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Pedagogia da participação Trabalhando com comunidades Débora Nunes 1 a Reimpressão UNESCO / Quarteto Salvador 2006

Pedagogia da Participacao

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Pedagogiada participaçãoTrabalhando com comunidades

Débora Nunes

1a Reimpressão

UNESCO / QuartetoSalvador

2006

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Este livro foi publicado originalmente em francês com o títuloLa citoyenneté à travers la participation �– Projet pilote à Vila Verde, Brésil. © UNESCO, 2001.

�“As idéias e opiniões expressas nesta publicação pertencem ao autor e não refletem, necessariamente, o ponto de vista daUNESCO. Os termos empregados nesta publicação e os dados apresentados não implicam nenhuma tomada de posição daUNESCO quanto ao estatuto jurídico dos países, territórios, cidades ou zonas, ou de suas atividades, nem quanto às suasfronteiras e limites.�”

© Copyright: Débora Nunes, 20021a Reimpressão 2006

Direitos reservados em língua portuguesa àEditora QuartetoAv. Antônio Carlos Magalhães, nº 3213Ed. Golden Plaza, sala 702Tel.: (71) 3452-0210 �– Telefax.: (71) 3353-536441275-000 �– Salvador, BA, Brasile-mail: [email protected]

Coordenação editorial:Débora Nunes e José Carlos Sant�’Anna

Foto da capa:Fotografia aérea vergtical integrante do acervo de imagens do Sistema de Informações Geográficas Urbanas doEstado da Bahia �– INFORMS, foto 07, faixa 26A do vôo fotogramétrico de Salvador, ano 1998, escala 1:8.000,Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia �– CONDER.

Revisão: Regina Martins da MattaEditoração Eletrônica e Capa: Joseh Caldas

Apoio:UNIFACS

NUNES, Débora.

Pedagogia da participação: trabalhando com comunidades / DéboraