige a intervenção

180 pública, tanto no plano financeiro como no legislativo. De início adquiri-

Page 181: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

rão as oficinas os instrumentos necessários à produção, 1 6 com os capitais fornecidos pelo governo. Todavia, far-se-ia também apelo aos capitais pri­vados: aliás, estes não deixarão de atender ao apelo, pois a oficina lhes oferece garantias e rendimentos. Garantias, uma vez que o próprio Estado responderá pelos empréstimos. Rendimentos, já que os capitais vencerão juros. Juros modestos, é verdade, como um prêmio apenas, por um risco limitado e, além disso, a título provisório, pois, longe de admitir Louis Blanc, tal como Fourier, a sua legitimidade, julgava que, com o tempo, desapareceriam da sociedade, tornada de todo associacionista.

Curiosa a seguinte conseqüência, decorrente do novo meio: ao em­prestar seu dinheiro, receberá o capitalista, em compensação, uma soma fi­xada independente do rendimento e do produzido pela empresa. O capi­talista transformar-se-á, pois, nessa oficina, em assalariado do trabalho: ocuparia na nova sociedade o lugar que cabe ao trabalhador na economia capitalista, em regime de livre-concorrência.

No plano legislativo, exige Louis Blanc, dos poderes públicos, a fixa­ção dos estatutos relativos à organização e ao funcionamento da oficina, estatutos esses cujo fiel cumprimento é assegurado através de uma fiscali­zação.

No início da associação incumbira ao governo nomear os diretores, os chefes, os contramestres de cada oficina. Posteriormente, à medida que o ambiente assim criado permitisse aos societários ficarem conhecendo-se e, portanto, em condições de se apreciarem, deveriam estes cargos ser preenchidos por eleição. Estava Louis Blanc persuadido de ser provisória a interferência do Estado na constituição e funcionamento da associação: "uma vez montada, a máquina funcionará por si própria". Entretanto, ao que parece, o Estado estaria sempre obrigado a intervir, uma vez que lhe cabia zelar pelos cumprimentos dos estatutos da oficina. . . Sem dúvida, diria Louis Blanc. Todavia — imbuído, como todos os associacionistas, da idéia de atuar o meio de modo a modificar a natureza humana —, per­suadira-se de que após certo tempo transformaria o ateliê esta tendência individualista em sentimento social: reconhecendo as virtudes da nova or­ganização, cada um zelaria, espontaneamente, pelo seu bom funcionamen­to, tornando-se, então, dispensável o papel do Estado.

A produção far-se-ia, pois, na oficina, sob a forma de associação de operários do mesmo ofício. Louis Blanc prevê a possibilidade de amplia­ção da especialização, de acordo com as necessidades: seria possível reuni­rem-se, em uma só oficina, profissões conexas, tendo em mira o melhor aproveitamento, no setor de técnica, das vantagens da concentração.

Como quer que seja, a oficina continuaria como centro de determina­da produção. Diverge, pois, nesse ponto, do falanstério, onde a associa­ção se aplicava a uma produção diversificada. Além disso, a oficina produ-

16 " A o s proletários faltam, para poderem l ibertar-se, sobretudo instrumentos de trabalho. A função do g o v e r n o consiste em lhos fornecer. Se t i v é s s e m o s de definir o E s t a d o segundo a nossa c o n c e p ç ã o d i r í a m o s : o E s t a d o é o b a n q u e i r o dos pobres." (Organisation du Travail, p.

Page 182: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ziria para vender, enquanto produziria o falanstério apenas para o próprio consumo, constituindo a troca de produtos uma exceção aberta tão-só ao indispensável.

A repartição far-se-ia segundo o princípio da igualdade dos salários, independentemente .da capacidade. À objeção que naturalmente se apre­senta, quanto a ser muito difícil aceitarem os operários esse modo de re­muneração, responde Louis Blanc que para essa-aceitação concorreria o meio associacionista, que iria atuar no sentido de modificar a mentalidade dos operários. O que lhes poderia parecer anormal, habituados como es­tavam a uma organização econômica baseada em um regime de livre-con­corrência, favorável à expansão de iniciativas individualistas, passaria a ser por eles havido como normal e desejável, tão logo houvesse a associação desenvolvido seus instintos sociais.

Uma vez pagos os salários nessa base e liquidados também os juros devidos aos capitais emprestados, o que sobrasse da venda dos produtos fabricados pela oficina seria dividido em três partes iguais: uma, a ser repartida por entre os operários, sob a forma de dividendos; a outra, posta de lado, sob a forma de reserva, destinava-se a prestar assistência aos enfermos e aos associados, a fim de poderem estes resistir às crises econômicas, e a última destinava-se à aquisição de novos meios de pro­dução, a fim de, na oficina, tornar viável o trabalho dos novos associados e permitir ainda a abertura de novas oficinas.

Segundo Louis Blanc, a importância desta parte seria de primeira grandeza, uma vez que garantiria o desenvolvimento contínuo da associa­ção. Representaria, pois, a mola acionadora da expansão associacionista.

O consumo — tal como no falanstério — poderia, à escolha dos as­sociados, ser feito sob a forma individual ou coletiva. Reconhecia-se a cada um a posse e domínio pleno de seu salário e de sua quota de divi­dendos que poderiam, pois, ser usufruídos e empregados à vontade. To­davia, estava Louis Blanc convencido também de não ter o associado, à vista das vantagens econômicas e do bem-estar decorrente do consumo coletivo, qualquer dúvida quanto à adoção deste tipo de consumo, tão logo fosse possível.

A circulação — a troca das riquezas produzidas — continuaria cons­tituindo, na oficina, tal como no falanstério, o ponto fraco do projeto de organização. Uma vez desaparecida a concorrência e com isso cerceado o funcionamento do mecanismo dos preços e da lei da oferta e da pro­cura, caberia à autoridade pública substituir-se àquele regime. Louis Blanc prevê, aliás sem muita precisão, a criação de vastos entrepostos — muito semelhantes aos "armazéns gerais" — que receberiam os produtos enviados pelos associados e em troca dos quais lhes seriam entregues recibos trans-feríveis — uma espécie de "warrants" — e descontáveis no Banco pelo respectivo valer em papel-moeda. Os entrepostos poriam os produtos, as­sim recebidos, à venda em "bazares" do Estado, onde o público iria adquiri-los. Essa organização nebulosa revela, todavia, em seu espírito,

82 uma dúplice preocupação, aliás, constante em todos os sistemas socialis-

Page 183: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

t-is: a da supressão do comerciante intermediário e, sobretudo, a de subs­tituição do metal, como instrumento de troca, pelo papel-moeda. O socia­lismo constitui antes a expressão de um sentimento que um raciocínio cien­tífico: apega-se, por instinto, à troca na qual o instrumento perdeu o valor comercial para conservar apenas seu valor monetário. Sem dúvida a moe­da, mesmo sob a forma de papel-moeda, desde que permita o estabelecimen­to de comparação entre valores, torna possível a troca. Mas, ao que pare­ce, exigiriam os homens de todas as épocas algo mais da moeda, ou seja, funcionar como instrumento de reserva de valor. Para extirpar as raízes deste modo de pensar tão profundamente arraigado no espírito humano, contou Louis Blanc, sem dúvida, com a magia do poder de transformação do meio associacionista.

2. A EXPANSÃO DA ASSOCIAÇÃO BLANQUISTA

A organização e o funcionamento da oficina social de Louis Blanc assentam, pois, em uma concepção autoritária e estática. Esta célula eco­nômica deve, ao se desenvolver, possibilitar a vitória na luta contra a livre--produção. Para a obtenção dessa vitória usará, todavia, dessa livre-con­corrência que combate: "Trata-se de fazer desaparecer a concorrência, usando como arma a própria concorrência." Graças à oficina social, à associação constituída pelo Estado e, portanto, autoritária, será a livre--produção atacada e vencida mediante a concorrência, instrumento espe­cífico do regime econômico liberal.

Louis Blanc não duvida, por um momento sequer, de sair a oficina social vitoriosa na luta contra a oficina livre. Aliás, a vitória deveria ser obtida sem demora, sem violência e de modo completo, dando ao Estado o pleno domínio da produção.

Vejamos o pensamento de Louis Blanc relativamente a estes três pon­tos .

Na luta encetada no campo da livre-concorrência, deveria a oficina social sair vitoriosa contra a empresa livre, por se mostrar a produção associada superior à outra. Sua superioridade advém do fato de propor­cionar o consumo em comum grande economia e também da circunstância de trabalhar o operário melhor e mais rapidamente na oficina social do que em qualquer outra, interessado que está no resultado da produção, pois deste dependem o seu salário e a percepção de um dividendo.

Na verdade não parecem estas vantagens muito convincentes. O ponto sério, e a respeito do qual silencia o autor, consiste exatamente em ser pouco dispendiosa a amortização da instalação da oficina, uma vez que se faz com dinheiro do Estado. A esta vantagem acresceria outra, pro­veniente da circunstância de recaírem os impostos mais pesados sobre as empresas concorrentes, uma vez que as liberalidades do Estado se tra­duziriam, como aliás sempre se traduzem, pela agravação geral dos im- 183

Page 184: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

postos. Além disso, mesmo em relação aos empréstimos privados, privile­giada seria a posição ocupada pela oficina: esta pagaria uma taxa de juros muito baixa, graças à garantia oferecida pelo Estado.

Admitimos, pois, que tais privilégios permitissem fossem asseguradas vantagens às oficinas em comparação com as empresas ordinárias: Louis Blanc prevê, nessa hipótese, uma rápida vitória, independentemente de violências. O socialismo de Louis Blanc é, com efeito, autoritário quanto à constituição, mas pacífico no que respeita à sua realização. "£ preciso — escreve ele insistindo nesta idéia — preparar o futuro sem romper vio­lentamente com o passado." Nesta luta, a vitória da oficina seria, pois, alcançada de maneira progressiva.

A dificuldade consistiria, pois, segundo Blanc, não em precipitar a evolução no sentido da associação, mas, ao contrário, em moderar a sua marcha, com o objetivo de impedir se fizesse aquela de maneira súbita ou de modo excessivamente rápido. Com efeito, na sua opinião, o desapa­recimento das empresas privadas dar-se-ia por si mesmo, pois, vencidas pela oficina, desapareceria na luta a liberdade de produção ou, então, voluntariamente quando, reconhecendo as empresas livres a superioridade da associação, exigissem a sua própria absorção. Como quer que fosse, a oficina sairia vitoriosa, e isso em um período de tempo relativamente curto.

Assistir-se-ia, então, à multiplicação das oficinas, as quais se reuniriam, formando, em cada um dos ramos da indústria, uma só associação geral. As associações gerais se organizariam entre si, de modo a constituir a pro­dução, em seus múltiplos aspectos, uma única grande associação.

O Estado assenhorar-se-ia, então, da produção. Assim, pois, ao invés de se contrapor às forças econômicas em expansão, aos monopólios de fato, ao Estado caberá tão-somente dirigir, manter e controlar uma gran­diosa associação, em cujo seio será a produção estimulada pela distri­buição de dividendos aos operários.

Eis como a Louis Blanc se apresenta esta majestosa evolução que — mediante a transformação do meio econômico com a passagem de um regime de livre-concorrência a um associacionista — vai fazer com que se passe do regime de propriedade privada ao de propriedade comum e do de liberdade teórica ao de liberdade efetiva para todos.

Na realidade, Louis Blanc nada mais propunha que a substituição do regime de livre-concorrência pelo sistema associacionista que imaginara. Mas de fato isto não constitui o alvo definitivo, senão, apenas, um simples instrumento provisório, o qual serviria para se assenhorear o Estado da indústria ou, em suma, para se criar uma sociedade comunista.

Para a supressão das falhas existentes no meio e para a consecução do ideal de Louis Blanc, indispensável se tornava fosse realmente o sistema proposto de grande eficácia. Ora, este parecia mais quimérico do que

184 eficaz. Na luta contra a empresa privada, deveria apresentar a oficina

Page 185: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

uma real superioridade em relação às demais empresas, a fim de se tornar I manter vencedora. Ora, os argumentos comprobatórios dessa superio­ridade, oferecidos por Louis Blanc, são demasiado fracos para que se possa admitir o êxito da sua oficina.

Aliás, dado que se admitia a possibilidade desta vitória, esta só po­deria ser assegurada graças às vantagens oferecidas pelos reiterados em­préstimos do Estado. Ora, como o primeiro cuidado da oficina seria mo­dificar a ordem econômica estabelecida, da qual era o Estado o represen­tante, não se percebe claramente que motivo teria este para favorecer esta transformação. . . Carece ainda o sistema blanquista de precisão em vários pontos que, na maioria dos sistemas socialistas, são nevrálgicos. Como se efetuaria, principalmente, a troca dos produtos entre oficinas de ofícios diferentes? Em que base se faria a troca?

Uma vez suprimido o regime de livre-concorrência, o mecanismo dos preços deixaria de funcionar. Assim, pois, seria por via autoritária que se fixariam as quantidades e os valores respectivos dos produtos trocados. Qual séria este organismo regulador? De que poderes disporia? A mesma indagação se impõe em relação à apreciação das necessidades e à fixação da correspondente produção.

Eis aí alguns dos principais problemas aos quais Louis Blanc nenhuma resposta deu.

E por isso deve-se considerar a oficina social não tanto em sua forma precisa de e te rna , 1 7 mas como um conjunto de idéias, muitas das quais interessantes c dignas de figurar na história das doutrinas econômicas.

A primeira delas é a da associação como o novo meio ao qual cabia remediar os excessos da concorrência. Segundo a forma que reveste na oficina social de Louis Blanc, esta idéia vai exercer grande influência sobre os fatos. Não será, todavia, diretamente, na criação dos ateliês nacionais de 1848, mas, sim, indiretamente, no ulterior desenvolvimento das sociedades sob a forma de cooperativas de produção.

A segunda consiste no apelo feito ao Estado no sentido de transformar o meio econômico e social. Louis Blanc prepara, assim, a via para o aparecimento do socialismo de Estado, que se desenvolverá na segunda metade do século.

Finalmente, a mais precisa das suas idéias, a que maior influência vai exercer, é a sua crítica à sociedade econômica. Os argumentos apre­sentados contra o regime da livre-concorrência e contra a análise dos seus efeitos econômicos e sociais constituem os três aspectos que servirão para a maior difusão da obra crítica de Louis Blanc.

17. Em 1848 teve Louis B L A N C oportunidade de tomar parte na r e a l i z a ç ã o das oficinas nacionais , cujo m a l o g r o foi completo. E s t a experiência, embora mal sucedida, teve como con­seqüência atrair a atenção sobre as idéias de L o u i s B l a n c . Isto, em razão dá confusão, então fácil , entre as oficinas nacionais e as of icinas sociais, que, não obstante, nada t i n h a m de seme­lhantes. O próprio L o u i s B L A N C l a m e n t a v a o erro cometido. E, além disso, por constituir o principal ponto de partida para a c o n c e p ç ã o de a m b a s essas o f i c i n a s : a a f i r m a ç ã o do direito ao trabalho para todos E s t e , al iás, o " l e i t m o t i v " que se vai encontrar em todas as obras socia­l istas por v o l t a da r e v o l u ç ã o de 1848.

Page 186: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seus argumentos contra o meio existente apresentam-se, não raro, sintetizados com energia e simplicidade, em fórmulas felizes que alcan­çaram muito sucesso: "luta de classes", "direito ao trabalho" etc. Propa­garam-se graças à L'organisation du Travail", obla de proporções modes­tas, mas cuja difusão se fez rapidamente. Os efeitos econômicos da con­corrência, a concentração capitalista e, principalmente, a crescente proleta-rização foram aí tratados com muita habilidade.

O socialismo vai retomá-los posteriormente sob uma forma muito semelhante: Karl Marx os usará na construção da parte dinâmica da sua obra. Aprofundará, além disso, o estudo feito por Louis Blanc relativa­mente aos efeitos sociais dessa concorrência, pelo que é levado a proclamar o direito à vida, ao trabalho e ao progresso: esta a proclamação que, por volta de 1848, servirá de bandeira aos socialistas, a qual jamais deixará de ser desfraldada pelos ulteriores desta corrente.

Seção II

O SOCIALISMO INDUSTRIALISTA OU SANSIMONISMO

Os socialistas, cujos sistemas foram estudados até aqui, partem de uma crítica à organização econômica característica dos primórdios do sé­culo XIX, chegando ao projeto de criação de um novo meio com base na associação. Outros, tomando como ponto de partida uma crítica seme­lhante, buscam a necessária reforma do setor da produção através da pró­pria produção.

Dentre estas correntes "produtivistas", o sansimonismo — ou socialis­mo industrialista — é a mais interessante e característica.

Saint-Simon (1760-1825) 1 8 encabeça essa corrente doutrinária, im-primindo-lhe o primeiro e profundo impulso. Suas idéias serão retomadas

18. V e r d a d e i r o romance é a vida de S A I N T - S I M O N : N a s c e u em Paris , C l a u d e H e n r y de Rocevroy, Conde de S a i n t - S i m o n , primo, em segundo grau, do célebre autor das Memórias, grande senhor e grande aventureiro. Sua aventura c o m e ç a na A m é r i c a do Norte, onde toma parte na guerra da independência. Prossegue na A m é r i c a C e n t r a l , com a apresentação às auto­ridades p ú b l i c a s — al iás sem lograr ê x i t o — de um g i g a n t e s c o projeto de abertura de um ca­nal interoceânico. Continua na F r a n ç a , durante a r e v o l u ç ã o . Em 1789, ele toma o partido das idéias novas, abandona seus t í tulos de nobreza, passando a ser c h a m a d o "o cidadão B o n h o m m e " ; ele especula com os bens do E s t a d o e se enriquece. T o r n a n d o - s e polít ico suspeito, é aprisio­nado, sendo l iberto em c o n s e q ü ê n c i a do 9 T e r m i d o r . E nos primórdios do século X I X — quan­do enormes já parecem as possibi l idades para as grandes r e a l i z a ç õ e s — S A I N T - S I M O N acre­dita-se o M e s s i a s , cuja missão consistiria em dar ao mundo um projeto de renovação. E m p r e g a sua febril a t i v i d a d e c a o t i c a m e n t e , distribuindo-a por afazeres e contatos científ icos de todos os tipos e em v i a g e n s sem conta.

Suas idéias, c r í t i c a s e construtivas, v i s a v a m à e d i f i c a ç ã o de sistemas g r a n d i o s o s ; seu espí­rito nada podia conceber de mesquinho. Na verdade, porém, os esforços de síntese d e s e n v o l v i ­dos são desti tuídos de grande interesse. Seus l ivros contêm p o u c a s idéias que são, entretanto, muito repetidas. Conforme escrevia — sem dúvida com b a s t a n t e severidade — o economista Charles D U N O V E R , seu contemporâneo, " a o iniciai seus trabalhos anunciava não uma obra mas uma série de obras e j a m a i s passou de p r o g r a m a s " . De fato, S A I N T - S I M O N se caracteri ­za por uma espécie de i m p o t ê n c i a para o a c a b a m e n t o , sendo dado antes a pescar idéias do que a aprofundá-las. S A I N T - S I M O N é, todavia, um espírito curioso, particularmente apto para es­peculações f i losóficas, não lhe faltando uma v i s ã o sagaz e larga das coisas. A l i á s , o papel por ele^ representado na corrente s a n s i m o n i s t a diz mais respeito à sua ação pessoal do que à in­fluência de seus escritos. Por seu prest ígio pessoal atraiu para junto de si d i s c í p u l o s , cujos nomes t iveram a glória de figurar dentre quantos contribuíram para a e v o l u ç ã o do p e n s a m e n t o

Page 187: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

posteriormente por discípulos entusiastas que as reforçarão. Desenvolven­do o pensamento do mestre, vão torná-lo mais preciso, não obstante adul­terarem-no por vezes; conservar-lhe-ão, todavia, as características essenciais.

A contribuição de Saint-Simon e a dos sansimonistas formam um todo: o sansimonismo. O que, nesta doutrina, pertence ao mestre e o que cabe aos discípulos vem entrelaçado a ponto de ser impossível compreen­der o sansimonismo senão em seu conjunto, sem dissociar as partes compo­nentes. Qual o lugar ocupado na história* das doutrinas por este conjunto doutrinário? É o que passamos a examinar.

§ 1.° — Concepção geral do sansimonismo: o industriaiismo

Condorcet, durante a Revolução Francesa, apresentou, em sua "Es-quisse d'un Tableau Historique de 1'Esprit Humain", uma teoria da dinâmi­ca social, baseada na História. Saint-Simon, tomando como ponto de parti­da esta concepção, tentará realizar, na primeira parte da sua vida, vastas sínteses de conhecimentos gerais, alicerces de uma moral positiva, ou seja, aquilo a que o professor G. Dumas chamará de "Breviário científico".19

Não teve, todavia, êxito. Seu discípulo, A. Comte, tentará construir, al­guns anos mais tarde, obra semelhante, em seu curso de filosofia positiva.

A despeito de malograda, esta tentativa de Saint-Simon não será de todo inútil. Vai servir-lhe a experiência de ensaio de aplicação do método científico às ciências sociais,, cujo exemplo frutificará. Suas pesquisas his­tóricas porão também em evidência o interesse da observação neste campo. Esta observação histórica imprimirá, assim, ao sansimonismo, um dos seus cunhos característicos fundamentais: a doutrina não vai estudar os pro­blemas econômicos e sociais unicamente em função do homem tomado como indivíduo isolado, mas examiná-lo em seu quadro social, ou seja, como ser pertencente a determinada coletividade e subordinado às leis de

e dos fatos do século X I X . Em 1805 foi S A I N T - S I M O N , já arruinado, recolhido por um de seus a n t i g o s servidores. E, posteriormente, em 1823, a vida materialmente m i s e r á v e l levou-o a uma t e n t a t i v a de suicídio. F a l e c e u em 1825. G r a ç a s , todavia, aos d i s c í p u l o s que o cercam, não morre o sansimonismo. A u g u s t i n T H I E R R Y e depois A u g u s t o C O M T E foram os secretá­rios do mestre entre 1814 e 1824. E N F A N T I N (1796-1864) e B A Z A R D (1791-1852) serão os p r i n c i p a i s d i s c í p u l o s ; darão, após a morte de S A I N T - S I M O N , uma forma a c a b a d a à doutrina. V ã o p r o p a g á - l a por entre a el ite, no período compreendido entre 1828-1830, fazendo uma série de c o n f e r ê n c i a s , posteriormente por eles reunidas em v o l u m e publicado em 1854, sob o título d e : Doctrine de Saint-Simon, Exposition. E n c o n t r a - s e nesta obra uma e x p o s i ç ã o bem concate-nada da doutrina sansimonista em seu coniuto. A sua p r o p a g a ç ã o se fez t a m b é m , de maneira bem m a i s fragmentária, nos dois jornais s a n s i m o n i s t a s — cuja aparição foi s u c e s s i v a e por breve tempo — Le Producteur e Le Globe. As p r i n c i p a i s obras de S A I N T - S I M O N são as s e g u i n t e s : Les Lettres d'un Habitam de Génève, 1802; Esquisse d'une Nouvelle Encyclopédie, 1803; L ' I n t r - o duction aux Travaux Scientifiques du XIXème Siècle, 1803; Mémsire sur la Science de VHom-me, 1 8 1 3 ; Vues sur la Proprieté et la Legislation, 1813; De la Réorganisation de la Societé Eu-ropéenne ( c o l a b o r a ç ã o com A. T H I E R R Y ) , 1814; De 1'Industrie, 1817-1818 (4 v o l u m e s : uma grande parte do quarto volume foi escrita por A u g u s t o C O M T E ) ; La Politique, 1819: Le Catécbisme des Industrieis, 1824; Le Nouveau Chistianisme, 1825.

Sobre o sansimonismo ler: J. B O O T H , S a í n t Simon and Saint-simonisme, L o n d r e s . 1 8 7 1 ; G. D U M A S , Psychologie de Deux Messies Positivistes: Saint-Simon et Auguse Comte, P a r i s , 1905; G O T T E F R I E D , Salomon, Saint-Simon und der Sozialism, Berlim, 1 5 1 9 ; H. M U C K L E . H . d e Saint-Simon, lena, 1908; M A X I M E L E R O Y , Henri de Saint-Simon, Paris, 1931; C H A R L E T Y , Histoire du Saint-simonisme, Paris , 1 9 3 1 ; D O U D O , The Frenc Faust: H, de Saint-Simon. N. Y „ 1956.

19. G. D U M A S : Psychologie de Deux Messies Positivistes, Paris , 195. 187

Page 188: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

evolução e organização. A história, pensa Saint-Simon, deve-se tornar uma ciência positiva — uma verdadeira "física social" — que permitirá a pre­visão do futuro.

A finalidade do mundo, tal como a concebe o sansimonismo, não consiste na busca da liberdade. Esta lhe parece uma noção negativa. A verdadeira finalidade é procurar produzir coisas úteis à vida, noção cons­trutiva. Pondo em relevo, através da História, as grandes linhas da evolu­ção econômica, acredita Saint-Simon ser possível ver aí uma sucessão de épocas, ora destrutivas, ora construtivas, ou seja, ações e reações de um mesmo movimento de conjunto.

O século XVIII constitui um período destrutivo: pôs termo ao regime feudal da produção, nada cc'ocando em seu lugar além da liberdade, noção negativa para Saint-Simon, repitamo-lo. Ao século XIX caberá desenvolver o esforço reconstrutivo. Daí à idéia de incumbir a ele próprio, Saint-Simon, a direção desse esforço foi só um passo, que. deu com con­vicção. De boa mente acredita-se, tal como Fourier, um Messias encarre­gado da renovação do mundo. E imbuído desta convicção irá — como todos os reformadores desse fim de século — em busca do "Sistema", do "plano suscetível de assegurar a felicidade e a prosperidade".

Este sistema devia ser deduzido das leis da evolução e organização. A lei da evolução é o progresso. A lei da organização necessária a esta evolução é o industrialismo, terminologia pela qual ele entende fazer a distinção entre seu Sistema e o liberalismo. Esta lei, apreendida por Saint--Simon através de observações gradativamente feitas a partir do século XVII, leva-o a.conceber o mundo sob a forma de uma vasta oficina, na qual a produção, organizada de modo a alcançar o máximo de expansão, asseguraria, com a prosperidade, a melhor organização social.

Saint-Simon formula esta regra de organização da maneira seguinte: "A cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas obras". Trata-se, pois, de uma regra de interesse geral e de justiça: o interesse geral é satisfeito quando cada homem se dedica à tarefa ou trabalho para o qual está mais apto; a capacidade do indivíduo condiciona o bom rendimento da produção. A eqüidade, mediante uma justa repartição, serve ao ho­mem de estímulo e contribui também para o desenvolvimento de sua ati­vidade. O constante desenvolvimento da indústria — Saint-Simon entende "indústria" no seu sentido amplo de "trabalho" 20 — constitui a lei de or­ganização da humanidade, através da qual é possível assegurar o progresso.

O aperfeiçoamento contínuo da indústria constitui o objetivo coli-mado — e a fórmula sansimonista indica então a regra geral da produção e da repartição desse aperfeiçoamento — até que se atinja esta produção máxima, etapa final da evolução donde surgirá o novo mundo, ou seja,

20 "Qualquer funcionário público, qualquer indivíduo que se dedique às ciências, às be-las-artes, à indústria manufatureira e agrícola, trabalha de modo tão positivo quanto o trabalha­dor que lavra a terra ou o carregador que. leva o fardo" (L'introduction aux Travaux Scientiíi-ques du XIXème. Siècle, 1 8 0 3 ) .

Page 189: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

o rjundo do "industrialismo". E Saint-Simon entoa um hino à produção, a exemplo de Jean-Baptiste Say e da escola de Manchester, expressão de todas as esperanças depositadas pela humanidade, na aurora do século XIX, nessa indústria nascente, cujo desenvolvimento parecia ser fonte abun­dante de bens e símbolo do crescente domínio do homem sobre a natureza.' A despeito de não usar o termo, já estava desenvolvida aí, por Saint-Simon. a noção de "eficiência" ("output"), noção que os economistas institucio-nalistas norte-americanos retomaram no século XIX, transformando-a em uma de suas idéias principais.

§ 2.° — A obra crítica do sansimonismo

O sansimonismo tem, pois, por objetivo a organização da sociedade, de modo a possibilitar a obtenção de uma produção máxima. E isto, atra­vés da aplicação da fórmula: "a cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas obras".

Ora, na sociedade então existente, inatingível seria este alvo, uma vez que a sua organização não obedece à regra da produção nem à regra da repartição anteriormente formulada. A este duplo título defeituosa é a organização reinante, e por essas duas razões, também, faz o sansimonismo uma crítica a esta sociedade, crítica que representa um dos aspectos mais interessantes da doutrina.

A causa da má organização reside, segundo o sansimonismo, na ordem jurídica, ou seja, no direito de sucessão hereditária com todas as suas nefastas conseqüências no campo da produção e da repartição. Na pro­dução esse direito torna impossível a aplicação da regra "a cada um se­gundo a sua capacidade". Segundo esse instituto jurídico, a propriedade dos meios de produção e dos capitais fica, com efeito, sujeita ao acaso do nascimento, o que representa um duplo inconveniente do ponto de vista econômico.

Em primeiro lugar, de modo algum se assegurará assim o reconhe­cimento da capacidade de cada um. Ora, são os homens capazes ou aptos — os trabalhadores em contraposição aos ociosos — que apresentam real importância para uma sociedade, uma vez que possibilitam a realização do pleno desenvolvimento da indústria, identificada na concepção sansi-monista com o máximo de satisfação do interesse geral. É o que Saint--Simon exprime com a famosa "parábola" 21 relativa a esta concepção da superioridade da capacidade industrial para a organização de um país.

2 1 . "Suponhamos perca a França, de repente, seus primeiros 50 íísicos, fisiologis'as, quí­micos, banqueiros, seus primeiros 200 negociantes, 600 agricultores, 50 ferreiros etc. Sendo estes homens os franceses essencialmente produtores, os que fornecem os produtos mais importantes, tomar-se-ia a nação um corpo sem alma, a partir do momento em que os perdesse. ^ Passaria imediatamente a um estado de inferioridade em relação às nações, suas atuais rivais, em relação às quais permaneceria em uma posição subalterna, enquanto não conseguisse reparar essa perda, enquanto não tivesse feito brotar de novo uma cabeça..."

"Passemos a outra hipótese. Admitimos conserve a França todos os homens de gênio que possui nas ciências, nas belas-artes, nas artes aplicadas, tendo entretanto a infelicidade de per­der, no mesmo dia, o senhor irmão do rei. o senhor Duque d'Angoulême ( s e g u e - s e a enumera-

Page 190: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Em segundo lugar o direito da sucessão hereditária é passível de crí­tica por acarretar o desenvolvimento da propriedade dos meios de produ­ção. Ao acaso das sucessões hereditárias, dá-se indiscriminadamente a sua dispersão no espaço, sem que sejam levadas em conta as necessidades da produção e do consumo. Aí está, segundo o sansimonismo, uma das ra­zões da anarquia reinante na produção e a principal explicação das crises econômicas. "A distribuição dos instrumentos de trabalho se faz de modo a irem estes parar às mãos de indivíduos isolados, desconhecedores, a um tempo, das necessidades da indústria e dos homens e dos meios aptos à sua satisfação; a causa do mal não reside em qualquer outro ponto." 22

Em relação à repartição, o direito de sucessão hereditária contraria a realização do princípio "a cada um segundo as suas obras". Com efeito, esse direito circunscreve a propriedade a alguns indivíduos. Destituído, as­sim, o trabalhador da propriedade dos instrumentos de produção, ver-se-á forçado a abrir mão de parte do produto do seu trabalho 23 em benefício dos proprietários daqueles instrumentos.

O princípio da justiça — "a cada um segundo as suas obras" — seria, pois, duas vezes violado: primeiro, por caber a alguns um rendimento sem trabalho, 2 4 segundo, por tocar a outros apenas um rendimento inferior ao seu trabalho. Existe aí, portanto, a exploração do trabalhador por parte do ocioso, uma exploração do homem pelo homem, exploração essa só pos­sível em virtude do direito de transmissão da propriedade privada. O di­reito de propriedade é definido pelo sansimonismo como sendo constituído pelo direito à percepção de um produto sem trabalho. Sendo a propriedade privada uma instituição característica do sistema existente, a exploração era, pois, generalizada.25

Eis a razão pela qual critica o sansimonismo energicamente esta insti­tuição, crítica essa que, bem fundamentada e apresentada nos devidos ter­mos, constitui uma das partes mais interessantes da sua contribuição dou­trinária.

O sansimonismo entra a fazer esta crítica mais ou menos quando Sis­mondi começa a desenvolver, de maneira incisiva, idênticos pontos de

ção de todos os membros da família r e a l ) , enquanto perde, conc^mitan emente, todos os grandes oficiais da Coroa, todos os ministros de Estado, todos os conselheiros, todos os reierendários, to­dos os marechais, todos os cardeais, arcebispos, bispos, vigários-gerais e côr.egos, todos os pre-teitos e vice-preíeitos, todos os íuncionários dos ministérios, todos os juizes e, além disso, 10 000 dos mais ricos proprietários dentre os que vivem íidalgamente — este acidente afligiria, certa­mente, os franceses, por serem eles bons... Mas esta perda de 30 000 indivíduos, havidos como os mais importantes do Estado, só aíligiria do ponto de vista sentimental, uma vez que daí ne­nhum mal político resultaria para o Estado." ( P u b l i c a d o no L'Organisateur, 1819, e reeditado na La Parabole Politique, por O l i n d e R O D R I G U E S , d i s c í p u l o de S A I N T - S I M O N , em 1832.)

22. Doctrine de Saint-Simon, Exposition, p. 1 9 1 . 23. Na mesma época apoiou S I S M O N D I a sua e x p l i c a ç ã o da miséria da c lasse t r a b a l h a ­

dora e das crises econômicas nesta cisão da sociedade em " t r a b a l h a d o r e s " e " p r o p r i e t á r i o s " . O sansimonismo e o s ismondismo inclinam-se, pois, a situar o problema econômico no plano so­cial, em c o n t r a p o s i ç ã o aos clássicos cujos esforços se d e s e n v o l v e r a m no sentido de fazer uma nítida s e p a r a ç ã o entre o econômico e o social. D a í por diante, o social ismo colocar-se-á sempre no plano social .

24. Por "rendimento sem trabalho" entende o s a n s i m o n i s m o o juro e a renda, m a s não o lucro, pois, longe de condená-lo, just i f ica-o como correspondendo ao preço do trabalho de g e ­rência.

25. " H o j e em dia a massa dos trabalhadores é explorada pelos homens proprietários dos bens por ela u t i l i z a d o s " (Doctrine de Saint-Simon, Exposition, 2. 8 edição. P a r i s , 1854, p. 1 7 6 ) .

Page 191: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

vista, em seus "Nouveaux Príncipes cTÉconomie Politique". 2 6 O socia­lismo de todo o século XIX irá haurir nestas duas fontes os argumentos apresentados contra a organização jurídico-econômica da sociedade capi­talista.

Esta crítica sansimonista refere-se sobretudo a este absolutismo carac­terístico da propriedade privada que, do ponto de vista dos economistas clássicos, a tornava indiscutível. Ao contrário, julgam Saint-Simon e os sansimonistas caracterizar-se a propriedade privada pelo seu relativismo e por sua mutabilidade. Varia sempre de acordo com as diferentes épocas e lugares: se útil foi no passado, inegável é haver-se tornado hoje inútil e arcaica. Desenvolvem, assim, a concepção de uma propriedade privada — fato social — sujeita à lei do progresso. Concepção interessante em si, z sobretudo para a história das doutrinas, em virtude de seus corolários, constituirá um dos quadros no qual vai desenvolver-se a reação doutrinária e científica contra a estática clássica e neoclássica.

Em resumo, a crítica sansimonista se decompõe da maneira seguinte: o direito de sucessão hereditária distribui ao acaso, sem obedecer a deter­minada direção ou coordenação, a propriedade dos meios de produção, ao invés de fazê-los passar, como deveria, às mãos dos mais capazes. Daí advém o vício fundamental da produção anárquica existente.

E não apenas o interesse geral -— a utilidade — deixaria de ser aten­dido, mas também a justiça, pois o direito de sucessão hereditária se opõe igualmente à repartição eqüitativa, ou seja, "a cada um segundo suas obras".

O remédio para tais vícios da produção e da repartição capitalista estaria na aplicação do princípio diretor do sansimonismo: "a cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas obras". Daí exigir-se a transformação da sociedade e, para realizá-la, o sansimonismo tinha pro­jetos .

Do plano da crítica, passa a doutrina ao plano construtivo.

O pessimismo resultante da análise da sociedade atual vai ser substi­tuído por um otimismo que entrevê as seguras vias da sociedade futura.

§ 3.° — A obra construtiva do sansimonismo

A parte construtiva do sansimonismo apresenta dois aspectos princi­pais e complementares: autoritarismo e coletivismo.

É autoritária pelo espírito. O traço característico de Saint-Simon é esse autoritarismo que se refletirá sobretudo nos projetos de organização da produção.

É coletivista pela forma, à qual aderem os seus discípulos, imprimin-do-a à organização da repartição.

26. V e r p. 259 e segs.

Page 192: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

1. O SISTEMA É AUTORITÁRIO

Saint-Simon julga, de fato, não constituir o liberalismo um remédio para a eliminação dos "ociosos". Nesse século XIX, século construtivo por excelência, deve-se desenvolver em todos os setores um esforço enérgico de organização. A quem confiar a tarefa? Em princípio elimina Saint--Simon qualquer ajuda por parte do Estado, para ele simples fachada, cuja atuação é apenas superficial. Este trabalho de organização geral deverá, pois, ser confiado aos homens "capazes", isto é, aos produtores. Saint--Simon entende por produtores os técnicos, os cientistas, os artistas.

Ao se atribuir aos mais aptos o encargo da organização da sociedade, consegue-se substituir "a administração das coisas pela administração das pessoas". Saint-Simon, reiteradas vezes, insistirá nesta fórmula.

Partindo desta idéia- de se dever atribuir o poder aos mais capazes, elabora Saint-Simon um projeto de constituição política. A organização social repousaria na existência e funcionamento de três Câmaras:

— uma Câmara de invenções, composta de engenheiros e artistas, cuja missão seria descobrir e propor os trabalhos necessários;

— uma Câmara de exames, integrada por sábios, decidiria quanto ao valor dos projetos da primeira Câmara;

— uma Câmara de exepução se incumbiria da direção dos trabalhos: seria constituída por industriais escolhidos entre os mais impor­tantes do país.

Trata-se, pois, de um governo econômico, em substituição ao governo político. Esta idéia será retomada, mais tarde, por Proudhon e, depois, por A. Menger. Esta constituição consagra o predomínio das elites, propiciando o aproveitamento de novo feudalismo industrial. Aliás, Villeneuve de Bor-gemont conceberá algo de semelhante. Assim também pode-se entrever aí o esboço da teoria das elites, de Vilfredo Pareto. 2 7 Este projeto de cons­tituição não representa, aliás, a parte principa do edifício sansimonista, servindo apenas de ilustração das idéias do mestre. Os sansimonistas não adotarão esta forma, mas se manterão fiéis ao seu espírito, ou seja, à res­tauração da autoridade, bem como ao predomínio dos mais aptos.

2. O SISTEMA É COLETIVISTA

Às idéias de restauração da autoridade e de predomínio dos mais ca­pazes, acrescentam os sansimonistas a de supressão da propriedade privada e a de abolição do direito de sucessão hereditária. Esta contribuição im­prime ao sistema um aspecto coletivista. O meio preconizado para tal seria a constituição, pelo Estado, de um fundo social — os discípulos não nu­trem em relação ao poder público as mesmas reservas de mestre —, ca-

27. L e r , principalmente, P R O U D H O M : Idée Générale sur la Révolution au XIXème Siècle ( E d . Berthod Rivière, p. 3 4 9 ) .

Page 193: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

bendo, então, ao Estado, proprietário único,dos meios de produção e do capftal, a todos suceder por herança. E, assim, será constituído esse fundo social, que lhe possibilitará garantir o funcionamento do "industrialismo", cu seja, do novo mundo. O trabalho é obrigatório. Cada homem tem que trabalhar e deve fazê-lo de modo útil à sociedade (1862. Lettre d'un Ha-bitant de Genève).

Este novo Estado, equiparado pelos sansimonistas, na ordem econô­mica, a um vasto sistema de bancos hierarquizados, distribuirá os meios de produção por entre os homens, em função "das respectivas capacidades". (O arbitrário penetra nesse sistema ao se tratar de decidir o que seja "a respectiva capacidade". O fato de se recorrer aos "homens universais" {hommes généraux), homens de grandes qualidades, de conhecimentos ge­rais, não simplifica nem resolve o problema.) O novo Estado assegurará a repartição dos produtos em função do que tiver cada um produzido. A parte, assim determinada, tornar-se-á propriedade privada de cada um dos titulares desse direito.

Vê-se, pois, pretender o sansimonismo assegurar, de início, a igual­dade entre os homens. Permite, todavia, em seguida, a reconstituição da desigualdade na qual vê, aliás, um estimulante indispensável à atividade humana.

Estes os traços principais do edifício sansimonista, o qual, entretanto, não se satisfaz com ser tão-somente um sistema econômico. Anseia por horizontes mais amplos, pretendendo constituir uma doutrina de renova­ção social. Sob o impulso de imaginações férteis, transforma-se a doutrina em sistema geral de um novo mundo — pacífico — concebido com o es­pírito de uma associação universal. Nesse mundo, os antagonismos da antiga ordem social — guerreira — teriam desaparecido; o antagonismo entre os indivíduos, pela supressão da exploração do homem pelo homem; o antagonismo existente entre as nações, pondo-se fim às guerras de todo o gênero, pois criaria o industrialismo, de uma vez para sempre, a harmonia des interesses. E o próprio antagonismo entre a matéria e o espírito desa­pareceria. Esta, a tarefa cuja execução caberia ao "Novo Cristianismo", que era o título mesmo da última obra de Saint-Simon.

Eis aí o que de essencial há no sansimonismo. Apresenta-se como um verdadeiro sistema socialista, traço pelo qual se caracteriza principalmente na parte crítica e na construtiva: na primeira, através do espírito autoritá­rio, da crítica à propriedade privada e da concepção do conflito de classes, o socialismo ulterior ditará luta de classes e transformará o antagonismo trabalhadores-ociosos no conflito trabalhadores-capitalistas. Na parte cons-tiutiva esse traço socialista característico ressalta de maneira ainda mais acentuada através da supressão do direito de sucessão hereditária e do de propriedade dos meios de produção, medida essa que constituirá o funda­mento do próprio sistema. Esta tendência autoritária impõe a organização coletivista. Confia-se ao Estado a incumbência de impulsionar o mecanismo econômico e garantir o seu funcionamento, tendo em vista assegurar, de 193

Page 194: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

início, a igualdade entre todos os homens através da socialização dos meios de produção e dar-lhe a possibilidade de fazer a distribuição do produzido em função da "capacidade" de cada um. Estes os traços socialistas mais característicos do sistema.

Sem dúvida, estes traços apresentam-se sob diferentes matizes no âma­go da doutrina, conforme se trate de elaboração de Saint-Simon ou da que lhe deram os sansimonistas. O mestre, através da noção de luta de classes e da restauração da autoridade, antes prepara o coletivismo do sistema do que o concebe e expõe. Os discípulos, tomando como ponto de par­tida as mesmas noções, chegam a uma forma de coletivismo que Saint--Simon não adotara, nem provavelmente admitiria. O que apenas conta é indubitavelmente o conjunto do sistema como expressão de uma doutrina socialista.

Assim, pois, nada há de surpreendente no fato de se verificar apro­ximar-se o sansimonismo inicialmente, através do pensamento de Saint--Simon, do classicismo, para transformar-se, com os sansimonistas, em um socialismo. É mais uma ilustração da existência do estreito parentesco entre o individualismo e o socialismo, fato a que já tivemos ocasião de aludir.

Este sistema coletivista apresenta-se, aliás, como pouco viável. A sua organização baseia-se na aptidão ou capacidade: este, o atributo que possi­bilitará o bom funcionamento do sistema em seu conjunto, tornando exe­qüível o máximo de produção, objetivo do novo mundo.

Assenta o sistema, pois, na escolha dos homens aptos. Ora, esta esco­lha é confiada a homens universais ("hommes généraux"), noção comple­tamente destituída de senso prático e que parece, de fato, conduzir ao maís absoluto arbítrio. Esses homens se imporão por si mesmos, graças aos seus próprios méritos: sem dúvida existem tais homens. Todavia, jamais houve acordo perfeito, relativamente à noção de mérito. E, dado que se admitisse a possibilidade dessa escolha, como imporiam esses homens uni­versais a sua autoridade, como seriam executadas as suas decisões? Lê-se, realmente, nas obras sansimonistas que essas decisões seriam "piamente" aceitas, pois cada um compreenderia visarem elas tãc-somente ao interesse geral. . . Eqüivale a dizer tratar-se de questão de fé. Será, aliás, graças a esta fé que, saindo do quadro econômico para invadir o da religião, espera o sistema poder funcionar.

Não menos imprecisa é a noção que preside à repartição: " a cada um segundo as suas obras". Que se deve entender por isso? Se se trata de receber cada um como remuneração o resultado do seu trabalho, não nos parece afastar-se muito o sansimonismo, neste ponto, da repartição no regime liberal e individualista.

A palavra "obra" implica a noção de trabalho associado a uma uti­lidade coletiva: noção complexa e chave dessa repartição, sempre delicada em todos os sistemas socialistas, noção por demais vaga para poder ser

194 utilizada na prática.

Page 195: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ 4." — A influência do sansimonismo

Mas, tal como se apresenta, constitui o sansimonismo uma doutrina cuja influência — imediata e mediata — se exerceu de modo considerável sobre idéias e fatos.

A influência imediata sofreu-a um público restrito. Aliás, pretendia Saint-Simon atuar sobre as elites e estas responderam ao seu apelo. Ma­nifesto é o traço espiritualista característico da doutrina: o sansimonismo é um socialismo que não se dirige à massa proletária, propugnando pela defesa de seus interesses materiais. Volta-se para a burguesia e para a elite intelectual da época, exigindo delas, em nome da justiça e da eqüi­dade, a realização, por iniciativa própria, das modificações ditadas por estes sentimentos.

Junto ao público em geral, pequena foi a atuação do sansimonismo e, à medida que a sua ação se exerceu, foi para dar combate ao socia­lismo. A massa não poderia, com efeito, ligar sua sorte a uma escola que desde logo se exteriorizava por numerosos excessos. Organizou-se o sansimonismo a partir de 1828 — sempre de acordo com a tradição de Saint-Simon, embora levada ao exagero por seus discípulos — sob a forma de seita pseudo-religiosa. Entrega-se a manifestações inadequadas que aca­bam, após um processo (1832), pela dissolução do sistema e seu descré­dito junto ao público.

Em contraposição, consegue a elite apreender, nesse formalismo fala­cioso, os conceitos sérios da doutrina. A burguesia adere, com fervor, a estas idéias que correspondem aos seus anseios de afirmação do próprio poderio, em uma época em que, ao que parece, se sente ameaçada. Ho­mens de elite serão também seduzidos pelo pensamento de Saint-Simon e atraídos por este homem, de porte sem dúvida excepcional, por este "Fí­sico social", conforme a si mesmo se designava, a cujas concepções filo­sóficas não faltariam nem grandeza nem valor. Intelectualmente cercavam--no Augusto Comte, Augustin Thierry, Bazar, Enfantin, antigo politécnico.

E alguns destes homens, juntamente com muitos outros, vão concor­rer, pela sua atuação, para que a influência do sansimonismo passe do plano das idéias para o dos fatos. Conforme, com justeza, escreve o pro­fessor René Gonnard: "Um grande número de homens dotados dos mais diversos tipos de talento — engenheiros, escritores, artistas, banqueiros — passou pelo sansimonismo e dele conservou o cunho, a saber, o gosto pelos grandes empreendimentos, pelos grandes negócios".28

Fundam os irmãos Péreire, em 1863, a primeira grande sociedade financeira moderna, o Crédito Mobiliário, antepassado de nossas grandes sociedades financeiras. Enfantin organiza uma sociedade para a abertura do Canal de Suez e auxilia a criação de uma das maiores redes ferroviá­rias francesas dando grande impulso ao moderno desenvolvimento do cré-

28. R. G O N N A R D : Histoire des Doctrines Économiques, P a r i s , 1930, p. 4S3.

Page 196: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

dito. 2 9 Michel Chevalier, solicitando a intervenção do Estado, vai ainda contribuir para a expansão das grandes obras públicas do século.

Fora da França, considerável foi a influência do sansimonismo, o qual se difundiu por todos os países e continentes.

Na América a sua influência fez-se sentir com vigor, graças às suas particulares condições de desenvolvimento.30 No Brasil, o sansimonismo tem como principal representante um dos seus grandes homens, o Visconde de Mauá (Irineu Evangelista de Sousa — 1813-1889). Mauá assemelha--se a Saint-Simon sob vários aspectos: dotado de uma prodigiosa atividade, entusiasta e convicto apologista do industrialismo e do poderio da ciência e das suas ilimitadas possibilidades técnicas, representará, nesse terço do século XIX, um dos artífices mais notáveis do desenvolvimento econômico de seu grande país. 3 1 A exemplo dos irmãos Péreire, organizou, no Brasil, sociedades por ações, fazendo-se, a um tempo, banqueiro, empresário de grandes obras públicas, construtor de estradas de ferro, armador, além de agricultor e diplomata. . . Sua energia não tem limites. Suas iniciati­vas estendem-se a todos os campos. Sua vida, brilhante como poucas, teve um triste fim em meio a grande nobreza. E por este fim mesmo aproxima--se sua existência, de maneira muito estranha, da de seu longínquo mestre.

O sansimonismo vai, afinal, exercer influência sobre os fatos, através do princípio que o anima — o industrialismo. Constitui um hino à pro­dução, sobretudo à produção industrial, hino entoado a uma produção le­vada ao rendimento máximo através da coordenação e do controle.

Neste hino à indústria já se encontram os germes de grande número de correntes doutrinárias do século XIX e do século XX, as quais vão medrar sobretudo nos Estados Unidos. Encontrarão, todavia, terreno pro-

29. V a i o s a n s i m o n i s m o — e p a r t i c u l a r m e n t e E N F A N T I N —, na busca do m á x i m o de pro­dução, interessar-se pelo d e s e n v o l v i m e n t o do c r é d i t o : a doutrina imprimirá, neste sentido, grande impulso a todo o m o v i m e n t o de idéias r e l a t i v a s às questões financeiras. No c a m p o do crédito a curto prazo, propõe E N F A N T I N um s i s t e m a original . A nota de B a n c o — da qual salienta sobretudo o p r i m i t i v o traço característ ico da letra de c â m b i o — será e m i t i d a com v e n c i m e n t o igual ao dos t í tulos apresentados a d e s c o n t o , rendendo um juro inferior à t a x a de desconto. C o m isso ter-se-ia dado solução ao p r o b l e m a da r e l a ç ã o entre a c irculação e a reserva m e t á l i c a , fazendo desaparecer os m o v i m e n t o s da t a x a de desconto — através dos quais procuram os ban­cos proteger seus e n c a i x e s — , m o v i m e n t o s esses cujas bruscas .ascensões r e p r e s e n t a v a m , para E N F A N T I N , a principal causa das crises econômicas. E s t e projeto, a despeito de não ter co­nhecido sucesso prático a l g u m , vai servir de inspiração para a criação das notas da C a i x a Laff i t e, numa pequena medida, t a m b é m das do Crédito M o b i l i á r i o . E n c o n t r a - s e de novo a in­fluência deste projeto em certas partes da obra de L. W A L R A S .

D i g n a de nota é a influência exercida pelo s a n s i m o n i s m o sobre o d e s e n v o l v i m e n t o do crédito no século X I X , tanto a curto prazo — tal como no projeto de E N F A N T I N — quanto a longo prazo, nas n o t á v e i s r e a l i z a ç õ e s da época — p r i n c i p a l m e n t e a criação das redes ferroviárias, por exemplo.

E s t a influência do sansimonismo sobre o crédito foi estudada e ressaltada pelo Professor R I S T , em sua obra Histoire des Doctrines rélaiives au Crédit et à la Monnaie (a partir de John L A W aos nossos d i a s ) , Paris , 1938, p. 228; Cf. Isaac P É R E I R E : Le Banque de France et VOrganisation du Crédit en France, 1864.

30. Cf. N O R M A N O : Saint-Simon e a América, in Social Forces, 1932. 3 1 . L e r sobre este ponto A l b e r t o de F A R I A : Mauá, São P a u l o , 3." ed., 1946; V i s c o n d e

de M A U Á : Autobiografia (Prefácio e notas de C l á u d i o G a n n s ) , Rio, 1942 ; T. C. de S O U Z A F E R R E I R A : Um Grande Brasileiro in Rer. Instituto Histórico, tomo L X I I , 2.* parte, 1903; E. d e C A S T R O R A B E L O : Afauá, Rio, 1932; V i s c o n d e d e T A U N A Y : Reminiscências, R i o , 1908; L i d . B E S U C H E T : Mauá y su Época, B u e n o s A i r e s , 1940; Aroldo de A Z E V E D O Mauá, Ban­deirante do Século XIX, in Rer. de Ciências Econômicas, São P a u l o , 1941, vol. W, n.° 4; J. F. N O R M A N O : Evolução Econômica do Brasil, São P a u l o , 1939, p. 120 e segs.

Page 197: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

pí;io também na Europa, principalmente depois da Primeira Grande Guer­ra, quando parecia abrir-se uma era pacífica, de reconstruções.32

Ocupa o sansimonismo, pois, lugar de destaque na história das dou­trinas: "Constitui o germe de quase todas as idéias críticas e construtivas, características do socialismo no decurso do século XIX.z%

Socialismo espiritualista, autoritário, coletivista, é sobretudo produ-tivista: dirige-se à produção, principalmente para conseguir obter a nova organização, que julga indispensável.

Em contraposição, outra corrente socialista importante se apoiará de preferência na circulação: é o proudhonismo ou socialismo cambista.

Seção III

O SOCIALISMO DE TROCAS OU PROUDHONISMO

Proudhon, 3 4 tal como os reformadores anteriores, julga defeituosa a organização das relações econômicas da sociedade. E, além disso, acre­dita serem impotentes e inoportunos os meios até então propostos pelos seus predecessores ou contemporâneos socialistas para modificar este estado de coisas.

32. Foi então que reapareceu, por certo tempo, na F r a n ç a , o jornal sansimonista, Le Pro-ducteui. Na A l e m a n h a observa-se um n a s c i m e n t o do s a n s i m o n i s m o na obra de R A T H E N A U , à qual o n a c i o n a l - s o c i a l i s m o não se manteria indiferente.

33. Cf. G I D E e R I S T , obra c i tada, p. 270. 34. P. J. P R O U D H O N nasceu em F r a n ç a , no ano de 1809, sendo, tal como F O U R I E R ,

natural de B e s a n ç o n em F r a n c h e - C o m t é . P r o v e i o de f a m í l i a pobre. Seu pai, honesto arte­são, fabricante de toneis para cervejaria, l e v a v a dura v i d a de trabalho, conforme o emocionante relato do próprio filho em muitas das p a g i n a s de sua obra, p r i n c i p a l m e n t e na Jus^ce — 5e. étu-de, p. 128. M u i t o j o v e m ainda teve P R O U D H O N de ganhar a v i d a . M e s m o durante os seus estudos no L i c e u , os quais foram feitos g r a ç a s à obtenção de uma bolsa, viu-se obrigado a de­dicar grande parte de seu t e m p o a trabalhos agrícolas remunerados. Conservará, assim, P R O U ­D H O N , no decurso de toda a sua v i d a , este cunho c a r a c t e r í s t i c o de quem passou a infância no camp o, tornando-se, portanto, a l tamente sensível à p e r c e p ç ã o do contraste oferecido pela a g i ­t a ç ã o e miséria da vida industrial . A imensa necessidade que sentia de aprender fez com que j a m a i s deixasse de procurar m i t i g á - l a em meio às d i f i c u l d a d e s de ordem material com que s e m ­pre se defrontou fosse como t ipógrafo, impressor por conta própria — al iás sem êxito —, fosse como operário da Tour de France, à cata de provas para corrigir ou de trabalhos de c o m p o s i ç ã o que lhe dessem de comer e ainda lhe poporcionassem p o s s i b i l i d a d e s de presta? pequeno a u x í l i o à f a m í l i a : " . . . h a b i t a n t les ateliers, témoin des v i c e s et des vertus populaires, mangeant mon pain, g a g n é chaque jour à la sueur de mon front, o b l i g é a v e c mes modiques appoitements d 'ai -der ma famille et de contribuer à 1 'education de mes frères, au m i l i e u de tout cela m é d i a n t , philosophant, recueil lant dans les moindres choses des o b s e r v a t i o n s i m p r é v u e s " (Correspondance, t o m o I, p. 24).

Processado, pela primeira v e z , em conseqüência da p u b l i c a ç ã o de suas memórias sobre a propriedade, e absolvido, v a m o s encontrá-lo, alguns anos m a i s tarde, como modesto g u a r d a - l i ­vros, em L y o n , encarregado da c o n t a b i l i d a d e de uma empresa de n a v e g a ç ã o fluvial. Em 1848, ele é e leito deputado na A s s e m b l é i a nacional . A p ó s a r e v o l u ç ã o de 1848, fundou, sem ê x i t o al­g u m , um B a n c o do povo. P r o c e s s a d o n o v a m e n t e pela p u b l i c a ç ã o da obra inti tulada De la Jus­tice dans la Révolution et dans VÉglise, ele é preso e e x i l a d o , partindo para B r u x e l a s : faleceu em 1865. E s p í r i t o ávido de c o n h e c i m e n t o s , caráter leal e reto, temperamento entusiasta e apai­xonado, coração generoso, transbordando de s impatia pelos sofredores, captou o idealista P R O U ­D H O N a estima de quantos o conhecer?m, fazendo-se a m a d o dos que o estud?m. Imensa^ a sua obra. F o i reunida, por L A C R O I X , em v i n t e e seis v o l u m e s , sob o t ítulo Oeuvres Completes de J. P. Proudhon ( V e r b o e k h o v e n , 1867-70).

Suas principais obras são as s e g u i n t e s : Qu'est-ce que la Proprieté? (ou Recherches sur le Príncipe ou Droit et du Gouvernement), 1840; 2e. Mêmoire sur la Proprieté, 1941; 3e. Mêmoire sur la Proprieté, 1842; De la Création de 1'Ordre dans VHumanité, 1843; Système des Contradic-tions Économiques ou Philosopbie de la Misère, 1846; Organisation du Crédit et de la Circula-tion et Solution du Problème Social, 1848; Résumé de la Question Sociale. Banque d'Échange,

Page 198: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A reforma da sociedade, segundo Proudhon, deve ter como princípio de ação a justiça, sinônimo de igualdade e de liberdade. E será levada a efeito introduzindo-se modificações, não mais na produção ou na repar­tição, mas na circulação, pois é no ato de troca que Proudhon vê surgir a injustiça em toda a sua força, a qual se comunica, a seguir, a toda a economia. O proudhonismo formula, portanto, de início, uma crítica — aliás dupla — contra o liberalismo e contra o socialismo. Constrói, em seguida, um edifício, ou seja, um sistema baseado na reforma do regime de trocas. •

§ 1." — 0 aspecto crítico do proudhonismo

1. A CRÍTICA AO LIBERALISMO

A crítica ao liberalismo circunscreve-se a uma crítica à propriedade privada. Que é a propriedade? ("Qu'est-ce que la Proprieté?" era título das primeiras memórias de Proudhon.) "É o roubo." Mas a propriedade, para Proudhon, é também a "liberdade". E, em seu "Système des Contra-dictions Économiquès", estas duas proposições, aparentemente contraditó­rias, são desenvolvidas em conjunto. Proudhon vê na propriedade, pedra fundamental da sociedade, a um tempo, uma instituição de justiça e de injustiça. De natureza "sui generis", a propriedade será fonte tanto do bem quanto do mal, gerando vantagens e inconvenientes: o mal é insepa­rável do bem, quer na propriedade, quer nos elementos econômicos.3 5

1848; Article contre les Malthusiens, 1848; Les Contessions d'un Révolutionnaire, 1840; Intérêt et Principal, 1850 (discussão entre Proudhon e B a s t i a t ) ; Idée Générale de la Révolution au XIXème, Siècle, 1851; De la Justice dans la Révolution et dans l'tglise, 1858; 3 vols. , sua obra p r i n c i p a l ; La Guerre et la Paix, 1861; De la Capacite Politique des Classes Ouvrières, 1865. Des Ouvres Choisies de Proudhon foram p u b l i c a d a s por /. Baucal, P a r i s , 1967.

Sobre P. J. P R O U D H O N ler S A I N T - B E U V E S : P. J. Proudhon — Sa Vie, sa Corres-pondance, P a r i s , 1877 (reeditado por D. H A L E V Y , P a r i s , 1948). E d . D R O Z : P . J . Proudhon, Paris , 1909; A. D E S J A R D I N S : P . J . Proudhon, 1896, 2 v o l s . ; G U Y - G R A N D T , R. P I C A R D , G. P I R O U e o u t r o s : Proudhon et notre Temps, obra de colaboração publicada por Les Amis de Proudhon, 1920; R. P I C A R D : Les Contradictions Économiquès et la Doctrine Proudhonnienne, in Revue d'Histoire Économique et Sociale, 1922; B O U R G U I N : Des Rapports entre Proudhon et Marx, in Revue d'Économie politique, 1893; B O U G L É : La Sociologie de Proudhon, Paris , 1 9 1 1 ; A. B E R T H O L D : P. J. Proudhon et la Proprieté, P a r i s , 1910; G. P I R O U : Proudhonnisme et Syndicalisme Révolutionnaire, Paris , 1910; A. M U E L B E R G E R : Proudhon, Leben und Werke, S t u t t g a r t , 1890; V. S T E I N : Geschichte der sozialen Bevregung, in Frankreich, L e i p z i g , 1850, t. I I I ; D O L L E A N S : Proudhon, Paris , 1948; H A L É V Y : Proudhon d'après ses Carnets Inédit, Paris , 1944; B A U C A L , J . : Oeuvres Choisies de Proudhon, Paris , 1967.

Sobre as relações entre Proudhon e M a r x e as influências r e s p e c t i v a s , l e r : B O U R G U I N , Des Rapports entre Proudhon et Marx, R e v . E c o . P o l . , 1893: H A U L T M A N N , Marx et Prou­dhon, leurs Rapports Personnels (1844-47), P a r i s , 1947; B O U G L É , C, Socialisme Français: du Socialisme utopique à la démocratie industrielles. P a r i s , 1932; G A R A N D Y , R., Karl Marx (p. 253 e s e g s . ) , P a r i s , 1964.

35. " L a proprieté, considérée dans 1 'ensemble des institutions sociales, a, pour ainsi dire, deux c o m p t e s o u v e r t s : l 'un est celui des b i e n s qu'el le procure et qui découlent directement de son essence, 1'autre est celui des i n c o n v é n i e n t s qu'el le produit, des frais qu'el le coute, et qui résultent d i r e c t e m e n t aussi de sa n a t u r e . " (Coniession d'un récolutionnaire, 1849, p. 127.) A antinomia que contém a propriedade por ser ela ao m e s m o tempo fonte de l iberdade e de a l i e n a ç ã o , de j u s t i ç a e de despotismo, é uma tese sobre a qual Proudhon insist irá muitas v e ­zes, em part icular no seu Sistema das c o n t r a d i ç õ e s econômicas. E s s a antinomia não está l i m i t a d a à propriedade, mas se encontra em outras inst i tuições e em outros fatores l i g a d o s à a t i v i d a d e econômica e social. A s s i m é que e x i s t e ela no m a q u i n i s m o , o qual é ao mesmo tempo f a v o r á v e l e desfavorável ao h o m e m : torna seu trabalho menos penoso, mas favorece o d e s e n v o l v i m e n t o do regime do salariado.

Page 199: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

É uma instituição de justiça, uma vez que, segundo a eqüidade, deve dispor o homem das coisas nas quais incorpora seu trabalho — Proudhon está imbuído da teoria clássica do valor-trabalho. Justo é ter o homem, sobre essas coisas, o direito presente de uso, bem como o de alienação futura. Deve poder consumi-las, poupá-las ou legá-las. O proudhonismo reconhece o direito de sucessão hereditária, louvando-lhe os méritos. Neste, como em outros pontos, afasta-se do sansimonismo que via no direito de sucessão hereditária a principal fonte de todos os males. 3 6

A propriedade está, pois, de acordo com o princípio de justiça, isto é, de liberdade, uma vez que, no pensamento de Proudhon, estas duas ex­pressões aparecem sempre juntas, associadas, unidas. Em toda a sua obra, faz Proudhon apologia da liberdade. A coerência do seu pensamento é perfeita neste ponto. E, ao tecer elogios a esta liberdade — "fórmula eterna das coisas" — ou a vergastar toda e qualquer coerção, exalta-se, produzindo as mais belas páginas de sua obra. 3 7 Proudhon, apóstolo ex­tremista da liberdade, combate, assim, os socialistas autoritários que o pre­cederam — como, por exemplo, o sansimonismo —, aproximando-se, por outro lado, do liberalismo. E isso põe em relevo um dos aspectos desse paradoxo do liberalismo, tantas vezes sublinhado em sua obra.

Mas, por sua própria natureza, pela sua contradição interna, a pro­priedade, instituição de justiça, é também uma instituição de "roubo". O que se torna propriedade de um homem é retirado de um fundo comum a todos. Daí implicar a existência de um patrimônio privado numa redução das possibilidades de apropriação desses mesmos bens por parte de todos os demais. E, quando não for possível esta apropriação, nada mais res­tará a quantos chegarem por último, senão o recurso de se dirigirem aos titulares desse direito, a fim de lhes tomar por empréstimo os meios de produção. E este empréstimo é oneroso: o juro — isto é, o aluguel, a ren­da e o juro propriamente dito — é pago pelo homem mediante a cessão de parte de seu trabalho aos proprietários. Eis a contradição interna da ins­tituição: princípio de justiça à medida que assegura a liberdade, trans­forma-se a propriedade em princípio de injustiça, uma vez que, não ga­rantindo a igualdade, despoja o homem de parte de seu trabalho. Esta parte vai constituir uma renda sem trabalho, para o proprietário que a recebe. Trata-se de um verdadeiro abuso de direito ou privilégio sobre o qual assenta a propriedade. Eis por que se pode afirmar, segundo Prou­dhon, ser "a propriedade um roubo".

É uma condenação severa da propriedade, muito semelhante à que lhe é feita por todos os socialistas. Todavia, é de uma ordem mais interna

36. " B i e n loin de restreindre la sucessibi l i té , ie v o u d r a i s en faveur des amis, des associes, des compangnons, des confrères et des col lègues, des d o m e s t i q u e s e u x - m ê m e s , 1'étendre encore. II est bon que 1'homme sache que sa pensée et son souvenir ne mourront p a s : aussi bien n'est--ce pas 1'hérédité que rend les fortunes inégales elie ne fait que les transmetre. F a i t e s la b a ­l a n c e des produits et des s e r v i ç e s , vous n'aurez rien contre 1 'hérédite". (Justice, 2e. étude, p. 119.)

37. N o t á v e i s , nesse sentido, certas passagens da Idée Générale de la Révolution ao XIXème Siècle, principalmente às p. 342 e seguintes, nas quais, pela v e r s a t i l i d a d e ou reiteração da expressão, imprime P R O U D H O N ao seu pensamento uma força penetrante que lhe valeu larga d i v u l g a ç ã o .

Page 200: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

e é mais original, quer pela forma quer pela força de expressão que lhe imprimiu Proudhon. E, precisamente por isso, impossível é tratar do proudhonismo sem a transcrição de numerosas citações. Esta renda sem trabalho, conferida, assim, aos proprietários, é que torna o direito de pro­priedade condenável. E se os homens não se revoltam contra este roubo é por lhes passar este despercebido, resultando, como resultou, de um "erro de conta". 3 8 Este erro provém do fato de ser pago o operário de acordo com o trabalho por ele prestado. Ao patrão cabe, contudo, mais que a soma do trabalho de cada um dos seus operários, pois recebe o correspondente ao valor do produzido pelo trabalho coletivamente' pres­tado. Com efeito, uma oficina composta de operários, empenhados na execução de tarefas diferentes e especializadas e tomando parte em uma mesma e determinada produção, possui, como coletividade, um poderio que lhe é peculiar. Assim também, escreve Proudhon, "1'equipage d'un navire, une societé en commandite, une académie, un orchestre, une armée, etc. . . contiennent de la puissance, puissance synthétique et conséquem-ment spéciale au groupe, supérieure en qualité et en énergie à la somme des forces élémentaires qui la composent",39

Este "erro de conta", verificado na apreciação do valor individual do trabalho como equivalente ao coletivamente prestado, tornou possível a duração do roubo sem protestos, por parte do operário, no sentido de se pôr um paradeiro a este estado de coisas. E, pois, uma vez posto esse erro em evidência, indispensável será fazer desaparecer o roubo que vicia a instituição da propriedade.

Não se trata, entretanto, de suprimir essa instituição, a qual — e Proudhon insiste energicamente nesta idéia — constitui o eixo de todo o sistema social e a sua grande mola propulsora. E, em razão de visarem os sistemas socialistas anteriores à radical transformação ou supressão desta propriedade privada, critica-os Proudhon mais energicamente ainda do que o fez o liberalismo.

2. A CRÍTICA AO SOCIALISMO

Esta crítica se dirige não apenas contra a atitude dos socialistas ante a propriedade, mas também contra a sua posição em relação a todos os elementos econômicos componentes de uma sociedade, cuja supressão pre­tendem.

De fato, julga Proudhon dever-se buscar não a destruição dos fatores nocivos, mas o equilíbrio das forças e dos interesses econômicos. Só por esta forma será possível assegurar a igualdade e, portanto, a justiça.

38. O p e n s a m e n t o de P R O U D H O N assume freqüentemente uma forma contabilisticã, cf. c i t a ç ã o anterior, p. 72.

B O U G L É insiste na influência exercida sobre o pensamento de P R O U D H O N oelo ofício de contador que desempenhou durante certo temDO. Cf. B O U G L É : Proudhon, A l c a n , Paris , 1930, p. 7.

39- Justice, 4e. étude, p. 111. E a i n d a : " D e u x cents g"-enad'ers ont en quelques heures dressé 1 'obélisque de Louasor sur sa b a s e ; suppose-t-on qu'un seul homme en deux cents jours en seraite venu à bout? Cependant ao compte du c a p i t a l i s m e la somme des salaires eut été la m ê m e . " ( L e r : Mémoire, p. 94.)

Page 201: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Condena o socialismo associacionista, por propor este substituir o tra­balho liyre pelo trabalho associado: '•mistificação', dirá do fourierismo, e fórmula 'absurda" dos projetos de Louis Blanc, que "s'est cru 1'abeille de la révolution, et n'en a été que la cigale". 4 0 O próprio princípio de associação parece a Proudhon falso, e isto por serem os homens atraídos a se associarem em razão da complementariedade das suas contribuições, desiguais, portanto. Ora — e Proudhon, ampliando a sua noção de igual­dade, estende-a para além da razão —, os homens são todos iguais, mesmo quanto à capacidade. As suas relações só podem, pois, ser mantidas na estrita base de igualdade dos trabalhos respectivos. Toda e qualquer outra concepção participa, segundo Proudhon, do sentimento de fraternidade, de caridade, de assistência e de paternalismo, não correspondendo à idéia de igualdade pura.

O socialismo industrialista parece-lhe mais criticável ainda não só por chegar também, e de modo radicalíssimo, à supressão da propriedade privada dos meios de produção, mas, além disso, por propor o estabeleci­mento de uma organização autoritária, hierárquica, ou seja, a negação mesmo de toda a liberdade. Desdenhosamente, classifica, então, o sansi­monismo de "palhaçada".

Sua crítica ao comunismo é particularmente violenta. A "comuni­dade", escreve ele na sua Memória sobre a Propriedade, ao suprimir a ins­tituição da propriedade individual, priva o homem de um estimulante ne­cessário "ao seu trabalho, à sua família e ao seu progresso". O comunis­mo suprime um abuso tão-somente para criar outro: "la proprieté, c'est 1'exploitation du faible par le fort, la communauté, c'est expkrtation du fort par le faible". O comunismo, escreverá ele ainda no seu Sistema das Contradições, é sinônimo de nihilismo, de indivisão, de imobilidade, de noite, de silêncio.41

Em resumo, condena Proudhon essas doutrinas socialistas: do ponto de vista econômico, porque, longe de buscar o equilibro desejável, tendem a substituir os antigos desequilíbrios por novos, agravando, assim, o des­perdício de forças, e do ponto de vista social, por instituírem o princípio comunitário, a hierarquia, a autoridade. Com isto aumentam a miséria, ao invés de assegurarem a igualdade, a liberdade, isto é, a justiça.

O liberalismo apresenta falhas que devem ser eliminadas. E o socia­lismo as suprime, substituindo-as, todavia, por outras ainda mais graves.

Necessário é, pois, conservar a instituição da propriedade privada no que tem de bom e necessário, sanando o vício que a infirma: "a renda sem trabalho". "Comme 1'arbre dont le fluit âpre et vert au commence-ment se dore au soleil et devient plus doux que le miei, c'est en prodiguant à la proprieté la limière, les vents frais et la rosée que nous tilerons de ses germes de péché, des fruits de vertu".*2

40. Idée Générale sur lã Révolution. E s t a crít ica a L o u i s B l a n c é citada por G I D E e R I S T , ob. cit., p. 347.

41 . Mêmoire sur Ia Proprieté, p. 204, Système des Contradiction Économiques, Paris , 1923, I I , p. 301.

42. Théori.- de la Proprieté, p. 210.

Page 202: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esta evolução da propriedade, no sentido de um estado de equilibro perfeito, será obtida através de uma síntese entre a tese — propriedade privada — e a antítese — o princípio comunitário. Proudhon, adepto da filosofia hegeliana, tentará realizá-la pondo em relevo o princípio deste equilibro e a sua forma.

§ 2.° — A edificação do proudhonismo

1. 0 PRINCÍPIO: A POSSE

O princípio deste equilíbrio é a posse, que constitui também a síntese buscada.

Que entende Proudhon por posse e quais as conseqüências daí de­correntes?

' Supprimez la proprieté, en conservam la possession — escreve ele — et par cette seule modification dans le príncipe, vous changez tout dans les lois, le gouvernement, Véconomie, les institutions: vous chassez le mal de la terre".*3

A posse constitui, pois, para Proudhon, uma instituição que permite conservar cada um a propriedade privada do produto integlal do seu tra­balho; ou melhor ainda, a instituição segundo a qual é mantido o princípio da propriedade privada, na sua forma tradicional, com exclusão, todavia, do seu vício fundamental, representado pelo rendimento sem trabalho.

Como suprimir, na prática, esse rendimento sem trabalho, já que a reforma visa à extinção desse privilégio característico do antigo direito de propriedade? Proudhon responde sem hesitação: através do crédito gratuito. Esta idéia é para ele tão importante quanto para Fourier a do trabalho atraente. O crédito gratuito constitui um remédio mágico que possibilitará a substituição da propriedade pela posse, assegurando o equi­líbrio, ou seja, a síntese até então tentada em vão.

Proudhon raciocina assim: os capitais, sob as suas diferentes formas, geram rendimento sem trabalho. A forma mais corrente, sob a qual se apresentam na prática, é a de moeda, e o empréstimo de dinheiro gerador do juro, a fonte mais habitual de abuso de direito. Sendo, por conseguinte, possível estabelecer o crédito gratuito, desapareceria esta fonte de injus­tiça e, com ela, seriam eliminados da economia os demais fatores de ren­dimento sem trabalho.

Com efeito, uma vez tornado gratuito o crédito, ninguém levantaria empréstimos mediante pagamento de juro. Sem dúvida, haveria ainda capitalistas oferecendo dinheiro a título oneroso. Mas estes empréstimos encontrariam a concorrência do crédito gratuito. E, cessando a sua obri­gatoriedade, automaticamente desapareceriam.

i_

43. L e r : Mémoire sur la Proprieté, p. 14.

Page 203: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Graças à gratuidade do crédito, realizar-se-ia a síntese buscada: o rendimento sem trabalho seria eliminado e todos os homens apropriar--se-iam do produto integral do seu trabalho. A propriedade privada e a produção individual permaneceriam constituindo as bases da sociedade.

O princípio de justiça seria, então, respeitado, uma vez que as trocas se fariam de acordo com o princípio de igualdade. A eqüidade caracte­rística desta troca reside na reciprocidade. A expressão sinônima desta reciprocidade é a mutualidade, qualificativo dado pelo próprio Proudhon ao seu sistema.

Este princípio mutualista assume, para Proudhon, tal poderio, que che­ga a assegurar o equilíbrio das forças e dos interesses econômicos e, indo além deste objetivo econômico, "modificará o fundo a ordem social". Tra­ta-se da organização de um princípio mutualista na mais vasta escala: "ser-vice pour service, produit pour produit, prêt pour prêt, assurance pour assurance,' crédit pour crédit, caution pour caution, garantie pour garantie, etc. . . — telle est la loi".

Daí decorrerão todas as instituições mutualistas: "assurances mutuelles, crédit mutuei, garanties reciproques du débouché d'échange, de travail, de bonne qualité et de juste prix de marchandises, etc. Voilà ce dont le mu-tualisme prétend faire, à Vaide de certaines institutions, un príncipe d'Êtat, une loi d'Etat, j'irai même jusqu'à dire, une religion d'Etat".^

Mantendo-nos no quadro da História das Doutrinas Econômicas,4 5

examinemos como passa Proudhon do princípio à realização; em outros termos, como concebe a possibilidade de pôr em prática o crédito gratuito.

2. A REALIZAÇÃO: O BANCO DE TROCAS

O crédito gratuito será obtido da seguinte maneira: constitui-se um grande banco pela associação de todos os homens desejcsos de tirar pro­veito das suas vantagens. Para sua formação e funcionamento, dispensará este banco a contribuição de capitais: os bônus de troca que emitirá não são conversíveis em moeda. Com estes bônus, descontará o banco, sem juros, as letras de trocas que lhe forem apresentadas pelos seus clientes, todos eles membros da associação. Os clientes aceitam estes bônus do banco, comprometendo-se a recebê-los em pagamento de suas mercadorias e serviços. A circulação destes bônus far-se-á de maneira normal por uma razão subjetiva: a confiança que os adeptos do sistema depositam uns nos outros. E também por uma razão objetiva, pois não serão os bônus apresentados a desconto senão acompanhados de letras de trocas, representativas das mercadorias expedidas ou pelo menos já vendidas. A quantidade de bônus em circulação representará, pois, uma riqueza real.

4 4 . De la Capacite Politique des Classes Ouvrières. E d i t . M a x . L e r o y , p. 1 2 4 . 4 5 . C o n s u l t e - s e , q u a n t o a o c o n j u n t o d a s i d é i a s d o p r o u d h o n i s m o , p a r t i c u l a r m e n t e , d o p o n t o

d e v i s t a m a t e r i a l e f i l o s ó f i c o C . B O U G L É : L a Sociologie d e Proudhon, 1 9 1 1 ; J . D U P R A T ; Proudhon. sociologique et moraliste. 1 9 2 9 .

Page 204: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Além disso, fornecerá o banco crédito, sempre sob a forma de bônus gratuitos, a todos os adeptos do sistema que desejam ampliar seus negócios ou iniciar novos.

Segundo Proudhon, assegurado, assim, o crédito gratuito, de três es­pécies seriam as conseqüências decorrentes para a ordem, respectivamente, econômica, social e política. Para a ordem econômica, verificar-se-ia o incentivo da produção. E isso, em primeiro lugar, por se respeitar a pro­priedade privada. Depois, por se sentirem os homens felizes de poder trabalhar nesse quadro de liberdade. Não se tratará daquele cunho atraen­te dado ao trabalho pelo fourierismo, resultante do contraste e da diver­sidade de tarefas, das práticas cabalísticas, da evolução do borboleteamen-to. Tratar-se-á, não de um prazer superficial, mas, sim, de uma satisfação íntima experimentada pelo fato de trabalhar o homem, de "pôr em exercício pleno as suas faculdades, a sua energia física, a habilidade manual, a agilidade mental, a força de suas idéias, o orgulho de sua alma, pela sensa­ção da dificuldade vencida, da sujeição da natureza, da ciência adquirida, da independência assegurada".K Trata-se de um "ravissement de civilisés", cada vez que o homem "dérobe à la nature un de ses secrets ou que, par la spontanéité de son industrie, il triomphe sur Vinertie de la matière".

Em uma palavra, apossando-se o homem, graças ao crédito gratuito, da totalidade da indústria criada, assegurada a plenitude de sua atividade, sente-se eficaz no trabalho, por ser livre. Essa liberdade constitui o indis­pensável estímulo à produção.

Na ordem social, estabelecida a justiça através do crédito gratuito, terá por conseqüência pôr fim às lutas de classe mediante a definitiva fusão das classes.

Os antigos antagonismos existentes entre proprietários e trabalhadores desaparecerão por si mesmos — pacificamente —, 4 7 uma vez que, graças à nova instituição, fica eliminado o rendimento sem trabalho. E de então em diante conhecerá o mundo apenas produtores iguais, que se entregam à troca de seus produtos e de seus serviços a preço de custo. A recipro­cidade nas trocas surgirá em lugar da desigualdade fomentada por privi­légios abusivos.

Por isso mesmo ter-se-á na ordem política, como conseqüência que se não tardará a impor, o desaparecimento de tcdos os governos, os quais vão se tornar inúteis: reinará tão-somente a justiça, desaparecendo os con­flitos e antagonismos. E, pois, cessa a razão da existência do governo, incumbido de aplacá-los, resolvê-los ou eliminá-los. O econômico absor­verá o político: 4 8 partindo Proudhon da liberdade, passa pelo mutualismo, para chegar à anarquia.

46. Justice, 6e. ètude. 47. O s o c i a l i s m o de P R O U D H O N é pacífico, característica essa d e s e n v o l v i d a particular­

mente na sua Confession d'un Révolutionnaire. 48. A c o n c l u s ã o semelhante c h e g a m os individual istas extremistas tais como o ultraliberal

G. de M O L I N A R I (cf. em p a rt icula r: Comment se Résoudra la Question Sociale, 1896; Esquisse d e 1'Organisation Politique et Économique de la Société iuture, 1899).

Page 205: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O que pensar deste crédito gratuito, que constitui o aspecto mais importante da parte construtiva do proudhonismo? Trata-se, na realidade, de uma concepção assaz frágil.

Impossível a^egurar a estabilidade do valor dos bônus: bastará não serem as letras de troca transformadas em mercadorias, para que a quan­tidade de bônus em circulação ultrapasse a riqueza real por estes represen­tada. A inflação assim criada acarretará a depreciação dos bônus e a ruína do sistema. Sem dúvida, acredita Proudhon, que esta inflação se verifica­ria, pois os membros da associação seriam escolhidos com todo o rigor, de modo que seja a sua solvabilidade um fato não só possível mas também certo. Nessas condições ficaria, entretanto, perigosamente limitada a asso­ciação: dada a sua natureza mutualista, já constituiria um círculo restrito aos adeptos do sistema, ou seja, limitado a trocas de certos produtos e certos serviços. Com a preocupação da solvabilidade, iria este círculo restringir-se ainda mais, o que estaria em contradição com o próprio obje­tivo do sistema. Construído, segundo o pensamento de Proudhon, para prestar serviços aos não proprietários e, portanto, aos trabalhadores, fe-char-se-ia, entretanto," a associação a quantos impossibilitados estivessem de apresentar garantias, ou seja, cuja solvabilidade não fosse suficiente­mente apreciável, e, pois, praticamente, à maioria dos operários e dos pe­quenos artesãos. O banco perderia, assim, o seu caráter de banco popular. A reforma não funcionaria exatamente para aqueles aos quais se destinava.

A estabilidade dos bônus, já difícil de ser assegurada nas operações de desconto, tcrnar-se-ia de fato ilusória quando se tratasse de conceder o Banco de Trocas crédito para ampliação ou criação de novas empresas: conforme observou Vilfredo Pareto, Proudhon chegou, então, à concepção de ser possível semear campos, não com trigo da colheita anterior, mas com o da colheita futura.

A fraqueza.da construção proudhonista provém, além disso, do fato de — ainda que nãó existissem os defeitos redibitórios assinalados — não lhe ser possível atingir o objetivo cclimado, ou seja, fazer desaparecer o rendimento sem trabalho.

Com efeito, quando um banco comum recebe de seu cliente a letra de câmbio, a qual lhe descontou, o que faz? Entrega-lhe, no mesmo ato, o valer correspondente à letra, valor esse que, sem o desconto, só iria ter à sua disposição mais tarde, por ocasião do vencimento. Em outros termos, o juro que c banco cobra por esta operação rep>csenta g diferença entre o valor do bem presente e o do bem futuro. Esta diferença de valor existe em si: está profundamente arraigada no espírito humano. Cometeu, assim, Proudhon um profundo erro ao supor residir a causa de semelhante fenômeno na má organização do crédito. E, fosse o seu sistema de crédito gratuito suscetível de funcionar, não tardaria o juro em reaparecer, pois a vantagem do pagamento a vista, em comparação cem a do pagamento a prazo, havia, necessariamente, de se impor ao espírito dos vendedores de mercadorias ou de serviços. Para serem pagos de preferência a vista,

Page 206: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

consentiriam os vendedores em fazer uma redução no preço: certamente reapareceria o juro sob esta forma.4 9

Por conseguinte, a construção proudhonista do crédito gratuito gene­ralizado, inaceitável em teoria, é irrealizável na prática. Funda-se, toda­via, na idéia de crédito mútuo que, em compensação, é uma idéia exata, com base na qual procura Proudhon, em outras partes de sua obra, ela­borar construções mais modestas, porém mais seguras. Trata-se de entra­rem os homens em entendimento, cotizando-se, a fim de criar um banco, cujo "objetivo será obter, a baixo preço, o numerário indispensável às suas transações". 5 0 Não se tratará mais, pois, de fazer desaparecer o juro, e, .;im, de procurar reduzir o seu ônus.

Nessa mesma época, isto é, por volta de 1850, começaram a surgir, na Alemanha, por inspiração dos liberais —• Schulze-Delitsch em parti­cular — e com base neste princípio, numerosas associações cooperativas de crédito tendo em vista os interesses da classe média.

É, pois, sob esta forma de crédito mútuo que se torna aceitável a parte construtiva do proudhonismo. Todavia, o alcance da obra independe destes ensaios de aplicação prática, residindo, sobretudo, nas idéias gerais que constituem a base da sua doutrina econômica, social e filosófica como um todo.

Profunda foi a influência exercida pelo proudhonismo sobre o pensa­mento socialista.

De modo imediato, fez-se sentir no socialismo da época, influência essa, aliás, rapidamente eclipsada pelo sucesso do marxismo junto à massa operária a partir de 1867. Posteriormente, sofre-a o próprio marxismo.

Em nossa época, o que se aproveita do proudhonismo é, sobretudo, este traço espiritualista que o caracteriza e ressalta com vigor e clareza. Em seus ensaios de conciliação do marxismo cem o proudhonismo, vão Borel, Berth e Jaurès inspirar-se nesse idealismo proudhonista: um Jaurès, por exemplo, se mostra grato a Proudhon por haver este indicado que "todo o movimento humano tem por tendência, sentido e objetivo, a reali­zação da justiça humana universal".

O sindicalismo se inspirará também no proudhonismo, tomando-lhe de empréstimo, sobretudo, o traço espiritualista que impregna teda a obra de Proudhon e ressalta mais vigorosamente ainda na sua "La justice dans la révolution et dans 1'Église".

É porque Proudhon afirmou com força e paixão a necessidade de con­ciliar a justiça com a Uqerdade dos indivíduos, que sua influência perma­nece tão durável, tão profunda sobre a evolução do socialismo, sobre o conjunto das doutrinas.

Em resumo: o proudhonismo é um socialismo de trocas, se encarado pelos meios preconizados, e espiritualista, se pelos seus fins. Espiritua-

206 49. E n c o n t r a m - s e detalhes sobre este ponto na obra de G I D E e R I S T já citada, p. 365. 50 Idée Générale de la Révolution au XIXime Siècle, p. 198 e segs. •

Page 207: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

lista, de fato, pela incessante busca de justiça na sociedade econômica, justiça pela igualdade e pela liberdade, justiça que é iminente ao indiví­duo e à qual a ordem e as relações sociais têm de se submeter. Para realizar tal justiça é, pois, a transformação do direito que se impõe. Ao direito individualista deve suceder um direito social — um direito "econômico" —; à conservação dos privilégios individuais, fundados oü não, deve-se seguir à procura da eqüidade das relações sociais.

A busca da igualdade — fala-se, com razão, da paixão igualitarista de Proudhon — faz com que o proudhonismo se contraponha ao libera­lismo. E a sua preocupação com a realização da liberdade r> põe em contraste com o socialismo anterior.

Mas, o espiritualismo, mais completo no proudhonismo que nos outros socialistas da primeira metade do século XIX, não era menos visível em Owen, Fourier, Louis Blanc ou Saint-Simon: este, pois, o traço caracte­rístico comum às diversas correntes socialistas, traço esse pelo qual se torna possível incluí-las no mesmo grupo.

Será ainda esta característica que vai fazer com que se contraponham todos eles ao socialismo marxista, desdenhoso das forças morais e espi­rituais e explicando a evolução econômica, pela qual anseia, através de forças materiais.

Page 208: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

• S O C I A L I S M O MARXISTA DITO "CIENTÍFICO"

O marxismo apresenta-se como vasta doutrina socialista, e isto sob dois aspectos.

Vasta, primeiro, pelo seu conteúdo. Karl Marx e Friedrich Engels 1

construíram, em suas obras, uma imponente doutrina, baseada em amplíssi-1. K a r l M A R X nasceu em T r i e r , Prússia — em 1818 — provindo de uma família b u r g u e s a ;

seu pai era advogado. Pouco se sabe r e l a t i v a m e n t e à sua mocidade. A p ó s haver concluído seus estudos no L i c e u de Trier, inscreveu-se na F a c u l d a d e de Direito de Bónn, que cursou duran­te apenas alguns meses, transferindo-se, em outubro de 1836, para a U n i v e r s i d a d e de Berl im. Sentiu-se atraído pelos estudos f i losóficos. Na A l e m a n h a predominava, então, a filosofia idea­lista h e g e l i a n a . F a l e c i d o seu pai em 1838, resolveu M A R X prosseguir seus estudos, para rece­ber o grau de professor de Fi lo so f ia . D e f e n d e em 1841, na U n i v e r s i d a d e de Iena, sua tese de d o u t o r a d o : A diferença entre a iilosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. E nesse m e s m o ano apareceu o livro de L. F E U E R B A C H , A Essência do Cristianismo. A partir dessa época, a v i d a intelectual alemã se d i v i d i r i a entre a filosofia h e g e l i a n a e a material ista, de F E U E R B A C H . M A R X sofreria a profunda influência deste últ imo. A s universidades alemãs r e a g e m contra as obras a n t i - r e l i g i o s a s , opondo-se aos ensinamentos de F E U E R B A C H e de B r u n o B A U E R . M A R X abandona, então, os seus projetos r e l a t i v a m e n t e à carreira do m a g i s ­tério. C o l a b o r a na " G a z e t a R e n a n a " , cuja direção assume em 1842. Em meados de 1843 foi proibida a saída desse jornal. Em junho desse mesmo ano, casa-se M A R X com Jenny von W e s t p h a l e n , j o v e m aristocrata, cujo irmão se tornaria ministro reacionário.

Por v o l t a de fins de 1843 partiu M A R X para Paris, onde permaneceu até fins de 1845. E s t e é um importante período na sua v i d a . F o i quando travou conhecimento direto com o so­c i a l i s m o f r a n c ê s : teve oportunidade, na F r a n ç a , de ver P R O U D H O N (cf. H A U B T M A N N , P-, Max et Proudhon, leurs Rapports Personels — 1844-47 —, Paris, 1947; C O R N U , A., Marx à Paris 1882) e de ficar conhecendo t a m b é m Friedrich E N G E L S , que se tornou seu amigo e co­laborador í n t i m o e dedicado. P u b l i c o u aí um estudo: Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. ( A n a i s franco-alemães, n.° 1 — aliás, o único.) E s t u d o s mais recentes sobre M A R X — e principalmente a r e s p e c t i v a bibliografia, publicada em 1954 e analisada por M a x i -mil ien R U B E L — parecem deixar patente que, no decurso do período da vida de M A R X passa­do em P a r i s , exatamente à época em que abandonou a filosofia h e g e l i a n a , foi que descobriu o lugar p r e c i s o «e o verdadeiro papel do proletariado no conjunto das contradições da sociedade da época; M A R X , fez-se, portanto, so cia l ista , impelido por um i m p u l s o sentimental e não le­v a d o por conclusões a que teria c h e g a d o após uma laboriosa pesquisa científ ica. De fato, a sua sociologia e a sua economia pol í t ica só mais tarde foram elaboradas.

E x p u l s o d a F r a n ç a e m janeiro d e 1845, partiu M A R X , com E N G E L S , para Bruxelas. E s ­creverão aí, em c o l a b o r a ç ã o : A Santa Família e a Ideologia Alemã, obra que só foi publicada em 1932. C o n t é m ela sobretudo uma primeira expressão do materialis:n o histórico e sua apli­c a ç ã o à sociedade capitalista. E s c r e v e u M A R X , em seguida, A Miséria da Filosofia (1847), em resposta à obra de P R O U D H O N , inti tulada As contradições. N e s t a obra nota-se claramente estar M A R X impregnado das idéias do social ismo francês: refuta-o, sem d ú v i d a ; mas como sói acontecer com todo crítico, não escapou também à influência do seu objeto. Neste l ivro com­bate M A R X o socialismo por ele int i tulado utópico e expõe os princípios do comunismo. É a primeira das suas obras em que a anál ise recai sobre os problemas de economia política. De então em diante consagrará todos os seus trabalhos, de preferência, a este assunto.

M A R X e E N G E L S entregam-se à produção científica e à a t i v i d a d e pol í t ica revolucionária. F u n d a m a União Alemã de Educação Operária. Aderem à o r g a n i z a ç ã o comunitária intitulada

Page 209: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ma documentação. Deve-se estudá-la sobretudo no Manifesto Comunista (1848) e em O Capital (1867).

Vasta também pelas interpretações, pois o marxismo deu lugar a co­mentários diferentes e, muitas vezes, contraditórios. Dentro dos estreitos limites em que somos obrigados a nos manter, neste capítulo, convém exa­minar este socialismo "científico" em suas linhas principais e no essen­cial da contribuição dada à história das doutrinas econômicas. Constitui, um conjunto doutrinário que se decompõe em certo número de elementos, distintos, os quais se deduzem logicamente uns dos outros, Marx é um lógico.

Associação dos Justos e a transformam, dando-lhe o nome de Liga dos Comunistas. E x p õ e m , então, o seu novo programa em uma brochura e l a b o r a d a em comum e conhecida sob a d e s i g n a ç ã o de Manifesto Comunista (1848). Foi assim que surgiu a obra, senão a m a i s célebre do marxismo, pelo menos a mais popular, tornando-se o b r e v i á r i o do socialismo contemporâneo (é de 1848 t a m b é m o discurso de M A R X sobre a q u e s t ã o de l i v r e - c â m b i o ) . E x p u l s o M A R X da B é l g i c a , em 1848, refugiou-se em Paris a fim de partir para a A l e m a n h a , onde acabara de estourar a revolução. Em Colônia — sempre acompanhado por E N G E L S — fundou a Nova Ga­zeta Renana, cujos artigos acarretaram, mais uma v e z , a sua expulsão, em 1849. E x i l a d o , p a s ­sará a v i v e r em Paris e, depois, em Londres. No decurso deste período a vida de M A R X se d i v i d i u entre a aç ão e o estudo. Funda em Londres, em 1864, a Associação Internacional de Trabalhadores, que subsist irá até 1872, reconstituindo-se, posteriormente, na A m é r i c a do N o r t e .

M A R X tentará tirar, do m o v i m e n t o de 1848, e n s i n a m e n t o s revolucionários. I m b u í d o desse espírito, publicou, em 1850, As Lutas de Classe na França, obra na qual indica a d i s t i n ç ã o existente entre o s o c i a l i s m o reformista e o colet ivista. P u b l i c a ainda, em 1852, O XVIII Bru-mário de Luís Bonaparte, Estudo Crítico-histórico e Político.

Põe-se então, a escrever uma grande obra: O Capital. Encontram-se, na I n g l a t e r r a , duas preciosas fontes de d o c u m e n t a ç ã o : a teoria, na economia c l á s s i c a i n g l e s a ; os fatos, no estudo da história, no e s p e t á c u l o oferecido pelo industrial ismo b r i t â n i c o e na observação dos a c o n t e c i ­mentos econômicos postos em relevo pelas crises c í c l i c a s desse período: a de 1847 d e i x o u tra­ços v i s í v e i s , que M A R X pôde observar à sua c h e g a d a na G r ã - B r e t a n h a , e a de 1857 desenro­lou-se ante seus próprios olhos. Em 1859 publicou sua Crítica à Economia Política, espécie de introdução ao O Capital, cujo primeiro tomo apareceu em 1867, contendo um v a s t o estudo sobre a formação do capital . Em 1875 promoveu o Part ido de E i n s e n a c h , uma reunião tendo em v i s t a a criação da A s s o c i a ç ã o G era l dos Operários A l e m ã e s . Por essa ocasião, escreveu M A R X a Crítica ao Programa de Gotha, que nada mais é que u m a crít ica ao socialismo reformista e a descrição do m a r x i s m o p o l í t i c o . Em 1883 faleceu.

E N G E L S , fiel como sempre, envidará esforços para a p u b l i c a ç ã o dos tomos II e I I I de O Capital. Conseguirá, em 1885, fazer aparecer o tomo I I , c o n s a g r a d o ao estudo da c i r c u l a ç ã o do capital , e, em 1894, o t o m o I I I , no qual é analisado o processo total da produção c a p i t a l i s t a . Em 1904, outro d i s c í p u l o ortodoxo, K a u t s k y , reunirá as notas dest inadas por M A R X à e l a b o r a ç ã o de um tomo IV do seu O Capital, publicando-as sob o t í t u l o Teorias sobre a Mais-valia.

Karl M A R X deixou, portanto, uma importante obra — da qual indicamos o essencial ape­nas —, obra essa cuja influência foi considerável, conforme veremos. T r a b a l h a d o r i n f a t i g á v e l , de uma l ó g i c a notável e v a s t o s conhecimentos, deu M A R X prova de atividade pouco c o m u m . E s t e revolucionário foi, além disso, um sábio que soube aproveitar a calma de seu gpbinete de estudos. E, também, excelente chefe de família e a m i g o sincero. Sua amizade por E N G E L S tornou-se lendária, tendo perdurado até à morte. D e l e guardou E N G E L S grata l e m b r a n ç a até os últimos dias da sua e x i s t ê n c i a . D i f í c i l é conhecer, com precisão, a contribuição dada por E N G E L S à obra de M A R X . Os últimos estudos sobre o m a r x i s m o revelam ter sido i m p o r t a n ­tes. N a s c i d o em B a r m e n , em 1820, descende E N G E L S , tal como M A R X , de uma famíl ia bur­guesa abonada. M a s , e n a u a n t o M A R X se encontrava ainda sob a influência e x c l u s i v a do h e g e -l ianismo, já refutara E N G E L S esta filosofia. E quando encontrou M A R X pela primeira v e z , em setembro de 1844, em P a r i s , já conhecia a I n g l a t e r r a , onde v i v i a desde 1842 e teve oportuni­dade de observar o m o v i m e n t o cartista e certas e x p e r i ê n c i a s social istas, tais como a de R. O W E N , por exemplo. T r a n s m i t i r á E N G E L S , pois, a M A R X , o conhecimento que tinha d o pensamento e do meio i n g l ê s .

M A R X v i v i a , então, e m Paris , e m contato com o s o c i a l i s m o francês. E N G E L S e M A R X , além de uma formação fi losófica haurida em H E G E L e F E U E R B A C H , tornaram comuns os preciosos elementos de que dispunham, fazendo j u n t o s a sua síntese.

Por conseguinte, com base nessa fcrmação, rica em conhecimentos e em documentos, de que em comum dispunham, trabalharam juntos, M A R X e E N G E L S , este último modesto e de­dicado, mantendo-se, v o l u n t a r i a m e n t e , na trilha do mestre.

Sobre M A R X , E N G E L S e o marxismo, v o l u m o s a é a obra bibliográfica. Ler em particular W. S O M B A R T : Das Lebenswerk von K. Marx, Iena, 1909; A. L O R I A : Cario Marx, G ê n o ­v a , 1916; F. M E H R I N G : K. Marx, 3." ed., S P A H N : Friedrich Engels, B e r l i m , 1920; G. M A -Y E R : F. Engels, B e r l i m , 1920; H. L A S K I : K. Marx, L o n d r e s , 1922; A. L A B R I O L A : K. Marx, Paris . 1923: V . P A R E T O : Les Sys*èrr>e^ SocipH**es. P a r i s '926 Ctomn I I ) : O T T O R U H L E : K. Marx, Paris , 1933; A. C O R N U : K. Marx, L'Homme et VOeuvre, Paris, 1934; E. H. CA R R : K. Marx, Londres, 1934; Lénine, Marx, Engels, Marxisme ( E d . Social , Intern.), 1935; S y d n e y

Page 210: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O marxismo apresenta-se como formado de duas partes diferentes: uma sociológica e filosófica e outra econômica.

A parte sócio-filosófica tem por base a concepção do materialismo histórico, à qual está intimamente ligada a noção de luta de classes: nesta dupla filosofia econômica e social vai buscar o marxismo o traço científico que o caracteriza.

A parte econômica contém duas teses: a da exploração e a da evolu­ção. A primeira delas — a causa — é estática e explicativa; a segunda — a conseqüência — é dinâmica e descritiva. v

Examinemos, a seguir, estas duas partes da doutrina.

Seção I CONCEPÇÃO SOCIOLÓGICA DO MARXISMO

O marxismo se diz científico. Associa-se às críticas formuladas con­tra a sociedade pelos socialistas anteriores. Refuta, todavia, essas "uto­pias" sentimentais e idealistas, base dos "sistemas" da nova organização.

H O O K : Pour Comprendre Marx, P a r i s , 1937; Morceaux Choisis: K. Marx (Introd. D o r H. L E -F É B V R E e N . G Ü T T E R M A N N ) , P a r i s , 1934; J . S . S C H U M P E T E R : Capitalism, Socialism and Démocracy, N o v a Iorque, 1942; J. R O B I N S O N : An Essay on Marxian Economics, Londres, 1943; B Ü E H M - B A W E R K : K. Marx and me close his Sys.em, N o v a Iorque, 1949 (tradução da e d i ç ã o alemã de 1906); V E N E , A . : Vie et Doctrine de K. Marx, P a r i s , 1946; D E S R O C H E , H . : Sigmtication au Marxisme (édit. Ouvrièresj, Paris , 1949; B A R T O L I , H . : La Doctrine Économique et Sociale de K. Marx, P a r i s , 1950; B I G O , P. : Marxisme et Humanisme, Introduc-tion à 1'Oeuvre Économique de KarI Marx, Paris , 1953; P I E T T R E , A . : Marx et Marxisme, P a r i s , 1957; G. L U B A C : Existencialisme ou Marxisme, Paris , 1960; N 1 K I T I N E , P . : Manuel d'Économie Politique . M c s c o u , 1961; M A N D E L . E . : Traité d'Économie Marxiste, Paris , 1962; H e b e r t M A R C U S E : Le Marxisme Soviétique, Paris, 1963; B E R L I N , I . : K. Marx, sa Vie, son Oeuvre, P a r i s , 1964; L E F È B V R E , H . : Marx, sa Vie, son Oeuvre, P a r i s , 1964; L. S E B A G : Marxisme e t Structuralisme, P a r i s , 1964; L I C H T H E I M , G.; Marxism, London, 1964; A L T H U S -S E R , L . : Pour Marx, Paris , 1965; C A L V E Z , J - Y . : La Pensée de K. Marx, P a r i s , 1965; H I P -P O L I T E , J . : Études sur Marx et Hegel, Paris, 1965; B L U M E N B E R G : Marx, 1965; G A -R A U D Y , R.: Marxisme du XXème. Siècle, Paris, 1966, do m e s m o autor: K. Marx, P a r i s , 1964; O centenário de "O C a p i t a l " ocasionou a p u b l i c a ç ã o de numerosos estudos sobre M a r x e o m a r x i s m o . Indicamos entre o u t r o s : B A U D Y , N . : Le Marxisme (prefácio de R. A r o n ) , P a r i s , 1967. Grande parte desta b i b l i o g r a f i a já está traduzida para o p o r t u g u ê s .

Obras de KarI Marx. A t é há p o u c o t e m p o não havia uma e d i ç ã o integralmente científ ica das obras de M A R X . As c o l e ç õ e s de suas obras eram inacabadas, c o m o , por e x e m p l o , a cole­ç ã o M E G A , iniciada em 1927 pelo I n s t i t u t o M a r x - E n g e l s e suspensa em 1935, c o l e ç ã o essa que c o m p r e e n d i a apenas as obras escritas por M A R X até 1848. E, assim t a m b é m , a c o l e ç ã o S O T -C H E N E N I A — sem dúvida a melhor de todas — em l íngua russa, à qual fa l tam, entretanto, i m p o r t a n t e s textos. Em l íngua francesa, entre outras, indicaremos a t r a d u ç ã o de I. R O Y , para o L i v r o I de O Capital ( " E d i t i o n s S o c i a l e s " ) , Paris, 1948-50, e a t r a d u ç ã o de M Ó L I T O R , para os L i v r o s II (Paris , 1926) e I I I ( P a r i s , 1928-30), bem como para a História das Doutri­nas Econômicas, em oito v o l u m e s , (Paris , ' 1924-25). Q u a n t o à Critica da Economia Política e A Miséria da Filosofia, temos as e d i ç õ e s G I A R D , r e s p e c t i v a m e n t e , de 1928 e 1935. E, das obras, pelas Editions Sociales: Travail, Salaire et Capital (1848), P a r i s , 1947; Salaires, Prix et Profits (1865), P a r i s ; Critique du Programe de Gotba (1875), P a r i s , 1950.

Por estranho que pareça, l e v a n d o - s e em conta a influência que o pensamento de M A R X t e m e x e r c i d o sobre idéias e s i s t e m a s , só mais recentemente, cu seja, em 1954, foi elaborada uma b i b l i o g r a f i a completa de suas o b r a s : constitui o objeto da t*se de doutoramento, defendi­da na Sorbonne por M a x i m i l i e n R U B E L , e se desdobra e m : Bibliographie des Oeuvres de K. Marx ( T e s e complementar, Paris , 1956) e Bibliographie Intelectuelle de K. Marx (tese p r i n c i ­p a l ) . U m a bibl iografia das obras de M A R X é tanto mais útil para o conhecimento do seu pen­s a m e n t o e a análise da formação e do d e s e n v o l v i m e n t o desse p e n s a m e n t o , quando na verdade M A R X é um autor cuja p r o d u ç ã o é em grande parte " p ó s t u m a " , tendo sido os seus l ivros edi­tados em ordem diferente d a q u e l a em que foram escritos e na ordem da sua edição é que se tornaram conhecidos. E x i s t e ainda, embora não seia completa, uma interessante bibl iografia or­g a n i z a d a por Ch. M U B E R T , a qual faz parte do "livro de D E S R O C H E , Signification du Mar­xisme,- p u b l i c a d o em Paris, p e l a s Editions Sociales, em 1949.

Page 211: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Enquanto os socialisías espiritualistas julgam poder o homem, através de sua razão e vontade, organizar um mundo novo, graças a um princípio ativo que lhe é peculiar, Marx, divorciando-se desse idealismo, qualifica-o de "utópico". Admite, em consonância com Hegel (Sobre Hegel e Marx: HYPPOLITE, J., Etudes sur Marx et Hégel, Paris, 1965; OlZERMANN, T., Marx-Hégel et la Conscience Bourgeoise, in Rev. la Pensée, outubro, 1968) e contrariamente a Descartes, ser a racionalidade das coisas que cria a sua realidade e não a idéia que precede as coisas na marcha do conhe­cimento. Em "dado sistema de realidades" não há lugar para o conheci­mento "imediato". É apenas através das coisas — isto é, da história, do direito, da moral, da religião e da filosofia — que o espírito adquire a consciência de si. Essa consciência é, em si mesma, um produto social.

E, portanto, se de início Marx se associa aos "utopistas", a fim de criticar o capitalismo, a sua concepção materialista o leva logo a deles se separar: é um entrave para que admita ele a hipótese de ser possível ao homem imaginar ou "pensar" em uma nova ordem. Todavia, essa con­cepção faz com que retorne Marx à idéia de uma ordem natural e espon­tânea, a qual seria a melhor ordem para a sociedade e, por via da histó­ria, a leva a aceitar o fato da realização dessa ordem por meio da evolução fatal.

Não se deve perder de vista esta posição de Marx em relação aos fe­nômenos econômicos, sob pena de serem as suas idéias mal interpretadas. Por essa atitude é que foi levado a uma análise evolutiva, e não funcional, destes fenômenos. E, portanto, estuda as variações, os movimentos dos fenômenos econômicos e os liames entre eles existentes no decurso do seu desenvolvimento; interessa-lhe sobretudo descobrir, não as leis de uma eco­nomia já no seu ponto morto, ou seja, parada, mas de uma economia em movimento, em transformação.

E é essencialmente através do estudo da história e por meio da dedu­ção que Marx pretende pôr em evidência esta evolução, para ele tão certa e inevitável quanto à forma da sociedade futura que daí deve resultar.

Serve-se o marxismo da concepção do materialismo histórico para in­terpretar a história, interpretação essa subjacente a toda a sua obra.2

E, por últ imo, indiquemos os. manuscritos de M A R X , os quais se encontram, parte no I n s ­t i tuto Internacional de H i s t ó r i a S o c i a l , de A m s t e r d ã , e parte no Instituto M a r x - E n g e l s , de Moscou.

2 . N ã o e x i s t e uma e x p l a n a ç ã o geral feita p e l o próprio M A R X relativamente a o m a t e r i a ­l ismo histórico. E s t a c o n c e p ç ã o pode ser n i t i d a m e n t e apreendida no M a n i f e s t o C o m u n i s t a (1848), bem como no p r e f á c i o de sua "Crítica à Economia Política (1859) e r.a Santa Família e na Ideologia Alemã. T o d a v i a , será fácil estuda- ,o n a s obras de F. E N G Í . L S , p r i n c i p a l m e n t e no ensaio sobre " L u d w i n g F e u e r b a c h " .

O m a t e r i a l i s m o h i s t ó r i c o encontra-se e x p o s t o e c o m e n t a d o em numerosas obras, dentre as quais i n d i c a m o s : M A S A J c Y K : Die philosophischen und soziologischen Grundlagen des Marxis-mes, V i e n a , 1899; W O L T M A N N : Der historische Materialismus, Dusseldorí, 1900; C R O C E : Materialismo Storico ed Economia Marxista (trad. P a r i s , 1 9 0 1 ) ; L O R I A : Le Basi Economiche delia Constituzione Sociale, Turim, 3." e d i ç ã o , 1902; E. B R A N D E N B U R G : Die materialistische Geschichtsantiassung, Leipzig, 1920; A. B R A U N T H E L : Marx ais Geschissphilosoph, B e r l i m , 1920; H E N R I S E E : Matérialisme Historique et Interprétation de l'Histoire, Giard, 1927 ; N. B O U K H A R I N E : La Théorie du Matérialisme Historique, 1927; K. K A U T S K Y : Materialistische Geschichtauiaiissung, B e r l i n , 1928; A N T Ô N I O L A B R I O L A : Essai sur la Conception Materia-'iste de 1'Histoire, 1927; T. B O R C H A R D T : Le Matérialisme Historique, Bruxelas. 1932; M. T R U M E R : Le Matérialisme Historique chez Marx et Engels, Paris , 1933; T U R G E O N : Critique

Page 212: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Que se deve entender por materialismo histórico? Segundo a análise mais corrente, consiste na tese de acordo com a qual as transformações de ordem material determinarão todas as transformações de ordem ideológica. Essas transformações materiais dependem, por sua vez, das que se operam na técnica de produção: "O moinho de vento vos dará a sociedade com o suserano e o moinho a vapor a sociedade com o capitalismo industrial." 3

Em outros termos, a infia-estrutura econômica da sociedade — quer dizer a maneira de se produzir — determina a superestrutura, ou seja, a moral, a arte, a literatura, a religião. "As relações sociais estão intimamente liga­das às forças produtivas."*

Além disso, este materialismo histórico constitui para Marx, não só um método de interpretação dos fatos passados, mas também um auxílio à dedução, um instrumento exato de previsão.

As maneiras de se produzir e o regime da propriedade eram ambos, no passado, individuais. Hoje, a produção tornou-se coletiva — pois, por necessidade técnica, com a concentração do trabalho nas fábricas, conse­qüência do progresso da técnica (em particular do maquinismo), o ope­rário vende o seu trabalho aos detentores do capital — enquanto a pro­priedade dos meios de produção continua sob o regime individualista. A evolução da infra-estrutura já se consumou. Nestas condições, portanto, inevitável e obrigatório se tornou o reajustamento da superestrutura e, prin­cipalmente, do direito e do regime de propriedade.

Uma vez coletivizada a produção, o mesmo se verificará com os meios de produção e o produzido. Esta evolução, cujo sentido é indicado de ma­neira imperativa pelo materialismo histórico, contém em si a sua causa determinante: o antagonismo entre as classes. A História indica, com efei­to, que a produção acarretou sempre, em todas as épocas, uma divisão das sociedades em dois grupos opostos: um, o dos detentores dos meios de produção, e outro o dos fornecedores da força de trabalho.

Assim, a sociedade antiga estava dividida em senhores e escravos; a feudal, em senhores e servos; a capitalista, em patrões — os capitalistas — e empregados — os proletários. Os primeiros se esforçam por manter in­tactos os seus privilégios; os últimos tentarão a sua supressão ou procura­rão transformar-se em seus beneficiários. O proletariado é, portanto, uma classe social que se define objetivamente pela ausência de posse dos meios de produção e, subjetivamente, por uma tomada de consciência de que não somente pertence a uma classe, mas também do papel histórico de que está incumbido. A evolução da sociedade prossegue em meio a violentos con­flitos, sempre renovados. Foi através destas constantes lutas de classe que se operou, no passado, o ajustamento do regime de propriedade à pro­dução, foi assim que o capitalismo tomou o lugar do feudalismo e é por este meio — ainda mais brutal e violento na época atual, em virtude da

de la Conception Socialiste de VHistoite, 1930. Indiquemos i g u a l m e n t e um interessante resumo do m a t e r i a l i s m o histórico no l i v r o de H. D e n i s , Évolution de la Pensèe Économiques, Paris , 1966, p. 399. I g u a l m e n t e no l i v r o KarI Man, de R. Garaudy, P a r i s , 1964, p. 92.

3. K. M A R X : Misère de la Philosopbie ( E d i t i o n s S o c i a l e s ) , p. 88 4 . K a r I M A R X , op. cit.

Page 213: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

crescente industrialização da sociedade e da melhor organização da classe proletária, cada vez mais forte — que a propriedade passará de individual a coletiva, sendo o capitalismo substituído pelo coletivismo e prosseguin-do, assim, a sociedade, na sua inexorável evolução. "O comunismo não é para nós um ideal segundo o qual a realidade deve ser regulada. Chama­mos de comunismo o movimento real que abolirá o estado atual. As con­dições desse movimento resultam das bases atualmente existentes" (Ideo­logia alemã).

Ora, Marx não é apenas teórico, mas também um propagandista. Dirige-se diretamente à classe operária. Nela confia, não para realizar a nova organização, mas para apressar o advento da evolução que se impõe.

Para isso, deve ser convincente. Indica, portanto: em primeiro lugar, justificar-se a luta de classes, em virtude da exploração a que está sujeito o operário; em segundo lugar, estar garantido o pleno êxito dessa luta de classes, uma vez que o materialismo histórico acarreta inevitavelmente a passagem do regime de propriedade individual para o de propriedade co­letiva.

A fim de comprovar este duplo fato, passa Marx, então, do plano so­ciológico para o econômico, mostrando: a existência da exploração a que está sujeito o.operário, e a inexorável evolução da sociedade, que, de ca­pitalista, se transforma em sociedade coletiva.

Seção II

CONCEPÇÃO ECONÔMICA DO MARXISMO

§ 1.° — A tese da exploração

A tese da exploração é apresentada por Marx sob dois aspectos com-plementares: primeiro, o econômico — o trabalho constitui o valor dos produtos; segundo, o social — o valor do produzido deve pertencer a quem fornece o trabalho ou seja, ao operário. Ora, o empregador e o ca­pitalista reservam para si uma parte do valor produzido; o operário não recebe, pois, o produto integral do seu trabalho, ao qual tem direito.

O aspecto econômico dessa exploração é desenvolvido na teoria mar­xista do valor-trabalho e o aspecto social vem expresso naN teoria da mais--valia.

1. A TEORIA DO VALOR-TRABALHO

Marx quer dar bases científicas à sua doutrina. Na parte sociológica caracteriza-se este traço científico pela interpretação do materialismo his­tórico. Na parte econômica, resulta das análises técnicas que pretendem 21

Page 214: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

constituir um encadeamento e uma conclusão lógica das principais teorias da escola clássica.

Marx aceita as teorias da Escola Clássica na mesma disposição de espírito com que observa as manifestações da economia liberal: considera estas teorias e estes fatos como a expressão do sistema capitalista, preten­dendo pôr em evidência o sentido da sua evolução. Assim, pois, a sua teoria do valor-trabalho nada mais é que o prolongamento consciente da teoria do valor-trabalho exposta por Adam Smith e por Ricardo. O socia­lismo marxista apresenta-se, assim, antes como continuador do que^como adversário da ciência clássica. E por este traço se distingue dos socialistas seus antecessores.

Conforme vimos, ao tratar da teoria do valor na escola clássica ingle­sa, chegara Ricardo a uma dupla conclusão: a) ser o trabalho a fonte de todo o valor; b) ser impossível adquirir o operário, com o salário, o pro­duto do seu trabalho.

Adotando Marx estas conclusões, faz sua a teoria clássica do valor, acrescentando-lhe apenas alguns elementos de ordem secundária: enquan­to dizia Ricardo constituir o trabalho a fonte de todo o valor, escreveu Marx que "o valor é o trabalho cristalizado". Simples diferença de forma. Mas, de modo mais incisivo que Ricardo, estabeleceu Marx uma relação de casualidade, direta e absoluta, entre o trabalho e o valor: estas duas noções identificam-se de maneira completa. O valor de uma mercadoria será maior ou menor segundo o maior ou menor número de horas neces­sárias para a sua fabricação e produção. Tentando, então, tornar precisa esta medida do valor, enuncia Marx ser o valor das coisas fixadas pelo "quantum do trabalho socialmente necessário" à sua produção.

Adam Smith procura, também, tornar precisa esta noção do trabalho como base do valor. Distinguira o trabalho fácil do trabalho difícil, exi­gindo este último prévia aprendizagem. Marx retoma a diferença, dando--lhe uma nova terminologia. Distingue o trabalho simples do trabalho qua­lificado. Este último representa um múltiplo do trabalho simples: uma hora de trabalho qualificado valerá 2, 3, 4, 5 horas de trabalho simples. Esclarece tratar-se de uma trabalho "socialmente necessário", tal como o executado com o auxílio de meios técnicos, cujo emprego é habitual em determinado meio social, para a fabricação de determinado produto. Por exemplo: em uma região onde o trigo é ordinariamente ceifado à mão, considerar-se-á como unidade, para o estabelecimento do preço regulador, este gênero de trabalho manual; em uma região onde o trigo é cortado à máquina, o preço será regulado tornando-se este trabalho mecânico como unidade.

Postas de lado estas minúcias excessivas, limitou-se Marx tão somente a adotar a teoria do valor-trabalho, na forma que lhe dera Ricardo, utili­zando-a para fins inteiramente diversos. Com efeito, do aspecto econômi­co da exploração deduziu Marx conseqüências de ordem social que os clás­sicos não haviam percebido ou se recusaram a perceber, conseqüências

Page 215: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

essas que. podem ser assim resumidas: sendo todo valor criado pelo tra­balho, justo será ir ter todo o valor às mãos de quem forneceu o trabalho, isto é, do trabalhador. Ora, o trabalhador não recebe o valor integral do seu trabalho. Impossível lhe é, pois, adquirir o produzido com ele; e, as­sim, é vítima, na sociedade capitalista, ue uma verdadeira exploração so­cial.

Esta exploração não depende, aliás, da vontade do patrão, nem da aquiescência do operário: decorre da própria natureza das trocas no re­gime capitalista.

I • i 2. A TEORIA DA MAIS-VALIA

Marx, retomando uma distinção feita por Adam Smith, considera a circulação e a constituição do capital, para distinguir os dois aspectos da circulação, segundo se trate do período pré-capitalista ou do período ca­pitalista.5 No decurso do período pré-capitalista — até ao século XVII — a circulação do capital se fazia de um modo simples: realizava-se, de maneira geral, entre os lavradores proprietários de seus utensílios. Esta circulação tinha início com uma mercadoria e terminava também com uma mercadoria. Um camponês produzia trigo; vendia-o a determinado preço e com o seu produto comprava objetos de consumo. A quantidade do tra­balho contido e "cristalizado" no trigo vendido era igual à quantidade do trabalho incluído nos objetos de consumo adquiridos. Constituindo a igual­dade e a lei das trocas, a troca, assim realizada no período pré-capitalista, era justa.

No período capitalista a circulação complica-se. Tem início com a moeda e termina com a moeda. O empreendedor adquire, por intermédio da moeda, máquinas, matérias-primas, paga a mão-de-obra. Uma vez ter­minada a produção, vende seu produto, recebendo, em troca, moeda. Ad-mitindo-se serem as somas necessárias para a produção iguais a 100, te­ríamos o empreendedor, dono do produto resultante do trabalho de sua empresa, vendendo este produto por uma soma elevada: 130, por exem­plo. Desaparece, assim, a igualdade entre a quantidade de trabalho cris­talizado no produto e a quantidade de trabalho cuja aquisição este pro­duto possibilitará. O capital do empreendedor aumenta ao circular no ciclo da produção. Embora continue a igualdade a ser a -lei das trocas, já não é possível garanti-la. No regime capitalista as trocas são, portanto, desiguais; já não se fazem em uma base justa.

Em vista de não se fazerem mais de acordo com a estrita igualdade das quantidades de trabalho contido em cada produto, acabam as trocas por uma exploração do trabalhador: este já não recebe o valor integral do seu trabalho e, por conseguinte, não pode adquirir a totalidade do pro­duzido.

5 Manifesto Comunista, § 3.

Page 216: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esta exploração é inerente ao regime capitalista; resulta das suas con­tradições internas e está conforme à sua própria natureza. Suprimi-la in­depende, pois, da vontade do empreendedor. Só poderá desaparecer com o desaparecimento do próprio regime. A explicação deste fenômeno cons­titui a tese marxista da mais-valia.

Marx aplica à mão-de-obra a lei do valor-trabalho, indicando ser o trabalhador privado de parte do produto de seu trabalho, por efeito desta lei geral. Esta demonstração constitui uma aplicação, aliás correta, feita à mercadoria-trabalho, da lei do valor com base no trabalho. 4

O valor do trabalho é determinado pelo quantum de trabalho neces­sário à manutenção do trabalhador. Em outros termos, o valor do traba­lho do operário é fixado por aquilo que deve consumir para conservar a sua energia. Este o preço pago pelo empreendedor pela utilização da mão--de-obra. Mas a mão-de-obra apresenta, relativamente às outras mercado­rias, uma propriedade particular: em dado momento, produz mais do que consome. O empreendedor entrega, pois, ao operário, determinada soma, em pagamento do que consome, a qual representa aquilo a que este tem direito. Todavia, vende o produzido pelos operários — de maior impor­tância que o consumo destes —, guardando para si a diferença. Essa di­ferença constitui a mais-valia. Esta mais-valia vai impor ao operário um trabalho suplementar ("sur-travaü"): sendo o salário fixado em termos de um mínimo vital para o operário e não em função da quantidade de coisas por ele produzidas, o empreendedor terá" interesse em prolongar ao máximo a duração da jornada do trabalho, a fim de aumentar a mais--valia.6

* *

O rendimento sem trabalho foi, portanto, produzido por quem traba­lha. A mais-valia aparece assim como o trabalho não pago ao operário.

A mais-valia constitui uma conseqüência inevitável das trocas capita­listas. Não é, por conseguinte, uma injustiça premeditada ou desejada pelo empreendedor. Só poderá desaparecer com o desaparecimento do regime que a engendrou.

Eis por que, após haver demonstrado serem os trabalhadores explora­dos, justificando-se, assim, a luta de classes, após indicar, de modo claro, ser este mal inerente à natureza do regime capitalista, faz Marx um apelo aos proletários, a fim de, através de uma ação revolucionária, precipitarem o desaparecimento da sociedade atual e o advento do mundo coletivista.7

Esta luta de classes deve ser empreendida — assegurado que está o seu triunfo — orientando-se no sentido da evolução ditada pelo materialismo histórico. Aí está o que se pretende demonstrar com a tese da evolução catastrófica.

6. O prolongamento da jornada de trabalho e a i n t e n s i f i c a ç ã o do trabalho representam, para M A R X , "a m a i s - v a l i a a b s o l u t a " , isto é, o acréscimo de trabalho não pago, ou um trabalho suplementar. N a s fábricas de M a n c h e s t e r , em 1862, a duração semanal do trabalho era de 84 horas, isto é,. 14 horas por dia durante 6 dias.

7. "A união que os b u r g u e s e s da Idade M é d i a levaram séculos a realizar, com seus c a m i ­nhos v i c i n a i s , os proletários modernos rea l iza m em alguns anos por meio das vias férreas) (Manifesto do Partido Comunista, E d i t o r i a l V i t ó r i a , 3.* ed.. R i o , 1954, D. 32).

Page 217: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ 2.° — A tese da evolução

A tese da evolução, que o marxismo designa de "catastrófica", pode ser analisada da maneira seguinte: de início, verifica Marx haver o capita­lismo constituído, no passado, uma força econômica necessária. Todavia, no presente já não está o capitalismo em condições de preencher suas fun­ções econômicas e sociais: prova-o a existência de crises periódicas. No futuro, por fim, será a desaparição do capitalismo um fato certo, uma vez que este contém em si os germes da sua própria destruição. Estes prolife­ram sob a forma dos fenômenos de concentração e de proletarização cres­centes.

Examinemos as diferentes partes desta tese. O capitalismo preencheu uma função histórica da máxima importân­

cia. A busca do lucro e a luta contra a concorrência, que constituem os fundamentos da sua atividade, levaram-no a desenvolver, de maneira con­siderável, as forças produtivas da humanidade. Mas estes mesmos princí­pios da atividade capitalista, dotada de força que vai sempre em um cres­cendo, arrastarão o regime à autodestruição. A evolução neste sentido é fatal. Não há energia humana capaz de detê-la. A observação dos fatos indica aproximar-se a "catástrofe": as crises gerais se precipitam — 1825, 1836, 1847, 1857, 1866. Estas duas últimas observou-as o próprio Marx, na Inglaterra. Durante estes períodos de crise mostra-se o regime capita­lista, ao que parece, incapaz de dirigir a produção e assegurar o consumo. Esta incapacidade é posta em evidência pelo paradoxo da coexistência de superprodução e subconsumo. Tanto capitalistas como operários sofrem os desastrosos efeitos das crises, que se tornam, aliás, insuportáveis ao cabo de certo tempo, pois os desequilíbrios tendem a se multiplicar e agravar.

Em virtude de suas desastrosas conseqüências econômicas e sociais, ace­leram as crises o movimento das coisas e das pessoas, precipitando-as para a saída catastrófica: a revolução que dará nascimento à sociedade coleti-vista. O movimento das coisas é a concentração crescente; o das pessoas é a proletarização, tambfém crescente.

Mas, antes de analisar em seus detalhes as conseqüências dessas cri­ses, vamos examiná-las em si mesmas. Essas crises estão na dependência do regime econômico capitalista. Marx liga a sua causa diretamente à mais--valia, criando, assim, uma teoria orgânica — aliás interessante — que as­senta, a um tempo, na existência da superprodução e do subconsumo.

A crise será devida, em primeiro lugar, a um fenômeno de superpro­dução capitalista. Vejamos como. A mais-valia auferida pelo empreende­dor vai determinar o contínuo crescimento do capital total. Este capital é utilizado na produção de dois modos diferentes: uma parte é destinada pelo empreendedor a pagamento da mão-de-obra; Marx denomina-a capi­tal variável. Este capital varia, sendo o responsável direto pelo apareci­mento da mais-valia. Aumenta, pois, ao cabo da produção, pelo acrésci­mo desta mais-valia que, por sua vez, pode variar, assumindo importância

Page 218: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

maior ou menor. Outra parte do capital é utilizada pelo empreendedor na aquisição de meios materiais necessários à produção: fábricas, máquinas, matérias-primas e combustíveis. É o capital constante, segundo a deno­minação de Marx: seu volume não varia no decurso do processo de pro­dução. 8

Ora, na economia capitalista moderna, a técnica progressiva da pro­dução tende a expandir o emprego da maquinaria em detrimento da mão--de-obra. Isto significa que a parte do capital constante aumenta em re­lação à do capital variável ou, em outros termos, verifica-se uma tendência para a redução do lucro. Os capitalistas lutarão contra esta redução do lucro: tendo em vista este objetivo, vão procurar aumentar sua produção, e este aumento generalizado acarreta a superprodução e a crise.

A este primeiro fenômeno está ligada uma segunda causa das crises cujos efeitos agrava: é o fenômeno do subconsumo. Este fenômeno cons­titui um mal crônico peculiar ao regime capitalista: a própria existência da mais-valia comprova-o, indício que é da impossibilidade de adquirir o ope­rário, mesmo em períodos normais, o produzido com o seu trabalho. -

A evolução que se verifica na composição do capital agrava a situa­ção, determinando um subconsumo crescente: a massa do capital constante aumenta cada vez mais em relação à do capital variável, conforme acaba­mos de indicar. Daí resulta uma redução da procura relativa do trabalho. Constitui-se, por esta forma, a massa dos trabalhadores sem emprego, de­nominada por Marx o "contingente de reserva", onde encontrarão sempre os capitalistas, em caso de necessidade, a mão-de-obra de substituição. Este contingente de reserva, em virtude da ameaça que a sua presença faz pesar sobre os operários' que trabalham, funciona como fator de redução dos salários, que tendem, assim, a cair ao nível do mínimo vital.

"Durante os períodos de estagnação e de atividade média, o contin­gente de reserva industrial pesa sobre o contingente ytivo, refreando-lhe as pretensões nõs períodos de superprodução e de grande prosperidade" (Capital, Liv. I, tomo III, cap. XXV, p. 82, "Editions Sociales").

Assim, pois, o desequilíbrio entre a produção e o cc sumo, devido à insuficiência deste último, existe em tempos normais. E «.vinda se agrava ao aproximar-se a crise: na luta contra a redução do lucre vão os capi-

8. Para se compreender o p e n s a m e n t o de M A R X não se d e v e contundir capital v a r i á v e l e c a p i t a l constante, de um lado, com c a p i t a l circulante e c a p i t a ' fixo, de outro.

O c a p i t a l constante diz respeito tão-somente às i n s t a l a ç õ e s , utensíl ios, matérias-primas e c o m b u s t í v e i s . O capital v a r i á v e l , apenas à força de trabalho. A primeira destas disi incões ( v a ­r i á v e l e constante) serve a M A R X para abordar os problemas do valor e da mais-vaHa e, por conseguinte, da própria natureza do capital . É, das duas, a d i s t i n ç ã o m r i s importante: n o s s i b i -lita o estudo isolado da força de trabalho, estabelecendo o contraste entre o papel proüuti ' '0 da força de trabalho ou seja, da mão-de-cbra de um lado, e dos m e i o s de produção, de o u í r o . C o n s t i t u i uma dist inção e s s e n c i a l m e n t e de ordem social.

A segunda (capital c i r c u l a n t e e f ixo) é usada por M A R X no estudo do valor de uso, rela­t i v o à produção dos diferentes fatores por sua vez e m p r e g a d o s na produção, ou seja, fatores humanos e materiais. É e s s e n c i a l m e n t e de ordem tecnológica.

M A R X insiste na necessidade dessa dúplice distinção e censura os c lássicos, principalmente A. S M I T H , Dpr haverem confundido essas noções. Desde aí — conclui ele — "não existe base que s irva para se compreender as reais v a r i a ç õ e s cperadas na p r o d u ç ã o capital ista e, por conse­guinte, para se entender a e x p l o r a ç ã o c a p i t a l i s t a " . O Capital. L i v . I I , tomo V I , cap. I X , p. 118 e segs. . E d i ç ã o Costes.)

Page 219: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

talistas procurar, não só aumentar a produção, mas também reduzir os pre­ços de custo; e para tal reduzem os salários de seus operários, concorren­do, assim, para o aumento do subconsumo. Por outro lado, os empreen­dedores, cujas condições não lhes permitem resistir aos primeiros efeitos da crise, fecham as portas de suas fábricas ou dispensam parte de seus operários. Estas diferentes práticas acarretam, todas elas, uma redução do salário global e com isso um aumento do subconsumo dos operários. 5

Subconsumo mais superprodução constituem, pois, para Marx, as duas-principais causas das crises. Sem dúvida, procuram os capitalistas, ante uma oferta excessivamente grande e uma procura excessivamente fraca de seus produtos, evitar as temíveis conseqüências dessa situação de fato: bus­cam principalmente novos mercados, nos países estrangeiros ou em colô­nias recentemente conquistadas. Todavia, não passa isso de remédio mui­to restrito e provisório, que apenas retarda o advento do fenômeno, mas não o anula.

A crise é, pois, para Marx, uma conseqüência do desequilíbrio verifi­cado entre a produção e o consumo. Este desequilíbrio resulta de uma troca desigual que deu origem, no regime capitalista, ao aparecimento da mais-valia. A crise é, portanto, a expressão da revolta das forças produtivas contra um antiquado sistema de apropriação.9

De crise em crise prossegue a sociedade capitalista a evolução fatal que a levará a desaparecer. Esta evolução é orientada pelo inelutável mo­vimento da.s coisas, cujos efeitos se mostram através do fenômeno da cres­cente concentração das empresas. Essa concentração provoca, por sua vez, certas modificações nas relações das forças humanas entre si, sob a form? de expansão da proletarização.

A acumulação do capital e o volume do proletariado constituem dois fenômenos estritamente ligados, resumindo, segundo Marx, a lei geral da acumulação capitalista. "O capital só pode ser multiplicado se trocado pela força de trabalho, se criar trabalho assalariado. A força de trabalho do trabalhador assalariado só poderá ser trocada por capital se este au­mentar e, pois, reforçando o poderio de que é serva. O aumento de capi­tal significa, por conseguinte, um aumento do proletariado, ou seja, da clas­se operária." 10

Desenvolvem-se, assim, no próprio seio do capitalismo, as forças que o destruirão. A reiteração das crises provocará, com efeito, a progressiva eliminação das empresas mais fracas. Subsistirão apenas as mais fortes: e assim se concentram nas mãos, cada vez menos numerosas, dos capitalistas, todos os meios de produção acrescidos da massa do capital total que a mais-valia não cessa de aumentar.

Paralelamente a esta concentração capitalista se opera a crescente proletarização. O capitalismo, ao se expandir, elimina do campo da in­dústria os produtores menos favorecidos, artesãos e pequenas empresas,

d, 9- "Les crises sont le symptôme que le mode de prodution se rebelle contre le système "opropriation." (Cf. F E . E N G E L S , S o c i a l i s m e U t o o i q u e e t Socialisme S c i e n t i f ique.)

' 0 . K. M A R X : Tra^ail Salarié et Capital. "Editions Sociales". Paris , 1947, p. 43.

Page 220: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

fazendo-os perder a independência econômica e obrigando-os a vender a força única que lhes resta, ou seja, sua força de trabalhe. Assim expul­sos, ingressam eles na massa proletária.

Por outro lado, o desenvolvimento do capitalismo atrai para os cen­tros industriais grande parte da mão-de-obra rural. Pequenos proprietá­rios, artesãos agrícolas, expulsos de suas modestas propriedades, entram também para a categoria des operários urbanos.

E por esta forma constitui-se, em face dos capitalistas, cujo número decresce, uma massa operária cada vez mais volumosa. E, devido mes­mo a esta circunstância, acirra-se o antagonismo social entre os detentores dos meies de produção e cs que nada mais têm a oferecer senão a sua força de trabalho. O desequilíbrio entre o capital constante e o capital variável aumenta. E as crises econômicas, que são uma conseqüência deste fato, se tornam mais freqüentes e graves.

A economia capitalista contém, pois, em si, o germe da sua própria destruição. Marx e Engels exprimem esta idéia sob ferma realista: "A burguesia engendra os seus próprios coveiros." 11

O estudo das crises, da concentração e da crescente proletarização, indica estar próximo o desaparecimento do capitalismo. A alteração da relação de forças vai tornar possível ao proletariado organizado a sub­versão do regime responsável por essa situação. Fácil será, aliás, realizar essa revolução necessária, pois a sociedade se apresentará sob a forma de uma pirâmide apoiada sobre o vértice — ou seja, o pequeno número de capitalistas proprietários —, representando a base a massa proletária. A ação revolucionária não encontrará resistência, atuando, como atua, no sentido da volta ao equilíbrio estável: basta que se verifique um ligeiro empurrão para que a pirâmide social se reponha sobre a sua base.

Afirma Marx, por conseguinte, ser certo dar-se, num breve espaço de tempo, a substituição da sociedade capitalista pela sociedade coletivista. Esta funcionará, aliás, sem dificuldade. Marx assenta- sua convicção no fato de que já — embora subsista o regime jurídico da propriedade priva­da — a produção reveste uma forma coletiva, a mesma que ela conservará na sociedade do futuro. As grandes sociedades industriais por ação —-cujo desenvolvimento Marx já pressente, aliás, com acerto sob a forma de cartéis e de trustes — produzem bons resultados técnicos que de modo algum se reduzirão, julga ele, quando se transformar o regime de proprie­dade, passando dé privado a coletivista.

Relativamente a esta futura sociedade, fornece Marx pouquíssimos de­talhes, evitando, assim, incidir nos erros dos sistemas que classifica* de utopistas. Limita-se a escrever que revestirá a forma coletivista, através da supressão da propriedade privada, pondo, deste modo, o regime de apro­priação em harmonia com o 'da produção. Marx não é o arquiteto da sociedade coletivista; isto será obra de seu sucessor, Lênin. 1 2

1 1 . Manifesto Comunista, § 3. 12. Sobre as c a r a c t e r í s t i c a s desta sociedade ver p á g i n a s adiante. M A R X trata do assunto

p r i n c i p a l m e n t e no tomo I de O Capital.

Page 221: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Insiste Marx, também, em afirmar ser definitiva esta nova forma de organização da sociedade, a qual assinalará, de certo modo, o fim da evo­lução esboçada pelo materialismo histórico. O processo de evolução terá, com efeito, o seu termo com o desaparecimento da luta de classes, uma vez que a sociedade toda se comporá, então, de trabalhadores iguais, pro­duzindo com meios iguais e realizando trocas iguais.

Assim, pois, a supressão da propriedade privada indicará o fim d luta de classes, de que era o fermento, e por isso mesmo a supressão d Estado também, representante que é da organização da classe dominante, incumbindo-se, como tal, da manutenção e defesa dos seus privilégios.

A nova sociedade funcionará, pois, sem atritos: a administração das coisas substituirá a das pessoas — fórmula sansimonista — e o regime do proletariado se estabelecerá definitivamente.

O resultado que se obtiver será o único elemento para se ajuizar do valor moral dos processos empregados: o valor das ações humanas está na dependência da evolução e esta evolução é representada pela vitória da "classe em ascensão", ou seja, da classe proletária.

A construção marxista de um mundo social novo, cujas linhas prin­cipais resumimos acima, apresenta-se na sua generalização sistemática, sob um aspecto atraente. "Sendo o comunismo um naturalismo acabado, coin­cide com o humanismo e é o verdadeiro fim da disputa entre o homem e a natureza e entre o homem e o homem." 13

Marx, ao partir das bases científicas estabelecidas pela escola clássica — impossível de ser acoimada de nutrir ódio contra a economia capita­lista —, elabora seus raciocínios com o auxílio de fatos reais e, na maio­ria das vezes, exatos. Daí deduz uma série de conseqüências que, sem dúvida, são impressionantes.

O todo forma, à primeira vista, um "majestoso monumento". 1 4

Será real esta solidez aparente? Eis o que a apreciação objetiva da doutrina marxista nos permitirá julgar.

Seção III

APRECIAÇÃO DO MARXISMO

§ 1." — Apreciação da concepção sociológica e filosófica do marxismo

1 , ( O MATERIALISMO HISTÓRICO

O materialismo histórico, interpretado da maneira mais corrente como fizemos na primeira seção deste capítulo, leva a dupla constatação: as

13. K. M A R X : Économie Politique et Philosophie (Oeuvres Philosophiques. t o m o V I , p.

14. V I L F R E D O P A R E T O , op. cit., tomo I I , C a p . X I V , p . 369.

2 2 ) .

Page 222: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

condições econômicas determinariam os outros fatores sociais; os meios técnicos da produção representariam, dentre as demais condições econômi­cas, o papel predominante.

Tomada por esta forma, a concepção do materialismo histórico não resiste a uma contraprova baseada na- observação dos fatos, nem a uma análise racional. A observação mostra, com efeito, não serem as condi­ções econômicas as únicas determinantes da história dos povos. As preo­cupações materiais e sentimentais, os fatores políticos e religiosos, repre­sentam, na evolução das nações, um papel tão importante quanto aos fatos econômicos. Embora tenha havido tentativas neste sentido, 1 5 parece impos­sível — independentemente de qualquer idéia preconcebida — explicar, por exemplo, o cristianismo ou o islamismo, devido a causa de ordem econômica.

Se de fato acontece verificar-se, na vida de um povo, em determina­dos momentos, o predomínio de fatores econômicos, não menos verdade é poder-se verificar também serem aqueles influenciados, por sua vez, por outros fatores sociais: a influência econômica, mesmo quando profunda, jamais pode ser exclusiva.

Não se pode aceitar também, de maneira absoluta, representarem as transformações técnicas da produção o papel primordial que se lhes atri­bui: a técnica nasce das invenções (da idéia, portanto) e este esforço cria­dor se relaciona com as necessidades da sociedade. Logo, o desenvolvi­mento da técnica dá-se em função do meio social e da idéia. E de modo algum representa um elemento causai. Concebido assim sob esta forma corrente e abusiva, o materialismo histórico é errôneo.

Mas Marx em parte alguma deixou exposto, de maneira precisa, o que entende por materialismo histórico. Seu pensamento é vago neste ponto. Esta concepção tem dado margem a interpretações várias e por isso indicamos, em linhas gerais, uma dessas interpretações, mais sábia e mais interessante que a anterior.1 6

A concepção sociológica de Marx deveria ser então considerada sob o aspecto de reação contra a interpretação ideológica da história, de que tanto abusaram as correntes doutrinárias anteriores.

O materialismo histórico eqüivaleria, assim, a uma concepção objetiva e científica da História: os fatos históricos mantêm entre si relações de dependência que devem ser descobertas. Se for esta a verdadeira interpre­tação a se dar ao pensamento marxista, a teoria, objeto do comentário, adquire outro valor. Aliás, não se trata de concepção nova. Vilfredo Pa-reto observa, mui judiciosamente que, "a partir de Tucídides até Buckle, Taine e outros autores de nossos tempos, muitos historiadores tentaram, pelo menos, tomar esta via, procurando estabelecer relação entre os fatos,

1 5 . L O R T A : Le Basi Economiche delia Constitúzione Sociale, T u r i m , 3 . a edição, 1902. 16. Encontrar-se-ão a e x p l i c a ç ã o e a discussão de diferentes interpretações, p r i n c i p a l m e n ­

te em = V I L F R E D O P A R E T O : Systèmes Socialistes, tomo I I ; T U R G E O N : La Conception Matérialiste de 1'Histoire, in R e v . Écon. Pol., 1912; S E L E G M A N N : L'Interprétation Économi-

« que de VHistoire, p. 45.

Page 223: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

abstração de toda a ideologia".1? Tratar-se-ia, então, de uma concepção aceitável e interessante do ponto de vista científico.

Ao acentuar, com vigor, a influência exercida pelos fatos sobre as idéias, tentara Marx expungir o estudo da economia política de preocupa­ções de ordem metafísica, prosseguindo, assim no esforço empreendido por Adam Smith e continuado por Ricardo. 1 8

Por conseguinte, segundo a interpretação que se adote, a teoria do materialismo histórico deve ser rejeitada ou elevada à categoria de uma teoria cientificamente interessante.

Não tendo Marx sido preciso neste ponto é indispensável evitar-se a dualidade de interpretações. Cada uma delas é perfeitamente Justentável segundo as passagens de sua obra tomadas em consideração. Aliás, pare­ce indubitáveí haver o próprio Marx adotado ambas as concepções: a pri­meira, mais direta, dirige-se à massa operária com uma força de persuasão muito grande. Indica ser a evolução, no sentido do advento da sociedade coletivista, determinada unicamente por forças materiais, o que afasta a objeção de uma eventual resistência oposta pelos instintos ou pela vonta­de humana. A segunda interpretação, mais geral e menos absoluta, desti­nada a um público mais ilustrado, retira a sua força das falhas das teses ideológicas anteriores, que subordinavam estritamente a questão social à questão moral. É científica e não está viciada por parcialismos absolutis-tas. Admite — o que é, aliás, a expressão da verdade — a existência de mútua dependência entre os fenômenos econômicos e sociais. Esta con­cepção, embora assim se oponha à ideologia, admite o idealismo.

Esta necessidade de reintegrar, no marxismo, elementos de idealismo e de espirituatísmo será sentida, de modo mais nítido ainda, em grande número dos sucessores diretos e indiretos de Marx. Aliás, os próprios Marx e Engels criticaram o que poderia haver de abusivamente determi­nista em algumas de suas interpretações (em particular na Ideologia Ale­mã), que repousam sobre o mecanismo sumário do materialismo histórico.1 9

Marx admite que entre a infra e a superestrura as "relações não são abso­lutamente tão simples", sobretudo em razão da "autonomia relativa" das superestruturas e das "decalages" que daí resultam na sua evolução, em relação à evolução das infra-estruturas.

Essas "decalages" impedem deduzir-se as superestruturas a partir da infra-estrutura. "Nossa concepção da história é, antes de tudo, uma diretriz para o estudo e não uma alavanca que serve para construir à maneira dos hegelianos", escreveu Engels em 1890 em uma carta a Conrad. 2 0 Assim

17. V. P A R E T O , op. cit., tomo I , p. 402. 18. E m sentido contrário, ler T H O R N S T E I N V E B L E N , cuia tese, interessante pela sua

originalidade, tem por fim mostrar ser a c o n c e p ç ã o do material ismo histórico, e s p i r i t u a l i s t a e metafísica (The Socialist Economic oi Karl Marx and bis Follov/ers, in Quarterly oi Econo-mics, fev. 1907 e fev. 1908.)

19. Cf. C a r t a de E n g e l s e loseph B l o c h (1890), in M A R X et E N G E L S , Études Philosophi-oues, p. 156 ( E d i t i o n s S o c i a l e s ) .

20. In Études Philoscphiques, p. 153 ( É d i t i o n s S o c i a l e s ) , citadas oor G a r e u d y , K. Marx, Paris, 1964.

Page 224: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

desembaraçado de um mecanismo muito absoluto e de um determinismo histórico muito estreito, o materialismo histórico marxista ao afirmar que a história não evolui "segundo uma norma situada fora dela", é não so­mente essa "diretriz de que fala Engels, mas também um instrumento de estudo precioso e indispensável.

Em outros termos, o materialismo histórico torna-se, assim,'uma con­cepção menos absoluta, menos estreita, menos matizada e muito mais rica em valor explicativo.

O materialismo continua sendo seu traço característico predofninante. Todavia, é possível acrescentarem-se-lhe agora certos fatores humanos oriundos de fatores materiais da evolução. Admite-se a ação do homem sobre as forças naturais, mas tão-somente como reação aos efeitos produzi­dos per essas mesmas forças. Daí resulta também sair o materialismo da estreiteza em que se enquadrara, não subordinando mais a evolução da sociedade exclusivamente à ação direta das forças materiais. O materia­lismo histórico se transforma em uma espécie de "filosofia do esforço".2 1

A posição é delicada e torna-se mais frágil ao se pretender explicar — sem apelar para a intervenção de um fator extrínseco — a maneira pela qual se operou a distinção entre homem e natureza, separação neces­sária ao funcionamento das ações e reações recíprocas.

E muito judiciosamente se observou que a fraqueza dessa concepção materialista forneceu aos espiritualistas o argumento da criação do homem por um poder anterior e superior à natureza, cem isso permitindo-lhes afirmar "existir nele algo irredutível ao mundo físico e ser ele, portanto, suscetível de atuar sobre o mundo e não apenas de contra esse reagir". 2 2

O determinismo, por sua vez, embora persistindo em afirmar-se, tor­na-se menos absoluto, entreabrindo a porta à ação individual. São os ho­mens os autores da evolução e, portanto, atuam sobre o seu curso. Mas, ao se considerar o resultado desta ação em um período de longa duração (o raciocínio de Marx abrange sempre os aspectos evolutivos em um lar­go período de tempo) e ao se focalizar o conjimto das ações individuais (pois Marx raciocina, na maioria das vezes, em termos globais), a evolu­ção se orienta, assim, no próprio sentido da "natureza social do homem".

E Marx é otimista quanto ao sentido desta evolução que, graças ao materialismo histórico, deve certamente orientar a humanidade para for­mas mais felizes de organização.2 3

Esta concepção favorável do materialismo histórico não está muito longe da concepção de certa ordem providencial que não negaria ao espí 1

2 1 . Nesse sentido = L A B R I O L A : Conception Matérialiste, D . 1 2 1 ; G I D E e R I S T , oo. cit. , p. 560.

22. J E A N M A R C H A L : Essais sur le Marxisme. 1955, p. 49. 23. T H O R N S T E I N V E B L E N (The Theory oi the Leisure Class, 1899; The Theory ol

Business Entreprise, 1904; The Jnstinct ol Workmanship, 1 9 1 4 ; The Vested Interests, 1 9 1 9 ; Place ol Science in Modem Civilization an other Essays, 1 9 1 9 ; Absentee Ownership, 1923) refuta este o t i m i s m o de M A R X , crit ica a sua " r e l i g i ã o do p r o g r e s s o " , da qual se faz a p ó s t o l o e da qual o proletariado seria o herói, e põe em dúvida o fato de dever a humanidade e v o l u i r necessariamente no sentido de um aperfeiçoamento contínuo.

Page 225: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

rito fisiocrático. E implica o estabelecimento de uma analogia e uma crí­tica.

A analogia nos conduz a certas fontes de otimismo do século XVIII: compare-se o otimismo de Marx, no que respeita ao determinismo históri­co, àquele otimismo dos clássicos quanto à ordem natural. E a analogia é tanto mais legítima quanto, na verdade, este último estádio de evolução preconizado por Marx, ou seja, o estádio que possibilitará à sociedade re­vestir sua melhor forma, sua forma superior", está exatamente em conso nância com a sua concepção de ordem natural. 2 4

A crítica se refere ao traço necessariamente favorável, que caracteriza este determinismo. Se Marx admite — com as mesmas reservas indicadas — a atuação do homem sobre a evolução, justifica-se por isso • conside­rá-la como necessariamente favorável aos interesses da sociedade futura? Se a sua ação se faz sentir sobre a evolução atual, por certo ter-se-á feito sentir também no passado e, por conseguinte, cabe-lhe certa responsabili­dade pela organização do capitalismo — que é mau sistema, segundo Marx. Como, portanto, ter a certeza de que futuramente não se repeti­rão os mesmos erros por parte dos indivíduos? Como, em tais condições, prever o aparecimento certo do melhor dos mundos? A crítica é eviden­temente séria.

2. A LUTA DE CLASSES

Que pensar desta segunda parte. da concepção sociológica do mar­xismo?

Em relação a este assunto, verificam-se de novo, em Marx, dois pen­samentos diferentes. A interpretação corrente, em primeiro lugar: existem duas classes em conflito permanente através da História, buscando a se­gunda a destruição da primeira. Esta tese é insustentável cientificamente; a observação a infirma.

A História apresenta períodos nos quais não houve manifestação de luta de classes. Particularmente durante os períodos de guerra, desapare­cem os antagonismos de classe, que são substituídos pela oposição entre as nações. Além disso, manifesto é não existirem apenas duas classes, mas, sim, grande número delas. A burguesia e as classes proletárias subdivi­dem-se em classes que freqüentemente mantêm entre si relações de coope­ração e não de oposição. Pode-se também verificar não ter a luta um ob­jetivo único, ou seja, a destruição, mas, sim, numerosas serem as modali­dades existentes de antagonismos de classes, cujos múltiplos aspectos o funcionamento da livre-concorrência terna evidentes.

Ao contato das realidades, perde esta primeira interpretação da con­cepção marxista todo seu valor. Aliás, somente à luz da tese darwiniana torna-se esta concepção da luta de classes, sob forma mais científica, uma teoria interessante. Não se tratará mais de uma luta entre duas classes

24. Cf. supra, p. 206.

Page 226: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

opostas, tendo unicamente por meio a evolução direta e, por fim, tão-só a destruição da segunda pela primeira. Existe grande número de classes, afirma desta vez Marx, cujos interesses nem sempre se harmonizam, es­tando, ao contrário, não raro, em conflito, conflito esse que se traduz em lutas sob diversas formas.

Assim exposta, a luta de classes parece representar uma concepção exata, embora inaceitável, do ponto de vista científico, o uso que dela faz o marxismo. Para Marx, a luta de classes deve, necessariamente, acarre­tar a vitória do proletariado sobre a burguesia. E, uma vez conseguida esta vitória e desaparecido o antagonismo entre capital e trabalho, a luta de classes deixará de existir para sempre.

A primeira destas deduções não se impõe necessariamente; a segun­da é falsa.

Nada comprova, com efeito, "a priori", acarretar a luta de classes a desaparição de uma dentre elas e, muito menos, dado fosse isso exato, ne­cessariamente da segunda. Ademais, sendo tão numerosas quanto as pró­prias classes as formas de conflito, nada nos autoriza a afirmar que daí resulta a destruição. Pode operar-se uma mudança em determinados tra-, ços característicos das classes existentes; o proletariado pode empregar suas energias em outras atividades e orientar suas idéias no sentido de melhorar o seu bem-estar. Seus sentimentos podem tornar-se impermeáveis ao espírito de classe, impregnando-se do espírito nacionalista, por exem­plo, mais elevado e potente.

Por conseguinte, está muito longe de ser exata esta idéia de dever a luta de classes conduzir ao triunfo da classe proletária. E ainda que se ad­mitisse fosse atingido este resultado, falso seria supor-se indicar este fato o fim da luta de classes. Sem dúvida é possível admitir-se, embora não seja evidente que, em uma sociedade coletivista, deixaria de existir o an­tagonismo capital-trabalho. Contudo o mais provável seria subsistirem as lutas de classes ou surgirem outras: a luta "proletários contra capitalista" não passa de uma forma particular das lutas de classes, fazendo esta últi­ma parte de um conjunto de lutas pela vida, cuja complexidade e conti­nuidade o darwinismo revela.

Ao antagonismo trabalho-capital sucederiam os antagonismos de sa­lários 25 e de situação entre trabalhadores intelectuais e manuais, ou entre trabalhadores de direção e de execução, ou (com o advento da "automa­ção") entre operadores de execução e de conservação.

Encarada no seu aspecto fundamental, a luta de classes suscita um problema permanente. Conforme escreveu Parefo: "Pensar que, ao se fa­zer desaparecer a atual luta de classes baseada no conflito capital-trabalho, desaparecerá, uma vez por todas, a luta de classes, é confundir a forma

25. C O M M O N S o b s e r v a que na Rússia se verif ica uma tendência no sentido de se s u b s t i ­tuir a psicologia do lucro pela p s i c o l o g i a do salário, com todas as suas conseqüências. ( C O M ­M O N S : Économique Institutionelle e in American Economic Review de 1935; Le Comunisme et la Démocratie Collectíve.)

Page 227: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

com c fundo". Problema permanente, sem dúvida, mas cujos dados se re­novam sem cessar. "As fórmulas muito simplificadas e vulgarizadas do marxismo sobre o antagonismo de duas classes — globalmente definidas — considerado como a chave da história mundial não são melhor utilizá­veis do que os esquemas individualistas", escreve Perroux. É necessário in­terpretar em termos novos as "escaladas sociais".2 6

Em resumo, sob a forma corrente, a luta de classes marxista é inacei­tável. Na sua forma erudita, contém a noção certa dose de verdade, por estar integrada na vasta corrente do darwinismo.2 7 Em. contraposição, as suas conclusões devem ser rejeitadas. Nada permite assegurar que o re­sultado previsto por Marx esteja garantido. O conflito entre certos inte­resses não desaparecerá no preciso momento desejado pelo ma crismo; pela sua própria natureza constitui um fenômeno peculiar a todos os seres vi­vos, o qual possivelmente perdurará enquanto estes existirem.

§ 2.° — Apreciação da concepção econômica marxista

1 . A TESE DA EXPLORAÇÃO

Que se deve pensar da tese da exploração? 28

Conforme vimos, construiu Marx a sua doutrina com base no valor--trabalho, daí tirando deduções que o levaram à noção da mais-valia ca­pitalista.

Esta teoria da mais-valia é uma aplicação correta que à mão-de-obra — como mercadoria ordinária — se faz da teoria do valor-trabalho. Sua validez depende, pois, de exatidão da teoria, da qual é uma simples con­seqüência.

Ora, esta teoria do valor-trabalho, para a construção de cuja parte essencial apoiou-se Marx nos clássicos, é uma teoria que tem sido objeto de críticas muito severas.

Resumimos o essencial dessa teoria ao estudar Smith e Ricardo. 2 9 À teoria do valor-trabalho, retomada por Marx — e pela qual pretende de-

26. V. P A R E T O : Les Sys-èmes Socialistes, t o m o I I , cap. X V , p. 467. F. P E R R O U X : La Création Collective, in Revue Philosophique, 176, n.° 4, Paris, 1963.

27. E s t a i n t e g r a ç ã o na corrente d a r w i n i s t a não d e i x a de representar certo perigo para a lógica de doutrina m a r x i s t a . T h . V E B L E N i n d i c a que a teoria da luta de c l a s s e s , colocada no quadro d a r w i n i s t a de fins de século X I X , d i l u i u - s e da mesma forma que inúmeras outras teo­rias dos m a r x i s m o . (The Socialist Economic of Karl Marx and his FoIIowers, in Quaitetly Jour­nal oi Economics, fev. de 1907 e fev. de 1 9 0 8 ) ; G. P I R O U : Les Nouveaux Courants de la Théorie Économique aux États-Unis fase. I, 1935, p. 24; A. C O R N U : K. Marx: de V Hégélianis-me au Matérialisme Historique, 1934.

28. Sobre as teorias marxistas do v a l o r e da m a i s v a l i a devemos acrescentar à bibl iografia das p. 208-210 J. B É R A R D : La Loi de la Valeur en Regime Socialiste, in Cahiers de lÉconomie Soviétique, jan-fev. 1947; H. D E N I S : La Valeur, Paris, 1952; F. E N G E L S : Étu­des sur le Capital (ed. f r a n c ) , Paris , 1949; A. B A R J O N E T : Plus Value et Salaire, Paris , 1950; M A R G O T H E I N E M A N : Wages Front, L o n d r e s , 1947. Ao lado destes t r a b a l h o s de autores marxistas indiquemos, de economistas n ã o - m a r x i s t a s , as obras s e g u i n t e s ; H I C K S : The Theory of Wages, L o n d r e s , 1932; Value and Capital, L o n d r e s , 1939; T. H A Y E K : The Pure, 1949 (tra­dução do Zum Abschluss des marxschen system, 1896; Histoire des Theories de Vlntérêt du Ca­pital (trad. f r a n c ) , P a r i s , 1903.

29. Cf. supra, p. 102ss.

Page 228: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

monstrar que o custo da manutenção da força de trabalho determina c preço do trabalho —, são feitas críticas da mesma ordem: o economista austríaco Boehm-Bawerk, principalmente, apresentou em suas obras uma exposição desta crítica que se tornou clássica.3 0 Além dos argumentos apre­sentados contra a teoria do valor-trabalho de Ricardo, insiste Boehm-Ba­werk sobre certas críticas, dirigindo-as sobretudo ao raciocínio desenvolvi­do por Marx. Mostra, principalmente, que Marx apresentou o problema do valor de maneira incompleta. Distingue Marx, com efeito, duas cate­gorias de bens: os bens naturais, resultantes do trabalho da natureza, e as mercadorias, devidas ao trabalho do homem. Uma vez feita esta distinção e deixando de lado os bens naturais, edifica uma teoria do valor válida tão--somente para os bens-mercadorias. Ora, uma teoria do valor deve forne­cer necessariamente uma explicação geral, baseada em caracteres comuns às diversas categorias de bens.

Boehm-Bawerk julga a teoria de Marx também incompleta, por ha­ver simplificado o problema do valor a ponto de deformá-lo.

Havendo conservado, como aspecto do valor dos bens, tão-somente o trabalho, viu-se Marx obrigado a eliminar certos outros aspectos funda­mentais do problema, tais como, por exemplo, a raridade dos bens, o se­rem sempre, embora em graus diferentes, produtos da natureza, o serem objeto de uma procura e de uma oferta etc. Este excesso de simplificação levou, aliás, a teoria marxista do valor a uma contradição, pois, ao mesmo tempo que afirma ser o valor das mercadorias igual tão-somente à quanti­dade de trabalho necessária à sua produção, diz que, em regime capitalista, os preços de equilíbrio se afastam das taxas de troca resultante das rela­ções entre os custos de produção e o trabalho. Ora, a observação indica existirem, em sistemas capitalistas, preços de equilíbrio diferentes dos va­lores e isso destrói, por si só, o que de exato se poderia conter na expli­cação marxista do valor. 3 1

30. B O E H M - B A W E R K : KarI Marx and the Close oí bis System, N o v a Iorque, 1949 (tra­d u ç ã o do Zum Abschluss des marxchen system, 1896; Histoire des Théories de Vlntérêt du Ca­pital (trad. f r a n c ) , P a r i s , 1903.

3 1 . B O E H M - B A W E R K : (Histoire Critique des Théories de Vlntérêt du Capital, t. I I I , p. 129 e segs.) insiste sobre esta crít ica que, com efeito, j u l g a fundamental. D « s e n v o i v e - a , partindo dos sucessivos raciocínios elaborados por M A R X à p. 67 do C a p í t u l o X, t. X e L i v . I I I , de O Capital: " C o m o o valor total das mercadorias r e g u l a a m a i s - v a l i a total , regulando esta, por sua vez, a m a g n i t u d e do lucro médio e, por c o n s e g u i n t e , da taxa geral de lucro, a lei do valor, como lei geral ou como lei preponderante d a s f lutuações, regula os p r e ç o s da p r o d u ç ã o . "

Os economistas m a r x i s t a s respondem que, contrariamente a esta crít ica de B O E H M - B A ­W E R K , os preços de p r o d u ç ã o decorrem dos valores d a s mercadorias e deles só se a f a s t a m em proporções definidas que, para se estabelecerem, pressupõem necessariamente a lei do valor.

C o m efeito, dizem eles, B O E H M - B A W E R K introduz na e x p l i c a ç ã o do preço da produção dois fatores " e s t r a n h o s " à lei do v a l o r : a taxa do s a l á r i o e a t a x a do lucro. I s t o nada e x p l i ­ca, pois, se o salário for i g u a l ao preço de produção dos m e i o s de subsistência, será necessário e x p l i c a r este segundo preço de produção, e assim por d i a n t e . Q u a n t o ao lucro, o problema é da mesma ordem, pois B O E H M - B A W E R K exprime em f u n ç ã o da t a x a de salário.

D i z e r que os preços se e x p l i c a m por outros preços s u c e s s i v o s não faz s e n t i d o : somente uma e x p l i c a ç ã o a t r a v é s d o valor permite-nos escapar deste c í r c u l o e m que caiu B O E H M - B A ­W E R K .

O preço de uma mercadoria é função do preço de todas as d e m a i s . T o d a v i a , este equil íbrio geral , sobre o qual insist iram W A L R A S e seus d i s c í p u l o s , não e x p l i c a nem determina o n í v e l em que será oferecida determinada mercadoria.

O que l imita o v o l u m e g l o b a l da produção no decurso de certo período é o seu custo so­cial^ isto é, a quantidade de trabalho humano s o c i a l m e n t e necessário à r e a l i z a ç ã o dessa pro­dução, ou, por outra, seu valor g l o b a l .

Page 229: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E Marx não só tratou do problema de maneira incompleta, mas ain­da — julga Boehm-Bawerk — o colocou mal: raciocinou tomando como ponto de partida o valor dos bens no quadro de uma troca baseada no equilíbrio, em uma equivalência. Ora, todo ato de troca repousa, por na­tureza, exatamente no desequilíbrio, ou seja, em uma diferença.

Para que haja troca exige-se, com efeito, que os co-permutantes pre­sentes ajuízem do valor dos bens permutados segundo padrões apreciativos diferentes: a troca de uma saca de café por dez sacas de cimento, por exemplo, realiza-se por dar o possuidor do café preferência a 10 sacas de cimento, dando, ao contrário, o detentor do cimento mais valor ao café do que ao cimento.

j O erro de Marx consistiu, não apenas em colocar o problema da tro­

ca em termos de equivalência, mas também em termos objetivos: o elemen­to subjetivo representado pela utilidade das coisas para o homem não pode ser dissociado do valor. A utilidade dos bens trocados não é, por certo, a mesma para cada um dos bens, possibilitando cada um deles a satisfação de necessidades diferentes. Contudo, cada um dos bens existentes tem uma utilidade que lhe é peculiar e esta qualidade intrínseca a todo bem econômico dificilmente pode ser eliminada em uma teoria do valor.

A crítica de Boehm-Bawerk é, em conjunto, geralmente aceita, embo­ra esteja, por sua vez, sujeita a críticas. De fato, o seu autor, ao formulá--la, colocou-se em plano diferente daquele em que Marx desenvolveu o seu raciocínio. Boehm-Bawerk criticou a tese de Marx relativa ao valor-tra­balho, colocando-a em um plano estático e no quadro micraeconôtnico. Nessas condições suas críticas são perfeitamente válidas. É possível, toda­via, sustentar — e a revisão, feita em profundidade, que os trabalhos de Keynes principalmente impuseram aos economistas, leva a isto — que Marx não se colocou em um plano funcional estático e microeconômico, mas, antes, em um plano evolutivo e macroeconômico. O método prepon­derante em sua obra não admite dúvidas a tal respeito: o seu raciocínio se desenvolve no quadro global de uma economia nacional e, nesse qua­dro, procura explicar as relações entre grupos, ou seja, relações essencial-

A q u a n t i d a d e d e t r a b a l h o s o c i a l d i s p o n í v e l r e p a r t e - s e e n t r e a s i n d ú s t r i a s d o s d i f e r e n t e s p r o ­d u t o s , a t r a v é s d o mecanismo d e mercado, u m a v e z q u e n o r e g i m e c a p i t a l i s t a a p r o p r i e d a d e p r i v a d a d o s m e i o s d e p r o d u ç ã o o b s t a a q u e e s t a r e p a r t i ç ã o s e f a ç a d e m a n e i r a c o n s c i e n t e e , p o r t a n t o , p l a n i f i c a d a .

N e s s e m e r c a d o , o m e c a n i s m o d a c o n c o r r ê n c i a f a r á c o m q u e a s r e l a ç õ e s d e t r o c a e n t r e m e r ­c a d o s c o i n c i d a m n e c e s s a r i a m e n t e c o m a r e l a ç ã o i n v e r s a d o s r e s p e c t i v o s c u s t r s d e p r o d u ç ã o , e m t r a b a l h o s o c i a l m e n t e n e c e s s á r i o . S e u m a s a c a d e c a f é " c u s t a " 100 h o r a s d e t r a b a l h o s o c i a l e u m p a r d e c a l ç a d o , 2 5 h o r a s , u m a s a c a d e c a f é s e r á t r o c a d a p o r 4 p a r e s d e c a l ç a d o s .

V ê - s e , p o r t a n t o , q u e o t r a b a l h o s o c i a l d e s p e n d i d o n a p r o d u ç ã o d e c a d a u m a d a s m e r c a d o -d o n a s é i g u a l à s o m a g l o b a l d o t r a b a l h o s o c i a l d e s p e n d i d o p e l a s o c i e d a d e c o n s i d e r a d a . S e m d u v i d a , n a r e a l i d a d e d o m e c a n i s m o c a p i t a l i s t a , o e s q u e m a a n t e r i o r s e c o m p l i c a u m p o u c o , m a s o p r i n c í p i o p e r m a n e c e i n a l t e r a d o : a s s e n t a - s e s o b r e a l e i d o v a l o r .

S e o s p r e ç o s d a p r o d u ç ã o d a s m e r c a d o r i a s s e a f a s t a m d o s e u v a l o r e m p r o p o r ç ã o t a l q u e n a o s e c o m p e n s e m n a e s c a l a s o c i a l , i s t o s i g n i f i c a q u e a s o m a d a s q u a n t i d a d e s d e t r a b a l h o s o ­c i a l , r e q u e r i d a s p a r a c a d a u m d o s g ê n e r o s d e p r o d u ç ã o , p o d e r á s e r i n f e r i o r o u s u p e r i o r à s o m a t o t a l d e t r a b a l h o d e s p e n d i d o n o c o n j u n t o d a p r o d u ç ã o , e i s t o n ã o é s e q u e r " a d m i s s í v e l o u e x e ­q ü í v e l " .

M A R X t e r i a , p o i s , f u n d a m e n t o p a r a a f i r m a r q u e a s o m a d o s p r e ç o s d a p r o d u ç ã o é n e c e s ­s a r i a m e n t e i g u a l à s o m a d o s v a l o r e s .

E n c o n t r a r - s e - á e s t a r e f u t a ç ã o d a s c r í t i c a s d é B O E H M - B A W E R K a m p l a m e n t e e x p o s t a , e m P a r t i c u l a r , n a o b r a d e J E A N B É R A R D : L a Concéption Marxiste d u Capital, p . 1 5 9 e s e g s .

Page 230: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mente de produção e repartição entre grupos de trabalhadores, de um lado, e de capitalistas, de outro.

Seu raciocínio se aplica ao estudo dos movimentos ou variações das coisas. Essa concepção evolutiva o leva a estudar a transformação dos fenômenos econômicos em um período de tempo de longa duração.

Para Marx a infra-estrutura e a superestrutura se modificam com o tempo e nesse sentido devem ser estudadas. Sua concepção é evolutiva, sendo neste ponto mais ampla que a dos clássicos, pois Marx não aceita a definitiva estabilidade das instituições jurídicas básicas para o capitalis­mo. Julga, ao contrário, dever realizar-se a transformação do regime de propriedade privada e do de liberdade, a fim de que se chegue à coletivida­de da sociedade. Mas, uma vez atingido esse estádio de evolução, afirma Marx serem definitivas as instituições dessa sociedade coletivizada. Adota, em relação a esta nova sociedade, uma posição semelhante à dos clássi­cos quanto à sociedade capitalista de sua época.

Recolocada no quadro de um raciocínio macroeconômico, abrangen­do um período de tempo de longa duração, a teoria do valor marxista se apresenta de maneira diferente: em termos de microeconomia tende a teo­ria a explicar a repartição parcial do produzido entre patrões e operá­rios. Apega-se antes às modalidades da repartição das mais-valias do que ao problema da sua criação.

Em termos de macroeconomia, pretende Marx indicar, primeiro, os fatores explicativos da parte preponderante da renda nacional que cabe aos empreendedores e, depois, a maneira pela qual a mais-valia global fica dividida entre os capitalistas..

De modo que Marx é, assim, logicamente levado a conceber a exis­tência de dois diferentes mecanismos de fatores, o que explica qual a quo­ta de mais-valia global que cabe aos empreendedores em seu conjunto, e em seguida como esta mais-valia se distribui entre os grupos particulares de capitalistas.

A esta teoria do valor-trabalho marxista, recolocada em seu quadro global e evolutivo, parece não caber a censura de contradição que lhe di­rigiu Boehm-Bawerk.

E não é só: se a teoria marxista do valor, assim compreendida, pode responder a certas críticas fundamentais feitas à ciência clássica, tornando sem efeito as objeções de Boehm-Bawerk a que nos referimos, ela não pode deixar de responder, entretanto, a outras observações importantes, que apenas indicaremos. Uma delas diz respeito à noção de trabalho qua­lificado e de trabalho simples, noção que se impõe para que as respectivas quantidades de trabalho possam ser expressas em horas. Marx diz ser o trabalho qualificado um múltiplo de trabalho simples. A dificuldade co­meça quando se trata de saber como e por que meio se fixará este multi-

230 plicador.

Page 231: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Em regime capitalista o mercado pode fornecer esta medida: se o quadro de um pintor exige 10 horas de trabalho e è trocado por uma rou­pa que exigiu 50 horas, isto significa que uma hora de trabalho do pintor é igual a 5 horas-trabalho do alfaiate.

Nem em uma economia socialista, na qual não funciona o mecanismo de mercado, cabe às autoridades administrativas fixar estas relações de troca. Em princípio esta fixação pode parecer puramente arbitrária. Não respondem os economistas marxistas, pois, em um país organizado segun­do os moldes de uma ditadura do proletariado, a faculdade de fixação pertence ao partido que — diz Lênin — constitui "a experiência do pro­letariado, acumulada e organizada". A decisão administrativa, tomada pe­los chefes do partido, se identifica inteiramente com a resoluçãc da massa. Com efeito, se o partido e os chefes respectivos traduzem plena e total­mente a consciência popular e se, nessas condições, suas decisões coinci­dem sempre com a que a massa tomaria ou desejaria tomar, é possível admitir que o resultado de uma tal fixação das relações de troca seja su­perior ao conseguido em uma economia capitalista de mercado.

Não sendo, entretanto, perfeita esta integração entre o partido, seus chefes e a massa dos trabalhadores, nada autoriza a afirmar não se pro­cesse esta fixação de maneira arbitrária, produzindo resultados inferiores aos obtidos no capitalismo.32

Outra objeção diz respeito à noção de "trabalho socialmente necessá­rio", utilizada por Marx. Esta noção traz à baila o problema da habili­dade média do operário quando munido de utensílios e tendo à disposi­ção a maquinaria em uso no meio social em questão.

O raciocínio parte do pressuposto de existirem máquinas à disposição do trabalho do operário; difícil é, pois, admitir possa e deva o operário receber como salário a totalidade de valor dos bens por ele produzidos. Seria necessário fazer a dedução de uma parte que dê para cobrir as des­pesas de salários de outros operários encarregados da conservação e repo­sição das atuais máquinas.

A tese do valor-trabalho marxista não pode, portanto, ser aceita sem reservas. Estas reservas vão se refletir sobre a tese da mais-valia, deduzi­das da primeira.

Além disso, a teoria da mais-valia é objeto de críticas que a atingem diretamente. A aquisição da força de trabalho é uma operação havida por Marx como muito vantajosa para os empreendedores, uma vez que é fonte da mais-valia e, portanto, do lucro. Nessas condições, esta força de tra­balho deve ser cada vez mais procurada pelos capitalistas, devendo, por conseguinte, elevar-se o seu preço. Com isto a taxa dos salários se apro-

32. " E m suma — escreve J E A N M A R C H A L em seus Essais sur le Marxisme, p. 65 — a teoria do v a l o r - t r a b a l h o se reduz à a f i r m a ç ã o de que a direção da sociedade d e v e pertencer ao conjunto dos c idadãos considerados como os prestadores do trabalho. A teoria da e x p l i c a ç ã o <• a c o n d e n a ç ã o da sociedade capital ista, em função dessa idéia diretriz. Por nosso lado estamos dispostos a aceitar esta afirmação e a r e s p e c t i v a condenação. A p e n a s , antes de concluir pela necessidade de substituir o capital ismo por um s i s t e m a de planif icação r í g i d a , sob a ditadura

Page 232: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ximaria do preço das mercadorias, fazendo com que desaparecesse, por um lado, o lucro do empregado, e, por outro, possibilitando aos trabalhadores a aquisição do produto do seu trabalho. A noção da mais-valia deveria, pois, levar logicamente seu autor a uma teoria de alta de salários e não à teoria do salários ao nível do mínimo vital.

Além disso, entende Marx por salário mínimo a "soma dos meios de subsistência que permite ao operário viver como t a l " 3 3 (Manifesto do Partido Comunista, p. 22, edição 1945) e deixa claro depender este salá­rio das peculiaridades físicas do país e do grau de civilização alcançado pela população: nessas condições podemos concordar que a tese da explo­ração perde muito de força, importância e fatalidade, uma vez que o salá­rio do operário pode ser melhorado pela modificação dos hábitos e ele­vação do padrão de vida da classe operária.

E, de fato, Marx e os principais marxistas admitem a existência, no regime capitalista, de uma limite social superior ao nível do salário real. Todavia, o preço do trabalho, para Marx, jamais pode elevar-se "senão dentro de limites que deixem intactas as bases do sistema capitalista e as­segurem a sua reprodução em uma escala progressiva".3 4 Por conseguin­te, o aumento do salário esbarra com uma "zona crítica", a qual é atin­gida quando impossível seria prosseguir o salário em ascensão sem pôr em risco a rentabilidade do sistema capitalista. No entanto, esta zona crítica só pode ser alcançada quando o "capitalismo haja praticamente cedido o seu lugar a uma economia de orientação predominantemente socialista, comportando a ditadura do proletariado, como é o caso das democracias populares".

Em sentido contrário podemo-nos louvar nos exemplos fornecidos pe­las economias capitalistas, e principalmente a dos Estados Unidos, a qual não confirma o raciocínio anterior e dá mesmo ensejo a dúvidas muito sérias quanto à sua exatidão. Para explicar estas contradições entre a evo­lução dos fatos e a teoria da mais-valia é então apresentada a tese do "imperialismo". Adiante a examinaremos e então veremos que com ela não se põe um termo às objeções anteriormente levantadas contra a teoria da mais-valia.

Esta teoria é igualmente discutível quando se pretende conciliá-la com o fato objetivo do lucro, tal como fez Marx. Este sustenta, com efeito, que a mais-valia é função da quantidade de mão-de-obra empregada e não das máquinas utilizadas na produção. Ora, a experiência indica dar-se exa­tamente o contrário. As indústrias que empregam relativamente mais má­quinas e menos mão-de-obra são as que obtêm, mantidas inalteradas as demais condições, o máximo de juros e de lucros. Marx é, aliás, obriga-

de um partido, ju lgamos necessár io demonstrar, não que o novo s i s tema injust iça a lguma acar­retaria — nenhuma i n s t i t u i ç ã o humana apresenta esta caracter í s t i ca —, mas serem es sas in jus ­t i ç a s inferiores àquelas , não apenas do s i s tema capi ta l i s ta , mas de qualquer outro s i s t e m a : o SRtema de p lan i f i cação f l ex íve l do t ipo trabalhista, por e x e m p l o . "

33. Para maiores de ta lhes sobre este aspecto da questão , cf. J E A N M A R C H A L : op. c i t . , p. 110.

34. Capital, Editions Sociales, 1950, l iv . I, t. I I I , cap. X X V , p. 61.

Page 233: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

do a se dobrar à evidência dos fatos e reconhece ao capital constante esta produtividade que pretendia reservar tão-somente ao trabalho humano. E promete, então, demonstrações complementares, cuja publicação só se fez após a sua morte. Encontram-se no tomo III de "O Capital", em meio a explicações confusas sobre médias variadas que, ao contrário, nada escla­recem.

2. A TESE DA EVOLUÇÃO

Na tese da evolução 35 vamos encontrar de novo noções deduzidas de premissas discutíveis.

A teoria das crises de Marx constitui um exemplo disso. /íssenta nos fenômenos da superprodução e do subconsumo. O subconsumo existiria, segundo Marx, em estado crônico, uma vez que a mais-valia impossibilita ao operário a aquisição, no mercado, do produto do seu trabalho. Sendo a mais-valia uma noção que, conjuntamente com a do valor-trabalho, deve ser abandonada, esta explicação da crise pelo subconsumo perde o seu valor.

Quanto à superprodução, explica-a Marx por outra causa: a redução do lucro. Desejando o empreendedor evitar a superveniência dessa redu­ção, aumenta a produção. O fenômeno causai da redução do lucro está sujeito a uma dupla refutação: de ordem experimental e de ordem teórica. Indicam as estatísticas, em primeiro lugar, não existir no período de pros­peridade — que antecede a toda crise cíclica —, uma redução da taxa de lucro, mas, sim, ao contrário, uma tendência para a alta. E, inversamen­te, os períodos de depressão que se seguem ao aparecimento da crise não se caracterizam, conforme afirma Marx, por uma elevação de lucros, e, sim, pela sua queda. 3 6

A esta crítica experimental junta-se uma crítica racional. Marx não leva em conta o fato de ser a produtividade do trabalho dos operários au­mentada em razão da expansão do emprego da maquinaria e que, portan­to, se existisse mais-valia, esta aumentaria e, com ela, os lucros. Esta re­futação que se faz da teoria das crises de Marx é aceita por certos marxis­tas, tais como, por exemplo, Tugan-Baranowsky que, por esta via, chega a contestar a exatidão da teoria da mais-valia. Aliás, o próprio Marx re­jeita no livro II de "O Capital" ( 3 . a Parte, Capítulo 20, § 4.°) a hipótese que pretende explicar as crises periódicas através do subconsumo da classe operária.

35. A l é m das obras de caráter geral , acima c i t a d a s , cf. = R O S A L U X E M B U R G O : L'Ac-cumulation du Capital (trad. f r a n c ) , P a r i s , 1935; P. M. S W E E Z Y : The Theory oi Capitalism Development, L o n d r e s , 1942.

Dentre as obras não marxistas, cf. = J. S C H U M P E T E R : Théorie de 1'tvolution Économi­que, P a r i s , 1935; Capitalisme, Socialisme et Démocratie, Paris , 1 9 5 1 ; History oi Economic Ana-lysis, N o v a Iorque, 1954; N. K A L D O R : Capital Intensity and the Trade Cycle, in Econometri-ca, 1937.

36. E n c o n t r a m - s e observações e s t a t í s t i c a s indicando a e l e v a ç ã o dos lucros no período de expansão e a sua queda no período de depressão, no estudo aprofundado das crises, feito pelo professor J E A N L E S C U R E : Les Crises Générales et Périodiques de Surproduction, 5.° ed., P a ­ris, 19362 V I L F R E D O P A R E T O indica t a m b é m não acompanharem a t a x a d e juros a s v a r i a ç õ e s da r e l a ç ã o capitai-v ariável , c a p i t a l - c o n s t a n t e , ob. cit. , tomo I I , cap. X I X , p. 374.

Page 234: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esta teoria das crises é, pois, inexata e com ela se esvai o que Marx julgava indispensável demonstrar, ou seja, a incapacidade de preencher a sociedade capitalista as suas funções econômicas, em virtude do que se ve­rificaria a sua destruição dentro de breve tempo. 3 7

O que de fato foi em grande parte destruído foi o capitalismo das pequenas unidades de produção. Pelo mecanismo da concorrência, por efeito de concentração e dos agrupamentos das empresas, o capitalismo atômico perdeu as suas principais posições no decurso do século XIX, ce­dendo progressivamente o passo a um novo capitalismo, no qual a grande empresa, os mecanismos monopolistas e a intervenção do poder público ocupam um lugar cada vez maior.

O capitalismo das pequenas unidades se transformou em um capita­lismo de grandes unidades, mas não desapareceu. E se, até 1930, as cri­ses econômicas continuaram a sacudir periodicamente as suas bases, de então em diante parece haver ficado o capitalismo em condições de evitá--las, ou pelo menos de atenuar seus efeitos. Além disso, a solução rápida e satisfatória dada ao problema da transformação da economia de paz em economia de guerra e sobretudo a conversão da economia de guerra em economia de paz — e isto nos países capitalistas mais evoluídos, como os Estados Unidos, por exemplo — comprovam uma possibilidade de adap­tação, cuja frescura e vigor são incompatíveis com os prognósticos marxis­tas de senilidade do sistema.

Que se deve pensar destes três últimos pontos da tese da evolução, ou seja, a concentração capitalista, a proletarização crescente e a garantia — segundo Marx — do bom funcionamento da futura sociedade coleti­vista em razão de já se fazer coletivamente a produção, no atual regime capitalista?

Marx afirmava, segundo vimos, que a evolução econômica provocaria uma crescente concentração da produção e, paralelamente, uma concentra­ção das fortunas.

Que vale esta previsão ao contate com os .atos? A observação indi­ca uma tendência geral e acentuada para a concentração das empresas.

37. Os s o c i a l i s t a s m a r x i s t a s — mesmo quando se a f a s t a m da e x p l i c a ç ã o das crises apre­sentadas por M A R X — c o n t i n u a m a considerar as crises c í c l i c a s como sintoma de uma fatal moléstia inerente ao c a p i t a l i s m o . A grande depressão de 1929 representou muito bem este pa­pel de pressagiadora do seu fim p r ó x i m o . Se o c a p i t a l i s m o pôde sobreviver por a l g u m tempo ainda, isto foi devido tão-somente — pensam eles — aos meios de expansão, artif iciais e pro­visórios, dentre os quais o imperialismo.

Les Incidences Internationales de la Théorie aux E. U., B u l . Écon., por 1 'Europe, N a t i o n s U n i s , vol . 10, n.° 1; The Business Cycle in the Post War World, Londres, 1955; R. B A R R E : Revue Économique, nov. 1957, n.° 6 = L e s Réunions Économiques.

L É N I N , retomando a s idéias d e R O S A L U X E M B U R G O e d e H O B S O N , insiste nesta at i ­tude em seu l ivro L'Imperialisme, Stade Suprême du Capitalisme, 1916: para remediar os dese­quil íbrios do sistema, o c a p i t a l i s m o poderá enGontrar, ainda durante a l g u m tempo, novos mer­cados para a sua p r o d u ç ã o em regiões s u b d e s e n v o l v i d a s . E s t e " i m p e r i a l i s m o " propiciará certa mora ao c a p i t a l i s m o .

E, além disso, é uma s o l u ç ã o cada vez mais l i m i t a d a , pois os países que aderem ao regime c o l e t i v i s t a tornam-se m a i s numerosos, e isto reduzirá as p o s s i b i l i d a d e s de a p l i c a ç ã o de uma polí t ica imperial ista por parte do capital ismo.

E s t e últ imo a r g u m e n t o foi d e s e n v o l v i d o após a S e g u n d a Guerra M u n d i a l . L e r S T A L I N , principalmente o D i s c u r s o proferido per ocasião do X I X C o n g r e s s o do Partido C o m u n i s t a da U . R . S . S . , in Les Problèmes Économiques du Socialisme en U.R.S.S., Éd. Sociales, Paris , 1952.

Page 235: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

De fato, na maioria dos setores da economia, particularmente na in­dústria, verificou-se a concentração. Todavia, mesmo neste campo, onde se observa o seu grande desenvolvimento, esta concentração não se fez de maneira total, de modo a eliminar as empresas de dimensões médias e pe­quenas. Fala-se mesmo, na época contemporânea, de certo renascimento do artesanato. A grande produção industrial modificou certos caracteres do trabalho artesanal sem, todavia, em muitos casos, fazer com que de­saparecesse.

No comércio, o fenômeno da concentração é menos acentuado do que na indústria, enquanto na agricultura existe apenas em uma proporção muito fraca.

I A concentração na produção não é completa, nem constitui também

fato absoluto, conforme pensava Marx. O número de grandes empresas aumentou de fato, principalmente na indústria. Ninguém o contesta. E numerosos são aqueles que, como Schumpeter, longe de ver na concen­tração das empresas um enfraquecimento do regime capitalista, a conside­ram, ao contrário, como o motor potente e durável de seu progresso. Aliás, ao mesmo tempo em que o número das grandes empresas aumentou, o nú­mero total das empresas de todas as dimensões elevou-se. A produção não é quantidade fixa e imutável. A concentração das empresas, segundo os setores e as atividades de produção, é muito diferente e muito variável. Sua tendência é evidente; sua realização está ainda longe de ser total e absoluta.

Quanto à previsão marxista relativa à concentração das fortunas, não pode ser ela aceita sem sérias reservas, pelo menos em países economica­mente evoluídos. Infirmam ainda de modo mais claro a sua previsão rela­tivamente à concentração das fortunas. A expansão da sociedade anôni­ma, por exemplo, nos séculos XIX e XX acarretou uma disseminação das fortunas, fenômeno contrário ao anunciado por Marx. 3 8

Marx confundiu, assim, dois fenômenos distintos, ou seja: um de or­dem econômica e outro de ordem jurídica. A tendência a se operar essa concentração das fortunas é tanto menor quanto maior a resistência que,

38. A l i á s , é um fato de o b s e r v a ç ã o corrente. C i t a r e m o s como e x e m p l o s i g n i f i c a t i v o as se­g u i n t e s i n d i c a ç õ e s , extraídas do quadro e s t a t í s t i c o fornecido por B E R L E e M E A N S , no seu in­teressante estudo sobre a: Modem Corporation and Private Property, M a c m i l l a n , 1934.

E s t e quadro, organizado em 1930, b a s e i a - s e em estat íst icas das 200 maiores s o c i e d a d e s in­dustriais dos E s t a d o s U n i d o s . Por aí se vê q u e : 9 5 % do capital dos 20 maiores a c i o n i s t a s , no conjunto total de empresas, representam: 2,7% para a Companhia de E s t r a d a s de Ferro da Pen-si lvânia, 4% para a Companhia de T e l é g r a f o s e T e l e f o n e s e 5% para a Steel Corporation. E s ­tes autores i n d i c a m , além disso, que o m o v i m e n t o no sentido da dispersão das fortunas aumenta rapidamente. O número de acionistas da C o m p a n h i a de E s t r a d a s de Ferro da P e n s i l v â n i a era, em 1930, oito v e z e s maior do que o dos e x i s t e n t e s em 1902. O número de a c i o n i s t a s do total das grandes sociedades por ações u l t r a p a s s a v a os 4 milhões e meio, em 1900, e os 18 milhões, em 1908.

L e r t a m b é m , sobre este problema da propriedade privada no m a r x i s m o = E M I L E M I -R E A U X : Philosophie du Libéralisme, P a r i s , 1950, p. 157 e segs. E s s e m o v i m e n t o de difusão

? . , c a P i t a l e n t r e u m maior número d e i n d i v í d u o s é estat ist icamente i n d i s c u t í v e l . N ã o impede, al iás, de forma alguma, que um número reduzido de indivíduos se beneficie de fortunas consi­deráveis e, por isso mesmo, de um poder e c o n ô m i c o e social exorbitante. Cf., a esse respeito notadamente, o l i v r o de H E N R I C O S T O N : Le Rétour des 200 Familles, Documents et Temoig-•>ages, P a r i s , 1960.

Page 236: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

até ao presente, lhe tem oposto a classe média, cuja completa desaparição Marx predizia. E esta resistência se verifica:

— em primeiro lugar, na própria maneira pela qual subsistem as pro­priedades pequena e média, e, particularmente na agricultura, a importância destas em muitos casos não diminui, tendo, ao con­trário aumentado;

— e, em segundo lugar, em virtude de operar a grande produção transformações na classe média ao invés de acarretar a supressão desta última. A grande produção capitalista absorverá grande nú­mero de trabalhadores, outrora independentes, mas não vai, neces­sariamente, relegá-los à classe operária. A produção capitalista criará uma nova classe média, ou seja, a dos diretores, gerentes, agentes comerciais, engenheiros, administradores, contadores e em­pregados diversos: não serão proletários, pois seus vencimentos permitem-lhes uma poupança. E este salário suplementar impede que do ponto de vista econômico sejam os seus beneficiários in­cluídos na classe proletária.

Assim, enquanto Marx previra a extinção total da classe média, bru­talmente rebaixada ao nível da classe operária — chegando-se, através da crescente proletarização, à catástrofe do conflito de duas classes cada vez mais desiguais 39 —, indicam os fatos haver a produção capitalista engen­drado a complexidade das classes, criando uma nova classe média que se juntará, em grande parte, à classe média anteriormente existente. Em con­seqüência, acaba-se, não em conflito de interesses, mas em uma justapo­sição de interesses distintos.40 Esta nova classe média, surgida no próprio seio da grande produção capitalista, embora dependendo dos meios de pro­dução que não possui, não se lhe Opõe: tem, ao contrário, todo o interesse na prosperidade da grande indústria, fonte da sua atividade e do seu bem--estar.

Em resumo, se a tese da proletarização crescente deve significar a ex­pulsão, da classe média, de um número crescente de indivíduos que vai engrossar o contingente da classe proletária, dia a dia mais miserável, a evolução contemporânea, pelo menos nos países industrializados, longe de confirmá-la, a contradiz. Se o que pretende indicar é o aumento do nú­mero de dependentes, então a tese é exata. Mas, neste caso, o seu valor, como explicação da evolução marxista, reduz-se muito: estes dependentes, longe de representarem uma classe homogênea, constituem diversas classes sociais, cujo nível de vida é, de maneira geral, bastante elevado e tende a elevar-se com os próprios progressos do capitalismo. E isto dá margem a sérias dúvidas relativamente ao espírito de luta sistemática dessa classe contra o capitalismo, distinguindo-se dessa massa de subconsumidores que, para Marx, representava um perigo de morte para o sistema.

39. É p o s s í v e l admitir-se que a proletarização crescente não engendra necessariamente o espírito revolucionário = neste sentido. T h . V E B L E N : The Sociahst Economic oí K. Marx and his Followers, in Quarterly Journal oi Economics, fev. 1907 e fev. 1908.

40. Sobre este renascimento ou consol idação de uma "franja h u m a n a " de permeio entre o c a p i t a l i s m o e o assalariado, ler, principalmente, J U L E S M O C H : Conirontations, P a r i s . 1952;

O I G F - P E R R O U X : Coexistence Pacifique, I , D . 2 5 ; A R O N , R.: La Lutte des Classes ( c o l l e c t . « O I d é e s ) , P a r i s , 1964.

Page 237: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

As razões (concentração e proletarização) invocadas por Marx para comprovação do triunfo da luta de classes são, pois, discutíveis. E assim também os motivos indicados por Marx para corroboração do fato de que a sociedade futura funcionaria sem dificuldades.41 A sociedade coletivista, afirma ele, funcionará economicamente de maneira perfeita, uma vez que, na atual sociedade, a produção já é feita sob a forma coletiva. E assim prosseguirá sem alteração e seus bons resultados técnicos permanecerão como uma conquista.

Tal afirmação confunde a forma da produção capitalista com o seu espírito.

A grande indústria conhece, sem dúvida, uma organização muito pró­xima, até certo ponto, da forma coletivista. O interesse e a responsabili­dade individuais, ao que parece, foram substituídos pela noção de salário: as funções de execução e de direção são preenchidas por assalariados, de­pendentes dos capitalistas. Eis a razão pela qual julga Marx que, uma vez bruscamente desaparecida a propriedade privada dos meios de pro­dução, alteração alguma dar-se-á na propriedade privada. Os diretores e os operários tornar-se-iam assalariados da coletividade social, nas mesmas condições em que hoje o são das sociedades respectivas.

Este raciocínio não é correto. Se de fato atualmente a direção técnica já reveste, em certa medida, a forma que lhe empresta Marx, a direção geral da produção permanece, todavia sendo individual e independente. Esta direção geral mantém, na maioria dos casos, a concorrência como seu traço característico: consta de uma diversidade infinita de atos de homens independentes e isolados, movidos pela busca do lucro e pelo desejo de garantia para a sua poupança. E por esta forma tomam decisões — sem plano de conjunto, talvez, mas decidem — relativamente à direção geral da economia. Os resultados das empresas industriais e comerciais, que le­vam em consideração, os orientam nas decisões a tomar. E é esta decisão livre e espontânea dos capitalistas responsáveis que, hoje como ontem, se impõem na direção técnica e comercial da produção.

* \ Por conseguinte, embora revestindo a grande produção uma forma

quase coletivista, mantém-se individualista pelo espírito que a anima. E tão profunda é a diferença entre o espírito da produção coletivista

e o da produção capitalista, mesmo quando concentrada ao extremo, que constituiu precisamente um dos motivos de temor para a maioria dos so­cialistas, Os discípulos de Marx, inclusive, sempre que se defrontam com o problema de transferir para a coletividade esta direção econômica geral.

"Arrancar ao campo da produção o interesse pessoal que o ali­menta, renunciar a este interesse particular é direito que, segundo a própria concepção materialista da história, constitui o móvel de todo

41. As condições de funcionamento do regime socialista foram estudadas e cr i t icadas por inúmeros autores, sendo as crít icas feitas em função dos dados mais recentes da teoria econô­mica e , part icularmente, d a teoria m a r g i n a l i s t a . Ler, principalmente = L U D W I G V O N M I -S E S : Le Socialisme (trad. f r a n c ) . P a r i s , 1938; A. A F T A L I O N : Les Foundements du Socialis-

m ' . Paris , 1922; F. P E R R O U X : Capitalisme et Communauté de Travail, Paris , 1938.

Page 238: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

o desenvolvimento histórico, não mais se dirigir ao sentimento da res­ponsabilidade pessoal, base de todo o progresso econômico, quem atualmente ousaria ou poderia fazê-lo? Neste deslocamento da respon­sabilidade, ou seja, na sua passagem, de individual a social, é que reside, para nós, toda a dificuldade do problema. Aí está a fonte de todos os obstáculos, o princípio de todas as objeções aos nossos sistemas."

Assim se exprimiu, em 1901, o socialista Joseph Sarraute 42 e assim pensa a maioria dos outros socialistas, dando categórico desmentido à afir­mação de Marx, cujo erro consiste em haver ele ultrapassado o j\isto limi­te da concepção materialista da história, submetendo, contra toda a rea­lidade, o espírito da produção capitalista à sua forma.

Seção IV

CONCLUSÕES SOBRE O MARXISMO

Em que medida a doutrina elaborada por Marx é científica e origi­nal? É o que vamos analisar, à guisa de conclusão.

§ 1.° — Valor científico do marxismo

O valor científico do método, da concepção e das previsões marxistas tem sido objeto de sérias objeções.

Tem-se dito que o método empregado por Marx o conduz freqüente­mente a uma exposição confusa. Discute-se, sobretudo, o emprego abusi­vo do processo das "médias", do qual daremos o seguinte exemplo:

No tomo I de O Capital, pretende demonstrar Marx ser o operário vítima de exploração por parte do capitalista, que se enriquece exclusiva­mente à custa do trabalho do primeiro. Assim escreve ele:

"A massa total de valor, inclusive a mais-valia, obtida por um capitalista é determinada exclusivamente pelo número de operários por ele explorados, sendo este número, por sua vez, dependente da mag­nitude do capital variável por ele adiantado." 43

Mas no tomo III já se esforça Marx por demonstrar a "formação de uma taxa geral de lucros", uma vez que a proposição avançada no tomo I está em manifesta oposição com a realidade. Isto o leva a escrever:

"Embora a venda das mercadorias restitua o valor dos capitais despen­didos na sua produção, cada capitalista não recebe exatamente a quan­tia de mais-valia e de lucro produzida pelo ramo de indústria ao qual pertence; a quantidade que lhe toca em partilha é proporcional à sua

42. J O S E P H S E R R A U T E : Socialisme d'Opposition, Socialisme de Gouvernement et Lutte de Classes, Paris , 1901.

43. O Capital (trad. franc.: Librairie du Progrès, Paris , tomo I, p. 123).

Page 239: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

participação no capital total da sociedade e ao conjunto da mais-valia e do lucro, criados por este capital. . ." 44

Existe contradição entre estes dois textos. Marx tentará desfazê-la, introduzindo o seu processo das "médias":

"Sob a pressão da concorrência todos os capitais tendem a assumir a composição média e, sendo esta igual ou quase igual ao capital médio social, todos os capitais, sejam quais forem as mais-valias que propor­cionem, tendem a realizar, no preço das mercadorias que produzem, não esta mais-valia, mas, sim, o lucro médio." 45

As diferenças indicadas nas afirmações anteriores ficam, assim, redu­zidas. Mas, ao mesmo tempo que parece desaparecer a contradição entre os dois raciocínios, surge uma nova: a existente entre o raciocínio basea­do na "média" e os fatos. Com efeito, a observação de "tenderem todos os capitais a assumir a composição média". Vilfredo Pareto — que de ma­neira incisiva critica este método marxista das médias — insiste no erro assim cometido por Marx:

"Quem poderá acreditar — escreve ele — que esta proporção tenda a se tornar a mesma para os modistas e para os possuidores de altos-for-nos que produzem ferro guza? Que a proporção dos salários ao resto do capital (proporção entre o capital variável e o capital constante) é a mes­ma para o canal de Suez e para uma empresa de pintores de prédios? Ê zombar dos outros, pretender fazê-los aceitar semelhantes absurdos"

O erro é com efeito manifesto e útil o seu registro para indicar a que foi Marx conduzido em virtude do emprego do processo das médias. Se­melhantes exemplos são numerosos na obra de Marx. Este método chega a gerar confusão nos espíritos. Esta falta de clareza, de que, aliás, se res­sente, muitas vezes a obra de Marx, constitui fonte das múltiplas interpre­tações a que deu lugar e a cujo respeito os mais competentes marxistas não puderam chegar a acordo.

A característica científica da concepção marxista é também criticada. A parte sociológica perde valor científico em razão do abuso que foi feito do materialismo histórico. Levada ao extremo de tornar puramente obje­tivas as relações que são, no entanto, subjetivas, esta idéia, exata em si, tornou-se falsa, fazendo com que a doutrina saísse do terreno científico para se impor como credo e transformar-se em verdadeira religião. A par­te econômica pretendia ser científica como um prolongamento das princi­pais teorias da escola clássica. Ora, os progressos realizados pela ciência econômica indicaram o erro das bases teóricas da escola liberal, nas quais se apoiou Marx. Aliás, percebendo-o, ele tentará, em muitas passagens de sua obra, modificar este legado clássico: eis aí uma nova fonte de contra­dições e de confusões. A teoria do valor-trabalho, por exemplo, sobre a qual assenta todo o primeiro volume de O Capital, é posta em dúvida e cor-

44. O b . cit., tomo I I I , p. 165. 45. O b . cit., tomo I I I , p. 183. * 6 . V. P A R E T O : Les Systèmes Socialistes, tomo I I , cap. X I V , p. 369. 239

Page 240: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

rígida no tomo III, de tal modo que as premissas do tomo I, alternada-mente afirmadas e infirmadas, prejudicam a solidez da estrutura inteira.

E convém lembrar aqui as reservas anteriormente feitas às críticas apresentadas à teoria do valor-trabalho marxista. Reservas da mesma or­dem se impõem ainda à condenação da concepção marxista em seu con­junto, em virtude de não serem exatas, do ponto de vista científico, as ba­ses de sua análise econômica.

O argumento procederia se Marx, apoiado nessa análise econômica, houvesse passado à concepção dialética da sua doutrina e ao sentido ge­ral da evolução materialista e histórica da sociedade. Mas, deu-se o con­trário: após haver admitido e aceitado esta concepção e esta evolução, justificou-as e ilustrou-as através da análise econômica. E, para tanto, serviu-se dos elementos à sua disposição, ou seja, daqueles que a escola clássica lhe oferecia.

Se houvesse escrito mais tarde, por certo ter-se-ia utilizado de outra análise econômica — aliás mais exata, uma vez que a teoria econômica progrediu e também porque teria então ao seu alcance a lição propor­cionada pelo "capitalismo molecular" e que não lhe foi dado observar — de caráter mais científico e, nela apoiado, teria construído uma dou­trina que chegaria a conclusões gerais muito semelhantes às expressas por ele. E, portanto, por assim dizer, vão insistir na precariedade científica da análise econômica da concepção marxista.

Ao contrário, as críticas são mais exatas quando colocam em dúvida o valor científico da previsão marxista. Não há dúvida que a doutrina mar­xista haja presidido à criação e ao funcionamento de sistemas comunistas que se aplicam a uma parte importante da humanidade. Mas a maneira pela qual se implantou é que não confirma a tese da evolução "catastró­fica" .

Na própria Rússia, onde o comunismo se desenvolveu em primeiro lu­gar, as condições econômicas não eram aquelas indicadas por Marx como necessárias ao advento da sociedade coletivista. A Rússia dos czares re­presentava em 1917 um dos países da Europa de economia capitalista pou­co desenvolvida e no qual a concentração da produção era das mais inci­pientes. O que tornou possível a vitória da revolução não foi a evolução materialista indicada por Marx, e, sim, a propaganda, principalmente a promessa de distribuição das terras aos camponeses — a idéia amplamen­te difundida pelos adeptos do marxismo, Lênin em particular.

.A mesma observação é válida para certas "democracias populares" da Europa Central e Oriental. E quanto às demais — principalmente a Alemanha Oriental e a Tcheco-Eslováquia — o comunismo foi implanta­do por meio de intervenção externa, favorecida esta pelo estado ruinoso das economias quando não destruídas pela guerra. O exemplo é ainda

Page 241: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mais convincente no caso da implantação do comunismo na China. Nós o examinaremos mais adiante. 4 7

E, portanto, o comunismo, não só se instalou onde Marx não previra, mas, ainda, é nos países mais industrializados, mais capitalistas, que atual­mente se defronta com as maiores dificuldades.

A observação é importante e merece ser sublinhada: graças à inteli­gência de que é dotado pôde o homem aperfeiçoar a sua técnica de pro­dução. Pouco a pouco cresceu o seu domínio sobre a natureza. Esse pro­gresso técnico, fruto da solidariedade existente entre os homens e cujos efeitos se acumularam no decurso dos séculos, constitui uma força cujo impulso não pode ser detido, nem ser refreada a marcha senão por breves instantes. Numa época em que, mercê desse progresso técnico, as comu­nicações materiais e imateriais se fazem quase que imediatamente no mun­do inteiro, não é mais possível subsistirem por muito tempo diferenças muito sensíveis de técnica e, portanto, de níveis de vida.

Cabe, pois, à orientação econômica, elaborada pelos homens, resol­ver este problema. Mas o sistema que não puder levar a bom termo essa tarefa lavra a sua própria condenação e desaparece. Cumprindo-a, justifi­ca-se por si mesmo e persisje.

E assim é que a exploração de imensas regiões, tais como a Sibéria e a China, tornou-se de realização impossível para o capitalismo liberal — seja em virtude de estarem as forças disponíveis demasiado interessa­das e concentradas algures, seja por haverem escapado os problemas sus­citados por empresas de proporções gigantescas e de rendimento auferível em um período de tempo muito longo, às possibilidades da iniciativa pri­vada, cujo funcionamento se baseia essencialmente no cálculo da rentabili­dade imediata.

O que a empresa privada não soube ou não pôde fazer passou para o campo da empresa pública. O comunismo parece, pois, encontrar a sua vida onde o capitalismo não pôde passar.*6

Em compensação, onde o capitalismo proporcionou progressos técni­cos e elevou o nível de vida — nos Estados Unidos, por exemplo — o comunismo parece encontrar de novo em seu caminho obstáculos difíceis de transpor.

A incapacidade de um sistema é que propicia possibilidades de êxito a outros, e isto de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto — conforme indica a observação dos fatos contemporâneos e não, sempre e fatalmente, segundo anunciava a previsão marxista. E os mesmos fatos mostram que em face das dificuldades a vencer não existe apenas uma úni­ca solução evolutiva — a desaparição da sociedade capitalista e a genera-

47. A contradição entre esses fatos e a doutrina obrigou os autais m a r x i s t a s a um sério esforço de revisão (Cf. em part icular = S T A L I N : Des Príncipes du Léninisme, Éditions Socia­les, p. 23 e s e g s . ) , que adiante e x a m i n a r e m o s .

48. "O comunismo tende a se transformar em um método de i n d u s t r i a l i z a ç ã o eficaz onde o c a p i t a l i s m o fracassou" ( P I E R R E B I G 0 . op. c i t . ) .

Page 242: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

lização da sociedade comunista — e, sim, diversas soluções, principalmen­te as resultantes das modernas transformações do capitalismo, de atômico em molecular. E no interior deste último variam as soluções segundo a parte maior ou menor de atividade atribuída respectivamente à empresa privada e à empresa pública.

O conflito do mundo moderno se traduz, assim, de maneira mais exa­ta, antes em termos de proporção entre empresas privadas e públicas do que em termos de oposição entre capitalismo e marxismo, antes em termos de adaptação que em termos de desaparecimento do capitalismo"

§ 2.° — O valor original do marxismo

Inúmeras são as objeções feitas às características científicas da dou­trina marxista. E o que pensar da sua originalidade?

A doutrina é original como síntese, construção de conjunto, mas não pelas teses particulares que a compõem e cuja origem é facilmente reco­nhecível.

O materialismo histórico já vinha sendo apresentado a partir do sé­culo XVIII, em seus caracteres essenciais, por numerosos autores: Mal­thus põe em relevo o seu materialismo e os filósofos alemães o seu deter­minismo. E na obra de Eugène Buret "La Misère de la Classe Ouvrière en France et en Angleterre" (1840), aparece a concepção em sua inteireza e pleno desenvolvimento. Marx nada mais fez que colhê-la.49

A idéia de luta de classes fora também exposta um século antes de Marx. Encontramo-la expressa por Turgot e mais tarde por certos socia­listas utópicos, tais como Pecquer, Saint-Simon, Bazard. 5 0

A teoria do valor foi, sob sua forma mecânica, tomada de emprésti­mo a Adam Smith e Ricardo.

A noção de mais-valia, que é a mesma de Thompson, muito se apro­xima da de Sismondi e da de Proudhon. 5 1

A teoria da concentração e da proletarização encontra-se em grande parte nos "Nouveaux Príncipes d'Économie Politique", de Sismondi; aliás, Marx e Engels o reconheceram no Manifesto Comunista.

Dúvida alguma subsiste, pois, quanto ao fato de se constituir o mar­xismo de elementos tomados de empréstimo a vários autores. Mas, ao reu­ni-los, Marx fez uma vigorosa síntese, cujo valor original é incontestável.

Essa originalidade tem aspectos muito diversos. Lembremos, pois, os principais.

49. Cf. sobre este ponto, T U R G E O N : Origines Économiques et Tendances Sociales du Ma-térialisme Historique, Rennes, 1912.

50. C A J H E N : L'Idée de Lutte de Classes au XVIIIème siècle, in J^evue de Synthèst Historique, 1906.

5 1 . A F T A L I O N : L'oeuvre de Sismondi.

Page 243: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Marx coloca de novo a Economia Política no quadro da sociologia e nessa moldura mais ampla insufla vida ao homem real.

Não se trata mais do homem dominado pela preocupação "metalista" dos mercantilistas, nem do homo oeconomicus do mecanismo hedonista dos clássicos. Trata-se de um homem bem mais vivo, mais completo, con­siderado a um tempo como ser que age, pensa e sente.

Com isto prossegue Marx na reação iniciada pelos seus antecessores, aliás, que ele nega, os socialistas "utópicos", aperfeiçoando-a. Estes racio­cinaram também em função de um homem, não abstrato e isolado, mas, sim, movido por paixões e interesses econômicos e cujos valores sociais — acrescidos dos econômicos — determinam os dados do problema da pro­dução e de seu rendimento. É esta dúplice característica — real e social

do homem, que já se encontra expressa — com mais ardor do que com razão — em um Fourier, ou nas brilhantes sínteses, embora freqüentemente inacabadas, de um Saint-Simon, ou ainda nas concepções idealistas de um Proudhon.

Entretanto, ao prosseguir este movimento de reintegração do homem verdadeiro na realidade econômica, ultrapassa Marx o trabalho de quan­tos o precederam, pois o integra também na continuidade histórica.

O homem dos mercantilistas agiu no quadro nacional; o dos clássicos, em um meio-ambiente cosmopolita e atemporal; o dos socialistas "utópi­cos", nos imensos projetos da sociedade ideal. O homem de Marx é estu­dado no quadro histórico, isto é, através do decurso de largos períodos de tempo, onde a ação por ele desenvolvida em relação às coisas e aos indi­víduos e as reações provocadas permitem aprender e analisar as suas verdadeiras aspirações. São estas relações humanas — sua modificação e evolução — que constituem a matéria-prima da análise marxista e não mais as relações abstratas de um homem "unilateral", cujo comportamento é estudado apenas em função do caráter objetivo das coisas.

Sem dúvida, Marx foi arrastado para esta via pela grande corrente his­tórica que, com Roscher, Knies e Hildebrand, por volta de 1846 reagiu energicamente contra o absolutismo, o universalismo e o perpetualismo dos clássicos. Mas, ainda aqui ultrapassou todos quantos o inspiraram pela ma­neira com que se serviu da história e pelos resultados obtidos. Notou-se, com razão, que, através da concepção social do homem, a que por esta forma Marx chegou, aproxima-se da concepção humana da idade Média. Será talvez conveniente acrescentar que não é o único a dela se aproximar. Aliás não o faz diretamente, nem de modo completo.

Foi com Roscher que iniciou a sua jornada. E foi renovando uma velha tradição universitária de seu país que prosseguiu na senda dos es­forços desenvolvidos pelos cameralistas alemães dos séculos XVII e XVIII, no sentido de recolocar o homem na realidade concreta, na diversidade, no quadro das instituições que o modificam. E, mergulhando no passado, vai juntar-se aos teólogos da Idade Média, afirmando mais uma vez a necessi-

Page 244: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

dade de uma concepção filosófica do homem em todo e qualquer estudo econômico.

Tal reintegração do homem na vida assinala um progresso considerá­vel quando comparada às deformações que lhe impuseram os economistas durante três séculos: convém realçar mesmo as suas vantagens em uma época como a nossa, de análise keynesiana e post-keynesiana, a qual tende a mutilar a personalidade humana, encerrando-a, a um tempo, no estudo de períodos de tempo de curta duração e nas noções globais da macroeco­nomia. *

Mas esta integração original, útil, não pôde realizá-la Marx sem gran­des riscos. O homem real de Marx é um homem social, mas não um ho­mem "total". E isso por duas razões:

É um homem introduzido à força em grupos de contornos bem defi­nidos. Marx concebe a existência, no decurso da história, de dois grupos de homens. Na época capitalista, compõe-se do grupo dos trabalhadores e dos capitalistas; e toda a sociedade está necessariamente compreendida nesses dois grupos: o homem que não é "trabalhador" é necessariamente "capitalista". Está aí, pois, uma simplificação que deforma a história cujo desenvolvimento se pretende analisar.

A realidade é menos arbitrária; a vida apresenta mais matizes; a no­ção de grupo, menos exclusiva e mais diversificada. As Economias indus­triais não são mais sociedades de dois termos e de dois rendimentos: tra­balhadores, patrões; salários e lucros.

Encerrado de maneira assim artificial e integral em um desses dois grupos, o horhem não pode ser real nem constituir um tipo representativo de todos os homens de uma sociedade.

Além disso, a filosofia de Marx introduz novamente o homem no es­tudo econômico; encara o homem apenas na sua materialidade, deixando na sombra outros aspectos do seu comportamento, os quais, entretanto, são aspectos também fundamentais. O homem verdadeiro, real, total — o ho­mem como ser vivo — não pode evidentemente ser encarado de modo as­sim tão inexato, artificial e unilateral.

O homem tal qual é, não é o homem marxista. Ao feri-lo, mutilá-lo e deformá-lo por esta forma melhor teria sido, por certo, deixá-lo na abs­tração, se é que outra coisa não se pretendia.

Todavia, é esta tentativa de reintegração da filosofia e da sociologia no estudo econômico que imprime à síntese de Marx o seu cunho mais original e interessante.

Esta reintegração realçou de maneira particular a importância da evo­lução estrutural das instituições, o relativismo dos sistemas e das leis eco­nômicas e a necessidade de conhecer o comportamento do grupo para pas­sar da psicologia individual à explicação dos fenômenos sociais.

Page 245: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

As conclusões a que chegou a síntese marxista podem ser discutidas e rejeitadas. Mas os meios utilizados para a sua elaboração representam ins­trumentos de primeira ordem para bem conduzir a análise econômica e, ainda que apenas a este título, merecem ser cuidadosamente estudados.

Haverá, entretanto, necessidade de insistir na dificuldade do exame objetivo de uma doutrina em geral e do marxismo em particular? O es­forço de revisão do marxismo é, na maioria das vezes, feito tendo em vis­ta a defesa de uma posição filosófica ou de uma atitude política. Sacrifica, portanto, a análise econômica e chega a juízos extremados.

A tendência muito freqüente dos partidários e dos adversários do mar­xismo consiste, com efeito, em aceitar ou rejeitar em bloco a metafísica da evolução, que orienta a doutrina e também a análise econômica uo capi­talismo que esta doutrina contém.

Se a aceitação da análise por uma total adesão à metafísica pode ser assimilada por um ato de fé, ao contrário, a não aceitação dessa meta­física, e por isso mesmo rejeitar a análise e o que ela contém de original e de útil, é uma posição anticientífica.

É evidente que estas atitudes são pouco propícias a um esforço de re­visão, cuja validade depende das circunstâncias e de nos mantermos fora de qualquer posição extremada e apriorística. E este esforço, que possi­bilitará a passagem das concepções e dos métodos marxistas utilizáveis pelo crivo da crítica imparcial, é indispensável ao progresso do estudo

"econômico e à solução das questões práticas daí decorrentes. E, por con­seguinte, deve ser tentado por todos, ainda mesmo por quantos não admi­tem as conclusões do marxismo.

§ 3." — A influência marxista

Exatas ou verdadeiras, estas conclusões exerceram, com efeito, uma profunda e duradoura influência na evolução doutrinária posterior a Marx, particularmente em relação ao socialismo.

O socialismo conservará do marxismo o forte cunho materialista.

Os sucessores de Marx procuraram, sem dúvida, temperar o que de excessivo há nesta parte da doutrina, introduzindo-lhe elementos espiritua­listas. Não obstante, assentará o socialismo doravante em fundamentos ma­teriais. Marx falou aos operários em uma linguagem condizente com os interesses deles. E o socialismo continuará dirigindo-se diretamente aos trabalhadores, para incitá-los a "abreviar o advento da revolução social, tornado inelutável pela evolução dos acontecimentos".

Este caráter "inelutável", fatal, da evolução que Marx proclamava com tanta energia, é hoje, entretanto, afirmado com muito menos convic­ção. O determinismo marxista é posto em dúvida: não apenas o socialis­mo moderado adota uma filosofia voluntarista, mas ainda o próprio sócia- 245

Page 246: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

lismo revolucionário tende a dar preferência à ação trabalhista, ao "movi­mento das coisas", tendo em vista alcançar o êxito completo da evolução "catastrófica".

O socialismo conservará o traço da violência característico do mar­xismo, o qual está implícito na noção de luta de classes. Surgirão, sem dúvida, depois de "O Capital", socialistas reformistas, portadores de meios pacíficos, mas a corrente socialista mais importante conservará a violên­cia marxista como meio de ação. A escolha dos meios empregados — vio­lência ou reforma — transforma em inimigas as duas correntes irmãs. O conflito entre ambas é tão forte quanto o existente entre socialismo e libe­ralismo.

Em resumo, o marxismo exerceu profunda influência sobre o socia­lismo e, indiretamente, sobre todas as doutrinas contemporâneas.

Esta influência fez-se mais forte pelas conseqüências decorrentes da doutrina e que se refletiram nos acontecimentos, uma vez que as grandes experiências políticas — envolvendo uma grande parte da população mun­dial — apelaram para o marxismo como fonte de inspiração para se orga­nizarem.

A verificação dessa influência não implica aceitação ou rejeição da doutrina e de suas conclusões: a história é pródiga em exemplos de dou­trinas cujo valor subjetivo não está em consonância com o valor objetivo.

Toda liberdade é permitida, pois, para se admitir: que a influência do marxismo provenha da sua lógica, do valor dos seus argumentos científi­cos, do valor da sua síntese; ou, que ela provenha de que a doutrina, ten­do ultrapassado a crítica objetiva (onde seu caráter científico é discutível), tenha atingido o plano da fé e não mais o do racional. Neste plano o Ma­nifesto Comunista, assim como "O Capital", se transformam de livros cien­tíficos em livros sagrados.

Page 247: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O S O C I A L I S M P O S T - M A R X I S X

O socialismo contemporâneo é todo ele influenciado pelo marxismo. O prestígio de Marx, a difusão de suas principais idéias e, por paradoxal que possa parecer, a confusão relativamente ao que constitui a parte teó­rica e construtiva de sua obra contribuíram para, de modo profundo e duradouro, imprimir o seu cunho ao pensamento socialista na sua evolução até aos nossos dias.

Mas não foi só o marxismo. Longe disto: numerosas outras influên­cias sofreu o socialismo contemporâneo e particularmente a das chamadas correntes "utópicas", às quais deve duas de suas idéias fundamentais: o espiritualismo e o voluntarismo.

O socialismo moderno, fazendo a síntese do espiritualismo com o ma­terialismo, assume um primeiro aspecto original. Ao atribuir o lugar de primeira plana ao voluntarismo — e não ao determinismo —, dá este so­cialismo prioridade à tática política em detrimento da doutrina: aí está o segundo e novo traço característico.

Em virtude destas diversas influências, reveste o socialismo post-mar-xista, considerado em seus traços gerais, duas formas distintas. Surge, pri­meiro, uma corrente crítico-construtiva que se rebela contra as principais teses de Marx e se esforça por realizar, de modo pacífico e imediato, um programa socialista: é o socialismo reformista, no sentido amplo do termo. E, depois, uma corrente extremista, cujas idéias provêm das fontes mais diversas — marxismo, socialismos anteriores a certos filósofos contemporâ­neos. Mais cioso também de realizações do que de doutrina, procura exe­cutar seu programa através de meios violentos: é o socialismo revolucioná-n o , o qual engloba o sindicalismo revolucionário e o bolchevismo. 247

Page 248: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção I

O SOCIALISMO MODERADO OU REFORMISTA

Desaparecido Marx, discípulos fiéis — Engels, Kautsky, Hilferding, Guesde, Deville, Lafargue 1 — procuraram adaptar o marxismo à evolu­ção dos fatos e ao progresso da ciência econômica.

Esse esforço de adaptação parece a alguns cada vez mais difícil e me­nos convincentç.2 E por esta razão desde logo inúmeros socialistas julgaram necessária a rejeição de certas partes já absoletas do marxismo, cuja justifi­cação científica se tentaria em vão. Conviria, pois, ao invés de aguardar os resultados de uma revolução catastrófica e problemática, dar início ime­diato a uma política de reformas parciais, suscetíveis de melhorar de ma­neira progressiva a sorte da classe operária.

Crítica da teoria marxista; construção de um programa de reformas imediatas e progressivas: eis aí os dois principais aspectos do socialismo reformista.

§ 1.° — A crítica da teoria marxista

A crítica dirige-se, em primeiro lugar, contra o materialismo histórico, como concepção exagerada e exclusivista. Numerosos serão os socialistas que vão julgar indispensável a reintegração, na sua doutrina, dos elemen­tos espiritualistas rejeitados por Marx. E deste modo alargam-se as bases éticas do socialismo e assiste-se a ensaios de síntese, no plano filosófico, entre o marxismo e o proudhonismo.3

Sem repudiar de todo o materialismo histórico, a corrente reformista nele introduz uma concepção idealista da história. E neste socialismo, onde as forças sentimentais e morais vão de novo encontrar lugar, retoma o homem consciência de sua personalidade. Reaparece, assim, a preocupa­ção de conciliar socialismo e liberdade individual: idéia, aliás, jamais aban­donada por Proudhon, tornar-se-á, doravante, a preocupação constante de um Jaurès, de um Renard. 4 Levará mesmo certos socialistas, como Van-

1. K A R L K A U S T S K Y : Reformes Sociales et Révolution Sociale, 1902; Le Chemin du Pouvoir, 1908.

2. O estudo do marxismo foi a t a c a d o a um tempo per e c o n o m i s t a s : G R A Z A D E I : W. S O M B A R T : Sozialismus und soziale Bewegung, 9. 8 ed., Iena, 1920; por h i s t o r i a d o r e s : M O N -D O L F E O ; e por fi lósofos: G E N T I L E , C H I A P E L L O , B . C R O C E (Sulla Concezione Mate­rialista delia Storia — observações l idas na A c a d e m i a Pontaniana — N á p o l e s , 1896; Per la In-terpretazione e la Critica di alcuni conceti dei Marxismo — M e m ó r i a da A c a d e m i a Pontaniana — N á p o l e s , 1897).

3. C h . A N D L E R : Les Origines du Socialisme d'État en Allemagne, 1897; B e n o i t M a l o n : Le Socialisme Integral, Paris , 1890; A. P h i l i p : H. de Man et la Crise Doctrinale du Socialisme, 1928; H e n r i de M A N : Au dela du Marxime, 1929, e sobretudo J. J A U R È S , para o qual o pro­gresso não é somente técnico e material , mas t a m b é m intelectual e moral.

De J A U R È S ler: Idéalisme et Matérialisme dans la Conception de 1'Histoire (Conféren-ce Contradictoire), 1901; Histoire Socialiste; Discours Parlamentaires ( p r i n c i p a l m e n t e a intro­d u ç ã o ) ; Études Socialistes, Esquisse d'une Organisation Socialiste, ir. R e v u e S o c i a l i s t e , 1895-96. Sobre J A U R È S : L E V Y B R U H L S : Jean Jaurès, Paris , 1924; G A E T A N P I R O U : Les Doctri­nes Économiques en France depuis 1870, P a r i s , 1925; H. B. W E I N S T E I N : /. Jaurès, C o l u m -bia U n i v e r s i t y Press, N o v a Iorque, 1936.

4. G. R E N A R D : Discussions Sociales d'Hier et de Demain.

Page 249: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

dervelde, a assumir uma posição antiestatal. Esta concepção vai, na hora atual, acabar em uma vasta tentativa de conciliação entre o individualismo, na sua acepção nata, e o socialismo expurgado de marxismo.5

A crítica ao marxismo prossegue. Uma vez abandonada a teoria do valor-trabalho por parte da maioria dos socialistas adeptos da teoria da utilidade final e do equilíbrio econômico,6 diversas teses da evolução mar­xista foram sendo pouco a pouco eliminadas. Bernstein'7 desfere rudes gol­pes nas teorias da concentração, da proletarização e das crises, contra as quais acumula fatos que as infirmam. Este marxista indica, com grandes pretensões científicas, havia o mestre muitas vezes antecipado as suas con­clusões sem demonstrá-las e, pois, as estatísticas 8 e as observações das quais se servia perdem, assim, grande parte de seu valor objetivo.

O socialismo, depois de Bernstein, deixou de acreditar na realidade da tese catastrófica. Ora, Marx, conforme acentuamos, deixara em *uma obscuridade proposital tudo quanto dizia respeito à organização da futura sociedade. E não se tendo, muito menos ainda, demonstrado como se da­ria a evolução fatal no sentido da sociedade coletivista, muito difícil se tor­nou continuarem mantendo em uma forma vaga e imprecisa os objetivos visados pelo socialismo e os meios de que se serviria para a sua conse­cução. "Como poderemos trabalhar imbuídos de uma paixão revolucioná­ria, em prol do advento de uma nova ordem, se impossível é adivinhar-lhe, pelo menos, os traços essenciais?" — escreveu Jaurès.

O socialismo post-marxista, com a diluição da tese catastrófica, per­deu o caráter fatalista; em contraposição, enriqueceu-se com a integração de elementos espiritualistas, dentre os quais um dos principais é o volun­tarismo. A vontade do homem deve intervir, a fim de se dissiparem os erros do passado. Deve atuar também para que sejam lançadas as bases da sociedade e da organização econômica, possibilitando-lhes a evolução no sentido da justiça e da moral, de então em diante reintegradas nas fi­nalidades do socialismo.

§ 2.° — O programa de reformas imediatas e progressivas

Este voluntarismo acarreta a aplicação de um programa de reformas diversas. Estas serão empreendidas através da ação político-governamen-tal. Trata-se de obter, através do sufrágio universal,9 mandatos parlamen-

Z> • r 5 ° , q u e . r e s s a l t a de maneira m u i t o interessante a obra de R O G E R E. L A C O M B E : ec/in de l'Individualisme?, P a r i s , 1937. E s s e s o c i a l i s m o " h u m a n i s t a " d e s e n v o l v e - s e sob for­as diversas. M a r c a uma tendência de se desprender da d i a l é t i c a marxista e de voltar ao pen­

samento de Descartes e de Spinosa (crít ica dessa e v o l u ç ã o , em Maixisme du XXème. siècle de Roger G A R A U D Y , Paris , 1966, p. 296).

• ° - C f - A - L A B R I O L A : i n Revue Socialiste, 1889, tomo I ; B . C R O C E : Materialismo sto-nco e Economia Marxista, 1900.

g S o c ' f , i s m e Théorique et Social-démocratie, 1889; Socialisme et Science, Paris , 1903.

nor I I T T T T T O h a s d a r ' e s t a t ' s t i c a s e m p r e g a d a s por M A R X foram postas em e v i d ê n c i a t a m b é m 9 M i r n L F ' Sozialismus und kapitalistiche Gesellschaitsordnung, 1892.

n ," M A C - D O N A L D : Syndicalism (Le socialisme viendra par le Parlement ou ne viendra "as au tout. É a própria idéia do Labour Party).

Page 250: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tares no governo, ou mesmo — tal como se verificou na Inglaterra, em 1945 — um governo inteiramente socialista. Foi nesse sentido que, na Alemanha, atuou a "social-democracia", na Dinamarca e na França, o par­tido socialista 10 e, na Inglaterra, o partido trabalhista.1 1

As reformas não serão, aliás, tentadas tão-somente no plano político, mas se estenderão, também, ao plano profissional. Vai-se cogitar, então, da constituição de sindicatos 12 que organizarão os interesses da classe operá­ria, de cuja defesa se incumbem.

No plano econômico a constituição de cooperativas possibilitará a ob­tenção de certa melhoria do nível de vida dos trabalhadores. Este movi­mento cooperativista desenvolveu-se sobretudo na Bélgica e na Inglaterra; neste último país, passou, depois de Owen, a constituir um precioso ins­trumento de reforma socialista.13

Tratar-se-á, pois, de obter também a transformação dos monopólios privados em monopólios públicos, a multiplicação das gestões públicas di­retas (régios directs),1* a fim de se chegar à "nacionalização industriali­zada". 1 5

E, por fim, no plano jurídico, julgam certos socialistas que, interpre-tando-se melhor o direito atual, seria possível atender aos reclamos do so­cialismo moderno e adotar as reformas por este propostas.

O socialismo reformista existe atualmente em todos os países, reves­tindo em cada um deles traços característicos peculiares;1 6 e, onde quer se desenvolva, o marxismo é relegado a segundo plano. 1 7 Bernstein escreve­rá: "O fim nada é, o movimento é tudo."

1 0 . N o s E s t a d o s U n i d o s d a A m é r i c a d o N o r t e , a F e d e r a ç ã o A m e r i c a n a d o T r a b a l h o é u m a o r g a n i z a ç ã o s i n d i c a l p o d e r o s í s s i m a ; t e m p o r o b j e t i v o a e m a n c i p a ç ã o d o s t r a b a l h a d o r e s ; p a r a c o n s e g u i - l o r e p e l e r e s o l u t a m e n t e a l u t a d e c l a s s e s e a g u e r r a s o c i a l .

1 1 . E n t r e o s p r i n c i p a i s r e p r e s e n t a n t e s d e s s e s o c i a l i s m o , i n d i q u e m o s n a F r a n ç a , c e m J A U ­R È S , L É O N B L U M e A N D R É P H I L I P ; n a B é l g i c a , E M I L E V A N D E R V E L D E ; n a I n g l a ­t e r r a , B E A T R I C E e S Y D N E Y W E B B (Histoire d u Tradeunionisme, 1 8 9 4 ; Industrial democra-cy, 1 8 9 8 ; J . H O B S O N , B E R N A R D S H A W , G . D . H . C O L E L O Y D G E O R G E , M A C - D O -N A L D e t c . L e r de G . D . H . C O L E : An History o f the Labor Party írom 1914, L o n d r e s , 1 9 4 8 .

S o b r e o s p r o b l e m a s g e r a i s d o s o c i a l i s m o c o n t e m p o r â n e o , i n d i c a m o s o l i v r o d e J O H N E A T O N , Socialism in the Nuclean Age, L o n d r e s , 1 9 6 1 , t r a d u z i d o s o b o t í t u l o : Socialismo Con­temporâneo, R i o , 1 9 6 2 .

1 2 . L A B R I O L A , A . e o u t r o s : Syndicalisme e t Socialisme, P a r i s , 1 9 0 8 ; P a r i s , 1 9 0 9 ; L E O -N E , E N R I C O : I I Sindicalismo ( 2 . ' e d . ) , M i l a n , 1 9 1 0 ; C A R C A N A R G U E S : Sur l e Mouvement Syndicaliste Réformiste, P a r i s , 1 9 1 2 ; L o u i s P . : C H A L L A Y E F . : Syndicalisme Révolutionnaire et Syndicalisme Européen, P a r i s , 1 9 1 4 ; S O L A N O , E. G . ; El Sindicalismo en la Teoria y en la Práctica, B a r c e l o n a , 1 9 1 9 ; L E R O Y , M A X I M E : Les Techniquts Nouveiles du Syndicalisme, P a ­r i s , 1 9 2 1 .

1 3 . E . P O I S S O N : L a Republique Coopérative, P a r i s , 1 9 2 2 ; V A R L E Z : Rapport General sur VÉconomie en Belgique ( E x p o s i ç ã o u n i v e r s a l de 1 9 0 0 ; S . e B. W E B B : Examen de la Doctrine Syndicaliste.)

1 4 . B R O U S S E : La Proprieté Collective et les Services Publics. 1 5 . M A X I M E L E R O Y , o p . c i t . 1 6 . E s t a a f o r m a g e r a l d o s o c i a l i s m o i n g l ê s , q u e r s e t r a t e d a s Trade Unions, d o Socialis­

mo Fabiano ou do Labour Party ( c f . H Y N D M A N N , The Historical Basis oí Socialism in En-gland). E s t a t a m b é m a f o r m a d o s o c i a l i s m o n o r t e - a m e r i c a n o , t a l c o m o e x i s t e n a American Fe-deration of Labour. Na Á u s t r i a , A N T O N M E N G E R : D r o i r ou Produit Integral du Travail 1 8 8 6 , na R ú s s i a , a n t e s de 1 9 1 7 , P I E R R E S T R U V E : Notes Critiques sur l a Question du Déve-loppement Économique de la Russie, 1 8 9 4 ; na F r a n ç a , J O S E P H S A R R A U T E : Socialisme d'Oppo-sition, Socialisme de Gouvernement et Lut'e de Classes, 1 9 0 1 ; A. M I L L E R A N D : Le Socialisme Réformiste, 1 9 0 0 ; n a I t á l i a , B I S S O L A T T I , T U R A T I : Critica Sociale, t . I , 1 9 0 0 ; S A V E R I O , M E R L I N O : Formes et Essence du Socialisme.

1 7 . N e s t e s e n t i d o , o p r o f e s s o r R . G O N N A R D e s c r e v e u n a s u a Histoire des Doctrines Éco­nomiques, P a r i s , 1 9 3 0 , p . 5 5 3 : " P a r e c e q u e , n o s f i n s d o s é c u l o X I X , a p ó s e s t a o r g i a d e s i s t e -

Page 251: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A tese reformista vai tomar o lugar da tese catastrófica. A luta de classes é uma concepção abandonada ou pelo menos amenizada e a vio­lência é banida deste socialismo. A solidariedade das classes é levada em consideração e, se a idéia de se substituir o regime de propriedade indivi­dual pelo de propriedade coletiva ainda encontra partidários, é por ex­primir a esperança de melhor realização do ideal democrático e de igual­dade de direitos.1 8

Mas, ao lado deste socialismo pacífico existe um socialismo revolu­cionário, no qual se nota de novo profunda influência de Marx. Na ver­dade, conforme escreve o professor Gaétan Pirou, assiste-se, há um século, "alternadamente e, por vezes a um tempo, ao progresso e à crise do mar­xismo". 1 9

Seção II

0 SOCIALISMO REVOLUCIONÁRIO OU EXTREMISTA

O socialismo revolucionário se divide em duas correntes principais: o sindicalismo revolucionário e o bolchevismo.

§ 1 — O sindicalismo revolucionário

Esta corrente é formada por influências doutrinárias muito diversas. Do marxismo, adota a noção de classes. De Proudhon e dos anarquistas, o antiestatismo e a concepção libertária. Em William James e Hegel irá procurar a justificativa para a ação. Foi levado, assim, "à apologia da violência" pela ação direta. Todos os meios devem ser empregados con­tra o capitalismo: o "boicote", a fim de se conseguir a sujeição do patrão às reivindicações dos operários; a "sabotagem" dos produtos e das máqui­nas, à fim de reduzir a produção em quantidade e baixar a qualidade; a greve parcial, tendo em vista alimentar o ardor bélico do operário. A gre­ve geral que, até há pouco, não passava de um mito, e à qual aderem os sindicalistas revolucionários, destinada, como é, a substituir o mito da evo­lução catastrófica, de então em diante abandonado.

Necessário é manter a classe obreira em um espírito de ofensiva be­licosa; e em virtude de apresentar-se ao regime democrático como susce­tível de moderar a violência da concepção da luta de classes e, por conse­guinte, reduzir o ardor combativo da classe proletária, atacam-no veemen­temente os sindicalistas revolucionários. m a s e de doutrinas que constitui a história do s o c i a l i s m o desde a R e v o l u ç ã o , certo número de espíritos realistas se. tenha, em todos os países, cansado das sut i l idades da análise e da c o n s ­trução, para se juntar a um ponto de v i s t a p r a g m á t i c o e não pedir à doutrina s o c i a l i s t a m a i s que uma orientação geral , fora de todo programa r í g i d o e a b s o l u t o ; daí o que se c h a m o u s o c i a ­l ismo ^ reformista, que no seu l i m i t e se transforma, s e g u n d o a feliz expressão de M. M é t i n , no s o c i a l i s m o sem doutrina."

18. A . P H I L I P , ob. cit. 19. Introduction à Vtccnomie Politique, Paris , 1939, p. 247.

Page 252: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O sindicalismo revolucionário sofreu também a influência do proudho­nismo e do anarquismo, tomando-lhes de empréstimo respectivamente o antiestatismo e a concepção libertaria. O ideal do sindicalismo revolu­cionário é uma produção e uma repartição livres e um livre consumo, de acordo com os gostos e as necessidades de cada um. O sindicalismo deve acarretar a supressão do Estado e de toda e qualquer coerção. Nas suas finalidades aproxima-se, pois, conforme veremos, da doutrina bolchevista. O sentimento de dignidade e de orgulho do trabalho bem executado deve ocupar o lugar do interesse pessoal e da busca do lucro. A disciplina de classes será substituída pela disciplina da produção. O sindicalismo revo­lucionário toma também de empréstimo ao sansimonismo uma das suas fórmulas básicas: "A administração das coisas deve ser substituída pelo governo dos homens."

Para atingir este ideal, a classe operária deverá agrupar-se no sindicato, o agrupamento de classes por excelência, uma vez que na maioria dos ca­sos abrange tão-somente trabalhadores manuais, únicos dignos do título de proletários. O sindicalismo aproxima-se do marxismo, por ter coma ca­racterísticas um proletarismo exclusivista e o desprezo pelos intelectuais. O sindicato é também um agrupamento natural, uma vez que representa o centro necessário de reunião dos operários durante a maior parte do dia. É, portanto, um instrumento perfeito de luta de classes, instrumento cuja expansão Marx teria, por certo, desejado.

Este sindicalismo revolucionário tem seus teóricos: de fato, foram al­guns intelectuais que imprimiram um aspecto teórico, assaz brilhante, a essa doutrina que tão-somente reconhece o valor do trabalho manual. 2 0

Com efeito, trata-se de um movimento acantonado quase que exclusi­vamente nos países latinos da Europa: França, Itália, Espanha. 2 1

§ 2 . ° — 0 bolchevismo e o socialismo na URSS 22

O bolchevismo consiste na recente junção do coletivismo marxista com o anarquismo. Trata-se de uma doutrina russa. Russa pelos seus princi­pais representantes teóricos 23 e pelo país onde se verificou a sua realiza­ção mais importante e também mais antiga.

20. Na F r a n ç a : E D . B E R T H : Les Dialogues Socialistes, 1901; Les Nouveaux Aspects du Socialisme, P a r i s , 1908; Les Méiaits des Intellectuels, Paris, 1914; H U B E R T L A G A R D E L -L E : Le Socialisme Ouvrier, Paris, 1 9 1 1 ; G E O R G E S S O R E L : Réiléxions sur la Violence. P a r i s , 1908; n a I t á l i a , L E O N E P A N U N C I O etc.

2 1 . W . S O M B A R T , ob. cit., L A S K I N E , ob. cit., p . 78, analisam a s razões c o m p l e x a s des­ta preferência dos países latinos pelo s i n d i c a l i s m o revolucionário. Sobre o s i n d i c a l i s m o revolu­cionário, ler p r i n c i p a l m e n t e : G A * E T A N P I R O U : Georges Sorel, Paris , 1927: Proudhortisme et Syndicalisme Révolutionnaire, Paris, 1910; F R E U N D : G. Sorel, Francfort , 1932.

22. Bolchevik significa majoritários: é o nome dado ao partido pelo fato de ter ele obtido a maioria no Congresso de B r u x e l a s - L o n d r e s , em 1908. O f i c i a l m e n t e o part ido foi bat izado com o nome de partido comunista (bolchevista). Cf. neste ponto A N T O N E L L I : Russie Soviétique; G I D E e R I S T , ob. cit., p. 762.

2 3 . L ê n i n (1870-1924), Stalin, T r o t s k y , Boukharine, Z i n o v i e v e o h ú n g a r o V a r g a . Sobre L ê n i n : B O U K H A R I N E : Léninenmarxiste. Paris . 1925; G O R I : Lénine, P a r i s 1924; K E R -J E N T S S F : Vie de Lénine. Paris, 1937; S T A L I N : Lénine, Paris , 1934; T R O T S K Y : Vie de

Page 253: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O bolchevismo vai buscar no coletivismo marxista a forma política e econômica da sua fase provisória: a ditadura do proletariado. Constitui o Estado, aliás, na doutrina bolchevista, tal como no marxismo, um orga­nismo de coerção, incumbido de assegurar o domínio de uma classe sobre a outra. O Estado capitalista representava, para Marx, a ditadura da mi­noria sobre a maioria; o Estado bolchevista será a ditadura imposta pela maioria à minoria. Viva permanecerá, pois, a noção de classes.

O objetivo desta ditadura do proletariado é a preparação da futura sociedade, cuja forma será o comunismo integral. A duração desta dita­dura provisória é proporcional ao tempo necessário para que se verifiquem a dissolução da ordem e o esmagamento do. espírito capitalista e burguês. Este esmagamento constitui uma obra gigantesca, por se tratar de destruir a burguesia, no país e fora dele, não apenas no que tem de material, mas no próprio espírito. Para tanto necessária se torna uma longa educação: o homem deve ser transformado e, por conseguinte, imprescindível será to­mar-se a criança, a fim de se moldá-la pelo novo espírito, extirpando-lhe todos os traços de atavismo burguês.

Nesta fase preparatória o regime econômico será o do coletivismo au­toritário e centralizado. Todos os meios de produção, na indústria, na agricultura e no comércio, serão nacionalizados. A produção ficará a car­go dos estabelecimentos públicos, que tomarão o lugar das empresas priva­das. 2 4 A repartição da produção por entre os respectivos tomadores far--se-á por via autoritária, sendo as decisões tomadas pelos órgãos públicos. 2 5

Mas, tem-se aí apenas uma simples etapa que deve conduzir ao comunismo integral, chamado por Lênin de "fase definitiva e superior da sociedade co­munista".2 6

Tal sociedade se caracterizará, do ponto de vista político, pelo desa­parecimento da noção de Estado: este organismo, gerado pelos antago­nismos de classes, desaparecerá com a desaparição da causa que lhe deu

Lênine, Paris, 1936; R I S T : La Doctrine Sociale de Lénine, in Revue. Écon. Pol., P a r i s , s e t e m ­bro, 1919. E x c e l e n t e biografia de L Ê N I N , acompanhada de uma bibliografia, é a de J E A N S A I N T - G E R M È S : Lénine et la Révolution Russe, in Mélanges oííerts au prol. H. Truchy, P a ­ris, 1938, W A L T E R , G., Lénine, Paris , 1950; H E N R I L E F È B V R E : Pour Connaitre la Pensée de Lénine, Paris , 1957; Problèmes Actuels du Marxisme ( P . U . F . ) , 1958; J. L A L O Y : Le So­cialisme de Lénine, P a r i s , 1967.

Dentre as obras p r i n c i p a i s de L É N I N , i n d i c a m o s : La Maladie Inlantile du Communisme, P a ­ris, 1921; La Révolution Prolétarienne et le Rénégat Kautsky, Paris , 1921; L'État et la Révolu­tion, Paris, 1921; L'Imperialisme Dernière Étape du Capitalisme, 1916. ( A s obras c o m p l e t a s de L Ê N I N foram p u b l i c a d a s em 8 vo ls . , em 1938, em P a r i s , Delas E d i ç õ e s Sociais Internacionais .)

O b r a s de S T A L I N , p r i n c i p a l m e n t e : Des Príncipes du Léninisme, Paris, 1936; Doctrine de l'U.R.S.S., Paris, 1938; The Theory and Practice of Leninism, Londres, 1925; Bolchevism, Londres, 1925; Leninism, N o v a Iorque, 1929, 1933. Scbre a doutrina de S T A L I N , B O R I S S O U -V A R I N E : Staline, Paperçu Historique du Bolchevisme, Paris , 1935. De V A R G A , ler seu l i v r o publicado em 1956: Changements dans 1'tconomie du Capitalisme Resultam de la Seconde Guerre Mondiale, e a b r o c h u r a : L'agravation de la Crise Générale du Capitalisme.

24. E s t a parte do programa é real izada na U R S S . E i s as e s t a t í s t i c a s fornecidas sobre esse ponto por J. B Ê R N A R D E S : La Conception Marxiste du Capital, p. 343, P a r i s , 1952 (ver quadro na página s e g u i n t e ) .

25. L Ê N I N declarou, com franqueza, que esta ditadura do proletariado não assegurará a j u s t i ç a nem a l i b e r d a d e : o direito de greve, por e x e m p l o , na maioria dos casos concedido pe­los regimes burgueses aos seus trabalhadores, não e a d m i t i d o no regime b o l c h e v i s t a .

26. A expansão internacional da ditadura do proletariado ocupa um importante lugar na uoutrina b o l c h e v i s t a . D e v e m ser v e n c i d a s as resistências dos p a í s e s burgueses e e v i t a d a s suas r ' a Ç O e s de ordem p o l í t i c a e econômica. 4 o que V A R G A chama de "problema de i s o l a m e n t o " . {Les Problèmes Économiquès de la Dictadure du Prolétariat.)

Page 254: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

origem: uma época da liberdade sem limites surgirá. Lênin previu gra­dativa realização dessa sociedade. Os trabalhadores assalariados constitui­rão, então, a classe exclusiva e única, sobre a qual não mais se exercerá coerção alguma. A produção passará de autoritária a livre: o operário, consciente das elevadas virtudes do trabalho, agirá por si, movido pelas necessidades naturais da vida, executando suas tarefas independentemente de disciplina ou fiscalização. Na fábrica livre há lugar para aplicação das fórmulas do sansimonismo: "cada um produzirá de acordo com a sua ca­pacidade" e a repartição da produção será feita naturalmente, sem confli­tos ou injustiças, "de acordo com as necessidades de cada um". E pouco a pouco, em função da expansão de forças produtivas, que o novo regime possibilitará, e das vantagens incontestáveis da liberdade em comparação com a coerção, as quais os homens não poderão deixar de reconhecer, a sociedade comuno-anarquista estender-se-á de país a país e de continente a continente, até reinar sobre o mundo inteiro.

Eis como se apresenta a doutrina bolchevista em suas linhas gerais.

Apropriação dos meios de produção

1928 1936 Apropriação dos meios

de produção Indús­tria

Agricul­tura

Indús-u ia

Agricul­tura

Propriedade socialista: do Estado 96,6 62,6 97,35 76 cooperativa 1,3 1 2,6 20,3

Total 97,9 63,6 99,95 96,3 Propriedade privada:

dos kolkosianos — 0,1 — 3,1 dos pequenos camponeses e artesãos 2 39,1 0,05 0,6

Propriedade capitalista • 0,1 4,4 — —

Total 100 100 100 100

Parte produtiva de economia socialista na Renda Nacional 44% 44%

Observamos que a ditadura do proletariado é uma concepção que Lê­nin foi buscar em Marx 27 e apenas a reforça e desenvolve. Para Lênin, o proletariado é não somente constituído pelo operário da usina, mas tam­bém pelo intelectual e pelo camponês.

É com o apoio desse proletariado mais amplo que o partido deve preparar a revolução, sem esperar que o movimento operário se realize espontaneamente. Lênin, ao contrário de Marx, não crê no desapareci­mento fatal do capitalismo. "O poder não se dá, é necessário tomá-lo, segurá-lo." É ele profundamente voluntarista e pelo advento da revolução, concede prioridade da política sobre a economia. O proletariado deve to-

27. " E n t r e a sociedade c a p i t a l i s t a e a comunista existe um período de transição, como o correspondente período de transição pol í t ica, no qual o E s t a d o nada m a i s poderá ser que uma ditadura revolucionária do p r o l e t a r i a d o . " K. M A R X : Circulaire du 5 mai 1S75, publicada no Neue Zeit, 1891, tomo X X , p a s s a g e m citada por G I D E e R I S T , ob. cit., p. 765, m fine.

Page 255: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mar o poder quando o momento lhe parecer favorável, sem esperar que o capitalismo sucumba sob o peso de suas contradições internas. Lênin sus­tenta que o capitalismo, transformado em "imperialismo" (O imperialis­mo, estádio supremo do capitalismo, 1916) deve desaparecer por ações externas, como guerras entre nações capitalistas, guerras de independência dos povos colonizados.

Essas modificações trazidas por Lênin ao pensamento de Marx tive­ram por fim adaptar o marxismo às condições da Rússia e do Oriente. Forja fórmulas simples de comando, que resume as aspirações das massas, cuja psicologia conhece.

A própria necessidade deste estádio de transição é justificada' pelos autores bolchevistas, em razão da evolução materialista da história, tal qual foi desenvolvida por Marx.

A organização econômica, no decurso desse estádio provisório, con­sistiria em um coletivismo sob o controle total do Estado: a primeira par­te da doutrina é, pois, destituída de originalidade.

Quanto à parte relativa à edificação da sociedade, comunista, é inspi­rada em grande parte em concepções expostas por Bakounine e Kropot-kine em seu "Paraíso Anarquista". Idéias fundamentais como as do antigo antiestatismo, do horror a toda espécie de coerção, dos móveis desinteres­sados para estimular o homem a trabalhar, do desenvolvimento da produ­ção, da organização da distribuição e do consumo, Lênin vai buscar es­sencialmente nas obras dos anarquistas modernos. 2 8

Essa sociedade comunista era relegada, até ao presente, no domínio das utopias. Ei-la agora solidamente colocada em sua fase de realização: o programa do partido comunista soviético de 1961, discutido e aprovado pelo XXII Congresso do Partido Comunista da URSS (outubro de 1961), indica como e quando será atingido o comunismo total e determina o fu­turo do comunismo soviético e internacional durante as duas próximas dé­cadas. Trata-se de documento de alcance mundial, que deve ser estudado atentamente.

Esse programa de 1961 é o segundo da experiência soviética.29 O pri­meiro foi redigido em 1919, dois anos após a tomada do poder revolucioná­rio pelos bolchevistas. O texto redigido durante as convulsões da guerra civil procurava conciliar os fins ambiciosos da doutrina de Marx e Lênin com a difícil situação política e econômica. O país estava cercado, invadi­do em diversas partes, isolado. A maior parte de sua indústria havia sido destruída durante a guerra: sua economia estava tecnicamente atrasada. Hoje, a URSS é politicamente forte, líder de um conjunto de nações socia­listas, que representa mais de um terço dos habitantes do mundo e influi

28. B a k o u n i n e : Oeuvres, p u b l i c a d a s em francês, em 4 vols . , 1895, 1907, 1908, 1909; H. F. K A M M S K Y : B a k o u n i n e , La Vie d'un Révolutionnaire, 1938; K R O P O T K I N E : Paroles d'un Re­volte, 1885; La Conquête du Pain, 1890; L'Anarchie, sa Philosophie, son Ideal, 1896; L'Entr' aide, 1 9 0 6 . . .

29. De fato, é o terceiro programa do partido b o l c h e v i s t a russo. O primeiro, aprovado em 1903, pelo II C o n g r e s s o do Part ido, tinha por fim organizar a luta contra o regime czarista -contra o regime b u r g u ê s , e estabelecer a ditadura do proletariado.

Page 256: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

diretamente nos partidos comunistas dos países não-socialistas. Possui uma economia planificada, desenvolvida. Sua produção nacional bruta a colo­ca no segundo lugar entre as potências industriais.

São, portanto, problemas bem diferentes daqueles de 1919 que devem resolver hoje os responsáveis soviéticos: um novo fundamento lógico da doutrina se impunha. Forneceu-o o novo Programa do Partido Comunis­ta da URSS. Considerando que a edificação da sociedade socialista está agora terminada, esse programa é apresentado como verdadeiro plano de construção da sociedade comunista, que deve permitir à URSS "tnfalivel-mente e sem guerra, conduzir o movimento proletário internacional à vi­tória sobre o capitalismo".3 0

Esse documento é, pois, importante:

— de um lado porque busca realizar na URSS a passagem da so­ciedade socialista à sociedade comunista, última fase da evolução marxista;

— de outro lado, porque o documento, por sua orientação doutriná­ria e também pela ação que determina, tem projeção mundial.

1. O desenvolvimento econômico atingido pela URSS permite-lhe prever para breve a era da abundância. Será esta a característica da so­ciedade comunista. Sobre os progressos da Economia soviética nos últi­mos dois anos não faltam as precisões:

— A indústria pesada, já poderosa, produzirá em 1981 seis vezes mais (250 milhões de toneladas de aço bruto) do que em 1961; seu progresso será objeto de toda a atenção do Partido porque condiciona o desenvolvimento das outras forças produtivas e da força militar do país.

A produtividade do trabalho na indústria deverá mais do que quadru­plicar em vinte anos, o que permitirá então à irdústria soviética ultrapas­sar "de duas vezes o nível atual da produtividad do trabalho nos Estados Unidos e, quanto à produtividade por hora, ultrapassá-la muito mais em virtude da redução da jornada de trabalho na URSS". .

Para a agricultura, as previsões não encontram, nos resultados obti­dos até aqui, bases tão sólidas. Assim, a tarefa mais importante do de­senvolvimento econômico da URSS será a de aumentar o volume global da produtividade agrícola: deverá mais do que duplicar em 10 anos, tri­plicar em 20 anos; a produtividade deverá sextuplicar durante esse perío­do. "A União Soviética ultrapassará no decorrer da primeira década, a

30. "O objetivo supremo do P a r t i d o é construir a sociedade comunista, em cuja bandeira está e s c r i t o : 'De cada um, s e g u n d o sua c a p a c i d a d e ; a cada um, s e g u n d o suas necessidades' . F i e l ao internacionalismo proletário, o P a r t i d o Comunista da U n i ã o S o v i é t i c a obedece sempre ao apelo de c o m b a t e : Proletários de todos os países, u n i - v o s ! O Partido considera a editicaçâo comunista na URSS como uma grande tarefa internacional do povo soviético, tarefa que respon­de aos interesses do proletariado internacional , de toda a h u m a n i d a d e . " E s s a s c i tações, bem como as seguintes, foram e x t r a í d a s do " P r o j e t o de Programa do P a r t i d o C o m u n i s t a da U R S S " , p u b l i c a d o por " N o v o s R u m o s " , R i o , set. 1961.

Page 257: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

produtividade norte-americana por habitante, em produtos agropecuários fundamentais." A importância das medidas previstas para o desenvolvi­mento acelerado da agricultura não deixa dúvida quanto à mediocridade dos resultados obtidos nesse setor. A resistência psicológica dos rurícolas — 60% da população — exige, para ser vencida, a continuação e a acentuação de reformas profundas, não somente para transformar aos pou­cos as explorações coletivas em explorações estatais, mas também para ex­tirpar esse instinto da propriedade privada, profundamente integrado na mentalidade do camponês.

Se esses diversos fins forem atingidos em 1981, será possível "apro­ximar-se consideravelmente da realização prática do princípio comunista de distribuição segundo as necessidades". No fim dos dois decênios pre­vistos, os fundos sociais de consumo constituirão aos poucos a metade da soma de todos os rendimentos reais da população. Isso permitirá à socie­dade comunista garantir a todos seus cidadãos numerosos bens e serviços gratuitos, em particular o ensino em todos os graus, a assistência médica e o fornecimento de medicamentos, o alojamento, o gás, a água, a eletri­cidade, o transporte coletivo urbano, e até mesmo, em grande parte, a ali­mentação, tornando-se as refeições paulatinamente públicas.

Trata-se, em suma, de atingir e ultrapassar o que em numerosos paí­ses capitalistas já é uma realidade. Essas promessas não apresentam em si, portanto, nada de extraordinário e sua realização é provável tanto mais que — para a indústria — correspondem à extrapolação das taxas de cres­cimento dos últimos anos.

Mas, essas promessas devem ser consideradas do ponto de vista do cidadão médio soviético, que acaba de viver anos de sacrifícios e priva­ções e que, se está orgulhoso das descobertas de seus sábios e das reali­zações de seus técnicos, está longe de usufruir ainda condições materiais de existência comparáveis às dos países industrializados não-socialistas.

Essas promessas atingirão igualmente, ou ainda mais, os habitantes dos países subdesenvolvidos: permitem-lhe pensar em termos precisos nes­se bem-estar material que lhe falta e que a jovem geração soviética de hoje conhecerá em vinte anos.

O exemplo não deixa de ser tentador.

Esse balanço da opulência futura apresenta, então, um valor positivo certo. Por outro lado, presta-se a certas observações críticas. Dominada por verdadeira obsessão quanto ao desenvolvimento econômico dos Esta­dos Unidos, que serve de exemplo ao progresso econômico a atingir e a ultrapassar, essa atitude competitiva é vantajosa relativamente às possibi­lidades construtivas do capitalismo.31

3 1 . "O sistema s o c i a l i s t a mundial marcha f irmemente para a vitória d e c i s i v a na c o m p e t i ­ção econômica com o c a p i t a l i s m o . Dentro em pouco terá assegurado sua superioridade sobre o sistema capital ista mundial r e l a t i v a m e n t e ao v o l u m e g l o b a l da p r c d u ç ã o industrial e a g r í c o l a " (Programa, p. 5) .

Page 258: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Entretanto, o que surpreende, e não pode convencer, é a afirmação de que em 1981, quando o programa houver dado seus frutos, a produção industrial soviética deverá ser o dobro da produção americana de hoje, e que a URSS será a maior potência industrial do mundo. Esse raciocínio supõe que nos próximos 20 anos as economias não-socialistas, sobretudo a dos Estados Unidos, permanecerão em ponto morto.

Não é conveniente também atribuir o benefício do rápido progresso econômico realizado pela URSS desde 1919 somente à forma socialista do sistema de produção. Há economias capitalistas que, em nossa época, em menos tempo do que a URSS, atingiram extraordinária produtividade — penso sobretudo na Alemanha Ocidental neoliberal — e, por outro lado, se os países ocidentais que edificaram sua economia industrial no último século houvessem tido à sua disposição os meios incomparavelmente su­periores da técnica moderna, é muito provável que seu desenvolvimento econômico teria sido tão rápido quanto o da União Soviética.

O problema, colocado no plano do nível de vida, não encontra, pois, necessariamente sua solução na imitação do sistema da URSS. Quaisquer que sejam suas realizações desde 1917, quaisquer que sejam suas esperan­ças para 1981, numerosas experiências neoliberais contemporâneas prome­tem e permitem resultados materiais semelhantes e isso sem exigir os mes­mos sacrifícios da parte do indivíduo.3 2

Depois de haver analisado as linhas principais do progresso econômi­co que deve assegurar com a passagem da sociedade socialista à sociedade comunista, o Programa indica as medidas necessárias ao preparo da men­talidade comunista.

É evidente que quanto mais a sociedade soviética se aproximar de um modelo próspero, tanto mais deverá contar com certas reações de con­duta econômica e psicológica individualista. Para eliminá-las, a fim de que não seja posta em perigo a disciplina social que a ditadura do prole­tariado assegurava, até ao momento na sociedade socialista, o Programa entende modificar e modelar a conduta humana e, para esta, prevê no decurso dessas duas décadas um formidável esforço de educação de seus cidadãos dentro do espírito comunista.

O resultados que se buscam são bastante interessantes, a saber:

— A formação de uma consciência comunista é confiada aos cuidados do Partido, que "continuará a desenvolver a teoria de Marx e Lênin com base no estudo dos novos fenômenos da vida da socie­dade soviética e na experiência de liberação revolucionária mundial".

258

32. A competição colocada no plano da produção não é senão um dos elementos da e s c o ­l h a : a situação do indivíduo no s i s t e m a a auotar não é indiferente às n a ç õ e s em busca de e x e m ­plo a seguir. A história do c a p i t a l i s m o é rica em abusos contra o i n d i v í d u o ; mas que dizer da história do socialismo quando se torna mais conhecida, como a da U R S S , D o r exemplo, de­pois da morte de Stal in? D u r a n t e m a i s de 30 anos, isto é, durante a maior parte da e x p e r i ê n ­cia s o v i é t i c a , o "terror s t a l i n i s t a " impôs aos indivíduos, em nome de uma ideologia reconhecida hoje par c i al m e n t e falsa, sacri f íc ios cujo peso e injustiça a c a b a m de ser amplamente c o m e n t a ­dos n o X X I I Congresso d o P a r t i d o C o m u n i s t a . A s e x i g ê n c i a s i d e o l ó g i c a s d o interesse c o l e t i v o parecem infinitamente mais severas para o indivíduo do que as do lucro capital ista.

Page 259: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O comportamento comunista relativamente ao trabalho é colocado no centro da atividade educativa porque "tudo o que é necessário para a vida e o desenvolvimento do homem é criado pelo trabalho". A afirmação da morai comunista repudia a "moral perversa do velho mundo; essa moral comunista é justa e generosa e se opõe às con­cepções e aos costumes egoístas de classe dos exploradores e exprime os interesses e os ideais de toda a humanidade trabalhadora".

Entretanto, para que essa moral possa se afirmar, é preciso que "a superação da sobrevivência do capitalismo na consciência e na conduta dos homens seja objeto de uma luta do Partido para terminar com as manifes­tações de ideologia e da moral burguesa e com os vestígios da psicologia da propriedade privada".

Notemos ainda que o Partido "utiliza os meios de influência científica para educar os homens no espírito da concepção materialista do mundo e superar os preconceitos religiosos, sem admitir ofensa aos sentimentos dos crentes". A instrução pública constitui objeto de particular atenção dos autores do programa, bem como o desenvolvimento da ciência. A esse res­peito, sublinha-se toda a importância dos problemas filosóficos das ciências naturais atuais "à base do materialismo dialético, como uma concepção científica do mundo e único método científico de conhecimento". As ciên­cias sociais" "devem continuar travando decidida luta contra a ideologia burguesa, contra a teoria e a prática dos socialistas de direita, contra o re-visionismo e o dogmatismo, defendendo a pureza dos princípios do mar-xismo-leninismo".

Através desses exemplos, pode-se compreender a importância atribuí­da pelos autores do Programa à formação integral e harmoniosa, no de­correr desta fase de transição para o comunismo, do homem comunista, a fim de que ele "conjugue em si mesmo a riqueza espiritual, a pureza moral e a perfeição física".

Modificar a conduta humana para poder constituir a sociedade comu­nista é um dever essencial e decisivo, tanto mais que a sorte dessa socie­dade dependerá do valor "mesmo de seus indivíduos, já que aos poucos o Estado desaparecerá. O Programa mantém implicitamente a promessa de Lênin quanto à decadência do Estado: "O desenvolvimento histórico conduz inevitavelmente a extinção do Estado" (pág. 15). "Mas para que essa extinção seja possível, é necessário, antes de tudo, edificar uma socie­dade comunista evoluída e resolver definitivamente as contradições entre o comunismo e o capitalismo no plano internacional".

Enquanto se espera a realização dessas condições internas e externas, o Estado subsistirá. A ditadura do proletariado é tradicionalmente man­tida, o papel do Partido é reforçado.3 3 Por outro lado, confere-se aos sin-

. . 3 3 • ,A tarefa do Part ido, principalmente para unificar as diversas nações da U n i ã o So­viética, é m i n u c i o s a m e n t e analisada. ' T r a t a - s e , em p a r t i c u l a r , de formar a futura cultura huma­na única da sociedade comunista, de realizar lutas sem tréguas contra as m a n i f e s t a ç õ e s e as sobrevivências de todo n a c i o n a l i s m o e c h a u v i n i s m o , contra as tendências à l i m i t a ç ã o e ao ex-

Page 260: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

dicatos e às autoridades locais e regionais uma parte ativa na direção do país; o Programa prevê plebiscitos nacionais sobre as principais questões administrativas e insiste sobre as mudanças periódicas dos responsáveis pe­los organismos políticos e econômicos, salvo para aqueles cujas qualidades excepcionais forem reconhecidas como indispensáveis para o bem público.

2. É sobre o ritmo fatal da expansão econômica que repousa a cer­teza da vitória do comunismo, não somente na União Soviética, mas tam­bém no resto do mundo. O Programa retoma com violência as tradicio­nais críticas do marxismo ao capitalismo, insistindo sobre argumentos de um determinismo sem reserva. 3 4

A crítica estende a interpretação marxista-leninista aos acontecimen­tos da política contemporânea para reforçar a certeza do fim próximo do capitalismo.3 5

O diagnóstico sobre a evolução do mundo capitalista dirigido pelos Estados Unidos é, portanto, muito severo: esse mundo agoniza. Se ele pode ainda manter-se no primeiro plano no domínio da produtividade, suas contradições internas não deixarão de condená-lo a desaparecer. Esse de­saparecimento é certo e próximo, agora que triunfa a força liberadora do socialismo.

Esse enfraquecimento fatal do capitalismo permite mesmo esperar sua derrocada total e definitiva, não por meio de uma revolução violenta, como pensava Lênin, mas pela ação de meios parlamentares, com a condição, todavia, que a ditadura do proletariado tome o poder. Nesse caso, nem a revolução, nem a contra-revolução não são mais para a URSS meios ex­portáveis para assegurar a passagem do capitalismo para o socialismo. Di­rigindo-se aos países do Terceiro Mundo, aos países subdesenvolvidos, a ortodoxia marxista-leninista torna-se singularmente conciliadora: o Progra­ma admite que a evolução do capitalismo ao socialismo possa ser realizada por um regime de "democracia popular", fórmula mais moderada do que a da ditadura do proletariado e mesmo, para os países subdesenvolvidos, por um regime de "democracia nacional", fase preparatória caracterizada

c l u s i v i s m o nacionais, à i d e a l i z a ç ã o do p a s s a d o e à d i s s i m u l a ç ã o das c o n t r a d i ç õ e s sociais na his­tória dos povos, entre os c o s t u m e s e os hábitos c a d u c o s . . . A l i q u i d a ç ã o das manifestações de s o c i a l i s m o . . . e t c . . . p . 16, § I V ; As tarefas do Part ido no terreno das relações nacionais. A recente (1968) intervenção da U R S S na T c h e c o s l o v á q u i a é inspirada nesse desejo de v o l t a ao m o n o l i t i s m o comunista.

34. Um inelutável processo de d e s a g r e g a ç ã o apoderou-se do c a p i t a l i s m o (p. 5, § I V ) . O i m p e r i a l i s m o perdeu i r r e v o g a v e l m e n t e o poder sobre a maioria da h u m a n i d a d e . . . O conteúdo p r i n c i p a l , a direção principal e as p r i n c i p a i s part icularidades do d e s e n v o l v i m e n t o histórico da h u m a n i d a d e são determinados p e l o s i s t e m a s o c i a l i s t a mundial . O s o c i a l i s m o substituirá i n e v i t a ­v e l m e n t e , per toda parte, o c a p i t a l i s m o . E s t a é a lei objetiva do d e s e n v o l v i m e n t o social (p. 1 ) . O i m p e r i a l i s m o é impotente para deter o irresist ível processo e m a n c i p a d o r . . . A i n e v i t a b i l i d a -de histórica da passagem do c a p i t a l i s m o ao s o c i a l i s m o . . . (p. 1 ) .

35. A d e s a g r e g a ç ã o do s i s t e m a c o l o n i a l . . . "O a g u ç a m e n t o das c o n t r a d i ç õ e s do imperial is ­mo d e v i d o ao desenvolvimento do c a p i t a l i s m o cosmopolita de E s t a d o e ao crescimento do m i l i ­t a r i s m o " ; "o recrudescimento da i n s t a b i l i d a d e interna e da p u t r e f a ç ã o da economia capital ista (p. 5 ) , o que se manifesta na crescente incapacidade do c a p i t a l i s m o em uti l izar integralmente as forças produtivas (baixos ritmos de crescimento na produção, crises periódicas, s u b u t i l i z a ç ã o permanente d o potencial d e p r o d u ç ã o , d e s e m p r e g o c r ô n i c o " . . . e t c ) .

Page 261: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

pela "união da burguesia nacionalista 3 6 e dos verdadeiros democratas na luta sagrada contra o imperialismo".

Moderação ainda da doutrina é a afirmação da possibilidade da coe­xistência pacífica com países não-socialistas e correção mesmo do pensa­mento de Lênin sobre a inevitabilidade das guerras.

Coexistência pacífica, isto é, um "novo tipo de relações internacionais imposto pelo socialismo ao imperialismo" e que repousa sobre os princí­pios "da paz, da igualdade, da autodeterminação dos povos, do respeito pela independência e pela soberania de todos os países".

Coexistência pacífica tanto mais possível já que a não fatalidade da guerra é proclamada; a URSS, diante do enfraquecimento do capitalismo sente-se capaz de impor a paz soviética ao resto do mundo, sem conflito, essencialmente pela posse da força militar mais importante, que desapare­cerá, aliás, quando a URSS houver atingido a supremacia mundial. Até que isto seja uma realidade, a URSS "possuirá, para a sua defesa e do mundo socialista, as mais modernas armas atômicas, termonucleares e fo­guetes de toda espécie".

A afirmação de uma política de coexistência pacífica, bem como a da não-fatalidade da guerra, porque correspondem a um abrandamento e a uma modificação da doutrina socialista ortodoxa, provocaram sérias di­vergências de opiniões entre as nações socialistas, sobretudo entre a China Popular e a Rússia Soviética.

A URSS tornou-se nação forte e espera, nos próximos vinte anos, ser a mais próspera do mundo. Nessas condições, o recurso ao terror estali-nista não lhe parece mais necessário, nem a eventualidade de conflitos ar­mados com as outras nações. Ao contrário, a corrida armamentista e, mais ainda, uma guerra, seriam contrários ao sucesso de seu programa de cons­trução do comunismo.

A China Continental, com doze anos de experiência socialista e longe de pensar na abundância deve lutar com dificuldade contra a penúria e a miséria. Sua revolução não atingiu a etapa de estabilização que permite à URSS modificar, moderando, as teorias de base do passado. Isso explica porque nos últimos congressos dos partidos comunistas a China se apre­sente como defensora da ortodoxia comunista e —.no que concerne aos meios de internacionalização do comunismo — inspire-se nas mais puras exigências trotskistas, expressas em termos estalinistas.

36. O " n a c i o n a l i s m o " é considerado e u t i l i z a d o de maneiras diferentes nesse P r o g r a m a , segundo se trate do n a c i o n a l i s m o burguês dos p a í s e s de democracia nacional, que d e v e ser en­corajada conforme o princípio leninista da c o e x i s t ê n c i a p a c í f i c a , ou do n a c i o n a l i s m o entre as nações da U n i ã o S o v i é t i c a , que deve ser r e s p e i t a d o e d i r i g i d o pelo Partido, em nome de firme aplicação da p o l í t i c a nacional de L Ê N I N (p. 16 do P r o g r a m a ) , ou do n a c i o n a l i s m o conside­rado como arma p o l í t i c a e ideológica fundamental de que se serve a reação internacional con­tra a unidade dos p a í s e s s o c i a l i s t a s (p. 5) , o que c o n d u z " o s comunistas a considerarem obri­gação primordial, educar os trabalhadores no e s p í r i t o de internacionsilismo e do p a t r i o t i s m o socialista, da i n t r a n s i g ê n c i a ante quaisquer m a n i f e s t a ç õ e s de nacionalismo e c h a u v i n i s m o

• • • Atuando contra o n a c i o n a l i s m o e o e g o í s m o n a c i o n a l , os comunistas, ao m e s m o t e m p o , dao sempre a m á x i m a a t e n ç ã o aos sentimentos n a c i o n a i s das m a s s a s . "

Page 262: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O Programa do Partido Comunista da URSS e as discussões que pro­vocou no XXII Congresso de Moscou (1961) consagram a existência de diversos comunismos, não somente no plano internacional devido às diver­gências de interpretação da doutrina pelos dirigentes das diversas demo­cracias populares, mas também no interior mesmo do partido. Nesse sen­tido, o Congresso e o Programa condenam definitivamente as idéias de Stalin e desfecham a luta contra o antipartido e seus membros ainda vi­vos. Esse fim do monolitismo comunista é um fato que pode trazer pesa­das conseqüências; produz-se em oposição à recomendação enérgica* longa­mente expressa no Programa (pág. 5) da necessidade de manter "a mais estreita união entre os países socialistas" a fim de não orientar "para uma construção isolada do socialismo à margem da comunidade mundial dos países socialistas, o que constituiria uma posição reacionária e perigosa, que alimentaria as tendências nacionalistas burguesas e poderia conduzir à perda das conquistas socialistas."

Em resumo: O Programa do Partido Comunista da URSS, de 1961, é um "do­

cumento importante. Abre uma fase nova na evolução do socialismo na URSS, preparando a passagem da sociedade socialista à sociedade comu­nista. Verdadeiro plano de construção do comunismo é um balanço de realizações futuras, suficientemente eloqüentes para permitir ao povo so­viético vislumbrar, com otimismo, no horizonte, uma rápida melhoria de seu nível de vida. Esse é seu aspecto essencial. A esperança, quando re­pousa no progresso econômico já apreciável a que se juntam as infinitas possibilidades de descobertas e promessas científicas e técnicas espetacula­res, é fonte de esforço e de milagre.

O Programa é também um documento importante devido a sua projeção internacional. Se mantém a fatalidade da vitória do comunismo e da der­rota do capitalismo, afirma a não-fatalidade da guerra e a possibilidade de coexistência pacífica entre nações de regimes econômicos e políticos dife­rentes.

Aí está uma moderação certa da doutrina. Embora desejando colocar-se a igual distância do dogmatismo e do

revisionismo, esse Programa não é menos revisionista em vários pontos importantes da doutrina dos fundadores. O problema do revisionismo dian­te da doutrina de Marx, Engels" e Lênin está, aliás, ultrapassado: uma doutrina elaborada por Marx e Engels há um século, por Lênin há cin­qüenta anos, não pode continuar válida sem a adaptação às condições atuais da psicologia dos homens, das técnicas de produção e das realiza­ções entre nações. Se a influência das doutrinas se manifesta sobre os fa­tos, não esqueçamos que a influência dos fatos sobre a doutrina é igual­mente forte. 3 7

37. Sobre o sistema s o v i é t i c o russo e x i s t e uma bibl iografia m u i t o abundante — e rara­mente i m p a r c i a l — da qual d e s t a c a m o s = K E R E N S K Y : La Révolution Russe, Paris , 1928; La

262 c°"stitution de 1'U.R.S.S., P a r i s , 1935 e 1937; J. L E S C U R E : Les Origines de la Révolution Russe, P a r i s , 1927; La Révolution Russe, le Bolcbevisme, Communisme et N.E.P., Paris, 1929;

Page 263: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ 3 . " — O socialismo marxista e a República Popular Chinesa

A partir de 1949, o marxismo encontrou uma nova e importante apli­cação como doutrina da revolução chinesa. É com ela que a China entra no mundo moderno: seus 750 milhões de habitantes representam os dois terços das populações que vivem atualmente em regime socialista.

Este socialismo chinês emprega a linguagem do marxismo-leninistá. Não somente ele aí se inspira, mas ainda pretende ser dele o representan­te ortodoxo. Entretanto, não se trata de uma transposição pura e simples. Se, de maneira incontestável ele é marcado pelas idéias fundamentais de Marx e Lênin, assim como pelas de Trotsky (notadamente sua teoria de revolução permanente) e pelas de Stalin (em particular sua concepção e técnica do poder), não é menos certo que tais idéias são, por sua vez, in­fluenciadas pelo pensamento milenar da China (sobretudo de Confúcio) e pelo meio demográfico-econômico no qual teve origem e se desenvol­veu a revolução.

O conjunto dá a este socialismo características que lhe são próprias. Eis algumas delas:

— Inicialmente se observa que este socialismo chinês se implanta sem acompanhar a demonstração clássica de Marx, isto é, sem repre­sentar um avanço em relação ao modo de produção capitalista, e sem resultar de suas contradições internas. O caso não é excepcio­nal, nós já o vimos, mas o modelo chinês comporta nesse sentido uma especificidade objetiva bastante acentuada, por repousar na passagem direta de um regime de tipo feudal a um de tipo socia­lista, sem passar pela etapa capitalista. Sem dúvida, Marx só atri­buía um valor relativo à sua teoria da evolução das cinco fases sucessivas, assim como havia percebido a diversidade das formas de passagem de uma estrutura para outra, valendo-se, no seu "O Capital", do "modo de produção asiática". Lênin, igualmente, ad­mitia a possibilidade de "saltar a etapa capitalista" com a condição

Le Bolchevisme de Staline, Paris , 1934; T R O T S K Y : Histoire de la Révolution Russe, P a r i s , 1934; D A D U : Les Conditions du Travail dans la Russie Soviétique, Paris, 1926; M E Q U E T : Le Problème Agraire dans la Révolution Russe, in Annales d'Histoire Économique, 25 de abril de 1930; c. H O O V E R : The Economic Liíe oi Soviet Rússia, N o v a Iorque, 1931; R. M O S S É : L'tconomie Collectiviste, Paris , 1938; F. P E R R O U X : Les Réiormes Agraires en Europe depuis la Guerre (/.- La Russie Soviétique), Paris, 1937; B R O N S K Y : La Monnaie, les Prix et la Cir-culation des Marchandises en U.R.S.S.. in " R e v . É c o n . I n t e r n a t i o n a l e " , iulho de 1937; H A R R Y W. L A I D L E R : History o i Socialist Thought, N o v a Iorque, 1935, 4." parte, caps. X X I V , X X V , X X V I , X X V I I ; T É R O M E D A V I S : The New Rússia, N o v a Ioraue, 1933; C H . B E T T E L H E I M : La Planification Soviétique, Paris , 1939; F. L. B O R R O S S : L'Usine Soviétique et sa Vie, P a r i s , 1939; B O R I S C H V E R N I K : Les Syndicats Soviétiques — Documents et Chiiíres, 1937; La Nou-velle Constitution de 1'U.R.S.S., Paris, 1937; DE M O N Z I E : Petit Manuel de la Russie Nou-velle, Paris, 1931; F R I E D M A N N : Problème du Machinisme en U.R.S.S. et dans des Pays Capi-talistes, Paris, 1935; B. G A U T I E R : Les Solaires en l'U.R.S.S., Paris , 1937; M. G R I N K O : M a / i n e , URSS, Milan, 1934; L. H U B B I R D : Commerce et Répartition en U.R.S.S., P a r i s , 1938;

• J ^ O U B I C H E V : Le 2ème Plan Qüinqüenal ( D i s c o u r s prononcé au X V I I I è m e C o n g r è s du P a r ­ti Communiste de 1 ' U R S S ) , Paris , 1934; L. L A U R A T : L'Écnomie Soviétique Paris . 1 9 3 1 - S. M A S L O F F : La Russie Kolkozienne, Paris, 1937; J. N O R M A N D O : A Economia Russa, São

' 9 4 5 ; R. J. K E R N E R : The Russian Adverture, U n i v e r s i t y Califórnia Press, 1943; H. PfrB L e Marxisme en Union Soviétique, Idéologie et Institutions, Paris , 1955; H . L E -

f E B V R E : Problèmes Actuels du Marxisme, Paris , 1958; A. E R L I C H : The Soviet Indus'nah-satiop Debate, C a m b r i d g e ( E . U . ) , 1960. Proietos de P r o g r a m a do Part ido Comunista da U R S S , Publicado por " N o v o s R u m o s " , Rio, set. 1961. R e l a t ó r i o s dos Congressos do P.C. da U . R . S . S . 263

Page 264: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

que o "proletariado dos países adiantados ajudasse a experiência". Ora, a revolução russa já havia encontrado sérias dificuldades pelo fato de suceder a um capitalismo pouco evoluído; a ausência qua­se completa de qualquer estrutura capitalista tornou estas dificul­dades jnuito maiores no caso da China.

— A primeira conseqüência desta situação foi a ausência de um pro­letariado urbano. Em tais condições, o "povo" chinês encarregado da revolução compunha-se, na sua grande maioria, de campone­ses (os homens do campo representam 9 5 % da população). E, como a luta de classes (isto é, a luta contra os grandes proprietá­rios de terras e contra os negociantes em relação aos interesses es­trangeiros instalados no país) se fez ao mesmo tempo em que a luta contra a invasão estrangeira, ela tirou proveito dos sentimen­tos nacionalistas de uma parte da burguesia. Trata-se pois de um "proletariado" muito especial, muito heterogêneo, e pela sua pró­pria composição — em grande parte camponesa — que vai pro­pagar o movimento revolucionário do campo para a cidade.

— A outra conseqüência da situação feudal do país é a obrigação de compensar o atraso das forças produtivas por um esforço ideoló­gico muito acentuado. Esta primazia dada a ideologia (e não às relações de produção) faz do voluntarismo o ponto central do pensamento revolucionário chinês. Acredita-se na possibilidade de transformar voluntariamente, espontaneamente e sem limite a na­tureza do homem e de fazer dele o "homem comunista", fora de qualquer consideração do estado das forças produtivas e das rela­ções de produção. Esta "espontaneidade" de um voluntarismo in­dependente do estado das estruturas, Lênin a havia condenado e, se Marx admitira um certo voluntarismo, ele o fazia com a condi­ção de que a idéia tivesse uma força "material" para poder pene­trar nas massas. No comunismo tal qual Mao-Tsé-Tung concebe e orienta, o "subjetivo nega o objetivo". Assim sendo, assiste-se à in­versão do esquema fundamental marxista: é a superestrutura, mais adiantada que a infra-estrutura, que impulsiona esta última. O vo­luntarismo substitui assim o materialismo e á dialética marxista; por esta razão, se torna mais fraca.

— Notemos uma outra conseqüência da ausência na China de um proletariado urbano. Se ele tivesse existido, é a ele que teria sido confiada a tarefa de propagar o espírito do proletariado, a cons­ciência de classe. Sua experiência do trabalho e das lutas sociais teria justificado o fato dele ter sido o agente de propagação da ideologia própria para formar o homem comunista. Mas na falta desse proletariado, é aos estudantes (de todos cs graus) que esta tarefa foi confiada em grande parte. São jovens de 14 a 20 anos, isto é, sem qualquer experiência do período pré-revolucionário, da realidade operária, dos problemas de luta de classes, que tem a missão de formar o espírito proletário. Nestas condições, pode--se admitir que estes "guardas vermelhos" enfrentam uma tarefa difícil, para a qual nada os havia preparado além do "espírito de revolta" que, para Mao-Tsé-Tung, é a alma da revolução. Fazer a juventude detentora a priori do "pensamento certo" não escapa 264

Page 265: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

à crítica. Pode-se ver aí uma "adulação per igosa" 3 8 para essa juventude e perigosa também para o futuro da experiência em marcha. Pode-se igualmente admitir que, ter feito dos jovens guardas vermelhos os atores principais de uma revolução cultural proletária e ser exaltado seu papel de "exército de choque", não deixou indiferente a juventude de outras nações e não deixou de influenciar sèu modo de apresentar algumas de suas reivindica­ções. Porém, mais que uma bajulação perigosa aos jovens chine­ses, é a exaltação do espírito de revolta que pode ser o criticável: pois, para que a juventude realize grandes coisas não é necessário fazer apelo a um espírito de revolta encomendado; a juventude possui, por instinto, entusiasmo, confiança no futuro e espírito criador. .

"O

— Por outro lado, o fato. da revolução chinesa estar ainda no come­ço (ela tem 20 anos) e estar numa fase de organização difícil, não permite aos seus dirigentes adotar medidas mais liberais, como fez a U R S S em 1961. A teoria da coexistência pacífica, em par­ticular, é violentamente condenada e combatida pela teoria da re­volução permanente. Mao-Tsé-Tung admite a persistência das con­tradições no interior mesmo de um sistema socialista: a revolução permanente é, ao mesmo tempo, a expressão do voluntarismo e a justificação da impaciência. Esta revolução permanente se des­tina não apenas ao ,uso interno mas é válida também para outros países. N ã o somente o comunismo de Mao-Tsé-Tung pretende ser exemplar no campo da ortodoxia marxista-leninista, mas ele quer ser o modelo revolucionário para os países subdesenvolvidos da Ásia, da África e da América Latina.

— Os resultados econômicos e sociais obtidos até aqui, apesar das condições particularmente difíceis, parecem importantes. Até 1958, a revolução seguiu o exemplo soviético; um começo de ruptura manifesta-se depois do XX Congresso do Partido Comunista da U R S S em 1956 (durante o qual foi. adotada a tese da coexistên­cia pacíf ica): ruptura que se consumou quando, em 1960, a Rús­sia renunciou seus contratos comerciais com a China e retirou seus técnicos. Para mais detalhes sobre esses resultados damos referências bibliográficas em nota de rodapé. 3 9 A República Po­pular Chinesa não publicando mais estatísticas relativas à sua evo­lução econômica torna difícil a interpretação dos progressos rea­lizados.

— A experiência chinesa em curso é um dos acontecimentos contem­porâneos mais importantes. N ã o apenas pelas suas dimensões hu-

38. R O G E R G A R A U D Y : Le Problème Chinois, p. 166, Paris , 1967. 39. Sobre a doutrina s o c i a l i s t a c h i n e s a : M A O - T S É - T O U N G : Les Citations du Président

Mao-Tse-Toung, Oeuvres Choisies; G R A N E T : Études Sociologiques sur la Chine, P a r i s , 1953; A R O N e o u t r o s : De Marx à Mao-Tse-Toung (un siècle d'internationele marxiste), P a r i s , 1965; J E A N B A B Y : La Grande Controverse Sino-soviétique, 1956-1966, Paris, 1966; C H . B E T -T E L H E I M : La Construction du Socialisme en Chine, P a r i s , 1962; S T U A R T S C H R A M : La Révolution Permanente en Chine, Paris, 1963; LA H A Y E : Le Marxisme et VAsie, P a r i s , 1965; R O G E R P É L I S S I E R : Le Troisième Geant, la Chine (suivi de textes essentiels de Mao-Tse--Toung et du P. C. chinois), Paris , 1967; F R A N Ç O I S F E J T O : Chine-URSS, P a r i s , 1966; H A N S U Y N : La Chine en 1'An 2001, Paris , 1967.

Mais, esoecialrr,<"ite sobre a E c o n c m i a c h i n e s a : W A L K E R K E N N E T H : Premier Plan Qum-Quenal (ed. P e k i n j 1956: C H A O - K U O - C H U N : Economic Planning and Organization in Mailand Ç í u n a . A Documcntary Study (1949-57), C a m b r i d g e , E . U . , 1959; L A V A L L É E , N O I R O T e t D O -M I N I Q U E : Éco imie de la Chine Nouvelle, G e n è v e , 1957.

Page 266: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

manas e pelas suas repercussões sobre o mundo de amanhã, como também no domínio doutrinário pelas suas conseqüências profun­das, em particular sobre o socialismo. O cisma assim criado en­tre o socialismo chinês e o socialismo soviético (juntando-se às divergências já existentes entre o modelo soviético e o de certas democracias populares) põe fim ao monolitismo doutrinai e po­lítico socialista-comunista. O meio material, o estado da evolu­ção de suas estruturas, assim como a marca da história sobre a maneira de ser e de pensar das populações, o nacionalismo pró­prio de cada país, são fatores de diferenciação de doutrinas e muito particularmente das doutrinas socialistas de hoje . 4 0

40. Sobre o tão discutido p r o b l e m a do destino da doutrina m a r x i s t a , dois l ivros muito dife­rentes pelo conteúdo e pelo m é t o d o Dodem ser recomendados: B L U M E N B E R G , W . : Essai His­torique sur le Marxisme, 1967; W O L F E , B E R T R A M , D . : Le Marxisme, une Doctrine Politique Centenaire, Paris , 1967. Sobre certos aspectos recentes da doutrina m a r x i s t a , i n d i c a m o s : M A R -C U S E , H . : Le Marxisme Soviétique, Paris , 1963; G A R A U D Y , R . : Humanisme Marxiste: Cinq Essais Polemiques, Paris, 1957; L E F È B V R E , H . : Problèmes Actuels du Marxisme, Paris, 1958; S E B A G , L . : Marxisme et Structuralisme, Paris , 1964; L U K A C S . G. : Existencialisme ou Mar­xisme?, Paris, 1960; S A U V Y , A . : Malthus et les Deux Marx, (cap. X X I I I ) , Paris, 1963.

Page 267: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Título IV

A S R E A Ç Õ E S N Ã O SOCIALISTAS C O N T R A A D O U T R I N A

LIBERAL- INDIVIDUALISTA

O Intervenc ion i sm

O espetáculo oferecido, no início do século XIX, pela realidade eco­nômica e social, em flagrante contradição com a idéia de harmonia entre interesses privados e interesses gerais, vai provocar — além da reação socialista — outro grande movimento de repulsa às conclusões liberais, ou seja, o intervencionismo.1

Já que o excesso de liberdade acarreta conseqüências econômicas in­desejáveis, é preciso traçar-lhe limites: heste sentido o intervencionismo se contrapõe ao liberalismo. Trata-se, todavia, de conseguir esta delimi­tação sem sacrificar o próprio princípio da liberdade: deve-se, pois, inter­vir mantendo o direito de propriedade privada com os respectivos corolá­rios econômicos e, neste sentido, o intervencionismo diverge do socialismo.

Inúmeras são as formas de intervenção. Podemos, entretanto, sepa­rá-las em dois grupos principais, segundo se situem no plano social — para reagir contra as conclusões da escola clássica e particularmente con­tra o seu liberalismo — ou no plano nacional, como reação, já não ape­nas contra o liberalismo, mas, sim, também, contra o cosmopolitismo das conclusões clássicas. As doutrinas do primeiro grupo pretendem assegurar a harmonia entre os interesses particulares e o interesse geral, através da intervenção, seja do Estado, seja de certos grupos. No segundo figuram as doutrinas que antes do mais — conforme as próprias expressões de Fre­derico List, seu principal representante —, atribuem "à nação o papel de intermediário entre o indivíduo e o gênero humano".

Passaremos, então, a examinar as características essenciais destes dois grupos de doutrinas.

. : „ _ • ker, sobre o s diferentes sentidos d o termo i n t e r v e n c i o n i s m o : S A I T Z E N S : Interventio-"•smus, Festgabe fuer Fritz Fleniei. Zurique, 1937.

Page 268: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

cfl

O I N T E R V E N C I O N I S M O SOCIAL D O ESTADO CReação c o n t r a o liberalismo]

Seção 1

O INTERVENCIONISMO DE ESTADO

§ 1." — Simonde de Sismondi

O estudo desta primeira forma de intervencionismo deve girar, em tor­no do nome de Simonde de Sismondi.2

1. SISMONDI, 0 CRÍTICO

Sismondi foi, a princípio, fiel discípulo de Adam Smith. Em suas primeiras obras, publicadas em 1801, e sobretudo em sua "Richesse Com-merciale" (1803), adota as teorias e as doutrinas da Escola Clássica. Mas logo vai sentir-se vivamente impressionado pelo desenrolar dos aconteci­mentos que presencia. Ferido o seu espírito por esse espetáculo, começa,

2 , J E A N C H A R L E S L . S I M O N D E D E S I S M O N D I (1773-1842) nasceu e m Genebra. P e r ­tence a uma família de origem ital iana, refugiada na F r a n ç a a partir do século X V I , de onde passou à Suíça, posteriormente à r e v o g a ç ã o do E d i t o de N a n t e s . E s t a circunstância há de ter concorrido, por certo, para o e c l e t i s m o característico de sua v a s t a cultura. V i v e u em uma época de grandes a c o n t e c i m e n t o s : R e v o l u ç ã o Francesa, guerras de N a p o l e ã o , surto e d e s e n v o l v i m e n t o da revolução industrial na I n g l a t e r r a — onde esteve v i a j a n d o —, crises econômicas s u c e s s i v a s : 1815, 1818, 1825. T e n d o n a s c i d o em 1773, portanto, três anos antes da p u b l i c a ç ã o da Riqueza das Nações, foi contemporâneo dos grandes economistas M A L T H U S , R I C A R D O , I . B. S A Y e M I L L . Dentre as suas obras alcançaram êxito imediato sobretudo as de natureza h i s t ó r i c a : Histoire des Republiques Italiennes du Moyen-Age; Histoire des Français. E, como e c o n o m i s ­ta, e s c r e v e u : Tableau de 1'Agriculture Toscane, 1801; De la Richesse Commerciale ou Prínci­pes de l'Économie Politique Appliquée à la Lêgislation du Commerce, 1803; Nouveaux Príncipes d'Économie Politique ou de la Richesse dans ses Rapports avec la Population, 1819, e Études sur VÉconomie Politique, 1937-38.

Ler sobre S I S M O N D I :• G I D E e R I S T , ob. cit., l iv. I I , cap. 1, p. 200-234: Sismondi et les Origines de 1'Êcole Critique; L E W I S H. H A N E Y : History oí Economic Thought, 1921, cap. X I X , p. 355 e s e g s . ; J E A N D E A U : Sismondi Précurseur de la Lêgislation Contemporaine, 1 9 1 3 ; M. L. T U A N : Sismondi as an Economist, N o v a Iorque, 1927; A F T A L I O N : L'Oeuvre Économi­que de Sismondi. Paris, 1899; J. R. DE S A L I S : Si'mo"di 2 vols. . Paris , 1932- D E N I S : His-

268 d e s S v s f è m e s Économiques, tomo I I ; G. H. B O U S Q U E T : Essai sur VÊvolution de la D O Pensée Économique, Paris , 1927, principalmente, p . 172-177.

Page 269: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

em seus "Nouveaux Príncipes", publicados em 1814, por refutar energica­mente as conclusões do liberalismo.

Sismondi, além de economista, e talvez mais que economista, é histo­riador. A sua formação de historiador leva-o a evitar as abstrações, mos-trando-se mais do que ninguém inclinado ao exame dos fatos.3

E os fatos por ele observados — principalmente na Inglaterra, por onde viajou — refletiam a miséria do proletariado, agravada exatamente no momento em que se avolumava a produção total. As crises de 1815 e de 1818 pareciam a Sismondi resultar dos funestos efeitos produzidos, no terreno econômico e social, por essa superprodução.

Ora, nesta época, a teoria preponderante é a do "laissez-faire, laissez--passer", ou seja, de indiferença ante a situação por vezes trágica do pro­letariado industrial. E isto, para Sismondi, constituía uma atitude insu­portável. Daí o se haver afastado da Escola Clássica, passando, então, a criticar, acerba e violentamente, o liberalismo.4

A sua crítica pode ser decomposta nos dois tópicos seguintes: 1) as conclusões liberais levam, no plano social, à indiferença; 2) e, no plano econômico, à superprodução geral.

1. Os clássicos admitiam, sem dúvida, a possibilidade de superpro­dução. Julgavam, entretanto, que o livre funcionamento da lei da oferta e da procura faria com que se restabelecesse automaticamente o equilíbrio, ajustando-se a produção às necessidades, tanto no plano interno quanto no internacional. E, além disso, J. B, Say emprestava o seu otimismo às teo­rias da Escola Clássica, mostrando, com a sua "lei das saídas", não exis­tir motivo para se temer o perigo de uma superprodução geral.

Sismondi refuta Say — sem todavia apresentar contra ele argumen­tos cientificamente válidos —-, dizendo ser possível verificar uma super­produção geral. E acrescenta: mesmo que se aceitasse a idéia clássica de simples superproduções parciais, ou se admitisse o restabelecimento auto­mático do equilíbrio, nos termos do esquema ricardiano, ainda assim não haveria motivo para se ficar indiferente aos sofrimentos do proletariado no período de transição. "Com o tempo se restabelece tal equilíbrio -r— escreveu ele —, mas à custa de um terrível sofrimento."

A compressão do preço de custo é conseguida fazendo-se baixar o ní­vel de salários e aumentando-se, ao mesmo tempo, o contingente de mu­lheres e crianças empregadas — mão-de-obra mais barata —, estendendo--se a duração da jornada do trabalho, com a superveniência do desempre­go tecnológico e todas as suas funestas conseqüências morais e físicas.

3. _ " T o u t e abstract ion est touiours une déception. A u s s i 1'économie pol i t ique n ' e s t - e l l e pas une science de c a l c u l m a i s une science m o r a l e . " Nouveau Príncipes d'Èconomie Politique, P a -« s , 1819, tomo I, p. 288.

4. S I S M O N D I abre, assim, caminho para uma série de trabalhos que durante m e i o século de_1819, data dos Nouveaux Príncipes, a" 1867, data de O Capital, de M A R X — f o c a l i z a r ã o a

atenção do mundo sobre a miséria do operariado e ressaltarão o aspecto social dos p r o b l e m a s econômicos. D e n t r e outros citaremos = A n d r e w U R E : Philosophy oi Manuíactures, 1835; E. y i L L E R M É : Tableau de 1'État Physique et Moral des Ouvriers employés dans les manuíactures <je coton, laine et soie, Paris, 1840; L c r e n z von S T E I N : Geschichte der Sozialen Bewegung in frankreich von W9 bis aui unsere Tage, 3 vo ls . , L e i p z i g , 1850-1855.

Page 270: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E com muita razão insiste Sismondi no perigo que a livre concorrên­cia representa para a saúde moral e física da raça. Indica os desastrosos efeitos, decorrentes dessa excessiva liberdade, no que respeita às condições de vida do proletariado. Põe em evidência a idéia, aliás exatíssima, do valor econômico e social de um sadio fator humano. Inúmeros são os au­tores — Alfred Marshall 5 é um deles — que a retomarão posteriormen­te, desenvolvendo-a.

Sismondi é levado, assim, a criticar severamente a ciência clássica — a qual denomina crematística —, cujo principal interesse reside', segundo mostra, nos problemas da produção, na busca da riqueza.6 A esta con­cepção contrapõe a de uma economia política tendo por objetivo a busca da felicidade e, como tal, reduzida a um ramo da "arte de governar".

Começando por uma crítica, aliás procedente, à excessiva importân­cia atnbuíaa pelos clássicos ao problema da proüução, acaba Sismondi por incidir no exagero oposto — e ainda mais grave —, de dar mais ên­fase aos problemas sociais e às suas soluções práticas, tendendo, -assim, a transformar a economia política em um estudo dos problemas sociais: desloca-a, por esta forma, do plano científico em que Adam Smith acaba de colocá-la, para pô-la de novo no plano da arte, onde errara perdida por muitos séculos. Reduzir a Economia Política à arte de governar, con­forme desejava, seria claramente um retorno ao período dos primeiros cameralistas.

Como quer que seja, os excessos doutrinários, a que se entregou Sis­mondi, devem ser apreciados no quadro da sua época e, sob este aspecto, representa ele o primeiro contraditor da escola clássica, no momento pre­ciso em que o pensamento econômico é dominado pelas concepções de Smith e de seus discípulos.

A parte esse exagero, cabe a Sismondi o mérito de ter sido um dos primeiros a indicar o interesse em se ampliar o campo dos estudos eco­nômicos, cujo objeto deixa de ser a simples riqueza para girar em torno do homem, passando-se, assim, das preocupações atinentes à produção, ou seja, à oferta, para as relativas à repartição e ao consumo, isto é, à procura. Em uma palavra, insistiu sobre a importância de se juntar ao ponto de vista econômico as considerações de ordem social. Fez-se, com isso, precursor de um grande número de escolas econômicas, a serem exa­minadas no decurso deste estudo.

5. " W e have to consider the condition on which depend health and strenght, p h y s i c a l , m e n ­tal and moral. T h e y are the basis of industrial efficiency, on w i c h the production of m a t e r i a l w e a l t h has in the fact than, w h e n w i s e l y used, it increase the health and strenght, p h y s i c a l , m e n t a l and moral of the human r a c e . " (Principies oi Economics, 8, a ed., N o v a Iorque, 1950, p. 193.)

6. " S i 1 'Angleterre réussissait à faire accomplir tout 1'ouvrape de ses champs et tout celui de ses v i l l e s par des m a c h i n e s à vapeur, et à une compter pas plus d 'habitants que la R e p u b l i ­que de Genève, tout en conservant le même produit et le m ê m e revenu qu'el le a aujourd'hui, d e -vrait-on la regarder comme plus riche et plus-prospère? R i c a r d o répond a f f i r m a t i v e m e n t . . . A i n s i donc la richesse est tant et l 'homme n'est rien? En verité, il ne reste plus qu'à désirei que le roi, deumenré seul dans son ile, en tournant c o n s t a m m e n t une m a n i v e l l e fasse accompli i par des automates tout 1 'ouvrage de l ' A n g l e t e r r e . " (Nouveaux Príncipes.)

Page 271: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Sismondi verifica crescer a miséria à medida que a produção aumenta. Daí concluir não passar de pura ilusão a tão apregoada harmonia de in­teresses dos clássicos. A observação dos fatos exige seja esta noção subs­tituída pela de "conflito de interesses".

2. Passando, em seguida, do plano social ao plano econômico, vai indagar Sismondi a causa desse conflito. Enxerga-a na grande indústria, cuja livre expansão acarreta a separação cada vez mais acentuada e gene­ralizada, entre trabalho e propriedade.

Por efeito da livre-concorrência cresce a concentração capitalista. Esta, por sua vez, acirra o conflito de interesses entre as duas classes sociais: a dos ricos proprietários e a dos pobres assalariados. É nesta se­paração entre o trabalho, de um lado, e a propriedade, de outro, que reside, para Sismondi, a causa da miséria proletária e da superprodução industrial.

É causa, em primeiro lugar, de miséria proletária. Trabalhando o ope­rário a soldo do empreendedor, é obrigado a aceitar as condições por este impostas. Seu salário, como toda e qualquer mercadoria, está sujeito à lei da oferta e da procura. Aliás, Sismondi retoma a teoria clássica dos salários, considerando o trabalho como uma mercadoria cujo preço natu­ral é igual ao custo de produção, ou seja, à soma suficiente para garantir ao operário meios apenas para sobreviver e procriar. Na essência é a pró­pria teoria de Smith e Ricardo, bem como a de Say e Bastiat, teoria de­nominada por Lassalle "lei de bronze".

Ora, sendo a oferta de trabalho maior que a procura e dada a ação da lei da concentração capitalista em regime de livre concorrência, vê-se o operário forçado a se satisfazer com um salário apenas correspondente ao mínimo fisiológico de subsistência.

Fica, por esta forma, reduzido à miséria e inexoravelmente sujeito à vontade do capitalista: deste depende, também, a sobrevivência da sua pro­le, maior ou menor conforme cresça ou diminua a taxa de seu salário. Sis­mondi estabelece, assim, como princípio, depender o número de habitantes do montante do rendimento.

A teoria do salário de Sismondi é tão falsa quanto todas as demais que pretendem explicar a formação da taxa do salário, levando em con­sideração tão-somente a oferta da mão-de-obra. E, assim também, inexata é a idéia de estar o volume da população na dependência do montante de rendimento. A observação dos fatos, ao invés de comprovar que o nú­mero de filhos aumenta com a elevação do salário, indica ser freqüente dar-se exatamente o contrário.

Encontra-se, todavia, nesta parte da obra de Sismondi, uma idéia aproveitável, precisamente a que serviu para pôr em evidência quão inexa­to é o se considerar o salário apenas como um dos elementos componen­tes do preço de custo da produção, uma vez que constitui o rendimento da grande maioria da população. Preocupação constante em Sismondi é não dissociar o aspecto social do econômico.

Page 272: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Causa de superprodução industrial e das crises econômicas é também esta crescente separação entre propriedade e trabalho.

De fato, a livre concorrência acarreta a concentração de capitais; esta possibilita a expansão do emprego de maquinaria e, conseqüentemente, um considerável aumento da produção. Todavia, este aumento de produção coincide com a redução do poder de compra da classe operária, por efei­to da ação da "lei de bronze" dos salários. Acontece, assim, que o assa­lariado tem necessidades às quais não pode satisfazer por deficiência de poder aquisitivo. No entanto, em relação aos capitalistas, dá-se exatamen­te o oposto: a despeito da sua elevada capacidade aquisitiva, reduz-se o volume das suas necessidades, uma vez que o número dos componentes do seu grupo diminui progressivamente por efeito do mecanismo da con­centração industrial.

Daí resulta um subconsumo multiplicado por dois — o dos operários e o dos capitalistas —, ainda agravado por uma progressiva superprodu­ção, em virtude de ser o excedente do poder de compra dos capitalistas aplicado de modo a provocar novo aumento de uma produção já excessi­va. Assim se explicam as crises, segundo Sismondi.

E desta mesma forma as explicarão posteriormente inúmeros outros autores, dentre os quais poderemos citar Proudhon, Louis Blanc, Rodher-tus, Marx.7

Sismondi é, assim, levado a criticar acerbamente a expansão do ma-quinismo, a que atribui a responsabilidade, não só da miséria do proleta­riado, decorrente da baixa do salário e do desemprego tecnológico,8 mas também da superprodução industrial.

No que concerne aos efeitos que a introdução da máquina vai produ­zir nas condições sociais do proletariado, comete Sismondi o erro de levar em conta tão-somente as suas conseqüências imediatas. E, em relação ao aumento da produção, condena-a Sismondi toda vez que não se faça pre-

7. E m b o r a interessante, esta e x p l i c a ç ã o dada às crises d e v e ser refutada. Com efeito, o subconsumo do proletariado pode ser compensado pelo aumento do consumo dos c a p i t a l i s t a s , uma vez que as necessidades são infinitas em número, sendo l i m i t a d a s apenas, do ponto de v i s ­ta da capacidade (lei de G o s c h e n ) . Na realidade, o c a p i t a l i s t a poupa, não por s a t u r a ç ã o de suas necessidades, mas, sim, por ter em mira um lucro. O r a , a e x i s t ê n c i a desse lucro — al iás uma realidade — indica a a u s ê n c i a de superprodução crônica, superprodução essa admitida, en­tretanto, por S I S M O N D I : L u c r o e superprodução crônica são noções que podem ser considera­das i n c o m p a t í v e i s . Cf. sobre o assunto L E S C U R E , ob. c i t a d a .

8. O efeito da m e c a n i z a ç ã o de determinado setor da p r o d u ç ã o se faz sentir nas c o n d i ç õ e s de v i d a dos operários em dois t e m p o s : em um primeiro t e m p o — e de maneira imediata — lhe é desfavorável , uma v e z que reduz a procura da mão-de-obra, fato esse cuia repercussão sobre a t a x a do salário se faz sentir, provocando a sua b a i x a . E, em um segundo momento — e de modo mediato —, lhe é f a v o r á v e l . A produção " e m grande e s c a l a " possibi l i ta uma redução do preço de custo por unidade e, assim, favorece a expansão da p r o d u ç ã o , criando-lhe novas saídas. Ora, o aumento da produção t e m por efeito imediato um aumento da procura da mão-de-obra e isto v a i anular a d e s v a n t a g e m da redução imediata que se veri f icara nessa procura. A s s i m , por exemplo, em 1833 as f iações i n g l e s a s e m p r e g a v a m 220 000 operários, númer.o esse que, em 1900, se e l e v a v a , na mesma indústria, a 700 000. A l é m disso, a f a b r i c a ç ã o de notfos bsns de p r o d u ç ã o

' ( c o n s t r u ç ã o e m a n u t e n ç ã o de m á q u i n a s ) cria a procura para uma nova e numerosa mão-de-obra.

S e g u n d o S O M B A R T (Apogeu do Capitalismo, p. 132 e s e g s . ) , o número de indivíduos e m p r e ­gados, na A l e m a n h a , na c o n s t r u ç ã o de máquinas — os quais por sua vez trabalhavam t a m b é m com máquinas —, no período compreendido entre 1882 e 1925, passou de 623 858 a 4 683 000.

N a s controvérsias a p a i x o n a d a s , sustentadas por S I S M O N D I , de um lado, e S A Y e B A S -T I A T , de outro, r e l a t i v a m e n t e aos efeitos sociais decorrentes do maquinismo, parece ' e r e m sido estes últimos que viram com j u s t e z a .

Page 273: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)
Page 274: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O Estado deverá, pois, em primeiro lugar, lutar contra uma produção exagerada e, através do controle das invenções e de medidas tendentes a ajustar a produção às necessidades, moderar o ritmo do progresso. Aí te­mos medidas que representam, por assim dizer, a essência do programa hoje conhecido sob o nome de economia dirigida.

E, em segundo lugar, deverá o Estado intervir no sentido de melho­rar as condições de vida das classes obreiras, lançando mão de medidas legislativas. As leis a serem promulgadas para tal efeito deveriam limitar a duração da jornada do trabalho, instituir o repouso dominical, proibir ou estabelecer condições restritas ao trabalho das mulheres e das crian­ças. Permitiriam ainda os agrupamentos de trabalhadores, concedendo--lhes o direito de associações ou de coalizão para defesa de seus interes-

>•% ses relativos aos salários. Cumpria ainda lembrar aos empregadores o dever que lhes incumbe,

de segurar o trabalhador contra os riscos profissionais ("garantisme pro-fessionel"), ou seja, a obrigação de protegê-lo contra os riscos sociais: as moléstias, a velhice, a invalidez e o desemprego. A imposição desta obri­gação justificava-se, para Sismondi, ante a maneira pela qual era fixado o salário: o operário recebia apenas o "estritamente necessário para viver" e, pois, impossível lhe seria economizar para se proteger contra os riscos sociais que o ameaçavam. E, uma vez que o lucro auferido pelo empreen­dedor provinha da circunstância de pagar ele ao operário apenas o cor­respondente ao valor do produzido por este último, justo seria que ao pa­trão coubesse o encargo de cobrir os eventuais riscos.

Sismondi pensava, aliás, que com estas medidas se reduziriam os ris­cos na medida do possível, por assim convir aos interesses do empreen­dedor: cabendo-lhe a responsabilidade desses riscos, procuraria evitar se produzissem as suas causas. Cuidaria, por exemplo, da saúde dos seus operários, evitando, por conseguinte, baixar seus salários; procuraria eli­minar o risco do desemprego tecnológico, deixando de recorrer à expansão do maquinismo etc.

A influência exercida pelas idéias de Sismondi não se fez sentir ime­diatamente. Todavia, está presente na obra de diversos autores do século XIX.

O método por ele adotado permite a sua classificação como precursor da escola histórica. De fato, caracterizava-o a mesma desconfiança rela­tivamente a qualquer tipo de abstração, o mesmo pendor à acurada obser­vação dos fatos. Roscher, concordando com seus pontos de vista, cita-os em sua "História da Economia Política na Alemanha". As críticas feitas por Sismondi à Escola Clássica — e que bem justificam o considerá-lo como o primeiro dos seus contraditores — vão servir de inspiração à cor­rente socialista e, pode-se mesmo dizer, a Marx em primeiro lugar. A própria Escola Clássica — através de Stuart Mill — não escapou à sua influência.

A justeza e o vigor da sua crítica, relativamente ao exclusivismo que 274 presidiu à elaboração científica da Escola Clássica, preocupada tão-so-

Page 275: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mente com os fenômenos da oferta, prepararam caminho para o advento das escolas econômicas que — como a dos neoclássicos principalmente —, retomando o esquema clássico, darão, todavia, ao estudo da procura o lugar que lhe compete.

Criticando o aspecto crematístico, traço peculiar à Escola Clássica, e insistindo nos liames existentes entre o fato social e o econômico, pre­para Sismondi o campo para as inúmeras reações determinadas pela hi­pertrofia do individualismo, inclusive as das escolas sociológicas, assim como todas as reações que reintegram no estudo econômico a preocupações humana e moral. 1 1

Sustentando a existência da harmonia de interesses, é o primeiro a se mostrar pessimista em um campo onde até então reinara o otimismo. Ao "laissez-faire, laissez-passer", contrapõe, então, a necessidade de refor­mas. 1 2

E os seus projetos nesse sentido alinham-no como precursor do grande movimento em prol de uma legislação social, hoje uma realidade em to­dos os países.

Sismondi, como "crítico", põe em dúvida as conclusões liberais, abrin­do caminho para advento ulterior do intervencionismo sob todas as suas formas, e, como "reformador", torna-se precisamente fundador do socialis­mo de Estado.

Dupont-White 13 retomará posteriormente as suas idéias, revigorando-as em certos pontos. E como discípulos isolados, que se vão inspirar dire­tamente em Sismondi, citaremos ainda: Droz (1773-1850), autor da "Éco-nomie Politique", 1829; Villeneuve Bargemont: "Économie Politique Chré-tienne", 1834; 4 Minghetti: "Delia Economia Pubblica", 1859; Michel Che-valier (1806-1879): "Cours d'Économie Politique", 1841-1850.

A seguir examinaremos a corrente doutrinária, aliás de grande impor­tância, que desenvolverá com vigor a idéia de intervenção do Estado no campo econômico, ou seja, o chamado "socialismo de cátedra".

1 1 . É neste sentido que se exprime o Prof. E d o u a r d M O N T P E T I T : "O objeto da c i ê n c i a econômica é d u p l o : a riqueza e o homem ao m e s m o t e m p o . Isto é que é c e r t o . " E a i n d a : "O economista pensa e escreve para o homem. É i n a d m i s s í v e l que o esqueça." (La Conquête Éco­nomique, t. 3, p. 141 e 143, Montreal , 1942.)

12.^ E s t a m e s m a necessidade de reformas, que se irá encontrar em todas as correntes in­tervencionistas sob d i v e r s a s formas, m a n i f e s t a r - s e - á , m a i s tarde, não mais somente como uma reação contra a ordem natural dos c lássicos, c o m o t a m b é m contra o determinismo m a r x i s t a .

C o m as d i f i c u l d a d e s econômicas surgidas a p ó s a Guerra de 1914 e com a crise m u n d i a l de 1929-30, esta r e a ç ã o voluntarista retomou n o v a f o r ç a : encontrar-se-á sua e x p r e s s ã o p a r t i c u l a r ­mente v i g o r o s a na obra do Prof. Henri N O Y E L L E , em oarticular no Utopie Libérale, Chimère Socialiste, Économie Dirigée, Paris , Sirey, 1935.

13. D U P O N T - W H I T E (1807-1878), francês, n a s c i d o em Rouen, p u b l i c o u : Essai sur les Relations du Capital et du Travail, 1846; L'Individu et VÉtat, 1857; La Centralisation, 1860. Em seu Essai^ expõe D u p o n t - W h i t e a sua doutrina i n t e r v e n c i o n i s t a : faz a apologia do E s t a d o , cuja intervenção j u l g o dever expandir-se em função do progresso. Mostra-se pouco confiante em re­lação ao i n d i v í d u o que para ele constitua " l ' e t e r n e l o b s t a c l e dont sont herissées les v o i e s de l a c i v i l i s a t i o n " . T o d a v i a , de acordo com sua o p i n i ã o , o E s t a d o deve ser o meio oara atingir o Progresso, enquanto o indivíduo constitui o seu fim. T a l como S I S M O N D I , D U P O N T - W H I -

u a s s e n t a a B b a s e s d a doutrina i n t e r v e n c i o n i s t a . L e i a - s e sobre o assunto = R . G O N N A R D : ° b . cit., l iv. V I , cap. I I ; D. V I L L E Y : Ch. Dupont-White, sa Vie, son Oeuvre, sa Doctrine, tome I, 1936.

1 4 - Cf. G I D E e R I S T : op. cit., p . 233.

Page 276: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§2.° — O socialismo de cátedra 15

1. POSIÇÃO DOUTRINÁRIA '

Dá-se este nome à corrente doutrinária que surgiu no último terço do século XIX, sendo constituída principalmente de universitários alemães.

O programa desta consta no "Manifesto de Eisenach" apresentado ao congresso no qual foi debatida a "questão social", realizado em 1872, com a participação de grande número de professores de ciência econômica, de nacionalidade alemã. Consolidou-se esta corrente com a fundação, em 1873, da "Verein feur Sozialpolitik" ("Liga de Política Social"): aos universi­tários juntaram-se, então, funcionários de alta categoria, capitalistas e de­legados de grupos operários.

Dentre os nomes mais representativos deste movimento podemos citar: G. Schmoller, Wagner, Schaeffle, Brentano, Cohn, Conrad, Engel, Held, Hildebrand, Knies, Knapp, Roscher, Neumann, von Scheel, Schònberg.1 6

Doutrinariamente o socialismo de cátedra ocupa uma posição inter­mediária entre a doutrina liberal e a socialista.

* •

Sobre esta matéria escreve Schmoller: "Não pregamos a revolução científica, nem a subversão da ordem social existente, e protestamos contra todas as experiências socialistas. Mas não desejamos também permitir, em nome do respeito a princípios abstratos, que piores se tornem, de dia para dia, os inomináveis abusos e se chegue ainda, com a pseudoliberdade de contratar, à atual exploração do trabalhador. Exigimos que ele (o Estado) se interesse, com um espírito interiamente renovado, pela instrução e for­mação do operariado e zele para que as condições do trabalho não sejam de molde a acarretar a decadência do trabalhador."

O socialismo de cátedra, de socialismo tem apenas o nome, nome esse que lhe deram a despeito dos protestos de seus partidários.1 7 Estes recla-

15. Ler, sobre o s o c i a l i s m o de cátedra, G. S C H M O L L E R : Ueber einige Grundfragen des Rechts und der Volkswirtscbit: Ein oifenes Sendschreiben an Herr Professor Heinrich von Treitschk, 1874-75; Richard T. E L Y : French and German Socialism. N. Iorque, 1884; E. V O N P H I L I P P O V I C H : L'Infiltration des Idées Sociales dans la Litérature Économique Allemande, in Revue d'Économie Politique, P a r i s , 1909; C. B O U G L É : Les Sciences Sociales en Allemagne; M O R R I S H I L Q U I T : Socialism in Theory and Practice, Nova Iorque, 1909; E l m e r R O B E R T S : Monarchial Socialism in Germany, N o v a Iorque, 1 9 1 3 ; G E H R 1 N G : Die Begruendung des Prinzipes der Sozialreform, Jena, 1914 j B O E S E C : Der Verein fuer Sozialpolitik — 1872-1922, M u n i q u e , 1922; O t h m a r S P A N N : The History of Economics ( T r a d u ç ã o de E d e n e P a u l C e d a r ) , N o v a Iorque, 1930; M a r r y W. L A I D L E R : History of Socialist Thought, N o v a Iorque, 1936, p. 669 e segs.

16. S C H M O L L E R (1838-1917) foi o principal redator do Manifesto de Eisenach (1872) e autor do Grundriss der* Allgemeine Volkswirtschaftslehere, 1901-1904, e do Staats-und sozialwis-senschaftliche Forschungen; A. W A G N E R : Rede ueber die soziale Frage, 1871.

S C H A E F L E , embora não fazendo parte da L i g a , em seu Kapitalismus und Sozialismus, de­fende idéias que podem ser c o n s i d e r a d a s como das mais r e p r e s e n t a t i v a s da doutrina do s o c i a l i s ­mo de cátedra em seu conjunto.

Em relação às idéias de Roscher, Knies, H i l d e b r a n d e outros economistas da E s c o l a H i s t ó ­rica, cf. p. 363 e segs.

S C H Ò N B E R G : Arbeitsamerr eine Aufgabe des deutschen Reiches, 1871. E mais recentemente, para a A l e m a n h a e a Á u s t r i a , temos S ^ H . W I E D L A N D e von P H I ­

L I P P O V I C H . 17 C o m efeito, foi por ironia que H. B. O P P E N H E I M batizou esta corrente doutrinária

com o nome de Katheder-Sozialisten em um artigo aparecido, em dezembro de 1871, no Nazional Zeitung, sob o t í tulo A Escola de Manchester e o Socialismo de Cátedra.

Page 277: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mam a intervenção do Estado, tendo em vista a aplicação de certas refor­mas econômicas e sociais, cuja espontânea realização pelo liberalismo im­possível lhes parece. Rejeitam, entretanto, qualquer alteração básica do regime capitalista, ou seja, a eliminação do direito de propriedade privada e da iniciativa de empreendimentos por parte dos particulares.

Sismondi e Dupont-White já haviam preconizado, conforme vimos, a intervenção do Estado como recurso de alcance econômico e social. Mas, além disso, essa intervenção era medida perfeitamente consentânea com as idéias dos filósofos alemães Fichte, Schelling, Schleiermacher, Krause, Hegel, entre outros. Segundo estes autores o Estado era concebido como entidade superior, com funções bem diferentes das atribuídas pelos clássi­cos ao Estado "gendarme" ("polícia"). Incumbia-lhe, assim, proteger a personalidade do indivíduo (idéia já defendida por Sismondi, conforme vimos); garantir a cada um o direito ao trabalho (concepção proclamada pelos socialistas de 1848); organizar a sociedade e a economia de forma que possibilite o seu progresso, desempenhando um papel de importância crescente à medida que este se estende (idéias caras, aliás, a Dupont--White).

O socialismo de cátedra apela ainda para argumentos históricos, como uma justificação suplementar da intervenção do Estado. De fato há um entrelaçamento íntimo entre o socialismo de cátedra e o historicismo: a partir de 1863 a "Revista da Escola Histórica" passou a ser um órgão á serviço dos economistas universitários alemães. Wagner, em seu "Funda­mentos da Economia Política", escreveu, por exemplo, ser a expansão no sentido da intervenção do Estado regida por uma verdadeira lei histórica, pois foi principalmente através do Estado que a humanidade conseguiu fazer progresso. E Schmoller procura aduzir provas comprobatórias da afirmação de figurar o Estado, à luz da história, como a maior instituição moral tendo por objetivo a educação e a melhoria da raça humana.

O socialismo de cátedra encontra, pois, na História, não só um sub­sídio para comprovar a necessidade da intervenção estatal, mas também a.regra da intervenção, a saber: não dever a ação do Estado fazer-se sen­tir de modo definitivo e absoluto, mas, ao contrário, exercer-se de forma provisória e relativa, isto é, em função de cada país e da sua época.

Uma vez aceito este princípio de relatividade — que aliás se impõe como toda razão — o' difícil é chegar a um acerto quanto a um programa definido de intervenção estatal.

2. O PROGRAMA

De fato, numerosas foram as dicussões suscitadas entre esses socialis­tas de cátedra quando se tratou de definir o papel a ser desempenhado pelo Estado.

Page 278: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A idéia geral a que se chegou após essas discussões parece ter sido a de se impor a intervenção dos podéres públicos toda vez que determinada atividade econômica revestisse a característica de permanência no tempo e no espaço. O exemplo típico de um caso de indiscutível necessidade de intervenção do Estado seria o da abertura e conservação de estradas.

De fato, o socialismo de cátedra persistiu por muito tempo na dis­cussão das espécies de casos nos quais seria de se reclamar a intervenção do Estado. E estes podem ser classificados em duas categorias principais, segundo se trate de medidas internas, a serem tomadas pelo Estado, vi­sando o interesse direto do próprio indivíduo, ou de reformas externas, a se executarem indiretamente através de medidas aplicáveis tanto nos seto­res econômico e fiscal, quanto no campo social.

Para realização das reformas internas exige-se que o Estado se in­cumba de educar e formar o indivíduo.

E no que respeita às externas, imprescindível é a intervenção do Es­tado em diferentes planos. Em primeiro lugar, no plano social através de medidas legislativas tendentes a proteger o fraco contra os abusos dos fortes. O socialismo de cátedra apresenta, assim, um programa de legis­lação trabalhista, em termos idênticos ao de Sismondi: o Estado deverá promulgar leis regulamentando a duração da jornada de trabalho, as suas condições de higiene. Deverá, além disso, garantir o fiel cumprimento des­sas leis, organizando o serviço de fiscalização das fábricas e o de inspeção das residências. Reconhecerá ainda aos proletários o direito de se asso­ciarem livremente, autorizando a criação de associações operárias, cuja independência e expansão assegurará; e, assim também, organizará juntas de conciliação e arbitramento. E mais: abrirá hospitais, colônias de férias, jardins de infância etc. Deverá ainda fomentar a multiplicação de peque­nas propriedades — agrícolas, industriais e comerciais — as quais consti­tuem um fator de independência do homem e servem de estímulo à orga­nização de uma vida de família normal e digna.

E esta atuação do Estado, tendo em vista a melhoria das condições sociais do homem, deve ser secundada por reformas nos setores econômi­co e fiscal.

A intervenção do Estado no setor econômico tem como fonte de ins­piração as idéias de Hegel e sobretudo as de Dupont-White: as trocas, principalmente, devem ser fiscalizadas.

O socialismo de cátedra deseja submeter também os bancos de emis­são e de propósito — criadores dos meios de troca e de crédito — a uma séria fiscalização por parte do Estado.

Neste programa a tributação constitui um dos mais importantes instru­mentos de justiça e de nivelamento social. Por esse meio deve o Estado: desonerar o pobre; suprimir as isenções abusivas e as grandes heranças.

278 Deverá impor pesados tributos a certos "rendimentos" auferidos "sem tra-

Page 279: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

balho", tais como os imobiliários. Isto significa exigir o socialismo de cá­tedra a aplicação de um sistema de tributação progressiva e pessoal.

3. SUA INFLUÊNCIA

Considerável foi a influência exercida pelo socialismo de cátedra so­bre os fatos.

Na Alemanha, deve-se incontestavelmente a esta corrente doutrinária o trabalho de preparação dos espíritos no sentido de receberem e aceita­rem as reformas de Bismarck, por volta de 1880, dotando o país de uma completa legislação social. Aliás, Bismarck compreendeu muito bem o par­tido que poderia tirar das idéias do socialismo de cátedra: usou-as como um instrumento de luta contra o socialismo e como meio de expandir o poderio do Estado.

A influência desta doutrina se fez sentir também fora das fronteiras alemãs, indo contribuir para o desenvolvimento, na maioria dos países, da legislação relativa às atribuições sociais do Estado.

E não menos profunda foi a influência exercida por esse socialismo de cátedra sobre as idéias, a qual se estendeu para além dos lindes do seu país de origem. De fato, essa corrente de idéias encontrou adeptos nos pensadores dos diferentes países 18 = na Itália: Ferraris, Supino e Vi-vante; na Bélgica: Ansiaux e Mahaim; na Suíça: Wuarin; na França: Raoul Jay e P. Pie; na América do Norte: Willoughby e C. Wright; no Uruguai: Juan Rodríguez Lopez etc.

Na época moderna este intervencionismo estatal expandiu-se e, trans­pondo o quadro econômico da repartição, foi alcançar também o da pro­dução. Recebe, então, diferentes denominações, as quais podem ser todas englobadas sob a designação genérica de "economia dirigida".1 9

A ação do Estado será secundada por uma organização corporativa. Era, aliás, o que reclamava o socialista de cátedra Scheffle, em seu "Kapi-talismus und Socialismus", e também um dos princípios no qual se inspirou a experiência fascista italiana. Ou, então, incorporará o Estado na sua esfera de ação as forças sindicais. E particularmente a essa forma cha­marão certos autores de economia dirigida, a exemplo de Bertrand de Jouveneld, que deu ao seu ensaio o título de "Économie Dirigée" (1928). Ou, ainda, procurará o Estado fortalecer a sua ação apelando para certos

18. C o n s u l t a r a respeito — R. G O N N A R D : op. cit. , p. 681. ^ 9 - JEntendem certos autores por e c o n o m i a d i r i g i d a — lato sensu — todo e qualquer siste­

ma e c o n ô m i c o que substitua a l ivre-concorrência pela intervenção do E s t a d o . N e s t e caso in­cluem-se nesta categoria todos os s istemas s o c i a l i s t a s . Outros autores dão, entretanto, à ex­pressão " e c o n o m i a d i r i g i d a " um sentido m a i s preciso e restrito. S f r i c í o sensu trata-se de um sistema que, sem renunciar às inst i tuições fundamentais do capital ismo, propõe-se regularizar o seu funcionamento através da " a ç ã o do E s t a d o , reformado pela incorporação das forças sindi-Çj»s". Cf. sobre este ponto F. P " E R O Ü X , Les Enchainements de la Pensée Économique, rjômat Montchrétien, P a r i s , 1937-38. Ler t a m b é m sobre essa expressão " E c o n o m i a D i r i g i d a " , a inte­ressante conferência do Dr. Francisco Leornardo T R U D Á , ex-Diretor do B a n c o do B r a s i l : O Btrecionismo e o Estado Moderno, publ icada na R e v i s t a de C i ê n c i a s E c o n ô m i c a s , setembro-ou-tubro de 1941, vol . I I I , n.° 5, São P a u l o .

Page 280: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

grupos econômicos — tais como os cartéis —, os quais deixarão de ser agrupamentos organizados no plano da atividade privada para passar a or­ganizações semi-oficiais: este o tipo de economia dirigida, organizada tal como o exigia W. Rathenau e no qual se inspiraria, em parte, o nacional--socialismo alemão.

Seção II

O INTERVENCIONISMO DE GRUPOS

Enquanto o socialismo de Estado — nas suas diferentes formas —l pretendia encontrar na ação dos poderes públicos o remédio para o dese­quilíbrio social reinante, cuja responsabilidade julgava dever-se atribuir ao liberalismo, outras doutrinas vão tentar obter o mesmo resultado por outros meios. Já não se preconizará a intervenção do Estado, e, sim, precisa­mente, a de certos grupos organizados em torno de interesses de ordem econômica, social, religiosa ou profissional.

E quatro são as formas principais sob as quais se apresenta este inter­vencionismo "de grupos", cujas idéias essenciais passaremos a examinar de maneira sucinta.

Subseção 1 — O cooperativismo

1 . O COOPERATIVISMO EM TEORIA

A doutrina cooperativista, em sua expressão teórica e integral, vê na fórmula prática dos agrupamentos cooperativistas a possibilidade de reor­ganização, da sociedade econômica como um todo.

Parte de uma dúplice crítica ao regime existente. Do ponto de vista econômico, a organização da produção em regime

de livre-concorrência acarreta um desperdício de forças e de produtos-: do ponto de vista social, a repartição atribui ao empreendedor uma impor­tante quota de lucro, o que torna impossível a realização de justiça nos preços. Para remediar este desperdício e esta injustiça, aceita a doutrina como princípio dever-se atribuir, na economia, o lugar preponderante ao consumidor e não mais ao produtor. Afasta-se, por esta forma, da escola clássica, que se preocupava sobretudo com a produção, e do socialismo, cujo centro de interesse é o assalariado: desloca, assim, o cooperativismo este centro para o consumidor em geral.

Charles Ç i d e 2 0 resumiu esta idéia principal da doutrina em uma fór­mula que ficou célebre: "Le consomtnateur doit êíre tout."

2 0 . Charles G I D E é o m a i s célebre teórico da doutrina cooperativista. Soube transfundir--lhe o entusiasmo dé c o o p e r a t i v i s t a c o n v i c t o de que e s t a v a a n i m a d o , dando à sua a r g u m e n t a ç ã o a torça e o encanto de um esti lo persuasivo e a d m i r á v e l .

Page 281: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Para que se realize este reino onde o consumidor será soberano, três etapas são previstas.

Na primeira, desenvolver-se-ão os esforços no sentido de fomentar a criação e expansão de cooperativas de consumo. Logo que as suas ativi­dades se tenham desenvolvido suficientemente deverão organizar-se fede­rações. A segunda etapa será a de organização das cooperativas de pro­dução industrial tão logo tenham as cooperativas de consumo conseguido acumular os necessários fundos. Finalmente, a terceira é a etapa da orga­nização de cooperativas de produção agrícola.

Por esta forma o consumidor vai desembaraçar-se, pouco a pouco, do comerciante intermediário, tornando-se, ele próprio, produtor de mer­cadorias industriais e de gêneros alimentícios.

Uma vez cumprida essa evolução, o agrupamento cooperativista terá atingido o fim proposto, a saber, ter feito do consumidor o senhor da pro­dução, com a vitória do interesse geral na luta contra as empresas priva­das. O cooperativismo assumirá, então, a direção da indústria e da agricul­tura, em lugar do capitalismo, fazendo com isso desaparecer a distribuição de lucros, fonte das injustiças.

E, assim, terá realizado o seu ideal sem violência e sem luta de clas­ses: desaparecidos os antagonismos sociais, no regime econômico e social, preponderará a solidariedade dos interesses de todos. 2 1

No plano internacional, confia a doutrina no interesse que os homens de cada um dos países têm no cooperativismo: as federações das coopera­tivas nacionais entender-se-ão entre si com facilidade. E o mundo apresen­tará aos poucos o aspecto de um vasto agrupamento de cooperadores.

O cooperativismo, em sua forma mais generalizada, apresenta, sem dúvida, muita semelhança com o coletivismo: em ambos os casos visa-se pôr os meios de produção ao alcance de todos. Mas as duas doutrinas se separam por uma diferença profunda: o cooperativismo pretende reahzar o seu ideal sem lançar mão de qualquer espécie de coerção. E, ainda, conforme muito bem observou J. L. Almeida Nogueira,22 o traço distin-

As suas p r i n c i p a i s obras sobre o assunto s ã o : Coopération (Coletânea de cc-nferências de propa g an da) , P a r i s , 1900; dentre os art igos a p a r e c i d o s na Revue d'Êconomie Politique, Paris', particularmente os de janeiro de 1929; La Coopération à 1'Étranger ( A n g l e t e r r e , R u s s i e ) , curso dado no Collège de France, 1926-27; Institutions du. Progrés Social, 5 . a ed., 1920; La Lutte contre la Cherté et la Coopération, P a r i s , 1925; L'École Nouvelle, in Quatre École d'Économie Sociale, Genebra, 1890.

2 1 . O princípio b á s i c o do c o o p e r a t i v i s m o é, com efeito, o princípio da solidariedade moral. O solidarismo não constitui, aliás, a p a n á g i o e x c l u s i v o da doutrina c o o p e r a t i v i s t a servindo, ao contrário, de apoio a inúmeras outras correntes doutrinárias, dentre as quais o i n t e r v e n c i o n i s m o em geral, o s i n d i c a l i s m o , o mutual ismo etc. E s t a n o ç ã o de solidariedade e v o l u i u : A d a m S M I T H ao tratar da d i v i s ã o do trabalho referia-se à sol idariedade natural e funcional, m u i t o semelhante a solidariedade o r g â n i c a que D U R K H E I M extrairá das " d e s s e m e l h a n ç a s " e a s s o c i a r á t a m b é m à divisão do trabalho. A l g u n s sociólogos darão e s p e c i a l ênfase à solidariedade o r g â n i c a , tais como Rodbertus, Schaeff le , Li l ienfeld, W c r m s etc. A n o ç ã o de solidariedade, tal como é aceita pelp. intervencionismo e pelo cooperativismo é de natureza j u r í d i c o - p o l í t i c a : é a do " q u a s e - c o n t r a t o " , apresentada por L é o n Bourgeois ern sua obra La solidarité (1897).

Sobre o s o ü d a r i s m o cf. Ch. G I D E e C h . R I S T ; ob. cit., Léon B O U R G E O I S , ob. cit. e E s s a i d'une Philosophie de la Solidarité, 1902; B O U G L É : Le Solidarisme, 1907.

22. L. L. A L M E I D A N O G U E I R A : Curso Didático de Economia Política, 5." e d i ç ã o , re­

v i s t a p e l o D r . C a r d o s o de M e l l o N e t t o , São P a u l o , 1936, 225.

Page 282: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tívo entre cooperativismo e coletivismo reside no fato de não desejar aque­le se imiscua o Estado diretamente na vida econômica.

2. O COOPERATIVISMO PRÁTICO

Se a doutrina cooperativista se tivesse limitado simplesmente à sua elaboração teórica — conhecida sob a denominação de Escolas de Nimes — por certo poucos teriam sido os seus resultados práticos.

O seu êxito se deveu, pois, à circunstância de — não obstante imbuí­dos das mais diversas concepções doutrinárias — haverem muitos de seus elaboradores enxergado no agrupamento cooperativista um meio prático de se alcançar a melhoria da sorte dos homens, não sendo, portanto, ne­cessário reformar as bases sobre as quais assenta a atual organização so­cial ou modificar o seu funcionamento. E, pois, deixando de lado o coope­rativismo, o plano de reformas gerais e totais para se satisfazer com o papel de instrumento de melhoria das condições sociais e econômicas en­controu o apoio dos economistas das mais diversas tendências doutrinárias, bem como o auxílio direto dos partidos políticos de todos os matizes.2 3

23. Em F r a n ç a , posteriormente a Charles G I D E - Bernard L A V E R G N E : Les Fédérations d'Achat et de Productions, 1908; L'Oidre Coopératii, 1927; La Révolution Coopérative — ou le Socialisme de 1'Occident, P a r i s , 1949; Le Socialisme Coopéiatii, Paris , 1958; C l a u d e V I E N N E Y , L'Économie du Secteui Coopératii, Paris, Ed. C u j a s , 1966; H e n r i D E S R O C H E , Coopéiation et Développement, P a r i s , P Ü r , l y 6 3 ; B R O C A R D : La Coopéiauve et le Mouvement Coopéiatii; P O I S S O N : La Republique Coopérative; Georges L A S S E R R E : Des Obstacles au Développement du Príncipe Coopératii, 1926; Socialiser dans la Liberte, P a r i s , 1949; Le Secteur Coopératii et la Protection des Consommateurs ; Gaetan P I R O U : Les Nouveaux Aspects de la Doctrine Coopéra­tive, in Revue de Métaphysique et de Morale, jan. 1928; P A S Q U I E R , A . : Les Doctrines Sociales en France, 20 ans d'évolution 1930-1950 (cap. V, Sec. I I : Le Coopérativisme ou la Croisée des Chemins de la Liberte, P a r i s , 1950 etc. C. V I E N N E Y : Analyse Économique du Secteur Coopé­ratii, in A r c h i v e s I n t e r n a t i o n a l e s de Sociologie de la C o o p é r a t i i , Paris , 1960, n.° 7. Na I t á l i a : V O L L E N B O R G , L U Z Z A T T , C O S S A , U G O R A B B E N O : L a Societá Cooperativa d i Produzione. N a S u í ç a , B O S O N e outros, além d a escola c h a m a d a idealista, com H . M Ü L L E R , K A R L M U N D 1 N G , S E C R E T A N . N a Alema nha , a escola dita m a t e r i a l i s t a o u d e H a m b u r g o , com F . O P P E N H E I M E R , A u g u s t M U E L L E R , Ed. J A C O B , R . S C H L O E S S E R , S T A N D I G E R etc. (cf. T O T O M I A N Z : Les Théoriciens de Langue Allemande de la Coopération, in revue d'Économie Politique, Paris , 1922). N a E s p a n h a : L I Z C A N O , G I N E R , A Z C A T E , H U R T A D O . E m P o r t u ­g a l : José Cipriano da C O S T A G O D O L F I M : A previdência, associações de socorros mútuos, cooperativas, caixas de pensões e reformas, caixas econômicas, L i s b o a , 1889; A n t ô n i o S É R G I O : Introdução atual ao programa cooperativista. Confissões de um cooperativista. Na B é l g i c a : de P A P P Ê , A N S E C L E , B E R T R A N D , V A N D E R V E L D E ; L A M B E R T , P a u l : L a Doctrine Coopé­rative, B r u x e l l e s , 1959 etc. Na I n g l a t e r r a : Leonard S. W O L F : Coopération and the Future of Industry, Londres, 1 9 1 9 ; S i d n e y e Beatrice W E B B : The Consummer's Coopérative Mouvement, N o v a Iorque, 1921; H O L Y O A K E , G. J . : History of Coopération, Londres, 1906. Na A m é r i c a do N o r t e : J a m e s P. W A R B A S S E (presidente da Coopérative League of America): Coopérative Democracy, N o v a Iorque, 1923; S. P. H A R R I S : Coopération to hope of the Consummer, N o v a Iorque, 1918 e t c ; na U R S S : O Plano Cooperativo de Lenine, in M a n u a l de E c o n o m i a P o l í t i c a da A c a d e m i a de C i ê n c i a s da U R S S ; K I S T A N O V : As Cooperativas de Consumo, M o s c o u , 1951.

No M é x i c o = F i d e l C a s a s C H A V E S : EI Cooperativismo ( T e s e da F a c . D i r e i t o e de C i ê n ­cias S o c i a i s ) , M é x i c o , 1940. No Chile W. O s c a r P A N A O : The Coopérative Movement in Chi­le, W a s h i n g t o n , 1940. No P a r a g u a i = J. T o m á s B A R B O S A : Cooperativas en el Paraguay ( R e v . Centro C i ê n c i a s E c o n . , ano 2, n.° 16, 1940). No B r a s i l = F á b i o L U Z F I L H O : O Cooperativis­mo no Brasil e sua Evolução, R i o , 1940; Teoria e Prática das Sociedades Cooperativas, 3 , a ed., R i o , 1946; Sipnose do Movimento Cooperativo Brasileiro, R i o , 1960; L U I Z A M A R A L : Tratado Brasileiro de Cooperativismo, São Paulo, 1S38- José Saturnino B R I T O : Evolução do Cooperati­vismo, R i o , 1946; V a l d i k i M O U R A : Curso Médio de Cooperativismo, Rio, M. A. , 1968; Notícia do Cooperativismo Brasileiro, São P a u l o , 1948; Rumos da Cooperação Contemporânea, R i o , 1960; P I N H O , D i v a B e n e v i d e s : Dicionário de Cooperativismo, S. P a u l o , 1961; Que é Cooperativismo? São Ppulo, E d . D o m i n u s , 1966; Cooperativas e Desenvolvimento Econômico, São P a u l o , F F C L da U S P , 1966; A Doutrina Cooperativa nos Regimes Capitalista e Socialista, S. P a u l o , E d . P i o ­neira, 1966; Sindicalismo e Cooperativismo, S. P a u l o , I C T , 1967, 2 v o l s . ; W a l d í r i o B u l g a r e l l i : Natureza Jurídica da Sociedade Cooperativa, S. P a u l o , 1962; Tratado Geral de Crédito Coopera­tivo, 1966, 2 v o l s . ; T. H. Máurer Júnior: O Cooperativismo, S. Paulo, 1966. Em M o ç a m b i q u e

Page 283: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E, com efeito, o movimento cooperativista de aspirações assim restri­tas, uma vez iniciado, no século XIX, com a criação das cooperativas de consumo na Inglaterra, expandiu-se por todo o mundo nos primórdios do século XX, com a criação de cooperativas de produção, nos Estados Uni­dos, e a ampliação das de crédito, na Alemanha.

Seu desenvolvimento acelerou-se desde o fim da Segunda Guerra Mun­dial- Hoje o cooperativismo tem seu lugar na maior parte dos países: qual­quer que seja o meio político em que se desenvolve, quaisquer que sejam as modalidades particulares de sua organização e de suas aplicações, apre­senta-se sempre como uma organização social de defesa e de valorização do indivíduo, ao mesmo tempo que instrumento técnico de desenvolvimen­to econômico.

O cooperativismo começou como uma defesa do indivíduo contra os excessos do individualismo em regime de economia concorrencial; tornou--se uma defesa contra os abusos e as deficiências dos poderes públicos tan­to em regime de economia parcialmente como integralmente planificada.

Contra os abusos do Estado, a cooperativa se constitui pela livre ini­ciativa dos indivíduos; contra suas deficiências, é mais freqüentemente o poder público mesmo que organiza a cooperativa vendo nela o meio de aplainar as dificuldades de aplicação de uma política econômica centrali­zada e também o meio de conservar em certos setores da produção — agricultura sobretudo — a iniciativa, o interesse e a responsabilidade in­dividuais como fatores de produtividade.

Esta última forma de cooperativismo é muitas vezes chamada "falsa cooperativa" porque não é criada voluntariamente por seus membros, ou "cooperativas provisórias" porque seriam destinadas a desaparecer desde que certos resultados obtidos permitiriam dispensá-las.24

Que seja ou não desejável admitir os princípios da obrigatoriedade ou da precariedade nas organizações cooperativas, é uma discussão que não pode ser abordada aqui, mas o que importa é que as cooperativas existem, funcionam, desenvolvem-se, trazendo com elas o espírito do coope­rativismo. O que é necessário considerar antes de tudo, para apreciar o

= a equipe do Centro M o ç a m b i q u e de E s t u d o s C o o p e r a t i v o s , em especial H o m e r o F e r r i n h o : Cooperativismo, a mais sólida base da promoção rural airicana. L. M a r q u e s , S E C , 1966; Coope­rativismo, Cooperativas e Desenvolvimento Comunitário, L. Marques, S E C , 1968.

Ler, sobre as relações existentes entre o c o o p e r a t i v i s m o e, r e s p e c t i v a m e n t e , o c a p i t a l i s m o , o social ismo, o comunismo, o tradeunionismo etc. = L A I D L E R : History oi socialisc thought, N o v a Iorque, 1936.

V a s t a é a l i teratura que nos fornece informações detalhadas sobre 8 e x p a n s ã o das diversas espécies de cooperativas. Leia-se, além das obras iá c i tadas = L A I D L E R : The British coope-i ü n " ' e Movement, N o v a Iorque, 1921; G. J. H O L Y Õ A K E : The History oi Coopération, Londres, M T 4 r , F ' C ' H O W E : Denmark, a Cooperative Commonwealth, N o v a Iorque, 1 9 2 1 ; G r o m o s l a v M L A D E N A T Z : Historia de Ias Doctrines Cooperativas, M é x i c o , 1944.

. 24. Na U R S S , o Programa do P a r t i d o C o m u n i s t a de 1961, que determina as m e d i d a s prin­cipais dest inadas a "construir a sociedade c o m u n i s t a " , longe de diminuir a i m p o r t â n c i a do se-

or cooperativo, apela, mais do que no p a s s a d o , para sua atividade. A t r a n s f o r m a ç ã o dos kol-nozes em e x p l o r a ç õ e s do E s t a d o não está p r e v i s t a no decorrer das duas p r ó x i m a s d é c a d a s .

Por outro lado, a forma obrigatória da o r g a n i z a ç ã o cooperativa é, em certos casos, uma tapa provisória para o cooperativismo v o l u n t á r i o . É o que se passa em Israel , p a í s que co-

ece um dos m a i s intensos movimentos c o o p e r a t i v o s , ou também a I t á l i a depois da Segunda Guerra M u n d i a l etc. 283

Page 284: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

papel e o futuro da organização cooperativista, não é tanto o que o meio político no qual vive deseja que ela seja, mas o que seus próprios mem­bros entendem por ela e desejam fazer dela.

O desenvolvimento atual do cooperativismo se observa tanto nas Eco­nomias ocidentais como nas Economias da URSS, da China, da Índia, onde suas aplicações são variadas e amplas.

Esse progresso do cooperativismo resulta sem dúvida nenhuma das vantagens que apresenta para o indivíduo, permitindo-lhe defender-se pela associação, contra os abusos de que já falamos; mas esse progresso do cooperativismo se explica também por seu valor como instrumento de ra­cionalização técnico-econômica da produção e das trocas.' Essa é a razão pela qual a fórmula cooperativista apresenta hoje tão grande interesse para os países subdesenvolvidos onde toma lugar entre os "pólos de desenvol­vimento" importantes, capazes de contribuir eficazmente para a acelera­ção de seu processo de evolução econômica.

Mas o cooperativismo não limita seus efeitos à Economia: transcende largamente esse plano econômico e, no plano social, representa importante fator de transformação moral dos homens, facilitando sua adaptação à vida social, criando-lhes novas mentalidades, desempenhando esse papel de con­trapeso — de "counter-vailling power" — às forças retrógradas que afrou­xam a evolução econômica e social. É, portanto, um fator decisivo do processo de desenvolvimento do "social change". 2 5

Todas essas possibilidades explicam o sucesso do cooperativismo no mundo e fazem dele, particularmente, um elemento de primeira ordem para a solução do problema econômico e social do subdesenvolvimento.

Subseção 2 — O grupo familial: Le Play e sua escola

A cooperativa representa a organização da ordem econômica sob uma forma associativa. Ora, autores existem para os quais o remédio contra as falhas do liberalismo deve ser buscado de preferência no plano social e não no econômico. As desastrosas conseqüências de uma livre concor­rência desenfreada — pensam eles — não se fazem sentir apenas no cam­po da produção e da repartição das riquezas: estendem-se para além do quadro das atividades econômicas, indo exercer influência sobre as con­cepções sociais dos homens, que a interpretam, assim, como uma "moral livre", mais ou menos próxima de um individualismo anárquico.

25. I n s i s t o sobre ?. cooperativa como fator de e v o l u ç ã o do homem, como criadora do meio fr.vorável a instruí- lo e a v a l o r i z á - l o . É neste meio que ele vem buscar, como produtor e como consumidor, as v a n t a g e n s que lhe oferecem as cooperativas. É evidente que o sentido " h u m a ­n o " da cooperativa, aiém de suas vantagens técnicas, ocupa importante lugar em todas as pol í ­t icas atuais de d e s e n v o l v i m e n t o . Sobre esse assunto, indi. amos as obras da Dra. D i v a E e n e v i -des P i n h o : Cooperativas e Desenvolvimento Econômico, F a c . Fi losofia, C i ê n c i a s e L e t r a s da U n i v e r s i d a d e de São P a u l o , 1962; CWoperativismo e Problemas de Desenvolvimento Regional, F F C L d a U S P , São P a u l o , 1964.

Page 285: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A preponderância de pontos de vista econômicos leva, socialmente, à justificação da ilimitada expansão do espírito inovador e à condenação e ao desprezo do espírito conservador.

f contra semelhante concepção que Frederico Le P lay 2 6 protesta energicamente, recusando-se a admitir a possibilidade de separação entre tradição e inovação. Ergue, assim, em princípio, o dever apoiar-se a ino­vação na tradição toda vez que se pretenda realizar um progresso positivo que perdure. A ordem social — indispensável às sociedades progressivas

só pode ser mantida através da conservação das instituições consagra­das pela experiência dos séculos.

Em outras palavras, recusa-se Le Play a aceitar uma sistematização simplificada, na qual se fizesse tabula rasa da tradição no que esta tem de permanente e indispensável à "essência da constituição da humanidade".

Partindo deste princípio, insurge-se Le Play, com razão, contra o en­fraquecimento — na ordem social e econômica — de certas instituições, indicando que o passado destas, longe de condená-las, mostra a sua utili­dade e justifica a necessidade de protegê-las. Este, o caso da família.

Le Play, cidadão de um país onde a família ainda constitui o centro respeitado da vida social, estava em condições favoráveis para falar so­bre a importância representada por esta instituição, ressaltando os perigos advindos dos ataques que lhe eram dirigidos por fautores da desordem ou pelos iluminados artífices de regimes utópicos. Ou melhor: com base na história e na observação atenta das instituições da sua época, erige Le Play, princípio essencial à sua doutrina, a instituição da família — forta­lecida através das tradicionais qualidades que se lhe incorporarão de novo — como o grupo por cujo intermédio será possível conseguir-se a tão de­sejada harmonia entre o interesse geral, de um lado, e os interesses parti­culares, de outro. 2 7

A família, servindo de intermediário entre o indivíduo e a sociedade, é a principal tese desenvolvida por Le Play em sua doutrina, tese, aliás,

26. Frédéric L E P L A Y (1806-82), francês, engenheiro d e minas e m F r a n ç a , professor n a E s c o l a de M i n a s , conselheiro de E s t a d o , e que viajou muito, publica, em 1855, uma coletânea da monografia sobre famíl ias p r o l e t á r i a s : L e s Ouvrieis Européens. E, posteriormente, estudos sobre as o c u p a ç õ e s , a v i d a doméstica e as c o n d i ç õ e s morais das populações operárias da E u r o ­pa, fazendo-os preceder da exp o siçã o sobre o seu método de o b s e r v a ç ã o : La Reforme Sociale, 1864. Em 1856 criara a Societé d'Économie Sociale, que a partir de 1881 tem por órgão publi­citário a r e v i s t a int i tulada Reforme Sociale. P u b l i c a m a i s : Les Ouvriers des Deux Mondes, 1857-63; L'Organisation du Travail, 1870; Le Prix Social selon la Pratique des Autorités Soumi-ses au Décaloque, 1 8 7 1 ; L'Organisation de la Famille selon de Vrai Modele signalé par l'His-toire de toutes les Races et de tous les Temps, 1 8 7 1 ; La Constitufioo de VAngleterre, 1875; La Constitution Essentielle de 1'Humanité, 1881.

L e i a - s e , sobre LE P L A Y e a sua escola A U B U R T I N : Frédéric le Play d'après lui--même, P a r i s , 1936; L u c i e n B R O C A R D : Les conditions générales de 1'ativité économique, P a ­ris; 1934; Príncipes d'économie nationale et internationale, Paris, 1929-31 ; Le Maintien et la Défense de la Famille par le Droit (Série de conferências proferidas na F a c u l d a d e de D i r e i t o d e N a n c y , por F . S E N N , M . K R O E L , L . M I C H O N , H . S I M O N E T , F . G È N Y , P . V O I R I N , J- T R O T A B A S , G. R É N A R D , A. H E N R Y , L. B R O C A R D , Paris, 1930; Budget de Famille e t Consommation Privée, 1 9 1 3 ; Fernando de A Z E V E D O : Princípios de Sociologia, S. P a u l o , 1935, Parte I V , cap. 3, p. 248.

27 No m e s m o sentido exprime-se C A U W È S : La Famille Est au point de vue Économique comme au point de vue Moral la Clef de Voute de 1'Éditice Social (.Cours d'tconomie Politi-oue, tomo I ) . 285

Page 286: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

esposada por seus discípulos. Para comprovação da sua tese adotou Le Play um método seu — o método monográfico —, cujos resultados lhe permitirão, a um tempo, criticar a organização social existente e apresen­tar um projeto de reforma construtiva para o futuro.

O método empregado por Le Play toma como ponto de partida a observação direta de certos fatos, cuja história traça com especial cui­dado. 2 8

O seu trabalho "Ouvriers Européns" (1855) constitui o exemplo ca­racterístico de aplicação deste método. Trata-se de uma coletânea de vá­rias monografias sobre famílias proletárias. Le Play escolheu a família proletária para objeto de observação e descrição, por ver nela a "molés­tia primordial das sociedades". Uma vez que a família é o centro gerador das forças vivas de uma nação, cujas atividades aí se originam ou para aí convergem, possível será, através do conhecimento do grau de resistência e de prosperidade desse grupo, aferir-se da existência, ou não, de idênticas condições no seio da sociedade como um todo.

Le Play aplicou-se, pois, a descrever a jamília-padrão ou típica, repre­sentativa da maioria das famílias. E para tal fim escolheu a família ope­rária, que — mais do que qualquer outro grupo — está sujeita, em todos os países, à pressão do meio. E, de preferência, faz as suas observações em famílias operárias rurais. Alguns de seus discípulos estenderão poste­riormente o seu método aos meios urbanos e burgueses.29

E para observação tomou Le Play como principal objeto o orçamento familial, uma vez que — segundo pensava — todos os atos ou manifes­tações familiais dignos de nota se traduzem materialmente por uma recei­ta ou despesa.

O valor de semelhante método depende da capacidade do pesquisador. Le Play, dotado de grande acuidade de observação e extremamente escru-puloso, tendo percorrido em suas viagens todos os países da Europa, ao aplicar o seu método soube extrair dele ensinamentos interessantes.

Do resultado das observações feitas tira, assim, subsídios para uma crítica relativamente ao estado social de sua época. Verifica que os ex­cessos do individualismo levam o homem à busca de uma liberdade ab­soluta. Esta vertigem de liberdade apresenta dois perigos: o isolacionis-mo, em relação ao grupo social, e a preocupação, sempre mais absorvente, como interesses materiais e imediatos particularistas. Le Play observa que as conseqüências desse fato se refletiram no estado da família de então, servindo de barômetro social e econômico. Denomina-a de família "ins-

28. A respeito do método de LE P L A Y encontraremos indicações complementares em = Henry T R U C H Y : L a mê'hode e n Économie Politique. P * r i s , 1 9 1 1 : F r a n ç o i s S I M I A N D : L a Méthode Positive en Économie Politique, Paris , 1 9 1 2 ; P. C H A M P A U L T : texto sobre o m é t o d o em La Science Sociale, Paris , fevereiro de 1 9 1 1 ; F e r n a n d o de A Z E V E D O : op. cit., à p. 255 este autor indica como d i s c í p u l o brasileiro do método de LE P L A Y — S í l v i o Romero ( 1 8 5 1 --1914).

29. Encontrar-se-á uma excelente a p l i c a ç ã o do método de LE P L A Y — sob a forma m a i s ampla — no recente estudo feito pelo canadense Léon G É R I N sobre os meios agrícolas de tra­dição francesa em seu p a í s : Le Type Économique et Social des Canadiens, M o n t r e a l , 1937.

Page 287: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tável". Instável, primeiro, em virtude do afrouxamento dos laços da união entre os seus membros, tornados cada vez mais frágeis e precários, dada a expansão do divórcio e da união livre. E, depois, pelo desmembramen­to do patrimônio econômico que lhe serve de base, em razão do regime de sucessão hereditária em vigor na maioria dos países modernos, regime esse que consagra a obrigatoriedade de se partilhar o patrimônio familial igualmente por entre os herdeiros, após o falecimento do seu chefe.

A esta família instável contrapõe Le Play, não a família patriarcal, mas a família "tronco" (famille-souche). Neste tipo de família cabe ao pai a liberdade de escolher, dentre os seus filhos, o que lhe deve suceder hereditariamente e ficar no lar. E esta designação é feita por lhe parecer o escolhido mais apto a se manter à testa da empresa familial e assegurar a permanência das tradições.3 0 Os outros filhos, guiados pelo espírito de ino­vação, criarão fora do lar paterno novos centros de atividade, independen­tes da empresa familial.

Em uma família desse tipo existem reunidos o espírito de tradição e o de inovação: o espírito de tradição é apanágio sobretudo do filho desig­nado pela autoridade paterna para conservar, com as antigas qualidades, a empresa agrícola ou industrial, base econômica cuja permanência represen­ta a garantia da estabilidade familial. E o espírito de inovação será tam­bém preservado na organização da família "tronco", pois os demais filhos criam novos centros de atividades através de iniciativas fora do quadro fa­milial, incumbindo-se o filho e principal herdeiro da tarefa de fazer com que eles se estabeleçam.

Le Play, ao descrever a família "tronco", tomou, sem dúvida, como modelo a organização da família inglesa.

Do pensamento de Le Play duas são as idéias essenciais a serem fi­xadas: em primeiro lugar, a da necessidade do restabelecimento de uma autoridade na sociedade, precisamente a do pai ou chefe de família, de cuja atuação aguarda Le Play os melhores resultados. E na oficina exige também Le Play que se restaure a autoridade do patrão sobre os seus ope­rários: uma fábrica é por ele equiparada a uma grande família, na qual, graças à aceitação espontânea de uma autoridade e de uma hierarquia, o "bom patrão" assegurará aos seus assalariados a estabilidade e perma­nência no emprego, sendo o espírito de luta de classes substituído pelo de concórdia, em um ambiente de paz social.

E, em segundo lugar, pensa Le Play que o importante na reforma social a empreender — uma vez restabelecida a autoridade paterna — é

30. T r a t a - s e de assegurar a t r a n s m i s s ã o não só das virtudes familiares, mas t a m b é m so­c i a i s : " L a C h a l e u r du L o g i s E s t N é c e s s a i r e à l ' É c l o s i o n de toutes les V e r t u s S o c i a l e s " , escre­veu B O U G L É em seu Le Solidarisme. T r a t a - s e t a m b é m de assegurar a t r a n s m i s s ã o dos predica­dos p e c u l i a r e s a uma raça e a um povo. N e s t e sentido d i i o professor L u c i e n B R O C A R D : " D e generation en génération, la famille transmet les patrimoines accumulés par la n a t i o n ; le^ p a t n -moine économique d'abord, et ensuite un p a t r i m o i n e proprement humain, composé d'éléments biologiques et p s y c h o l o g i q u e s , si étroitement unis qu' i l est impossible de les séparer". ( C o n -«itions Générales de VActivité Économique, P a r i s . 1934, p. 468).

Page 288: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

o fortalecimento da função econômica da família.31 E para tanto basta que a modificação do regime de sucessão hereditária lhe restitua a função de transmitir a empresa e garantir a sua permanência.

A família — e tão-somente esta —, reorganizada e solidamente assen­tada em uma base econômica permanente, constitui o único grupo apto para intervir no sentido de restabelecer a harmonia social.

Le Play teve discípulos, e mesmo em grande número: Cláudio Janet, 3 2

Cazajeüx, Blondel, du Maroussem,3 3 Cheysson, S. Souchon, o Abade Henri de Tourville 34 e Démolins.3 5 Estes dois últimos afastaram-se muito de cer­tas idéias do mestre, formando, com outros dissidentes, o grupo da "Science Sociale", dentre cujos componentes citaremos principalmente Poinsard, 3 6

Champaut, 3 7 Paul de Rouseirs 38 e Paul Bureau.3? Para difundir a sua doutrina, fundaram Le Play e seus discípulos

ortodoxos sociedades conhecidas sob a designação de "Unions de la Paix Sociale", as quais tinham por órgão publicitário a revista intitulada "La Reforme Sociale".

A instituição social "família", a partir da época dos principais tra­balhos de Le Play — escritos por volta de meados do século XIX —, se tem afastado cada vez mais do tipo ideal descrito pelo autor.

A evolução econômica abriu um fosso profundo entre a fábrica e a antiga oficina doméstica. E quanto à família propriamente dita, caracte­riza-se ela, na maioria dos países, pela instabilidade de sua constituição: a difusão do divórcio é uma das causas responsáveis por esse fato. E, assim também, o advento das duas grandes guerras, a de 1914 e a de 1939, que obrigaram a mulher, nos países beligerantes, a trabalhar fora do lar. A crise econômica de 1929-30, cujas penosas conseqüências se prolongaram até à eclosão da guerra de 1939, concorreu também, em muitos casos, para agravar a instabilidade familial.

Ern uma época como a atual, em que uma revisão de certos princípios fundamentais à existência se impõe a todos os povos, parece ser útil meditar sobre este retorno à tradição familiar.40

3 1 . " E l l e (la f a m i l l e ) demeure un organe essentiel de ollaboration entre les membres v i -vants de la nation, un organe non moins e s s e n t i t l de col lahoration et de transmission entre les générations qui se s u c c è d e n t " ( L . B R O C A R D , op. cit. , v o l . II do Traité d'ÉEconomie Politique, publicado sob a direção de H e n r y T R U C H Y . P a r i s . 1934).

32. C o n f e r ê n c i a s in Quatre Écoles d'Éconcmie Sociale, 1890. 33. Les Etiquetes, Pratique et Tbéorie, 1900. 34. O A b a d e de TOURVILLE foi. com D É M O L I N S , fundador da revista La S c i e n c e So­

ciale. Sua principal obra intitula-se Histoire de la Formation Particulariste, 1897-1903. L e r so­bre o autor e sua obra = C l a u d e B O U V I E R : Un Pêtre, Continuateur de le Play, H. de Tour­ville, 1907; B U R E A U : L'Oeuvre de H. de Tourville.

35. A quoi Tient Ia Supérioritê des Anglo-saxons? (26 edições, 8 t r a d u ç õ e s ) ; Comment la Route Crée le Type Social — La Classiíica'ion Sociale — L'Éduca*ion N^uvelle. 1899.

36. La Production. le Travail et le Problème Social dans tous les Pays, 1907. 37. Les Types Familiaux, 1911. 38. La Fonction de 1'tlite' dans la Societé Moderne, in Science Sociale, outubro de 1912 e

janeiro de 1914. 39 Le Contraí de Travail, la Crise Mor ale des Temps Nouveaux etc. 40. " L a f a m i l l e est la source des sentiments al truistes de fraternité, de solidarité, que

sont la base de la vie sociale. E l l e forme la seule transition naturelle qui puisse nous d é g a g e r de la pure personalité. pour nous é'éver p r i d u e l l e m e n t j u s q ' à la vraie s o c i a b i l i t é . " ( A u g u s t e C O M T E , Systime de Politique Positive, I I I , p. 183).

Page 289: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A família, primeiro núcleo de onde se irradiou a civilização humana, deverá permanecer, não só como o centro natural de reprodução da espé­cie, mas também como o incomparável foco de elaboração e transmissão dos predicados morais e sociais.

Resumindo, podemos dizer que o objetivo colimado por Le Play era a busca da paz social através da harmonização dos interesses. Este consti­tuirá ainda o objetivo que outros autores desejam também atingir, porém para a sua reorganização católicos e protestantes sociais elaborarão neste sentido as doutrinas, cujos princípios gerais passaremos a examinar.

Subseção 3 — Os grupos confessionais

É possível reunir sob a designação de "reação confessional" um con­junto de doutrinas, tendo por idéia principal a necessidade de tirar da moral religiosa conclusões de ordem social e econômica, conducentes à melhoria da sociedade, mediante a reorganização.

Esta reação, da qual fazem parte sobretudo as escolas cristãs,4 1 ma­nifestou-se a partir da segunda metade do século XIX, ao mesmo tempo, contra a doutrina liberal e a socialista. Critica, no liberalismo, o excessivo apego ao princípio da responsabilidade individual que o leva a um des­caso, por assim dizer absoluto, pelo interesse social. E condena o socia­lismo por sacrificar a personalidade humana à coletividade.

A solução preconizada pelas escolas cristãs leva em consideração ambos os interesses: sem menosprezar o caráter social da personalidade humana, não se deseja, todavia, que o homem seja suplantado pela socie­dade. Deus estabeleceu para cada homem, individualmente, um objetivo a atingir, tornando-o responsável pelos próprios atos. O interessa pessoal permanece, pois, como o principal móvel da atividade social, em geral,

4 1 . A respeito das escolas cristãs e em função da questão social e econômica, ler B R A U E R : The Catholic Social Movement in Germany, O x f o r d ; P e . L e o p o l d o B R E N T A N O , S. J . : A Rerum Novarum e seu qüinquagésimo aniversário. R i o de Janeiro, 1941; E. C H E N O N : Le Role Social de l'Église, P a r i s , 1929; John C L I F F O R D : Socialism and the Teaching oi Cbrist, Fabian Society, Londres, 1897; C h r i s t o v a m O B E R T H U R , O. B. M . : Poder e Limites da Igreja em matéria Econômica e Social ( C o l e ç ã o V i s c o n d e de C a i r u ) , R e c i f e , 1941; E u g . D U T H O I T : Vie Économique et Catholicisme, Paris , 1924; T. N. F I G G I S : Churches in the Mo­dem State, Londres, 1914; T. E. F R A N K L I N : The Relation oi Christianity to socialism, N o v a Iorque, 1 9 1 4 ; W. G L A D D E N : Christianity and socialism, N o v a Iorque, 1905; G. G O Y A U : Au-tour du Catholicisme Social, P a r i s ; M. K A U F M A N N : Christian Socialism, L o n d r e s , 1888; L E -R O Y - B E A U L I E U : La Papauté, le Socialisme et la Démocratie; G. L E G R A N D : Les Grands Courants de la Sociologie Catbolique à 1'heure presente. Paris , 1927; L A P E Y R E : Le Catholicis­me Social; A l b e r t M Ü E L L E R , S. J . : Notes d'tconomie Politique, Paris , 1938, (2 s é r i e ) ; M a r ­tin S A I N T - L É O N : Histoire des Corporations; N o e l C O N R A D : Socialism in Church History, L o n d r e s , 1910; A. DE N E U V I L L E : Le Mouvement Social Protestam en France depuis ISSO, P a r i s , 1907; N I T T I : L e Socialisme Catholique, L o n d r e s , 1895; F r a n ç o i s P E R R O U X : Introduc-tion au Cours d'Économie Politique, P a r i s , 1938; G a é t a n P I R O U : Les Doctrines Économiquès en France depuis 1870, Paris, 1930 (liv. I I I , cap. I I ) ; A r m a n d R A S T O U L : La Démocratie Catholi­que en France, P a r i s ; R I T T E R : La Doctrine Sociale de 1'Église (trad. portuguesa de A g a m ê n o n de M a g a l h ã e s , Rio, 1 9 3 7 ) ; A Revolução das Iidéias Sociais nos Meios Católicos, in A Ordem, R i o , 1937, vol . X V I I , p. 1 3 1 ; E. R. A. S E L I G M A N N : O w e n and the Christian Socialists, in Political Science Quarterly, 1886, vol . I, n.° 2; H e n r y S O M M E R V I L L E : The Catbolic Social Movement, L o n d r e s , 1933; M A X T U R M A N N : Le Dévéloppement du Catholicisme Social depuis l'Encyclique Rerum Novarum, Paris. 1909: V A L D O U R : Libéraux. Socialistes. Ca'holiques So-ciaux, P a r i s , 1929; B. F. W E S T C O T T : Social Aspects oi Christianity, L o n d r e s , 1887; G e o r t i H O O G ; Histoire du Catholicisme Social en Fiance ( 1 8 7 1 - 1 9 3 1 ) ; H. G U I T T O N : Le Catholicism Social, P a r i s , 1945; G. L E F R A N C : Histoire des Djctrines Sociales dans VEurope Contempor.n a* (2 t o m o s ) . Paris , 1967.

Page 290: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

e da econômica, em particular. Todavia, para evitar que se concretize sob uma forma materialista, egoística e opressora, é preciso adotar certas medidas eficazes de contenção. Estas medidas nada mais representam que uma súmula das idéias gerais esposadas pelos adeptos dessa corrente dou­trinária.

Em primeiro lugar deve, pois, o interesse pessoal subordinar-se aos princípios da moral cristã: a autoridade e a influência social da Igreja voltariam, assim, a se fazer sentir com a preponderância que tiveram no passado, especialmente na Idade Média. <

E, em segundo, a igualdade deve ser o princípio diretor das relações humanas. 4 2 Não se trata da noção "igualitária" pregada pela doutrina socialista, mas de uma igualdade fraterna, semelhante à existente entre os irmãos consangüíneos. Esta igualdade permite o reconhecimento de uma hierarquia e chega mesmo a estabelecê-la. Nestas condições, certas escolas cristãs — a social e católica em particular — elaboram um programa de organização corporativa da sociedade.4 3 Esta igualdade fraterna se mani­festará ainda sob outras diferentes formas de associação: sociais-católicas e protestantes, em particular, preconizam a organização de cooperativas — cooperativas de crédito "Lamennais", por exemplo, cooperativas de produção (socialistas cristãos), cooperativas de consumo (o protestantis-mo social) — e também a formação de sindicatos, mistos ou simples (so-ciais-católicos principalmente).

E, por último, o interesse pessoal deverá ser mantido pela autoridade pública dentro dos devidos limites. Ao Estado incumbirá evitar e repri­mir abusos, sobretudo os advindos da livre concorrência e da concentração econômica. Assim sendo, a sua ação deve exercer-se de modo que atinja o duplo objetivo de: proteger as classes economicamente fracas e pôr em execução serviços de interesse geral, dos quais não queiram ou não possam ,os particulares se incumbir.

Examinemos agora a ação exercida, no campo social, sucessivamente pelos movimentos católicos e protestantes.

I. O movimento católico social

1. OS PRINCÍPIOS ESSENCIAIS DO. CATOLICISMO SOCIAL

O movimento católico 44 vai buscar os seus princípios essenciais nas encíclicas "Rerum Novarum", 1891, "Quadragesimo Anno", 1931, "Mater

42. " L ' é g a l i t é originel le des hommens n'est pas un fait d 'observation. E l l e a été affirmée clairement pour la première fois par le c h r i s t i a n i s m e " , A u g u s t e C O M T E . Traité de Politique, I, p. 407.

43. " L a Corporation est essentiel lement 1 ' image de 1 'Église. Pour 1 'Égl ise tous les f idéies sont é g a u x d e v a n t D i e u x , m a i s là s'arrête leur égal i té . Pour tout le reste, ils sont h i é r a r c h i -sés — S E G U R L A M O I G N O N , in A s s o c i a t i o n C a t h o l i q u e , 13 de julho de 1894 (ci tado por G I D E e R I S T , ob. cit., p . 595).

44. E n c o n t r a - s e uma excelente e x p o s i ç ã o dos princípios da " s o l u ç ã o cristã", no c a m p o e c o ­nômico, na obra de A l b e r t M Ü E L L E R , S. J., já c i t a d a : Notes d'Économie Politique, P a r i s , 1938, p r i n c i p a l m e n t e na p. 30 e segs. da l . a série.

Page 291: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

et Magistra", 1961, "Pacem in Terris", 1963, "Populorum Progressio", 1967 e "Humanae Vitae", 1968.

A Encíclica "Rerum Novarum" (1891)

Em 1891, quando aparece o primeiro desses documentos, os pro­blemas sociais e econômicos mais graves giram em torno dos abusos provocados pelo interesse pessoal excessivamente voltado — num sistema econômico liberal — apenas para a busca do lucro.

As grandes transformações técnicas do século conduziram à concen­tração das empresas e, com ela, a desequilíbrios e oposições de forças que várias vezes ameaçam o indivíduo e a sociedade e tornam mais viva e perigosa a luta de classes. Esta, depois de Marx, torna-se a bandeira do socialismo.

Considerando esses fatos, a Igreja marca, então, sua posição doutri­nária. Essa posição é ditada, antes de tudo, por considerações de justiça, o que conduz a criticar o liberalismo à medida que, ocupando-se das van­tagens dos interesses no plano econômico, desinteressa-se ele das conse­qüências desfavoráveis no plano social.

Essa preocupação de justiça, aliada à de fraternidade e de paz social, leva a Igreja a criticar também o socialismo, quer por sua oposição a certas instituições intimamente ligadas à iniciativa e à dignidade do homem — tal como a da propriedade privada — quer por sua posição favorável à luta de classes.

Nesse sentido, é exato considerar a Encíclica "Rerum Novarum" como a resposta cristã ao Manifesto Comunista e a "O Capital".

A Encíclica "Rerum Novarum", de Leão XIII, 4 5 contém, com suas críticas, o essencial das preocupações e diretrizes da Igreja para uma me­lhor organização e uma nova reconstrução econômico-social.

A oposição feita ao socialismo se caracteriza pela afirmação do di­reito de propriedade como um direito natural, base da organização social, que preexiste ao estabelecimento pelo Estado. Ao pretender suprimir a propriedade privada, o socialismo nada mais faz — segundo as próprias expressões da Encíclica — que procurar a realização da "igualdade nas privações, na indigência e na miséria". Na tese do materialismo histórico e combatida e condenada a luta de classes por contrária aos laços de fra­ternidade que unem os homens. Este sentimento de união fraterna read­quirirá seu pleno valor e força verdadeira com o retorno às crenças religiõ­

es. L E Ã O X I I I , 15 de maio de 1891. Sobre esse assunto cf. John F. C R O N I N , S. S . : 'ementmg the Social Encyclicals. in American Economic Lite (Review oi Social Economy), "r\r 7 „ ; C I e t u s F. D I R K S E N : The Catholic Pbilosopher and the Catholic Economist, id., I V , n.° 1, 1946.

Page 292: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

sas, único remédio eficaz e de efeito duradouro, para o estabelecimento de relações sociais em melhores bases. 4 6

A Encíclica opõe também restrições ao liberalismo econômico (lais-sez-faire) e formula princípios destinados a coibir os excessos do inte­resse pessoal. A ação da Igreja deve manifestar-se através da doutrina e das obras. A intervenção do Estado é aprovada toda vez que a liber­dade concedida às relações naturais ponha em risco a realização da jus­tiça. O Estado deve representar a "Providência para os trabalhadores" e zelar para que o operário receba, em troca do seu trabalho, um "salário justo", ou seja, uma remuneração suficiente para lhe garantir, a si e à família, uma subsistência digna. Este salário deve ser proporcional ao valor do seu trabalho.

Não se contentando com defender os direitos individuais dos operá­rios, pretende a Igreja garantir o exercício desses direitos, de modo mais eficaz, através da associação profissional, principalmente sob a forma cor­porativa. Aliás, o catolicismo considera a corporação — segundo a feliz expressão de Gaétan Pirou — como o "meio de assegurar a ordem sem matar a liberdade, escapando, a um tempo, da anarquia liberal e da coer­ção socialista" v

As associações profissionais são, pois, reconhecidas como de direito natural; os poderes públicos têm, em princípio, o direito de fiscalizar a sua atividade.

Embora seja a intervenção do Estado não só reconhecida como legí­tima, mas também preconizada, traça a Encíclica limites ao exercício da sua ação: "As leis não devem empenhar-se em empreender algo além do necessário à repressão de abusos e prevenção de perigos."

A Encíclica "Quadragesimo Anno" (1931)

A Encíclica "Quadragesimo Anno" 48 é um harmonioso prolongamento da anterior. A crise de 1929-30 desencadeou-se no mundo todo. A situa­ção econômica e social suscita problemas cuja solução parece cada vez mais difícil. O número de empreendedores falidos aumenta. Cresce tam­bém o desemprego tecnológico e conjuntural. A calamidade é mundial. A nova Encíclica estipula então que, na determinação do justo salário, se deve levar em conta, concomitantemente com as necessidades do trabalha­dor, a situação particular da empresa à qual pertença, bem como as "ne­cessidades da economia em geral". Recomendação judiciosa que, no início

46. Oa c a t ó l i c o s sociais insistem sobre a importância de ser mantido o direito de proprie­dade p r i v a d a em virtude do papel por este representado, não apenas na v i d a e c o n ô m i c a , mas também social. À propriedade privada l i g a - s e i n t i m a m e n t e a sorte da família, i n s t i t u i ç ã o de ca­ráter def init ivo na opinião de todas as correntes c a t ó l i c a s : e n c í c l i c a s Immortale Dei, 1885: Ar-canum sapientiae, 1890; Sapientiae christianae, 1890 etc.

47. G a é t a n P I R O U : Introduction a Vttude d'Écottomie Politique, Paris , p. 280, cf. i g u a l ­mente G. J A R L O T : Le Regime Coopéiatii et les Catholiques Sociaux, Paris . 1938.

48. P i o X I , 15 de maio de 1931.

Page 293: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

dessa grave crise, lembra a solidariedade existente entre trabalhador, ca­pitalista e empreendedor.4 9

Reconhece a Encíclica a utilidade de se aproximarem as condições do contrato de trabalho das do contrato de sociedade, amenizando por esta forma a sorte do trabalhador. Aprova, principalmente, as disposições que permitem a este último participar dos lucros da empresa.

O princípio da intervenção do Estado é mais uma vez afirmado e em termos semelhantes aos da Encíclica anterior. Insiste-se em recomendar aos grupos profissionais uma recíproca colaboração.

O catolicismo define de novo a sua posição no quadro das doutrinas sociais ao se declarar, por um lado, incompatível com o socialismo e ao se afastar, por outro, do capitalismo que não é "intrinsecamente mau, mas está viciado". O catolicismo declara existirem, realmente, leis natu­rais e providenciais. Todavia, observa que o livre funcionamento dessas leis foi perturbado por culpa dos homens. Não confia no liberalismo econômico e na ação dos interesses privados, quando abandonados a si mesmos. Nesta, como na Encíclica anterior, nota-se uma constante preo­cupação com o princípio de equilíbrio e de justiça. Exemplo caracterís­tico temos dessa atitude do catalocismo relativamente à questão dos bancos e do crédito. A Encíclica aponta, de início, os perigos decorrentes da vultosa acumulação de capitais nas mãos de um pequeno número de em­preendedores particulares e a condena. Verbera a usura vorax, abrangendo no termo "usura" tanto as práticas de agiotagem quanto as de especulação e açambarcamento. A fim de evitar tais abusos é preciso que a iniciativa individualista e anárquica seja, nesse importante setor da economia, subs­tituída por um dirigismo econômico sabiamente controlado.

Mas, denunciado o perigo, lembra, em seguida, a Encíclica que não se deve cair no extremo oposto de atribuir ao Estado a iniciativa direta de atividades que não lhe competem^ criando, assim, novos males:

"Seria cometer uma injustiça e ao mesmo tempo interferir de ma­neira prejudicial na ordem social, perturbando-a, retirar dos grupos de categoria inferior — para confiar a uma comunidade mais vasta e de categoria mais elevada — as funções que aqueles estão em condições de preencher."

O lucro auferido pelos banqueiros não é condenado em princípio: "Ao contrário, é eqüitativo que todos quantos prestem serviço à

sociedade e a enriqueçam lucrem também, segundo suas condições, com o acréscimo dos bens comuns, contanto que, na aquisição da fortuna, respeitem a lei de Deus e os direitos do próximo."

e x- As "necessidades da economia em geral", realçadas pelos períodos de crise econômica, n j _ Pcrmanentemente. A interdependência das relações econômicas, multiplicadas de ma-divi«-ta° I m P r e v i s i v e l . graças aos progressos da ciência e da técnica, é uma conseqüência da a dú3?- n a c l o n a l f internacional do trabalho. Cada um de nós depende de seu semelhante. Daí resoe> n e c e s s l Q a < i e , constantemente afirmada pelo catolicismo social, de, por um lado, se se »m ' no c a mpo econômico, a liberdade, prerrogativa do direito natural, e, por outro, não da iur e S t a r 3 8 S S a 1ÍDer<1ade um caráter absoluto; os seus limites são dados pelas prescrições J stiça, pela fraternidade e pelas legítimas exigências do interesse geral. "J

Page 294: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O banco é, além disso, uma organização aceita pela Igreja como instituição de interesse público, cujos dirigentes preenchem uma função eminentemente social. A importância do papel representado pelo crédito na moderna evolução econômica explica e justifica perfeitamente esta apre­ciação.

O que a Encíclica pretende realizar no delicado campo do interven­cionismo é atribuir ao Estado o papel, a um tempo, de fiscal e de incen-tivador. Este dúplice papel permitirá à autoridade pública preencher de modo "mais livre, mais enérgico e eficaz, as funções que a ela tão-sçmeníe incumbem: dirigir, fiscalizar, incentivar, reprimir, segundo comportem as circunstâncias ou exija a necessidade".

O Estado deve ser um dos elementos destinados a refrear a iniciativa privada toda vez que se exerça esta em detrimento do interesse geral. Mas — e a Encíclica insiste neste ponto — "a medida.mais eficaz para fazer com que a iniciativa se mantenha no plano do interesse geral é introduzir de novo, no capitalismo, o princípio da justiça e da caridade social".

A Encíclica "Mater et Magistra" (1961)

Esses princípios da doutrina econômica e social da Igreja são afir­mados de novo pelo Papa João XXIII na Encíclica "Mater et Magistra", publicada em 1961, em comemoração ao 70.° aniversário da "Rerum Novarum". O documento não somente confirma e precisa as diretrizes fundamentais das duas Encíclicas precedentes, mas ainda expõe o pensa­mento da Igreja sobre os problemas importantes e novos da época atual.

Convém, portanto, em primeiro lugar, recolocar essa Encíclica no seu contexto político e econômico.

Politicamente, a Encíclica aparece quando três grandes fatos se im­põem à atenção do mundo e da Igreja: inicialmente, a acentuação de um processo lento de descristianização nos países de civilização ocidental, não comunistas, evolução favorecida pelo rápido desenvolvimento de uma civi­lização de conforto — de "consumo" — à qual o homem parece pronto a sacrificar os verdadeiros valores de sua personalidade. Em seguida, esse processo se opera igualmente, mas com maior violência, em numerosos países comunistas onde a Igreja foi reduzida ao silêncio. Enfim, os povos da Ásia e da África conquistam sua independência, e esse movimento se desenvolve, nos dez últimos anos, segundo um ritmo tão rápido que tradi­ções, costumes e crenças estão fortemente abalados. E, assim, mais de um bilhão de indivíduos se encontram bruscamente colocados diante de uma multiplicidade de problemas novos. Para muitos desses indivíduos, edu­cados na fé em Cristo, é o problema de sua fidelidade à Igreja Católica que surge.

Esse contexto político da Encíclica se completa com dados econômi-294 cos e sociais novos em suas formas ou na intensidade de sua evolução,

Page 295: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

impondo-se à atenção da Igreja. A partir de 1945 o progresso da técnica entrou em uma fase particularmente revolucionária com a descoberta da energia nuclear que, juntamente com o desenvolvimento da automação, abre perspectivas inteiramente novas à produção e torna necessária, de­vido a suas conseqüências sobre o emprego e a organização da sociedade, uma profunda e rápida reconversão humana.

Ao mesmo tempo, os meios de transporte dos homens, das merca­dorias e do pensamento são cada dia mais rápidos e mais numerosos; su­primem as distâncias, "diminuem" o mundo, tornam comuns a todos os problemas de cada um, aumentam as relações entre os povos e impõem cada vez mais a criação e a multiplicação de organismos supranacionais, encarregados do bem de todos os povos nos diversos planos da atividade humana.

Mas, se esses dados econômicos aparecem como favoráveis por suas possibilidades de melhorar o bem-estar e pelas esperanças de colaboração internacional que determinam, provocam e acentuam com força certos de­sequilíbrios, que não podem deixar a Igreja indiferente: esses desequilíbrios são particularmente importantes no quadro nacional, entre os setores da indústria e dos serviços de um lado, e o setor agrícola de outro lado, na escala mundial, entre nações, quando a desigualdade de seu desenvolvimen­to econômico é demasiadamente acentuada.

Aí estão os principais elementos "dessa mudança de circunstâncias", que conduzem o Papa João XXIII, depois de haver confirmado e preci­sado as diretrizes sociais e econômicas de seus predecessores ( l . a e 2 . a

partes da Encíclica), a expor o pensamento da Igreja sobre esses novos e importantes problemas da situação atual do mundo ( 3 . a e 4 . a partes).

(1) CONFIRMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS ENCÍCLICAS ANTERIORES

Nas duas primeiras partes da Encíclica são reformados, precisados e ampliados os ensinamentos da "Rerum Novarum" desenvolvidos na "Qua-dragesimo Anno" e nas rádios-mensagens de 1941 e 1944 de Pio XII. 5 0

Iniciativa individual e poderes públicos

As relações entre a iniciativa pessoal e a intervenção dos poderes públicos no domínio econômico são estudadas em primeiro lugar. Essas relações devem ser de suplementação e de subsidiaridade. É a iniciativa

cristf" ' N ° t e m o s ° . u e a o resumir a " Q u a d r a g e s i m o A n n o " , João X X I I I lembra que entre o os " a n l ! n ? ° e o comunismo a oposição é radical . " D e c l a r a ainda o Pontíf ice ( P i o X I ) estarem forrn l n c , l p i o s catól icos em radical oposição com os comunistas e não poderem os c a t ó l i c o s , de meiro f E u m a ' aprovar os princípios do s o c i a l i s m o moderado, de cuja doutrina decorre em pri-e m . I u g a r que, estando a sociedade l i m i t a d a a o âmbito d o tempo, d e v e ser ordenada somente P r o d u U ° S a ° i ^° D e r n " e s t a r terreno; e em s e g u i d a que, relacionando-se o corpo social apenas à a,i»„ j30, b e n s temporais, a l iberdade sofre grave dano com o menosprezo da reta noção da • u t o r i a a d e s o c i a l . "

Page 296: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

do indivíduo — ou de indivíduos associados voluntariamente — que deve continuar como regra da atividade econômica. Mas a presença ativa da autoridade civil é igualmente necessária a fim de se obter "o aumento dos bens materiais em função do progresso social e em benefício de todos os cidadãos". Essa ação do Estado que "protege, estimula, coordena, subs­titui e completa" a do indivíduo, apóia-se no princípio da "suplemen-tação", formulado — como vimos — na "Quadragesimo Anno". Os pro­gressos recentes nos domínios da ciência econômica e na técnica de produção permitem, aliás, aos poderes públicos lutar, melhor do que no passado, contra as crises econômicas e reduzir os desequilíbrios entre os setores de produção, entre as regiões de um mesmo país e entre as diversas nações do mundo.

Reencontramos na Encíclica de 1961 essa busca constante dos limites à ação individual e pública para que de sua cooperação seja beneficiário o bem comum. 5 1

Onde não mais existe a iniciativa privada, "a tirania se instala". Onde não existe a ação do Estado ou onde é ela insuficiente, os mais poderosos, para obter suas vantagens, "abusam indignamente da miséria de outrem".

Os progressos da "socialização"

São em seguida os progressos da "socialização", em nossa época, que João XXIII observa, sublinha e estuda. Convém seguir e bem perto seu pensamento sobre esse ponto porque "socialização" faz parte de uma ter­minologia doutrinai que se presta a equívocos e que está sujeita a diversas interpretações.

O Papa entende por "progresso da socialização", precisamente, "o aumento crescente das relações entre os cidadãos, com várias formas de vida e atividade associadas, em geral reconhecidas pelo direito público ou privado". 5 2

O fato considerado é, então, o da formação e do progresso constante de grupos sociais destinados à satisfação de certas necessidades dos indi­víduos, em que sejam eles obrigados a se dirigir ao Estado. Seria então inexato confundir esse processo de socialização com o do socialismo: este último realiza progressivamente a extensão direta das atividades públicas na vida social, enquanto a "socialização" corresponde ao desenvolvimento da atividade econômico-social do grupo, independentemente da intervenção do Estado.

5 1 . V i d e o C a p í t u l o I I deste l ivro. 52. " P r o g r e s s o da s o c i a l i z a ç ã o " traduz um certo número de expressões u t i l i z a d a s no texto

latino da E n c í c l i c a , sobretudo: social ium rationum progressus (progresso das r e l a ç õ e s s o c i a i s ) ; social ium rationum incrementa ( d e s e n v o l v i m e n t o das relações s o c i a i s ) ; social is v i t a e processus (processo da v i d a s o c i a l ) e t c , cf. sobre esse ponto interessante estudo de P l í n i o Corrêa d« O l i v e i r a : A Socialização na Encíclica Mater et Magistra, in E s t a d o de São P a u l o , 7 - 8 - l ° 6 1 .

Page 297: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Essa socialização resulta sobretudo de uma tendência natural que leva os homens a se reunirem espontaneamente em grupos, a fim de obter bens de serviços que seriam incapazes de produzir isoladamente. Assim é que nos últimos tempos multiplicaram-se, no quadro nacional e internacional, grupos, associações, institutos de fins econômicos e sociais, culturais, re­creativos, esportivos, profissionais e políticos.

Essa socialização, em si, apresenta grandes vantagens para o indiví­duo, permitindo-lhe realizações justas e necessárias em domínios que afe­tam intimamente sua personalidade, tais como os da saúde, educação, ins­trução, habilitação, trabalho e repouso.

Entretanto, esse desenvolvimento importante da socialização provoca necessariamente uma intervenção cada vez mais minuciosa dos poderes públicos, a fim de definir e de regulamentar as relações mútuas dos indi­víduos no quadro desses grupos.

Essa intervenção do Estado por via regulamentar conduz a uma di­minuição da liberdade de cada um, até mesmo da independência do pen­samento, o que pode levar à criação de obstáculos ao livre desenvolvimento, à completa expressão da personalidade.

O problema consiste, então, em saber se o progresso constante da socialização deve-se realizar em detrimento da autonomia da personali­dade, se seu resultado será necessariamente transformar o homem em autômato. Não! responde categoricamente João XXIII: A socialização não resulta de um processo determinado e fatal. É uma criação do ho­mem e, como tal, pode ser modificada, expurgada, orientada pelo homem a fim de lhe dar o máximo de vantagens.

De que maneira é possível semelhante evolução da socialização? Pri­meiramente por. um esforço dos governantes no sentido de tornar justa a noção do bem comum a fim de conhecer, respeitar e favorecer as con­dições sociais e econômicas pelas quais o indivíduo tem melhor possibili­dade de atingir o desenvolvimento integral da sua personalidade. Esforço paralelo deve ser realizado também para que as múltiplas instituições que servem de quadro à. socialização sejam regidas por suas próprias leis e regulamentos e busquem atingir, em plena harmonia e de acordo com os imperativos do bem comum, o fim que a si mesmas fixaram. Esse resultado só é possível se os membros tomarem parte ativa na vida e na direção de seus agrupamentos.

Justiça e remuneração dos agentes da produção

A Encíclica examina, em seguida, o problema da remuneração do tra­balho. Esta deve ser fixada em função da justiça e da eqüidade, a fim de garantir ao assalariado e sua família uma vida digna. Deve corresponder •gualmente à contribuição efetiva do salário na produção, à riqueza da em­presa e ao bem comum de cada país. 297

Page 298: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Essas são regras válidas de modo geral; praticamente, devem ser adap­tadas às condições econômicas e sociais particulares das regiões e das na­ções.

A Encíclica insiste na necessidade de eqüitativa participação de todas as classes sociais no aumento das riquezas nacionais. Em uma época ca­racterizada pelo aumento rápido da produção, é indispensável que o pro­gresso social siga o mesmo ritmo a fim de que a riqueza criada seja útil a todos. O progresso econômico deve servir para diminuir as desigualda­des sociais e não para agravá-las.

É de lembrar, após Pio XII, que a prosperidade econômica de um povo resulta da abundância dos bens produzidos, mas também sobretudo de sua justa distribuição para que cada um tenha garantido seu próprio desenvolvimento.

"Ê de todo falso atribuir só ao capital, ou só ao trabalho, o que se obtém com a obra conjunta de ambos; é, com efeito, injusto que um se arrougue o resultado, negando a contribuição de outro." Esta citação da Encíclica "Quadragesimo Anno", que põe em relevo a estreita solidarie­dade dos agentes econômicos na produção das riquezas, leva João XXIII a insistir na necessidade de participação dos operários na prosperidade das grandes e médias empresas porque, hoje mais do que ontem, "é necessário procurar com todas as forças que, para o futuro, os capitais ganhos não se acumulem senão com justa proporção junto aos ricos e se distribuam com uma certa amplidão entre os que dão sua mão-de-obra" (Quadrage­simo Anno).

A adequação do salário com os rendimentos deve ser realizada em harmonia com o bem comum da nação e da família humana inteira.

O bem comum da nação exige notadamente uma política de pleno emprego da mão-de-obra para evitar a formação de grupos privilegiados; exige também a manutenção de justa proporção entre o salário e os preços o acesso dos bens e serviços ao maicr número possível de pessoas; impli­ca a eliminação — ou pelo menos a redução — das desigualdades exis­tentes entre os diversos setores econômicos, sobretudo entre a agricultura e os outros setores; exige, enfim, que sejam realizadas as condições de uma vida mais humana, considerando-se não somente a geração atual mas tam­bém os interesses das gerações futuras.

Quanto ao bem comum da humanidade, parece exigir que se evitem as concorrências desleais entre economias nacionais, que se organize a união dos povos no plano econômico e que se trabalhe eficazmente na realização do progresso econômico das nações menos favorecidas.

São essas exigências do bem comum nacional e universal que devem ser tomadas em consideração quando se trata de fixar os lucros daqueles que têm a responsabilidade da direção das empresas e os dividendos dos

298 que investiram os capitais.

Page 299: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Essa preocupação de justiça, que deve dominar o modo de distribui­ção dos bens adquiridos pelo trabalho, aplica-se às condições nas quais os homens produzem esses bens.

É uma exigência da própria natureza que aquele que produz com seu trabalho participe da responsabilidade da gestão da empresa e esteja em condições de poder aperfeiçoar no seu próprio trabalha De modo que um sistema econômico, sejam quais forem suas qualidades no plano da repartição, que utiliza, para produzir suas riquezas, sistemas e estruturas que comprometem a dignidade daqueles que trabalham, ou que diminuem seu sentimento de responsabilidade, ou que suprimem o poder de agir li­vremente, tal sistema é injusto. Se bem que seja difícil definir os métodos econômicos mais aptos para desenvolver o senso de responsabilidade, as regras de ação indicadas por Pio XII são reafirmadas:

"A pequena e média propriedade na agricultura, nos ofícios, no co­mércio e nas empreitadas devem ser garantidas e promovidas, assegurando--Ihes as vantagens das grandes empresas através da união das cooperativas, enquanto às grandes deve ser oferecida a possibilidade de equilibrar o con­trato de trabalho com o contrato de sociedade." 53

Exigências da justiça e estrutura das empresas

A melhor estrutura de uma empresa é aquela que mais corresponde à dignidade humana e permite desenvolver a responsabilidade individual.

A empresa artesanal e as cooperativas de produção: João XXIII, se­guindo nesse particular o pensamento de seu predecessor Pio XII (expres­so na rádio-mensagem de 1-9-1944), insiste na necessidade de conservar e de desenvolver a empresa artesanal, no comércio e na indústria, bem como a propriedade familial na agricultura, ambas integradas no quadro cooperativo a fim de se beneficiarem das vantagens da grande produção. Da exploração agrícola, a Encíclica trata longamente na terceira parte. Quanto à empresa artesanal e à cooperativa de produção, o Papa as con­sidera como instituições importantes para o progresso econômico e social e também para o progresso da própria civilização, porque desenvolvem elas entre os membros o sentimento da responsabilidade, o espírito de co­laboração e o amor pelo trabalho perfeito e original.

Para verdadeira expansão dessas qualidades, as empresas artesanais e cooperativas devem velar pela boa formação técnica e humana de seus membros e os poderes públicos devem dedicar-lhes uma política econômi­ca apropriada, sobretudo no que concerne à fiscalização, ao crédito e ao seguro social.

A presença ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas: A aspiração dos trabalhadores quanto à sua participação ativa na vida das empresas das quais são empregados, é considerada legítima por João XXIII.

5 3 M e n s a g e m radiofônica d e 1 ° d e setembro d e 1944.

Page 300: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Se a forma particular dessa participação depende de cada empresa, o in­dispensável é que a presença ativa dos trabalhadores na empresa — parti­cular ou pública — seja contínua a fim de que a empresa seja uma verda­deira comunidade de pessoas, tanto nas relações como nas funções de todo seu pessoal.

A condição primeira para que essa comunidade se realize é que o tra­balho seja considerado, seja vivido, não como um simples meio de ganhar a vida, mas como meio de cumprir uma função. Isso supõe a possibilida­de de os trabalhadores participarem na marcha e no progresso dá empresa.

A solução humana dessa participação na gestão da empresa é delica­da. Numerosas experiências realizadas há tempos mostram a dificuldade de se conciliá-la com a unidade de direção, que constitui fator essencial da eficácia da decisão. Essa solução deve, entretanto, ser preparada a fim de não se reduzir "os colaboradores de todos os dias à condição de sim­ples executantes silenciosos, privados de tornar produtiva sua própria expe­riência, completamente passivos quanto às decisões que os dirigem".

Aí está o grave problema da reintegração indispensável do trabalha­dor na produção, reintegração dificultada pelo desenvolvimento da divisão técnica do trabalho, problema que se coloca de modo mais evidente em cada novo avanço da técnica moderna. É, de maneira mais ampla, o pro­blema que consiste em reintegrar intimamente o homem a seu trabalho, dar-lhe de novo consciência — apesar da multiplicação das tarefas parce­ladas — de sua contribuição pessoal ao produto acabado. Esta tomada de consciência — que é também uma tomada de valor e de responsabili­dade — do indivíduo no conjunto, conduz a que se mostre ao trabalhador sua responsabilidade na marcha da empresa e a Encíclica insiste sobre o fato de que essa responsabilidade será tanto mais viva e eficaz, se o tra­balhador desenvolver mais sua habilidade e aptidões profissionais. Para isso, encontra-se, aliás, mais bem colocado do que ontem, dispondo de meios mais numerosos e de mais tempo para se instruir e aperfeiçoar sua cultura.

A Encíclica aborda, evidentemente, aí, um dos mais graves problemas de nossa época: sua boa solução é decisiva para a realização da harmonia entre o progresso da técnica e o progresso social.

A gestão no quadro da empresa não é senão um estádio da partici­pação dos trabalhadores na vida econômica. Deve-se estender igualmente fora da empresa porque é acima dela — por mais importante que seja — que são tomadas as resoluções de interesse geral. Pertencem aos poderes públicos e a instituições de ordem econômica regionais, nacionais, mun­diais. É, portanto, necessário, que aqueles que fornecem seu trabalho à produção sejam aí representados a fim de defender seus direitos e suas as­pirações da mesma maneira que aqueles que contribuem com seus capitais. A esse respeito o Papa manifesta sua simpatia aos sindicatos profissionais, aos movimentos sindicais de inspiração cristã espalhados pelo mundo intei-

300 ro e, em particular, à Organização Internacional do Trabalho.

Page 301: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

justiça, liberdade e propriedade privada

São ainda as exigências da justiça consideradas, em seguida, em rela­ção à propriedade privada. O valor permanente dessa instituição é reafir­mado com força porque "o direito de propriedade é um direito natural, fundado na prioridade ontológica e teológica dos indivíduos sobre a socie­dade"- João XXIII deseja mesmo que o acesso ao direito de propriedade dos meios de produção alcance cada vez mais a todas as classes sociais, o que não exclui, aliás, a propriedade do Estado e das coletividades públi­cas sobre certos bens de produção.

Após haver insistido nas vantagens econômicas, sociais e humanas da instituição da propriedade privada, após haver mostrado que se trata de instituição que se justifica por sua dúplice função individual e social, o Papa, reafirmando a continuidade do pensamento católico sobre esse pon­to, liga estreitamente propriedade privada e liberdade: a propriedade pri­vada é necessária à liberdade. À liberdade econômica, porque ninguém po­deria gozar do direito de agir livremente em matéria econômica se não lhe fosse possível escolher e utilizar os meios necessários ao exercício desse direito. À liberdade política, igualmente, porque a História mostra que onde o indivíduo não pode ter a posse dos bens produtivos, o uso da li­berdade humana, por questões fundamentais, ou lhe é limitado ou comple­tamente proibido.

Esta parte da Encíclica termina retomando o pensamento de Pio XII para que se compreenda nitidamente que por defender a propriedade pri­vada a Igreja não entende defender os privilégios dos ricos e poderosos, mas sim afirmar de novo que a propriedade privada deve ser uma garan­tia de liberdade da pessoa humana e, ao mesmo tempo, um elemento in­dispensável ao estabelecimento de uma ordem justa para a sociedade.

(2) OS NOVOS ASPECTOS DA QUESTÃO SOCIAL

A terceira parte da Encíclica trata dos novos aspectos da questão so­cial.

"As exigências da justiça e da eqüidade não intervém somente nas re­lações entre operários e empresas. Dizem respeito ainda às relações entre os diversos setores econômicos, entre regiões desenvolvidas e po­bres de um mesmo país e, no plano mundial, interessam as relações entre os países desigualmente desenvolvidos do ponto de vista econô­mico e social."

Esses são os dois grandes e graves problemas atuais: do desequilíbrio entre a agricultura e os outros setores econômicos e o do Terceiro Mundo. 301

Page 302: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Desequilíbrio entre setores da produção e necessidade de melhorar a situação dos agricultores

A situação da economia agrícola e dos agricultores preocupa de ma­neira profunda João XXIII, cuja origem é campesina, que viveu aquilo de que fala e de que fala com ternura.

O problema principal é o do desequilíbrio entre o setor agrícola e os setores da indústria e dos serviços. O nível de vida dos rurícolas. é mais baixo do que o dos trabalhadores da indústria e dos empregados dos di­versos serviços.

Enquanto no trabalho dos campos "parece estar reunido tudo quanto contribui para a dignidade humana", enquanto fornece à população os gê­neros indispensáveis à sua existência, e à indústria grande parte de suas matérias-primas, "os rurais se afastam dos campos porque vêem os seus interesses, quase por toda parte, desprezados, tanto no que toca à eficiên­cia de seu trabalho, quanto no que se refere ao nível de vida dos agricul­tores".

, É necessário, portanto, que sejam tomadas medidas para a elevação do nível de vida do agricultor e para que diminua a diferença que o sepa­ra daquele atingido nos outros setores da produção.

Liberando-se assim o agricultor de um conceito de inferioridade eco­nômica e social, terá ele confiança na possibilidade de afirmar e de desen­volver sua personalidade, o que lhe permitirá o futuro com mais otimismo.

Para atingir esse resultado, João XXIII indica numerosas diretrizes, insiste na necessidade dos poderes públicos desenvolverem os serviços de interesse geral cuja natureza é necessária à vida e à atividade dos agricul­tores. Trata-se da construção de estradas, da organização dos transportes, da melhoria da habitação, do desenvolvimento da assistência sanitária, do ensino, sem esquecer as condições favoráveis à vida religiosa. É provável que ao indicar a utilidade do aumento dos transportes, João XXIII inclua o transporte da energia, a energia elétrica em primeiro lugar, condição in­dispensável à melhoria da existência do camponês e ao progresso da téc­nica agrícola.

Isso é tanto mais evidente quanto a Encíclica se estende, em seguida, sobre a importância de realizar o desenvolvimento do sistema econômico de modo harmonioso, isto é, mediante o equilíbrio dos diversos setores da produção. E para que a agricultura recupere seu atraso, é preciso colocar à sua disposição os mais modernos métodos da técnica da produção, da variedade de culturas e da administração rural. Esse desenvolvimento equi­librado do setor agrícola permitir-lhe-á em primeiro lugar absorver maior quantidade de produtos industriais e utilizar mais serviços; permitirá tam­bém aos outros setores consumir mais gêneros alimentícios e matérias-pri-

302 mas agrícolas, produzidos em quantidade e qualidade superiores.

Page 303: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O crédito agrícola com juros pouco elevados deve ser difundido; o re­gime fiscal, adaptado às condições particulares da economia rural. O se­guro social deve ser sensivelmente o mesmo nos diversos setores da pro­dução, ainda quando, o que é a regra, o agricultor perceba rendimento inferior ao dos outros trabalhadores. Essa igualdade é um fator de jus­tiça na distribuição da renda nacional e diminui as desigualdades entre os cidadãos. Os poderes públicos devem controlar os preços de venda dos produtos agrícolas para assegurar a estabilidade. Enfim, a Encíclica trata da estrutura da empresa agrícola. Longe de afastar a realização da refor­ma agrária — (reforma que, como todas as diretrizes contidas nesse do­cumento, devem ser aplicadas considerando-se as condições particulares de tempo e de lugar) — João XXIII a postula, mesmo implicitamente, insis­tindo sobre as vantagens da empresa familial, afirmada como a melhor forma de exploração, com a condição de ser produtiva. E para que o seja, ou torne-se, é preciso um esforço no sentido de desenvolver a instrução do agricultor, melhorar sua técnica, encorajá-lo a participar de agrupamen­tos cooperativos, de associações profissionais, e diretamente da vida públi­ca. O desenvolvimento da associação na agricultura, a tomada de cons­ciência da parte do agricultor de sua própria importância cívica e de seu papel na gestão pública, são indispensáveis para que seja ele mesmo o agente de sua promoção social e econômica.

Essa necessidade, nesse setor e em outros, do progresso da "sociali­zação", realizado pela união dos agricultores no quadro de sociedades e de agrupamentos, é tanto mais necessário por ser o trabalho familial a base da empresa. É no quadro cooperativista e associacionista que os agricul­tores, sentindo-se solidários poderão se beneficiar do progresso das ciên­cias e das técnicas e poderão defender os preços dos produtos de seu tra­balho, bem como estarão em condições de ter uma influência correspon­dente à sua importância na administração pública, pois, "em nossa época, como dizem, uma voz isolada se perde, levada pelo vento". E para que essas organizações agrícolas sejam influentes os camponeses deveriam agir em consideração dos princípios da moral e das leis do Estado: a ajuda que reclamarão assim dos poderes públicos encontrará sua justificação nos seus esforços para concilia/ seus direitos e seus interesses àqueles das ou­tras classes e para subordiná-lo ao bem comum.

Justiça e os países subdesenvolvidos

A Encíclica trata, em seguida, das exigências da justiça face às rela­ções entre os países de diferentes graus de desenvolvimento econômico. O problema da ajuda aos países subdesenvolvidos é considerado pelo Papa um dos mais importantes de nosso tempo.

O desequilíbrio entre países ricos e países "proletários" transfere para o plano das nações a luta de classes entre indivíduos. A distância entre a nqueza e a miséria acentuou-se pela evolução psicológica dos povos, bem 303

Page 304: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

como pelo aumento de sua interdependência. A manutenção de uma paz proveitosa nessas condições está seriamente ameaçada.

O Papa toma claramente o partido dos países do Terceiro Mundo e apela para a consciência e para a ação de todos, sobretudo os mais opu­lentos — sejam eles indivíduos, coletividades ou nações — a fim de que auxiliem os países subdesenvolvidos.

Auxílio urgente, em primeiro lugar, para lutar contra a fome e a doença. E a esse respeito o malthusianismo econômico é severamente con­denado, "violação aos deveres de justiça e da humanidade a destruição ou sacrifício de produtos necessários à vida humana".

Cooperação científica e financeira vêm em seguida na luta contra as próprias causas do subdesenvolvimento; trata-se de transmitir, ensinar, apli­car as modernas técnicas, ajudar pelo envio de capitais e de técnicos, a fim de permitir, com o "arranco econômico", a elevação do nível de vida. O que já tem sido feito nesse domínio não é desprezível, mas nações, or­ganismos internacionais, universidades, particulares, devem intensificar esse esforço nos planos científicos, técnicos e econômicos.

A respeito da maneira pela qual esse esforço deve ser realizado, a Encíclica contém certo número de conselhos. Convém ajudar, mas evi­tando certos erros do passado: é necessário, principalmente, que o aumen­to de riquezas obtidas seja distribuído entre todos; o desenvolvimento que se busca deve estender-se, ao mesmo tempo, ao domínio econômico e ao domínio social, bem como a todos os setores da produção.

Ainda mais, auxílio aos países subdesenvolvidos deve ser concedido respeitando-se as características de cada comunidade; não atingiria ao seu fim essencial, que é o livre desenvolvimento da personalidade humana, se para se manifestar exigisse a imitação. Um aspecto particular do perigo dessa imitação seria para as nações subdesenvolvidas — que, na maioria, são países de antiga tradição, possuidores de vida e forte consciência dos principais valores humanos — aceitar, concomitantemente com os pro­gressos da ciência e da técnica, a idéia de que se trata do supremo bem da vida, idéia muitas vezes dominante na psicologia das nações material­mente desenvolvidas.

Contra tal contágio a Encíclica adverte:

"Querer diminuir a consciência desses povos (subdesenvolvidos) seria um ato imoral. Ê preciso, ao contrário, respeitá-la, se possível fortifi­cá-la, porque é ela o fundamento da verdadeira civilização." 54

Finalmente, essa cooperação deve ser desinteressada.

54. E s s e desequil íbrio entre o progresso técnico e o progresso moral, - t r a s o em nue se encontra o espírito em relação à matéria, constitui objeto de m u i t a s o b s e r v a ç õ e s na E n c í c l i c a . A Igreja, longe de se opor aos p r o g r e s s c s da técnica, lembra "que em todos os tempos ela en­sinou e ensina que os progressos c ientí f icos e técnicos, o bem-estar m a t e r i a l daí resultante para os i n d i v í d u o s e as nações, são bens a u t ê n t i c o s e marcam, portanto, um importante passo no progresso da c i v i l i z a ç ã o humana". M a s , a preocupação da Igreja nesse domínio, é a não opo­s i ç ã o da s o l u ç ã o dos problemas m a t e r i a i s aos direitos sagrados da personalidade humana. C o l o ­ca-se, assim, o g r a v e problema da u t i l i z a ç ã o humana da ciência e da técnica, problema esse

Page 305: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Não deve servir a planos de dominação, nem ser a forma disfarçada de um neo-colonialismo moderno. Então, ao invés de servir à paz, a co­locaria em perigo.

Se esse auxílio for concedido sem interesse político permitirá não so­mente que os países beneficiários realizem, por si mesmos e segundo suas próprias tradições, seu progresso econômico e social, mas representará também um fator decisivo na formação de uma Comunidade mundial, face complementar do desenvolvimento das Economias Nacionais e forma aca­bada da divisão do trabalho com todas as suas vantagens econômicas e humanas. Comunidade mundial que todos os progressos da Ciência e da Técnica anunciam, mas que só pode existir de modo durável e eqüitativo se cada um de seus membros, conscientes de seus direitos e deveres, esti­ver em condições de cuidar do bem comum universal.

A colaboração das nações é uma das preocupações fundamentais da Encíclica. Insiste no paradoxo moderno da extensão mundial de todo pro­blema importante, ligado à desconfiança recíproca entre as nações. Já que elas dependem cada vez mais umas das outras e desenvolvem, em conse­qüência, suas relações internacionais, já que é evidente que muitos proble­mas de cada uma delas, quer sejam de ordem intelectual, social, econô­mica, requerem, para ser solucionados, a colaboração de outros povos; é necessário, portanto, que para satisfazer suas próprias necessidades cada nação considere as necessidades das outras. Isso implica compreensão e auxílio recíprocos. Ora, apesar de cada indivíduo e cada nação esta­rem convencidos da necessidade dessa solidariedade internacional, a des­confiança subsiste. Cada um tem medo do outro e disso resulta infernal corrida aos armamentos, consumo de quantidade considerável de riquezas naturais e de trabalho, subtraídos assim ao bem-estar da sociedade huma­na. Disso resulta igualmente a criação e a manutenção de um sentimento de mal-estar e opressão entre indivíduos e povos, que enfraquece o espí­rito de iniciativa e se opõe a realizações de maior importância ou inte­resse.

A causa profunda dessa desconfiança é a ignorância da existência de uma ordem moral, transcendente, universal, absoluta, de valor igual para todos, que dá a cada um a mesma concepção da justiça e de suas exi­gências. E apesar dos aspectos bastante sombrios do momento atual so­bre esse assunto, a conclusão otimista de João XXIII domina sua Encí­clica:

que cada homem de boa v o n t a d e sente, no mais profundo de seu coração, a importân­cia d e c i s i v a para o futuro dc mundo e da c i v i l i z a ç ã o . S a b e m o s , pela r e c o r d ç ã o dolorosa de uma guerra recente, que horrores pode produzir esse d i v ó r c i o entre as p o s s i b i l i d a d e s m a t e r i a i s do homem e a maneira pela qual pode u t i l i z á - l a s ; a "guerra fria" e suas a m e a ç a s nucleares não eprmitem eliminar o perigo para o futuro dos seres. . . É part icularmente oportuno a I g r e j a lembrar que, apesar de f a v o r á v e l aos progressos da c i ê n c i a e da t é c n i c a na medida em que permitem elevar o bem-estar material , esses progressos d e v e m entretanto ser " a p r e c i a d o s s e g u n ­do sua verdadeira natureza, isto é, como instrumentos ou m e i o s úteis para atingir m a i s d i r e t a ­mente um fim superior, que consiste em facil i tar e promover a p e r f s i ç ã o espiritual des h o m e n s na ordem natural e na ordem sobrenatural".

Page 306: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

"Todos esses motivos contribuem para que a humanidade se dê mais r ?* plena conta das suas limitações e se volte para os valores do espírito.

O que não pode deixar de ser feliz presságio de sinceros acordos e fecundas colaborações."

A última e quarta parte da Encíclica é consagrada à renovação das relações de convivência na verdade, na justiça e no amor. O Papa lem­bra que Deus é o fundamento primeiro e último de toda ordem moral e termina exortando os críticos e todos os homens de boa vontade espalha­dos pelo mundo — apelo à unidade nas vésperas do Concilio de 19̂ 62 — a penetrar-se da doutrina social da Igreja a fim de irradiá-la de maneira criadora na realidade de cada dia.

Esta Encíclica representa, em resumo, minuciosa exposição da ques­tão social e de sua recente evolução à luz da doutrina cristã.

Pela confirmação dos princípios essenciais da posição da Igreja face aos problemas sociais e econômicos, testemunha perfeita continuidade de ponto de vista. Continuidade que se percebe com facilidade desde a Car­ta Magna de Leão XIII, passando pela "Rerum Novarum" e pelas rádio--mensagens de 1941 e de 1944 de Pio XII; mas continuidade e coerência também desde que esses problemas se impuseram à atenção da Igreja, so­bretudo depois que os teólogos e canonistas se pronunciaram precisamente a seu respeito na época medieval.

Ao mesmo tempo que continuidade, esta Encíclica atesta o esforço constante de adaptação do pensamento da Igreja aos problemas sociais e econômicos da atualidade. Por vocação, inclina-se ela sobre a miséria hu­mana, miséria que decorre hoje de maneira particularmente aparente dos desequilíbrios econômicos: desequilíbrio entre o pobre e o rico, entre o rural e o citadino, entre os países subdesenvolvidos e os países desenvol­vidos; desequilíbrio entre o progresso técnico-científico e o progresso mo­ral, desequilíbrio entre os valores materiais e os valores espirituais.

Nesse universo atormentado, a Encíclica de João XXIII afirma, ao mesmo tempo, a tradição do pensamento cristão sobre a questão social e seu caráter realista e construtivo. Deseja mais eficácia nas atividades tem­porais; aconselha explicitamente o método dos movimentos de ação cató­lica: "ver, julgar, agir". Responde, nesse sentido, às exigências das jovens gerações e as estimula. E qualquer que seja o aspecto considerado, a ques­tão social acentua a necessidade de permitir ao homem, apesar da confu­são de um progresso material demasiadamente rápido, desenvolver sua personalidade salvando os valores espirituais num quadro, ampliado à es­cala mundial, de fraternidade, de justiça e de eqüidade.

A Encíclica "Pacen in Terris" (1963)

Trata-se de uma Encíclica de João XXIII sobre a paz entre as na­ções, fundada na verdade, na justiça, na caridade, na liberdade.

Page 307: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A primeira parte é consagrada à Ordem entre os seres humanos. Des­taquemos o desenvolvimento sobre os direitos relativos ao mundo econô­mico: afirmação, primeiramente, do direito ao trabalho e à iniciativa no domínio econômico, para todo homem. A esses direitos está ligado o di­reito às condições de trabalho "que não comprometam nem a saúde, nem a moralidade", nem o desenvolvimento normal da juventude. Para as mu­lheres, direito a condições de trabalho em harmonia com as exigências de seu sexo e com seus deveres de esposas e de mães.

Essas idéias já haviam sido expostas por Leão XIII na "Rerum No­varum", 5 5 assim como as relativas ao direito de reunião e de associação.

À lei natural do trabalho, "responde o direito também tão natural para o homem de tirar de seu labor o necessário para viver e jazer viver seus filhos: tão profundamente está ordenado em vista da conservação do homem seu império sobre a natureza"- Da natureza do homem "deriva igualmente o direito à propriedade privada dos bens, aí compreendidos os meios de produção". "Esse direito é uma garantia eficaz de dignidade da pessoa humana e uma ajuda ao livre exercício de suas diversas responsa­bilidades; contribui para a estabilidade e a tranqüilidade do lar, com pro­veito para a paz e a prosperidade pública." 56

Por outro lado, não é fora de propósito lembrar que a propriedade privada comporta em si mesma uma função social.5 7

A Encíclica insiste, em seguida, nos deveres do homem que estão li­gados a cada um de seus direitos. O homem tem o dever de respeitar os direitos dos outros: "as normas da vida coletiva formulam-se em termos de direitos e de deveres".

A segunda parte trata das relações entre os homens e os poderes pú­blicos, no seio de cada comunidade política.

A autoridade é necessária; sua origem é divina. Sua lei consiste no poder de comandar segundo a razão certa. A realização do bem comum é a razão de ser dos poderes públicos. E João XXIII, citando Leão XIII insiste em que, de maneira alguma, não se poderá permitir que a au­toridade civil volte-se em benefício de um só ou de um pequeno número, porque foi ela instituída "para o bem comum de todos", bem comum "que concerne ao homem inteiramente, com suas necessidades tanto espirituais como materiais" .Si

A autoridade política deverá, portanto, garantir os direitos dos cida­dãos, tornar fácil o cumprimento de seus deveres, reduzir as desigualdades, juntar a ação social à ação econômica, conciliar, proteger e valorizar os direitos do indivíduo.

5 5 - Cf. supra p . 291, R e r u m N o v a r u m .

??• n / s u p r a P - 2 9 4 > M a t e r e t M a g i s t r a . ~J- supra idem, ibidem, p. 307.

em "M w pressa por L e ã o X I I I na E n c í c l i c a " I m m o r t a l e D e i " (1885) e por João X X I I I

a u t o . , a , e r et M a g i s t r a " : "Com esse íim (socialização) requer-se que os homens, investidos de junto d

P" l'.ca.' s e i a ! n animados de uma sã concepção do bem comum. Este comporta o con­de *„., 3S cofdjções sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral oe sua personalidade." 307

Page 308: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A terceira parte da Encíclica é relativa às relações entre as comuni­dades políticas, que têm entre si, igualdade, direitos e deveres. Suas rela­ções devem estar submetidas à mesma lei moral que regulamenta a vida das pessoas.

Notemos entre esses desenvolvimentos aqueles relativos ao equilíbrio entre populações, terras e capitais, colocando o problema da disparidade existente em certas zonas entre as terras cultiváveis e o efeito da popula­ção, ou entre as riquezas do solo e os meios materiais para explorá-las, es­tado de coisas que "reclama, da parte dos povos, uma colaboração que fa­cilite a circulação dos bens, dos capitais e das pessoas".59

"Nós consideramos oportuno que, na medida do possível, o capital se desloque para juntar-se à mão-de-obra e não o inverso. Assim, pode-se permitir a numerosos trabalhadores condições de existência mais favoráveis, sem que sofram a expatriação, dificuldades, sofrimentos que exigem readaptação e assimilação a um meio novo."

Pensamento útil para se meditar, à vista do espetáculo muitas vezes doloroso dos deslocamentos de homens entre nações e entre regiões.

Retomando o tema da promoção dos países em vias de desenvolvi­mento, já abordado na "Mater et Magistra",6 0 João XXIII sublinha com insistência que o

"auxílio trazido a esses povos não pode ser acompanhado de i. inhuma limitação de sua independência. As comunidades políticas, economi­camente desenvolvidas, em sua ação multiforme de assistência aos paí­ses menos favorecidos, têm de reconhecer e respeitar 'os valores mo­rais e as particularidades étnicas destes e não devem ter para com eles o menor cálculo de dominação'. Assim é que trabalharão em pé de igualdade para a realização do bem universal".

Estas idéias sobre o subdesenvolvimento são retomadas e desenvolvi­das pelo sucessor de João XXIII na Encíclica "Populorum Progressio", como veremos mais adiante.

Uma quarta e última parte examina as Relações dos indivíduos e das comunidades políticas com a comunidade mundial.

A solidariedade dos homens e das comunidades reforça-se, o que cor­responde a uma necessidade da natureza. O bem universal não pode ser assegurado pelos governos nacionais, que não têm autoridade para isso; somente uma autoridade pública de competência universal é capaz de fazê--lo. Trata-se de uma autoridade que deve resultar de acordo unânime; seu fim é servir a pessoa, agindo seja diretamente, seja indiretamente por intermédio dos Governos.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, é considerada, apesar de algu-

59. João X X I I I retoma essa idéia na " M a t e r et M a g i s t r a " (§ 6 5 ) : "(a colaboração huma­na) deve favorecer os movimentos de bens, de homens e de capitais com vistas a eliminar ou, ao menos, a reduzir os desequilíbrios profundos em demasia".

60. Cf. supra, p. 307.

Page 309: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mas reservas, como "um passo para o estabelecimento de uma organização jurídico-política da Comunidade Mundial", sendo desejável que a Organi­zação das Nações Unidas possa cada vez mais "adaptar suas estruturas e seus meios de ação à ampliação e ao elevado valor de sua missão".

A Encíclica termina com diretrizes pastorais insistindo, em particular, no dever dos cristãos de participar da gestão dos negócios públicos, não somente com fé, mas também com competência científica, capacidade téc­nica e qualificação profissional.

A Encíclica "Populorum Progressio" (1967)

É a quinta Encíclica do Papa Paulo VI. Vem após o Concilio Ecumê­nico e marca, mais fortemente do que a "Mater et Magistra", a necessida­de de encarar os problemas sociais sob seus aspectos mundiais e de seguir cada vez mais de perto os desenvolvimentos atuais.

Enquanto a "Rerum Novarum" e a "Quadragesimo Anno" cuidavam da situação social nos países ocidentais e industrializados, a "Populorum Progressio" eleva ao plano mundial a doutrina social da Igreja.

"Hoje, o fato maior é que a questão social tornou-se mundial. . . Os povos com fome interpelam de maneira dramática os povos da opu-lência."

É assim que começa a Encíclica, a qual, em face de tal urgência, de­senvolve-se em função dos dois temas seguintes, que servem de título às suas duas Partes: Pelo desenvolvimento integral do homem, pelo desen­volvimento solidário da humanidade.

Pelo desenvolvimento integral do homem

OS DADOS DO PROBLEMA

Uma constatação: se os mecanismos da Economia moderna funcio­nam livremente, conduzem o mundo à acentuação da disparidade dos ní­veis da vida. Os homens tomam consciência desse fato de modo cada vez mais nítido. A isto se juntam a oposição, o choque das civilizações, de modo que se acentua a tentação de recorrer à violência. A obra a rea­lizar caracteriza-se, então, por sua amplitude e sua urgência. Para isso os meios herdados do passado são numerosos, mas insuficientes. A coloni­zação apresentou seus efeitos, deixou economias em situação "vulnerável". Seus defeitos não devem, entretanto, fazer esquecer que deixou ela também certas estruturas que fizeram recuar a ignorância e a doença, que permi­tiram as comunicações e a melhoria do nível de vida. Mas este equipa­mento é "notoriamente insuficiente para enfrentar a dura realidade da eco­nomia moderna" e permitir realizar o desenvolvimento. 309

Page 310: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A IGREJA E O DESENVOLVIMENTO

Inicialmente Paulo VI presta homenagem, nesse domínio, à obra dos missionários. Reconhece, porém, que as iniciativas locais e individuais não são mais suficientes:

"A situação atual do mundo exige uma ação de conjunto, a partir de uma clara visão de todos os aspectos econômicos, sociais, culturais e espirituais."

Sem pretender se imiscuir na política dos Estados, a Igreja, vivendo na história, "deve investigar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz dos Evangelhos". Propõe ela uma "visão global do homem e da humanidade".

"O desenvolvimento não se traduz em simples crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, isto é, promover todos os ho­mens e todo o homem."

Mas o desenvolvimento individual não deve ser senarado do desen­volvimento da comunidade: "A solidariedade universal, que ê um jato e um benefício para todos nós, é também um dever."

Ao insistir sobre um ponto importante, freqüentemente se esquece a escala de valores do crescimento.

"Necessário para permitir ao homem ser mais homem, este o encerra numa prisão desde que se torne um bem supremo que impeça olhar mais além."

A busca exclusiva para obter o crescimento econômico cria obstáculo ao desenvolvimento do ser e se opõe à sua verdadeira grandeza. Para as nações, como para os homens, a cupidez, a avareza, é a forma mais evi­dente do "subdesenvolvimento moral" e pode suscitar um materialismo su­focante.

Para a obra do desenvolvimento, o técnico é indispensável mas "se exige ainda mais dos sábios profundas reflexões em busca de um hu­manismo novo que permita ao homem moderno reencontrar-se a si mesmo assumindo os valores superiores do amor, da amizade, da pre­ce e da contemplação".

É assim que o verdadeiro desenvolvimento poderá ser realizado, asse­gurando a cada um e a todos a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas. 6 1

310

A AÇÃO A EMPREENDER

"Se a terra é feita para fornecer a cada um os meios de sua subsis­tência e os instrumentos- de seu progresso, todo homem tem o direito de nela encontrar o que lhe é necessário."

61. M e n o s h u m a n a s : c a r ê n c i a s m a t e r i a i s daqueles que não . g o z a m de um mínimo v i t a l ; c a r ê n c i a s morais daqueles que são v í t i m a s do egoísmo, das estruturas o p r e s s i v a s provenientes

Page 311: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Todos os demais direitos, inclusive os de propriedade e de livre con­corrência estão subordinados a esta evidência. Depois dos Padres da Igre­j a 6 2 e reafirmando, assim, o pensamento de seus predecesscres, Paulo VI lembra a destinação universal dos bens e muito particularmente "que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto". E, tomando em consideração uma situação freqüente em paí­ses ou regiões subdesenvolvidas, declara que

"o bem comum exige às vezes a expropriação se, do fato de sua ex­tensão, de sua exploração, fraca ou nula, da miséria dai resultante para as populações, do dano considerável causado aos interesses de seu país, certos domínios representam obstáculo à propriedade coleti­va". E precisa igualmente "que não se poderia admitir que cidadãos com importantes rendas, provenientes dos recursos e da atividade na­cional, transferissem uma parte considerável ao estrangeiro, para sua única vantagem pessoal, sem se preocupar com os evidentes prejuí­zos que assim causam à pátria".

Paulo VI retoma, depois de Pio XI, e com mais severidade, as conde­nações do capitalismo e do liberalismo "sem freio". 6 3 Separando a indus­trialização do sistema capitalista do século XIX, a tônica é colocada sobre a contribuição insubstituível da organização do trabalho e do progresso in­dustrial à obra do desenvolvimento.

A ambivalência do trabalho é sublinhada: "promete dinheiro, gozo e poder, convida ao egoísmo e outros à revolta, o trabalho desenvolve tam­bém a consciência profissional, o sentido do dever e a caridade para com o próximo. Mais científico e melhor organizado, arrisca desumanizar seu executante, que se tornou seu servo, porque o trabalho é humano somente quando permanece inteligente e livre". A Encíclica é favorável à participa­ção "real" do trabalhador na empresa, que "deve se tornar uma comuni­dade de pessoas, nas relações, nas funções e na situação de todo o seu pessoal".

Enfim, afirmação da necessidade de agir, sem demora: "Muitos homens sofrem e aumenta a distância que separa o progresso de uns e a estagnação, e mesmo a regressão, dos outros. A tentação da violência os espreita."

O desenvolvimento exige, portanto, transformações audaciosas, pro­fundamente inovadoras, que devem ser empreendidas sem tardar. Quais são essas reformas audaciosas e urgentes? ( 1 ) Primeiramente, impõe-se a necessidade de programas e de planeja­mento. Os Poderes Públicos, na sua tarefa planificadora, deverão associar as "iniciativas privadas e os acordos intermediários". "Evitarão, assim, o perigo de uma coletivização integral ou de uma planificação arbitrária que,

dos abusos do domínio e do poder, da exp lo ra çã o dos trabalhadores ou da injust iça das transa-m - H S ' , i h u m a n a s : a p a s s a g e m da miséria à posse do n e c e s s á r i o ; a vi tória contra as c a l a -

fi? S f ° . c i a i s ; a a m p l i a ç ã o dos conhecimentos e da cultura.

°, Cf. supra: a c o n c e p ç ã o do direito de propriedade na Idade M é d i a , p. 51 e s e g u i n t e s . »3. Ponto v i s t o anteriormente.

Page 312: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

negando a liberdade, excluiriam o exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana." Nota-se aqui, de novo, a continuidade do pensamento da Igreja para conciliar o interesse individual e o do Estado, no quadro do bem comum. 6 4 Um apelo é feito, mais necessário do que nunca, aos limites a se fixar à tecnocracia — "tecnocracia do amanhã, que pode en­gendrar males não menos temíveis do que o liberalismo de ontem".

O crescimento econômico e o progresso social estando ligados, a edu­cação de base se impõe como primeiro objetivo de um plano de desenvol­vimento. k

(2) No quadro dessas reformas, o maior cuidado deve ser dedicado à preservação do meio social onde a família "desempenha papel primordial". O que conduz o Papa a abordar — com grande prudência — o problema inflamável da expansão demográfica, mais rápida do que o crescimento econômico e que o freia.

"A tentação, nessas condições, é grande no sentido de frear o cresci­mento demográfico por medidas radicais." Embora admitindo que os poderes públicos podem intervir desenvolvendo uma intervenção apro­priada e tomando medidas adaptadas para que seja ela conforme às exigências da lei moral, é finalmente aos pais que cabe "decidir em plena consciência de causa a respeito do número de filhos".65

(3) Depois de lembrar que "cada país possui uma civilização recebida de seus ancestrais" e que constituiria "grave erro sacrificar os valores huma­nos" que essa civilização contém, a Encíclica adverte os povos em vias de desenvolvimento quanto à escolha do que lhes é proposto: devem eles eli­minar os falsos bens que acarretariam o rebaixamento do ideal humano e aceitar os valores sãos e benéficos para "desenvolvê-los com os seus, segun­do seu próprio espírito".

Em uma nota em que cita Jacques Maritain, Paulo VI declara que -é preciso promover "um humanismo pleno, o desenvolvimento integral de todo o homem e de todos os homens".

0 desenvolvimento solidário da humanidade

A segunda parte é consagrada ao desenvolvimento solidário da huma­nidade. Repousa sobre a assistência aos fracos, sobre a eqüidade nas re­lações comerciais e sobre a caridade universal.

1. Essa assistência aos fracos deve tender, antes de. tudo, a luta contra a fome — aspecto mais trágico do subdesenvolvimento. A solici­tação nesse sentido havia sido lançada por João XXIII-, pelas campanhas da FAO e pelas obras da Caritas internacional. Esforços generosos, mas insuficientes. Paulo VI apelou à consciência dos homens, "consciência que

312 6 4 . Cf . s u p r a p . 6 0 .

6 5 . Cf , E n c í c l i c a H u m a n a e V i t a e .

Page 313: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tem uma nova voz para nossa época' . Esse apelo não deixará de ter res­sonância excepcionalmente forte e contínua no mundo católico.6 6

O Papa indica certos meios pelos quais "o supérfluo dos países ricos deve servir aos países pobres".

Uma parte da produção dos países evoluídos deve ser consagrada à satisfação das necessidades dos outros povos; a ciência, a competência dos técnicos e dos sábios dos primeiros devem ser colocados a serviço dos países menos evoluídos.

A luta imediata contra a miséria exige uma colaboração mundial, cujo fundo comum seria ao mesmo tempo o símbolo e o instrumento; isso permitiria "sobrepujar as rivalidades estéreis e suscitar um diálogo fecun­do e pacífico entre todos os povos".

Entre as vantagens dessa colaboração mundial, Paulo VI destaca a possibilidade de atenuar "as desconfianças dos beneficiários dos acordos bilaterais, que teriam menos a temer, sob pretexto de ajuda financeira ou de assistência técnica, certas manifestações de neocolonialismo". Estes be­neficiários estariam em condições melhores, no quadro de uma colabora­ção mundial, de "exigir que não haja ingerência em sua política, que não se perturbe sua estrutura social" e que se lhes permita orientar-se livre­mente para a sociedade de sua escolha; "é, então, uma colaboração volun­tária que é preciso organizar".

2. O desenvolvimento solidário da humanidade deve, em seguida, ser buscado pela "eqüidade nas relações comerciais". Neste ponto, o pen­samento pontifício aborda diretamente problemas técnicos.

Os esforços despendidos para obter o desenvolvimento seriam ilusó­rios se fossem anulados pelo mecanismo do comércio entre países ricos e pobres. Considerando-se sobretudo a troca de produtos fabricados das economias evoluídas, contra produtos primários dos países pouco desen­volvidos, e os inconvenientes que daí decorrem para estes últimos, Paulo VI é conduzido a esta afirmação: "A regra do livre-câmbio não pode mais sozinha reger as relações internacionais... Os preços que se formam li­vremente no mercado podem levar a resultados iníquos. É preciso reco­nhecer que é o princípio fundamental do liberalismo, como regra das tro­cas comerciais, que é posto em questão." 67 A idéia de uma convenção internacional seria, portanto, útil em vista de "regularizar certos preços, garantir certas produções e sustentar certas indústrias nascentes".

3. É, enfim, à "caridade universal" que o Papa apela para obter o desenvolvimento solidário da humanidade. Dever de acolhimento, sobre­tudo para os jovens; dever de humanidade, na sua acepção mais ampla. Impõe-se, em particular, àqueles que se dirigem a países em vias de de-B i s 6 6 ^ . e c » r a e n d a m o s para o B r a s i l a leitura do d o c u m e n t o final da Conferência N a c i o n a l dos d a R ' ° d e J a n e i r ° . 2 0 d e julho d e 1968) e para a A m é r i c a L a t i n a a leitura d a m e n s a g e m

segunda conferência do Conselho E p i s c o p a l L a t i n o - A m e r i c a n o ( C E L A M ) , setembro de 1968. , A questão que se coloca é a de sabsr se o c a p i t a l i s m o encarado aqui existe em nossos

da S - a ° . a i x a dos preços das matérias-primas de que trata a E n c í c l i c a parece m a i s resultado ação dos monopólios do que da l ivre-concorrência.

Page 314: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

senvolvimento e deve fazê-los se distanciarem dos princípios desumanos do individualismo; deve conduzi-los a daptar sua civilização — que não é nem única, nem exclusiva, qualquer que seja sua riqueza em elementos de humanismo universal — à civilização dos povos que ajudam.

Se o "desenvolvimento é o nome novo da paz", no caminho que a esta conduz, cada povo tem primeiramente a responsabilidade de seu pró­prio desenvolvimento. Mas não poderia realizá-lo no isolamento. Nesse sentido a Encíclica recomenda acordos regionais entre os povos fracos, para se sustentarem mutuamente, ententes mais amplas para auxiliá-los, convenções mais audaciosas para estabelecer programas concertados. Ins­tituições mundiais eficazes são a primeira condição dessa colaboração in­ternacional. E Paulo VI reafirma sua confiança nas organizações de de­senvolvimento.

A Encíclica termina pedindo a todos para que tomem consciência do "drama"; apela aos educadores e aos publicistas para que promovam a en-treajuda dos povos mostrando para isso os esforços já realizados e as mi­sérias muito facilmente esquecidas: "que os ricos pelo menos saibam que os pobres estão às suas portas e espiam o realce de seus festins".

Aos homens de Estado o Papa solicita a mobilização de suas comu­nidades para "uma solidariedade mundial mais eficaz".

Todos aqueles que ouviram o apelo dos povos sofredores são "após­tolos do bom e do verdadeiro desenvolvimento", desse desenvolvimento que não é "a riqueza egoísta e amada por ela mesma, mas a economia a serviço do homem, o pão quotidiano distribuído a todos como fonte de fraternidade e sinal da Providência".

* * *

Estas são as idéias essenciais desta Encíclica que toma posição com ni­tidez sobre os problemas sociais, mundiais, fundamentais de nosso tempo.

Que este texto seja consagrado, em grande parte, aos problemas do subdesenvolvimento, revela, se fora necessário, a gravidade do perigo daí decorrente. Trata-se de uma denúncia pública do escândalo da fome e da miséria no mundo de hoje. Nesse sentido a Encíclica é, antes de tudo, uma mensagem angustiada que se dirige à consciência de todos e muito particularmente àqueles que têm a responsabilidade da economia e da po­lítica, com a esperança de que ouçam "antes que seja demasiado tarde".

Precisa a Encíclica que a tarefa mais urgente da geração atual con­siste em assegurar o equilíbrio mundial do progresso.

As passagens que tratam da limitação do exercício do direito de pro­priedade individual, aquelas que criticam os abusos do individualismo, do liberalismo, são particularmente incisivas e não deixam lugar a nenhuma dúvida sobre a posição social da Igreja. Nesse sentido a Encíclica provo­cou movimentos profundos em várias partes do mundo. Essas idéias não

314 são novas, mas sua afirmação se tornoujçpais categórica. Sobre todos es-

Page 315: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ses pontos principais o pensamento expresso nesse texto marca uma notá­vel continuidade com as Encíclicas precedentes, também inspiradas nas grandes doutrinas dos doutores da Igreja da Idade Média. 6 8

Observa-se que pela primeira vez, parece, uma Encíclica Papal apela para autores contemporâneos. No texto, ou em nota, encontra-se citado Mons. Larrain, prelado chileno falecido em 1966, fundador do CELAM que reunia desde 1955 todos os bispos da América Latina e autor da pro­blemática do desenvolvimento retomada na Encíclica. Mas são sobretudo autores franceses que são citados várias vezes: o padre Lebret, também falecido em 1966, especialista do subdesenvolvimento, fundador da Revis­ta Economia e Humanismo e do Instituto para a Pesquisa e Formação de Técnicos. Confidente do Papa, seu magnífico "sonho de civilização" rea­liza-se na Encíclica. São citados igualmente o padre Lubac, autor do "Dra­ma do humanismo ateu"; a Encíclica retoma deste livro a idéia do desen­volvimento econômico e social equilibrado, implicando a consideração de fatores extra-econômicos na pesquisa e na ação. O padre Chenu também é citado; é em seu livro "Por uma Teologia do Trabalho" que o Papa se inspira ao tratar do valor do trabalho em relação à industrialização e ao capitalismo. Enfim, o pensamento de Jacques Maritain está presente em toda a parte da Encíclica sobre o humanismo integral. A Populorum Pro­gressio inscreve-se na linha das grandes Encíclicas. Marca o papel que cabe às atividades cristãs em relação ao movimento da história temporal e das transformações sociais, políticas e culturais do mundo. 6 9

A Encíclica "Humanae Vitae" (1968)

A parte da Encíclica precedente, relativa ao grave problema da ex­pansão demográfica, teve diversas interpretações. Umas repousam sobre a possibilidade de prováveis concessões da moral católica tradicional sobre as práticas anticoncepcionais cada vez mais generalizadas. Estas interpre­tações buscavam sua fundamentação no fato de aue a "Populorum Pro­gressio" havia abordado nitidamente os grandes problemas da hora pre­sente ao se preocupar com a "dura realidade da economia moderna" e ao insistir de modo todo particular sobre as misérias do subdesenvolvimento, acentuando "o problema explosivo da expansão demográfica mais rápida do que o crescimento demográfico, e que o freia".

Estas interpretações se desenvolveram não somente em razão da pru­dência com a qual a Encíclica "Populorum Progressio" colocava o proble­ma, mas também em razão de publicações indiscretas sobre as discussões travadas no seio da Comissão pontificai instituída desde 1965, para estu­dar os problemas da regulamentação da natalidade, problemas aos quais 0 Papa, a partir do fim do Concilio Vaticano II, reservava-se de responder.

6 9 ^ ' M 1 1 ^ 3 ° c a p * d o T í t u l o I consagrado a o p e n s a m e n t o econômico d a I d a d e M é d i a . • J- Maritain — Questions de Conscience, Paris , 1938, p. 26 e segs.

Page 316: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Na Encíclica "Humanae Vitae", de julho de 1968, o Papa deu sua resposta, pondo fim, assim, às mais diversas interpretações que se mani­festavam sobre a posição da Igreja quanto à regulamentação da natalida­de. Esta posta interessa particularmente ao domínio do pensamento eco­nômico porque, em todas as questões relativas ao crescimento e ao desen­volvimento da economia, a expansão contemporânea da população ocupa lugar preponderante.

Os economistas — como, aliás, os sociólogos e os homens de Estado — não podem separar de seus problemas aquele de uma humanidade que aumenta numericamente em proporções até então desconhecidas. Os da­dos dessa progressão são de tal importância que não se pode deixar de lembrar seu significado temível. Resume-se nesta simples constatação, a saber que se foram necessárias várias centenas de milhões de anos para que o mundo tivesse uma população de três bilhões e meio de habitantes (1965), bastarão três decênios para que essa população atinja oito bilhões. Não é exagero falar-se, nessas condições, de vertigem e de explosão demo­gráfica. O problema se complica ainda com o fato de que esse crescimen­to não é uniforme: é, com efeito, nas regiões do mundo onde já é difícil assegurar alimentação suficiente que o aumento mais forte se produz e se produzirá. Por volta do ano 2 000 — quer dizer amanhã — sobre uma população mundial de 7 bilhões, cinco milhões e meio pertencerão às re­giões hoje subdesenvolvidas. Este crescimento demográfico será seguido de um crescimento econômico suficiente para permitir responder às necessida­des dos homens cada vez mais numerosos? A fome que fustiga uma parte importante da humanidade será dominada pelo aumento da produtividade ou, se esta for suficiente, será preciso utilizar e generalizar os processos anticoncepcionais?

A questão se coloca para a humanidade em geral, desenvolvida ou sub­desenvolvida, o que explica porque a posição da Igreja sobre o assunto era esperada com impaciência. Esta posição é dada pelo Papa Paulo VI na Encíclica 'Humanae Vitae". Sua resposta ao problema dos nascimentos se inscrev: ia lógica e na continuidade do ensinamento tradicional da Igreja.

A concepção cristã do casamento é lembrada: o amor conjugai é "plenamente humano", total, fiel e "exclusivo até à morte". Mas é tam­bém um amor fecundo destinado a continuar suscitando novas vidas. Pio XII havia introduzido a idéia de uma sã e legítima regulamentação dos casamentos; Paulo VI desenvolve a idéia da "paternidade responsável", isto é, a "necessária dominação que a vontade e a razão devem exercer sobre as tendências do instinto e das paixões".

A responsabilidade de procriar pertence, sem dúvida, aos esposos, mas "todo ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida". O que conduz a condenar formalmente o emprego de processos anticon­cepcionais "é de excluir de igual modo a esterilização direta, tanto per­pétua como temporária, tanto do homem como da mulher; é ainda de excluir toda a'ação que, ou em previsão do ato conjugai, ou durante a sua

316 realização, ou também durante o desenvolvimento de suas conseqüências

Page 317: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a pro-criação" (n.° 14).

Entretanto, se existem razões sérias para espaçar os nascimentos provenham das condições físicas ou psicológicas dos esposos ou de cir­cunstâncias externas — a Igreja considera que é então lícito considerar os ritmos naturais da fecundidade para "usar do matrimônio só nos períodos infecundos", o que permite assim regular a natalidade sem atentar contra os princípios morais. Isto implica que os esposos saibam "renunciar ao uso do matrimônio nos períodos fecundos quando, por justos motivos, a procriação não é desejável".

A Encíclica insiste igualmente (n.° 17) sobre as graves conseqüên­cias dos métodos de regulamentação artificial da natalidade. Duas são particularmente importantes: de uma parte, o emprego generalizado desses métodos favorecia a infidelidade conjugai e a degradação da moralidade, sobretudo entre os jovens, "tão vulneráveis nesse ponto"; de outra parte, tais métodos podem se tornar uma arma perigosa quando utilizados pelos poderes públicos, sem preocupação das exigências morais, mas com o fim de assegurar a hegemonia de grupo ou de nação, utilizando assim o pla­nejamento familiar para impor o controle da população. De modo que os indivíduos terminariam também por deixar aos poderes públicos o di­reito de intervir no setor mais pessoal e mais reservado, que é o de sua intimidade conjugai.

Enfim, o Papa encoraja os homens de ciência a se esforçarem "para esclarecer o mais profundamente com estudos convergentes as diversas condições favoráveis a uma honesta regulação da procriação humana". A porta permanece, desse modo, aberta a novas descobertas médicas per­mitindo precisar e limitar mais os períodos férteis femininos, sem supri­mir a ovulação e sem impedir a concepção. A aplicação dessas novas descobertas poderia ser moralmente permitida.

Trata-se, então, essencialmente de um apelo feito aos sábios para dar uma "base segura" ao método Ogino-Knauss. Este apelo reconhece, pois, que o método, no estado atual de sua aplicação, é de resultado in­certo. Pode-se, evidentemente, perguntar qual será o resultado dessa de­claração sobre aqueles que querem, ao utilizá-lo, conciliar a harmonia de sua união com as prescrições morais da Encíclica. Este apelo aos ho­mens da ciência significa igualmente que a porta permanece efetivamen­te aberta a certas modificações, que poderiam ser assim trazidas à doutri­na da Igreja exposta nesta Encíclica.

Como o previa o Papa, os ensinamentos tradicionais da Igreja no domínio da regulamentação da natalidade, ensinamentos lembrados e pre­cisados nesta Encíclica, não serão aceitos facilmente por todos.

Tem ele consciência, ao fazê-lo, de defender a moral conjugai, a moral em geral e de contribuir assim para a instauração de uma civili­zação verdadeiramente humana. O indivíduo se encontra, então, colocado 317

Page 318: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

diante de uma escolha temerária: ou a procriação será abandonada ao arbítrio dos homens, podendo ter como conseqüência as piores desordens e perversões, ou, qualquer que seja o esforço exigido, será necessário "re­conhecer os limites intransponíveis do poder do homem sobre seu corpo e suas funções".

E, como previsto, esta Encíclica suscita numerosas controvérsias no mundo inteiro, tanto no exterior como no próprio interior da Igreja ca­tólica, onde a "contestação" — que está na ordem do dia em todos os lugares — poderá se disseminar. v

Na realidade, quinhentos milhões de católicos no mundo — 18% da população — encontram-se diretamente visados por este texto.

O fato de que o problema da regulamentação dos nascimentos tenha sido evocado, desde 1965, no fim do Concilio Vaticano II, e também na Encíclica "Propulorum Progressio" em 1967, e o fato de apenas em 1968 haverem sido precisadas e desenvolvidas as regras da Igreja, que devem orientar os esposos no planejamento familiar, cria dificuldades su­plementares à fácil aceitação dos ensinamentos da "Humanae Vitae"j. in­terpretações apressadas favoráveis aos meios artificiais de regular os nas­cimentos têm sido várias vezes formuladas, mesmo pelos dignatários da Igreja, e foram seguidas de hábitos anticoncepcionais agora dificilmente modificáveis.

Em certos países subdesenvolvidos as reações provêm das dificulda­des de conter "naturalmente" um crescimento demográfico exuberante, que constitui o fato principal do "círculo vicioso" do subdesenvolvimento. É assim que na Índia o diretor do Instituto Social Hindu estima que, para os doze milhões de católicos hindus, a Encíclica deverá ser considerada "mais um guia do que uma obrigação".

O teólogo católico Hans King chega a comparar a situação assim criada pela Encíclica com a campanha da Igreja no século XVII contra Galileu. Sem ir tão longe, numerosos são aqueles que observam que esta Encíclica é essencialmente de espírito tradicional e conservador, contras­tando assim com o espírito moderno progressista das Encíclicas prece­dentes.

Enfim, temores são expressos sobre o espírito antiecumênico desse texto; alguns pensam que esse documento poderá trazer prejuízo às rela­ções entre a Igreja católica e as outras Igrejas, desencorajando as inicia­tivas para unir as Igrejas cristãs.

Esta Encíclica, em resumo, exprime com força o pensamento tradi­cional da Igreja, condenando a limitação indiscriminada dos nascimentos. Mas não exprime, somente um pensamento tradicional nesse domínio. Ao ligar seu espírito ao das últimas Encíclicas — sobretudo a "Populorum Progressio" — é possível admitir que toma ela seu lugar num pensamento de conjunto dinâmico e não conformista. E este conjunto de caracteres só pode tornar mais vivas ainda as discussões que a "Humanae Vitae"

318 suscita.

Page 319: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

2. PRINCIPAIS MODALIDADES DO CATOLICISMO SOCIAL

Ao se passar das idéias gerais, pregadas pelo catolicismo social, para a consideração do que de essencial se contém em cada uma das modali­dades doutrinárias em que se concretizaram, verifica-se a diversidade e mesmo divergência das correntes de pensamento não só segundo os países mas também no interior de cada um deles.

Podemos, entretanto, agrupá-las em duas grandes correntes: extre­mista uma; moderada, outra.

A primeira procura conciliar — conscientemente ou não — as idéias socialistas com os princípios cristãos; ou melhor, sem ir assim tão longe, a doutrina, ao se positivar, aproxima-se muito do socialismo.

A segunda afasta-se deliberadamente. do socialismo. Pretende a me­lhoria da sociedade lançando mão, a um tempo, da ação da Igreja, do Estado e do indivíduo. O remédio proposto, na maioria das vezes, é a corporação: o indivíduo encontrará aí as vantagens decorrentes da livre associação. O Estado facilitará a sua criação e fiscalizará o seu funcio­namento; a Igreja lhe emprestará o espírito, assentando-a sobre as bases da igualdade e da hierarquia cristã.

À primeira corrente poder-se-á chamar de "católico-socialista" ou "católico-democrata" e, à segunda, de "social-católica" propriamente dita.

Falar de um "socialismo católico" pode parecer exagerado e abusivo porque se alguns representantes do catolicismo democrata buscam no so­cialismo (tal como o caracterizamos) certas idéias reformistas de com­bate à propriedade privada, à produtividade do capital ou conceitos de luta de classes, parece que seu número permanece reduzido, quando com­parado com o conjunto dos pensadores católicos. Além disso, sua auto­ridade jamais foi oficialmente reconhecida pela Igreja.

O pensamento católico, tal como tem sido tradicionalmente expresso, seja na obra dos grandes canonistas da idade Média, seja nas Encíclicas dos séculos XIX e XX, mostrou-se sempre favorável à manutenção do direito de propriedade privada, opondo-se assim a uma das características fundamentais do socialismo. Entretanto, uma nítida evolução sobre esse ponto transparece no texto das últimas Encíclicas. A "Populorum Pro­gressio", sobretudo, lembra com veemência o princípio da destinação uni­versal dos bens e deduz daí que todos os outros direitos, inclusive o de propriedade, e de livre concorrência, estão subordinados a essa evidência.7 0

Conseqüentemente, se durante longo tempo a denominação de "cor­rente católico-democrata" parecia sem dúvida preferível à de corrente "ca­tólico-socialista",71 cada vez mais a evolução em curso permite a muitos preferir a segunda terminologia.

70. Cf. supra p. 329. » 1 . Nesse sentido cf. G O N N A R D , op. cit. . 163; G. P I R O U , Doctrines Économiquès en ice depuis 1870, p. 181. 319

Page 320: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

a) Movimento "católico-democrata"

Este movimento é muito antigo na França. 7 2 Teve início com uma tentativa de conciliação do espírito tradicional cristão e do revolucionário francês, de 1789. Estreitou com o Abade de Lemannais (1782-1854): "Paroles d'un Croyant", 1833; "La Question du Travail", 1848. Lemannais procura estabelecer uma aliança entre a Igreja e as massas. Pretende fa­zer da Igreja a alma da economia, à imagem do que se dá com o mundo religioso. Com este intuito preconiza a formação, pela Igreja^ de uma grande associação cooperativista de trabalhadores. 7 3

O movimento tem um continuadcr em Buchez, ex-sansimonista que, em 1832, fundou várias cooperativas de produção e é autor de uma "Introduction à la Science de FHistoire" (1833), bem como do "Essai d'un Traité Complet le Philosophie au poit de vue du Catholicisme et du Pro-grès" 1838) e do "Traité de Politique et de Science Sociale." E, poste­riormente, em François Ffuet (1814-1869), que também procura, em seu "Règne Social du Christianisme", aproximar o cristianismo do socialismo.

O movimento se prolonga até fins do século, transformando, entre­tanto, o seu programa de maneira sensível. Os seus representantes en­tram, primeiro, a fazer violentas críticas ao regime econômico capitalista: dá-lhe início Loesewitz, já em 1888, na "LAsscciation Catholique". Pro­curam, depois, uma solução para os males sociais em um intervencio­nismo estatal muito desenvolvido. Os abades Garnier, Naudet et Lemire, por exemplo, reclamam dos poderes públicos iniciativas muito ousadas para a época, tanto no campe da legislação trabalhista quanto no da pro­dução, não admitindo qualquer colaboração patronal. As suas idéias vêm expostas sobretudo na revista "La Démocratie Chrétienne", fundada em Lille, em 1894.

"Le Sillon", jornal fundado em 1980, por Marc Sangnier, aproxima--se do movimento da "Démocratie Chrétienne". Condena o regime assa­lariai e procura expandir as cooperativas de piodução, de consumo e de crédito. Reclama para os sindicatos operários o domínio e a posse dos meios de produção.

Esta dúplice tentativa, no sentido de dar ao catolicismo um progra­ma mais ou menos semelhante ao do socialismo, foi condenada pela Santa Sé: "La Démocratie Chrétienne" foi interditada por decreto do Papa Pio X, datado de 13 de fevereiro de 1908. "Le Sillon" foi condenado pela carta papal de 25 de agosto de 1910.

Na Alemanha, o abade Christophe Moufang (1817-1890) também adere ao movimento do democrata católico, assumindo uma posição assaz excepcional no século XIX, nesse país.

72. Sobre este m o v i m e n t o l e r : A . R A S T O U L : ob. c i t . : G . P I R O U : ob. c i t . : E . E B L É : Les Êcoles Catholiques d'Économie Politique et Sociale en France, P a r i s . 1905 P. P O U J O L L E : Socialistes e Chrètiens depuis 1924, Paris , 1957.

73. Pierre L E G E N D R E : Essai sur la Pensée Économique de la Monnaie (in Rev. Hist. tcon. et Sociale, vol. X X X I I . n.° 1, 1954).

Page 321: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Em compensação, a partir do término da guerra de 1914, a onda de socialismo invade a Alemanha, arrastando consigo inúmeros católicos. Surge, então, um movimento democrata-cristão muito avançado que, ex-pandindo-se, atinge, não somente o plano social, mas também o campo econômico, principalmente os setores da produção e da circulação. Não se contenta também em situar no plano puramente doutrinário e procura tomar parte ativa na política, formando o "Partido Social Cristão" do Reich.

Dentre os principais representantes dessa corrente do pensamento ca­tólico alemão, posterior à Primeira Grande Guerra 7 4 citaremos: Stein-buechel, O Socialismo como Idéia Moral (1921); Scheller, Cristandade e Sociedade (1924); Augusto Pieper, Capitalismo e Socialismo como Proble­mas Espirituais (1925); Joseph Kral, Socialismo Cristão (1920). Aos ex­cessos cometidos por essa corrente deve-se a formal condenação do so­cialismo, reiterada com vigor na Encíclica de 1931.

Na Bélgica, após o Terceiro Congresso do Movimento Católico, rea­lizado em 1890, na cidade de Liège, o elemento "progressista" católico conseguira obter uma vitória decisiva sobre o elemento "conservador". No ano seguinte, incentivados por A. Verhaegen, um dos pioneiros do movimento católico belga, e por Helleputte, reuniram-se as organizações sociais de trabalhadores católicos formando uma federação sob o nome de "Liga dos trabalhadores católicos", organização ainda hoje reconhecida por todos os operários das indústrias fabris belgas. Este país conheceu também um importante movimento destinado à juventude — "J.O-C." (Juventude Operária Católica) —, que congrega os jovens trabalhadores da indústria e do comércio e, em algumas regiões, apenas, também da agricultura.

Na Áustria existiu também um movimento "socialista religioso" fun­dado por Otto Bauer, ministro da Pasta dos Negócios Exteriores, por ocasião do término da guerra de 1914, e um dos chefes do "Partido da social-democracia". O congresso dos bispos austríacos, realizado em 1917, condenou de modo formal este movimento. A mesma sorte tiveram, não só uma outra corrente "avançada", a cuja frente estava Anton Orei, dire­tor do jornal de Viena, "Das Neue Volk", mas também as idéias defini­das por Ude, padre, quatro vezes doutor, professor da Universidade de Graz. O manifesto publicado em 1932, pelo círculo católico de sociologia, de Viena, constitui também das expressões "socialistas" do pensamento católico, não aceitas pelas autoridades eclesiásticas competentes.

b) Movimento católico social propriamente dito

Trata-se de um movimento que se distingue do anterior por preco­nizar um intervencionismo estatal mais moderado. A despeito de apelar também para a intervenção do Estado tendo em vista a obtenção de uma

74. Leia-**.-, subre este m o v i m e n t o alemão aDÓs o a d v e n t o do n a c i o n a l - s o c i a l i s m o , p r i n c i p a l ­m e n t e : H e n r y S O M M E R V I L L E , ob. cit.. prefácio.

Page 322: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ordem social em melhores termos que a existente, restringe essa interven­ção ao campo legislativo, desejando a promulgação de leis trabalhistas prudentes e progressivas. Quanto ao mais, confia principalmente na in­fluência exercida pela Igreja e nas associações, como meios para alcançar o objetivo em vista. O tipo de associação que tem em vista é a corpora­ção, pregando o seu restabelecimento sob a forma autônoma, ou seja, de sindicatos, e, de preferência, mistos. Aí temos, em linhas gerais, o que de essencial contém o programa desta tendência "central", à qual se po­derá dar, com acerto, a denominação "catolicismo social". v

A este movimento pertenceram, na França, a partir de 1870, O Con­de Albert de Mun (1841-1914) 75 e o Marquês de la Tour du Pin. Ambos, enquanto prisioneiros de guerra, na Alemanha, dedicaram-se ao estudo profundo dos problemas sociais, havendo decidido consagrar sua vida à busca de uma melhor organização social e econômica. Chegaram à con­clusão de que, de modo geral, um dos principais males da socidade era a instabilidade das relações existentes entre capital e trabalho. Atribuíram a causa desta instabilidade ao isolamento em que ficou o operário após o advento da revolução francesa. Julgaram ser possível remediar esta si­tuação restituindo ao trabalhador a garantia de um emprego permanente, e isto através da recristianização da sociedade, de reconciliação das classes sociais e da ressurreição do associacionismo profissional. E, assim, de Mun e la Tour du Pin fundaram com Maignen, religioso da Casa de São Vi­cente de Paula, os "círculos católicos operários". Publicaram, em 1876, na sua revista "L'Association Catholique", um estudo com base nos fatos sociais e econômicos, mostrando o.acerto das suas concepções, sintetiza­das na fórmula de sua autoria: "O regime corporativo no Estado Cris^ tão". Todavia, é de se notar que não se trata de uma volta pura e sim­ples às corporações de artes e ofícios medievais, mas sim, da constituição — sob a fiscalização do Estado — de sindicatos mistos, através dos quais patrões e operários prestariam a sua colaboração para a elaboração de leis trabalhistas e de decretos regulamentando o trabalho. De Mun, foi eleito deputado em 1876, tendo, assim, oportunidade de pôr a serviço da causa do movimento católico social francês as suas notáveis qualidades de orador. Entretanto, os resultados práticos do movimento foram na realidade insignificantes. Os sindicatos mistos não conseguiram captar a confiança dos operários. E, mesmo depois de se terem separado, trans­formando-se em sindicatos livres, o seu sucesso não foi maior.

Em 1890 ressurgiu esse movimento, por iniciativa da "Escola de Liè-ge", com a finalidade de estabelecer a "livre associação dentro da organi­zação profissional". E a partir de 1903 passaram os católicos, sociais a se reunir anualmente nas "Semanas Sociais". Os trabalhos dessas reuniões fo­ram publicados mais tarde, constituindo esta documentação uma das mais intsressantes fontes de informação sobre a posição assumida pelo movi­mento, em face da questão econômica e social.

75. J. P I R O U : Le Compte A. de Mun, Paris, 1 9 2 1 ; H. F O N T A N I E L L E ; L ' O e u v r e So c i a l e d'A. Mun, Paris, 1927.

Page 323: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Na" Áustria, o movimento católico inclui, como priui^iu ponto de seu programa, o estabelecimento de um regime econômico corporativo e a intervenção do Estado através da promulgação de leis sociais. Em linhas gerais este era o programa da "Escola Feudal Austríaca", fundada pelo Barão Karl von Vogelsang,7 6 e posteriormente desenvolvido por Karl Lue-ger (1844-1910), vice-burgomestre de Viena, pelo Príncipe A. von Lich-tenstein, pelo Conde Kuefstein, pelo Monsenhor Seipel etc.

Neste rápido resumo do movimento católico social deve-se mencionar também a chamada "União de Freiburgo", da qual faziam parte estadistas, economistas, teólogos e sociólogos. Fundada pelos condes austríacos Blome e Kuesfstein e pelo marquês francês la Tour du Pin, sob o patrocínio do Cardeal Marmillod, apresentaram os seus membros, a Roma, para exame, as conclusões a que chegaram depois de discutidos os estudos feitos sobre a questão social. É de se supor que as idéias e sugestões da União de Frei­burgo tenham sido levadas em consideração ao ser redigida a Encíclica "Rerum Novarum".

Na Alemanha, este movimento do "centro" tem como principais re­presentantes dois doutrinadores — von Ketteler e Franz Hitz.

O Barão Emmanuef von Ketteler (1811-77), deputado à Dieta de Francforte em 1848, e, posteriormente, em 1866, bispo da Mogúncia, vai inspirar-se nas instituições medievais e buscar na concepção cristã de Es­tado as bases para uma nova e duradoura organização da sociedade. Em sua obra, "A questão dos trabalhadores cristãos", vinda à luz em 1864, critica a organização econômica-liberal e o ateísmo de que se impregna o liberalismo. Empenhou-se, ainda, em uma campanha em prol da interven­ção do Estado, a fim de coibir os abusos advindos do capitalismo, da usu­ra e da especulação.

O abade Franz Hitz, inspirando-se nos mesmos princípios gerais, vai propugnar também pela reforma da organização social. Funda a "Liga dos Trabalhadores" ("Arbeterverein"), a qual obteve certo êxito e pôde expandir-se. De fato abrangia, em 1933, quatro federações disseminadas por diferentes regiões da Alemanha. A de Colônia — a mais importante de todas — contava, então,, 200 000 membros. Funda ainda Hitz, junta­mente com Brandtz, a "União do Povo" ("Volksverein"), ficando à testa da sua direção. Esta União tinha por objetivo difundir a educação cristã entre o povo e, através da palavra escrita e oral, tornar conhecida a solu­ção cristã para os problemas sociais.

Adolf Kolping, por volta de meados do século passado, funda por sua vez as "Gesellenvereine" ("Uniões dos Companheiros"), organizações pro-

sob 7 6 VtAi ° b r a • V ° Z e , ? a r , £ f o i enfeixada p e l o D r . K L O P P * , no l ivro de sua autoria p u b l i c a d o nas d °:. P I e Sozialen Lehren des Freiherrn Karl von Vogelsang e em parte reproduzida ciauxT? . e d l S 5 e s francesas intituladas, r e s p e c t i v a m e n t e : Vogelsang, Morale et Économie So-rístic' d ' V o I g e J s . a n S . Politique Sociale, P a r i s . Ao lado da parte p o s i t i v a , m u i t o c a r a c t e -leitur 3 f e s c 0 ' a c a t ó l i c a " c e n t r o " , encontra-se t a m b é m , e m sua obra, uma parte c r í t i c a , cuja lista ^i ° grande interesse. Consiste esta c r í t i c a em um cerrado ataque ao r e g i m e c a p i t a -

to , excede, em v i o l ê n c i a , o do próprio M A R X . O v a l o r dessa crítica é tanto maior quan-. . m i , . ? . *.'/ s i d o feita por v o l t a de 1870, ou seja, p r e c i s a m e n t e no período do apogeu da e c o -

vmia individual ista .

Page 324: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

fissionais destinadas aos jovens trabalhadores católicos. Estas associações sobreviverão às guerras de 1914 e 1939. Em 1933 existem 1 770 dessas uniões com um total de cerca de 93 000 membros ativos e em 1953 o número de associações se elevava a 2 300, ascendendo o número de mem­bros ativos a 105 000.

Todas estas sociedades e organizações, nascidas do movimento católi­co social, procuravam impor as suas concepções morais, não somente no setor econômico-social, mas também político, e assim, concorreram, por um largo período de tempo, para estabilizar a posição do partido político do "centro". Até 1914 assumiram uma atitude francamente contrária ao socialismo.

Na Bélgica, o movimento católico tomou grande impulso no setor agrícola, a partir de 1890. Deve a Bélgica, em grande parte, à ação desse movimento o incremento da sua agricultura. A despeito de uma indus­trialização muito avançada, 22,7% do total da sua população (esta per-centagem é de apenas 9,7% na Inglaterra) se mantêm nos campos, pro­duzindo 7 1 % dos gêneros alimentícios ao consumo nacional.

Helleputte, professor da Universidade de Louvain, seu cunhado Schol-lert e o abade Mellaerts são os principais fundadores deste movimento, conhecido pela designação de "Boerenbond" ou "União dos Camponeses". Esta união consiste em uma vasta organização cooperativa, com 1200 se­ções e atividades múltiplices: compras, vendas, crédito, seguros, moinhos comuns, institutos de pesquisas científicas, fazendas experimentais, depósi­tos, armazéns, trabalho de drenagem e eletrificação etc. O movimento abrange, pois, a organização total de uma comunidade agrícola.

A Holanda não pode ser omitida, uma vez que fornece à doutrina católico-social o tema de uma história bem sucedida.

De fato, fundou o Dr. Shaepmann, na Holanda, um partido político, cujo "programa dava prevalescência "às questões sociais" baseando-se na "Rerum Novarum". Com o auxílio dessa organização política, os próprios operários e empregadores organizaram-se para pôr em prática os princí­pios da ação católica. Os sindicatos católicos e as diversas associações de "trabalhadores católicos" reuniram-se em uma poderosa federação, a "Roomsch Katholiek Werkliedenverbond". Esta federação, através das inú­meras uniões suas filiadas, põe à disposição de seus membros cs recursos de prósperos bancos, possibilitando-lhes a concessão de créditos em con­dições vantajosas e, além disso, os serviços de sociedades de seguro e mú­tuo, de cooperativas, sociedades de construção imobiliária e até mesmo de um jornal diário e de um sanatório modelo. A influência exercida pela federação, no que respeita à legislação, fez-se sentir principalmente a par­tir de 1904, obtendo a promulgação de numerosas leis relativas à jornada do trabalho, à idade para permissão de trabalho aos menores, às condições

324 do trabalho de modo geral etc.

Page 325: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

No Brasil, 7 7 o movimento católico, estimulado, em parte, pela "Re-rum Novarum", apresenta, pela primeira vez, no início do século, tenta­tivas de realização de ordem prática. Carlos Alberto de Menezes, indus­trial de Pernambuco, imbuído de um espírito semelhante ao que animou, na França, o Conde de Mun e seus amigos, procurou dar ao trabalhador maior estabilidade e melhorar as condições do trabalho através da organi­zação profissional.78 Fundou o sindicato profissional de Camaragipe sindicato misto —, cuja finalidade é proteger materialmente o operário através de obras assistenciais, ministrando-lhe um ensino consentâneo com os princípios cristãos.

Desejoso de difundir este movimento, funda, juntamente com Inácio Tosta e com a colaboração do Pe. Maximino Cottart, C. S. S., a federação operária católica, na qual poderiam ingressar todos os operários, quer da indústria, quer da agricultura.79

Às atividades desse movimento católico se deve, em parte, a votação das primeiras leis sindicais de 1903 e 1907 (e principalmente o art. 8.° da lei de 1907). Este movimento legislativo em prol da criação dos sin­dicatos e de melhores condições de trabalho tomará um novo impulso a partir de 1931 (vide principalmente o decreto n.° 19.770). 8 0

A Encíclica "Populorum Progressio" de 1967, ao insistir sobre o de­senvolvimento integral do homem e sobre o desenvolvimento solidário da humanidade, teve profunda influência sobre o movimento católico brasi­leiro.81

Os temas principais da Encíclica sobre a assistência aos fracos, a luta contra a fome, a insuficiência dos esforços oficiais até agora realizados, as passagens a respeito das limitações do exercício do direito de propriedade individual (muito mais incisivas do que anteriormente), aquelas que criti­cam os abusos do individualismo e do liberalismo, o apelo dirigido à cons­ciência dos homens ("consciência que tem uma nova voz para nossa épo­ca"), todos são temas que íiveram forte e durável ressonância sobre o pensamento e a ação dos representantes do catolicismo no Brasil.

77. V i d e , sobre o assunto, a e x p o s i ç ã o s u c i n t a , m a s muito interessante, na brochura já c i t a d a : A « e r a m Novarum e seu 50." aniversário, do P e . Leopoldo B R E N T A N O , S. J., R i o de Janeiro, 1941.

78. V i s í v e l a s e m e l h a n ç a existente, sob v á r i o s a s p e c t o s , entre, por e x e m p l o , os sócios — católicos brasi leiros e os franceses. A s s i n a l e m o s um destes apenas, que nos parece f u n d a m e n t a l : de M U N , conforme v i m o s , pretendia restabelecer, a t r a v é s da organização dos diferentes grupos profissionais, a e s t a b i l i d a d e material e o apoio m o r a l para o trabalhador. E s t e , com a e x t i n ç ã o das corporações, após o advento da R e v o l u ç ã o F r a n c e s a , l ibertou-se das restrições que lhe eram impostas mas t a m b é m ficou em posição m a i s fraca, em virtude do isolamento em que se v i u . No B r a s i l , com a a b o l i ç ã o da escravidão, a 13 de m a i o de 1888, a mão-de-obra e s c r a v a foi t a m ­bém atingida por este f e n ô m e n o : liberdade e abandono no seu isolamento. A o r g a n i z a ç ã o pro­fissional, tal como é concebida e realizada por C a r l o s A l b e r t o de M E N E Z E S , v i s a c o n c i l i a r a liberdade e a associação no quadro da profissão o r g a n i z a d a .

79. À inspiração do movimento catól ico social se d e v e a criação do Sindicato Agrícola de Goiânia.

_ 80. Cf. sobre o c a t o l i c i s m o social e a l e g i s l a ç ã o brasi leira do trabalho a partir da R e v o l u ­ção de 1930, Pe. L E O P O L D O B R E N T A N O , S. J . : ob. cit. , p. 23 e segs.

8 1 . L e r sobretudo o t e x t o do documento final a p r o v a d o pela A s s e m b l é i a da C o n f e r ê n c i a Nacional dos B i s p o s do B r a s i l em 1968 (o t e x t o foi p u b l i c a d o , em particular, p e l o "O E s t a d o te Sao P a u l o " , no dia 21-7-1968).

Page 326: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Essa ressonância associada às disparidades do desenvolvimento econô­mico regional do País acusou a tendência para criar divergências doutri­nais importantes entre os membros do clero brasileiro. Marcam com niti­dez a distinção entre um movimento moderado e um movimento progres­sista, cujas idéias e ação penetram amplamente no socialismo.82

Os movimentos — democrata-católico e social-católico propriamente ditos — representam, pois, as duas principais formas do catolicismo social.

Destaca-se, todavia, ainda outra forma de expressão doutrinária, dis­tinta das duas anteriores em virtude de opor restrições ao intervencionis­mo estatal e, por isso, aproximando-se das doutrinas liberais mais puras.

Tendo em vista a melhoria das condições econômicas e sociais exis­tentes, apela esta corrente, sobretudo, para a ação da Igreja e do patrão. E, neste sentido, muito se aproxima de Le Play e dos liberais não con­fessionais, sendo representada principalmente pela Escola de Angers, com Théry e Charles Périn à frente.

A importância desta corrente é, entretanto, secundária, uma vez que Leão XIII pôs um ponto final à discussão relativa a se dever, ou não, ad­mitir a intervenção estatal, ao indicar claramente, na Encíclica "Rerum Novarum", a necessidade dessa intervenção, que deve ser exercida com prudência e firmeza.

I I . O movimento social protestante

As doutrinas protestantes, no campo social, apresentam-se, não raro, sob formas mais numerosas e com divergências entre si ainda mais acen­tuadas que as doutrinas sociais-católicas.

Colorem-se dos mais diversos matizes, desde o protestantismo conser­vador até ao protestantismo socialista. As duas formas mais "avançadas" transpõem as fronteiras do socialismo muito mais nitidamente que as for­mas mais extremadas do catolicismo. E se, de fato, razões podem existir para hesitações, relativamente à classificação destas últimas como "socia­lismo católico", o mesmo já não acontece quanto às primeiras, às quais cabe perfeitamente bem a denominação do "socialismo protestante".8 3

O movimento social protestante surgiu, na Inglaterra, em meados do século XIX, ou melhor, precisamente no ano de 1848, ano de gran­de., significação para a história das doutrinas: o "Manifesto Comunista" de Marx e Engels é desse ano. E assim também os "Princípios" de Stuart Mill, onde este refunde as concepções da ciência clássica, no tocante à

82. As idéias mais p r o g r e s s i s t a s da corrente c a t ó l i c o - s o c i a l i s t a brasileira estão e x p o s t a s no " P a r e c e r " d o sacerdote b e l g a Joseph C O M B L I N . d o I n s t i t u t o T e o l ó g i c o d e Recife (1968), e l a ­borado a pedido do A r c e b i s p o de O l i n d a e de R e c i f e , com o t í tulo " N o t a s sobre o D o c u m e n t o B á s i c o para a II Conferência E p i s c o p a l L a t i n o - A m e r i c a n a " .

83. A l g u m a s das doutrinas s o c i a l i s t a s protestantes preconizam, não apenas a e x t i n ç ã o do r e g i m e de trabalho assalariado, m a s t a m b é m o da propriedade p r i v a d a , pregando a o r g a n i z a ç ã o c o l e t i v i s t a da sociedade, com o fomento da luta de c l a s s e s (como, por exemplo, a doutrina pre­gada pelo pastor H E R R O N ) .

Page 327: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

produção e às trocas. Mill, ante as queixas que se faziam ouvir então, não manteve, conforme vimos, a mesma atitude de indiferença científica assumida pela Escola Clássica em relação aos problemas da repartição. É neste ponto que se afasta da sua escola para se aproximar do socialismo.

Os "Princípios" de Mill, obra magistral que contém, a um tempo, toda a força e fraqueza da Escola Clássica, são bem o símbolo de uma época assinalada pelo desenrolar de acontecimentos gravíssimos. Rumores e amea­ças se fazem ouvir, com efeito. Desde 1830 vinha sendo a Grã-Bretanha violentamente sacudida pela agitação socialista: 1848 é a data do apogeu do movimento cartista. E precisamente quando a séria crise econômica, en­tão desencadeada, torna mais agudo o descontentamento geral, a revolução de fevereiro, ocorrida na França, vai emprestar-lhe o virulento e grave ca­ráter que atrairá a atenção do mundo inteiro.

E, precisamente nesta data, inicia-se, na Inglaterra, o movimento so-cial-protestante, a cuja frente se encontravam os pastores Charles Kingsley (1819-1875) 8 4 e Frederick-Denison Maurice (1805-1872), o advogado John M. Ludlow, Thomas Hughes e Neale Vansittart. Este é o chamado movimento dos "Christian Socialists", nome que darão também, em 1850, ao seu jornal.

O programa dos fundadores do movimento consiste precipuamente em uma reforma moral da sociedade: esforçam-se sobretudo por atingir as massas operárias, tendo em vista a sua cristianização. Organizam, em 1850, a "Sociedade para Incentivo das Associações Operárias" e fundam, em 1854, o "Working Men's College", cuja finalidade é operar uma trans­formação na mentalidade dos operários. Além disso, sob a influência de Ludlow, que acaba de assistir, em França-, aos primeiros ensaios de uma cooperativa de produção, recomendam este tipo de associação sem, toda­via, alcançar resultados práticos. Ao que parece, o interesse dos "Christian Socialists" pelas cooperativas se volta antes para o sentido moral dessas associações que para suas virtudes econômicas. Cooperação representa, para este movimento, o oposto de concorrência, simbolizando a associa­ção a antítese da luta pela vida.

No seu programa se inclui também a atuação junto ao Estado, no sentido de obter a sua intervenção em assuntos de interesse social. Ao "Christian Socialists" deve-se, em grande parte, a iniciativa da lei de 1852, que reconheceu personalidade jurídica às cooperativas ("Industrial and Provident Societies Actes") e em conseqüência da qual o mesmo reconhe­cimento se estenderá posteriormente a todas as demais associações operá­rias. Seligmann, ao se referir a essa lei, disse tratar-se da "first law in the

84. De K I N G S L E Y se tornaram célebres o seu Alton Lock, panfleto contra o sweating SyStVT' ° c * « a P clothes, The Saint Tiagedy, Yeast e outros.

, . . M A U R I C E , um dos mais brilhantes dentre os fundadores deste m o v i m e n t o , sofreu forte in­fluencia das idéias de R. O W E N : Aforai and Metaphisical Religion e de H U G H E S : Tom Hrown's School Days.

L e i a - s e , sobre M A U R I C E e K I N G S L E Y : E . R . A . S E L I G M A N : art igo n o Political °"ence Quarterly ( v o l . I, n.° 2); B. C. V U I L L I A M Y : Ch. Kingsley and Chris-ian Socialism

, *" Society), L o n d r e s , 1924; The life oi F. Maurice, N o v a Iorque, 1884; The New Ency-ciopedia oi Social Reform, 1908; L A I D L E R : ob. cit., p. 653 e segs. 3Z7

Page 328: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

civilized world that recognized and protected cooperative societies as se-parate entities".8 5

Após seus fundadores, prossegue o movimento com pequenas altera­ções em seu programa. A idéia de organização de cooperativas de produ­ção foi abandonada para se dar preferência às cooperativas de consumo.

Insiste-se em obter a intervenção do Estado, sempre no sentido de conseguir a melhoria das condições do trabalho, mas, além disso e sobre­tudo, tendo em vista também uma reforma do regime legal da proprieda­de imobiliária. Aliás, constitui esta uma questão especificamente inglesa, cujas bases científicas vamos encontrar em Ricardo e cuja feição social nas obras do americano Henry George, a qual terá ainda por adeptos — livres, aliás, de qualquer matiz confessional — Stuart Mill, Patrick E. Dove e Wallace. E os sociais-protestantes vão por sua vez lutar ardorosamente por esta reforma, lançando mão dos mais violentos argumentos usados por Henry George e aceitando, em relação a esta parte do seu programa, al­gumas das reivindicações mais características da doutrina socialista, ten­dentes à abolição do direito de propriedade.

Em 1899 funda-se a "Christian Social Union", cujo órgão publicitário é a "The Economic Review", de Oxford (Bispos de Durham, Gore, Stibbs, Percy, Dearmer e t c ) .

Em 1924 reúnem-se os representantes de todas as igrejas inglesas (William Temple, bispo anglicano, Lucy Gardner e t c ) , a fim de estudar o problema social. Nasce, então, o movimento conhecido pelas iniciais COPEC, ou seja: "Christian Organization of Political and Economic Con-ferences". O programa elaborado por esse movimento é em parte anti--socialista — afirma o direito de propriedade e repudia a luta de classes — e em parte — ousadamente intervencionista para a época — propugna pela estatização das grandes empresas, dos bancos, da imprensa e assim também pela repartição dos lucros entre os operários.

De modo geral, o êxito alcançado pelo movimento socialista-protes-tante foi e ainda é grande. O operário britânico submete-se à sua influên­cia e confia nas suas empresas, o que já não se dá com os trabalhadores de inúmeros outros países.

Nos Estados Unidos 8 6 fundou-se, em Boston, no ano de 1889, a primeira associação dos sccialistas-cristãos, que se multiplicou posterior­mente em numerosas outras, constituindo um importante movimento.

Desenvolveu-se, assim, um considerável esforço de educação cristã: a "Protestant Episcopal American Church" organizou centros de estudos so­ciais, cujo objetivo era a melhoria das relações entre trabalho e capital. Herron e Ely fundaram, em 1894, um instituto de Sociologia Cristã.

85. S e l i g m a n n : ob. cit. , p. 258. 86. O autor de uma das principais críticas feitas ao c a p i t a l i s m o é W a l t e r R A U S C H E N S -

B U C H : Christianity and the social crisis, N o v a I o r q u e : The social principies of Jesus, N o v a Iorque, 1916. L e i a - s e t a m b é m o art igo de Josiah S T R O N G , na revista The Gospel of Kingdom.

Page 329: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Posteriormente ao advento da Guerra de 1914 o protestantismo so­cial continuou fazendo progressos na América do Norte.

Na França, o pensamento protestante aplicado ao estudo da questão social diversificou-se em várias correntes, tal como se deu em outros paí­ses. Distinguiremos as três principais:

1) a corrente "conservadora", com Paul Doumergue à frente ("Ser­vir", 1929) e a revista "Foi et Vie";

2) uma corrente "centro-moderada", avizinhando-se do solidarismo como doutrina e do cooperativismo como meio de ação. É representada principalmente pela "Associação Protestante para o Estudo Prático das Questões Sociais", fundada em 1887, pelo pastor Gouth, sob a influência do pastor Fallot. Esta associação teve por presidentes, primeiro, Boyve e, em seguida, Charles Gide, ambos "cooperativistas".

Seu programa, em suas linhas gerais, foi exposto na chamada "De­claração de Besançon" (1910). O movimento visa, através de sua ativi­dade social, à consecução de uma nova ordem, da qual desaparecerão a concorrência e o egoísmo, por efeito da ação moralizadora das idéias cris­tãs. O instrumento de que lançarão mão para essa transformação será a cooperativa. Por seu intermédio a nova sociedade terá por base a asso­ciação e a solidariedade e não mais o antagonismo ou a oposição. 8 7

Numerosas outras organizações protestantes prestam a sua colabora­ção para a realização do mesmo ideal, tal como, por exemplo, o Exército da Salvação, com as suas obras sociais. Todas essas organizações reuni­ram-se em 1922, em uma federação francesa, tendo por presidente Charles Gide.

3) Uma corrente extremista de esquerda, representada pela "União dos Socialistas Cristãos", foi fundada, em 1908, por Raoul Biville e Paul Passey. Na atualidade tem por representantes jovens pastores — entre ou­tros Monod, de Rouen —, os quais aceitam, da mesma forma que os mar­xistas, a luta de classes como o "móvel acionador" que abreviará o adven­to da ordem socialista, a qual pretendem, entretanto, deduzir dos princípios gerais do cristianismo.

Na Alemanha, o protestantismo social, até ao advento do nacional-so-cialismo, foi representado por um movimento importante, quer pelo seu objetivo, quer pela sua ação social e política. Pode ser dividido em duas correntes principais: uma, conservadora, e outra, mais próxima do socia­lismo e que, por vezes, tenta realizar uma ousada síntese entre o protes­tantismo e o socialismo.

O primeiro movimento se desenvolveu entre 1850 e 1914: os mais avançados componentes desse movimento não vão além de pregar um so-

87. A despeito de se apresentar como u m a corrente moderada, este m o v i m e n t o protestante se aproxima do c o l e t i v i s m o pelo seu o b j e t i v o uma v e z que espera alcançar, a t r a v é s da ordem cooperativista, a s u b s t i t u i ç ã o da propriedade p r i v a d a . Conforme, pois, t i v e m o s o c a s i ã o de ob­servar, d i s t i n g u e - s e do c o l e t i v i s m o em particular pelo expediente preconizado para a c o n s e c u ç ã o

o seu objet ivo e pela formal condenação de qualquer recurso à coerção e à v i o l ê n c i a .

Page 330: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

cialismo de Estado moderado. São seus precursores: Wichern (1806-81), "Memórias" (1849) e Hubers (1800-69). Preconizam, como principal meio de reorganização social, á criação de associações profissionais, prin­cipalmente de sindicatos mistos.

Mas só a partir de 1878 se delineará a sua verdadeira fisionomia através da ação desenvolvida pelos pastores Sttockler, Rudolf Todt (1838--87 ) 88 e A. Wagner, fundadores do "Partido Social Cristão dos Trabalha­dores". De modo geral, o programa desse partido se mantém sempre nos limites de um intervencionismo de Estado animado de espírito religioso e preocupado com a idéia de organizar o mecanismo da nova sociedade, em função dos recentes dados fornecidos pela ciência econômica. O êxito al­cançado por este partido junto à massa operária foi de fato pequeno.

Em 1896, no Congresso realizado em Ehrfurt, os pastores de Franc-forte, Neumann (1860-1919) e Paul Gohre (1869-1928) e o pastor We-ben (1846-1922) tentaram organizar um movimento mais avançado, a fim de torná-lo acessível aos trabalhadores. Mas, não tendo sido favorecidos por êxito maior, limitou-se a sua ação ao plano moral, acima dos partidos políticos, sob a forma de uma associação de estudos ("Evangelisch So-zial"). Os universitários Schulze-Gavernitz, Baumgarten etc, deram-lhe a sua adesão.

Estas diferentes modalidades de protestantismo social assumem todas elas, do modo explícito ou não, uma posição política contrária à social--democracia marxista.

O socialismo protestante não existia, por assim dizer, na Alemanha, anteriormente à Primeira Grande Guerra. 8 9 Mas, em contraposição, se de­senvolveria grandemente após a derrota de 1918. Numerosas são as causas dessa evolução. Basta lembrar o desânimo que invadiu o operários após a falência da revolução, a desconfiança com que muitos dos trabalhadores viam os líderes socialistas, os quais se mostrar ;m impotentes para evitar a cisão no seio da social-democracia, e, enfim, o fato de desenvolver a Igreja Protestante um esforço muito sério no sentido de se aproximar do povo, que sente estar tomado de grande perplexidade e angústia.

Em 1919 fundou-se, em Berlim, a Liga dos Socialistas Religiosos e, em 1926, se organizou a Liga dos Socialistas Religiosos da Alemanha. O seu programa se define pelo próprio título do órgão publicitário dessa liga: "Revista de Religião e de Socialismo". O pastor Wunsch é seu diretor. O progresso alcançado por este socialismo religioso é assinalado pelo con­siderável e rápido aumento do seu efetivo. Em 1929, cerca de 150 pas­tores militavam nas fileiras da social democracia, conseguindo o grupo or­ganizar, em 1930, reuniões dos "teólogos socialistas".

Esta evolução do protestantismo no sentido do socialismo, a qual pode ser percebida de modo particularmente acentuado na Alemanha, constitui^

88. R. T O D T : Le Socialisme Allemand Radical et la Societé Chrétienne. 1878.

89. Exceção- . G L U M H A R D .

Page 331: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

todavia, em suas linhas gerais, um dos traços característicos da tendência observada em quase todos os países. O "cristianismo social", escreve Char­les Gide, 9 0 tende a evoluir no sentido de um "socialismo cristão" e a mu­dança de nome implica uma mudança de programa na mesma direção. Convém salientar, entretanto, que, mesmo quando o protestantismo se apro­xima do socialismo, deste se distingue por apresentar como primeiro pon­to do seu programa a necessidade de uma reforma moral do indivíduo.

Subseção 4 — Os grupos profissionais: a corporação

Em outra época qualquer bastaria indicar a respeito da corporação suas duas principais formas: a estatal e a associacionista. Mas, atualmen­te, tão importante é o movimento das idéias corporativas, que se impõe apresentar aqui, a respeito dos estreitos limites deste trabalho, detalhes su­plementares sobre a matéria e um sucinto apanhado geral.

1. O corporativismo "lato sensu"

Com efeito, a idéia corporativista conheceu um novo período de re-vivescência após o término da Primeira Grande Guerra. A idéia não é nova, quer em doutrina, quer nos fatos.

a) Em doutrina, jamais deixou de figurar, no decurso do século XIX, nos escritos dos diferentes autores pertencentes aos diversos agru­pamentos confessionais que acabamos de estudar. Charles Périn, profes­sor da Universidade de Louvain, foi um dos precursores do renascimento do corporativismo no quadro do catolicismo social. E todas as doutrinas na maioria dos países cristãos, a partir do último quartel do século, de­ram à corporação um lugar de primeira plana em seu programa. É o que acontece, na França, com a elaboração de Albert Mun e de la Tour du Pin; na Áustria, com os trabalhos de KarI von Vogelsang e KarI Luger; na Alemanha, com os de von Ketteler; na Bélgica, com os do professor Helleputte, do padre Mellaerts e de Victor Brants; na Itália, com os de Toniolo etc.

b) Na prática, até ao advento da Guerra de 1914-18, houve sem­pre manifestações das diferentes formas de organização corporativista no quadro do capitalismo. São estas realizações que François Perroux estuda sob a rubrica de "corporativismo lato sensu".*1 Trata-se de um conjunto de instituições pré-corporativas: "governos provisórios de sociedades pro­fissionais em transe de organização" segundo a feliz definição de Henri Lorrain. São os sindicatos mistos, as comissões paritárias, as participações na gestão, no capital e nos lucros das empresas etc.

90. G I D E e R I S T , ob. cit., p. 598. 91. " C e terme designe tout le r e g i m e qui, à 1'intérieur d'un système c a p i t a l i s t e , orpanise,

dans 1'intention de corriger les défauts et les abus entrainés par un tel s y s t è m e , la collabora-tton de 1'élément patronal et de l 'é lément o u v r i é r " . F r a n ç o i s P E R R O U X , Capitalismo et Com-munauté de Travail. p. 13, Paris, 1937.

Page 332: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O objetivo essencial destas diferentes organizações é tentar uma con­ciliação do sindicato patronal com o operário, organizando uma colabo­ração regular entre ambos, independentemente de intervenção permanente do Estado.

2. O corporativismo "stricto sensu"

Na realidade, até 1914, o corporativismo pouco êxito alcançou, quer em doutrina, quer na prática. Em compensação houve, nos vinte anos sub­seqüentes, um intenso desenvolvimento, tanto da idéia, como de suas rea­lizações.92

1. A idéia corporativista conseguiu adeptos nos mais diversos paí­ses, colorindo-se de diferentes matizes doutrinários. Julgava-se, então, ha­verem sido descobertas a fórmula doutrinária e a regra prática aptas a per­mitir fossem corrigidas as falhas essenciais do capitalismo, tanto na ordem econômica quanto na social.

Esta adesão à idéia corporativista — que encerra em si a velha es­perança do homem do século XIX, de encontrar uma conciliação entre os princípios do liberalismo e do socialismo — deu-se sob a pressão do pro­fundo desequilíbrio econômico e social, então verificado, e das dificulda­des criadas pelas condições de após-guerra e decorrentes da crise mundial de 1929-30. .

a) Quanto aos principais traços característicos da doutrina corpora­tivista, há pleno acordo. Assim, a corporação é havida como uma insti­tuição de caráter público; regras de ordem profissional — oficialmente im­postas e obrigatórias para todos — devem substituir os contratos ou acor­dos livremente pactuados no regime individualista de trabalho.

O corporativismo é, assim, na maioria das vezes, definido como um instituto caracteristicamente de direito público. 9 3

"A corporação é, pois, uma entidade de ordem pública, que serve de intermediária entre as empresas privadas e o Estado, incumbindo-lhe a

92. L e r sobre o c o r p o r a t i v i s m o em g e r a l : B O U V I E R - A J A M : La Doctrine Corporative, Paris , 1937 ( P r e f á c i o d o Prof. B A U D I N ) ; D i e g o G U I L L É N S A N T A A N A : Política Econômica Sociológica, Cooperativista, S a n t i a g o , 1940 ;..G. J A R L O T : Le Regime Corporatif et les Catholi-ques Sociaux, Paris , 1938; M i h a i i M A N O Í L E S C O . Le Siècle du Corporativisme, P a r i s , 1934 ( T r a d . em português de A z e v e d o A m a r a l : O século do corporativismo — Doutrina do corpora­tivismo integral e puro, R i o , 1938); J. de M I C H É L I S : La Corporation dans le Monde, 1935; Albert M Ü E L L E R , S. J . : Notes d'Économie Politique ( I , l iv. I V , cap. V I I I ) , Paris , 1938; F r a n ç o i s P E R R O U X : Capitalisme et Communauté de Travail, Paris, 1938; G. P I R O U : Essais sur le Corporativisme, P a r i s , 1938; Nèo-libéralisme. Néo-corporativisme, néo-Socialisme. P a r i s , 1939; L. R O U G I E R : Les Mystiques Économiquès, P a r i s , 1939 (crít ica ao c o r p o r a t i v i s m o ) ; B e r -nard L A V E R G N E : Essor et Décadence du Capitalisme, P a r i s , 1938 (crítica ao c o r p o r a t i v i s m o ) .

93. O Prof. F r a n ç o i s P E R R O U X (Capitalisme et Communauté de Travail, P a r i s , 1937, principalmente p. 303) define o corporativismo, não m a i s em função de um regime e c o n ô m i c o capital ista " a t ô m i c o - l i b e r a l " , mas, sim, em função do t r a ç o comum a qualquer sistema e c o n ô m i ­co c a p i t a l i s t a : a c isão entre os fatores trabalho e capital. D á , então, a seguinte d e f i n i ç ã o de c o r p o r a ç ã o : " G r o u p e m e n t de caractère public ou semi- publ ic oü sont representes paritairement patrons et ouvriers d é p a r t a g é s en cas de conflict par 1 'État, et qui fixe par voie de d é c i s i o n autoritaire les prix des produits et des services (revenus) au lieu de les laisser s 'établir par le jeu du marche l i b r e " . - ( O p . cit., p. 18.)

Page 333: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

administração do patrimônio comum dentro de cada profissão" ("Semai-n e Sociale cTAngers", 1935).

"A essência do corporativismo é a idéia de constituírem todos quantos participam do exercício de determinada profissão (sejam patrões, técnicos ou operários) um corpo ao qual se deve reconhecer o caráter de instituição de direito público.9*

b) Quanto às atribuições da corporação, existe também acordo no tocante aos pontos principais.

Na ordem econômica se inclui, dentre as suas atribuições, a obriga­toriedade de assegurar o equilíbrio entre a produção e o consumo, disci­plinando a produção de modo que a torne coesa. E sobre a oferta atuará principalmente através da decisão para abertura ou fechamento de empre­sas; da aceitação ou rejeição de novos processos técnicos; da fixação dos preços, da fiscalização da qualidade do produzido.

Na ordem social uma das suas atribuições será assegurar a justiça nas relações humanas: para tal se incumbirá a corporação de elaborar e apli­car o estatuto do trabalho, de fiscalizar a aplicação de certas partes da le­gislação trabalhista (abonos familiares, pagamento de indenização ou prê­mios de seguros sociais). Deve, além disso, tomar a si, dispondo de're-cursos próprios, como pessoa jurídica que é, o encargo de determinadas obras sociais.

A ação desenvolvida pela corporação no campo social será tanto mais eficaz quanto maior solidez tiver a sua organização e melhor desem­penho der ao seu papel de centro de conciliação dos interesses patronais e operários, posição essa que a distingue dos sindicatos, simples órgãos re­presentativos dos interesses isolados e divergentes, seja dos patrões, seja dos operários.

Como fator de equilíbrio econômico e de justiça social, a corporação se põe, a um tempo a serviço dos interesses dos patrões e dos operários, dos produtores e dos consumidores, atendendo, assim, tanto ao interesse individual ou privado, quanto ao geral ou nacional.

2. O corporativismo como realidade: A fórmula corporativista, em­bora apresente certa unidade de pontos de vista, ao contrário, quando pos­ta em prática, ou seja, quando considerada à luz da experiência dos anos imediatamente anteriores à Segunda Grande Guerra, caracteriza-se por uma grande diversidade e multiplicidade de traços distintivos.

Dentre as inúmeras realizações corporativistas, surgidas nos vinte e cinco anos transcorridos entre as duas últimas guerras mundiais, pode­mos destacar dois grupos distintos: um, o das que constituem o que se convencionou chamar de corporativismo de Estado ou autoritário e outro, o das que integram o corporativismo associativo ou autônomo.

94. G. P I R O U : Néo-libéialisme. Néo-corporativisme, Néo-socialisme, P a r i s , 1939, p. 77.

Page 334: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

a) O corporativismo de Estado ou autoritário: Foi a forma corpo­rativista adotada por inúmeros países nesses últimos tempos, em particular na Itália e na Alemanha, antes da Segunda Guerra Mundial.9 5

O corporativismo, embora tendo sempre por objetivo a luta contra as falhas econômicas e sociais originadas do liberalismo, apresenta-se, em mui­tas experiências contemporâneas, como uma instituição a serviço da im-

95. L e i a - s e :

Sobre o C O R P O R A T I V I S M O na Itál ia — N. M. F O V E L : Economia e Corporativismo, Ferrara, 1929; U G O S P I R I T O : I Fundamenti delia Economia corporativa ( X V vol . da Biblio­teca di Cultura Política, a cargo do Instituto Nacional Fascista de Cultura), 1932; G. Á R I A S : Economia Corporativa, F l o r e n ç a , 1934; G. B O U R G I N : L'État Corporaiif en Italie, Paris , 1935; Nuove Experienze economiche (volume com várias c o l a b o r a ç õ e s da Università Católica dei Sa­cro Cuore), M i l ã o , 1935; M. F A N N O : Introduzione alio Studio delia Teoria Econômica dei Corporativismo, Pádua, 1935; V A L E N Z I A N I : Le Corporativisme Fasciste, Paris, 1935.

Sobre o C O R P O R A T I V I S M O na A l e m a n h a — A. A N S E L M I : L'Organizzazione delia Eco­nomia tedesca, 1935; H. L A U F E N B U R G E R : L'Économie Corporative en Allemagne et en Ita­lie, in Rev. Pol. et Parlamentaire, Paris , 1934; Chroniques Périodiques sur la Vie Économique en Allemagne, in R e v . d'Écon. Pol. (principalmente j u l h o - a g o s t o de 1 9 3 5 ) ; J. L E S C U R E : Les Doctrines Économiquès du National-socialisme, in Journal des Économistes, 1933; J. L H O M -M E : UÉvolution du Salaire dans VAllemagne Contemporaine, in R e v . Pol, et Parlem., 1933; M a r H E R R M A N N : Idoles Allemandes, Paris, 1935; Fr. P E R R O U X : Les Mythes Hitlériens, L y o n , 1935; K. H E I D E N : Geburt des Driten Reiches, trad. f r a n c , Paris, 1935; H. S C H A C H T : Grundbaze deutscher Wirtschftspolitik, 1932; H. T E S C H E M A C H E R : Des Deutsche Staat und der Kapitalismus, 1933.

Sobre o C O R P O R A T I V I S M O na Áustria: A D A M O V I C H : Grundiss des oesterreichischen Staatsrechtst V i e n a , 1935; M O T H : Neuoesterreich und seine Baumeister, V i e n a , 1935; H. B A -Y E R : Die berufsstandische Ordnung, V i e n a , 1935; J. M E S S N E R : Die berofstaendische Ord-nung, V i e n a , 1936.

Sobre o C O R P O R A T I V I S M O em P o r t u g a l : P o r t u g a l é constitucionalmente república cor­porativa. O c o r p o r a t i v i s m o português pretende repousar-se na livre associação, diferenciando-se assim do corporativismo e s t a t a l a lemão anterior a 1945. O E s t a d o N a c i o n a l do T r a b a l h o , de 1933, colocou as bases da o r g a n i z a ç ã o corporativa portuguesa em função dos seguintes f i n s : " A s s e g u r a r a paz entre as c lasses, valorizar o trabalho nacional , subordinar os interesses part i ­culares ao conceito de interesses g e r a l . " Este regime c o r p o r a t i v o não está ainda c o m p l e t a m e n t e organizado, pois as corporações p r e v i s t a s somente há pouco c o m e ç a r a m a ser consti tuídas, sus­citando discussões sobre o problema fundamental de sua o r i e n t a ç ã o .

A base desse regime corporativo é constituída por grupos primários compostos, de uma parte, de s indicatos de operários e empregados, e, de outra parte, de associações patronais. ( O s agricultores e pescadores t ê m uma o r g a n i z a ç ã o profissional especial , sendo agrupados nas " C a s a s " de agricultores e pescadores.)

N i n g u é m é obrigado a aderir a esses sindicatos ou a s s o c i a ç õ e s , mas em cada distrito — a o r g a n i z a ç ã o a d m i n i s t r a t i v a de P o r t u g a l está dividida em 18 distri tos — há apenas um s i n d i c a t o e uma a s s o c i a ç ã o encarregados de apresentarem os interesses dos membros de uma determinada profissão, estejam ou não esses membros inscritos. Os contratos de trabalho, os s a l á r i o s - m í n i -mos, as medidas de l e g i s l a ç ã o social, são discutidos e elaborados pelos sindicatos e a s s o c i a ç õ e s e se a p l i c a m obrigatoriamente aos membros da mesma profissão.

Os s indicatos e a s s o c i a ç õ e s estão reunidos em federações e uniões; as federações e as uniões de profissões afins consti tuem uma corporação. E s t a representa, portanto, o conjunto de representantes de uma mesma profissão. Foram p r e v i s t a s 25 corporações, cada uma com re­presentantes na C â m a r a Co rp o ra t iva . O controle da a p l i c a ç ã o da l e g i s l a ç ã o e da j u r i s d i ç ã o do trabalho está confiado ao I n s t i t u t o N a c i o n a l do T r a b a l h o e da P r o v i d ê n c i a ( 1 9 3 3 ) ; o controle supremo do funcionamento do sistema corporativo pertence a um Conselho Corporativo, órgão do e x e c u t i v o , no qual 5 dos 7 membros são ministros em e x e r c í c i o .

O corporativismo português apresenta c a r a c t e r í s t i c a s particulares. " T o d a v i a , ao fim de quase 30 anos de governo, o corporativismo português está longe de se apresentar como um s i s ­tema acabado, quer do ponto de vista polít ico, quer do domínio das infra-estruturas e c o n ô m i c o --sociais e das i n s t i t u i ç õ e s " ( T r i b u n u s , Problemas da E c o n o m i a Portuguesa, 1957, introd. p. X I . Q u a n d o se completar esse corporativismo, isto é , quando forem criadas todas as corpora­ções previstas, será m a i s fácil dist inguirem-se as tend ências originais.

A d i s t i n ç ã o que fazemos em nosso texto de c o r p o r a t i v i s m o autoritário tem por fim p r i n c i ­pal colocar em e v i d ê n c i a duas formas extremas dentre as inúmeras possibi l idades do corporati ­vismo. M a s é evidente que entre a completa autonomia e o autoritarismo integral há lugar para as mais diversas formas corporativas, merecendo cada uma análise especial.

Para maior conhecimento do corporativismo português, ler sobretudo: M á r i o de F I G U E I ­R E D O : Princípios Essenciais do Estado Novo Corporativo, C o i m b r a , 1936; L u m b r a l e s da C O S ­TA L E I T E : A Doutrina Corporativa em Portugal, L i s b o a , 1535; S A L A Z A R : Uma Revolução na Paz, Paris , 1937; F E R R E I R A D O S S A N T O S : Um Estado Corporativo, a Constituição Social e Política Portuguesa, Paris , 1935; T e i x e i r a R I B E I R O : Lições de Direito Corporativo c Prin­cípios e Fins do Sistema Corporativo Português; Cunha G O N Ç A L V E S : Princípios de Direito Corporativo; M a r c e l o C A E T A N O : O Sistema Corporativo; A r m a n d o M A R Q U E S G U E D E S ; Para uma Nova Economia, L i s b o a , 1939.

Page 335: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

plantação do Estado forte e autoritário. As corporações são, com efeito, entidades criadas pelo Estado — na maioria das vezes existem apenas para determinadas profissões — e subordinam-se aos imperativos políticos.

A principal vantagem deste corporativismo de Estado reside na faci­lidade com que se cria uma corporação. Os golpes de Estado generalizam a sua instauração imediatamente.

Essas mesmas facilidades dão origem a inconvenientes. A corporação, como expediente criado imediatamente, é artificial e não corresponde — em profundidade — às exigências de um verdadeiro espírito corporativo. E, por ser geral, não se adapta bem à complexidade da vida econômica de uma nação que está a reclamar uma forma particular de corporação para cada uma das profissionais.

E por se ajustarem mal às diferentes necessidades da produção é que estas corporações não funcionam bem, na maioria dos casos. As dificul­dades decorrentes de seu mau funcionamento, as discórdias daí resultantes, obrigam o Estado a intervir, não de maneira esporádica, mas, ao contrá­rio, cada vez mais amiúde e permanentemente. O empreendedor acaba por perder as oportunidades para qualquer iniciativa, bem como a direção da produção. • O operário perde as vantagens da livre sindicahzação; o me­canismo dos preços deixa pouco a pouco de funcionar, surgindo, em seu lugar, a planificação econômica.

O Estado passa a funcionar, pois, "dentro" da corporação, ao invés de se situar "fora e acima" desta, o que acarreta, quase sempre, o adven­to do socialismo de Estado, ou seja, num prazo mais ou menos longo, a desaparição do próprio corporativismo.

b) O corporativismo associacionista ou autônomo: Constitui a se­gunda modalidade. Cada uma das profissões se organiza, então, em uma corporação livre de qualquer ingerência direta dos poderes públicos.

O Estado não institui, neste caso, a corporação, mas apenas a reco­nhece.9 6 A iniciativa da organização profissional cabe, pois, aos próprios interessados. O Estado reconhece, outorgando-lhes oficialmente o seu es­tatuto jurídico. A corporação fixa o seu estatuto de trabalho, os meios e modalidades de controle da produção etc.

Esta forma de corporativismo conta com inúmeras realizações.97

96. " L i m i t a n d o - s e a reconhecer as i n s t i t u i ç õ e s como espontaneamente brotadas no seio fe­cundo da real idade social , mantém-se o E s t a d o fiel à m i s s ã o essencialmente s u p l e t i v a que lhe i n c u m b e " ( D e c l a r a ç ã o do D e p u t a d o K O R T E N H O R S T , feita no decorrer dos d e b a t e s relat ivos à lei holandesa de 7 de abril de 1943, sobre os conselhos profissionais).

97. E n c o n t r a - s e m e n ç ã o mais ou menos e x p l í c i t a , conforme os casos, a este c o r p o r a t i v i s m o associacionista, nas constituições ou nas leis ordinárias de muitos países. A s s i m , por exemplo, na H o l a n d a , na lei de 7 de abril de 1933; na S u í ç a , na lei do cantão de F r i b u r g o , de 3 de maio de 1934. L e r sobre as real izações c o r p o r a t i v a s na S u í ç a : B O H L E R : Korporative Wirts-chaít, eine kritische Wuerdigung, Zurique, 1934; R. D E V R I E N T : La Corporation en Suisse. Neufchatel , P a r i s , 1936; na B é l g i c a , decreto- lei de 13 de janeiro de 1935. L e r sobre a questão corporativa em F r a n ç a : E. M A T H O N : La Corporation, Base de VOrganisation Économique, Paris, 1934; G. V I A N C E : Réstauration Corporative de la Nation Française, P a r i s , 1936; A. K O P P : Le Role des Groupments Professionnels dans VOrganisation de la Prolession, Paris ,

1937; na A m é r i c a do Norte L e i de 13 de j u n h o de 1933; na A m é r i c a do Sul — leia-se, em relação ao B r a s i l : A. F. C E S A R I N O J Ú N I O R : Direito Corporativo e Direito do Trabalho,

Page 336: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

3. Conclusões sobre o corporativismo

As vantagens do sistema residem na flexibilidade do regime corpora­tivista, que assim poderá adaptar-se melhor a cada um dos grupos de pro­fissão.

Quando restrita a autoridade dos poderes públicos, desfruta a corpo­ração do privilégio da própria administração dos seus interesses econômi­cos e o Estado fica libertado do peso das atribuições econômicas diretas, cabendo à nação — conforme muito judiciosamente observa Manôílesco 98

— a vantagem de uma eterna atitude de "vigilância ante o Estado". O principal inconveniente do sistema reside na transposição, para o

plano coletivo, da "mística otimista dos liberais e anarquistas".9 9 Não existe maior probabilidade de harmonizar automaticamente os interesses econômicos das corporações livres do que os dos indivíduos isolados. A corporação autônoma por certo se empenha logo por conseguir o açam-barcamento do mercado, empregando para isso os mesmos processos pe­culiares às empresas capitalistas concentradas. Uma vez obtido o mono­pólio, há de impedir o ingresso de novos candidatos às profissões, criando barreiras alfandegárias, elevando, então, o preço de venda de seus pro­dutos.

Do ponto de vista econômico ter-se-á o rompimento do equilíbrio — fato que se pretendia evitar —, com as suas nefastas conseqüências sobre a produção, o consumo e a economia nacional. E, assim, se chega, do ponto de vista social, ao mesmo resultado: desigualdade e injustiça.

Vê-se, pois, que, a despeito das vantagens, nada desprezíveis, das or­ganizações corporativas, ambas as modalidades acarretam, quer a coerção permanente por parte do Estado e a desaparição do mercado livre, quer o desequilíbrio econômico com todas as suas conseqüências de ordem eco­nômica e social. 1 0 0

São P a u l o , 1940; A Constituição de 10 de Novembro de 1937 e a Organização Corporativa e Sindical, São P a u l o , 1940; W. N I E M E Y E R : Curso de Legislação Brasileira do Trabalho; H e l -vét io X A V I E R L O P E S : A Convenção Coletiva do Trabalho na Legislação Brasileira; B E Z E R ­RA DE F R E I T A S : Legislação do Trabalho e Previdência Social, Rio, 1937; G U S T A V O Z A -L E R C Y : A Reforma Financeira como Base do Futuro Corporativismo Brasileiro, S ã o P a u l o , 1940.

98. M i h a i i M A N Ô Í L E S C O : Le Siècle du Corporativisme, Paris , 1934. 99. No m e s m o s e n t i d o : G. P I R O U : Néo-libêralisme, Néo-corporativisme, Néo-socialisme,

p. 99. 100. Para fugir às falhas dessas corporações foi que François P E R R O U X propôs a

o r g a n i z a ç ã o da " C o m u n i d a d e de T r a b a l h o " como instrumento de renovação social que, " s e m ser opressiva para a c lasse obreira, possibil ita a d i s c i p l i n a e o controle do mercado". O r g a ­nize-se em cada profissão uma "comunidade de t r a b a l h o " . Cada uma dessas i n s t i t u i ç õ e s tem por membros patrões e operários, em número i g u a l , eleitos todos pelos r e s p e c t i v o s sindicatos. Os s indicatos podem ser múltiplos, tendo p a t r õ e s e operários a l iberdade de escolher o s indicato em que desejem ingressar. A obrigatoriedade diz respeito tão-somente à af i l iação a um s i n d i c a t o qualquer. O sindicato l i v r e — embora obrigatória a a f i l i a ç ã o

— não se contrapõe à comunidade de trabalho, const i tuindo, ao contrário, um de seus prin­cipais esteios.

A fim de resolver, no seio da comunidade, os confl itos para os quais não encontrarem os interessados uma s o l u ç ã o a m i g á v e l , ou facil i tar o acordo relat ivamente aos p r o b l e m a s de interesse para as v á r i a s profissões — a serem e x a m i n a d o s pelos respectivos representan­tes —, admite-se a n o m e a ç ã o de "terceiros, como á r b i t r o s " , ou seja, funcionários e " i n d i ­víduos n e u t r o s " (isto é, i n d i v í d u o s que, em razão de sua p o s i ç ã o social e das a t i v i d a d e s anteriormente exercidas, estejam aptos a dirimir as contendas econômicas e sociais s u r g i d a s ) , que proferirão a sua sentença de maneira desinteressada e a contento. E s l s árbitros são escolhidos mediante voto dos representantes dos operários e patrões.

Page 337: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Eis aí um breve resumo das principais idéias relativas ao problema corporativista contemporâneo visto sob o ângulo do interesse doutrinário.

Essas idéias estão associadas, por um lado, a inúmeras experiências pré-corporativistas, e, por outro lado, a tentativas de gerar organização das corporações por parte do Estado ou a tentativas isoladas de organi­zação de corporações associacionistas.

Neste esforço, sempre renovado, de conciliação entre liberalismo e so­cialismo, a corporação associacionista — graças ào espírito que a anima e à sua maleabilidade, indispensável para ser eficaz — representa, não obstante os seus inconvenientes, uma interessante contribuição doutrinária suscetível de interessantes aplicações econômicas e sociais.

A c o m u n i d a d e de trabalho, tal como é proposta por seu autor, desperta v i v e interesse. De muito proveito será a leitura da a p r e c i a ç ã o feita a esse respeito pelo professor Gaétan P I R O U (Néo-libéralisme, Néo-corporativisme, Néo-socialisme. p. 105 e segs. , pondo em dú­vida p r i n c i p a l m e n t e a possibi l idade de se manter no seio da comunidade de trabalho a eco­nomia de mercado. 337

Page 338: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O I N T E R V E N C I O N I S M O NACIONAL [ R e a ç ã o c o n t r a o c o s m o p o l i t i s m o da Esco la C l á s s i c a ]

Por volta de meados do século XIX surgiu uma segunda grande cor­rente doutrinária como reação às conclusões da Escola Clássica.

Não se trata mais de atacar apenas o liberalismo da Escola, mas, es­sencialmente, seu cosmopolitismo. A reação não é mais apenas social, mas sobretudo nacional.

Contra o intervencionismo generalizado e exagerado dos mercantilis­tas, reagiram energicamente, conforme tivemos ocasião de ver, os fisiocra­tas e os clássicos. E estes, tendo elaborado uma teoria econômica, cujo

'mecanismo assentava em leis naturais, leis de valor absoluto — e, portan­to, verdadeiras para os homens de todos os tempos e de todos os países —, preconizavam, no terreno da prática, o estabelecimento do livre-câm-bio no mundo inteiro.

A economia clássica, da mesma forma que na elaboração científica da sua teoria, leva em conta, não o indivíduo particularmente considerado, mas o homem de maneira geral; assim também, em suas conclusões relati­vamente à política comercial a adotar, não tem em vista determinada na­ção, mas o mundo inteiro. Este mundo é para os clássicos uma entidade de ordem tão geral quanto o homo oéconomicus; o seu raciocínio se'de­senvolve como se o mundo fosse constituído, por assim dizer, de uma só nação.

Foi esta concepção cosmopolita, a que chegaram os clássicos em suas conclusões, que deu origem a uma importante reação doutrinária. O fator nação, desprezado pelos clássicos, assumiu então papel primordial e, com base nesta idéia central, constituiu-se a doutrina da economia nacional.

Surgiu, de início, na Alemanha, elaborada por List e, na América do Norte, por Carey. Estendeu-se posteriormente à França, com Cauwès

338 e Brocard.

Page 339: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção I

AS PRINCIPAIS ORIGENS DA ECONOMIA NACIONAL

§ 1.° — As origens doutrinárias

Á doutrina de economia nacional revestiu, no século XIX, com Fre­derico List, a forma de um sistema coerente, na teoria e na prática. To­davia, a idéia subjacente ao novo sistema data de tempos mais remotos, pois sempre existiu, desde que os homens vivem agrupados em comunida­des, a idéia de nação como um organismo econômico. Platão já preten­dera fazer da sua República uma nação econômica. É esta, pois, uma idéia persistente, que, ora consciente ora apenas intuitivamente, se tem imposto sempre aos homens de todos os tempos e de todos os lugares.

No século XIX, List e seus sucessores retomam esta concepção lega­da pelos séculos anteriores, para desenvolvê-la sob uma forma científica mais coerente.

1. NA FRANÇA: OS M E R C A N T I L I S T A S

Segundo se verifica dos notáveis trabalhos dos professores Cauwès, Brocard, A. Marchai e Morini Comby, entre outros, uma das fontes mais importantes da doutrina de economia nacional é constituída pelos mercan­tilistas e, principalmente pelos mercantilistas franceses.1

Subjacente às idéias mercantilistas está sempre a idéia de unidade e solidariedade nacionais. Os mercantilistas, em uma época em que não se realizara ainda a unificação nacional, já consideravam a nação como um organismo econômico. E, por estarem convencidos de que a unidade po­lítica e a unidade econômica constituíam apenas o verso e o anverso de uma mesma medalha, em sua doutrina se encontra sempre, ao lado da preocupação do nacionalismo propriamente dito — político e jurídico —, a preocupação econômica, isto é, a idéia de necessidade de desenvolver harmoniosamente todas as formas de atividade nacional. Já seria, por as­sim dizer, antes mesmo da sua formulação expressa, a noção de "forças produtivas" do sistema de List, ou seja, a percepção clara da necessida­de do estabelecimento da solidariedade orgânica nacional.

Montchrétien, em seu "Traité d'Économie Politique", que data do iní­cio do século XVII, exprime esta idéia de interdependência de todas as forças econômicas de uma nação, comparando agricultores, artesãos e co­merciantes aos "dedos da mão". E Boisguilbert diz precisamente o seguin­te: "Devemos, em princípio, concordar em que todas as profissões, dentro

0 *• Cf. C A U W È S : Cours d'iconomie Politique, Paris , 1893; B R O C A R D , particularmente La c S , r ' . n c ' P e s d'Êconomie Nationale et Internationale, Paris, 1929; André M A R C H A L : iran • c e P t ' o n de 1'Économie Nationale et des Rapports Internationaux chez les mercantilistes _„

« " t a i s . P a r i s , 1931; Morini C O M B Y : Mercantilisme et Protectionisme, P a r i s , 1930. o õ ü

Page 340: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

de determinado Estado, sejam elas quais forem, trabalham umas em be­nefício das outras, sustentando-se, assim, reciprocamente, não apenas quan­to à satisfação das suas necessidades, mas também quanto à defesa da pró­pria existência." E, em seu "L'Ami des Hommes", retoma o Marquês de Mirabeau a mesma idéia nos seguintes termos: "O Estado é uma árvore, cujas raízes são a agricultura; o tronco, a população; os ramos, a indústria; as folhas, o comércio propriamente dito e as artes e ofícios."

Esta concepção de solidariedade e de exploração de todas as riquezas de um país sob o controle e a direção do Estado — riquezas materiais e humanas que se desenvolvem paralelamente — constitui um dos aspectos essenciais da doutrina dos mercantilistas franceses, ou seja, na feliz expres­são de Brocard, "son âme cachée et bien vivante", e, assim também, a essência da doutrina econômica nacional na forma bem precisa que lhe deram List e seus sucessores.

Conscientemente ou não, todos os teóricos do sistema nacional de eco­nomia se inspirarão no mercantilismo francês: "Nos séculos passados — escreveu Cawès — a economia nacional tinha o nome de mercantilismo." 2

Antes, portanto, de expormos, de modo geral, a doutrina tal como foi elaborada por List, devemos examinar rapidamente a contribuição de al­guns autores que o precederam.

Já dissemos que a Economia Nacional encontrará no século XIX sua expressão moderna na Alemanha, nos Estados Unidos e na França. Suas fontes são igualmente francesas pelo mercantilismo — que acabamos de examinar —, alemãs por Adam Müller e americanas por Daniel Raymond: são essas últimas que nos cabe estudar agora.

2. NA ALEMANHA: ADAM MÜLLER

Em Adam Müller,3 irá buscar a economia nacional três das suas no­ções principais.

Encontramos, assim, em primeiro lugar, a de nação como entidade superior, distinta dos indivíduos que a compõem e surgida em conseqüên­cia de determinado desenvolvimento histórico. Será, pois, artavés de Adam Müller que a filosofia alemã irá ter então ingresso ná economia política.4

2. L Économie Nationale, in Revue d'Économie Politique, Paris , 1898. 3 . A d a m M Ü L L E R (1779-1829) nasceu e m B e r l i m . A í estudou T e o l o g i a e depois, e m

Goett ingen, Jurisprudência e C i ê n c i a P o l í t i c a . E x e r c e u , como funcionário p ú b l i c o austríaco, os cargos de C o m i s s á r i o Rural do T i r o l , de C ô n s u l , em L e i p z i g (1816) e de C o n s e l h e i r o da C h a n c e l a r i a de E s t a d o em V i e n a . As suas obras p r i n c i p a i s s ã o : Die Lehre von Gegensatze, B e r l i m , 1804; Elemente der Staatskunst, B e r l i m , 1809 (considerada como a sua obra prin­cipal e escrita aos 32 anos de i d a d e ) ; Handschriítliche Zuzaetze, 1926 (Manuscrito suple­mentar, p u b l i c a d o por B a x a ) etc. A b u n d a n t e é a p r o d u ç ã o deixada por M Ü L L E R . T o d a v i a , em virtude, t a l v e z , do est i lo pouco claro em que é v a z a d a e da sua falta de s i s t e m a t i z a ç ã o , não obteve a merecida d i v u l g a ç ã o .

Sobre este autor, leia-se S P A N N : The History oi Economics, N o v a Iorque, 1930 (cap. 8 ) ; I N G R A M : op. cit. , p. 2 1 5 ; TOKARY-TOKARZEWSKY-KARASZEWICK: Ad. Müller von Nittersdori ais Oekonom, Literat, Philosoph und Kunstkritiker, V i e n a , 1 9 1 3 ; L. S A U -Z I N : A Müller, Sa Vie et son Oeuvre, P a r i s , 1937.

4. Sobre a noção de E s t a ç ã o na A l e m a n h a , leia-se B A X A : Einfuerhrung in die ro-mantische Staatswissenschait, Iena, 1923; Ch. A N D L E R : Les Origines du Socialisme d'ttat en Allemagne, P a r i s , 1897; Le Pangermanisme Continental, P a r i s , 1915.

Page 341: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

"O Estado — escreveu ele em seus "Éléments" — é o conjunto das ati­vidades humanas, a sua interconexão para formar um todo vivo." O Esta­do torna-se, assim, um todo vivificado e espiritual, "o reino de todas as idéias em movimento eterno". À Alemanha Medieval, e sobretudo a Fichte e a Schelling, deve Müller esta concepção de nação, que aliás constitui o tema predileto da literatura e da filosofia do seu tempo.5

E, por sua vez, introduz em economia nacional a dúplice noção que tem de riqueza, no espaço e no tempo. Critica Adam Smith, antes do mais, por ter levado em consideração tão-somente a riqueza no sentido de bens materiais, enquanto ao lado destes existem outros inúmeros elementos im­portantes — de ordem intelectual, confessional, moral — os quais cons­tituem o capital espiritual de uma nação. E mais, ainda: além de incom­pleta no espaço, a noção de Adam Smith é falsa, uma vez que se aplica apenas ao presente, sem tomar em consideração o futuro.

Insiste, pois, Müller neste ponto, que aliás constitui um dos leitmo-tiv do "Sistema" de List: o Estado não deve tratar apenas da produção imediata de bens dotados de valor de troca, mas deve interessar-se tam­bém pela preservação e multiplicação dos bens pertencentes à coletividade, a fim de serem transmitidos às gerações futuras.

O "materialismo" de Smith tinha em vista apenas o interesse material e presente do indivíduo isolado. Mas o Estado deve enxergar muito além da transitória existência dos indivíduos. A perenidade das suas atribuições obriga-o a cuidar, não apenas do atual desenvolvimento do capital mate­rial e espiritual de que é depositário, mas também de sua futura expansão.

E, finalmente, como terceira contribuição de Müller, temos a noção de reciprocidade de influências exercidas pelos diversos elementos da so­ciedade. Os diferentes fatores da atividade nacional reagem uns sobre os outros. Ao Estado cabe, além de reforçar esses fatores, harmonizar o seu funcionamento, a fim de permitir o progresso contínuo da sociedade. To­das as teorias de Müller se impregnam da idéia de "fim social": a do va­lor, a da moeda, a da produção. "Se dizemos de uma coisa que é útil — escreve em seus 'Éléments' —, pretendemos indicar ter ela um valor em relação com a sociedade."

Dessas idéias, concernentes à estrutura econômica da nação, se de­preende uma concepção orgânica da sociedade, por ele contraposta à con­cepção mecânica da economia clássica.

Com a sua noção de Estado, "entidade distinta e superior", com a im­portância que atribui às características espirituais e permanentes das rique-

S. N u m e r o s o s são o s autores a l e m ã e s que apresentam pontos de contato com M Ü L L E R cuja obra mereceria um estudo e s p e c i a l na parte relat iva à formação da doutrina econô-

r r i c D S 1 0 M l ' C i t e m o s : Friedrich von H A R D E N - B E R G ( 1 7 7 2 - 1 8 0 1 ) ; Johann Josef von e m E S . ( '776-1848) ; G E N T Z , H A L L E R e F . von B A A D E R ( 1 7 6 5 - 1 8 4 1 ) . E s t e últ imo, ode S U p p . r i n c . l p a l 0 D r a econômica — Ueber das dermalige Missverstaendnis der Vermoengslosen o s

r "roletaier zu den vermoegensbesitzenden Klassen der Soztetaet (sobre a oposição entre -carnK° ? s e a s c lasses possuidoras da sociedade co ntemporânea), 1835 — c r i t i c a o l ivre-

m o i s m o internacional e a c o n c e p ç ã o m e c â n i c a de S M I T H sobre a d i v i s ã o do trabalho. 1926 ' B A A D E R l e r = Johannes S A U T E R : Die Sozialphilosophie von Baader's. M u n i q u e ,

Page 342: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

zas, com a sua noção orgânica da sociedade, está Müller 6 prenunciando List.

3. NA AMÉRICA DO NORTE: DANIEL RAYMOND

O norte-americano Daniel Raymond-, em sua obra "Thoughts on Po­litical Economy", publicada em 1830, critica também o cosmopolitismo da Escola Clássica e insiste na importância da idéia de nação.

Mostra haverem os mercantilistas confundido o interesse dos'merca­dores com o interesse nacional, não distinguindo assim a noção de rique­za pública da de riqueza privada. Os fisiocratas confundiram o interesse geral com o agrícola. Smith, por sua vez, confundiu indivíduo e nação e com isso empobreceu a noção de interesse público: decompondo-se a nação em uma soma de indivíduos, desprestigia-se, por se diluírem assim o seu valor e a sua força.

A Economia Política, "ciência das riquezas", contrapõe Raymond a Economia Política, "ciência da riqueza pública e nacional". E, tal como Müller, fez Raymond da nação uma entidade distinta, à qual se devem su­bordinar os indivíduos, consagrando as suas atividades à satisfação dos in­teresses nacionais.

Com o intuito de assegurar a prosperidade e a felicidade da nação — objetivo supremo —, insistiu Raymond no fato de se dever atribuir ao fa­tor político preponderância sobre o econômico. Este será também um dos traços característicos do sistema nacional de economia de List, o qual — dado o seu extremismo — vai de fato determinar a organização de uma nação autárquica, sob a forma restritiva de autarquia artificial.

Raymond, da mesma forma que Müller, contrapõe à noção smithiana de valor de troca a noção de interesses futuros da nação, cuja expansão deve ser assegurada pelos poderes públicos.

Mesmo fora da economia nacional, merece esta contribuição de Ray­mond especial destaque: a "consideração do futuro" integrou-se no pensa­mento econômico americano, ressurgindo na atualidade nas obras dos eco­nomistas institucionalistas.7

6. N ã o falta original idade às idéias de M Ü L L E R , relat ivamente à estrutura geral da vida econômica. Considera 4 fatores p r i n c i p a i s da p r o d u ç ã o : a terra, o trabalho, o c a p i t a l matéria, e u e s p . r a u a i .

A terra representa o fator p e r m a n e n t e ; o trabalho, a produtividade e o p r o g r e s s o ; o capital — no qual repousa o passado — reúne as c a r a c t e r í s t i c a s dos dois fatores anteriores, no sentido de, ora v i v i f i c a r a produção, ora e n t r a v a r a sua expansão.

E s t e s quatro elementos correspondem aos quatro fatores consti tut ivos da f a m í l i a : a j u v e n t u d e , ou seja, a esperança do futuro; a v, hice, ou o afrouxamento do i m p u l s o ; a viri l idade, ou a p r o d u ç ã o ; a feminil idade, ou a c o n s e r v a ç ã o , a permanência.

E s t a s quatro idéias fundamentais são t a m b é m os elementos consti tut ivos de E s t a d o n a c i o n a l : c ientistas , soldados, produtores e c o m e r c i a n t e s são os seus d e p o s i t á r i o s ; suas diferentes a t i v i d a d e s d e v e m , por contraste, consti tuir a harmonia do todo. E M Ü L L E R estabelece a n a l o g i a s : T e r r a (natureza) — mulher — princípio de c o n s e r v a ç ã o — nobreza terrena; T r a b a l h o (homem) — princípio de p r o d u ç ã o — b u r g u e s i a ; C a p i t a l M a t e r i a l (ju­ventude — Princípio da audácia — c o m e r c i a n t e s ; C a p i t a l espiritual ( v e l h i c e ) — princípio de experiência — cientistas e sacerdotes. A a ç ã o do E s t a d o se deve orientar no s e n t i d o de d e s e n v o l v e r harmoniosamente os diferentes e l e m e n t o s da população e coordená-los de modo a possibi l i tar o melhor funcionamento o r g â n i c o do " t o d o " .

7. Cf. infra p. 414 e segs.

Page 343: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Os pontos de contatos entre as idéias de Raymond e as de List são numerosos e incontestáveis.8 Divergem, todavia, em um ponto importante. Enquanto List é industrialista, inclina-se Raymond pela agricultura. Vê na terra a fonte da riqueza pública privada e no trabalho a sua causa: prin­cipalmente o trabalho agrícola. Sofreu aqui a influência das idéias dos fi­siocratas, particularmente as de Quesnay.

' Afora isso, a contribuição dada por Raymond à Economia Nacional oposição ao cosmopolitismo; noção de nação como centro da Econo­

mia Política; adesão ao protecionismo; concepção de preponderância do fator político sobre o econômico — é de molde a nos permitir classificá--lo como precursor de List e Carey.

Como precursor sul-americano da doutrina de Economia nacional te­mos o brasileiro José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu.5 Influenciado pelas idéias de Adam Smith, tanto quanto pela situação especial do desen­volvimento econômico do Brasil naquela época, esse economista realiza a síntese entre o liberalismo inglês e o nacionalismo mercantilista e, em suas obras particularmente no livro "Princípios de Economia Política", escrito em 1804, quase meio século antes do "Sistema Nacional" de List — , ex­põe já as idéias principais da doutrina de economia nacional.

O estudo minucioso das fontes doutrinárias da Economia Nacional ul­trapassaria os limites deste trabalho. Cingimo-nos, portanto, a indicar o essencial de cada uma delas. Adam Müller, fazendo-se intérprete das idéias da filosofia universalista, representa o essencial da contribuição alemã. Quanto à de origem americana, Raymond a caracteriza perfeitamente bem, o mesmo se dando com os mercantilistas, em relação à França. Podemos acrescentar ainda dois autores franceses dos primórdios dos séculos XIX, mencionados por List em mais de uma passagem: Chaptal que, em seu li­vro "De 1'Industrie Française" (1819), insiste na idéia de protecionismo aplicado às "indústrias nascentes", e o Barão Dupin, que no seu trabalho "Situation Progressive des Forces de la France", 1827, desenvolve, com a respectiva terminologia, a noção de "forças produtivas". Ambas essas idéias são retomadas por List em seu "Sistema".

8. L I S T não faz menção a R A Y M O N D . T o d a v i a , i m p o s s í v e l será admitir-se t ivesse ignorado suas obras. O mais certo é que delas tenha tido conhecimento, direta ou indi­retamente, sobretudo durante sua estada nos E s t a d o s U n i d o s . P a r e c e - n c s , pois, fora de dúvida, haver L I S T sofrido a influência das idéias de R A Y M O N D . Cf. neste s e n t i d o : R A M B A U D : Historie des Doctrines Économiques; H I R S T : Life of List, Londres, 1909; Curt K O H L E R : Problematisches zu F. List. L e i p z i g . 1909; C. P. N E I L L : Daniel Raymond, an early chapter in the history of economic theory in the United States (J. H O P K I N G S U n i v e r s . Studies), julho, 1897.

Por sua v e z inúmeras foram as inf luências doutrinárias que se exerceram sobre R A Y ­M O N D no campo de estudos que nos interessa. A de A l e x a n d r e H A M I L T O N (1757-1804), por e x e m p l o , é claramente p e r c e p t í v e l . H A M I L T O N , em seu The Continen'alis*. l72í,

. , c o m o no Report on manufactures, 1791, põe em primeiro plano, em economia pol í t ica, a idéia de n a ç ã o ; dando ênfase à preponderância do fator pol í t ico, tira conclusões favorá­veis ao e s t a b e l e c i m e n t o de um protencionismo comercial .

A c o n c e p ç ã o de uma economia industrial ista dr H A M I L T O N , está m u i t o próxima à de L I S T . N e s t e ponto R A Y M O N D dele se afasta, conforme a c a b a m o s de dizer. Ler sobre H A M I L T O N : A. H. V A N D E R B E R G , The Greatest American, Alexandre Hamilton, N o v a Ior­que, 1921.

9. Sobre esse ponto e x i s t e : Originalidade do Liberalismo Econômico Brasileiro, de autoria de Z e n i t h M E N D E S DA S I L V E I R A , in o Estado de São Paulo, 8 de Julho de ' P 5 0 - Cf. t a m b é m meu estudo sobre C A I R U in As Ciências no Brasil (vol . I I , cap. 6:

E c o n o m i a P o l í t i c a no B r a s i l " ) . São P a u l o . 1956.

Page 344: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

§ 2.° — A INFLUÊNCIA DOS FATOS

Não foi, todavia, apenas em conseqüência dessa influência doutrinária que pôde a escola de Economia Nacional chegar a atingir a forma que lhe imprimiu List. Para isso concorreram também os fatos então desenro­lados nos Estados Unidos e na Alemanha.

Os Estados Unidos fizeram sua aparição no mundo econômico no iní­cio do século XIX, quando outros países, a Inglaterra e a França princi­palmente, já se lhes haviam antecipado. Esse atraso colocara a América do Norte em situação de inferioridade industrial. O concurso do tempo é sempre indispensável para que uma indústria recém-equipada possa produ­zir a preço de custo comparável ao de países de há muito industrializados. Durante esse período de adaptação impõe-se a proteção contra a concor­rência estrangeira.

Esse, o espetáculo que impressionou vivamente List à sua chegada na América do Norte em 1825. O principal problema econômico era, então, nos Estados UtvMÍOs, o das "tarifas". A política comercial orientava-se aí de acordo, naturalmente, com as preocupações nacionalistas.

Lutando contra a supremacia industrial da Europa — e particular­mente da Inglaterra —, punha-se em prática, na América do Norte, a po­lítica do "self-preservation".

Estes fatos são para List tanto mais instrutivos quanto a Alemanha estava, àquele tempo, nas mesmas condições: sendo também recente o seu desenvolvimento industrial, estava o seu progresso ameaçado pela concor­rência estrangeira, da Inglaterra em primeiro lugar.

As condições econômicas e políticas da Alemanha no início do século XIX, eram, com efeito, muito especiais. Não lograra ainda o país consti­tuir uma unidade política e muito menos, portanto, econômica. O Con­gresso de Viena, realizado em 1815, dera em resultado a formação de uma confederação alemã formada por 38 Estados independentes, cada um deles com as suas barreiras alfandegárias particulares. Só na Prússia, por exem­plo, existiam sessenta e sete tarifas interiores diferentes... E, não raro, os direitos aduaneiros aplicáveis eram muito elevados para as mercadorias provenientes de outros Estados da confederação do que para as importa­das ou de procedência estrangeira. Em suas linhas gerais, a situação da Alemanha era, então, muito semelhante à da França do século XVII. Cer­tas soluções preconizadas por List eram idênticas às adotadas pelos mer­cantilistas franceses com o objetivo de constituir a unidade nacional. Mais uma vez surge aqui a influência exercida pelos fatos sobre as doutrinas.

A Alemanha, retalhada por tarifas internas e quase inteiramente inde­fesa do ponto de vista aduaneiro em relação ao exterior, estava em uma situação tanto mais perigosa quanto sério era o esforço desenvolvido pelos industriais ingleses — uma vez suspenso o bloqueio continental — no sen­tido de reconquistar os mercados europeus. A incipiente indústria alemã

344 sente-se, assim, ameaçada na sua expansão.

Page 345: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A fim de obviar este perigo, duas medidas se impõem: a liberdade de trocas no interior da Alemanha e o protecionismo em relação ao estrangei­ro- A primeira medida fora tomada pela Prússia, que, a partir de 1819, abolira as barreiras alfandegárias existentes entre seus Estados e adotara, em relação aos demais Estados da Alemanha, uma política comercial ins­pirada em um livre-cambismo moderado. Nesse mesmo ano, a exemplo da Prússia, os industriais do centro e do sul da Alemanha apresentaram uma petição, regida por List, pleiteando a abolição de todas as alfândegas inter­nas. A despeito da oposição de Metternich, realizou-se a união alfandegá­ria em 1833. Esta "Zollverein", precursora da constituição do Reich, re­presenta o primeiro estágio da evolução no sentido da unidade nacional dos povos de raça germânica, com exclusão da Áustria.

Quanto ao protecionismo em face do estrangeiro, foi sendo — embo­ra tardiamente — adotado aos. poucos, ante a pressão da necessidade de desenvolvimento econômico. Adam Müller, von Jacob e outros autores ale­mães esposaram a idéia: List não podia deixar de tornar-se seu apóstolo. O seu "Sistema Nacional de Economia Política" surgira, em 1841, como o manifesto dessa política protecionista e a expressão — sob forma mais sistematizada e científica — da doutrina de Economia Nacional.

Seção II

0 SISTEMA DE ECONOMIA NACIONAL DE LIST

Com Frederico List reveste-se a economia nacional da sua forma dou­trinária mais completa. A. Marchai, mui judiciosamente, escreveu que List "eclipsou a maioria de seus predecessores e mesmo sucessores, represen­tando na economia nacional o papel que KarI Marx assumiu no desenvol­vimento das doutrinas socialistas".1 0

Lis t 1 1 fez uma dúplice crítica às doutrinas anteriores, sobretudo à Es­cola Clássica. "São sistemas — escreve ele — em desacordo com a na­tureza das coisas e da História."

10. O p . cit., pág. 154. 1 1 . É interessante conhecer a v i d a de L I S T , pelo menos em seus a s p e c t o s principais,

a fim de melhor serem compreendidas suas idéias. L I S T nasceu em 1789, na cidade de R e u t i i n g e n , em W u r t e m b e r g u e . I n g r e s s o u muito

j o v e m ainda na administração p ú b l i c a : em 1817, W a n g e n h e i m , ministro de W u r t e m b e r g u e , ao criar uma F a c u l d a d e de C i ê n c i a s em T u b i n g e n , Chamou L Í S T para reger a cadeira de E c o n o m i a P o l í t i c a . Fundou, nessa época, o jornal l iberal intitulado " A m i g o do P o v o Suábio". Em 1819 a queda do ministério arrastou L . I S T à mesma sorte de seu p r o t e t o r ; renunciou a sua cétedra, sendo o seu jornal fechado.

Posteriormente, em 1820, eleito d e p u t a d o à C â m a r a de W u r t e m b e r g u e , deu início a uma v i o l e n t a campanha contra as falhas da administração. O l ibelo que, neste sentido, assinou, v a l e u - l h e uma condenação a dez anos de prisão. F u g i u então da A l e m a n h a para o n d e v o l t o u em 1824, contando com a c l e m ê n c i a do rei de W u r t e m b e r g u e . N o v a m e n t e preso, 'oi posto em liberdade sob a c o n d i ç ã o de, exi lado, seguir para A m é r i c a do Norte. Aí v iveu de 1825 a 1832. F i x o u - s e em P e n s i l v â n i a . O êxito que não a l c a n ç o u na exploração

f u r n a fazenda situada nas p r o x i m i d a d e s de Harrisbourg logrou obter na direção do jornal alemão N azional Zeitung. D e u então a forma de um panfleto intitulado Outlines ol Ame-rican Political Economy. A maioria das idéias, mais tarde d e s e n v o l v i d a s na principal obra de L I S T , o seu Sistema Nacional de Economia Política, publ icado em 1841. já se encontra e " p r e s s a nessas cartas.

Page 346: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Em contraposição à doutrina clássica — predominantemente abstrata e estática — pretende List elaborar uma nova doutrina realista e dinâmica. Insurge-se, assim, em primeiro lugar, contra a concepção clássica de har­monia de interesses (contrária à natureza das coisas) e, em segundo, con­tra a estática clássica (contrária à História).

Estudada em função dessa atitude de dupla oposição, a doutrina de economia nacional de List apresenta características que lhe são peculiares.

§ 1.° — A oposição à harmonia de interesses

1. ECONOMIA NACIONAL E ECONOMIA COSMOPOLITA

"O traço característico do sistema por mim exposto — escreveu List no prefácio do seu "Sistema Nacional de Economia Política" — é a na­cionalidade. Todo o meu edifício está construído com base na idéia de nação como intermediária entre o indivíduo e o gênero humano." Encon­tramos, assim, de novo, a idéia de nação posta em primeira plana, no sis­tema econômico. É a noção mercantil, retomada, conforme vimos, por

Posteriormente enriqueceu-se L I S T em felizes e s p e c u l a ç õ e s : comprou uma mina de antra-cita, que descobrira. G r a ç a s a essa sua a t i v i d a d e duas novas cidades s u r g i r a m : T a m a q u e e Port- Gl inton. Interessou-se de modo particular pelo d e s e n v o l v i m e n t o das vias férreas de P e n s i l v â n i a . Colaborando, então, na Gazett d'Augsburg, da A l e m a n h a , c o m e ç o u a fazer propaganda no sentido de se l e v a r e m a efeito, em sua pátria, obras p ú b l i c a s desse gênero. O presidente norte-americano J A C K S O N incumbiu-o de uma missão em P a r i s , sendo pos­teriormente — em 1872 — nomeado cônsul americano em L e i p z i g . T o d a a sua at ividade se d e s e n v o l v e u , então, com o objet ivo de fazer com que a A l e m a n h a adotasse t a m b é m os novos meios ferroviários de c o m u n i c a ç ã o . Em meio à indiferença geral , não se cansou, até ao fim de sua v i d a , de insistir sempre nas v a n t a g e n s econômicas da p o l í t i c a ferroviária. E x p ô s as suas idéias, nãc só em numerosas conferências, mas também no Jornal das Vias Férreas, por ele fundado.

A U n i ã o A l f a n d e g á r i a — m o v i m e n t o do qual fora um dos protagonistas em 1819 — tornou--se uma realidade em 1833: para a o b t e n ç ã o desse resultado não tornou alheios seu ardor e seu entusiasmo.

U m a crise f inanceira, irrompida na A m é r i c a , arruinou-o repentinamente. P a s s o u então a v i ­ver da sua pena. A despeito de seu precário estado de saúde, gastou uns restos de energia real izando numerosas v i a g e n s pela E u r c p a . A últ ima delas foi feita à Inglaterra, onde fora defender a idéia de uma al iança comercial com o seu país. O m a l o g r o dessa t e n t a t i v a , o desânimo que o invadiu pela incompreensão que o c e r c a v a , quer no seu país, quer no estrangeiro, o a g r a v a m e n t o de seu estado de saúde, tudo o arrastou ao suicídio. Frederico L I S T pôs t e r m o à v i d a , com um tiro de pistola, aos 30 de novembro de 1846, nas imedia­ções de Kufstein, no T i r o l .

As p r i n c i p a i s obras de L I S T s ã o : Outlines of a new System of Political Economy (Cartas a Ingersoll), F i l a d é l f i a , 1827; Ueber eine saechsinchés Einsenbanksys'eme ais Grun-dlage eines allgemmeinen deutschen Eisenbanksystems (Sobre a bacia ferroviária a construir no Saxe), L e i p z i g , 1833; Mémoires soumis au concurs de Vlnstitut de France, 1838. ( N e s s a Memória se encontram as principais idéias contidas na obra de 1827; é iá o essencial da tese que está d e s e n v o l v i d a em 1841) ; De limportance d'une industrie manufacturière natio-nale, 1839; Das nationale System der politischen Oekonomie, S t u t t g a r t e T u b i n g e n , 1841. E d i ç õ e s : francesa em ] 851: inglesa em 1885: norte-americana em 1856 e 1904; castelhana em 1942 ( M é x i c o ) . As obras c o m p l e t a s de L I S T foram publ icadas em três v o l u m e s , em S t u t t g a r t , em 1850.

Sobre L I S T : Biografias: G O L D S C H M I D T , B e r l i m , 1878; T E N T S C H . B e r l i m , 1901: H O E L T R E L . Ber­

lim, 1910; M. E. H I R S T . Life of List, N o v a lornue, 1909. Há uma interessante biografia de L I S T por M a n u e l Sánchez S A R T O , no prefácio de uma recente tradução castelhana do Sistema ( F o n d o de Cultura E c o n ô m i c a , M é x i c o , 1942).

V i d a c O b r a : B O U V I E R - A J A M : F . List, P a r i s , 1938; F. L E N Z : F . List, M u n i q u e , 1936; Kurt K O H L E R : op. cit,, L e i p z i g , 1909; T h . E H E B E R G : List, in Handwoerterbuch der Staatswissenschaftcn de C O N R A D , vol. V I . 4. a edição, 19^5; E. L A D E N T H E I N : Zur Entwicklug der nationaloekonomiscber Ausichten Fr, List (Sobre, o d e s e n v o l v i m e n t o das concepções de E c o n o m i a N a c i o n a l de L i s t ) , V i e n a , 1 9 1 2 ; R O S C H E R : Gesb, der Noí, Oek. in Deutsch. ( H i s t ó r i a da E c o n o m i a N a c i o n a l da A l e m a n h a ) , 1870

Page 347: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Müller e Raymond; a idéia que estava "no ar" na Alemanha dos primór­dios do século passado e da qual se encontra a expressão tanto em Fichte, Hegel, Schleiermacher, quanto no vurtemburguês Schelling.

Conforme muito bem escreveram Gide e Rist, 1 2 "bastava ser alemão e escrever^ no século XIX, para estar embriagado, até à medula da idéia de nacionalidade".

Os clássicos — pensava List —, com as suas abstrações, simplificaram demasiado os problemas econômicos e, sobretudo, os relativos ao comér­cio internacional. Partindo do pressuposto da existência da união univer­sal dos povos e da paz perpétua — dados ideais —, elaboraram uma dou­trina cosmopolita, exata, talvez, para o futuro, porém que, de forma al­guma, correspondia à realidade daquele momento.

A Escola Clássica não percebera senão uma das faces do problema. A Sociedade deve, entretanto, ser encarada de dois pontos de vista, a sa­ber: o cosmopolita, que abrange todo o gênero humano, e o político, que diz respeito ao interesse da nação. 1 3

List não rejeita, pois, de todo a doutrina clássica cosmopolita. Jul-gando-a, todavia, unilateral, acha que deve ser completada mediante a construção de uma "economia pública", que será a verdadeira economia política. Constituem elas, segundo List, duas doutrinas absolutamente dis­tintas e estão fadadas a evoluir isoladamente.

Esta distribuição leva List a contrapor-se à noção de "valor de troca" e de "forças produtivas", noções essas correspondentes à idéia de riqueza, respectivamente, em economia cosmopolita e em economia nacional. Tra­ta-se de uma distinção essencial na doutrina do sistema nacional de eco­nomia. Precisemo-la, pois.

2. "FORÇAS PRODUTIVAS" E "VALOR DE TROCA"

A noção de riqueza corresponde, para o indivíduo, à noção de valo­res disponíveis em moeda, sem levar, todavia, em consideração a natureza das necessidades, cuja satisfação esta riqueza lhe possibilitará. Assim tam­bém não considera a soma dos bens reais representativos dessa riqueza, uma vez que não estabelece umá relação necessária entre o acréscimo da soma de bens e o aumento proporcional do respectivo valor de troca.

12. O b . cit. , pág.346. 13. Em princípio pretende L I S T , expressamente, completar a economia cosmopoli ta com

0 seu sistema nacional de economia. M a s , de fato. em sua obra, o que fez foi estabelecer 0 . contraste entre ambos. T o d a v i a , a idéia segundo a qual dist ingue L I S T essas econo­mias entre si é uma das mais j u s t a s e fecundas. Os sucessores de L I S T — sobretudo B R O -* - A R D — retomaram essa idéia e, apoiados nos progressos da ciência econômica ~ioderna, tentaram concil iar o princípio do s i s t e m a nacional de economia com os da E c o n o m i a Política. Von W I E S E R aprofunda t a m b é m esta idéia em sua última obra. Theorie der gasellschaltlichen Wirtchatt, 2." ed., 1924. D i s t i n g u e , s u c e s s i v a m e n t e , quatro tipos dV e c o n o m i a : a economia i s o l a d a ; ' s economia de t r o c a s ; a economia nacional e a internacional, e, no quadro de cada um desses t ipos, estuda os principais a s p e c t o s da teoria econômica.

Page 348: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Ora, os clássicos raciocinaram como se a riqueza de uma nação fosse idêntica à soma das riquezas dos indivíduos que a compõem. E esta é uma noção falsa e perigosa.

Sem dúvida existe, para a nação, a riqueza "valor de troca", repre­sentada pelas suas relações comerciais com os demais países. Mas, excluí­do o setor das trocas externas — constituído pelas importações e exporta­ções de dado país —, toda a atividade interna da nação implica uma noção mais ampla de riqueza que a representada pelo "valor de troca".

Enquanto para o indivíduo, tomado isoladamente, a idéia de riqueza independe da soma de bens constitutivos do seu acervo e da natureza das necessidades às quais vai satisfazer, em relação à nação, não há, ao con­trário, possibilidade de se separarem essas duas nações.

O elemento quantitativo, representado pelo acervo de bens, deve ser tomado em consideração. De fato, se para determinado produtor de mer­cadoria indispensável ao consumo geral, a redução da produção dessa mer­cadoria pode ser mais que compensada pela elevação dos preços, em rela­ção à nação esta compensação já não se verifica, uma vez que tal redução representa uma perda absoluta, um empobrecimento certo. E assim tam­bém, do ponto de vista qualitativo, esses bens e a natureza das necessida­des por eles satisfeitas são de grande importância para o Estado: não existi­ria riqueza para uma nação onde a atividade da população se concentrasse, toda ela, em indústrias prejudiciais à saúde física e moral dos seus habi­tantes.

E, portanto, se o "valor de troca" serve de critério aferidor da rique­za individual, em relação à riqueza nacional ter-se-á de adotar para tal fim o "valor de uso".

Mas não é só. O "valor de troca", expressão de uma riqueza atual, é sem dúvida a mola propulsora da produção a que se entregam os indi­víduos, visando a objetivo imediato. Ora, a nação subsiste à transitorieda-de dos indivíduos que a compõem. Deve, pois, enxergar "mais longe" que cada um deles, cuidando, não apenas da obtenção da riqueza em si e por si, mas, sobretudo, da sua criação, em função das futuras possibilidades de expansão. Ou melhor: a nação não deve apenas preocupar-se com o enri­quecer, mas, sim, também com o viver e progredir. Não deve, por conse­guinte, apegar-se tão-somente à idéia de riqueza em si, mas, sim, e sobre­tudo, procurar desenvolver a capacidade de criar riqueza.

A noção de riqueza sofre, pois, uma transformação ao passar do pla­no individual para o nacional, do plano presente para o futuro: não será mais expressa em termos de "valores de troca" mas, sim, de "forças pro­dutivas".

Este ponto de -'ista do sistema nacional constitui, sem dúvida, uma contribuição que enriquece a Economia Política, concorrendo para o es-

348 clarecimento de duas noções complexas, a de riqueza e a de capital.

Page 349: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O objetivo, pois, do sistema de economia nacional será o pleno de­senvolvimento das forças produtivas do país; idéia esboçada apenas nas obras dos predecessores de List, constituirá o ponto central de seu sistema.

Define List o que entende por forças produtivas como sendo: o con­junto das leis do Estado; seu poder político; a manutenção da segurança nacional e da ordem pública; o conjunto das instituições públicas, das for­ças morais, religiosas e intelectuais; a cooperação harmoniosa entre a in­dústria, a agricultura e o comércio.

E, acima de tudo, insiste List no desenvolvimento de uma indústria diversificada, ativa e florescente,14 principal força produtiva, de cuja exis­tência depende a vida de todas as demais forças. Toda a ênfase do seu sistema recai sobre este ponto: o valor econômico e social da indústria. Possibilitando esta a multiplicação das utilidades e, por conseguinte, da ri­queza, concorre também para o progresso intelectual e geral da nação. Nos países essencialmente agrícolas, inexplorada fica uma importante fra­ção das forças produtivas que, assim, não se desenvolverão: um povo agrí­cola manter-se-á sempre em uma condição inferior relativamente aos povos industrializados, do ponto de vista de riquezas materiais e espirituais.15

Esta mesma idéia foi bem expressa pelo grande brasileiro Rui Barbo­sa, nos seguintes termos: "O desenvolvimento da indústria não constitui tão-somente uma questão econômica para a nação; é antes de tudo uma questão política."

O Estado, levando em conta o interesse especial da industrialização do país, deve preocupar-se com o expandir das suas forças produtivas. E de acordo com este objetivo orientará a sua política.

Não se trata, aliás, de uma política unilateral e imutável, tal como a preconizada pela escola clássica, mas de uma política flexível, adaptável às circunstâncias peculiares a cada país e a cada época.

E List, com a sua teoria das forças produtivas, tendo posto a econo­mia "de acordo com os jatos", rejeitará, em seguida, a concepção clássica estática, para substituí-la por uma concepção dinâmica e evolutiva e reali­zar o "acordo com a História".

§ 2.° — Oposição à estática da Escola Clássica

Assumindo uma atitude de oposição à estática econômica da Escola Clássica, constrói List a parte dinâmica do seu "Sistema". Introduz, por

14. " A s manufaturas e as fábricas são as progenitoras e a progênie da l iberdade dos cidadãos, do progresso do conhecimento, das artes e das c i ê n c i a s , do comércio exterior e interior, da n a v e g a ç ã o e do poder p o l í t i c o . " (Sistema N a c i o n a l de E c o n o m i a P o l í t i c a ) .

1 5 . As causas de inferioridade da agricultura, no plano das trocas internacionais, são evidentes. A produção agrícola depende de contingências naturais i m p r e v i s í v e i s . É uma produção na qual não há p ro b a b i l id a d e de expansão indefinida da m e c a n i z a ç ã o e, por isso, nao se ^ beneficia ela, tanto quanto a indústria, das invenções e dos progressos técnicos da economia capital ista. Em virtude p r i n c i p a l m e n t e desta circunstância, a produtividade do capital é menor na agricultura do que na indústria. Sendo a produção agrícola aleatória e de c ic lo naturalmente longo, o juro do dinheiro nela empregado é muito elevado. A d e m a i s ,

a c o n s e r v a ç ã o dos produtos a g r í c o l a s , além de dispendiosa, nem sempre é p o s s í v e l . T r a t a n - o y i o oo-se, na maioria dos casos, de produtos pesados, o seu transporte é caro. o 4 J i

Page 350: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

esta forma, na doutrina nacional de economia, a noção de "nação nor­mal" e indica também a política econômica a adotar, tendo em vista a consecução desse objetivo.

1 . A TEORIA DAS SÉRIES DE EVOLUÇÃO ECONÔMICA

Ao se reportar List à História — e ao fazê-lo representa o papel de precursor da escola histórica alemã —, mostra que os países passam por estádios diferentes e sucessivos de evolução econômica.16 Uma -comuni­dade primitiva vai passando sucessivamente do estádio selvagem ao pasto­ril; deste ao estádio agrícola: E do estádio agrícola simples passa a nação ao estádio agrícola-manufatureiro, para alcançar, afinal, o estádio agríco-la-manufatureiro-comercial. Esta evolução, processando-se a partir do es­tádio primitivo, teva ao último estádio, que List denomina "nação normal".

Os governantes, "esses gerentes de Deus na Terra", conforme os cha­ma Raymond, devem favorecer esta evolução e apresentar o desenvolvi­mento das forças produtivas até à formação da "nação normal".

A política a adotar, tendo em vista a consecução deste objetivo, va­riará de acordo com os diferentes estádios de desenvolvimento: "A Histó­ria nos ensina — escreve List — que os povos dotados dos meios necessá­rios para atingir o mais alto grau de evolução, riqueza e poderio, podem e devem, sem se opôr, em contradição consigo mesmos, mudar de sistema na medida do seu progresso."

Enquanto permanecer a nação no estádio agrícola, a regra a seguir é o livre-câmbio. Economicamente é a melhor solução, pois permite a ex­portação do excedente da produção agrícola, em troca da importação de objetivos manufaturados das nações mais adiantadas. E assim também do ponto de vista intelectual: mantendo relações comerciais com os povos es­trangeiros, aumenta a nação seu patrimônio cultural e cultiva um espírito suficientemente evoluído para fazer face à nova forma de atividade que dentro em pouco se lhe vai impor.

Atuigindo a agricultura aquele ponto de evolução máxima, a partir do qual começa a declinar, em razão do extremo parcelamento das pro­priedades agrícolas e do aumento do número de habitantes, terá atingido a nação o momento natural de optar pela criação, no país, de uma indús­tria manufatureira. Pretender -fazê-lo antes disso será prematuro, pois, lon­ge de concorrer, assim, para alcançar o estádio de nação normal, iria re­tardar o advento desse estádio.1 7

16. C o n v é m indicar que a lei de e v o l u ç ã o , observada por L I S T , comporta uma impor­tante, e x c e ç ã o . Se é fato que todos os países, diz L I S T , podem evoluir até atingir o estádio agrícola, apenas os países da zona temperada têm a possibil idade de prosseguir na sua e v o l u ç ã o até a l c a n ç a r os estádios superiores. Os países da zona tórrida estão circunscritos a explorar o monopólio de certos produtos a g í c o l a s . E n t r e estes dois grupos a d i v i s ã o inter­nacional do trabalho encontra naturalmente o seu lugar.

17. L I S T insiste sobre a importância do esforço a ser d e s e n v o l v i d o por uma nação, com o fito de passar do estádio agrícola ao estádio agrícola-industrial . T o d o s os meios d e v e m ser u t i l i z a d o s para a consecução desse objetivo. L I S T não recua sequer ante a g u e r r a : " U m a guerra que facil i te a p a s s a g e m do regime agrícola para o manufatureiro é uma b ê n ç ã o para o p a í s " .

Page 351: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

2. POLÍTICA PROTECIONISTA

Tendo em vista a criação e, sobretudo, o desenvolvimento de novas indústrias, o livre-cambismo deverá ser substituído por uma política prote­cionista.

a) Características do protecionismo de List: Segundo List, o protecionismo deverá apresentar duas características

principais: limitar-se à indústria e ser provisório. O protecionismo deve visar à defesa da indústria e não à da agricul­

tura. E isso, por um lado, em virtude de acarretar a proteção da produ­ção agrícola a elevação do custo de vida e, por conseguinte, dos salários, o que dificultaria a criação das manufaturas. E, por outro, em razão de ficar a agricultura protegida de modo mais eficaz através da proteção dis­pensada à indústria: com o desenvolvimento das manufaturas criar-se-á uma saída natural para a produção agrícola, ou seja, de gêneros alimentí­cios e de matéria-prima. List desenvolve, neste ponto, a idéia interessante e, aliás, exata, da solidariedade dos diferentes setores da produção, princi­palmente do industrial e do agrícola. Discorda, assim, de Ricardo, para quem a agricultura e a indústria representavam interesses opostos. Esta prosperidade, decorrente do desenvolvimento das diferentes forças produti­vas e econômicas de um país, leva List a rejeitar também a lei de Malthus, segundo a qual cada fase da evolução teria determinada "capacidade popu­lacional". Afastou, assim, List todo o temor de uma superprodução relati­va, uma vez que para ele será indefinido o progresso da indústria, combi­nado com o da agricultura.

A concepção desenvolvida por List é, pois, de uma economia orgâ­nica, em contraposição k economia mecânica dos clássicos. Aliás, essas mesmas idéias já tinham sido expressas por von Thuenen 18 e Müller, an­teriormente a List. E, depois dele, serão retomadas com vigor por seus sucessores, Carey em particular.

A agricultura não tem, pois, necessidade de uma proteção especial; basta que a indústria se possa desenvolver. E para tanto impõe-se o pro­tecionismo. Esta medida acarretará, sem dúvida, a elevação dos preços dos bens da manufatura nacional, impondo aos consumidores, individual­mente, um sacrifício; mas o que o país perde em riqueza-valor de troca recuperará fartamente, no futuro, em riqueza-força produtiva.

Esse déficit temporário representa para a nação, o mesmo que, para o indivíduo, a aprendizagem industrial.1 9

18. Johann H e i n r i c h von T H U E N E N (1773-1850). Sua obra p r i n c i p a l : Der isolierte ^taaí in Beziehung auí Landwir'schait und Nationaloekonomie, 1826. Ler sobre T h u e n e n : Spann, ob. cit., p. 1 7 2 ; S. S C H U M A C H E R : Thuenen, ein Forscherleben, Rostock, 1883.

Em 1884, por ocasião da introdução, no Brasi l das primeiras leis de proteção alfandegária, encontra-se a mesma idéia expressa p e l o ministro A l v e s B R A N C O : " A indústria manufatureira nacional constitui, em todos os povos, o primeiro, mais seguro e abundante escoadouro da sua a g r i c u l t u r a ; e a agricultura nacional constitui, em todos os povos, o primeiro, mais seguro e abundante escoadouro da sua indústria."

19. L I S T refuta o argumento c l á s s i c o de que uma n a ç ã o teria v a n t a g e m em comprar °s produtos onde o seu preço fosse mais baixo. O l i v r e - c a m b i s m o assegurará, sem dúvida.

Page 352: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O protecionismo deve ser instituído a título provisório. Desde o iní­cio de sua aplicação deve o Estado levar em conta esta característica, de modo a não o transformar em protecionismo abusivo: de preferência à proibição deve simplesmente fixar os direitos alfandegários a uma taxa jus­ta e suficiente para que os produtos manufaturados, de procedência estran­geira, não impeçam o desenvolvimento da indústria nacional de produtos congêneres.

Fossem excessivamente elevados tais direitos, produziriam resultado oposto ao visado: em lugar de fomentar o desenvolvimento industrial, da­riam aos empregadores nacionais uma impressão de segurança que iria re­duzir o esforço a desenvolver ou afrouxar o seu ritmo.

Trata-se, pois, de estabelecer para as indústrias nascentes um protecio­nismo educativo. Aliás, foi o que Colbert pôs em prática, na França, no século XVII.

E quando essas indústrias estivessem desenvolvidas a ponto de nada terem a temer da concorrência internacional, quando pudessem "florescer as fábricas, as empresas de pesca, de navegação e o comércio exterior" e quando, em outros termos, se tivesse atingido o estádio de "nação normal", desaparecia o protecionismo, dando, de novo e pouco a pouco, lugar ao livre-câmbio.2 0

O comércio livre e a livre concorrência tornar-se-ão, então, a regra definitiva das trocas desse país com o estrangeiro. Daí por diante, sem risco para a nação normal, "preservação da indolência os seus agricultores, manufatureiros, comerciantes, mantendo-os ativos a fim de conservar a su­premacia adquirida".

Esta evolução das economias, no sentido do estádio de nação normal, é considerada por List como a mais universal das leis dinâmicas que a História e a observação jamais registraram. O estudo do passado possibi­litou a sua formulação; o exame do presente a confirma.

E List observa que, em sua época, se encontram no estádio agrícola, principalmente, a Espanha, Portugal, Itália, Turquia, Rússia etc. No está-

o preço m a i s vantajoso, mas i m p o s s i b i l i t a r á à nação a sua p a s s a g e m do estádio agrícola para o estádio agrícola-industrial . É preciso, pois, rejeitá-lo, quaisquer que sejam as suas v a n t a g e n s presentes. E s s e pensamento de L I S T v e m expresso de maneira muito clara na p a s s a g e m s e g u i n t e : " S e a I n g l a t e r r a se empenhasse, neste momento, em satisfazer as ne­c e s s i d a d e s que a A l e m a n h a tem de objetos manufaturados e sem fazê- la por isso pagar direitos, quer dizer g r a t u i t a m e n t e ou por nada, não seria de se aconselhar aceitasse a' A l e m a n h a tal presente. Se os ingleses, g r a ç a s às novas i n v e n ç õ e s , t i v e s s e m um meio de fabricar o pano 4 0 % mais barato que os alemães (apegados estes a antigos processos) e m e s m o que estes novos métodos não lhes conferissem senão poucos anos de dianteira em r e l a ç ã o aos alemães, a menos que se e s t a b e l e c e s s e imediatamente uma tarifa protetora, pereceria o ramo mais antigo e m a i s importante da indústria a l e m ã ; e isto eqüivaleria a se amputar um membro à nação alemã. E x i s t i r á um homem que se console com a perda de um b r a ç o , se lhe assegurarmos ser p o s s í v e l comprar as suas c a m i s a s 4 0 % mais b a r a t o ? " ( D a s Nationale Systeme, p. 218-219).

20. A p a s s a g e m do protecionismo ao l i v r e - c â m b i o é apresentada por L I S T como me­dida m u i t o fácil de ser posta em prática. M a s , na realidade, isto é d u v i d o s o . O estabe­l e c i m e n t o do l i v r e - c â m b i o acarretaria a ruína das indústrias "pouco rendosas", cuia criação, d e s e n v o l v i m e n t o e prosperidade se tornaram p o s s í v e i s g r a ç a s ao protecionismo. Importantes somas de c a p i t a i s teriam sido i m o b i l i z a d a s nessas " indústrias a r t i f i c i a i s " : pssim, pois. o interesse pr i v ado dos industriais será, por certo, mais forte que os conselhos de economia p o l í t i c a , cuja missão, segundo L I S T , "é encaminhar a nação para o estádio de nação normal •

Page 353: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

dio agrícola-manufatureiro, a América do Norte e a Alemanha. A Fran­ça alcançara o estádio agrícola-manufatureiro-comercial, estádio de há mui­to atingido pela Inglaterra.

Lógico, pois, era — concluiu List — que a Grã-Bretanha, nação nor­mal, houvesse adotado uma política livre-cambista e não menos lógico que a América do Norte aplicasse uma política protecionista. Indispensável seria, pois, à Alemanha adotar também esta última política, a qual lhe era imposta pelo estádio de evolução em que se encontrava. E isso por ser ob­jetivo do "Sistema" de List indicar a seu país a política comercial a se­guir.

Já dissemos que a situação econômica e política da Alemanha fora objeto constante das preocupações de List e, assim, pois, em função de uma situação concreta, peculiar a um país e a uma época, edificou List um "Sistema" para justificar uma política. A parte científica do "Sistema" consiste nessa evolução por estádios sucessivos — a teoria das séries de evolução econômica —, apoiada nos dados fornecidos pela História. E a parte política é representada pela busca de meios a serem empregados pelo Estado, tendo em vista facilitar esta evolução no sentido do estádio per­feito de nação normal.

b) Os perigos do protecionismo de List: A parte política do "Sistema" de List é tratada, não em função da

situação geral de todas as nações, mas da situação particular de seu país. E, além disso, dada a sua tendência no sentido de desenvolver preponde­rantemente esta parte, prejudicou com isso a solidez e a objetividade do seu "Sistema".

A noção da "nação normal", para ser científica, teria de ser relativa, ou seja, implicar a idéia de que um povo, ao buscar desenvolver as suas forças produtivas ac máximo, deveria levar em conta os recursos naturais e humanos existentes em seu território.2 1 E uma vez desenvolvida a na­ção a este ponto, deverá ela recorrer à economia internacional, suprindo-se no mercado estrangeiro dos bens que não produz e trocando o excedente do que dispõe em abundância ou produz com facilidade.

Mas se, ao contrário — de relativa que deveria ser —, envolver essa noção um conceito absoluto, transforma-se em uma arma perigosa para a paz e prosperidade do mundo.

De fato, não se tratará mais do desenvolvimento econômico das for­ças produtivas naturalmente existentes, mas, sim, da constituição de uma nação normal à custa da incorporação de territórios, onde quer que seja possível a sua conquista, a fim de, por este meio, bastar-se a si mesma do ponto de vista econômico ou, ainda, impor-se política e economicamente aos outros povos.

2 1 . O essencial dessas idéias está perfeitamente expresso pelo Dr. Afonso de T o l e d o B A N D E I R A DE M E L L O , em seu interessante t r a b a l h o : Política Comercial do Brasil, R i o , '936, p. 94.

Page 354: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esse perigo ressalta patente da própria obra de List, a qual constitui, aliás, d fonte onde se inspirava, direta ou indiretamente, deliberada ou in­voluntariamente, todas as tentativas imperialistas levadas a efeito.

No Livro II, Cap. V, do "Sistema Nacional de Economia" (p. 280), List definiu da seguinte maneira o que entende por nação normal: "Uma nação normal possui uma língua e uma literatura, um território dotado de numerosos recursos, extenso, bem delimitado, uma população considerá­vel. . . Possui forças de terra e mar, suficientes para defender a sua inde­pendência e proteger o seu comércio exterior. Exerce sua influência sobre o desenvolvimento das nações menos adiantadas que ela e, com o exceden­te de süa população e de seus capitais intelectuais e materiais, funda colô­nias e gera novas nações. Eis aí o tipo da nação ideal, para o qual deve tender todo e qualquer país."

O estádio de nação normal implica, pois, antes do mais, condições territoriais e geográficas determinadas. List precisa-as. Trata-se de pos­suir o país um vasto território, provido de riquezas múltiplas, "bem deli­mitado" por mares e cadeias de montanhas, de modo que suas fronteiras naturais lhe sirvam de defesa; litoral extenso, o domínio da foz dos rios.

É a realização de tais condições que List ambiciona para a Alemanha: esta teria atingido o estádio de nação normal quando pudesse utilizar todo o litoral, da foz do Reno às fronteiras da Polônia. Citemo-lo (p. 268): "Se a Alemanha, com seu litoral tal como foi acima determinado, junta­mente com a Holanda, Dinamarca, Bélgica e Suíça, constituísse uma unida­de comercial e política, poderia assegurar à Europa uma paz duradoura."

Ao lermos estas linhas, não sabemos ao certo se abrimos o livro de List ou o "Mein Kampf" de Hitler. . . Mas o que é exato é representar o seu "Sistema" um perigo, pois os territórios de que necessita a nação para se tornar "normal" já estão ocupados por povos civilizados e independen­tes e, portanto, para a sua conquista, ter-se-á de recorrer à força. Ainda que se admitisse participassem os povos, assim ameaçados, de uma seme­lhante concepção de nação normal, fácil seria de prever os perigos a que estaria exposto o mundo.

Estes perigos, evidentes na obra de List, já fizeram, aliás, sentir seus efeitos na prática, por mais de uma vez e de medo sempre cada vez mais trágico.

. Convém, entretanto, não generalizar, daí concluindo que em todos' ós casos a concretização de uma economia normal suscita sempre oposições nacionais e conflitos sangrentos.

A observação mestra que a busca de uma economia nacional tem con­duzido os povos a realizações as mais diversas, de acordo com' o seu tem­peramento e as circunstâncias. Uns têm buscado essa economia no plano da expansão. Uma vez desenvolvida a sua economia interna, procuram, com a constituição de um império, alcançar um estádio mais avançado e complementar da sua agricultura, da sua indústria e do seu comércio. Agi-

Page 355: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ram dessa forma principalmente a Inglaterra e a França. O território des­ses países, cujos limites "arredondaram-se", conforme diria List, estendeu--se a novas terras. Mas nessas novas terras as metrópoles foram aperfei­çoar uma produção, onde quer que se encontrasse ela, em estádio ainda primitivo. E nesse sentido aumentaram a riqueza mundial. Além disso, longe de pretender, com a sua expansão, um meio de se bastarem a si mes­mas, estas nações se incluem entre aquelas que têm participado amplamen­te do comércio internacional. A Inglaterra, primeira potência imperial, só lançou mão da política protecionista após o término da guerra de 1914--18 e sobretudo depois da crise de 1929.

Outros países têm procurado um desenvolvimento "normal" dentro de seu próprio território.

Uma vez tornada possível a exploração das forças produtivas, uma das três hipóteses seguintes se verifica:

— ou as forças produtivas são de tal magnitude e diversidade, a ponto de dar a um povo a possibilidade de viver em grande parte por si mesmo, sem necessidade de recorrer à Economia Interna­cional, e nessas condições tenderá o país a adotar uma forma eco­nômica de autarquia natural (estão neste caso a Rússia e a Amé­rica do Norte, por exemplo);

— ou, uma vez desenvolvidas as forças produtivas, impossível sendo à nação viver naturalmente por si mesma, com os recursos pró­prios, "afrouxará" o seu protecionismo e, adotando a política mais favorável às trocas internacionais, abrirá suas portas ao comércio exterior, buscando também colocação para os seus produtos na economia internacional. Percorrerá, neste caso, até ao fim, o es­quema evolutivo do sistema de List no plano científico;

— ou, finalmente, uma terceira solução pode ser adotada: desenvol­vidas as forças produtivas dentro dos limites do rendimento eco­nômico, pode a nação entender de conveniência ir mais longe e "forçar" a natureza, a fim de se transformar em uma nação nor­mal no sentido político restrito, indicado pelo próprio List com os olhos voltados para o seu país.

Para se apossar dos territórios estrangeiros necessários à consecução do objetivo colimado, deve a nação passar a um estádio de desenvolvimen­to das forças produtivas, não mais "natural", mas, sim, "artificial": o es­tádio de autarquia propriamente dito, ao qual assenta perfeitamente bem a designação de autarquia artificial.22 O que a natureza não concede espon­taneamente vai ser conseguido a qualquer preço. O "Ersatz" é o principal expediente de que usará e abusará esta política.

O estádio de autarquia artificial propicia o advento da guerra. Visa a obtenção da supremacia de uma potência artificial e transitória, que bus­cará estender as fronteiras nacionais pelo temor e pela força.

2 2 . Cf. H. L A U F E N B U R G E R : L'Iaterveation de VÉtat, P a r i s , 1939, p. 360.

Page 356: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

St é a esse extremo que a economia nacional pretende chegar, repre­senta, sem dúvida, uma ameaça, não só à paz mundial, mas também à di­visão internacional do trabalho e à propriedade do comércio internacional.

Deve-se compreender bem não residir o perigo na concepção doutri­nária de economia nacional, cientificamente desenvolvida, nem mesmo no instrumento de que lança mão para sua realização, ou seja, no protecionis­mo educativo — medida salutar quando aplicada a título provisório, a qual se impõe a todas as economias em determinado momento —; reside, sim, no possível abuso que se faça da doutrina do ponto de vista político. Aí está mais um dentre os inúmeros exemplos de conclusões falsas extraídas com base em uma idéia exata. Justifica-se, assim, plenamente o dizer de Bossuet: "Toute erreur est une verité dont on abuse."

Em resumo: a doutrina de List — à parte o exagero das suas con­clusões do ponto de vista prático e político — assenta em sólidas bases científicas.

A idéia nacionalista ocupa aí o mesmo lugar da concepção cosmo­polita na economia clássica. Essa harmonia entre o interesse geral e o particular, exaltada pelos clássicos, é posta em dúvida e mesmo negada. A riqueza da nação não é realizável através da satisfação do interesse pri­vado e imediato, uma vez que não se equipara à soma de valores de troca, mas resulta do pleno desenvolvimento das forças produtivas.

Esta noção de forças produtivas constitui uma das mais interessantes contribuições do "Sistema". Caracterizam-na três traços principais, indi­cados na doutrina, a saber: permanência, realidade e intervencionismo.

Permanência ou duração, uma vez que na idéia de forças produtivas está implícita a consideração do futuro: esta noção ultrapassa, no tempo, a de valor de troca.

Realidade: constituindo uma noção mais exata que a de valor de tro­ca, abrange ainda a noção de riqueza lato sensu — riqueza material e espiritual. Sobrepõe-se, por este aspecto, à noção de valor de troca no espaço: e, dois, é a um tempo mais realista e menos materialista.

Estatismo: em contraposição ao individualismo clássico; uma vez que o indivíduo, abandonado a si mesmo, é incapaz de assegurar a realização da nação, impõe-se o intervencionismo estatal.

E esta oposição feita à clássica harmonia de interesses é acompanha­da por uma oposição à concepção de economia estática dos clássicos.

A noção de forças produtivas não envolve, com efeito, um conceito imutável: estas forças se transformam, orientando a evolução econômica e política dos povos. Esta evolução se processa através de uma série de ajustamentos e equilíbrios sucessivos: a concepção de economia orgânica é evidente em List.

Pretender, todavia, contrapô-lo, como o fez List, à concepção de eco-356 nomia mecânica da Escola Clássica, é um erro. O processo eeionômico da

a

Page 357: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

produção é, na verdade, resultado de ações e reações entre valores de tro­ca e forças produtivas; os aspectos orgânico e mecânico estão, portanto, intimamente ligados e não podem ser dissociados. Foi o que percebeu Kautz 2 3 com clareza.

Feita esta ressalva, a teoria da evolução por estádios sucessivos serve, sem dúvida, de complemento a uma concepção excessivamente estática da Escola Clássica. Corrige-a, nela introduzindo a noção de economia dinâ­mica. Ao abuso, muito freqüente nos clássicos, da abstração, contrapõe List o realismo; e ao seu absolutismo, o relativismo.

Este relativismo não ficará, aliás, circunscrito ao quadro da doutrina nacional de economia: List deve ser, com efeito, classificado como um dos precursores da escola histórica alemã. Knies e, principalmente, Hildebrand reconheceram a influência por ele exercida na formação da sua escola.

O "Sistema Nacional de Economia" de List tem, por certo, o seu va­lor científico, o qual se ressente, entretanto, da introdução de um ponto de vista subjetivista, subjacente à estrutura doutrinária. O que List tem em mira é impor à Alemanha — ao "Zollverein" — uma política prote­cionista. Esta preocupação política solapa em muitos pontos a estrutura do sistema, deformando sobretudo a concepção fundamental de nação normal.

E, tal como se apresenta, exercerá a doutrina de List uma profunda influência sobre os fatos e sobre as doutrinas econômicas.

§ 3." — Influência do "Sistema" de List

Sobre os fatos, fez-se sentir diretamente esta influência, sugerindo di­ferentes políticas comerciais a países cuja indústria nascente precisava de­senvolver-se. É sobretudo na Alemanha que o sistema vai ter a sua mais completa aplicação, embora mediata. Toda a política industrial alemã, a partir da segunda metade do século, vai abeberar-se diretamente nessa fon­te e, graças aos esforços do chanceler Bismarck, alcança pleno êxito ao ser posta em prática.

As correntes do pensamento nacionalista orientaram-se, então, no sen­tido da independência alemã. List é um dos artífices dessa empresa no setor econômico e no político.

E bem mais tarde, após o término da guerra de 1914, os excessos dessa tendência política do "Sistema" se refletem nos fatos: os sistemas de autarquia, então postos em prática, trazem o seu cunho.

E, sobre a doutrina, igualmente importante foi a influência de List. A doutrina de economia nacional constituiu-se realmente com List e, a partir desse momento, passou a ocupar definitivamente, sob a forma de um sistema coerente, um lugar na história das doutrinas econômicas.

23 K A U T Z : Theorie und Gesch. der Alar. Oek., II, V i e n a , 1860.

Page 358: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Dizer-se que se constitui, de modo algum significa ser perfeita e aca­bada. Os sucessores de List, retomando-a, vão de fato aperfeiçoá-la sob dois aspectos: restringindo e moderando, por um lado, as características de ordem política; alargando e aprofundando, por outro, a sua base cien­tífica. E isto por obra, primeiro, de Carey, na América do Norte, e, de­pois, de Cauwès e Brocard principalmente, na França. Com Cawès far--se-á a conciliação entre os pontos de vista do intervencionismo nacional e do intervencionismo social; com Brocard, a conciliação se desdobrará em uma unificação dos aspectos nacionalista e internacionalista, de um lado, e na harmonização da economia nacional com a economia política, de outro.

Seção III

OS CONTINUADORES DE LIST

§ 1.° — Na América — Carey

Com Carey 24 encontrará a doutrina de economia nacional, posterior­mente a Daniel Raymond e através das obras de List, a sua expressão na América do Norte.

Liberal e livre-cambista a princípio, converteu-se Carey ao protecio­nismo em 1842. Ele mesmo atribui a sua conversão ao fato de ter obser­vado existir um estreito liame entre as tarifas protecionistas e o surto de prosperidade norte-americana. Os resultados da tarifa de 1842 acabaram por convencê-lo.

Mas, na verdade, ao lado da observação dos fatos, sofreu ele profun­da influência de List. 2 5 Aliás, tornou-se tanto mais sensível a essa influên­cia quanto, indubitavelmente, a própria concepção do "Sistema" se impôs a List através da observação dos fatos e, sobretudo, daqueles cujo exame pôde fazer, in loco, na América do Norte. E são precisamente estes os fatos presenciados por Carey. A inspiração de ambos provém, pois, da mesma fonte.

24. H. C. C A R E Y nasceu em F i l a d é l f i a , em 1793, falecendo em 1879. Era filho de M a t t h e w C A R E Y , patriota irlandês, e x i l a d o p o l í t i c o e editor. C A R E Y seguiu a profissão do p a i ; a sua cultura é toda a u t o d i d á t i c a . R e t i r a n d o - s e dos negócios em 1835 — e, portanto, com 42 anos de idade — v i v e u até aos 86 anos. A partir daquela d a t a consagrou grande parte da sua a t i v i d a d e aos estudos dos p r o b l e m a s econômicos e sociais. V i a j o u pela Europa nos anos de 1825, 1857 e 1859, tendo t r a v a d o conhecimento, dentre outros, com Stuart M i l l .

O b r a s p r i n c i p a i s : Essay on the rate of wages, 1835. (Sofreu a inf luência de a Riqueza das Nações, tanto quanto a de J. B. S A Y , cujo Tratado ele próprio editará em 1832). I n s p i ­rou-se i g u a l m e n t e nas idéias de N a s s a u S ê n i o r ; Principies of Political Economy, 1837-40, três v o l u m e s ; The past, the present and the future, 1848 (Sua c o n v e r s ã o ao protecionismo é já a c e n t u a d a nesta o b r a ) ; Harmony of interests agricultura], manufacture and commercial, 1850; Principies of Social Science, 1858-59.

Sobre C A R E Y e sua obra: J E N K S : H . C . C A R E Y ais Nationaloekonomist, J E N A , 1885; E R N E S T T E I L H A C : op. cit. , cap. 2 .

2 5 . Em sentido contrário, ler G I D E e R I S T , op. cit. , p . 333.

Page 359: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E mais: List e Carey abordam o problema econômico nacional ani­mados do mesmo "espírito político". Nutrem igual ódio à Inglaterra; List é alemão; Carey, filho de irlandês e exilado.

Na sua grande obra "Principies of Social Science", aparecida em 1858-59, critica Carey algumas das teorias e conclusões da Escola Clás­sica e expõe a sua doutrina do protecionismo nacional.

Sua crítica não abrange, aliás, de maneira geral, toda a escola clássi­ca. Aceitando os seus princípios gerais e essenciais, rejeita energicamente o pessimismo que a caracteriza.

O rendimento mais que proporcional das terras, o crescimento rápido da população da América dt> Norte de en tão 2 6 constituem observações fundamentais que impediram acompanhassem Carey os conceitos pessimis­tas da economia ricardo-malthusiana, relativamente à renda e à população.

Mantém-se, todavia, fiel às idéias de Smith, em seu conjunto, as quais conhece diretamente pela leitura da "Riqueza das Nações" e, indiretamen­te, através das obras de Say. Adotará principalmente o agrarianismo, la­tente na obra do grande escocês e, remontando à fonte primordial, se mos­tra, mais ainda que Smith, sensível ao espírito' da fisiocracia.

Carey aparece, assim, como um liberal protecionista: é posterior a Stuart Mill e, com Bastiat, forma a corrente otimista do liberalismo. De­seja conciliar o protecionismo, que lhe parece o regime ideal na ordem nacional, com a liberdade, a qual continua para ele o ideal na ordem indi­vidual. Este, o problema suscitado em sua grande obra e cuja solução, pro­posta sob a forma de economia nacional, passaremos a examinar.

Em relação ao "Sistema" de List, a doutrina de Carey apresenta um ponto fundamental, comum a ambas, e dois traços díspares.

Tal como List, insiste na necessidade de um desenvolvimento orgânico da economia de uma nação mas, contrariamente a List, subordina o desen­volvimento da indústria à agricultura e o poder político de uma nação à economia interna.

Vejamos rapidamente esses três pontos:

1. A NOÇÃO ORGÂNICA DA NAÇÃO Esta noção está em primeira plana na obra de Carey. É a concepção

básica da "nação normal" e assim também da "nação descentralizada", bus­cada por Carey.

Segundo Carey, estreita é a solidariedade existente entre o desenvol­vimento da agricultura e o da indústria. A lei das saídas, de Say, se impõe a Carey. Entre progresso agrícola, industrial, e crescimento da população,

„ . . 2 6 - , D e 1330 a 1840, a p o p u l a ç ã o da A m é r i c a do N o r t e aumentou de 3 5 % ; de 1840 a " " O , d e mais 3 5 % .

Page 360: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

existe uma estreita relação de complementariedade e reciprocidade. Quan­to maior for o volume dos gêneros alimentícios produzidos, tanto mais considerável será o número de indivíduos em condições de viver em de­terminado território e tanto mais numerosas serão as indústrias do país; e vice-versa.

Perigo algum representa o aumento contínuo da população, perigo esse que era exatamente o que atemorizava Malthus. Ao contrário, uma população em expansão é um bem, pois possibilita o aumento do domínio do homem sobre a natureza e, portanto, o acréscimo da riqueza. v

Para Carey, a procura cria a oferta. Tal como a maioria dos norte--americanos, vê também Carey na população os limites traçados à produ­ção, enquanto Malthus, Say e Sismondi enxergavam exatamente o contrá­rio, isto é, a produção determinando o volume da população. 2 7

O progresso de uma nação é, pois, função da capacidade de associa­ção — noção muito aproximada do conceito de "solidariedade" de Bastiat — e de suas forças humanas e materiais.

Essa associação será tanto mais forte quanto mais solidários e depen­dentes uns dos outros forem os homens no quadro nacional. Essa solida­riedade é função da diversidade de empresa, e portanto, da divisão do tra­balho.

Carey, discípulo de Smith, insiste nessas vantagens da divisão do tra­balho ao transpô-las do piano nacional para o internacional.

E com isso está indicada, na sua doutrina, a passagem do geral para o concreto: do cosmopolita para o nacional; da "concentração" para a "descentralização"; do "tráfico" para o "comércio". Estas últimas ex­pressões exigem uma explicação, pois têm, na terminologia do autor, um sentido especial e preciso.

Descentralização representa o estado de desenvolvimento desejável para uma nação. É aquele que, graças à associação gerada pela divisão do tra­balho, se dá a expansão das diversas forças do país, quer econômicas, quer intelectuais e morais.

"Ê a diversidade — escreve ele — que conduz à associação; quanto mais perfeita é a organização social, quanto mais variados o exercício das faculdades físicas e intelectuais, tanto mais se acentuam os contrastes so­ciais e tanto mais se eleva o homem."28

A economia descentralizada assemelha-se, pois, a uma sociedade pro­dutiva, na qual se executam os mais diversos trabalhos que, por estarem reunidos dentro da sociedade, se tornam complementares, tanto no estádio

27. " C o m o povoamento do solo há o constante aumento do d o m í n i o do homem sobre a natureza, acompanhado da b a i x a dos valores, em comparação com o t r a b a l h o ; com o des-p o v o a m e n t o cresce sempre o poder da natureza sobre o homem, a c o m p a n h a d o da b a i x a do v a l o r do trabalho, em c o m p a r a ç ã o com os instrumentos de todas as e s p é c i e s " (Principies of Social Science, tomo I, cap. 6) .

28. Principies of Social Science, I, p. 57.

Page 361: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

da produção quanto no do consumo. A nação, assim independente, estará então em condições de desenvolver as características n u e lhe são peculiares.

Ao estado de descentralização — ou de concentração — se contra­põe o de centralização. É aquele estado em que o país já não cuida de diversificar, mas, sim, de especializar as suas aptidões e unificar a sua pro­dução. A Inglaterra simboliza a economia centralizada: "Ela pretende escreveu Carey — ser o centre urbano de um mundo no qual os outro-países seriam os campos."

O instrumento dessa centralização é o livre-câmbio que "tende a criar uma fábrica única para o mundo inteiro, à qual devem ser remetidos os produtos brutos do globo, sujeitos às mais pesadas despesas de transpor­te".29

A centralização favorece, pois, o progresso de uma nação em detri­mento do das demais; enriquece uma minoria, empobrecendo a massa. 3 0

A centralização representa uma política orientada para o exterior: a riqueza de uma nação centralizada mede-se pelo desenvolvimento das suas relações comerciais com os países estrangeiros. É a idéia de tráfico indi­cando a separação existente, no espaço, entre produção e consumo.

A descentralização, ao contrário, representa uma política sempre vol­tada para o interior: uma nação descentralizada mede sua riqueza pela maior cu menor diversificação da sua economia interna. A idéia de co­mércio consiste nisto. Indica a aproximação entre produção e consumo.

Por conseguinte, a associação, através da divisão do trabalho, a soli­dariedade orgânica — noção semelhante à da Durkheim —, constitui o agente propulsor da evolução nacional, na doutrina de Carey. 3 1

A sua atuação é de ordem geográfica: conforme acabamos de indicar, aproxima a produção do consumo.

Mas é também de ordem econômica: aumentando o domínio do ho­mem sobre a natureza, determina uma redução real do valor e um aumen­to absoluto da riqueza. E, por conseguinte, aproxima, no tempo, a produ­ção do consumo. 3 2

29. Idem, tomo I. 30. C A R E Y salienta o efeito contrário da d e s c e n t r a l i z a ç ã o que: possibi l i ta o enrique-

cimento de todos e p r i n c i p a l m e n t e o bem-estar do t r a b a l h a d o r ; eleva a taxa dos salários, uma vez que o protecionismo, tornando possível o e n r i q u e c i m e n t o de inúmeras indústrias nacionais, cria uma crescente procura de trabalho e, pois, uma alta dos salários. É interes­sante notar que a p o l í t i c a comercial norte-americana retomará esta idéia, a quai será apl i ­cada principalmente em 1922, na chamada tarifa F o r d n e y M a c - C u m b e r .

31. "A riqueza consiste na faculdade de comandar os serviços sempre g r á t i s da na­tureza" (tomo I, cap. X I I I ) . A associação, baseada na d i v i s ã o do trabalho, a u x i l i a d a pelos progressos técnicos, p o s s i b i l i t a r á a redução do valor e, por conseguinte, o aumento da r i q u e z a ; e, concomitantemente com o aumento da riqueza, o d e s e n v o l v i m e n t o da i n d i v i d u a l i d a d e . Aumentar a associação consiste, def init ivamente, no o b j e t i v o do protencionismo de C A R E Y , doutrina a um tempo nacional , social e i n d i v i d u a l i s t a .

32. Riqueza e v a l o r são, na teoria de C A R E Y , n o ç õ e s o p o s t a s : riqueza é i g u a l ^ à soma dos produtos úteis. O valor varia na razão inversa dp. quantidade dos produtos úteis. 'O valor de todos os gêneros a l i m e n t í c i o s — escreve C A R E Y no tomo I dos Principies of

Social Science — é dado pela medida da resistência a v e n c e r , tendo-se em vista a sua obten­ç ã o . " Representa, pois, o poder da natureza sobre o homem. À medida que essa resistên­cia se reduz, c r e - - e o domínio do homem sobre a n a t u r e z a ; decresce o valor e a riqueza

Page 362: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Com a expansão da diversificação da produção, o preço do trabalhe e das terras — a, matéria-prima da produção — se eleva, enquanto baixa o preço dos produtos acabados e do capital. Esta aproximação entre o preço dos produtos acabados e o das "matérias-primas" indica civilização e é o sinal evidente de harmonia social: "Quanto mais se aproximarem os preços da matéria-prima dos preços dos produtos acabados tanto menor se torna, necessariamente, a proporção dos produtos do trabalho sob a forma de lucro, juro, frete e mesmo renda." 33

E nessa harmonia destaca-se um elemento, como fator essencial da produção: o trabalho humano que, incessantemente, se desmaterialfza atra­vés da progressiva substituição da força muscular pela força mental.

E, com efeito, somente o trabalho aumenta de valor relativamente a todos os demais produtos. Seu valor aumenta mesmo em relação à terra, e isto à medida que o progresso técnico é aplicado à agricultura, pos­sibilitando a redução do custo de reprodução das suas colheitas. Verifi­ca-se, assim, a evolução da economia de uma nação, em conseqüência do duplo efeito produzido pela associação: progresso geográfico e econômico, realizados no espaço e no tempo, com a passagem do "tráfico" para o "comércio", do regime de economia especializada para o de economia diversificada e do estágio de nação dependente para o de nação indepen­dente, em uma palavra, da centralização para a descentralização.

Mas nessa economia orgânica nem todos os fatores de produção as­sumem a mesma importância. Com exclusão das concepções relativas ao trabalho, separa-se Carey, aqui, de List, colocando em primeira plana, não mais a indústria, mas a agricultura.

2. PREDOMÍNIO DA AGRICULTURA SOBRE A INDÚSTRIA

Carey sofre, neste ponto, a influência de Smith, e mais ainda dos fi­siocratas. Tal como estes, acredita que a bondi de da natureza "não tem limites". "A natureza não comete erros", escreve ele. A sua crença na existência de leis naturais, às quais empresta, instintivamente, um caráter "providencial", o aproxima de modo curioso de Quesnay. Sofreu, tam­bém, a influência de Augusto Comte e aproveitou a sua classificação das ciências de acordo com o seu valor relativo: da mesma forma que a ciên­cia, a mais simples, se desenvolve em primeiro lugar, assim também o "trá-

a u m e n t a ( C A R E Y aceita esta idéia d e S A Y ) . A formação s o c i o l ó g i c a d e C A R E Y o de­fendeu, impedindo-o de incidir no erro de ver unicamente no t r a b a l h o a causa e a medida do valor. O b s e r v a que o trabalho necessário à produção v a r i a no t e m p o (progresso t é c n i c o ) , i m p r i m i n d o , assim, um caráter d i n â m i c o à sua concepção de vaior. L i g a a noção de v a l o r â de " c u s t o de reprodução". T a l como M A C - C U L L O C H , coloca-se na p o s i ç ã o de comprador (e não na de vendedor, como o faria se adotasse a noção de c u s t o de produção) : inova, neste ponto, cindindo, no tempo, a noção de custo.

Na d e t e r m i n a ç ã o do valor mostra C A R E Y também que o c a p i t a l representa importante p a p e l , tão importante quanto a c a p a c i d a d e de o r g a n i z a ç ã o , da " i n t e l i g ê n c i a " , noção que será retomada por A. M a r s h a l l .

C a r e y indica, pois, resultar o v a l o r da c o m b i n a ç ã o de duas e s p é c i e s de atributos das c o i s a s : sua uti l idade social e a maior ou menor dif iculdade para sua obtenção.

3 3 . Principies of Social Science, tomo I I .

Page 363: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

fico" e a indústria devem cronologicamente progredir antes de se tornar possível o completo desenvolvimento da agricultura. A agricultura é, como efeito, para Carey, o setor mais elevado da produção e, por isso, deve, cronologicamente, desenvolver-se pop último: a agricultura é mais impor­tante, não apenas do ponto de vista produtivo, mas também do ponto de vista geral, sendo a atividade que "melhor serve de liame entre o espírito, a moral e o coração". A economia nacional de Carey assenta-se, portanto, sobre a agricultura: isto a diferencia do sistema de List, essencialmente industrialista.

A fim de possibilitar o progresso da agricultura, dando-lhe o lugar que lhe cabe e tornando-a algo mais que uma simples exportadora dos pro­dutos do solo e das matérias-primas nacionais em proveito do estrangeiro, é preciso, pensa Carey, suprimir o tráfico e desenvolver a indústria.

a) A supressão do tráfico

A terra é, com efeito, "mutuante", e boa mutuante — noção de pro­duto líquido dos fisiocratas —- e mutuante tão-somente.

"E singular é — escreve Carey —• que a economia política moderna tenha esquecido a circunstância de não passar o homem de um mu­tuário em relação à terra, cuja posse perderá caso não pague as suas dívidas." 34

É preciso que o homem devolva à terra o que lhe tomou emprestado; do contrário terá a mesma sorte dos produtos agrícolas exportados; será obrigado a deixar a sua terra. Não nos esqueçamos de que Carey, filho de irlandês imigrado, tem sempre presente ao seu espírito a idéia de se ver o homem na contingência de abandonar a terra para não morrer de fome.

Esta idéia de devolver ao solo o que dele recebeu por empréstimo está presa à noção de "perpetuidade" da terra, noção esta na qual insisti­rá um dos discípulos de Carey, Pershim-Smith.35

Os economistas adeptos da idéia de predomínio, da produção agrícola na economia passaram sucessivamente da preocupação principal de ferti­lidade natural da terra à de fertilidade é, a seguir, à de venda de seus produtos. Carey, como autor de transição, situa-se entre estas últimas teses: realça, a um tempo, a necessidade de assegurar a fertilidade artificial do solo, bem como a saída dos produtos agrícolas.

Esta dupla preocupação o leva, logicamente, a exigir a supressão das exportações — do tráfico —, bèm como a criação das indústrias nas pro­ximidades da produção agrícola e o seu fomento.

34. Principies oí Social Science, tomo I, cap. 3, § 12. 3 5 - E. P E R S H I M - S M I T H ! Manual oi Political Economy, F i ladélf ia , 1853. 363

Page 364: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Os produtos agrícolas não toleram a exportação, pois iriam, neste caso, enriquecer a terra estrangeira que os compra como "adubo" concor­rendo a sua saída para o empobrecimento da terra natal. O consumo dos produtos agrícolas deve ser feito nas proximidades do lugar da sua produ­ção, a fim de ser devolvido materialmente ao solo o que lhe foi tomado de empréstimo: a necessidade dos adubos é realçada energicamente por Carey, dizendo: "É a coisa mais importante de todas".

O proprietário dos produtos agrícolas poderá ter, sem dúvida, o inte­resse imediato de trocá-los por produtos manufaturados estrangeiros. Mas a capacidade produtiva do solo sofrerá com isso. O que lograsse o inte­ressado em "riqueza individual" a nação perderia em "riqueza social".

Carey faz, pois, da mesma forma que List, embora de maneira menos precisa, a distinção entre valor de troca e forças produtivas.

Chega à mesma conclusão, a saber: ser aquela sacrificada em bene­fício destas: "O poder coordenador da sociedade deve interferir, a fim de impedir que o interesse particular engendre o infortúnio público."

b) Desenvolver a indústria nas proximidades da agricultura

A exportação dos produtos agrícolas deve ser proibida. Além disso, a expansão da agricultura exige se faça a sua exploração nas proximida­des dos centros industriais: desta forma serão asseguradas as saídas dos seus gêneros, hbertando-se, assim, o produtor agrícola do tributo pago ao "traficante", pelo transporte dos seus produtos para o estrangeiro.3 6 O ar­gumento é fraco: se o produtor exporta é por lhe proporcionar a opera­ção um lucro em valor da troca. Assim também em relação a uma nação: dado o seu estado de desenvolvimento técnico em determinado momento, a prática da exportação indica que a troca internacional lhe possibilita a obtenção de uma quantidade de produtos industriais maior do que a que lhe seria possível conseguir, se os fabricasse no país.

O lucro advindo da operação faculta, tanto ao particular quanto à nação, a utilização de certa quota na aquisição dos adubes necessários a manter a fertilidade do solo. Como quer que seja, desenvolvendo-se a.agri­cultura nas proximidades da indústria, terá assegurada a saída para seus produtos. Com isto se expandirá e se aperfeiçoará.

E, sendo a agricultura ciência e arte supremas, acarretará a sua ex­pansão o progresso geral da nação e lhe possibilitará o pleno desenvolvi­mento dos seus atributos originais e peculiares.

36. "O preço do transporte — escreve Carey — cresce em proporção geométrica, ao passo que a distância a percorrer até o mercado aumenta em proporção a r i t m é t i c a " . N o t a - s e aí a influência da terminologia de M a l t h u s .

Page 365: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

3. PREPONDERÂNCIA DA ECONOMIA SOBRE A POLÍTICA

Do exposto se vê ser predominante em Carey a noção do "comércio" como antagônica à de "tráfico": o importante para este autor é o desen­volvimento interno da nação, simbolizada na expansão da agricultura; cons­titui a própria essência do progresso social.

Não se trata mais, tal como achava List, de fomentar a evolução in­dustrial através do protecionismo, até que se atinja o estágio de nação nor­mal para, então, se adotar de novo o livre-câmbio, tirando partido do de­senvolvimento assim alcançado na luta contra a concorrência nacional.

A "ofensiva", objetivo colimado pela "nação normal", delineia-se cla­ramente no "Sistema". O "arredondamento" do território se impõe, a fim de poder contar com forças produtivas poderosas, não apenas para tornar a nação independente, mas também mais poderosa que todas as outras e assim poder dominar.

Na doutrina de Carey o protecionismo se impõe, todavia, apenas como meio "defensivo" e único suscetível de facilitar a associação através da di­visão do trabalho e, com esta, a harmonia universal.

É, aliás, a idéia que já se encontra em um Bastiat ou em um Consi­deram, a qual imprime a esse protecionismo, na ordem prática, dois tra­ços característicos que o distinguem daquele propugnado pelo "Sistema": antes do mais esse protecionismo é geral e não apenas industrialista. Es-tender-se-á a todos os elementos indispensáveis à associação, quer se trate da agricultura, quer da indústria. E, em segundo lugar, é definitivo e não provisório. A associação é uma necessidade permanente: não basta que se lhe dispense proteção no ato de sua formação; será preciso protegê-la no seu incessante progresso.

O "comércio" — corresponde à noção de interesse interno — deve constituir a regra permanente, enquanto o "tráfico" servirá apenas como um instrumento acessório.

Uma vez assegurada, portanto, a multiplicidade dos empregos, não será ao livre-câmbio que se deve recorrer de novo, mas, sim, ao que Ca­rey chama de "liberdade real do comércio", consistente na capacidade de manter a nação um "comércio direto" com as demais partes do mundo.

Carey entende por "comércio direto" a possibilidade de enviar o país as suas "utilidades" para o estrangeiro, não mais sob a forma de matérias--primas, mas de produtos acabados. Os produtos industriais acabados subs­tituirão os produtos agrícolas no "tráfico" — comércio exterior —, possi­bilitando, assim, a utilização dos produtos do solo no consumo do país, com o que se terá favorecido, conforme se disse, não só a produção agrí­cola, mas também o interesse social geral.

Esta concepção de um comércio exterior ideal aproxima a doutrina de Carey da dos mercantilistas e a põe em antagonismo com o livre-cambis- 365

Page 366: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mo clássico, distinguindo-a, ao mesmo tempo, do protecionismo provisó­rio e industrial de List.

Parece, pois, que este comércio exterior da nação descentralizada esta subordinado às necessidades da economia interna da nação, às quais se circunscreve.

E, esta preponderância da economia interna sobre a externa reduz a importância do elemento político, tornando-o secundário, ao passo que, tanto em List quanto em seu antecessor, Daniel Raymond, predominam o fator político em relação ao econômico.37

Assim, pois, a doutrina nacional de economia "despolitiza-se" com Carey.

37. D i z e r que o elemento p o l í t i c o se apaga ante o e c o n ô m i c o não significa, de modo a l ­g u m , negar a sua e x i s t ê n c i a na doutrina de Carey. M u i t o ao contrário, este autor percebeu perfeitamente bem o l iame e x i s t e n t e entre o elemento p o l í t i c o e o e c o n ô m i c o , dele se u t i l i z o u para passar da economia p o l í t i c a à c i ê n c i a social, que definiu a s s i m : "A ciência social trata das leis que governam os homens enquanto agem, para lhes assegurar a mais elevada i n d i v i ­d u a l i d a d e e o m á x i m o poder de a s s o c i a ç ã o . "

C o m isto já está anunciando C a r e y a fusão econômica social com a nacional, fusão essa que será levada a efeito por C A W È S .

O b s e r v e m o s ainda, a fim de ilustrar mais uma v e z a inf luência profunda exercida pelos fatos na elaboração das doutrinas, que Carey, observador arguto, sendo norte-americano, c o l o ­cou, em sua doutrina, o e lemento p o l í t i c o em plano secundário. O rápido e maravi lhoso pro­gresso já a lcançado pela A m é r i c a do Norte, na época, era de molde a fazer com que não pas­sasse despercebido a C a r e y que o d e s e n v o l v i m e n t o interno das suas forças produtivas ia concorrer para a criação de uma economia interna c o m p l e t a e, em grande parte, auto-suficiente. N e s s a s condições, a tese do S i s t e m a N a c i o n a l de economia s a t i s f a z : m e s m o que., na real idade, fosse levada essa tese às ú l t i m a s conseqüências, não determinaria senão o aparecimento de um estádio de autarquia natural, despreocupada de qualquer ofensiva de ordem polít ica, sobretudo externa, enquanto percebia L i s t , ao contrário, que o d e s e n v o l v i m e n t o do seu país, embora se const i tuísse em espetáculo impressionante, j a m a i s atingiria o e s t á d i o de e v o l u ç ã o c o m p l e t a , a não ser que sé " a r r e d o n d a s s e " o território- Fora daí, só se poderia obter a independência por m e i o de uma autarquia artificial, noção perigosa mesmo como remédio provisório. A e d i f i c a ç ã o de uma nação normal, e x i g e , pois, a incorporação no Sistema do fato p o l í t i c o , por cuja impor­t â n c i a se sobrepõe ao econômico.

O Sistema apresenta-se, t o d a v i a , sob outros aspectos, como um conjunto doutrinário supe­rior à e laboração de Carey. É m a i s f lexível e temperado. C a r e y , de senso crítico medíocre e de o t i m i s m o entusiasta, não pode prever as objeções sérias, que seriam l e v a n t a d a s a a l g u m a s de suas idéias, principalmente as r e l a t i v a s a um protecionismo g e n e r a l i z a d o e permanente, cujas c o n s e q ü ê n c i a s sobre a a t i v i d a d e e c o n ô m i c a e os preços são c o n h e c i d a s . C a r e y — tal como L i s t — censurara os clássicos por se fazerem l i v r e - c a m b i s t a s em função dos interesses de seu p a í s . M a s , na verdade, tanto C a r e y quanto L i s t são tão a b s o l u t i s t a s como aqueles aos quais c r i t i c a m : L i s t , edificando um s i s t e m a para a A l e m a n h a , e C a r e y , um para a A m é r i c a do Norte.

T o d a v i a , a contribuição dada por C a r e y à doutrina da e c o n o m i a nacional é, sem dúvida, importante. Grande foi a inf luência exercida por sua doutrina sobre a pol í t ica dos E s t a d o s U n i ­dos, conforme o comprovam os numerosos discípulos que teve entre os norte-americanos. C i t e ­mos, principalmente E. P. S M I T H : A Manual of Political Economy, F i l a d é l f i a , 1853; S t a -phen C O L W E L L , que escreveu, em 1856, o prefácio à t r a d u ç ã o americana do Sistema de L i s t ( T r a d . de G. A. M a t i l e ) , e, assim t a m b é m , as principais obras s e g u i n t e s : The relative position in our industry of foreign commerce, domestic production and international trade, 1850; The claims of labour and their precedence to claims of the trade, 1 8 6 1 ; C. N O R O H O F F S : Politids for young Americans; H O R A C E G R E E L Y : Essays, 1870; F r a n ç o i s B O W E N (1871-1890): Prín­cipes d'Économie pcjitique, 1856 (reeditado em 1870 sob o s i g n i f i c a t i v o t ítulo de American Po­litical Economy); W i l l i a m E L D E R : Question of the day, 1 8 7 1 ; Conservation on Political Eco­nomy, 1875; R. E. T H O M P S O N : Social Science and National Economy, 1875; Siman P A T T E N ! Premisses of Political Economy, 1885; The Consumation of Wealth, 1889; Dynamic Economics, 1892; The Theory of prosperity, 1902. T a l como Carey, afasta P a t t e n a idéia de rendimento não proporcional das terras, em r e l a ç ã o ao seu país. As sociedades p r o g r e s s i v a s se encontram em fase de uma crescente ferti l idade do solo e, portanto, de uma p r o d u ç ã o agrícola abundante. Com base neste dado, construiu a sua teoria protecionista, v á l i d a para os E s t a d o s dinâmicos, mas não para os países estáticos, nos quais o crescimento de uma renda, de há muito criada, reduz os salários e os lucros.

Na Europa, o melhor d i s c í p u l o de C a r e y é o alemão E u g e n D U H R I N G ( 1 8 3 1 - 1 9 2 1 ) : Careys Umwalzung der Sozialwissenschaft und Volkswirtschaftslehre, M u n i q u e . 1865; Kursus der Na­tional und Sozialoekonomie, B e r l i m , 1873 (Cf. S P A N N : The History of Economics, N o v a Ior­que, 1930, p. 208, em p a r t i c u l a r ) . Sobre os discípulos de C a r e y ler, principalmente, H A N E Y - -History of Economic Thought, N o v a Iorque, p. 295 e segs.

Page 367: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

É neste sentido que a sua evolução vai prosseguir ao mesmo tempo que, na França, se completa em outros importantes pontos, principalmen­te com os professores Cauwès e Brocard.

§ 2.° — Na França: Cauwès e Brocard

Paul Cauwès expõe suas idéias relativamente à economia nacional, em seu "Cours d'Économie Politique", proferido em 1878-79. A guerra de 1870, "dura lição de experiência" para a França, leva Cauwès a se opor energicamente à "ilusão do cosmopolitismo" e a retomar, desenvolvendo-a, a doutrina de List. 3 8

Servindo-se do método da observação, reúne toda uma série de fatos que comprovam haverem vários países, na segunda metade do século XIX, recorrido, com grande êxito, ao fortalecimento da economia nacional. De­duz daí a necessidade de se aplicar uma política de protecionismo.

O protecionismo da indústria deve fazer-se acompanhar de um prote­cionismo social: a intervenção do Estado deveria existir, não apenas como auxílio suplementar às iniciativas de interesse privado — quer fomentando a atividade particular indispensável ao desenvolvimento complexo da na­ção, quer substituindo a iniciativa privada quando determinadas realiza­ções não couberem dentro de seu campo de interesses —, mas também sob a fonria de tutela dos interesses das classes sociais economicamente fracas.

Com efeito, para Cauwès, a economia não deve ser considerada ape­nas como uma ciência que se limite a observar e explicar os fatos econô­micos, mas também como arte "a serviço do bem-estar comum". Seu ob­jetivo não deve ser apenas a multiplicação das riquezas e, sim, ainda, a fe­licidade dos homens.

O Estado não deve desenvolver tão-somente as forças produtivas in­dustriais, mas igualmente, e sobretudo, as forças produtivas humanas. Umas e outras devem desenvolver-se, paralela e harmoniosamente, pois só assim pòder-sé-á atingir o verdadeiro estádio de "economia complexa". Aliás, deve-se esta expressão a Cauwès. Mas, nesta evolução — e neste ponto reside a originalidade do pensamento de Cauwès em relação aos seus antecessores — caberá às forças produtivas humanas ocupar a van­guarda. A riqueza de uma nação só existe quando todos os seus habitan­tes participam da sua prosperidade. O enriquecimento — no sentido am­plo do termo — deve beneficiar, a um tempo, o industrial e o operário.

A economia política se orienta, assim, nitidamente, no sentido de eco­nomia social. Os principais traços característicos do intervencionismo so­cial superpõem-se aos da economia nacional: opera-se, na obra de Cauwès, a fusão desses dois tipos de intervencionismo.

38. Paul C A U W È S , professor na F a c u l d a d e de D i r e i t o de P a r i s , falecido em 1917. L i ­v r o s : Cours d'Économie Politique, Paris , 1893, 4 v o l s . ; L'Écqnomie Nationale, -in Revue d'Éco-nomie Politique, P a r i s ; 1898; Précis d'Économie Politique, P a r i s 1881, tomos I e I I .

Page 368: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Com Lucien Brocard 39 a doutrina nacional de economia expande-se mais ainda.

Encontra-se em sua obra — além da fusão, a que aludimos, do inter­vencionismo social com o nacional — a contribuição para uma dúplice conciliação, que vai concorrer para um singular enriquecimento da mo­derna doutrina de economia nacional: é a conciliação da economia nacio­nal com a internacional, por um lado, e, por outro, da economia nacional com a economia política.

1. CONCILIAÇÃO DA ECONOMIA NACIONAL COM A ECONOMIA INTERNACIONAL

Os fatos comprovam a solidariedade existente entre economia nacional e internacional; Brocard observou que o desenvolvimento econômico de certos países, no sentido de uma economia complexa e através da adoção do protecionismo, não constitui um entrave para as trocas internacionais, conforme se poderia temer. Muito ao contrário, parece mesmo que as na­ções, cujo grau de desenvolvimento atingira o máximo de complexidade, foram exatamente aquelas a conseguir incrementar ao mesmo tempo as tro­cas com o estrangeiro.

A economia nacional será, pois, conciliável com a economia interna­cional: na evolução geral dos povos não constituiria um fim em si, mas, apenas, uma etapa importante e indispensável no sentido da consecução de uma ordem internacional.

Enquanto List via na economia nacional sobretudo a base do poderio político e econômico, Brocard a encara como o remate da solidariedade nacional e o ponto de partida de uma colaboração internacional mais in­tensa; 4 0 é o que pretende deixar bem claro em suas obras.

E por isso, partindo da interpretação dos fatos que focaliza através do ângulo da "colaboração humana", constrói a sua teoria da evolução das economias por "círculos concêntricos".

A idéia principal é a seguinte: a colaboração humana não se faz de uma maneira caótica, independentemente da posição ocupada pelos ho-

3 9 . L u c i e n B R O C A R D , p r o f e s s o r d a F a c u l d a d e d e D i r e i t o d e N a n c y , f a l e c e u e m 1 9 3 6 . S u a s o b r a s p r i n c i p a i s s ã o as s e g u i n t e s : Les Doarines Éconcmiques *>t sociaux du Marquis de Mirabeau dans L'Ami des Hommes, P a r i s , 1 9 0 2 ; Príncipes d'Économie Natíonale et Internatio­nale, P a r i s , 1 9 2 9 - 3 0 , 3 t o m o s ; Économie Régionale et Régionalisme Économique, in Revue d'Éco-conomie Internationale, n o v . 1 9 3 1 ( t r a d u z i d o em j u l h o de 1 9 3 2 no The Annales of the American Academy of Political and Social Sciences); Les nouveaux Fondements du Protectionmsme In­dustriei, in Revue d'Économie Politique, P a r i s , m a r ç o de 1 9 3 3 ; Les Conditions Générales de VActivité Économique, P a r i s , 1 9 3 4 .

V a s t a é a o b r a d e B r o c a r d . A t r a e n t e , p o r s e r p r o f u n d a m e n t e h u m a n a , g r a n d e é o s e u v a l o r , p e l a c o n t r i b u i ç ã o d e o r d e m c i e n t í f i c a q u e d á à e c o n o m i a p o l í t i c a . N o p e r í o d o p ó s - g u e r r a , e m q u e s e t e n t a v a a r e o r g a n i z a ç ã o e c o n ô m i c a d o m u n d o e n o q u a l c a d a u m s e n t i a d e p e n d e r o ê x i t o d e s s a e m p r e s a d e u m e s f o r ç o d e c o n c i l i a ç ã o d o s i n t e r e s s e s d a s d i f e r e n t e s e c o n o m i a s n a c i o ­n a i s n o q u a d r o d a e c o n o m i a i n t e r n a c i o n a l , a o b r a d o p r o f e s s o r B r o c a r d , m a i s d o q u e n u n c a , o f e ­r e c e g r a n d e i n t e r e s s e p a r a u m a l e i t u r a p r o f u n d a e m e d i t a d a .

S o b r e B r o c a r d l e r : A. M A R C H A L : La Conception de l'Èconomie Nationale chez les Mer-cantilistes Français, P a r i s , 1 9 3 1 ; a r t i g o na Revue d'Économie Politique, n." 4. P a r i s , 1 9 3 7 .

4 0 . Cf. H e n r y L A U F E N B U R G E R : L'lntervention de 1'État en matière Économique. P a ­r i s . 1 9 3 9 . p . 9 7 .

Page 369: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mens, considerados uns em relação aos outros. Faz-se, ao contrário, em função direta da sua aproximação no espaço. Esta é, aliás, uma das idéias I fundamentais da obra de Carey, conforme acabamos de ver.

A colaboração humana, embora nada mais sendo que relações de in­divíduos entre si — prossegue Brocard —, realiza-se também em círculos concêntricos. Ela se faz no quadro internacional entre as nações, pelas trocas e pela compenetração humana; ela se faz, sobretudo, no quadro na­cional e, na nação, no quadro regional e depois no quadro local.

A colaboração entre os indivíduos se verifica no círculo local apenas: torna-se então possível, por estarem os homens, aí, mais próximos uns dos outros, em condições, portanto, de cooperar para o bom funcionamento dum mesmo serviço ou empresa.

Ao se comparar a colaboração que se faz em círculos concêntricos — entre os indivíduos de uma localidade; entre as localidades, dentro de uma região; entre as regiões de um país e entre as diferentes nações do mundo —, verifica-se apresentar ela traços comuns em cada um desses diferentes estádios.

Esses traços comuns provêm essencialmente do fato de ser a colabo­ração mais íntima dentro de cada um dos círculos, do que entre os cír­culos sucessivos: é mais íntima dentro de uma localidade do que entre as localidades; dentro de uma região do que entre as regiões; no interior da nação do que entre as diferentes nações.

Pelo exame profundo das semelhanças e dessemelhanças verificadas na colaboração prestada em cada um desses círculos, tem-se uma idéia pre­cisa e real da vida econômica, a qual permite dar à economia política bases sólidas. (Observemos que a idéia de relativismo — quer econômi­co, quer político — adquire aqui toda a sua ênfase.)

Este estudo põe em relevo o fato de ser a colaboração muito mais íntima no quadro nacional do que no internacional. Essa diferença se ex­plica ao serem isolados os elementos constitutivos da colaboração nacional.

Em primeiro lugar, o elemento físico: o território, elemento básico essencial à existência de uma nação. A este se superpõe o elemento téc­nico, nascido da necessidade de exploração dos recursos do território. Essa exploração se diversifica, orientando-se no sentido de um desenvol­vimento complexo. O professor Brocard, tal como seus antecessores, in­siste na importância da divisão do trabalho dentro de uma mesma nação, como base do progresso de todas as nações civilizadas.

A este primeiro junta-se o elemento econômico: decorre da circuns­tância de ser o mercado nacional muito mais unificado do que o interna­cional. A uniformidade de preços e a solidariedade existente entre os mes­mos são, respectivamente, mais freqüentes e mais íntimas no mercado na­cional que no internacional. E isso em virtude de ser o número de trocas, realizadas no interior de uma nação, infinitamente superior ao das levadas a efeito pelas nações entre si. Aí está a explicação do fato de existir muito 369

Page 370: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

maior solidariedade econômica entre os membros da comunidade nacional do que entre os da comunidade internacional.

E a esses dois -elementos acresce um terceiro, de ordem jurídica: a uniformidade da legislação aproxima os habitantes da mesma nação, não apenas em virtude das suas conseqüências civis e comerciais, mas também fiscais. Os tributos lançados pelo Estado, para fazer face às despesas com o funcionamento da maquina administrativa, constituem expressão da so­lidariedade do grupo e representam a colaboração prestada por todos os cidadãos de um mesmo país. v

A colaboração nacional resulta ainda de um elemento humano, cuja influência se faz sentir, quer do ponto de vista quantitativo, quer do qua­litativo. Quanto mais numerosa for a população tanto mais fácil será à nação atingir o estádio de evolução complexa. E, por conseguinte, maior será a sua riqueza. A noção de associação, decorrente do volume de po­pulação de um país e da maior ou menor aproximação dos habitantes entre si (peça mestra da doutrina de Carey), é uma noção implícita na obra de Brocard. O elemento humano — tomado do ponto de vista qualitati­vo — exerce influência: trata-se agora do fator étnico, racial. Não se en­contra nação alguma constituída por uma raça pura, mas, sim, por uma multidão de raças: essa mistura de raças, características do elemento étni­co de cada uma das nações, é que vai predispor os homens de um mesmo país a prestarem mais facilmente a sua colaboração uns aos outros: e isso porque a sua língua é comum, os seus sentimentos têm bases idênticas; seus costumes são mais ou menos iguais, em uma palavra, suas tradições são as mesmas.

Este conjunto de elementos explica o porquê da colaboração nacio­nal, indicando ao mesmo tempo a razão de não se conseguir obter, no to­tal estádio de evolução, uma colaboração igualmente íntima e desenvolvi­da no campo internacional.

Daí existirem — contrariamente ao que pretendiam os clássicos — problemas que só podem ser resolvidos dentro do quadro da nação. 4 1 A exemplo de List, afirma Brocard, assim, a atual preponderância da cola­boração nacional. Mas, indo além do autor do "Sistema", assevera ainda Brocard não constituir a nação de uma unidade econômica que se baste a si mesma, nada mais sendo senão um estádio que tende para uma evolução superior.

Esta evolução deve processar-se no sentido de tornar a economia in­ternacional uma realidade. E uma vez que, no passado, a evolução das relações humanas se fez em círculos concêntricos superpostos uns aos ou­tros, sucessiva e progressivamente, de modo a servir o anterior de base ao posterior, é de se esperar prossiga, no futuro, por este mesmo processo.

4 1 . "A economia nacional representa, na era presente, o grupo m a i s coerente, mais autô­nomo e poderoso do que qualquer outro. . A q u e l e , cujo funcionamento se reveste da m á x i m a importância para o d e s e n v o l v i m e n t o de todos os demais e para o progresso da c i v i l i z a ç ã o . " (Príncipes, tomo I I , p. 675).

Page 371: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A "economia internacional nada. mais pode ser que a cúpula de um edifício de vários andares, cada um dos quais é sustentado por todos os demais que sob ele se encontram" *2 A colaboração internacional só terá êxito quando se fizer entre nações já altamente organizadas. "

Esta colaboração é necessária, em primeiro lugar, para o bem de cada um dos países, pois, a despeito de se haver generalizado a economia com­plexa, continuam as nações como complementares umas das outras: forne­cem-se, reciprocamente, saídas e mercados para seus produtos.

Esta colaboração é, além disso, indispensável ao progresso da civili­zação, por produzirem os diferentes povds tipos de cultura que se com­pletam e se corrigem. "Estimulam-se mutuamente — escreve o professor Brocard —, tornando comuns os seus conhecimentos e os seus talentos. Podem renovar-se e rejuvenescer, por felizes miscigenações de traços here­ditários." 43

É preciso, pois, organizar a colaboração internacional: tarefa ingrata, difícil e que demanda tempo.

Através da observação do atual desenvolvimento dos povos e do es­tudo da sua história, o princípio orientador de uma semelhante política é o seguinte: deve-se procurar estabelecer a colaboração internacional com base em uma colaboração inter-regional. Deve-se, através de convenções econômicas 44 e políticas, desenvolver o comércio e as relações de trocas, materiais e humanas, entre as nações. Estes contatos devem ser estabeleci­dos dentro de cada continente e, posteriormente, pelos diferentes continen­tes entre si.

Paralelamente deve-se buscar a colaboração internacional através da criação de quadros jurídicos semelhantes àqueles que constituem a arma­dura da economia nacional. É preciso passar da condição de simples união econômica e política a uma confederação, para se atingir o Estado federal: o mundo transformado em uma nação única. . . O sonho da escola indi­vidualista é agora acalentado pela escola de economia internacional.

"Uma vez racionalmente compreendidos, desaparecerá, assim, a apa­rente contradição entre os pontos de vista nacionalista e internacionalista. As duas concepções se aproximam e se confundem em uma aspiração co­mum, qual seja a ampliação do círculo de colaboração. Mas, enquanto acredita o internacionalismo ideológico ser esta ampliação, atualmente, uma realidade; enquanto se recusa o nacionalismo ideológico à sua realização, a economia nacional vai tornando patentes, a um tempo, as suas possibi­lidades, as suas dificuldades e os meios de vencê-las pouco a pouco. Pro-poe-se um ideal acessível e sugere métodos graças aos quais podemos atin-

42. Conditions Générales de 1'Activité Économique, p. 553.

4 3 . Idem, p . 563. 4 4 - Jean M A R C H A L : Union Douanière e t Europienne (Prefácio por L u c i e n B r o c a r d ) , P a -

Page 372: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

gir esse objetivo por etapas sucessivas, à meada que as condições da produção e o estado dos espíritos o permitirtrv. " ^

2. CONCILIAÇÃO ENTRE A ECONOMIA NACIONAL E A ECONOMIA POLÍTICA

Na obra de Brocard, ao mesmo tempo que se faz a conciliação en­tre a economia nacional e a internacional, afirma-se também ser possível conciliar a economia nacional com a economia política.

Sem dúvida, List e seus sucessores julgavam não existir contradição entre a economia nacional e a economia política, todavia, em suas obras existe de fato esta oposição, sob forma que se impõe, inevitável e insis­tentemente.

Esta oposição era inevitável, com efeito. E isso, até que, no último terço do século XIX, os progressos realizados pela ciência econômica, através do aperfeiçoamento do seu método e da elaboração de uma teo­ria científica, cada vez mais exata, projetaram um facho de luz unificador sobre a multiplicidade das doutrinas.

A doutrina de economia nacional é assim, com Brocard, beneficiada pela projeção dessa nova luz: adere à teoria geral moderna que divide a economia política em três setores distintos — economia pura, economia aplicada e arte econômica.

A economia política clássica tradicional, tal como foi aperfeiçoada pe­las escolas psicológicas e matemáticas, se situa no campo da economia pura.

A economia nacional entra no campo da economia aplicada e no da arte econômica. Introduz no sistema de leis gerais, apreendidas pela eco­nomia pura, os fenômenos concretos decorrentes da circunstância de estar a humanidade dividida em nações.

Longe de se contrariarem ou de se excluírem, doravante economia po­lítica e economia nacional se associam e se completam: "A economia na­cional e a internacional — escreve o professor Brocard —, não só nenhu­ma contradição apresentam com os dados da ciência econômica, mas ainda constituem segundo nós, a última etapa do seu desenvolvimento, na via das sucessivas aproximações por meio das quais a ciência se encami­nha para a representação integral da realidade concreta. . . Não se trata mais de escolher entre as duas (economia nacional e economia política). A economia nacional vem, mui naturalmente, ocupar o seu lugar na eco­nomia aplicada. As conclusões às quais se chega, assim, longe de serem contraditórias, são, ao contrário, complementar es. Só a combinação de ambas torna possível fazer da economia política um todo completo." 46

372 45. B R O C A R D : Príncipes, tomo I I , p. 320.

46. Príncipes, tomo I, P r e f á c i o e p. 32.

Page 373: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

3. CONCLUSÕES SOBRE A DOUTRINA DE ECONOMIA NACIONAL

Assim, pois, mediante a conciliação dos pontos de vista nacional e in­ternacional, nacional e social, devidamente integrada na ciência econômica, apresenta-se a doutrina econômica nacional moderna, após uma longa evo­lução, com uma ampla e sólida elaboração doutrinária.

Ampla, por não se limitar a doutrina à edificação de economias fe­chadas dentro das fronteiras de cada um dos países, mas apresentar-se a si mesma como uma etapa para uma perfeita e íntima compenetração eco­nômica dos povos, no plano internacional. Ampla, ainda, por não excluir, mas, ao contrário, englobar o aspecto social, cujo desenvolvimento está estreitamente ligado às suas noções — tão fecundas —- de forças produti­vas e economia complexa. Por efeito da solidariedade existente entre o nacional e o internacional, o nacional e o social constituem preocupações intimamente ligadas entre si e ressaltam ainda como fenômenos comple-mentares, e não antagônicos, uma vez examinadas em função, não dos ní­veis políticos imediatos, mas das necessidades superiores e permanentes da vida econômica.

A economia nacional moderna aparece, além disso, com uma sólida elaboração doutrinária, definitivamente integrada na ciência econômica: colhe os benefícios dos progressos realizados pela economia pura, toman­do parte na elaboração e aperfeiçoamento da economia aplicada.

Esta evolução, interessante, antes do mais, por chegar a edificar uma doutrina ampla e sólida, é interessante, ainda, por deixar patente a influên­cia exercida pela ciência sobre a doutrina, influência essa cuja importância foi por nós ressaltada na Introdução a estas páginas.

A ciência econômica influi, com efeito, sobre a doutrina, expurgan-do-a das suas impurezas e unificando-a. Em outros termos, atua restrin­gindo o valor subjetivo e político da doutrina e reduzindo às devidas pro­porções as oposições e contradições provenientes, na maioria das vezes, de problemas mal colocados, ou mal compreendidos.

E este resultado sobre a doutrina aumenta com os progressos da ciên­cia econômica. Daí ser necessário, na medida que este progresso da teoria econômica explica a evolução das doutrinas, indicar as suas características principais; é o que vai constituir objeto dos capítulos seguintes.

373

Page 374: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Título V

R E A Ç Õ E S C O N T R A A CIÊNCIA CLÁSSICA E S U A S INFLUÊNCIAS DOUTRINÁRIAS

Os progressos da ciência econômica realizaram-se através de uma dú-plice reação, a um tempo contra o método e contra a teoria clássica.

De início, esta reação é fruto das escolas históricas.

Enquanto os clássicos, com o seu método dedutivo, por vezes exces­sivamente exclusivista, chegaram à afirmação de leis econômicas necessá­rias, imutáveis e universais, os economistas historiadores, aplicando a ob­servação como método, julgavam ser suficiente descrever a organização econômica em seus aspectos passados e presentes.

E assim, ao mesmo tempo que o método abstrato, tomava corpo, em' Economia Política, uma concepção relativista em oposição ao absolutismo clássico: e por este meio assinalou-se a passagem da estática à dinâmica e da economia mecanicista à economia orgânica.

As características essenciais, postas em relevo pela Escola Histórica, se desenvolveram, reaparecendo nas escolas modernas sociológicas e insti-tucionalistas.

Contudo, os excessos metodológicos e os exageros da concepção his­tórica acabaram por gerar uma confusão dos conceitos da ciência crono­lógica e da lei científica: foi então que se manifestou uma segunda reação, a um tempo contra as escolas históricas, por se inclinarem elas pela su­pressão de toda a ciência econômica, e contra a escola clássica, por não ter explorado suficientemente o método abstrato e dedutivo, no estudo das leis, e por não ter sabido muitas vezes distinguir a ciência da arte.

Esta reação no sentido da abstração é obra das escolas hedonistas: distinguem a ciência da arte econômica. Separam, na ciência econômica, a economia pura e a economia aplicada. Dedicam-se a desenvolver a pri­meira — campo das leis. abstratas — reconhecendo, ao mesmo tempo, o direito da cidadania às leis concretas, no vasto campo da economia apli-

374 cada.

Page 375: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Conciliam-se, assim, os pontos de vista, até então contraditórios, dos clássicos e dos historiadores, no campo econômico científico. Põe-se um ponto final nos numerosos debates sobre o método e nas discussões em torno dos conceitos de economia política, que se refletiam sobre as doutri­nas, obscurecendo-as.

As escolas hedonistas, através de uma elaboração mais precisa da ciência econômica moderna atuaram sobre as doutrinas, não apenas for-necendo-lhes bases para um conhecimento mais exato dos mecanismos eco­nômicos, mas, ainda, liquidando as inúmeras e infindáveis discussões dou­trinárias, alimentadas tão-somente em virtude da confusão reinante na to­mada de posição dos diferentes autores: discutiam uns, colocando-se em um ponto de vista estritamente teórico, enquanto outros traziam para os debates dados concretos da economia aplicada e, finalmente, outros con­trapunham soluções práticas aos raciocínios científicos.

A partir das reações hedonistas e, marcada profundamente pela evo­lução dos fatos dos séculos XIX e XX, a ciência econômica continua os seus progressos. Inicialmente, com a "revolução keynesiana", os métodos e os horizontes da explicação econômica se transformam, se precisam, se ampliam. Etapa fundamental e decisiva que abriu caminho a uma pes­quisa cada vez mais exata da explicação da realidade. O estudo da macro­economia e o da dinâmica, o esforço para recolocar a análise econômica no seu quadro sociológico: eis os elementos essenciais do esforço moder­no da ciência econômica, que tendem a melhor explicar e a humanizar os fenômenos econômicos. Ciência e doutrina estão em constante correlação. É o que pretendem lembrar os poucos resumos que seguem sobre os as­pectos principais da ciência econômica moderna.

Page 376: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

rfl

A REAÇÃO HISTÓRICA E O ARERFEIÇOAMENTO DA ECONOMIA APLICADA

Por volta de meados do século XIX, apresentava-se a ciência clássi­ca sob a forma de um monumento ao qual não faltavam grandeza, nem homogeneidade. A partir de elementos psicológicos simples e permanen­tes, ao utilizarem sobretudo a dedução, formularam os clássicos — os clás­sicos ingleses principalmente — leis econômicas com o caráter de uma prescrição verdadeiramente imperativa.

Mas, à medida que a ciência econômica se desenvolvia, começaram alguns autores a observar um divórcio, cada vez mais acentuado, entre a teoria e a realidade: enquanto indicava aquela o que de uniforme existia nos fenômenos econômicos — prosseguindo, assim, na pesquisa de ver­dade geral e, portanto, fazendo obra de ciência, tal como foi definida de­pois de Platão, Aristóteles e Sócrates —, esta última apresentava uma di­versidade crescente de fenômenos econômicos e uma relação cada vez mais estreita entre o econômico e o social. O desenvolvimento da indústria, a partir de fins do século XVIII, fornecia ao quadro econômico concreto as­pectos inúmeros e sempre renovados.

Alguns autores são, assim, levados a imaginar que, separando-se do real, perde a economia política toda a sua força, a sua utilidade e a ra­zão de ser: esta parecia-lhes como que adormecida em um palácio de abs­trações. Útil, pois, seria tirá-la do "laboratório", onde a mergulharam as deduções dos clássicos, reconduzindo-a para a realidade através dos diver­sos caminhos do mundo econômico. E para que este mundo presente surgisse nas suas formas exatas — convencidos, tal como Comte, de se compor "a humanidade mais de mortos que de vivos" — julgaram neces­sário estudar o passado. A história e a observação se impõem em eco-

376 nomia política.

Page 377: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção I

AS FONTES PRINCIPAIS DA REAÇÃO HISTÓRICA

Esta idéia não era, no nosso campo, nova nem original. Sismondi, Saint-Simon, Ad. Müller, Baader, List, entre outros, usaram a compara­ção histórica. Mas o que de novo há na reação então surgida não é ape­nas o fato de pretender ela servir-se da História como instrumento de pes­quisa econômica, mas ainda julgar ser possível reconstruir, através da His­tória, a Economia Política.

Com a reação histórica o método histórico vai-se desenvolver de ma­neira precisa, elaborando ao mesmo tempo uma nova concepção de eco­nomia política. Inúmeras são as influências que se exercem neste movi­mento. Lembremos as principais.

Além da influência direta dos economistas que anteriormente fizeram apelo à História — de que citamos os principais —, a nova reação sofreu também a influência da escola histórico-jurídica, cujos representantes mais conhecidos eram os alemães Cavigny, Eichhorn e Puchta.1 Esta escola se assinala pela sua oposição ao cjsmopolitismo e ao perpetualismo. Refuta a idéia de um direito natural, abstrato e racional. Estuda a lei positiva, no seu estado atual e na sua formação, mostrando que os sistemas jurí­dicos têm apenas uma relativa validade: transformam-se, sem cessar, no decurso da história e modificam-se em estreita relação com elementos da vida social.

A escola histórica não se mostrou também estranha à influência de Augusto Comte. 2 Comte, não somente criticara o método dos clássicos na sua política positiva e na sua filosofia positiva, mas ainda, no volume V da sua Filosofia Positiva (1839), estabeleceu os princípios metodoló­gicos da sociologia. Estes aplicam-se, não só à Economia Política, mas também às outras partes da ciência social. Indica ser a comparação histó­rica o principal método necessário ao conhecimento dos fatos sociais. É pela comparação que se pode apreender a sua evolução: põe Comte em evidência ser essencial fazer-se o estudo dos fatos sociais de um ponto de vista dinâmico. Deve-se substituir a concepção de um sistema absoluto no tempo e no espaço, pela idéia de séries de sistemas reais,3 cuja suces­são se faz, entretanto, ao acaso, mas está sujeita a leis. No decurso dessa

1. Roscher, no prefácio do seu Gtundriss (p. 4) , reconhece essa influência. 2. K n i e s declarou que, em 1853, data do a p a r e c i m e n t o de seu principal trabalho (Die po­

li ti che Oekonomie von Standpunkte der Geschichtiichen Methode), desconhecia a filosofia^ posi­tiva de C o m t e , cujos seis v o l u m e s tinha, entretanto, aparecido entre 1830-1842. O fato é sur­preendente e, com razão, notou I n g r a m (ob. cit . , p. 232) que isso em " n a d a abona o econo­mista a l e m ã o " . M a s se Knies e certos autores não t i v e r a m conhecimento da obra de Comte, outros, dentre os historiadores alemães, conheceram-na, mostrando-se profundamente s e n s í v e i s à influência.

3. L e m b r e m o s que Saint-Simon, de quem C o m t e foi discípulo, insistira nesta idéia de evolução e de t r a n s f o r m a ç ã o ; mostrou, p r i n c i p a l m e n t e , que o direito de propriedade, longe de s er i m u t á v e l , evolui em função do progresso de acordo com as é p o c a s . . . D u r k h e i m escreveu, a propósito desta a f i l i a ç ã o , que Comte fez " u m esforço constante e metódico para constituir a c ' ê n c i a p o s i t i v a das sociedades e, de certa forma, fecundar as idéias de S a i n t - S i m o n , pondo-as e m contato com a s c o i s a s " .

Page 378: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

evolução os fatos sociais reagem uns sobre os outros. A economia políti­ca não pode, pois, ser considerada isoladamente, mas, sim, através das suas relações com as outras ciências sociais, cujo conjunto forma a Socio­logia. Em particular a moral deve fazer a sua penetração na economia política: os dois pontos de vista não podem ser dissociados. Método históri­co, dinâmica econômica, evolução orgânica, compenetração das diferentes ciências sociais: eis aí os temas principais desenvolvidos por Comte e que ressurgem na reação histórica.

Nessa mesma época a Filologia formulava também, de modo preciso, as suas leis. Na Alemanha, após os trabalhos de F. A. Wolf, no século XVIII, a Filologia — "a própria história do espírito humano", segundo a definição de E. Lamoulaye — se divide em Filologia Verbal e Filologia Real. Esta última se desenvolve vigorosamente em contato direto com a História, a Legislação e a Filosofia. Boeckel é o seu iniciador; Shoemman, Otfried, Müeller, Ernest Curtius, Wiebuhr, Drumann, Marquardt (1812-1882), lordan, Hubner, Theodore Mommsen (1821-1913), os seus prin­cipais artífices.

A Lingüística elabora também um estudo sobre os processos e função da linguagem no presente e no passado, abrangendo o seu vasto domínio, a um tempo, o campo da Filosofia e o da Fisiologia e Psicologia, da His­tória Literária e da Sociologia. Schleicher (seu "Compêndio" data de 1817) é um dos seus mais célebres representantes. A evolução das palavras, bem como o método empregado para estudá-la, constituem outros tantos exem­plos que abrem caminho para estudos do mesmo gênero no campo eco­nômico.

Na própria obra de Hegel, quer se trate da "Lógica" (1812-1816) ou da "Filosofia do Direito" (1820), encontra-se de novo esta idéia de evolução, que a reação histórica tornou o centro das suas preocupações econômicas. Nota-se, de maneira acentuada, esta influência, por exemplo, no vienense Lorenz von Stein (1815-1890), cuja obra "Sozialismus und Kommunismus des hentigen Frankreich" aparecida em 1943 — no mesmo ano do "Grundriss" do Roscher —, está impregnada, a um tempo, das idéias de Hegel aplicadas à economia e do espírito "histórico".

Outra influência, aliás mais remota, não pode deixar também de ser assinalada. Um século antes, a filosofia política, tal qual aparece no "LEs-prit des Lois", já delineava nitidamente uma concepção da sociedade nas­cida da evolução histórica e não resultante da razão abstrata. Montes-quieu possuía, em elevado grau, o sentimento da relatividade. E o persa que introduziu na sociedade da época "pour déconcerter les idées des gens, pour leur faire la suprise d'être surpris de ce qu'ils font, de ce qu'ils pen-sent et qu'ils n'ont jamais conçu différent", traz consigo a concepção da relatividade de uma civilização, "d'une confiance habituelle dans 1'ordre établi".*

4. Montesquieu, por P a u l V A L E R Y , no Tableau de la Littérature Française aux XVIIe. et XVIIIe. Siècles, P a r i s , 1939, p. 253.

Page 379: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Outra influência, mais secundária e fortuita, porém interessante de se notar, está no fato de serem naquela época — século XIX — a História e a Política duas matérias ensinadas, em conjunto, nas faculdades alemãs de Filosofia e, na maioria das vezes, pelo mesmo professor.5

A reação histórica está impregnada dessas diversas influências. Aceita as tendências principais e, ao aplicá-la à ordem econômica, as formula de modo mais científico.

Com esta reação o método histórico se desenvolve, torna-se mais exa­to e, ao mesmo tempo, fornece uma nova concepção de economia política. A idéia básica dessa concepção é a de que a estrutura econômica dos po­vos se transforma sem cessar, passando por estádios sucessivos nitidamente diferenciados entre si. A análise desta idéia fundamental indica decompor--se ela na idéia de relatividade, de evolução dos fenômenos econômicos, idéia que se contrapõe à noção de universalidade, de permanência, apreen­dida pelos clássicos.

Seção II

FORMAS DE REAÇÃO HISTÓRICA

Esta reação não se apresenta sob uma forma única; diversos são os seus aspectos. Será interessante, obedecendo à tradição, separá-los crono­logicamente, em dois grupos distintos:

— o primeiro, a que se dá o nome de grupo da "antiga escola histó­rica", desenvolveu-se de 1843 a 1853;

— o segundo, o grupo da "nova escola histórica", constituiu-se e se apresentou, com brilho, no último terço do século XIX.

§ 1." — A antiga escola histórica

Foi em 1843, com o aparecimento do "Grundriss" de Roscher,6 que a reação histórica propriamente dita teve início em economia política. Roscher assinalou a necessidade de estudar os fenômenos econômicos em relação com os de outras ciências sociais, das quais dependem. Põe em evidência a idéia de que, sendo um povo algo mais que a soma dos indi­víduos existentes, não pode a investigação econômica contentar-se tão-so­mente com ficar circunscrita ao estado presente da economia, devendo

5 . N e s s e sentido, F r a n ç o i s P E R R O U X : Cours d'Économie Politique, P a r i s , 1937-38, S u p l e ­mento, p. 53.

. ' 6. W i l h e l m R O S C H E R (1817-1896), professor em L e i p z i g e Goettingen. S u a s o b r a s : Grund­riss Zu Vorlesungen ueber die Staatswirtschait nach geschichtlicber Metbode (Esboço de um Curso de Economia pelo Método Histórico), 1843; System der Volkswirtschaft (Sistema de Eco­nomia Política), v o l . 1, 1854, vol. 2, 1860, v o l . 3, 1883; Geschicbte der Nationaloekoncmie in Deutscbland, 1874 etc .

Sobre R o s c h e r = W. H E N R Y : W. Roscher und seine Bedeutung luer die Nationaloekono-" " ' « , L e i p z i g , 1895; K. B U C H E R : W. Roscher, in Allgemeine deutsche Biographie, L e i p z i g , 1907.

Page 380: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

também remontar ao seu passado. Indispensável é recorrer à História e à comparação. Não se trata, para Rcscher, de substituir a escola clássica pela escola histórica, mas de completar a primeira pela segunda. Segundo a sua opinião, a História serve para ilustrar a teoria econômica.

Conforme observa Schmoller e notam Gide e Rist,7 Roscher, trazen­do a contribuição de noções concretas, retoma uma tradição universitária e tenta "ligar o ensino da economia política à tradição dos velhos came­ralistas alemães dos séculos XVII e XVIII".

O exclusivismo histórico é peculiar a Hildebrand e Knies. A história é por eles considerada como instrumento que permite a reconstrução com­pleta da economia política sobre novas bases. E, assim, ao mesmo tempo que a oposição feita à escola clássica se torna radical, tende a desaparecer também o caráter científico do estudo econômico.

Hildebrand (1812-1878),8 em seu livro "Economia Política do Pre­sente do Futuro" (1848), define a economia política como a "ciência do desenvolvimento econômico". Opõe-se sobretudo ao universalismo clás­sico e, rejeitando os elementos constantes da natureza econômica do ho­mem, toma em consideração quase que exclusivamente os elementos va­riáveis. Reconhece tão-somente as leis da evolução, as leis dinâmicas do desenvolvimento: nega a existência de leis econômicas naturais.

Knies 9 ataca sobretudo o perpetualismo clássico. Nega a existência de leis naturais em economia política, como também não aceita as sim­ples leis de evolução reconhecidas por Hildebrand. Para ele, cada nação possui uma evolução econômica peculiar. O estudo da economia reduz--se ao estudo de fatos isolados entre os quais não é possível apreender se­não simples analogias.

A reação histórica provocada por estes três economistas alemães vai prosseguir e se desenvolver, depois de 1870, com a nova escola histórica.

§ 2." — A nova escola histórica

A reação histórica assume com Schmoller e seus discípulos o máximo de vigor e brilho.

A) O problema da negação das leis naturais — com seus matizes sutis —, tal como tinha sido apresentado por Hildebrand e Knies, foi

7. S C H M O L L E R : Zur Litteraturgeschichte, 1888; G I D E e R I S T , op. cit., l iv. I V , cap. I, p. 455.

8. H I L D B R A N D ( 1 8 1 2 - 1 8 7 8 ) : Die Nationaloekonomie der Gegenwart und Zakunft, F r a n c -forte, 1848.

Sobre H i l d e b r a n d : I N G R A M , op. cit., p. 320 e segs. F a v o r á v e l é a opinião de I n g r a m sobre este autor: " D u v i d a m o s — escreve ele — hajam e x i s t i d o economistas alemães dotados de uma intel igência mais profunda e penetrante; está de todo isento daquela verbosidade e o b s -curidade que freqüentemente caracteriza os autores a l e m ã e s . " L e r t a m b é m H A N E Y , op. cit. , cap. X X I V , p. 485. E s t e autor não participa da opinião f a v o r á v e l de I n g r a m sobre H i l d e ­brand. Ler G. F R A N Z : Studien ueber Bruno Hildebrand, M a r b u r g , 1928.

9. K A R L K N I E S (1821-1898) publicou um tratado importante em 1853; Die Politiscbe Oekonomie von Standpunkte der Geschichtlichen Methcde (A E c o n o m i a P o l í t i c a encarada sob o prisma do método h i s t ó r i c o ) . Ler sobre Knies - H A N E Y : op. cit., cap. X X I V .

Page 381: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

abandonado. A nova escola rejeita este ponto de vista teórico, entregan­do-se resolutamente a trabalhos de ordem mais prática. Retorna ao de­terminismo de Roscher. Reconhece que os fenômenos econômicos são re­gidos por leis. Admite ser "o conhecimento dos liames existentes entre os fenômenos econômicos o objetivo da pesquisa econômica".10

Mas, para se levar a bom termo esta pesquisa, julga serem necessá­rios trabalhos preparatórios, dentre os quais trabalhos de observação e de descrição, a fim de acumular o material indispensável ao conhecimento exato dos fenômenos atuais, passados e presentes.

Uma vez que se tenha conseguido uma volumosa coleta de fatos, terá chegado — mas só então — o momento de se tentarem algumas generali­zações. O atual estado do conhecimento econômico — julga Schmoller — não permite a elaboração de leis estáticas e abstratas, tal como fizeram os clássicos, nem também de leis dinâmicas e concretas conforme preconiza­ram os autores da antiga escola histórica. Exige trabalho mais modesto e limitado, porém mais fecundo para o futuro: a observação e a descrição dos fenômenos econômicos no passado e no presente.

B) E, de fato, a nova escola histórica elabora o método histórico tendo em vista as aplicações à economia política. Neste ponto excede de muito a antiga escola, cujos fundadores, depois de haverem estabelecido as bases do método, se esqueceram, muitas vezes, de utilizá-lo em seus pró­prios trabalhos.

Duas principais tendências podem ser distinguidas na nova escola, se­gundo seja o seu método aplicado à descrição dos fatos econômicos do passado, e geralmente de um passado remoto, ou utilizado na descrição dos fenômenos econômicos relativamente recentes, insistindo então na ob­servação dos fatos presentes.

Recorrer à História propriamente dita é o método preferido pela pri­meira tendência; recorrer à História e ainda à observação direta, através da monografia e da estatística, constitui os elementos metodológicos da se­gunda tendência.

Em torno de Gustav Schmoller, professor da Universidade de Berlim, estavam reunidos os autores da primeira corrente: Lujo Brentano, Knapp, Schónberg, Buche, Max Weber, Held etc. 1 1

10. S C H M O L L E R : Volkswirtschaít, art igo no Handwoertervuch, de Conrad. 1 1 . S C H M O L L E R ( 1 8 3 8 - 1 9 1 7 ) : Zur Geschichte dei deutschen Kleingewerbkswirtschait, ein

Handwoerterbuch der Staalswissenschaíten, Iena. 1894; Grundriss der Allgemeine Volkswirts-çhattslehre ( E s b o ç o da E c o n o m i a P o l í t i c a G e r a l ) , 3.* ed., 1919, 2 vols. Um dos t r a b a l h o s mais importantes da escola histórica alemã é o Ueber einige Grundíragen des Rechts und der Volks­wirtschãít (Sobre a l g u n s problemas fundamentais de D i r e i t o e de E c o n o m i a P o l í t i c a ) , 1875.

Sobre S c h m o l l e r ler = C. B R I N K M A N N : G. Schmoller und die Volkswirtschaftslebre, Stut-tgart, 1937; T b . V E B L E N : G. Schmoller's Economics, in the Place oi Science in Modem Ci-vilisation, N o v a Iorque, 1919. V e b l e n censura os historiadores, em geral, e S c h m o l l e r , em particular, o fato de estarem impregnados da filosofia de H e g e l , fato este que os l e v o u a con­siderar a e v o l u ç ã o econômica sob uma espécie de processo v i t a l , desenvolvendo-se por uma ne­cessidade interna. Censura também o fato de apresentarem os estudos de Schmoller , r e l a t i v o s as inst i tuições e c o n ô m i c a s do presente, uma profunda fraqueza, proveniente de considerações éticas e f inal istas. L e r sobre este ponto = G a é t a n P I R Ó U : Les Nouveaux Courants de la Théorie Économique aux États Unis. Paris, 1935, fase. I, cap. I, § 2, p. 2 2 ) ; ,T. S C H U M P E T E R : G. von Schmoller, in Schmollei Jahrbuch, 1926: L u i o B R E N T A N O : D i e klassische Nationaloe-

Page 382: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E, em torno de Albert Schaeffle, vão agrupar-se aos autores da segun­da corrente: Lewis, H. Kerkner, J. Kesh, Schumacher, Adolf Weber, K. Wiedenfeld etc. 1 2

C) O método histórico introduziu na economia política a noção de relatividade, em contraposição ao "absolutismo teórico" censurado pelos historiadores aos clássicos. A nova escola pretende ainda contrapor ao cos­mopolitismo e ao perpetualismo da escola inglesa uma vida econômica di­versificada e em constante evolução.1 3

v

A uma ciência abstrata, que isola os fenômenos econômicos para me­lhor dissecá-los, contrapõe o quadro de uma vida real passada e presente, daí concluindo que o caráter orgânico da vida econômica nos obriga a con­siderar o fato econômico, não isoladamente, mas em íntima relação com os fatos das demais ciências sociais.14

A nova escola apropria-se desta declaração de Roscher: "É preciso conhecer todos os fenômenos, cujo conjunto forma a vida econômiea, e sobretudo a língua, a religião, a arte, a ciência, o direito, o Estado e a economia" ("Gründriss"). Deve-se, também, levar em conta o ponto de vista moral, cuja omissão cs historiadores censuram aos clássicos: "Nesta elevação do princípio do interesse individual à categoria de princípio supre­mo da ciência econômica, reside o segredo da sua incapacidade de contri­buir para a realização da obrigação moral que cabe ao gênero humano, Não foi sem razão que Smith foi tachado de materialista." Schmoller e

konomie, L e i p z i g . 1888; Das Arbeitsverhaeltniss gemaess dem heutigen Recht, 1877 e t c ; K N A P P : Staaliche — Theorie des Geldes, L e i p z i g , 1905; S C H . O N B E R G : Arbeitseamter: eine Aui-gabe des deutschen Reiches, ein Handbuch der politischen Oekonomie, 1870; K a r l B U C H E R : Entstehung der Volkswirtschaít, 1893 (14.* ed., 1919). L e r a crít ica ao trabalho de B u c h e r no Essai d'Introduction à l'Étude l'Économie Primitive, por O l i v e r L E R O Y ; M a x W E B E R : Protestantische Ethik und Geist des Kapitalismus, in Archiv iuer Sozialwissenschaít, 1881; Die Einkommensteur, 1872; Die deutsche Arbeiterpresse der Gegenwart, 1873 etc.

E m b o r a ocupe uma p o s i ç ã o doutrinária peculiar, é p o s s í v e l incluir, entre os d i s c í p u l o s de Schmoller, W e r n e r S O M B A R T : Der Moderne Kapitalismus, 3." ed., 1919-27, 4 vols. e t c ; V O N S C H E L L : Die theorie der sozialen, Frage, 1871.

12. A l b e r t S C H A E F F L E (1831-1904). O seu lugar entre as diferentes correntes da r e a ç ã o histórica é discutido. H A N E Y (ob. cit., p. 495) tem t e n d ê n c i a a local izá- lo entre os autores da antiga escola h i s t ó r i c a ; S P A N N (ob. cit. p. 277) o si tua, tal como nós, em um grupo es­pecial , surgido da nova escola histórica, caracterizado p e l o fato de que " d e v o t e s more attention to the economic problems of the present d a y " . Spann dá a este grupo o nome de " r e a l i s t - d e s -criptive schooí".

O b r a s p r i n c i p a i s : Bau und Leben des sozialen Koerpers ( E s t r u t u r a e V i d a do Corpo S o ­cial , 1875-78. ( N o t e - s e de maneira acentuada, nesta obra, a influência de Comte e de Spencer. Schaeffle exagera a idéia de a n a l o g i a entre o corpo p o l í t i c o e o organismo físico e a de iden­tidade entre o processo social e a evolução de corpos organizados. Li l ienfeld retomará essa concepção, exagerando-a mais a i n d a ) . Das gesellschaitliche System der menschlichen Wirts-chaft ( S i s t e m a da E c o n o m i a H u m a n a ) , 3." ed., 1873; Kapitalismus und Sozialismus ( C a p i t a l i s ­mo e S o c i a l i s m o ) , 1870. Theorie der ausschliessenden Absatzverhaeltnisse ( T e o r i a da E c o n o m i a P ú b l i c a ) , 1867; Grundssatze der Steuerpolitik, 1880; L E X I S : Volkswirtschaftslehre, 2." ed., 1 9 1 5 ; H. H E R N E R : Die Arbeiterírage, B e r l i m , 8. ' ed., 1923; J. P E S C H : Lehrbuch der Nationaloe­konomie, Freiburg, 1904-25, 5 v o l s . ; S C H U M A C H E R : Weltwirtschaítliche Studien, 1 9 1 1 ; A d o f W E B E R : Der Kampi zwischen Kapital und Arbeit, 4." ed., 1921; W I N D E N F E L D : Das Per-soenliche in Modernen Unternehmertum, 1 9 1 1 ; Adolf W A G N E R : Grundlegung der politischen Oekonomie, ein Lehr-und Handbuche der politischen Oekonomie, 2." ed., 1879 etc.

1 3 . "É com razão que a economia histórica considera os fenômenos como c o n s t a n t e m e n t e v a r i á v e i s " (A. W A G N E R ) .

14. Lorenz Stein H e r m a n apresentara de maneira clara a concepção social da e c o n o m i a OOO posteriormente d e s e n v o l v i d a por G E R S T N E R (Die Nationaloekonomie ais Gesellschaftswissens-OOC chalt, 1861).

Page 383: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

outros da nova escola histórica adotam e reforçam esta crítica de Hilde­brand, cuja procedência é, aliás, discutível.15

Seção III

A CONTRIBUIÇÃO DA REAÇÃO HISTÓRICA

A reação histórica assinala um progresso no campo do método e da concepção econômica.

§ I . ' — O método

O método histórico representa uma séria correção do método clássi­co naquilo que este tinha de excessivamente abstrato, perdendo de vista a realidade.

A História, a Estatística, a Monografia, constituem uns tantos e po­derosos instrumentos de pesquisa que doravante vão ocupar um lugar na metodologia econômica moderna. 1 6

O estudo econômico, com o desenvolvimento do novo método, ani­ma-se com outro espírito: o espírito de observação do real, a consideração dos fatos mediante o conhecimento de seus antecedentes, levando em con­ta a sua evolução e a sua relatividade.

§ 2.° — Nova concepção econômica, relativista e orgânica

A nova concepção, introduzida pela reação histórica na Economia, assenta na relatividade, a qual permite apreender as contínuas transfor­mações da realidade concreta. O sentido do relativismo vai moderar o pon­to de vista mecânico, substituindo-o por um ponto de vista orgânico da vida econômica.17

1 5 . H I L D E B R A N D , op. cit., t 31. O p o r t u n o é mostrar que os c l á s s i c o s não ignoraram, nem s u b e s t i m a r a m a importância de fatores p s i c o l ó g i c o s outros que o interesse p e s s o a l , sobre o qual insist iram. A d a m Smith insurge-se e n e r g i c a m e n t e contra o egoísmo do i n d i v í d u o , em diver­sas p a s s a g e n s da sua obra. ( V e r , em o a r t i c u l a r : Richesse des Nations, ed. G u i l l a u m i n , vol. I I . P- 45 e m a i s : R I C A R D O : Oeuvres,'ed. Guillaumin, 1847, p. 108; J. B. S A Y : Traité, l iv. I I , cap. 8; M A L T H U S : Essai sur la Population (dissertação sobre o al truísmo e a c a r i d a d e ) , Uv. 4, cap. X. F o i p o s s í v e l à E s c o l a H i s t ó r i c a empenhar-se na discussão r e l a t i v a a este ponto tão-somente por se haver colocado em um plano cientí f ico diferente daquele da E s c o l a C l á s s i c a . Conforme v e r e m o s , as escolas hedonistas v ã o j u s t a m e n t e pôr fim a semelhantes debates, ao di­vidirem a e c o n o m i a p o l í t i c a em economia a p l i c a d a e em economia pura.

16. "A história nos é útil por estender ao p a s s a d o a experiência do presente e por suprir--nos das e x p e r i ê n c i a s ' que não podemos fazer." ( V i l f r e d o P A R E T O : Manuel d'tconomie Po­litique, P a r i s , 1927, cap. I, p, 35) Cf. P a u l H U G O N : O Método'em Eoconomia Política, São Paulo, 1958.

17 . J. B. C L A R K , Rece"nt Developments in Social Sciences, 1927, resume as transformações ocorridas, na época contemporânea, no c a m p o da C i ê n c i a e da Filosofia, dizendo que a concep­ção moderna se caracteriza essencialmente pela " c r e n ç a na e v o l u ç ã o " , ou seja, p e l o predomínio da idéia do r e l a t i v o sobre a idéia do absoluto.

Page 384: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

E, contrariamente à concepção mecânica que isolava a atividade do homem do meio ambiente real, a concepção orgânica realçou a necessária e estreita solidariedade existente entre essa atividade e o meio no qual se desenvolve.

A reação histórica é, assim, levada a integrar o econômico no con­junto dos fenômenos sociológicos e a sublinhar os diversos pontos de con­tato e liames entre o fator econômico e os demais fatores, principalmente o jurídico.

Com isto, abre a reação histórica caminho para duas correntes eco­nômicas importantes: a corrente sociológica e a institucionalista.

1 . A CORRENTE SOCIOLÓGICA

Até ao século XVIII a economia política não se destacava do con­junto das ciências sociais. Quase todos os antigos autores — conforme indicamos — estudavam as questões econômicas juntamente com outros problemas sociais. A súmula das grandes obras dos cameralistas — de Somenfeld, por exemplo — é típica neste ponto: nenhuma diferenciação se faz entre as diversas ciências sociais.18

A fim de constituir a ciência Econômica, a Fisiocracia e, sobretudo, a Escola Clássica separaram os problemas econômicos propriamente ditos de outros problemas sociais e estudaram isoladamente os primeiros.

Posteriormente, certos economistas reagiram contra esta concepção clássica. Smith, Simon, Enfantin, Proudhon principalmente, introduziram em suas idéias econômicas pontos de vista sociológicos. Stuart Mill, em sua "Lógica", trata do caráter social da economia política.

Todavia, estas são tendências isoladas e fragmentárias. Em compensa­ção, a partir do último terço do século XIX, sob a influência dos gran­des trabalhos sociológicos de Augusto Comte, H. Spencer (1820-1903), Fouillée (1858-1912), Tarde (1843-1904), Duikheim (1858-1917) e da "escola sociológica", desenvolve-se e organiza-se a orientação sociológico--econômica: certos economistas admitem, então, dever a economia política integrar-se na sociologia, a fim de prosseguir na sua linha de progresso, lá não se tratava, portanto, daquela absorção inconsciente e implícita, exis­tente até ao século XVIII, mas de uma integração consciente e explícita, baseada na idéia de uma ciência social única e na crença de ser impossí­vel, ou mesmo estéril, um estudo separado dos diversos tipos de fatos so­ciais.1 9

18. Encontra-se uma e x c e l e n t e exposição, desta confusão" entre economia pol í t ica e socio­logia, no l ivro de René M A U N I E R : L'Économie Politique et la Sociologie, Paris, 1910, p. 40 e segs. E s s a obra contém uma farta bibliografia sobre a questão. Ler também, do m e s m o autor: La Sociologie Française Contemporaine, na Revista di Scienza, X I V , 2, 1909.

Sobre a sociologia e a economia polít ica e a sociologia econômica, ler também as obras * R. M A U N I E R : Intioduction à la Sociologie, 2.» ed., P a r i s , 1938; Gaétan P I R O U : Traité d'tco-nomie Politique, Introdução, T í t . I, cap. I I , p. 29 e 84; O t h m a r S P A N N : Wirtschait und Ge-sellschaít, eine dogmenkritische Unteisuchung, Dresden, 1907 etc.

_ 19. Encontra-se em a l g u n s autores modernos uma a b s o r ç ã o consciente inversa, ou seja, do sociológico pelo econômico. A idéia está latente na obra do americano Carey (Principies oi

Page 385: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esta corrente sociológica se apresenta, de início, sob a forma de "or-ganicismo". A sociedade é equiparada a um organismo, formado, como este, de um todo cujas partes diferenciadas mantêm, no seu funcionamen­to, estreita solidariedade entre si.

A idéia é exata: cameralistas, mercantilistas e os próprios fisiocratas já a haviam posto em evidência, nos séculos anteriores. Mas os partidá­rios do organicismo, levando ao extremo a comparação entre a sociedade e o organismo e entre os diversos elementos da vida econômica e os ór­gãos do corpo humano, deformaram o que de exato existe nesta analogia.2 0

Rodbertus, Schaeffle, na Alemanha, O. Lilienfeld e Novicow, na Rús­sia, Worms e Espinas, na França, e Guillaume de Freef, na Bélgica,2 1 são os principais representantes desse movimento. A sua duração foi, aliás, curta. Todavia, a doutrina solidarista de Léon Bourgeois ilustra a persis­tência desta influência.

Bem mais interessante é a atual tendência da sociologia econômica, representada principalmente por Vilfredo Pareto, Spann, Sombart e por Si-miand, discípulo de Durkheim.2 2

Sofrendo a influência, a um tempo, da reação histórica e das pesqui­sas sociológicas, e reagindo contra os excessos de individualismo e atomi-zação 23 da ciência clássica, estes economistas sociólogos julgam necessário insistir no que há de coletivo e social na vida econômica.24

O seu método não é sempre o mesmo adotado pela Escola Histórica; todavia, aproxima-se mais da indução do que da dedução. 2 5

O estudo abstrato dos fenômenos econômicos foi substituído pela ob­servação realista dos fatos econômicos e sociais que constituem a base só­lida sobre a qual assenta uma economia sociológica ou "positiva", ou ain­da "dinâmica". 2 6

Social Science) ; é retomada e d e s e n v o l v i d a , em nossos dias, part icularmente por S i d n e y S H E R -W O O D : The Philosophical Basis of Economics, in Annals of the American Academy, n.° 2, set. 1 8 8 7 e por S I G D W I C K . Scope and Method of Economic Science, 1 8 8 5

2 0 . L e r a c r í t i c a do Organicismo em P. A. S O R O K I N : Les Théories Sociologiques Con-temporaines. P a r i s , 1 9 3 8 .

2 1 . S C H A E F F L E : D a s Gesellschattliche System der Menschlicben Wirtschaft, 3 . * ed., 1 S 7 3 ; Sociale, 1 8 9 7 ; La Théorie Organique des Sociétés, Défense de VOrganicisme, 1 8 9 9 ; W O R M S : P. L I L I E N F E L D : La Pathologie Sociale, P a r i s , 1 8 9 6 ; J . N O V I C O W : Consci>nce e t Volonté La Sociologie et Víconomie Politique, 1 8 9 4 ; Organisme et Société, 1 8 9 6 ; E S P I N A S : D e s So­ciétés Animales, 1 8 7 7 ; Guilaume de G R E E F : Le Transformisme Social, P a r i s , 1 8 9 5 .

2 2 . V i l f r e d o P A R E T O , cf. op. cit. e t a m b é m : A Economia e a Sociologia do ponto de vista Científico, in Rivista di Scienza, 1 9 0 0 ; O t h m a r S P A N N : Gesellschaftslehre, 2.' ed., L e i p z i g , 1 9 2 3 ; Fundament der Volkswirtschaftslehre, 4 . * ed., Iena, 1 9 2 9 ; The History of Eco­nomics, t r a d u ç ã o da 1 9 . * ed. alemã, N o v a Iorque, 1 9 3 0 ; S O M B A R T : Handwoerterbuch der So-ziologie ( e m c o l a b o r a ç ã o com V I E R K A N D T , A . W E B E R e t c ) , Stuttgart , 1 9 3 1 ; Der Modernen Kapitalismus, 6 ." ed., Munique, 1 9 2 4 - 2 7 , 40 v o l s . ; S I M I A N D : Le Salaire, L'tvolution Sociale et Ia Monnaie, 1 9 3 2 , 3 vols . , Cours d'Économie Politique, Paris , 1 9 2 8 - 3 1 , 3 v o l s .

2 3 . E p r e c i s a m e n t e será melhor falar-se de uma reação contra o que a E s c o l a C l á s s i c a tinha de " e x a g e r o " i n d i v i d u a l i s t a , pois falso seria acreditar haverem os autores c l á s s i c o s ignorado o ponto de v i s t a s o c i o l ó g i c o . Cf. a este respeito A. M A U N I E R : Vtconomie Politique et la So­ciologie, p. 5 6 .

2 4 . "O e c on om i st a pensa e escreve para o homem. N ã o é a d m i s s í v e l supor-se que o_ es­q u e ç a . " "O objeto da c i ê n c i a econômica é d ú p l i c e : a um tempo a riqueza e o h o m e m . E i s o que é ." ( E d o u a r d M O N T P E T I T : L a Conquête Économique, Montreal , 1 9 4 2 , l i v . I I I , p . 1 1 3 e 1 4 1 . )

2 5 . S I M I A N D : Méthode Historique et Science Sociale, in Revue de Synthèse Historique, 1 9 3 0 ; La Méthode Positive en Science Économique, in Revue de Métaphysique et de Mor ale, 1 9 0 8 .

2 6 . O p . cit. e G. P I R O U : Le Vtconomie Statique à Vtconomie Dynamique, P a r i s , 1 9 3 7 .

Page 386: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Com esta corrente a economia é de novo introduzida no quadro so­ciológico. Com a institucionalista, afirma-se tal tendência, ressaltando-se ao mesmo tempo — sempre na linha da reação histórica — a importân­cia dos pontos de contato existentes entre o econômico e o jurídico.

2. A CORRENTE INSTITUCIONALISTA

O institucionalismo constitui uma das manifestações mais interessan­tes do pensamento econômico norte-americano, a partir do início deste sé­culo. Este movimento prende-se intimamente à reação da nova escola his­tórica e, sobretudo, a corrente que, com Schaeffle, centraliza sua atenção especialmente nas atuais formas da atividade econômica e, para tanto re­corre, não apenas à História, mas principalmente à observação direta, atra­vés da monografia e da estatística.

A "instituição" é definida pelos economistas institucionalistas como todo o comportamento e modo de pensar comumente generalizado.. Os autores desta corrente vão-se interessar, antes do mais, pelas instituições sociais e sua evolução.

Este, o traço, característico de uma nítida reação contra o individua­lismo e o absolutismo clássico.

Considerando-se o fenômeno econômico como dependente mais do hábito que do interesse pessoal, o pensamento institucionalista é levado, assim, psicologicamente, a ser mais intuitivo e costumeiro que lógico e racional; sociologicamente, a atribuir ao coletivo predominância sobre o individual; juridicamente, a conceber a evolução do direito como consti­tuindo uma base variável do quadro econômico: o fenômeno econômico não é imutável, mas mutável e relativo.

Concomitantemente com esta oposição ao individualismo e ao abso­lutismo, observa-se, na nova corrente, uma oposição à estática clássica. Depois de haver introduzido de novo os fatos econômicos no quadro das instituições, passa o institucionalismo à consideração do futuro para o pri­meiro plano da atividade econômica.

O pensamento clássico voltara-se de boa mente para o passado: o tra­balho efetuado é um dos principais elementos considerados pelos clássicos no valor. Os institucionalistas, ao contrário, na determinação do valor, interessam-se antes pelas conseqüências previsíveis da produção e refleti­das no mercado do que pelos elementos nela já integrados.27 Para eles a procura, em dado momento, é orientada pelas possibilidades de satisfa­ções futuras.

Este caráter dinâmico, este desejo de ação orientada no sentido do futuro, é um dos traços do institucionalismo, traço este pelo qual a cor-

27. A esta mesma idéia prende-se t a m b é m o fato de considerarem os i n s t i t u c i o n a l i s t a s , não mais ?. s imples p r o d u ç ã o no sentido clássico, mas a e f i c i ê n c i a , noção que envolve o que C A R E Y exprimiu pela p a l a v r a riqueza, ou seia — recordemo-lo —, o aumento do poder do homem sobre a natureza, em razão do aumento da produção e da redução do custo (do v a l o r ) .

Page 387: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

rente americana antes completa as teorias anteriores, no plano da teoria aplicada, do que delas se afasta.

Esta noção da consideração do futuro, noção-chave do institucionalis-mo, já havia sido entrevista pelo economista e jurista escocês Mac-Leod, cujas obras são bem conhecidas pelo americano Commons. Vamos encon­trar de novo esta noção — provinda diretamente da fonte inglesa nos economistas brasileiros J. L. de Almeida Nogueira e Cardozo de Mello Netto. 2 8 Parece-nos, pois, justificável admitir que, se realmente, de acordo com Mac-Leod, esta concepção de uma economia voltada para o futuro desenvolveu-se e enriqueceu-se geograficamente, não deixa isso de impli­car certa relação com as condições do desenvolvimento rápido e promis­sor desses grandes países do continente norte-americano. Aí temos um exemplo da constante influência exercida pelo meio e pelos fatos sobre a doutrina e a teoria.

Esta corrente institucionalista americana compreende inúmeros repre­sentantes,2 9 dentre os quais citaremos: Richard T. Ely, 3 0 discípulo de Knies e mais diretamente dos demais historiadores alemães e, por sua vez, mestre de Veblen e sobretudo de Commons; Commons,3 1 Donald W. Mc-Connel, Anton Ay Friedrich, Emmanuel Stein, Miguel A. de Capriles, Ri­chard A. Girard, T. Edward, Crowder Jr., Carl Raushenbush, Curwen Stoddard e Atkins. 3 2

Willard E. Atkins é o incentivador e um dos principais autores do "Economic Behavior (An Institutional Approach)", obra de colaboração^ na qual tomou parte a maioria dos economistas já citados. 3 3 Este livro coletivo, "Economic Behavior", é a carta do institucionalismo. Dele ex­traímos as poucas linhas seguintes em que se resumem as principais idéias dessa Escola:

28. J. L. e A L M E I D A N O G U E I R A : Curso Didático de Economia Política, ou Ciência do Valor, r e v i s t o pelo Prof. Cardozo de M e l l o N e t o . Sobre esse ponto e sobre esses autores, cf. Paul H U G O N : A Economia Política no Brasil, S ã o P a u l o , 1955.

29. T r a t a - s e de uma c l a s s i f i c a ç ã o d i f í c i l e r e l a t i v a , de um lado, por ter por objeto uma corrente contemporânea, e de outro, por h a v e r e m surgido, na própria A m é r i c a inúmeras discussões r e l a t i v a m e n t e ao fato de se filiarem, ou não a esta corrente, certos economistas, dentre os mais célebres. V e r particularmente o American Economic Review, de 1932 e 1933 ( a r t i ç o de Joseph Shafer C o m m o n s , Scott e t c ) . E i s por que dif íc i l será incluir com segurança, no insti tucionalis­mo, o grande economista J. M. C L A R K que, entretanto, parece caber, por m u i t a s de suas idéias c ientí f icas, nessa nova corrente, enquanto, por outros traços, estaria melhor situado, jun­tamente com seu pai, J . B. C L A R K , na corrente neoclássica. (Ler de J. M. C L A R K , princi­palmente, The Economics oí Overhead Costs, 1923; Social Control oí Business, 1926 e t c )

30. R. T. E L Y : Outlines oí Economics, 6.* ed. (com H E S S ) , N o v a Iorque, 1937; Intro-duction to Political Economy, 1889.

3 1 . C O M M O N S : Institutional Economics, 1934. ( E s t a obra, a principal , contém uma bio­grafia do autor.) C o m o uma das fontes doutrinárias do institucionalismo, indica C O M M O N S as obras de T h o r n s t e i n V E B L E N ( 1 8 5 7 - 1 9 2 9 ) ; Theory on Business Enterprise, N o v a Iorque, 1904; Instinct ol Workmanship, N. Iorque, 1 9 1 4 ; Place oi Science in Modem Civilisation, N o v a Iorque, 1 9 1 5 ; Vested Interest and the State ol Industrial Arts, N o v a Iorque, 1919. Sobre V E ­B L E N ler = Richard T E G G A R T : Thornstein Veblen; B E L L , J. F . : A History ol Economic Thought, N. I., 1953; G. P I R O U : Les Nouveaux Courants de la Théorie Économique aux États Unis, fase. I, cap. I, p. 11 a 69; P. H O M A N : Contemporary Economic Thought, N o v a Iorque, 1928.

32. W i l l i a r d E. A T K I N S : Gold and your Money, N o v a Iorque, 1934; Our Economic World, N o v a Iorque, 1936 e t c , e a obra de c o l a b o r a ç ã o com vários autores, adiante citada.

33. Economic Behavior (An Institutional Approach), por membros do D e p a r t a m e n t o de E c o n o m i a do Washington Square College, da U n i v e r s i d a d e de N o v a Iorque, 1939, Prefácio.

Page 388: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

"Como economista institucionalista fazemos as seguintes asserções:

1. Que o tema central da Economia deve ser o comportamento (be-havior); que esta conduta em face do preço é importante, mas somente enquanto parte da conduta econômica geral.

2. Que há espécies de comportamentos econômicos cujas causas não são tão racionais e que a escolha é determinada por uma série de valores ditados pelo costume, hábito e tradição.

3. Que o papel do costume, hábito e lei na organização e vigilância da atividade econômica é uma consideração primária na análise econômica.

4. Que os modelos de comportamento geralmente dados estão su­jeitos a mudanças; portanto, as generalizações econômicas devem ser relativas ao tempo e ao lugar.

5. Que o conceito de equilíbrio normal como base de entendimento do processo econômico deve ser afastado e que os desajustamen-tos da vida econômica não devem ser vistos como desvios de uma dada estabilidade.

6. Que a abordagem (approach) que faculta melhores resultados-na análise do fato econômico reconhece a existência de grupos eco­nômicos cujos interesses não são idênticos e os quais podem pela acumulação do poderio econômico e político desenvolver seus in­teresses à custa de outros grupos.

7. Que a análise econômica consiste no relato dos conflitos de si­tuação nos quais esses grupos nascem e da interação dos grupos uns sobre os outros na luta pelo poder e pelo controle.

8. Que na cena econômica contemporânea nos Estados Unidos o ponto de vista econômico se tornou inseparável do comporta­mento político e do social; daí, uma análise do comportamento econômico ter de vencer as barreiras habituais que têm existido entre as ciências sociais: "Economia, Política e Sociologia."

As correntes institucionalistas e sociológicas exerceram, em relação ao conhecimento econômico, uma das mais favoráveis influências.

Tornando bem nítidos os estreitos liames existentes entre o econômi­co, o jurídico e o sociológico, descrevendo a complexidade técnico-econô-mica, estas correntes dão uma visão mais realista e mais relativista da vida econômica. O professor Gaetan Pirou 34 observa, mui judiciosamente, a propósito do institucionalismo, que a contribuição dessas escolas enrique­ceu o estudo dos "quadros" da vida econômica, quadros de múltiplos as­pectos, aos quais não atribuíram os clássicos senão pouca importância e que, de então em diante, têm constituído objeto de estudos do máximo interesse para o conhecimento em nosso campo.

34. N o s s o prezado mestre, Professor G a é t a n P I R O U , fez um penetrante estudo desses Nou-veãux Coarants de la Theorie Économique aux États Unis, em uma série de obras p u b l i c a d a s como parte do curso dado sobre a matéria na École Pratique des Hautes Études à Paris, 1935; F a s e . I, Thornstein Veblen, J. M. Clark, H. L. Moore, 1936; F a s e . I I , De VÉconomie Ration-nelle à l'Économie Institutionnelle, 1937; F a s e . I I I , De VÉconomie Statique à VÉconomie Dy-namique, 1938; F a s e . I V , De VÉconomie Spontanée à VÉconomie Dirigée.

L e r i g u a l m e n t e = R. G. T U G W E L L : The Trend oi Economics, Nova Iorque, 1924; A l l i n A. Y o u n g : artigo no Quarterly Journal oi Economics, 1925.

Page 389: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Ao estudar, assim a economia política em função de seus aspectos concretos, no tempo e no espaço, estas novas correntes contribuíram, de maneira ampla e útil, para o aperfeiçoamento da ciência econômica no plano da economia aplicada.

Em compensação, quando do estudo dos "quadros" passaram ao es­tudo do "mecanismo" da vida econômica, decepcionante é a contribuição dessas correntes.

Esta crítica não atinge apenas o institucionalismo e a economia so­ciológica, mas alcança a reação histórica em seu conjunto. Os trabalhos por esta inspirados têm um caráter essencialmente descritivo, não passando de análises fragmentárias. Não chegam à elaboração de uma teoria geral do mecanismo econômico. Esta reação não conseguiu realizar uma obra de uniformização. Ao contrário, em suas manifestações extremas, a reação histórica tende a reduzir a economia política a um inventário de fatos des­conexos e sem relação entre si.

É este exagero que, por sua vez, provoca uma reação, a qual surge com as escolas hedonistas, cujos trabalhos vão constituir a economia pura.

Page 390: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A REAÇÃO HEDONISTA E A CONSTITUIÇÃO DA ECONOMIA P U R A

O que a economia política lucra com a reação histórica, no sentido do relativismo, perde no sentido do geral. O que ganha em conhecimento das instituições e dos quadros econômicos perde em elaboração teórica.

Os resultados da reação histórica em economia política nada mais são, conforme muito bem disse François Perroux,1 que "produtos semimanufa-turados a serem entregues à interpretação teórica para acabamento".

Esta interpretação teórica será essencialmente 2 obra das escolas he­donistas. Estas escolas renovam e completam a ciência clássica e, tornan­do-a mais coerente e racional, constituem uma ciência pura na Economia Política.

Seção i

A CONTRIBUIÇÃO DA REAÇÃO HEDONISTA

§ 1.° — Concepção científica de economia política

A reação hedonista baseou-se, de início, em um princípio único, aliás já formulado por Gossen,3 em 1854. É o princípio hedonista: o homem busca o máximo de satisfação com o mínimo dispêndio de esforço.

1. COUTS d'Économie Politique, já c i tado, p. 27. 2. E s t a afirmação comporta, bem entendido, m a t i z e s numerosos, os quais podem ser o m i t i ­

dos em uma exposição sumária como a presente. O estudo mais aprofundado indicará e x i s t i r e m certos autores — mesmo na reação histórica — que se esforçaram e v ê m se esforçando por cons­truir uma "teoria e c o n ô m i c a " , estando c o n v e n c i d o s de o conseguirem observando os fatos com o auxíl io do método pos i t ivo e estatíst ico. Dentre esses autores contemporâneos citaremos F r a n ­çois S I M I A N D , como o mais t ípico. A o b s e r v a ç ã o dos fatos constitui para ele tão-somente um meio de conseguir apreender as generalidades e uniformidades. Crit ica mesmo, com severidade, os economistas " h i s t o r i a d o r e s " (aos quais c h a m a de " h i s t o r i e n s - h i s t o r i s a n t s " ) , que, com seus trabalhos, se recusam a ver e a buscar, sob a d i v e r s i d a d e dos aspectos, o que de permanente e contínuo ex i s te . (Cf. sobre este p o n t o : G . P I R O U , n o prefácio a o l ivro d e H . G U I T T O N : Économie Rationnelle, Économie Positive Syntbétique, P a r i s , 1938.)

3. H. H. G O S S E N (1810-1858), Entvricklung dei Gesetze des mensclichen Verkehrs, 1854: S t a n l e y J E V O N S , na sua Theory oi Political Economy, enuncia, assim, o mesmo p r i n c í p i o : "O objeto da economia pol í t ica é determinar o m á x i m o de fel icidade que se pode ter, adquirindo o m á x i m o de Drazer com o mínimo esforço p o s s í v e l . "

Page 391: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Esta unificação inicial constitui uma abstração desejada e necessária. Desejada, porque os hedonistas sabem e admitem existirem, ao lado deste princípio, muitos outros móveis que explicam e provocam a atividade eco­nômica do homem. E se dentre esses móveis fixam o princípio hedonista, é por lhes mostrar a experiência que os traços de permanência e continui­dade que lhe. são característicos fazem dele o motivo determinante mais importante e mais geral da atividade econômica do homem de todos os tempos e de todos os países.

Além disso, essa unificação é necessária, uma vez que a finalidade atribuída pelos hedonistas à economia política é a de constituir uma ciên­cia exata. E para atingir este objetivo acham indispensável admitir a abs­tração simplificadora do homo oeconomicus, homem cuja ação se pres­supõe orientada por um móvel psicológico único.

Não pode existir ciência senão através da abstração.4

E, assim, partindo desse princípio psicológico simples, usando o mé­todo dedutivo e o método matemático, alargando o campo da pesquisa econômica teórica, ao se substituir a noção de causalidade pela de função e interdependência, chegaram o inglês Stanley Jevons, o austríaco KarI Menger e o francês Léon Walras, entre 1871 e 1874 — desconhecendo os estudos que, paralela e isoladamente, cada um deles realizava —, a con­clusões científicas muito próximas umas das outras. Com base nessas con­clusões vão ser edificadas as escolas hedonistas: a escola psicológica e a escola matemática.

E, se deixarmos de lado as teorias peculiares a cada uma dessas es­colas, para salientar tão-somente o que de essencial existe na sua contri­buição, poderemos, de maneira sucinta, circunscrevê-la às duas noções se­guintes: ligando, de início, o valor de troca ao valor de uso e assinalando a sua íntima dependência, insistindo na procura dos produtos e dos servi­ços e não mais unicamente na sua oferta, elaboram os hedonistas a noção de utilidade marginal, a qual vai constituir, desde então, a base de todas as teorias econômicas modernas. Em seguida, apreendendo as leis gerais que regem o mecanismo dos diferentes mercados econômicos — mercados de produtos, de trabalho, de capital, da terra — unificando em uma úni­ca e ampla teoria de conjunto o que os clássicos haviam separado e disso­ciado, indicando a estreita interdependência existente entre estes diferentes mercados — diferentes mas solidários entre si —, chegam os hedonistas, com Léon Walras à frente, à ampla concepção moderna do equilíbrio eco­nômico.

§ 2.° — Noção de solidariedade econômica

Sem dúvida, existem diferenças teóricas entre as duas escolas hedo­nistas. Em primeiro lugar, separa-as uma diferença de método. Uma usa

4. " F a c u l d a d e magnífica, fonte da l i n g u a g e m , intérprete da natureza, mãe das rel igiões e das f i losofias, única d i s t i n ç ã o verdadeira que, segundo o seu grau, separa o h o m e m dos brutos, os grandes homens dos m e d í o c r e s : quero dizer — a a b s t r a ç ã o " ( T A I N E ) .

Page 392: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

o método dedutivo comum, enquanto a outra emprega, sobretudo, o mé­todo matemático.5 Em segundo lugar, separa-as uma diferença, fundamen­tal, de concepção: a escola psicológica considera a procura dos produtos e dos serviços estudando especialmente a psicologia do consumidor. A sua concepção econômica é mais humana. Sua análise abrange, de preferência, os elementos qualitativos da atividade econômica. A escola matemática tem da economia política uma concepção mais mecanicista é sintética. Aliás, com esta concepção mecanicista, de um exclusivismo acentuado, as­sume atitude deliberada: seus adeptos — os teóricos do equilíbrio fa­zem conscientemente um esforço para separar a economia da sociologia, renovando a grande tradição dos primeiros clássicos, a qual, assim, refor­çam. Walras, Pareto, são tão sociológicos quanto economistas; todavia, acham que o estudo do fenômeno econômico deve ser nitidamente sepa­rado do conjunto sociológico de que faz parte. A fim de constituir uma ciência exata, dever-se-á fazer com que os esforços se restrinjam exclusiva­mente ao estudo dos preços e das quantidades, isto é, dos elementos eco­nômicos objetivos, quantitativos e exteriores ao homem.

Walras e os economistas matemáticos separam, assim, rigorosamente, a economia pura — perfeitamente científica e cujo campo é propício ao emprego do instrumento matemático — da economia aplicada e social, que comporta considerações de tempo e de lugar e implica elementos morais.

Esta distinção é, desde então, aceita. Todos os economistas hedonis­tas e a maioria dos economistas modernos, qualquer que seja a sua escola, admitem a divisão da ciência econômica em dois diferentes momentos de análise.6

5. O e m p r e g o do método m a t e m á t : c o , em E c o n o m i a P o l í t i c a , provoca discussões, dando lu­gar a inúmeros estudos. Léon W A L R A S demonstrou, de maneira peremptória, com a sua obra, a ut i l idade da a p l i c a ç ã o desse método à ciência e c o n ô m i c a . A seguinte c i t a ç ã o , extraída dos Études d'Économie Appliquée (ed. 1898, p. 6 7 ) , de W A L R A S , revela o que espera o autor com a adoção do raciocínio m a t e m á t i c o em economia p o l í t i c a : ",|e crois, quant à moi, que, lors-qu'il s 'agit d'étudier des rapports essentiel lement q u a n t i t a t i f s comme sont les rapports de v a ­leur, le raisonnement m a t h é m a t i q u e permet une analyse bien plus exacte, plus complete, p l u s claire et plus rapide que le raisonnement ordinaire et a, sur ce dernier, la supériorité du c h e -min de fer sur la d i l i g e n c e pour les v o y a g e s . M a i s je sais que beaucoup de personnes ont de la répugnance à apprendre les mathématiques, comme autrefois nombre de gens en a v a i e n t à monter en chemin de fer; et je suis on ne peut plus reconnaissant a ceux de mes confrères et c o l l è g u e s qui prennent soin d'amener, ao moyen d'un v é h i c u l e quelconque, ces personnes dans les p a y s nouveaux qu' i l s 'agit por nous d'explorer et de coloniser, jusq'à un jour viendra oü les anciens modes de locomotion céderont completement la place aux n c u v e a u x . "

Q u a l q u e r que seja a opinião que se adote r e l a t i v a m e n t e aos resultados que, d i r e t a m e n t e , o método m a t e m á t i c o nos h a b i l i t a a obter em c i ê n c i a econômica, i n e g á v e l é, para todos, d e v e r - s e --lhe, em grande parte, o espírito científ ico que imprimiu à economia polít ica as c a r a c t e r í s t i c a s de exat idão, precisão e o b j e t i v i d a d e . Sobre o m é t o d o m a t e m á t i c o em economia p o l í t i c a , ler = E. B O U V I E R : La Méthode Mathématique en Économie Politique, Paris, 1901; F. D. S I M I A N D : La Méthode Positive en Science Économique, art. c i t . ; J. M O R E T : L'Emploi des Mathémati­ques en Économie Politique, Paris , 1 9 1 5 ; F. D I V I S I A : L'Économie Rationnelle, P a r i s , 1928 í P r e f á c i o de C o l s o n ) ; B. N O G A R O : La Méthode de VÉconomie Politique, Paris , 1939; R I E -B E S S E L : Wirtschaft und Mathematik in Archiv iuer matemathische wir*schaitliche und sozia-le e Forschung, vol . I I I , 1937; P. B O V E N : Les Applications Mathématiques à VÉconomie Po­litique, L a u s a n n e , 1912.

6. W a l r a s definiu, assim, a economia pura no prefácio dos seus Éléments d'Économie Po­litique Purê, p. X L : " L ' É c o n o m i e Pol i t ique Pure est essentiel lement la theorie de la d é t e r m i -nation des prix sous le regime hypothétic de libre concurrence absolue". É, pois, a c i ê n c i a que estuda as relações naturais que se estabelecem entre os diferentes elementos da riqueza social , quando não intervém o homem, um ato de vontade, para modificar as condições destas r e l a ç õ e s . (Encontrar-se-á o p e n s a m e n t o de W a l r a s , sobre este ponto, exposto com muita clareza por E. A N T O N E L L I em seus Príncipes d'Économie Pure, P a r i s , 1914.)

Page 393: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A concepção da escola matemática é, pois, mais mecanicista e tam­bém mais sintética. "O equilíbrio econômico" aparece como uma síntese majestosa do mecanismo econômico, apoiando-se, a um tempo, sobre a oferta e a procura, sobre os gostos e os óbices opostos à sua satisfação, so­bre o prazer e o esforço.

Mas, sejam quais forem as diferenças que separam as duas escolas, a reação hedonista forma um todo, subjacente a,esta renovação das preo­cupações teóricas, que Gide e Rist, com razão, qualificam como "talvez o fato mais notável destes últimos anos", 7 do ponto de vista da ciência eco­nômica.

A teoria da utilidade marginal, a concepção do equilíbrio econômico, constitui, sem dúvida, dentre inúmeras outras, contribuições preciosas que enriquecem a economia política. Mas os hedonistas, a par de teorias no­vas, insuflam ainda um novo espírito à pesquisa econômica.

Este novo espírito é que leva à concepção de economia política como ciência exata, concepção essa à qual nos referimos e a cujo respeito ex­primiu-se Walras desta forma: "A economia política só será ciência no dia em que se restringir a demonstrar aquilo que, até hoje, se tem limitado a afirmar gratuitamente."

Este novo espírito está impregnado da preocupação de exatidão, bem como de objetividade e verdade; a ciência econômica foi depurada, pela reação hedonista, de preocupações filosóficas, éticas ou práticas.

V. Pareto escreveu, em seu "Cours d'Économie Politique": "O econo­mista pode propor-se unicamente a pesquisar as uniformidades apresenta­das pelos fenômenos, isto é, suas leis, sem ter em vista uma utilidade di­reta qualquer, sem se preocupar de modo algum com o fornecer receita ou preceitos, sem buscar mesmo a felicidade, a utilidade ou o bem-estar da humanidade ou de uma de suas partes. O objetivo é, neste caso, ex­clusivamente científico. Deseja-se conhecer, saber, nada mais."

Esta é a finalidade a que se propõem os hedonistas. E, graças a este esforço de exatidão e objetividade, fizeram com que o conhecimento econô­mico se tornasse geral e indiferente: com isto renovaram a ciência econô­mica e constituíram a economia pura.

Seção II

PRINCIPAIS REPRESENTANTES DAS ESCOLAS HEDONISTAS

Numerosos são, em todos os países, os representantes das escolas he­donistas. Citemos os principais:

A e c o n o m i a a p l i c a d a e s t u d a o s f a t o s e c o n ô m i c o s r e a i s : i n t r o d u z n a e c o n o m i a p u r a o s d a d o s c o n c r e t o s e v a r i á v e i s d a r e a l i d a d e e d e t e r m i n a a s i n f l u ê n c i a s q u e e s t e s e x e r c e m n o f u n c i o n a m e n ­t o d a s l e i s d a e c o n o m i a p u r a .

7. O p . c i t . , p . 614.

Page 394: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

1) Os precursores: Abade Condillac, cujo notável livro, aparecido em 1776 ("Le Commerce et le Gouvernement Consideres relativement Tun à 1'autre"), já contém os germes da teoria psicologógica do valor; Cournot, que inaugurou a economia política matemática, com suas "Recherches sur les Principes Mathématiques de la Theorie des Richesses" (1838); o enge­nheiro francês Dupuit, autor das duas "Mémoires", publicadas respectiva­mente em 1844 e 1849, as quais contêm um primeiro esboço da teoria da utilidade marginal; Lloyd, que escreveu a obra "Lectures on the Notion of Value" (1834); Gossen, a quem já fizemos menção.

2) Os fundadores: o francês Léon Walras, 8 que ocupa um lugar de primeira plana a cuja obra genial constitui uma sólida base para as escolas hedonistas e, particularmente, a escola matemática; V. Pareto, Stanley Je-vons. Karl Menger, fundador da escola austríaca.9 Walras e Pareto, tendo

8. Léon W A L R A S nasceu em E v r e u x ( F r a n ç a ) , em 1834. O c u p o u , de 1870 a 1892. a cá­

tedra de E c o n o m i a P o l í t i c a na U n i v e r s i d a d e de L a u s a n n e . F a l e c e u em 1910.

Suas obras p r i n c i p a i s : entre 1859 e 1868, escreveu W a l r a s os estudos sobre a E c o n o m i a A p l i ­cada e a E c o n o m i a P r á t i c a , dentre os quais mencionaremos = L'Économie Politique et la Jus­tice, Paris , 1860; Theorie Critique de VImpôt, Paris , 1861; Les Associations Populaires de^Con-sommation, de Production et de Crédit, Paris, 1865; Recherche de VIdeal Social — Theorie Gé-nêrale de la Societé, Paris , 1868. Entre 1873 e 1896 apareceram seus estudos de economia pura: Principes d'une Theorie Mathématique de VEchange, 1873 ( M e m ó r i a apresentada à A c a ­demia de C i ê n c i a s M o r a i s e P o l í t i c a s ) : Equations de VEchange, 1875; Equations de la Produc­tion, Équations de la Capitalisation et du Crédit, 1876; Éléments d'Économie Politique Pure, 1877 (compreende as três memórias p r e c e d e n t e s ) ; Theorie Mathématique du Bi-méthallisme; Theorie Mathématique du Billet de Banque, 1879; De la Fixité de Valeur de VÉtalon Moné-taire, in Journal des Économistes, 1882; La Theorie Mathématique de la Richesse Sociale, 1883 (compreende as Mémoires de 1873, 1875, 1876 e 1879 e a teoria dos preços das terras e da sua desapropriação pelo E s t a d o ) ; D'une Méthode de Régularisation de la Variation de la Valeur de la Monnaie, in Bulletin de la Societé Vaudoise des Sciences Naturelles, vol . X L , 1885; Un Économiste Inconnu — H. H. Gossen, in Journal des Économistes, 1885; La Theorie de la Monnaie, 1886; Théorème de 1'UtiIité Maximum des Capitaux Neufs, in Revue d'Économie Po­litique, 1889; Observation sur le Príncipe de la Theorie des Prix, in Revue d'Économie Politi­que, 1890. E n t r e 1896 e 1908 publicou os estudos de economia aplicada e sccial, dos quais c i t a ­r e m o s : Études d'Économie Sociale, 1896 (formados por estudos separados sobre o ideal social , o método, a propriedade e o p r o b l e m a t r i b u t á r i o ) ; Theorie du Libre-échange, in Revue d'Écono-mie Politique, 1897; Études d'Économie Appliquée, 1898; La Paix par la Justice Sociale et le Libre-échange, 1907 etc.

Sobre Léon W a l r a s e sua obra ler = P A R E T O : L. Walras, artigo na La Gazette de Lau­sanne, 1909; A N T O N E L L I : L. Walras, artigo na Revue d'Histoire des Doctrines Économiquès et Sociales, 1910; A N T O N E L L I : Principes d'Économie Pure, Paris , 1914; R. A. M T J R R A Y : Le-çons d'Économie Politique suivant la Doctrine de 1'École de L.xusanne (trad. de B E V E R S ) , Pa­ris, 1920; Fr. B O M P A I R E : Du Príncipe de Libosté Éconcmit íe dans Voeuvre Cournot et dans celle de 1'École de Lausanne, Poit iers, 1931; G. J I R O U : Les Theories de VÉquilibre Économi­que, Paris , 1934 etc.

9. V i l f r e d o P A R E T O , tendo pai i tal iano e m ã " francesa, nasceu em Paris, em 1848. Em 1869 defendeu, na F a c u l d a d e de T u r i m , a tese L'Équilibre des Corps Solides, para doutoramen­to em C i ê n c i a . Em 1893 sucedeu a W a l r a s na cátedra de E c o n o m i a P o l í t i c a da F a c u l d a d e de Lausanne. F a l e c e u em 1923.

Suas obras principais são as seguintes = Cours d'Économie Politique, Lausanne, 1896-97; Les Systèmes Sociales, 1901-02; Manuel d'Économie Politique, 1906; Traité de Sociologie Gé-nérale, 1916.

Sobre P a r e t o e sua obra, ler = G. H. B O U S Q U E T : V. Pareto; G. P I R O U : Les Theories de VÉquilibre Économique ( W a l r a s e P a r e t o ) , Paris , 1938. Para uma bibl iografia sobre ?.s obras de Pareto, ver = G. R O C C A e F. S P I N E D I : in Giornale degli economisti e revista di statis-tica, 4 . a série, vol. L X I V , 1924, p. 144-53; W E I N B E R G E R : Matematische Volkswirts-chaftslehre, L e i p z i g , 1930; A l f r e d o C A P P A : V . Pareto, T u r i m , 1924; S E L L I G M A N N : art igo sobre Pareto e Pantaleoni , in Political Science Quarterly, 1930. L e r igualmente, as obras do professor N o g u e i r a de P a u l a , em particular Teoria Racial dos Sistemas Econômicos, Rio, 1932.

S t a n l e y T E V O N S (1835-1882), professor no University College de 1876 a 1880. Suas obras principais — Theory of Political Economy, 1871; Money and Mecanism of Exchange, 1875; The State in relation to Labor, 1882 etc.

K a r l M E N G E R (1840-1921), professor de E c o n o m i a P o l í t i c a na F a c u l d a d e de V i e n a . S u a s obras = Grundsaetze der Volkswirtschaftslehre, 1 8 7 1 ; Untersuchungen ueber die Méthode der Sozialwissenschaften und der politischen Oekonomie inspesondere, 1833; Die Irrtuemer des His-torismus, 1884; La Monnaie, Mesure de la Valeur, in Rev. d'Écon, Pol, Paris , 1892 etc.

Sobre M E N G E R e sua obra - Collected Works of Karl Menger, p u b l i c a ç ã o da London School of Economics, com uma introdução de F. H A Y E K , 1936; P E R L M U T T E R : K. Menger

Page 395: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ocupado a cátedra na Universidade de Lausanne, formam, com seus discí­pulos, a Escola de Lausanne.

Citemos, em seguida, dentre os hedonistas principais: Boehm-Bawerk, um dos mais conhecidos dentre os hedonistas austríacos; von Wieser, Zu-kerkandl, Launhart, Schumpeter, Sax, Philippovich, Schonfeld; os italia­nos Pantaleoni, Graziani, Barone; os franceses Charles Bodin, Aftalion, Aupetit, Antonelli, Rueff, Divisia; o sueco Wicksell; o holandês N. G. Pierson; os brasileiros J. F. Kafuri, Nogueira de Paula, Djacir Menezes, Otacílio Novais da Silva, Jorge Kingston, Authos Pagano; o argentino Luiz Roque Gondra; o guatemalteco Gomes Robles; o português Antônio Osó­rio. Entre os anglo-saxões contam as escolas hedonistas com numerosos e ilustres representantes: Marshall, Seligman, I. Fischer, Fetter, Carver, Hob-son, Edgeworth, J. B. Clark, Patten, Walker etc. 1 0

und oesterreichsche Schule dei Nationaloekonomie, 1902; F. von W I E S E R : K. Menger, in Neue oesterreichische Biograíie, 1823 ( S e ç ã o 1, v o l . 1 ) ; H. S. B L O C H : La Théotie des Besoins de K. Menger, Paris , 1937 (excelente estudo sobre um dos aspectos menos aprofundados da obra de M e n g e r , precedido de um prefácio do Prof. P i r o u ) .

10. E u g e n von B O E H M - B A W E R K ( 1 8 5 1 - 1 9 1 5 ) , professor d a U n i v e r s i d a d e d e V i e n a , co­nhecido sobretudo pela sua teoria do juro e do c a p i t a l : "O juro é o preço do t e m p o " .

Suas obras principais = Kapital und Kapitalzins, Innsbruck, 1884-89; Grunduege der Theo-rie des wittschaltlichen Gueterwerts, 1886; Fr. von W I E S E R : Ursprung und Hauptsaetze des wirtschaftlichen Werts, V i e n a , 1884; Der natuerliche Wert, V i e n a , 1889; Theorie der gessels-chaftlichen Wirtschaft, 1914 etc.

Z U C K E R K A N D L : Zur Theorie des Preises mit besonderer Beruecksichtigung der geschicht-lichen Entwicklung der Lehre, L e i p z i g , 1889.

S C H U M P E T E R : Wesen und Hauptinhalt der theoretischen Nationaloekonomie, L e i p z i g , 1908; F r a n ç o i s P E R R O U X : La Pensée Économique de Schumpeter (precediuo de uma v a s t a in­t r o d u ç ã o ) , P a r i s , 1935.

L A U N H A R T : Mathematiche Begruendung der Volkswirtschaitslehre, 1885. V O N P H I L I P P O V I C H : Grundriss der poliiischen Oekonomie, 9." ed., T u e i n g e n , 1911, vol . I. S A X : Wesen und Auigaben der, Nationaloekonomie, V i e n a , 1884. L. S C H O E N F E L D : Grenznutzen und Wirtschaítsrechnung, V i e n a , 1924. N. G. P I P E R S O N : Leerbocek, 1884. P A N T A L E O N I : Príncipes d'Économie Pure, 1889. C h a r l e s B O D I N : Príncipes de Science Économique, Paris, 1926. A. A F T A L I O N : Les Trois Notions de la Productivité et les Revenus, in Revue d'Économie

Politique, 1 9 1 1 ; L'Or et sa Distribution Mondiale, Paris. 1932; L ' O r et la Monnaie, Paris, 1938 etc.

A U P E T I T : L a Monnaie, Paris , 1900. A N T O N E L L I : op. cit. D I V I S I A : Économique Rationelle, 1928 etc. M A R S H A L L : op. cit. S E L I G M A N N : op. cit.

F. A. F E T T E R : Principies of E c o n o m i c s , 1904; Relations between Rent and Interest, 1904 etc.

T. N. C A R V E R : The Théories of Wages Padjusted to Recent Théories of Value, in Q. J. Econ,, 1894; Distribution oí Wealth, 1904 etc.

I r v i n g F I S H E R : Mathematical Investigation in the Theory of Appreciation and Interest, 1896; Value and Prices, 1892; The Nature oí Capital and Income, 1906 etc.

J. B. C L A R K : The Philosophy oí Wealth. 1887; Di^ribution oí Wealth, 1887; Distribution of Wealth, 1899; The Essential oí Economy Theory, 1907 etc.

S. N. P A T T E N : Dynamic Economics, 1892; Theory oi Social Forces, 1896; Theory oí Ptos-perity, 1902 etc.

F r a n c i s A m a s a W A L K E R : Political Economy, N o v a Iorque, 1883; M o n e y , Londres, 1878; First Lesson in Political Economy, N o v a Iorque, 1889.

A U S P I T Z : Untersuchungen ueber die Theorie des Preises, L e i p z i g , 1889. A n t ô n i o O s ó r i o : A Matemática na Economia Pura, L isboa, 1911 ( 1 ° v o l . : A Troca) ( E d i ç ã o

francesa com um prefácio de P a r e t o ) . ,

J. F. K A F U R I : Notas de Economia Política, in Noções de Economia Política e Noções de

Finanças, de Porto Carreiro. Rio. 1935.

395

Page 396: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A CONTRIBUIÇÃO DA E S C O L A S U E C A À ANÁLISE ECONÔMICA

Trata-se de fato de uma "escola", mas de uma escola com caracterís­ticas bastante particulares. A publicação de suas obras se estendeu de 1893 até nossos dias. Seu chefe foi Knut Wicksell, mas suas idéias foram retomadas — tendo sido criticadas e ampliadas — por certo número de compatriotas, notadamente Lindhal, Myrdal, Lundberg, Ohlin, críticos mas discípulos, pois todos eles se serviam do instrumento de trabalho proposto por Wicksell, isto é, a noção de equüíbrio monetário.

Johann Gustaf Knut Wicksell (1851-1926), economista, professor em Lund, foi ele próprio discípulo de Bõhm-Bawerk, da escola austríaca e de Léon Walras. De 1893 a 1906 suas obras apareceram em alemão: Valor, Capital e Renda, Iena, 1893. Estudos em Teoria das Finanças, 1896; depois, foram traduzidas para o inglês: Interest and Prices, escrito em 1898 e traduzido em 1936; Lectures on Political Economy, escrito em 1918 e traduzido em 1934 (vol. I: General Theory: contém os elementos mais

1. A respeito da Escola Sueca: C. G. U H R , Economic Doctrines oí K. Wicksell, B e r k e -ley, Cal i fórnia. 1962; K. W I C K S E L L : A Centennial Evaluation, American Economic Review X L I , n." 5, dez. 1S51; K. G. L A N D G R E N : Economic in Modem Sweden, W a s h i n g t o n , 1957; D O N P A T I N K I N , Money, Interest and Prices, 1965; Le Process Cumulatii Wicksellien, Eco­nomic Journal, dezembro, 1952; E. C L A A S E N , Monnaie, Revenu National et Prix, P a r i s , 1967; P A Q U E T , Le Conílit Historique entre la Theorie des Débouches et le Principe de la Demande Eíiective, P a r i s , 1952; A. M A R C H A L , Les Principaux Courants de la Pensée Économique Sué-doise Contemporaine, Revue d'Économie Politique, 1947, n.° 1; B. O H L I N , Some Notes on the Stockolm Theory, Economic Journal, 1937; B. T H O M A S : La Doctrine Monétaire de Davidson, Economic Journal, maio 1935; K. W I C K S E L L , 1851-1926, in Economic Journal, X X X V I .

P r i n c i p a i s obras dos economistas s u e c o s : K. W I C K S E L L : Lecture on Political Economy (Introduction de L. R o b b i n s ) , Londres, 1935, vol . I, General Theory, 1934, vol . I I ; Money and Crédit, 1955 (1.* ed. 1898); Interest and Prices (Introd. de B. O H L I N ) , Londres, 1936, p u b l i c a d o em 1898; Valeur, Capital et Revenu, Iena, 1893; T i e Iníluence oí the Rate oí Interest on Price, E c o n ô m i c a , 1907. O essencial das idéias de W i c k s e l l está resumido neste artigo. G. M Y R ­D A L : L'Équilibre Monétaire, Paris . 1950; Une Économie Internationale, P a r i s , 1958. Planiíier pour Développer, Paris , 1963; Theorie Économique et Pays sous-developpés, P a r i s , 1959; E. L I N D H A L : Études sur la Theorie de la Monnaie et du Capital, (ed. sueca, 1929), P a r i s , 1949 (Préface A. M a r c h a i ) : The Means of Monetary Policy, 1930. B E R T I L O H L I N : Some Notes on the Stockolm Theory of Savings and Investiments, E c o n o m i c Journal, março e junho, 1937, X L V I I ; Readings in Business Cycle Theory, 1944; Interregional and International Trade, 1933; E R I K L U N D B E R G : Studies of the Theory of Economics: Expansion, Londres, 1937 (traduct. française do 1 ' I S E A ) .

Representantes britânicos: R. G. H A W T R E Y : Currency and Crédit, Londres, 1919 (trad. franç., P a r i s , 1935). D. H. R O B E R T S O N : Essays in Monetary Theory, Londres, 1840.

Page 397: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

interessantes do seu pensamento. Vol. II: Money and Crédit, 1935). O essencial de suas idéias se encontra resumido no seu artigo publicado na revista Econômica, de 1907, sob o título The Influence of the Rate of In­terest on Prices.

Suas idéias permaneceram ignoradas por muito tempo, à exceção de uma minoria de especialistas suecos. Elas foram, aliás, eclipsadas até 1920 por aquelas de seu compatriota Cassell. Wicksell, homem tímido cujos escritos muitas vezes se ressentiram de uma forma obscura — deverá sua notoriedade e sua influência às obras de seus discípulos que vão permitir que as concepções fundamentais de seu mestre inspirem a teoria econômi­ca a partir de 1930. É nesse sentido que J. Marchai e Lecaillon escrevem que Wicksell é o "fundador da análise moderna da moeda" e que Keynes reconhece que "Wicksell foi o primeiro a mostrar que a influência da moe­da sobre os preços atua através da taxa de juros e, dessa maneira, sobre o resto". Não esqueçamos que Keynes adotou o problema levantado por Wicksell: da igualdade necessária entre o investimento e a poupança em caso de equilíbrio.

Seção I

TEORIA DO JURO DE K. WICKSELL

Esta teoria resulta da observação da realidade econômica: Wicksell observa, com efeito, que o nível dos preços entre 1873 e 1895 baixou pro­gressivamente, enquanto a taxa de juros baixou também. Singularidade que representa um desafio às explicações dos clássicos. Estes estimam que a baixa do juro acarreta uma expansão do crédito, então, um acréscimo de poder aquisitivo e, em conseqüência, uma alta dos preços. É para expli­car tal anomalia da baixa dos preços acompanhada duma baixa de juro, que Wicksell elabora sua teoria das divergências das taxas de juro como causa do movimento dos preços.

Esta teoria repousa sobre as relações entre a moeda, a taxa "natural" do juro e o movimento do nível geral dos preços; ela representa a princi­pal contribuição de Wicksell ao problema do equilíbrio econômico geral.

Em resumo, trata-se do seguinte: Wicksell estabelece uma diferença entre a taxa natural e a taxa efetiva do juro.

A taxa natural é a taxa "real", que corresponde à "produtividade fí­sica marginal do processo indireto de produção". Esta taxa natural se identifica ao lucro antecipado resultante do uso de um empréstimo mone­tário. É representado pelo rendimento monetário que os empreendedores pensam obter do investimento dos capitais emprestados. Wicksell se serve aqui da noção de antecipação — que será retomada e desenvolvida pelos seus princípios.

Quanto à taxa efetiva — ou taxa do mercado, ou taxa bancária — é aquela recebida pelos credores institucionais.

Page 398: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Se os bancos ou os credores emprestam a taxas superiores ou inferio­res à taxa natural, o equilíbrio econômico é destruído. Ele só será resta­belecido quando tiverem atuado os mecanismos seguintes:

Se nós nos colocarmos no caso da taxa de juros efetiva inferior à taxa natural, haverá diminuição de poupança e aumento das despesas. Os em­preendedores, aproveitando a situação aumentarão a produção, o que acar­retará um aumento do capital de investimento. Estas despesas de capital aumentadas, somadas às despesas aumentadas pelo consumo, provocam uma elevação do nível dos preços.

O processo inverso se dá no caso de uma elevação da taxa de juro efetivo superior à taxa natural. Os empreendedores, neste caso, não pode­riam investir porque a produtividade do capital seria inferior ao seu custo e disto resultaria uma perda.

O que nos leva a constatar que a qualquer momento existe certa taxa média de juro, fazendo com que o nível geral dos preços tenha uma ten­dência à alta ou à baixa.

E o equilíbrio monetário provém, para Wicksell — como já observara Bõhm-Bawerk — da igualdade entre a taxa natural e a taxa efetiva. Se tal igualdade não se realizar o desequilíbrio será geral.

Esta teoria das divergências da taxa de juros como causa dos movi­mentos dos preços de longa duração é a base de toda a teoria Wicksel-liana.

Tal teoria aparece como uma síntese da produtividade marginal aus­tríaca e do equilíbrio geral de Walras, assim como uma nova maneira de encarar o problema, maneira puramente teórica, cuja finalidade é de ex­plicar os movimentos dos preços de longa duração.2

Wicksell se separa então dos clássicos — é levado a criticar Ricardo e Say — cuja "lei das saídas" ele recusa — uma vez que não admite mais a ação automática de um mecanismo equilibrador após a aparição de um desequilíbrio. Bem ao contrário, ele acredita que os desequilíbrios entre os investimentos e a poupança tendem espontaneamente a se agravar confor­me um processo cumulativo de alta e de baixa, processo que só uma polí­tica monetária e bancária apropriada poderá fazer cessar.

Seção II

A RENOVAÇÃO E A COMPLEMENTAÇÃO DO CONCEITO DO EQUILÍBRIO MONETÁRIO WICKSELLIANO POR MYRDAL

Para Wicksell, o ponto central da explicação de uma modificação na relação entre poupança, investimento, consumo e produção é a taxa de

- • 2. Se, entre 1873 e 1895 os preços baixaram é porque, se^undi W i c k s e l l , a taxa e f e t i v a

do juro — embora tenha sido muito baixa — era, na realid-fie s -p?».or à taxa real.

Page 399: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

juros, taxa que representa a relação de troca entre os bens em dois mo­mentos diferentes no tempo. O equilíbrio não se restabelece enquanto a taxa efetiva não coincide com a taxa natural.

Enquanto Wicksell tenta mostrar como, em função de previsões, um estado de desequilíbrio pode resultar de um estado de equilíbrio, Myrdal se empenha em revelar as tendências da atividade econômica orientada para a alta ou para a baixa, por confronto com um esquema abstrato re­presentando o estado de equilíbrio que é também um mero instrumento de trabalho.

Wicksell parte de três condições de equilíbrio:

1 — a taxa efetiva é igual à taxa natural (taxa, lembremos, que corresponde à produtividade técnica marginal do capital real);

2 — a oferta de poupança é igual à procura de poupança; 3 — um nível estável dos preços existe no mercado das mercadorias.

1 — Quanto à primeira condição, Myrdal propõe substituir o concei­to de uma produtividade física por aquele de uma produtividade em valor de troca, pois, escreve ele, "a produtividade depende dos preços relativos, que não podem ser supostos estáveis, e é impossível conceder valores de troca relativos independentes das unidades monetárias absolutas nas quais cs co .tratos de crédito são concluídos" (O Equilíbrio Monetário, p. 63).

A taxa de produtividade em unidades monetárias é chamada renda do capital real; ela pode ser encarada, por um lado, segundo as rendas e os custos que intervém durante o período considerado, isto é, em termos de medidas tomadas no fim do período, ou ex-post, por outro lado, em rela­ção às rendas e custes antecipados, isto é, em termos de ação projetada no início do período, ou ex-ante.

A importância das antecipações é fundamental no sistema de Myrdal: "A contribuição essencial deste estudo, no caso de existir, é provavelmen­te de ter inaugurado os conceitos ex-post e ex-ante e de ter sublinhado o quanto era importante pôr em evidência, com clareza, o período contido implicitamente na análise monetária." (O Equilíbrio Monetário, cap. III, § 10, p. 58).

O rendimento do capital real aparece como a relação do produto lí­quido de um bem capital e do seu valor em capital na época do cálculo. Wicksell raciocinava em termos de valor de capital dos investimentos pro­jetados. Myrdal raciocina em termos de capital real existente. Assim sen­do, a condição de equilíbrio implica a igualdade do valor do capital e do custo de reprodução do capital existente (soma de antecipações previstas). A fórmula de equilíbrio apresenta a vantagem de ser de mais fácil mane­jo, mas várias dificuldades permanecem quando se trata de apreciar os va­lores de capital ou quando se deve considerar diferentes taxas de juros no mercado. Além disso, esta condição significa que a margem do lucro é nula e que não há novo investimento. Ora, em dinâmica é necessário uma margem de lucro suficiente para que o investimento realize um equilíbrio, 399

Page 400: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

equilíbrio conforme a segunda condição formulada por Wicksell, a saber, que a oferta da poupança seja igual à procura da poupança.

2 — Precisemos inicialmente uma definição: o investimento, ou pro­cura de poupança, significa investimento real bruto, isto é, tanto reinves-timento quanto novo investimento.

Myrdal formula, assim, a segunda condição: "A taxa de juros é nor­mal quando ela realiza a igualdade entre o investimento real bruto e a pou­pança aumentada pelo total da modificação de valor antecipado do capi­tal real."

3 — Quanto à terceira condição, isto é, a existência de um nível es­tável dos preços no mercado das mercadorias, as condições de equilíbrio são, para Myrdal, independentes do desenvolvimento do preço. A realiza­ção das condições do equilíbrio monetário requer o valor mais estável possível de um nível de preço ponderado em função da rigidez dos preços e de sua importância para o investimento.

Myrdal se pergunta, em seguida, se a noção de equilíbrio, tal qual ele a reformulou, pode servir de norma política. "O objetivo que desempe­nhou um papel decisivo na adoção do equilíbrio monetário como norma de política é o desejo de eliminar completamente ou de atenuar o ciclo dos negócios." Myrdal observa que, de um lado, um ciclo pode se dar en­quanto o equilíbrio monetário é mantido e que, de outro lado, a perma­nência de um equilíbrio monetário não é apenas um problema de política monetária mas também de política econômica geral.

Buscando outras normas que as da política de "crédito isolado", Myr­dal considera a da estabilização dos preços, mas mostra que ela não pode ser obtida sem destruição do equilíbrio e que o ciclo econômico não é eliminado por esta política.

Uma outra norma é que a política monetária se esforça para manter o emprego máximo dos meios de produção, mas conduz a movimentos de preços cumulativos ou exige, dos poderes públicos, uma regulamentação muito extensa dos mercados.

Myrdal menciona, finalmente, a norma de Davidson, segundo a qual o nível dos preços deveria variar no sentido inverso das transformações da produtividade. Mas o problema da política monetária não pode ser tra­tado separadamente das outras políticas econômicas, pois uma combinação diferente de todos esses fatores deve dar origem a uma política monetária diferente, embora a mesma norma geral tenha sido fixada.

Na sua obra "O Equilíbrio Monetário" Myrdal reconhece que ele "teve mais sucesso na descoberta dos problemas em suspenso do que na solução dos mesmos"; mas a análise dos fundamentos e das omissões da teoria de Wicksell constitui "um dever positivo a cumprir". Foi assim que se desen­volveu o pensamento econômico da escola sueca: partindo dos princípios estabelecidos por Wicksell, ela precisou e aperfeiçoou continuamente seu

400 valor e seu alcance.

Page 401: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A contribuição original de Myrdal está, antes de tudo, na inclusão das antecipações no sistema monetário, fator que será retomado por Key­nes na sua "Teoria Geral do Juro e da Moeda". É o que reconhece impli­citamente Keynes no prefácio da edição inglesa de sua Teoria Geral: "uma economia monetária é essencialmente uma economia onde a variação das idéias sobre o futuro pode influir no volume atual do emprego e não ape­nas na sua orientação." (Cap. VII, p. 97, ed. franc, 1963.) E ainda: "No nosso Tratado sobre a Moeda. . . nós não havíamos destacado com clareza a distinção entre os resultados esperados e os resultados desejados" (p. 98) .

Observemos também que à renda do capital em valor, introduzida por Myrdal, corresponde o conceito de eficácia marginal do capital (relação entre a renda esperada e o custo de produção de uma unidade suplemen­tar deste capital.

Se a idéia de antecipação constitui uma das contribuições essenciais de Myrdal à escola sueca, ela não é a única: a idéia de processo cumula­tivo, já introduzida por Wicksell, é não somente precisada por Myrdal no seu "Equilíbrio Monetário", mas também desenvolvida nos seus estudos relativos à economia internacional e ao desenvolvimento.

Seção III

CONTRIBUIÇÃO DE G. MYRDAL À TEORIA DO DESENVOLVIMENTO

§ 1." — O processo da causalidade circular e cumulativa

Esta importante noção é apresentada essencialmente em "Teoria Eco­nômica e Países Subdesenvolvidos" (1959).

Uma unidade territorial — quer seja região ou nação — rica e de­senvolvida exerce sobre as outras unidades territoriais duas espécies de efeitos:

— efeitos de propagação — que tendem a se propagar dos centros em expansão para as outras unidades, aumentando assim as suas "saídas" e incitando o progresso técnico.

— efeitos de perturbação — pelos quais movimentos de população, de capitais, de comércio, são aspirados pelas unidades vizinhas em cresci­mento, constituindo, entre as unidades estagnadas, elementos de perturba­ção, tanto mais que as migrações internas têm um Caráter seletivo, uma vez que atingem, sobretudo, os elementos ativos da população.

Os países que atingiram um elevado nível de desenvolvimento econô­mico se beneficiarão largamente com os efeitos de propagação. Mas, nos países ou nas regiões mais pobres, o nível de atividade é fraco demais para acolher e ampliar os efeitos do desenvolvimento. Contrariamente, os efei- 401

Page 402: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tos de perturbação seriam aí preponderantes. Nós encontramos, aqui, idéias que desenvolverão Raoul Prebisch, assim como Hirschmann, idéias que abrangem o papel "imoral", em matéria de desenvolvimento dos países

i subdesenvolvidos, desempenhado pelo comércio exterior e que conduz à recomendação de uma solidariedade necessária e efetiva entre as nações

1 desfavorecidas. Myrdal sustenta a tese das disparidades crescentes entre países desen­

volvidos e subdesenvolvidos. A interdependência é tão grande entre os fatores de um sistema social e econômico, que toda modificação em qual­quer fator terá efeito sobre os outros.

Para romper este processo cumulativo, Myrdal propõe uma política de planificação.

§ 2.° — Necessidade de uma planificação — protecionismo e nacionalismo

"A planificação é a aplicação de um conceito não determinista da história, embora ela reconheça as limitações impostas pelas condições e forças existentes, assim como pelas relações causais mútuas". Numa pri­meira etapa Myrdal preconiza o protecionismo e um certo nacionalismo.

O protecionismo se justifica pelo fato de que as restrições à impor­tação oferecem uma possibilidade de criar imediatamente a procura neces­sária a uma indústria interna particular, sem necessidade de esperar o len­to e difícil desenvolvimento da economia no seu conjunto.

Myrdal propõe uma "dupla norma de moralidade" no comércio in­ternacional:

— nos países subdesenvolvidos as restrições à importação não modi­ficam o montante global do comércio mundial, pois elas só deslocam as procuras de importação de certos produtos para outros — que são, geral­mente, bens de produção necessários ao desenvolvimento.

— nos países economicamente evoluídos, o protecionismo restringe o montante global do comércio, uma vez que não existe mecanismo que per­mita compensar automaticamente uma queda das importações de um gru­po de produtos, por um crescimento das importações de um outro grupo.

Quanto ao nacionalismo, Myrdal o entende no sentido de que é pre­ciso "abrir as barragens da mobilidade social e econômica. . ., criar o sen­timento da participação de todos a uma cultura comum" ("Planificar para Desenvolver", p. 189).

Ele reconhece, entretanto, ser esta uma "droga perigosa" que, uma vez despertada, tem propensão a crescer indefinidamente.

Ora, o objetivo maior ao qual visa Myrdal não é de parar no desen-402 volvimento nacional, mas de coordenar as políticas nacionais em uma pia-

Page 403: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

nificação econômica internacional, juntando-se neste sentido às idéias de Brocard e de Cauwès, anteriormente estudadas neste livro.3

§ 3.° — Necessidade de uma cooperação internacional

"Enquanto há, em todos os países, organizações, partidos políticos e grupos de pressão para defesa dos interesses particulares, em parte alguma se encontram organizações poderosas para defender a parte de um país no interesse geral da cooperação internacional" ("Planificar para Desen­volver"). São preocupações como esta que o Papa Paulo VI exprimiu na Encíclica de 1967 Populorum Progressio.4 No conjunto do mundo "não há essa solidariedade humana. . . que leva os indivíduos e os grupos so­ciais a aceitarem regras que não sirvam aos seus interesses imediatos" — ("Uma Economia Internacional", p. 6 ) ; tal é, para nosso autor, o "rude fundo do problema".

Myrdal insiste, então, na preocupação fundamental dos economistas suecos de, continuando seu mestre Wicksell, integrar a teoria da moeda à teoria geral dos fenômenos econômicos; reintegração através de um es­forço de reformulação do equilíbrio monetário, servindo-se da noção de antecipação na qual se baseia o estudo das flutuações econômicas.

Lindhal 5 ampliará a importância desta noção das antecipações e Lundberg 6 aplicar-lhes-á — para dinamizá-las mais — seus modelos de seqüência. Isto porque, a partir das antecipações de Myrdal, uma se­gunda fase do pensamento sueco se desenvolve, fase relativa à elaboração de uma dinâmica que explica os processos de ajustamento das variáveis econômicas no tempo. ('

Concluindo, o alcance deste conjunto de idéias, que na história do pensamento econômico tomou o nome de "Revolução Wickselliana", foi tardio mas importante. Tais idéias contribuíram para o progresso dos pro­blemas do equilíbrio suscitados por Walras. Elas fizeram com que pro­gredisse a teoria do juro que, sob influência delas, aparece como fator de­terminante das emissões monetárias e do nível da atividade econômica. Aí se encontra a principal contribuição de Wicksell à análise econômica; de ter liberado a teoria econômica da "tirania da quantidade" de moeda, da preocupação dos mecanismos de pagamentos e de ter instalado, solida-mente, sua teoria no domínio da formação dos preços e da determinação das rendas, concentrando-a numa análise da relação poupança-investimen-

3. Cf. p. 392 e segs. 4. Cf. supra p. 329 e segs. 5. E r i c L I N D H A L — em 1929 p u b l i c o u seus primeiros estudos em l íngua sueca. Só em

1939 quando eles foram traduzidos para o i n g l ê s , é que foram conhecidos e apreciados. Studies (he Theory of Money and Capital, 1939, trad. franc. de M a r c h a i : Estudos sobre a Teoria da

Moeda e do Capital, Paris , 1949. 6. E r í k L U N D B E R G — Studies of the Theory of Economic Expansion. Londres, 1937

(trad. franc. através do I S E A ) . C i t e m o s também, como d i s c í p u l o de W i c k s e l l , B e r t i l O h l i n : Some Notes on the Stockolm

Theory oi Saving and Investiment. E c o n o m i c lournal, março e junho de 1937 X L V I I ; Readings •n Business Cycle Theory, 1944. E s t a obra const i tui uma resposta à teoria de K e y n e s — que se convence então de que o equil íbrio entre i n v e s t i m e n t o e poupança só pode se realizar ex-post. 403

Page 404: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

to. Assim, ele pôde mostrar que, através do movimento dos preços, a for­ça atuante é a procura do investimento variável, ligada de maneira funcio­nal à taxa "real" do juro.

Essas idéias puseram fim ao conceito da moeda neutra ao mostrai que o equilíbrio econômico depende do equilíbrio monetário; recusando assim o clássico equilíbrio automático, os suecos mostraram a necessidade da intervenção sob forma de uma política bancária.

De um modo mais geral, finalmente, a obra de Wicksell, ao sonside-rar as rendas como elemento de um custo como fonte de um poder de compra, influenciou o desenvolvimento da análise macroeconômica, indo então além de Walras e se aproximando do pensamento clássico e da aná­lise do equilíbrio econômico desenvolvido por Marx em "O Capital".

Estas idéias, assim como aquelas que dizem respeito ao crescimento e ao desenvolvimento, tiveram uma influência profunda na evolução do pensamento econômico.

As obras dos economistas suecos não tiveram, evidentemente, o su­cesso que mereciam, porque foram eclipsadas pela obra de Cassei e, sobre­tudo, pela teoria geral de Lord Keynes — cujas idéias respondiam aos pro-nlemas que levantava então a atualidade.

Assim, a obra de Erik Lundberg: Studies in the Theory of Economic Expansion, publicada em 1937, apenas um ano após a "Teoria Geral", atesta sua originalidade e mesmo sua superioridade sobre certos pontos da análise keynesiana, particularmente no que concerne às análises de se­qüência.

O mesmo acontece com as obras de Lindhal posteriores a 1936, a propósito da introdução do tempo nos modelos econômicos (1939).

A influência da escola sueca se manifestou entre os economistas que buscavam a explicação das crises na insuficiência de moeda escriturai em fim de período de prosperidade. São eles o americano Irving Fisher, o austríaco Von Mises e os ingleses D. H. Robertson e R. G. Hawtrey. Este último e Mises, notadamente, retomam o conceito de "poupança for­çada", posto em evidência por Wicksell. A análise wickselliana foi reto­mada e desenvolvida amplamente por Schumpeter em Teoria da Evolução Econômica" -— (1912).

Influencia também P. Samuelson, na sua tentativa de síntese dos en­sinamentos da escola neoclássica, assim como dos de Keynes, para demons­trar que o Governo pode resolver o problema do desenvolvimento harmo­nioso da economia através de uma ação monetária.

O tempo se encarrega então, pouco a pouco, de fazer justiça, mos­trando o interesse que deve ser dado às idéias dos economistas suecos: é com razão que Schumpeter escreve, na sua "História da Análise Econô­mica": "nenhum estudante em economia terminou sua formação se não

404 leu as principais obras de Knut Wicksell".

Page 405: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

A REVOLUÇÃO KEYNESIANA E A CIÊNCIA ECONÔMICA ATUAL

Em 1936 foi publicado um livro: "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", de autoria de J. M. Keynes.1 A publicação deste livro é considerada por muitos como assinalando, na história da ciência econômi­ca, uma data tão importante quanto a de 1776, ou seja, da aparição da "Riqueza das Nações", de Adam Smith. E outros, como, por exemplo, Sir Josiah Stamp, julgam ser esta obra "das mais penetrantes e significa­tivas escritas a partir de David Ricardo". Assim também Et. Cole a saúda como a obra econômica mais importante depois de "O Capital", de Marx.

Certo é que, pelo seu conteúdo, pelos estudos e discursos suscitados, o livro de Keynes abre um novo período na evolução da ciência econômi-

1. John M a y n a r d K E Y N E S (1883-1946), nascido em C a m b r i d g e , Inglaterra, professor da U n i v e r s i d a d e de C a m b r i d g e , teórico e homem de ação. F e z parte do D e p a r t a m e n t o das Índias ( 1 9 0 5 ) ; do T e s o u r o B r i t â n i c o ( 1 9 1 5 ) ; eco no mista d e l e g a d o do Governo à Conferência da P a z em 1919; Conselheiro de governos s u c e s s i v o s , tomou parte em todas as conferências internacio­nais importantes durante a S e g u n d a Guerra M u n d i a l (1943: projeto de e s t a b i l i z a ç ã o internacio­nal das moedas. Plano de Keynes) ; diretor do B a n c o de Inglaterra, membro e presidente da Sociedade R e a l de E c o n o m i a . F a l e c e u aos 63 anos de idade, em 1946.

Dentre as suas obras, aliás numerosas, indicaremos as mais i m p o r t a n t e s : The Economic Consequences of the Peace. 1919; A tract on Monetary on Monetary Reíorm,

1923. N e s t e l ivro crit ica K e y n e s o regime do padrão-ouro, o qual, segundo mostra, sacrifica a estabi l i dade dos preços em beneficio da estabi l idade da m o e d a ; The General Theory of Em-ployment, Interest and Money, 1936.

A respeito de K e y n e s e de sua teoria econômica e x i s t e farta l iteratura, mas de d e s i g u a l valor.

Indiquemos, a t ítulo de referência s u m á r i a : G. T R A N C A R T : A Revolução Keynesiana, in Rev. Écon. Pol., 1949, p. 88; Ch. M A G A U D :

L'tquilibre Économique à travers la Pensée Moderne, Paris , 1950 ( 2 . * Parte, S e ç ã o 2) ; E. M A N -T O U X : La Theorie Générale de M. Keynes, in R e v . Écon. Pol.. 1937 (p. 1 5 5 9 ) ; J. R O B I N -S O N : Introduction à la Theorie de l'Emploi, Paris, 1948; B A U E R : Remarques sur la Theorie Générale de Lord Keynes, in Rev. Écon. Pol., 1946, p. 1 2 1 ; D O M A R C H I : La Pensée de J. M. Keynes, Paris , 1943; H A B E R L E R : Prosperité et Dépression, Genebra, 1943, p. 8; H A N S E N : Eull Recovery or Stagnation, N o v a Iorque, 1938; A Guide to Keynes, N o v a Iorque, 1953; Intro­duction à la Pensée Keynésienne, Paris , 1967; T. R U E F F : Les Erreurs de la theorie Générale de Lord Keynes, in Rev. Écon. Pol., 1947, p. 5; E. H a r r i s S E Y W O U R : The New Economics. Keynes Iniluence on Theory and Public Policity, N o v a Ioroue, 1947; L. R. K L E I N : The Key-nesian Révolution, 1947; H a r t c o u r t R I V I N G T O N : /. M. Keynes, in Digesto Econômico, da A s s o c i a ç ã o Comercial de São P a u l o , ns. 31-32, 1947; R a u l P R E B I S C H : Introduction a Keynes. Fondo d e Cultura E c o n ô m i c a , M é x i c o ; T . B A L O G H , F . A . B U R C H A R D T , M . K A L E C K , E . £• S C H U M A C H E R , M A N D E L B A U M , W O R S W I C K : L'Économie du Plein Emploi. Paris , H A R R O D : The liie oi J. M. Keynes, N o v a Iorque, 1951, B A R R E R E , Alain, Theorie Économi-Que et Impulsion Keynésienne, Paris , 1952; Kurirara, K E N N E T H , Introdução á Dinâmica Key­nesiana, trad. port., São P a u l o , 1961; D i l l a r d , D U C L E Y , A Teoria Econômica de John May­nard Keynes, trad. port., São P a u l o , E d . Pioneira, 1964.

Page 406: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ca. E o mesmo se pode dizer em relação à política econômica da nossa época.

Vamos tentar, pois, dar uma idéia de conjunto dessa "revolução key­nesiana", que nos habilite a aprender a sua importância e a determinar o lugar que lhe cabe na evolução da teoria e das doutrinas econômicas.

Seção I

A CRÍTICA KEYNESIANA RELATIVA À TEORIA CLÁSSICA

Keynes chama a sua teoria de "geral" e, neste sentido, pretende con­trapô-la à teoria "clássica".

A teoria clássica, na sua opinião, nada mais é senão uma teoria par­ticular, parcial, da atividade econômica.

a) particular, primeiro, por apoiar-se em uma hipótese nem sempre confirmada, ou seja, a do pleno emprego;

b) particular, ainda, por eliminar a moeda de seus raciocínios; c) particular, enfim, por apresentar o problema econômico, não em

termos gerais, mas, sim, individuais e fragmentários.

a) Os clássicos e neoclássicos raciocinaram, com efeito, como se se tratasse de uma sociedade na qual todos os trabalhadores encontravam trabalho. Eliminaram, deliberadamente, a existência do desemprego. E para um mundo econômico, assim, simplificado e deformado, estabelece­ram as regras da formação e variação dos preços das mercadorias e dos serviços (taxa de juro, de salário, de lucro, de renda).

Keynes julga, pois, necessária uma revisão da teoria dos preços, em função da realidade, isto é, em função de uma economia na qual o pleno emprego não se realiza na maioria das vezes.

A influência do emprego sobre o equilíbrio econômico parecia a Key­nes tanto mais importante quanto, de fato, teve a oportunidade de assistir, na Inglaterra, após a Primeira Guerra Mundial, ao aparecimento de um desemprego sem precedentes, de graves conseqüências econômicas e so­ciais.

A economia britânica teve, pois, de, para subsistir, levar em conside­ração este fenômeno como um fator decisivo. Impunha-se, assim, um es­forço de revisão científica que permitisse a implantação de uma política adequada.

Daí a necessidade de serem estudadas:

— as causas do desemprego; — as condições de existência de uma posição de equilíbrio em uma

economia com desemprego; 406 — as forças que determinam esta posição de equilíbrio.

Page 407: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Em outros termos, a teoria clássica do equilíbrio econômico só é vá­lida quando se verifica o pleno emprego. Não explica a formação dos preços dos bens e serviços quando há desemprego. Conviria, pois, elabo­rar uma teoria que levasse em conta a formação do equilíbrio econômico com o pleno emprego e sem ele.

b) Em segundo lugar, julga Keynes haverem os clássicos apresenta­do, apenas, uma visão parcial e falsa dos problemas econômicos ao deixa­rem de levar em conta, em seus raciocínios, a existência da moeda.

A partir de J. B. Say e da sua teoria do mercado (lei das "saídas") — "os produtos se trocaram contra produtos" —, começaram os clássicos a raciocinar como se as mercadorias e os serviços se trocassem in natura, considerando a moeda apenas como um intermediário ou instrumento "neu­tro", destituído de importância para o equilíbrio econômico e para a for­mação dos preços.

Keynes, criticando esta posição da ciência clássica, indica exercer a moeda não apenas um papel passivo nas trocas.

De instrumento passivo, transforma-se, assim, a moeda em instrumen­to ativo, com um papel a representar no equilíbrio geral da economia, equilíbrio esse que depende das condições de pleno emprego ou de sub-emprego da mão-de-obra.

A contribuição de Keynes é, neste ponto, importante. Sem dúvida, anteriormente a ele, criticara o sueco Knut Wicksell,2

por esse mesmo motivo, a concepção clássica. Rejeitara também a lei de mercado (lei das "saídas") de Say, introduzindo de novo, no estudo dos fenômenos econômicos, a moeda e, com esta, a noção de tempo.

Mas as idéias de Wicksell, expostas de maneira pouco clara, tive­ram apenas repercussão no estreito círculo de seus discípulos suecos: Myr­dal, Lindhal, Lundberg.

E só com Keynes foi que se conseguiu atrair a atenção geral, quer para a importância do fenômeno monetário no equilíbrio econômico, quer ainda para o aspecto dinâmico — e não mais estático — assumido pelos fenômenos econômicos.

c) Keynes critica a teoria clássica, acoimando-a de "particular", por uma terceira razão: os clássicos raciocinaram sobre os fenômenos econô­micos levando em conta, na maioria das vezes, comportamentos indivi­duais dentro de um quadro econômico deliberadamente limitado.

Assim, por exemplo, é no quadro da empresa que buscam as leis da combinação dos fatores de produção (mão-de-obra, capital, matérias-pri-

2. K N U T W I C K S E L L publicou duas obras p r i n c i p a i s : Juro e Preço, l e n a , 1898. e Confe­rências, Iena, 1913. E x i s t e uma excelente tradução i n g l e s a da primeira d e l a s : Interest and Pri­ces, Londres, 1934-35.

As idéias de W i c k s e l l encontram-se expostas de maneira mais clara e acessível nas obras de um de seus discípulos, Gunnar M Y R D A L : O Equilíbrio Monetário, obra essa que foi tra­duzida, em francês, pelo professor A n d r é M a r c h a i ( P a r i s , 19u0).

Page 408: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

mas), ou da repartição dos rendimentos provenientes da produção (ren­dimento do trabalho = salário; rendimento do capital = juro; rendimento do empreendedor = lucro e t c ) .

Os hedonistas, principalmente os economistas da Escola Psicológica Austríaca, bem como os neoclássicos da Escola de Cambridge (Pigou, Hawtrey e A. Marshall), individualizaram mais ainda o problema econô­mico, entregando-se especialmente à análise das reações dos compradores e vendedores e das diferentes pessoas que tomam parte no ato da produ­ção, da repartição e do consumo.

Trata-se, para Keynes, de combater e ultrapassar este ponto de vista microeconômico para considerar o problema em termos mais gerais de "rendimentos globais", "procura global", "emprego global", ou seja, ra­ciocinar com base em dados de conjunto. É evidente que não se deve omi­tir o exame dos fenômenos particulares. Contudo, estes devem ser consi­derados apenas como meio de compreender o mecanirmo e a evolução das "qualidades globais".

Em outras palavras, trata-se, para Keynes, de elaborar uma teoria do funcionamento do sistema econômico em seu conjunto.

Não é mais o caso, portanto, de uma concepção microscópica, mas sim, macroscópica do estudo econômico.3

Esta concepção — não nos esqueçamos — tem por fim, antes do mais, estudar os fatores que atuam sobre o volume do emprego.

O problema apresenta-se, no espírito de Keynes, da maneira seguinte: considerada uma sociedade em seu conjunto, quantos indivíduos encontra­rão trabalho e qual será a quantidade global da produção resultante?

Estas as principais críticas dirigidas por Keynes à teoria "clássica". Estes, também, os, aspectos fundamentais da sua própria concepção sobre a teoria econômica que chama de "geral".

Ora, a teoria clássica explicava o equilíbrio dos mercados de trabalho, de capitais e de mercadorias, pelo funcionamento da lei da oferta e da procura: Keynes vai, em seu estudo econômico, tomar por base novos princípios.

Seção II

PRINCÍPIOS GERAIS DA TEORIA ECONÔMICA DE KEYNES

Os clássicos, ao admitirem o funcionamento da lei do mercado (lei das "saídas"), foram levados a considerar que a oferta (a produção) cria­va a sua própria procura (o consumo).

3. Sobre essa r e v o l u ç ã o macroscópica realizada por K E Y N E S , ler uma interessante consi­deração conjunto no l ivro de D. V I L L E Y : Petite Histoire des Grandes Doctrines Économiques (2.* ed. p. 20 e s e g s . ) , Paris , 1954.

Page 409: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

f

Julgavam, por conseguinte, ser a oferta o agente motor da atividade e do mecanismo econômico, fazendo recair, principalmente, sobre ela a sua análise.

Keynes, ao contrário, julga caber à procura o papel primordial de agente motor de todo o sistema econômico, pois o emprego varia no mesmo sentido que o rendimento global (gerador da procura global).

Ora, este rendimento global pode ser empregado de três maneiras, ou seja: entesourando, investindo, consumindo.

A procura efetiva e, por conseguinte, o emprego, dependem, pois, de três fatores psicológicos, os quais — juntamente com o volume monetário existente — vão representar os elementos explicativos das variações de um sistema econômico.

Estes elementos, variáveis e independentes entre si, são: a preferên­cia pela liquidez; o estímulo para investir; a propensão a consumir.

1) A preferência pela liquidez consiste na preferência dada ao di­nheiro líquido a qualquer outra forma de riqueza. Manifesta-se por uma tendência mais ou menos acentuada, que impele os homens a empregarem suas economias, ou, ao contrário, entesourá-las sob a forma de moeda.

Keynes, com este elemento, introduz na teoria econômica a noção de tempo e de moeda.

Com efeito, porque desejarão os indivíduos conservar suas economias sob uma forma líquida?

É por servir a moeda de reserva de valor, representando, por esse fato mesmo, uma ponte entre o presente e o futuro.

Três são os principais motivos que explicam esta preferência pela li­quidez: transação, precaução e especulação.

Transação: tendo em mira este objetivo, os homens são levados a conservar seu dinheiro sob a forma líquida para poder, assim, atender às necessidades das compras habituais. Tratar-se-á, para o empreendedor, de conservar as somas necessárias ao pagamento das despesas compreendidas entre o momento de contrair as obrigações e o de percepção das receitas.

Precaução: movidos os homens pelo desejo de segurança, procuram conservar o dinheiro sob a forma líquida para socorrer a despesas impre­vistas.

Especulação: constitui, segundo Keynes, o mais importante dos estí­mulos, estando diretamente ligado às futuras variações da taxa de juros. A preferência pela liquidez deriva do temor de uma elevação da taxa de jures. Sendo, em dado momento, a taxa de juros muito baixa e os custos muito elevados, os especuladores conservam o dinheiro sob a forma líqui­da, com a esperança de utilizá-lo em oportunidades mais lucrativas.

E com esta "preferência pela liquidez" retoma a moeda o seu lugar na teoria econômica: através da taxa de juros torna-se a moeda um ele­mento ativo modificador das condições do equilíbrio econômico. 409

Page 410: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

O juro aparece como o preço da renúncia à liquidez e a sua tax mede a situação decorrente da diferença entre o volume da moeda em circulação e a procura da moeda para entesouramento.

2) O estímulo para investir corresponde a um estado psicológico oposto: impele os homens a procurarem um emprego produtivo para os seus rendimentos.

Este estímulo para investir depende do rendimento, previsível, do ca­pital (procura dos empreendedores) e do custo de reposição do capital (determinando o preço de oferta). v

Em outros termos: o estímulo para investir depende da estimativa do rendimento futuro. Esta estimativa depende, por sua vez, da eficiência marginal do capital.4 A eficiência marginal do capital traduz a relação entre o rendimento, previsível, dos bens de produção (máquinas) e o pre­ço de reposição destes.

3) A propensão a consumir consiste na tendência, manifestada pela população, no sentido de reservar uma parte mais ou menos considerável de seu rendimento à compra imediata de bens de consumo. Representa a relação entre as despesas de consumo e o rendimento global da comu­nidade.

Estes três elementos — variáveis, independentes entre si e antagôni­cos — vão exercer uma influência que, somada ao volume da moeda exis­tente, determinará o volume do emprego que se estabelecerá em uma so­ciedade e o volume da produção daí resultante.

Seção III

A REVOLUÇÃO KEYNESIANA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS PARA A POLÍTICA E A DOUTRINA ECONÔMICA

O estudo teórico levou Keynes a mostrar que os mecanismos auto--reguladores, nos quais acreditavam os economistas clássicos, podem falhar e, deixando de funcionar, não serão corrigidos certos desequilíbrios; e, por conseguinte, as situações de subemprego podem prolongar-se por muito tempo, não se verificando a reabsorção.

A intervenção do Estado torna-se, pois, necessária. O intervencionis­mo encontra pela primeira vez na Inglaterra seus fundamentos teóricos.

Keynes acha que a intervenção do Estado deve-se dar de maneira mais ou menos permanente, principalmente sob a forma de uma política de manipulação monetária com o objetivo de atuar sobre os três elemen-

4. "A ef iciência marginal do capital consiste na taxa de desconto que faz com que o v a ­lor real da série de anuidades, c o n s t i t u í d a s pelos rendimentos p r e v i s í v e i s e correspondentes a uma anuidade suplementar deste c a p i t a l , seia i g u a l ao seu preço de oferta (isto é, ao seu preço de c u s t o ) . A mais elevada destas e f i c i ê n c i a s m a r g i n a i s pode ser considerada como eficiência m a r g i n a l do capital em g e r a l . " (J. M. K E Y N E S . » Teoria Geral.)

Page 411: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

tos variáveis, acima indicados, elementos esses dos quais depende o vo­lume do emprego e da produção.

Convém que o Estado exerça sua influência sobre a "preferência pela liquidez". Uma política monetária e fiscal adequada não deve fomentar o entesouramento estéril, mas, sim, estimular as despesas suscetíveis de au­mentar o emprego. As despesas a fomentar serão, então, as de consumo e, sobretudo, as de investimento.

As modalidades desta política são diversas: Keynes propõe uma po­lítica de ordem tributária, tornando-se, assim, o imposto um elemento ati­vo na distribuição dos rendimentos e na orientação da atividade econô­mica.

Insiste numa política de dinheiro "barato", mediante a redução da taxa de juro, política necessária à expansão do crédito (semelhança com a organização do "crédito gratuito" proposto por Proudhon no século XIX). Esta política do juro constitui a peça central do sistema de Keynes.

É igualmente favorável a uma política de "mercado livre" (open mar-ket). Deseja, também, que o Estado controle e estimule os investimentos, parecendo-lhe ser, para tal fim, particularmente eficaz uma política de grandes obras públicas.

E, se necessário, esta política poderá mesmo ser financiada por meio da inflação monetária. O governo deve, custe o que custar, conseguir o seu objetivo, ou seja, a redução e a reabsorção do subemprego.

Esta política de pleno emprego poderá ser adotada isoladamente pe­las diferentes nações. Todavia, a colaboração internacional facilitaria a rea­lização dos seus objetivos.

Keynes ressalta o interesse das trocas internacionais, mostrando que um produto, ou um serviço, exportado para o estrangeiro, apresenta, do ponto de vista do emprego, a mesma vantagem que um investimento, e insiste na importância econômica de uma balança de comércio favorável.

Neste ponto o seu sistema passa do quadro da política nacional para o da política mundial.

São estas idéias de expansão das trocas, através de uma política de investimentos internacionais, que se encontram servindo de base ao "Plano Keynes", apresentado, em 1943, bem como ao "Plano White", norte-ame­ricano, apresentado à conferência de Bretton-Woods (1944). Serviram também de inspiração para se criarem o Fundo Monetário Internacional e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento Econômico. Na Conferência de Havana reconheceu-se a necessidade de uma política ativa por parte do Estado, a fim de garantir o pleno emprego.

Do ponto de vista de suas aplicações práticas, a política keynesiana, inspiradora destes ensaios de colaboração internacional, exerceu influência mais profunda ainda sobre as políticas econômicas nacionais. Em primei-

Page 412: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ro lugar, na Inglaterra: as idéias de Keyne; imprimiram orientação à polí­tica econômica no decurso da Segunda Guerra Mundial (Plano Beverid-ge) e continuaram, de certa forma, a servir de fonte de inspiração das medidas tomadas pelo governo trabalhista.

Fora da Inglaterra, as conclusões essenciais à política de pleno em­prego fazem parte dos principais planos de reconstrução e recuperação econômica, tal como se pode verificar, por exemplo, em relação ao Plano Monnet, na França. v

Em resumo: Keynes, neoclássico, pelas idéias expendidas nas suas primeiras obras,

aparece, com a publicação, em 1936, da sua "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", como nitidamente intervencionista.

A política por ele preconizada consiste em permanente controle eco­nômico por parte do Estado, implicando à organização as seguintes atri­buições econômicas:

1. controle da moeda e do crédito; 2. aplicação de uma política tributária e de seguro social com fins

econômicos (fomento da propensão a consumir); 3. realização da política de grandes obras públicas (estímulo ao in­

vestimento privado).

Do ponto de vista científico as idéias de Keynes vão exercer influên­cia sobre as pesquisas econômicas.

Na Inglaterra exerce-se essa política de modo geral, incumbindo-se os discípulos de propagar e desenvolver suas idéias.

Fora da Inglaterra, a repercussão das idéias de Keynes, se não mais profunda, é pelo menos mais diversa. E ainda quando não aceitas, as teorias keynesianas provocam um amplo movimento de crítica construtiva que torna obrigatória a revisão dos dados da ciência econômica.5

Keynes, carreando, pois, para a teoria econômica novas concepções, não só alargou o quadro do estudo econômico, mas também tornou pos­sível uma análise mais exata e mais completa.

A sua obra é duplamente útil: pela contribuição positiva e pelos de­bates que suscita. A discussão provocada determinou uma revisão geral da teoria econômica.

Ao publicar sua "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", pre­tendeu Keynes apresentar uma obra original: "resultado de uma longa luta para escapar aos modos habituais de pensamento e de expressão" (Prefá­cio, p. VIII). Conseguiu-o plenamente e, neste sentido, pode-se, com jus­tiça, falar, em ciência econômica, da "revolução keynesiana".

5. Km F r a n ç a , principalmente, severas foram as crí t icas feitas à economia Keynesiana. L e i a - s e , sobretudo, F r a n ç o i s P E R R O U X e a revista Économie Appliqufe.

Page 413: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Seção IV

OS PROBLEMAS PRINCIPAIS DA CIÊNCIA ECONÔMICA ATUAL DEPOIS DE KEYNES

A partir de Keynes a ciência econômica progrediu consideravelmente. Os esforços dos economistas concentraram-se cada vez mais sobre a

explicação dos problemas fundamentais de nossa época. Esta preocupa­ção com a realidade levou-os a insistir na análise macroeconômica e so­bretudo na análise dinâmica. Tal esforço realizou-se reintegrando o econô­mico no quadro sociológico.

— A dinâmica esforçou-se, em primeiro lugar, em fabricar os instru­mentos de análise mais aperfeiçoados a fim de precisar os mecanismos que transmitem a impulsão de uma variável ao conjunto da economia. Esta é a contribuição de autores anglo-saxões e suecos, notadamente, so­bre o multiplicador e o acelerador (Harrod, W. C. Mitchell, Kuznetz) e sobre o "oscilador" (Samuelson). Estando as causas da impulsão e sua evolução estreitamente ligadas às antecipações dos empreendedores, foi elaborada a teoria das antecipações. (Myrdal, Lyndhal e Hicks em parti­cular.)

— Desta análise, que passou de curto a largo período, resultou o es­tudo do crescimento: inicialmente em um plano teórico (Harrod), depois de maneira concreta, utilizando os dados da contabilidade nacional e os modelos econométricos.

— A pressão da realidade objetiva da nossa época, no que ela tem de mais característico, a saber: a expansão geral da população e os pro­gressos rápidos da técnica, tornou necessária a reintegração, na análise, de variáveis consideradas durante muito tempo como extra-econômicas.

Foi assim que o fator demográfico retomou seu lugar na qualidade de variável endógena principal. Neste ponto as contribuições de Landry e Sauvy são decisivas (tese da pressão criadora em particular). A pressão da população torna-se então uma das propensões decisivas do cresci­mento (W. Rostow, F. Perroux) e um dos fatores essenciais do equilíbrio deste crescimento (teoria do crescimento equilibrado e dos investimentos dos consumidores de Harrod). Do mesmo modo, o progresso técnico se torna, com Schumpeter, Colin Clark e Fourastié, um motor importante da dinâmica do crescimento. Nota-se, igualmente, o esforço feito para incor­porar aos motores da dinâmica econômica os comportamentos psicossocio-lógicos dos empreendedores (Hicks), dos consumidores (D. L. Reynaud, J. Marshall) e dos grupos sociais (K. E. Boulding).

— A análise dos motores do crescimento conduz a tentativas de expli­cação de conjunto (teoria da economia dominante de Perroux) e de sín­tese, insistindo sobre a dinâmica das estruturas (as forças motrizes de Akérman, por exemplo), e dos sistemas. E aqui se observa um esforço 413

Page 414: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

considerável para explicar os fenômenos do desenvolvimento econômico e, muito particularmente, aqueles que interessam às economias subdesenvolvi­das — um dos problemas essenciais da atualidade. Em conseqüência destes estudos multiplicaram-se os trabalhos sobre a planificação e suas técnicas.

Para concluir esse breve resumo dos aspectos essenciais da ciência eco­nômica moderna, destacamos o ensamento do economista austríaco Jo-seph Schumpeter. Ele é um dos que ao lado de Keynes influenciaram pro­fundamente esta evolução científica. Marcou-a pelas suas análises sobre o papel das inovações, sobre o circuito e o desenvolvimento econômico (Bu­siness Cycles, 1939). Marcou-a igualmente pelos estudos da dinâmica dos sistemas e pela dialética do capitalismo (Capitalismo, Socialismo e Demo­cracia, 1942). Mas ele a influenciou fortemente também pela sua metodo­logia, insistindo sobre a necessidade de uma estreita dependência entre as análises econômicas, históricas e sociológicas, assim como sobre o perigo da autonomia da análise econômica. Seu último livro, publicado após a sua morte, (História da Análise Econômica, 1954) representa uma síntese do esforço intelectual efetuado pelos homens com o fim de compreender o fenômeno econômico. Esta obra mostra quão estreitamente ligados es­tão fatos, doutrinas e teorias. Ela mostra também o valor científico excep­cional de um espírito crítico sempre alerta que associa, aos conhecimen­tos especializados, uma cultura geral muito sólida e muito ampla.

São qualidades indispensáveis aos economistas para que confirme e se acentue esta volta ao humano, característica essencial da evolução do pensamento econômico moderno.

A explicação científica dos fenômenos econômicos elabora-se então de acordo com processo progressivo contínuo. Representa uma tarefa que não está acabada, e que, aliás, nunca o será, uma vez que acompanha as modificações incessantes das realidades que deve explicar. Mas já permi­te, diante de problemas determinados, constituir um conjunto de teorias explicativas de aceitação e utilização bastante gerais.

414

Page 415: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Ü

J. S C H U M P E T E R , A ECONOMIA DINÂMICA E A MACROECONOMIA

1 — Biografia de J. Schumpeter

JOSEPH SCHUMPETER 1 nasceu na Áustria em 1883. Discípulo dos economistas marginalistas, de Boehm-Bawerk e de WENER em par­ticular. Seu lugar na elaboração da Economia Política moderna é dos mais importantes. Homem de pensamento mais do que homem de ação, sua vida foi consagrada à pesquisa e à docência, com exceção de um cur­to período em 1919, durante o qual foi Ministro das Finanças da Áustria, e de uma experiência bancária igualmente curta. Professor em Czerno-witz e em Graz em 1911, depois em Bonn, em 1926, estabeleceu-se defi­nitivamente nos Estados Unidos em 1932. Foi na Universidade de Har-vard, sobretudo, que ensinou Economia Política, notadamente História do Pensamento e das Doutrinas Econômicas e Teoria Econômica Superior.

Inteligência vigorosa, personalidade dinâmica, espírito cético, muitas vezes também paradoxal, sempre aberto a toda idéia de valor, curioso em relação aos conceitos dos outros e pronto a acolhê-los e discuti-los com objetividade, revelava essas grandes qualidades humanas que trazem em si a luz e a esperança.

Seu pensamento, em toda a sua obra, é claro. Ele quer ser verdadei­ro para ser científico. O instrumento matemático é por ele utilizado com conhecimento de causa, contrastando assim com o abuso das fórmulas que conduziram muitos economistas, sobretudo muitos discípulos de KEYNES, a fazer da abstração um fim e da obscuridade uma ciência. Não que SCHUMPETER menosprezasse ou desconhecesse o instrumento e o méto­do matemáticos. Pelo contrário. Foi ele um dos que, por volta de 1930,

1. Sobre J. S c h u m p e t e r : F. P E R R O U X , Introdução â T e o r i a da E v o l u ç ã o E c o n ô m i c a de Schumpeter, Bousquet, G. H. , I. /. Schumpeter, Esquisse Biographique, in Rev. Écon. Pol. , 1950. P E R R O U X , F., Prèface à 1'Introduction à la Theorie du Développment Économique de J. Schumpeter, Paris , 1935. Números Speciaux Consacrés à Schumpeter, in R e v . d'Économie Appliquée, Paris, 1951. H E I L B R O N N E R , R. L., Les Grands Penseurs de la Révolution Écono­mique, Paris , 1957.

Page 416: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

participaram do desenvolvimento dos estudos econométricos e, nessa qua­lidade, foi um dos fundadores e um dos presidentes da Sociedade Inter­nacional de Econometria. Com o estatístico CRUM, é autor de um tra­balho sobre Mathematics for Economists. Sua cultura nesse domínio, aperfeiçoada constantemente, era extensa. Ela o era suficientemente para persuadi-lo de que a matemática é um instrumento indispensável ao Econo­mista, mas que não é senão um instrumento.

Sua observação dos fatos é ampla e precisa. Está ligada a uma ló­gica sólida, que lhe permite interpretá-los com exatidão. Tem detesta arte da intuição que lhe dá o senso do real. E a importância que atribui ao concreto o conduz a reintegrá-lo na teoria, de onde havia sido expulso pela Economia Pura.

Sua obra é considerável. Espírito precoce, seu primeiro livro data de 1907 e o último, no qual trabalhou sem cessar, foi terminado na véspera de sua morte, em 1950.

2 — Fontes principais de seu pensamento 0

As fontes principais de seu pensamento encontram-se nos trabalhos de três economistas, bem diferentes sob todos os aspectos, WALRAS, PA-RETO e MARX. Ele tinha uma profunda admiração pelo chefe da Esco­la de Lausanne, que colocava no primeiro plano dos teóricos da Econo­mia e de quem se proclamava discípulo. Sua formação teórica repousa, aliás, essencialmente sobre o sistema do equilíbrio e sobre os conceitos gerais do método de WALRAS. Se admirava VILFREDO PARETO, era sobretudo na medida em que havia trazido às idéias de WALRAS o com­plemento sociológico. De MARX, SCHUMPETER retomou não as idéias econômicas propriamente ditas, mas a dialética. Desta reteve o enquadra­mento institucional dos fenômenos econômicos e a estreita dependência de sua evolução, de sua dinâmica.

A Economia, a Sociologia, a História com Mnam-se assim no espírito de SCHUMPETER para dar ao seu pensamento originalidade, fecundida-de e envergadura.

3 — Suas obras

Sua primeira obra, escrita aos 24 anos, trata da Natureza e Substân­cia da Economia Nacional Teórica (1907). Descreve o caráter fundamental estático da Economia de circuito — economia sem inovação, sem crédito — e as forças que vão permitir ultrapassar o circuito e evoluir para a Economia de desenvolvimento ou Economia dinâmica.

Essas idéias são expostas, então, apenas esquematicamente e ainda 416 bastante distantes do real. O que elas colocam em evidência é o caráter

Page 417: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

estático dos métodos e das estruturas das teorias clássicas e neoclássicas e o que anunciam é a elaboração de uma teoria dinâmica.

É isto que trará, em 1911, sua Teoria da Evolução Econômica, pes­quisa sobre o lucro, o crédito, o juro e o ciclo da conjuntura.

A essência mesma do capitalismo, SCHUMPETER não a concebe como MARX, em termos de valor-trabalho, mas em função do empresá­rio. O elemento motriz da evolução é constituído pelas inovações, fontes de combinações novas das forças produtivas realizadas pelo empresário e que, ao se propagarem, vão provocar desequilíbrios. Estes, pelo mecanis­mo dos ciclos, tendem a novos equilíbrios em níveis mais elevados e esta prosperidade engendra o lucro, recompensa por seu trabalho de inovação que recebe o empresário. Não há, pois, evolução sem inovação, nem ino­vação sem empresário, nem empresário sem crédito. Esta teoria do crédito, diretamente ligada à ação dominante do empresário em regime capitalista, faz pensar as idéias mestras do saint-simonismo. Coloca em evidência o papel decisivo do setor bancário na evolução; conduz a uma explica­ção da taxa do juro, sendo este considerado como um "fato monetário" exclusivamente dinâmico. Quaisquer que sejam as críticas que mereça esta teoria, anunciou ela, depois de WALRAS, as idéias de KEYNES, sobre este assunto.

Lembraremos igualmente que o fenômeno da inovação que implica o aparecimento de invenções em grupos — afasta a explicação automática da expansão e a substitui pela das idéias criadoras, ao mesmo tempo que exige a análise sociológica. Com efeito, a pesquisa das causas dessas ino­vações coloca em jogo elementos muito diversos; não pode satisfazer as hipóteses clássicas do "homo oeconomicus", do princípio hedonista e da maximização da renda. É justo afirmar que, nessa concepção schumpete-riana, o sistema econômico, na teoria e na realidade, abre-se amplamente às forças da História social.

Em 1914 aparecia o Epochen der Dogmen — und Methodengeschicht. Trata-se de ensaio sobre os caracteres científicos do desenvolvimento, que coloca em evidência a importância do fluxo circular da atividade econô­mica, estudando a análise clássica, histórica e neomarginalista. O essencial destas idéias será retomado e desenvolvido consideravelmente um quarto de século mais tarde, na última obra de nosso autor — História da Análise Econômica.

SCHUMPETER, em seus primeiros livros e, sobretudo, na Evolução Econômica, ligava estreitamente a economia dinâmica aos fenômenos cí­clicos. A estes consagrou em 1939 uma volumosa obra — Business Cycles. O livro atesta uma erudição histórica extraordinária. Fornece às obras posteriores o material de demonstração necessário. Descreve os princi­pais ciclos econômicos e o processo inteiro do circuito e do desenvolvi­mento. Faz da inovação a causa única e endógena dos diferentes ciclos. A explicação assim proposta é, sem dúvida, sistematizada em excesso, re­duzindo demasiadamente o papel das estruturas e das instituições. Se isola 417

Page 418: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

a ação do empresário e de suas inovações, é evidentemente para dar toda a sua importância ao personagem central da evolução. Esta esquematiza-ção exagerada SCHUMPETER matizará nas publicações posteriores. Mas, tal qual, incompleta e inexata como todas as teorias das crises que bus­cam a explicação de um fenômeno tão complexo em uma causa única — apresenta a vantagem de insistir sobre o caráter humano do ciclo, substi­tuindo, como escreveu muito bem F. PERROUX, por uma imagem sim­plificada da vida dos homens, o esquema mecânico de adaptação das quan­tidades e dos fluxos. E isto inscreve no ativo o retorno ao humano, que caracteriza a evolução do pensamento econômico moderno.

Em 1942 SCHUMPETER publicava Capitalismo, Socialismo e Demo­cracia. O livro contém, simplesmente expostas, as idéias mestras de seu autor sobre a dinâmica dos sistemas. Foi sua última obra publicada em vida. Além das teses que aí são desenvolvidas, a obra é um modelo de metodologia. Insiste ele de novo sobre a dependência estreita e necessá­ria das análises econômicas, históricas e sociológicas.

SCHUMPETER construiu e expôs uma nova dialética do capitalismo. Não são mais as "contradições internas" de MARX que ameaçaram o ca­pitalismo: este é vítima de seu próprio sucesso, sucesso que se afirma na renovação contínua do sistema pelo mecanismo das destruições criadoras provocadas pelas inovações. Não são mais os efeitos da concentração cres­cente da produção que anunciam seu fim porque, para SCHUMPETER, a grande empresa é, ao contrário, o motor do progresso. É no plano so­ciológico, pelo desgaste das estruturas, que o sistema é ameaçado, pois a burocratização da grande empresa afasta pouco a pouco o empresário. O próprio direito de propriedade, ao tomar a forma da ação da sociedade anônima, desvitaliza-se, perde seu valor psicológico e, por isso mesmo, seus defensores. E SCHUMPETER mostra que a correção desta evolução dis-simétrica das estruturas — difícil em regime capitalista — seria possível e mais fácil em regime socialista. Em seguida, sua dialética da evolução, se­vera com o capitalismo, tornar-se-á mais matizada e menos pessimista, ad­mitindo que a readaptação das estruturas poderia ser possível neste regime pelas amplas possibilidades que o progresso das técnicas e das .grandes des­cobertas oferece para o futuro.1

O último livro de SCHUMPETER é póstumo — História da Análise Econômica (1954), mas estava terminado, em grande parte, no momento da morte de seu autor (1950). Coube à sua esposa, ajudada por econo­mistas amigos, a paciente e delicada colocação em ordem dos manuscri­tos e das numerosas notas que constituem essa obra. O livro é volumoso. Contém o essencial de todas as pesquisas que, durante sua vida, SCHUM­PETER havia acumulado. De 1907 a 1950 a continuidade, a unidade de seu pensamento é total.

Por história da análise econômica entende ele a história do esforço intelectual levado a bom termo pelos homens com o fim de compreender

1 N o t a d a m e n t e no seu art igo in Postwar Economic Problems ( N . Y. , 1943). " C a p i t a l i s m in the P o s t w a r W o r l d " .

Page 419: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

o fenômeno econômico ou — o que é a mesma coisa — a história dos aspectos científicos ou analíticos do pensamento econômico. Esta anáüse é estudada da Antigüidade aos nossos dias. A primeira parte do livro con­tém uma vasta introdução sobre as técnicas da análise econômica e sobre os recentes progressos das outras ciências, bem como sobre a Sociologia da Economia. A segunda parte trata da análise econômica da Antigüidade greco-romana até o mercantilismo. A análise continua, na terceira parte, até 1870, integrada solidamente na história dos fatos sócio-políticos e na evolução intelectual geral. As duas últimas partes prolongam a análise até à época contemporânea e a conclusão do livro apresenta-se sob a forma de um esboço dos progressos modernos do pensamento econômico. O últi­mo capítulo é sobre KEYNES e a macroeconomia.

4 — Lugar de Schumpeter na história do pensamento econômico

O lugar de SCHUMPETER é, incontestavelmente, entre os Economis­tas Célebres. É ele, juntamente com KEYNES, CHARBERLIN e poucos outros, o economista que marcou de modo mais acentuado a ciência eco­nômica contemporânea. Simboliza mesmo, por sua obra, os caracteres principais da evolução desta ciência desde o início do século.

Como neomarginalista, inicialmente, contribuiu para a revisão dos mecanismos da teoria neoclássica. Em seguida, como verdadeiro inicia-dor, permitiu a ampliação da análise econômica do plano estático para o plano dinâmico. É o que realizou sua teoria pura da evolução econômica: sua teoria econômica e história dos ciclos e sua teoria sociológica da evo­lução do capitalismo. Ao fazê-lo, recolocou a análise econômica em um sistema histórico e sociológico original, artesão desta evolução que mostra o perigo e a vaidade da autonomia da análise econômica.

O espírito que presidiu toda a sua vida de cientista é, neste sentido, exemplar. Se sua obra é vigorosa, se sua influência é profunda e duradou­ra, é porque repousa sobre um espírito crítico sempre alerta, sobre uma erudição raramente igualada e sobre uma cultura geral muito ampla. Exem­plo precioso numa época que sofreu — e ainda sofre — o perigo de es­pecializações, estreitas demais, fecundas sem dúvida em brilhantes virtuo-sidades técnicas, mas estéreis por seus resultados sem grandeza e sem pro­messa.

CONCLUSÕES

Eis terminado este estudo da evolução das doutrinas e das idéias eco­nômicas da Antigüidade até nossos dias.

A ciência econômica tem pouco mais que dois séculos de existên­cia, mas nós pudemos apanhar as dificuldades que encontrou para explicar

Page 420: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

os mecanismos de uma realidade econômica em contínua mudança. Seus esforços, auxiliados por instrumentos de análise progressivamente aperfei­çoados, permitem melhor compreender o funcionamento da atividade eco­nômica e melhor prever sua evolução. E porque, em princípio, a ciência é objetiva, tende ela a um acordo sobre as teorias explicativas de uma realidade num momento dado.

Para as doutrinas, ao contrário, a diversidade tem sido e continua a ser a regra, pois exprimem paixões, filosofias, interesses diferentes.,

Temos observado essa evolução separada, através dos séculos, das doutrinas liberais-individualistas, intervencionistas e socialistas, cada qual conhecendo a luz e sombra, o esplendor e o esquecimento, de acordo com os momentos da história.

Hoje, o liberalismo, depois de um grande século de hegemonia, desa­parece praticamente do quadro nacional. Parece que seu novo destino consiste em presidir as relações econômicas entre, comunidades de nações, sobretudo no plano continental, à espera de poder um dia realizar o gran­de sonho smithiano do liberalismo mundial.

O intervencionismo tornou-se a doutrina reinante dos sistemas capi­talistas. Seu domínio econômico-social estende-se cada dia mais. Bene­ficia-se ele das críticas merecidas do liberalismo; impôs-se pelas exigências de duas grandes guerras, separadas por uma crise econômica sem prece­dentes; responde às condições de um capitalismo molecular cujas unidades de produção seguem os imperativos da concentração crescente.

Quanto ao socialismo, sobretudo sob a forma comunista soviética e chinesa, seu campo de aplicação se estende agora à metade da população do mundo. Seus resultados demonstram suas imensas possibilidades econô­micas; sua duração, sobretudo na experiência russa, prova igualmente suas possibilidades de aceitação e de adaptação humanas.

Falar de doutrina intervencionista ou de doutrina socialista não quer dizer, como vimes, que haja unidade em cada uma delas.

As modalidades do intervencionismo variam em cada país. E, apesar dos esforços realizados para assegurar a unidade da doutrina comunista, a observação mostra que diferenciações se operam segundo o meio de apli­cação, segundo o estado de evolução de suas estruturas econômicas e so­ciais e segundo seu patrimônio cultural. Quanto mais a doutrina se aplica a países cada vez mais numerosos tanto mais perde ela seu caráter inter­nacional e mais se diferencia suscitando reações nacionais.

Toda doutrina, em contato com a realidade, matiza-se e diversifica-se. Mas sejam elas quais forem, essas doutrinas nos mostram o esforço

envidado pelos homens de todos os séculos- para tentar melhorar sua sorte. Este esforço aplica-se, de modo fundamental, à busca de uma organização da sociedade que permita conciliar mais justiça social conservando a liber­dade do indivíduo. Liberdade de escolher seu consumo e sua produção,

Page 421: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

liberdade de pensamento e de expressão. Mais justiça quer dizer mais igualdade nas condições humanas, mais igualdade nas possibilidades de va­lorização. Conciliação difícil!

E a essa dificuldade profunda que cada doutrina busca resolver à sua maneira — sem haver conseguido até o momento — junta-se agora uma outra também temível: a da conciliação do humanismo com a técnica.

As dificuldades que as doutrinas têm e terão de resolver não são so­mente aquelas que provêm essencialmente das relações dos homens entre si, mas também aquelas que resultam do poder crescente do homem sobre os acontecimentos, os quais, em grande parte, se lhe tornam acessíveis.

Uma época nova começou, há vinte anos, com a conquista do átomo. Trata-se de uma ameaça de destruição que se reflete na angústia do ho­mem diante de seu poderio? Trata-se, ao contrário, de um novo Renas­cimento que a conquista espacial conduz não mais ao limite de nosso mun­do, mas ao limite do universo?

Se o homem souber dominar esse poderio e se souber aplicá-lo na edificação de um mundo feito para ele, grandes modificações num futuro próximo são certas. A mutação está em curso. E a juventude a sente por instinto e se debate para tentar se adaptar a ela e para desempenhar seu papel criador de um mundo novo. Para realizar este mundo, uma nova maneira de pensar se impõe. Mas para que seja ela fecunda é preciso que cada um se esforce em colocar corretamente os problemas.

Ora, o espírito humano não cria a partir do nada, mas a partir de uma experiência. Eis porque a experiência que nos oferece a evolução das doutrinas e do pensamento econômicos é mais preciosa do que nun­ca para se conhecer e se meditar.

421

Page 422: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

ÍNDICE D O S N O M E S CITADOS

A

Abelardo — 48 Acevedo, Eduardo — 151 Adamovich — 334 Adenot, René — 144 Aftalion — 237, 242, 268, 395 Albert, L. B. — 60 Alexander, B. — 136 Allix, E. — 142 Almeida Nogleira, J. L. de — 281, 387 Álvaro Pais, — 48 Amaral, L. — 282 Amoroso Lima, Alceu — 48 Ammon, A. — 121 Amzalak, Mosés Bensabat — 90, 147 Anderson, J. 122 Andler, Ch. — 163, 248, 340 Angell, Jr. — 133 Anoyaut — 138 Ansecle — 282 Anselmi, A. — 334 Ansiaux — 279 Antero, Adriano — 28 Antonelli — 252, 392, 394, 395 Aprígio Guimarães — 150 Árias, G. — 334 Aristophanes — 37 Aristóteles — 22, 35, 169 Arnaud F. — 171 Aron, R. — 236 Atkins, Williard — 387 Aupetit — 395 Auspitz — 395 Auburtin — 285

Authos Pagano — 395 Azcate — 282 Azevedo, Amaral — 332 Azevedo, Aroldo de — 196 Azevedo, Fernando de — 285, 286

B

Baader, von — 341 Babel, Anth. — 61 Babeuf — 161, 171 Bagehot — 102 Bakounint — 255 Bandeira de Melo, A. T. — 353 Barbosa, J. T. — 282 Barker, E. — 34 Barjonet, A. — 227 Barone — 395 Barthélemy-Raynaud — 90 Barthole — 48 Bartholi H. — 210 Bastiat — 144, 272 Baucal, J. — 198 Baudeau (abade) — 89 Baudin, L. 43, 152, 332 Bauer, Bruno — 405 Bauer, Otto — 321 Bauer, Stephan — 91 Baumanoir, Ph. — 48 Baumgarten — 330 Baxa — 340 Bayer, H. — 334 Bazard — 187 Beauviais, Vincent de — 48

Page 423: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Beer, M. — 80 Becker, C. — 28 Bell, J. F. — 387 Bentham, J. — 136 Bentham, S. — 102 Bérard, J. — 227, 229 Bérard, V. — 59 Berle — 235 Bernard, Cl. — 90 Bérnardes, J. — 253, Bernstein — 249 Berth, Ed. — 252 Berthold, A. — 198 Bertrand — 282 Besant, Annie — 115 Besuchet, L. — 196 Bettelheim Ch. — 263, 265 Beveridge, W. — 64 Biaujeaud, H. — 121, 132 Bieler, André — 61 Bidet, F. — 144 Bigo, P. — 210, 241 Bismarck — 279 Bissolatti — 250 Biville, R. — 329 Blanc, Louis — 179, 185 Blak — 148 Blanqui — 147 Bliss, H. — 28 Blome (conde) — 323 Blondel — 288 Blum, L. — 250 Blumenberg, W. — 266 Boccardo, G. — 116 Bodin, Charles — 395 Bodin, Jean — 44, 65, 69 Boeckel — 378

Boehm-Bawerk — 132, 228, 229, 395 Bohler, E. — 335 Boisguilbert — 105 Boissonnade, — 46 Bompaire, Fr. — 394 Bonar, James — 110, 111, 112 Bonneaude, F. — 171 Booth, A. J. — 187 Borchardt, J. — 211 Borel — 206 Borross, F. L. — 263 Bosanquet — 121 Boselini — 116 Botéro — 68 Bouchette, Errol — 148 Bouchette, Joseph — 148 Bouglé, C. — 200, 203, 276, 287 Boukharine, N. — 211, 252, 281 Bougeois, Léon — 281 Bougin, G. — 171, 334 Bousquet, G. — 268, 394 Bouvier-Ajam — 332, 346

Bouvier, Cl. — 288 Bouvier, E. — 392 Boven, P. — 392 Bowen, François — 366 Boyve, De — 329 Brandenbourg, E. — 211 Brants — 48 Brants, V. — 331 Braudel, F. — 64 Brauer — 289 Braunthel, A. — 211 Brémond, — 167 Brentano, Pe. Leopoldo, — 289, 325,

381 Brentano, Lujo — 276, 381 Bridey — 54 Brinkmann, — 381 Brito, J. S. — 282 Brocard, J. — 46, 66, 90, 282, 285,

287, 288, 339, 347, 368, 372 Bronsky — 262 Brousse — 250 Bruyére, La — 88 Bucher, K. — 379, 381 Burchardt — 405 Bureau, P. — 288 Buret, Eug. — 242 Buridan, J. — 48 Byé, M. — 30, 113

C

Cabet, Et. — 171 Caetano, Marcelo — 334 Cahen, — 242 Cairnes, J. E. — 136 Cairu, Visconde de — 148, 343 Calhoum, G. M. — 31 Cannan, — 102 Cantilon, R. — 69, 89 Cappa, Alf. — 394 Carcanargues — 250 Carey — 126, 142, 144, 358, 361, 386 Cardozo de Mello Neto — 151, 387 Carneiro de Campos — 150 Carr, E. H. — 213 Carus, E. W. — 28 Carver — 395 Carqueja, Bento — 52 Cassei — 148 Castro Almeida, Virg. — 63 Catão — 43 Cauwès — 285, 339, 366, 367 Cavaignac — 31 Cavalcanti, A. — 149, 264 Cazajeux — 286 Cesarino, A. F. — 335

Page 424: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Challaye — 250 Champault, Ph. — 286 Chaptal — 344 Charléty — 187 Charlesworth, M. P. — 40 Chaves, F. C. — 282 Chenon, E. — 289 Cherbuliez — 147 Chevalier, Michael — 274 Cheyson — 286 Chiapello — 248 Child, Josias — 71, 90 Chvernik — 263 Cícero — 61 Clapham, J. H. — 46 Clark, J. B. — 383, 395 Clark, J. M. — 387 Clément, L. — 69 Cliffe, T. E. — 145 Clifford, John — 289 Cohen, G. — 47 Cohn — 275 Colbert — 69, 71 Cole, H. — 28, 250 Columella, — 43 Colwell, Staphen — 366 Commons — 226, 387 Comte, Augusto — 136, 187, 288, 290 Condillac, Abade de — 395 Condiliffe — 151 Considérant, V. — 162, 178 Conrad — 289, 346 Contzen — 48 Coornaert — 46 Copérnico — 60 Cornu, A. — 208, 209, 227 Corrêa de Oliveira, Plínio — 296 Cósio, Pedro — 151 Cossa — 111, 282 Costa Leite, L. — 334 Cottart, Maximino — 325 Cougelle, Seneuil — 137 Courtin, R. — 20 Cournot — 394 Courtney, W. L. — 136 Couto de Barros — 111 Croce, B. — 211, 248, 249 Cronin, J. F. — 291 Crowder — 387 Cunningham, W. — 66 Curtus, Ernest — 378

D

Dadu — 262 Daguessau — 38

424 Damiris, C. J. — 37

Davenant, Ch. — 71 Davis, J. — 263 Dearmer — 328 Dechesne, L. — 109 Delinières, L. — 206 Démolins — 288 Demóstenes — 61 Denis, H. — 227. 268 Descartes — 60 Desjardins, A. — 198 Desroche, H. — 210, 282 Deville — 248 v Devrient, R. — 335 Diderot — 94 Diehl — 121 Dirksen — 291 Divisia — 392, 395 Djacir Menezes — 395 Domarchi, E. — 164, 168, 200 Domarchi — 405 Dotoeuf — 151 Douglas — 130, 137 Dcumergue — 329 Dove, P. — 328 Droz — 198 Drumann — 378 Dubois — 167 Duddley North — 88 Duhring, E. — 366 Dumas, G. — 187 Dumont — 136 Dunover, Ch. — 144, 146, 187 Duns, Scott — 51 Dupin (Baron) — 344 Dumont de Nemours — 87, 94, 95 Dupont-White — 275 Duprat, J. — 203 Durham — 328 Durkheim — 163, 281, 384 Dureau de La Malle — 40 Duthoit, E. — 289 Dutot — 75

E

Eaton, J. — 250 Eblé, E. — 320 Edgeworth — 395 Edward, T. — 387 Eheberg, Th. — 346 Eherenberg, R. — 84 Eichhorn — 377 Elder, W. — 366 Elliot, H. — 136 Ely Richard — 276, 387 Enfantin — 187, 196

Page 425: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Engels — 208, 209, 211 219, 223, 227 Erasmo — 60 Espinas — 37, 385

F

Falcão, W. — 151 Fallot — 329 Fanno, M. — 334 Faria, Alb. de — 196 Faure-Coulet, — 90 Fay — 111 Feibogen — 91 Ferrara, F. — 147 Ferraris — 279 ' Ferreira dos Santos — 334 Ferri — 161 Fetter — 110, 395 Feuerbach — 208, 209 Feugueray — 52 Fevre, Lucien — 59 Fichte — 276 Figueiredo, M. de — 334 Figgis, J. N. — 289 Fisher, Irv. — 395 Focilon — 47 Fonteyraud —• 121 Forjaz — 147 Fort, P. — 105 Fouillée — 384 Fourier — 171, 175, 178 Fovel, N. M. — 334 Francote — 31 Franklin, J. F. — 289 Frank, T. — 40 Franz, G. — 380 Freitas, B. — 336 Freud — 252

Friedmann, G. — 178, 263 Friedrich, A. A. — 387 Friedrich, W. — 120 Fromont, P. — 20

G

Galliani — 38 Ganshoff, F. — 47 Garaudy, R. — 60, 210, 249, 264, 266 Gardner, L. — 328 Garnier, J. — 116 Gautier, V. — 263 Gehring — 276 Gentile — 248 Gentz — 341

George, H. — 328 Gérin-Lajoie, — 147 Gérin-Léon — 286 Germes, Saint — 39 Gernel, L. — 31 Geny, F. — 282 Gerstner — 382 Gide, Ch. — 144, 280, 282, 329 Gide & Rist — 90, 102, 136, 171, 206,

224, 252, 257, 268, 275, 281, 290 331, 358, 380

Giglo, C. — 66 Gilles de Roma — 51 Gilson — 52 Gladden, W. — 289 Glass, D. V. — 111 Glotz — 30 Godolfim, J. C. C. — 282 Godwin — 112 Goldschmidt — 346 Gomes Robles, J. — 395 Gonçalves, C. — 334 Gondra, L. R. — 395 Gonnard, R. — 37, 43, 49, 111, 112,

115, 156, 160, 195, 250, 275, 279, 319

Gore, (Bispo) — 328 Gorki — 252 Gorres, Johann Josep von — 341 Gossen — 390, 394 Gounary, J. V. de — 90 Gouth, Pastor — 329 Goyau, G. — 289 Grammont, Scipion de — 66, 69 Grant, R. — 43, 46 Gray, Alex — 112 Grazadei — 248 Graziani — 121, 395 Greef, Guil. de — 385 Greely, H. — 366 Gresham — 56, 57 Grinko — 263 Gudin, E. — 151 Guesde — 248 Guillaumin, — 138 Guillén Santa Ana, Diego — 332 Guiraud — 30 Guitton — 289 Guttermann, N. — 210 Guy-Grand, M. M. — 198

H

Haberler — 405 Haldane, R. B. — 102

Page 426: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Haller — 341 Hamilton, E. G. — 64 Haney — 121, 268, 366, 380, 382 Hansen — 405 Harden-Berg — 341 Harding — 80 Harrington — 167 Harris, S. P. — 282 Harsin — 75 Hasbach —102 Hasek, C. W. — 102 Haultmann — 198 Hauser, H. — 65, 83 Hayek — 227, 394 Hawtrey — 135, 396, 408 Heckscher, Eli F. — 66, 80 Hegel — 209 Heichelheim, Fr. — 31 Heiden, Konrad — 334 Heilbroner, R. L. — 109, 415 Heineman, M. — 227 Heitland, W. E. — 40 Held — 381 Helleputte — 321, 324 Henry, A. — 285 Herner, H. — 382 Hermann — 334 Herron, Pastor — 326 Herzog — 33, 40 Hicks — 227 Higgs — 90 Hildebrand — 380, 383 Hillquint, H. — 276 Hipias — 33 Hirst — 346 Hitz, Franz (abade) — 323 Hobson — 234, 250 Hoeltrel — 346 Hollander — 121, 135 Holyoake — 282, 283 Homan, P. T. — 387 Homero — 61 Hoog, G. — 289 Hook, S. — 210 Hoover, C. — 262 Howe — 282 Hubbird, L. — 263 Hubers — 330 Hubner — 378 Huet, F. — 320 Hughes, T. — 327 Hugon, E. — 52, 98 Hugon, P. — 109, 111, 383 Hume, David — 22 Hurtado — 282 Hussard, — 138 Hutcheson — 38, 102 Hyndmann — 250

426 Hyppolite, J. — 212

I

J

Jakob, von — 147 James, Emile — 98 James, W. — 239 Janet, C. — 288 Jarlot, G. — 292, 332 Jaurés, J. — 206, 248, 250 Jay, R. — 279 Jeandeau — 268 Jeannin — 84 Jenks — 358 Jentsch — 346 Jevons, S. — 390, 394 João XXIII — 294 e ss. Jordan — 378 Jourdain — 52 Jouveneld, B. de — 279

K

Kaldor, N. — 233 Kalech, M. — 405 Kafuri, J, F. — 395 Kaufmann — 289 Kautsky — 211, 248 Kautz — 357 Kelles — 179 Kerensky — 262 Kerjentsef — 252 Kerkner — 382 Kerner, R. J. — 263 Ketteler, E. — 323 Keynes — 111, 144, 405, 408, 410 Kingsley, Ch. — 327 Kingston, J. — 395 Klein, L. R. — 405 Klopp — 323 Knapp — 39, 381, 382 Knies — 380 Kohler, Curt — 343, 346 Kolping, A. — 323 Kopp, A. — 335 Kortenhorst — 335 Kral, J. — 321 Kraus, J. — 147 Krause — 275 Kroel — 285 Kuefstein — 323

Ingram — 102, 111, 136, 340, 380 Isabel de Castela — 61

Page 427: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Kuhlmann — 116 Kunwald — 135

L

Laboulaye, E. — 284 Labriola, A. — 209, 211, 224, 249, 250 Lacombe — 249 Lacout-Gayet, J. — 47 Lacroix — 197 Ladenthein, E. — 346 Lafargue — 245 Laffemas — 69 Lagardelle, H. — 252 Laidler, H. W. — 263, 276, 283, 327 Lamas, J. — 151 Lambuc, N. — 171 Lamennais — 320 Landauer, C. — 90 Landry, A. — 54, 162 Lange, F. A. — 136 Langestein, H. — 48 Lansac — 171 Lapeyre — 84, 289 Laskine — 156, 163, 252 Laski, H. — 209 Lasserre, G. — 282 Laufenburger, H. — 334, 355, 368 Launhart — 395 Laurat — 263 Lavergne — 282, 332 Law, J. — 75, 196 Leão XIII — 291 Le Biegue — 73 Leduc, G. — 19 Lefèbvre, H. — 210, 253, 263, 266 Le Goff, J. — 47 Le Play — 285 Le Trosne — 93 Legendre, P. — 320 Legrand, G. — 289 Lehrbuch — 147 Lemire (padre) — 320 Lênin — 234, 253, 260 Lenz, F. — 346 Leontieff — 100 Leone, Enr. — 250 Leroy-Beaulieu — 147, 151, 289. Leroy, Maxime — 187, 250 Lescure, J. — 35, 95, 233, 262, 272, 334 Levasseur, E. — 147 Lewis — 382 Lexis — 382 Leyde — 64 Lhomme, J. — 334 Lichtenstein, Príncipe de — 323 Liesse, A. — 142

% Lilienfeld — 385 Linden, H. V. — 80 Lindhal — 396 Lionello-Ciollo — 28 Lippmann, W. 109, 152 Lipson, E. — 73 List, F. — 81, 343, 345 Locke — 72 Loesewitz — 323 -Lombard. M. — 46 Lopes, J." R. — 276 Loria, A. — 121, 136, 209, 211, 222 Lorrain, H. — 332 Lloyd George — 247 Lloyd, A. — 394 Lopes, H. X. — 337 Lotz — 147 Lubac, J. — 136, 210 Ludlow, John M. — 328 Luder — 147 Lueger, K. — 323 Lukacs, G. — 266 Lundberg — 396 Luxembourgo, Rosa — 233, 234 Luz Filho, F. — 282 Luzzatt — 282

M

Mably — 90 Mac Connel — 387 Mac-Culloch — 131, 362 Mac-Donald — 249, 250 Macedo, D. R. — 81 MacGuire, Const. E. — 54 Mac Minn — 137 Machado, Aug. Alex. — 148, 151 Machado, Cássio Fonseca — 121 Mac Leod — 387 Magalhães Godinho, V. — 64 Magaud, Ch. — 405 Mahain — 279 Maiqnen — 322 Maillet — 28 Malestroit, De — 65, 69 Malon, Benoit — 123 Malthus — 110, 116, 121, 122, 144,

268, 383 Mandelbaum — 405 Man, H. De — 248 Mandeville — 105 Manoilesco, M. — 332, 336 Mans Holt, S. — 138 Mantoux — 109, 405 Marchai, André — 66, 339, 368, 396 Marchai, J. — 224, 231, 371 Marcuse, H. — 266 427

Page 428: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Mariana — 68 Marmillod — 323 Maroussem, De — 286 Marquadt — 378 Marques Guedes, Armando — 334 Marshall, A. — 111, 395 Martin, Henrique Jean — 60 Martin Y. Herrera — 151 Marx — 90, 131, 169, 208, 209, 210,

211, 212, 216, 218, 219, 220, 221, 223, 224, 228, 229, 234, 249, 254, 269, 323

Masaryk — 211 Masloff S. — 263 Mathon, E. — 335 Matlekovis — 147 Mauá, Visconde de — 195 Maublanc, R. — 171 Maunier, R. — 384 Mayer — 209 Mayronis, Fr. de — 51 Means — 235 Mehring, F. — 209 Mellaerts — 324 Melo, A. T. B. — 289 Melon — 75 Menger, A. — 250 Menger, K. — 394 Menezes, C. Alberto de — 325 Mercier de la Rivière — 87, 91 Merlino, Saverio — 250 Messner, J. — 334 Meunier, F. — 54 Michélis, J. — 332 Michell, H. — 31 Michon — 285 Mill, James — 101 Mill, Stuart — 22, 32, 136, 137, 138,

144, 168, 272 Millerand — 250 Minguetti — 233 Mirabeau — 89 Mises, Ludwig vcn — 237 Mlandenatz — 283 Molinari, G. de — 110, 116, 204 Mommsen, Th. — 378 Mondolfeo — 248 Monod, (pastor) — 329 Monroe, A. E. — 69 Montchrétien — 66, 69, 83 Montesquieu — 378 •Montpetit, Ed. — 105, 275, 385 Monzie, de — 263 Morazé, Charles — 28 Morini-Comby — 66, 339 Morus, Thomas— 66, 67 Mossé, R. — 262 Moth — 334 Mouffang, Chr. (abade) — 322

Moura, V. — 282 Mubert — 210 Muckle, H. — 187 Muelberger — 198 Müeller, Albert — 289, 290, 332, 378 Müller, Ad. — 340, 377 Müller, H. — 282 Mun, Conde de — 325, 331 Mun, Thomas — 71 Murray, R. A. — 394 Murtinho, J. — 161 Myrdal — 396, 407 ,

N

Naudet (padre) — 320 Nebenius — 147 Nef, J. U. — 61 Neill — 343 Neilson, N. — 46 Neumann — 330 Neuville — 289 Nicholson, J. S. — 102 Niemeyer, W. — 336 Nitti, F. — 289 Nogaro, B. — 392 Nogueira de Paula — 395 Normando, J. F. — 196, 263 Norohoffs — 366 North, Lord — 107, 143 Novais da Silva — 395 Novicow — 385 Noyelle — 275

O

Oberthur, Cr. — 289 0'brien, G. — 48 Oizermann — 212 Olivares — 68 Oncken, M. — 35, 90 Oppenheim — 276 Orei, Anton — 322 Orèsme, N. — 48, 55 Ortiz, A. — 68 Osório, Antônio — 395 Otfried — 378 Owen, R. — 167, 168, 169

P

Paepe, Dec. — 282 Panao, W. Oscar — 282

Page 429: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Pantaleoni — 395 Panuncio — 252 Pareto — 32, 160, 173, 209, 221, 222,

223, 227, 233, 239, 383, 385, 394 Passey, P. — 329 Passy, Fred — 148 Patten, Sim. — 135, 366, 395 Pena, Carlos Maria de — 151 Pennafort, R. de — 48 Percy — 328 Péreire, Isaac — 196 Périn, Ch. — 331 Perlmutter — 394 Perroux, F. — 236, 237, 262, 279, 289,

331, 332, 334, 336, 379, 395, 412, 415

Perry — 149 Perskine-Smith, E. — 149 Pesch, J. — 382 Pesquer — 242, 302 Petrarca — 60 Petty, W. — 71, 85 Phaléias — 32 Philip, A. — 250, 251 Philippovich — 276, 395 Pie, P. — 279 Picard, R. — 142, 198 Pieper — 321 Pierson, N. G. — 395 Pigou — 408 Pinho, Diva V. — 282 Pio X — 295 Pio XI — 295 Pirenne, H. — 40, 46, 47 Pirou, Gaétan — 30, 140, 227, 248,

252, 282, 289, 292, 319, 320, 321, 332, 333, 336, 337, 381, 384, 385, 387, 388, 390, 394

Platão — 35, 39, 376 Pitt — 118 Podmore — 168 Poincaré, H. — 25 Poissard — 287 Poisson, E. — 171, 250, 282 Polier, L. — 52 Posthumus, N. W. — 64 Power E. — 46 Prebisch — 405 Prelles, Raul de — 48 Prentice — 122 Protágoras — 33 Proudhon — 192, 197, 199, 204, 208 Proudum-Meax — 171 Puchta — 377 Pufendorf — 72

Quesnay — 89, 91, 93, 100 Quezada, S. — 151

R

Rabbeno, Ugo — 282 Rabello, C. — 195 Rabelais — 60 Rae, J. — 107 Rappard, W. — 102 Rastoul, A. — 289, 320 Rathenau — 280 Rau, H. — 149 Raushenbush, Walter — 328 Raushenbush, C. — 387 Raymond, D. — 343 Rees, J. F. — 80 Reeneard, Ch. — 179, 249 Rénard, G. — 23, 163, 179, 249, 285 Renauvain, R. — 47 Ricardo — 121, 122, 123, 131, 135, 136,

144, 145, 268, 383 Richter — 142 Riebessel — 392 Rist, Ch. — 38, 75, 102, 144, 196, 253 Ritter — 289 Rivington — 405 Robbins — 152 Robbinson, J. — 210, 405 Roberts Elmer — 276 Rocca, G. — 394 Rodbertus — 162 Rodrigues Alves — 152 Rodrigues, O. — 190 Rosário (Barão de) — 152 Roscher — 75, 116, 142, 346, 379 Rossi — 116 Rostovtzeff, M. — 31, 40 Rotteck — 148 Raubaud, L. — 76 Rougier, L. 109, 152, 332 Rousier, Paul de — 287 Rousseau — 110 Rubel, M. — 208 Ruciman —• 47 Rueff — 151, 405 Ruhle, O. — 209 Rustow — 151

S

Saint-Beuves — 198 Saint-Germès, J. — 39, 253 429

Page 430: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Saint-Léon — 289 Saint-Simon — 136, 186, 187, 190, 377 Saitzens — 267 Salazar — 334 Salis, J. R. — 268 Salomon, G. — 196 Sangnier, Marc. — 328 Santo Anselmo — 48 Santo Antônio de Florença — 51 Santo Tomás de Aquino — 48, 52 São Boaventura — 48 Sarraute, J. — 250 Sarto, M. S. — 346 Sartorius — 155 Sauter, Johannes — 341 Sauvy — 111, 122 Sauzin — 340 Savatier, R. — 90 Sax — 395 Say — 142, 144, 268, 272, 383 Schacht, H. — 334 Schaefle, Alv. — 276 Schaepmann — 324 Schell, von — 382 Schelle — 90 Schelling — 341 Schleicher — 378 Schleiermacher — 274, 347 Schloesser, R. — 282 Schmoller — 66, 75, 276, 380, 381 Schoenfeld — 395 Schoemman — 378 Schollert — 324 Schõnberg — 276, 381, 382 Schulz-Delitsh — 155 Schulze-Gavernitz — 330 Schumacher, S. — 351, 382 Schumpeter — 100, 210, 233, 381, 395 Schwalm, P. — 48 Schwiedland — 276 Scott, W. — 66, 102 Sebag, L. — 210, 266 Seckendorff — 73 See, H. — 84, 211 Ségurlamoignon — 290 Seipel (Mrs.) — 323 Seligmann — 27, 222, 289, 327, 394,

395 Sênior, N. — 144 Senn, F. — 285 Sensini — 121 Sérgio, A. — 282 Serra — 68 Servier, J. — 167 Seywour, E. H. — 405 Shaw, B. — 250 Sherwood, Sydney — 385 Sieveking — 28

430 Silva Lisboa, J. — 343

Silveira, Zenith Mendes da — 343 Simiand, F. — 65, 286, 385, 390, 392 Simonet, H. — 285 Simonsen, R. C. — 64 Sismondi, S. — 136, 190, 268, 269, 272,

273, 275, 377 Skinner, A. S. — 142 Small, A. W. — 75, 102 Smith, Adam — 22, 90, 101, 102, 108,

131, 218, 281 Smith, P. — 366 Sócrates — 376 4

Soetber — 115 Solano, E. G. — 250 Solis, D. G. — 82 Sombart, W. — 28, 209, 248, 252, 272

321, 382, 385 Sommerville, H. — 289 Sorel, G. — 252 Sorokin, P. A. — 385 Souchon, S. — 37 Souvarine, B. — 253 Souza Ferreira, J. C. — 196 Spann, Othmar — 209, 276, 340, 366,

382, 384, 385 Spencer — 384 Spinedi, F. — 394 Spirito, Ugo — 334 Sprague — 135 Stálin — 234, 241, 252, 253 Stamp, Josiah — 405 Standiger — 282 Stark, W. — 28 Stein, Lorenz von — 198, 269 Steinbuechel — 321 Stewart, Sir James — 71, 131 Stewart, Dugald — 102 Stibbs — 328 Stoddard — 387 Sttockler — 330 Storch — 147 Strong, Jos. — 328 Struve, P. — 250 Subercaseaux — 152 Sully — 69 Supino — 279 Sweezy, P. M. — 233

T

Taine — 136, 391 Tarde — 384 Taunay (Visconde) — 196 Tawney, R. H. — 61, 84 Teggart, R. — 387 Teilhac, E. — 142, 358 Teixeira Ribeiro — 334

Page 431: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Temple, W. — 328 Terra, G. — 160 Teschemacher, H. — 334 Théry — 326 Thierry, Aug. — 187 Thompson, R. E. — 366 Thompson, J. W. — 169 Thorton — 136 Thuenen, von — 351 Ticiano — 59 Tito Lívio — 61 Todt Rudolf, Pastor — 330 Tokary, Takarzewsky — 340 Toniolo — 331 Took — 141 Tosta, J. L. — 325 Totomianz — 282 Tour du Pin, Marquês — 323 Tourville — 288 Toutain, J. — 40 Trancart, G. — 405 Trever, A. — 33 Trevoux, F. — 136 Tristão de Athayde — 48 Trosne, Le — 89 Trotabas, La — 285 Trotsky — 252, 262 Truchy, H. — 286. 288 Truda F. L. — 279 • Trumer — 211 Tuan, M. L. — 268 Tugan-Baranovsky — 245 Tugwell, R. G. — 388 Turgeon — 211, 222, 242 Turgot — 38, 89, 97 Turmann, Marx — 289 Turner, J. R. — 121

u

Ulmann, W. Ure — 268

48

Vaisset-Boatbien — 136 Valdour, J. — 289 Valenziani — 334 Vanderberg — 343 Vandervelde — 250, 282 Vansittart — 327 Varga — 253 Varlez — 250 Varrão — 43 Vasconcelos, Luiz Mendes 82

Vauban — 93 Veblen, Th. — 162, 223, 224, 227, 236,

381, 387 Veiga Filho — 159 Vergueiro César, Abelardo — 151 Viance, G. — 335 Vienney, C. — 282 Vierkandt — 385 Villeneuve Bargemont — 275 193 Villermé, E. — 269 Villey, D. — 275, 408 Villiani — 48 Vincent, J. — 90 Virgílio — 43 Vivante — 279 Voirin, P. — 282 Volgelson, K. von — 323 Vollenborg — 282 Voltaire — 90 Vuilliamy — 327

W

Wagner, A. — 276, 382 . Walker — 395 Wallace — 328 Walras — 23, 95, 144, 196, 228, 392,

394 Walter — 53 Walter, G. — 52, 253 Warbasse — 282 Warschauer — 179 Webb, S. & B. — 250, 282 Weben, (pastor) — 332 Weber, Ad. — 382, 385 Weber, M. — 28, 61, 382 Weimhold — 115 Weinberger — 394 Weinstein, H. R. — 248 West, Ed. — 122 Westcott, B. — 289 Weulersse — 90 Whitaker — 132 Wichern — 330 Wicksell — 144, 396, 407 Wiebuhr — 378 Wieser, von — 347, 395 Wilhelm, A. — 98 Will, Ed. —.31, 37 Willoughby — 279 Windenfeld — 382 Wolf, F. A. — 378 Wolf, J. — 249 Wolf, L. — 282 Wolfe, B. D. — 266 Woltmann — 211 Worms — 385 431

Page 432: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

Worswick, G. — 405 Wnght, C. — 279 Wuarin — 279

X

Xavier Lopes, H. — 336 Xenofonte — 39, 61

Z

Zalercy, G. — 33b Zeeland, van — 151 Zeller, Gaston — 61 Zimmern — 30 Zinoviev — 252 Zuckerhande — 395

I m p r i m i u

E D I T O R A G R A F I C A L A T I N A LTDA. R u a C o n d c u b a , n.° 13

C E P — 03425

432 SAO P A U L O - B R A S I L

Page 433: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)

( C o n t i n t d u

A linhagem h j tórn d e analítica de sua obra o me .tida ao longo de ume sistpmátioa e cronológica exposição que inicia com o es­tudo do pensamento econômico da Antíguidctdt» e da Idade Média, pas­sando pc'r4i correntes Mercantilis­tas da Venascença, pela tradição Liberal-lndividualista do Século XVIII e pelas reações do Socia­lismo desenvolvidas no Século XIX, até chegar às manifestações mais recentes, representadas pe­los pressupostos doutrinários do Intervencionismo, cujo expoente, nas economias ocidentais, foi John Maynard Keynes.

NOTA SOBRE O AUTOR Paul Hugon foi professor da Fa­

culdade de Direito da França e da Universidade de São Paulo. Dentre suas obras, destacam-se, além de História das Doutrinas Econômicas, um texto de Moeda, uma antologia para o estudo da Evolução do Pen­samento Econômico e um estudo pormenorizado sobre a Demografia Brasileira.

APLICAÇÃO Livro Sxto para a disciplina His­

tória ca; Doutrinas Econômicas dos cu sos t!«i Economia. Em cur­sos voltados p^a outros ramos do conhec mento social, em que se ensinam Economia Introdutória ou Economia Política, ess«í texto pode ser in licado como leitora funda­mental

Page 434: Paul Hugon Historia Das Doutrinas Economicas (Ocr-nao Revisado)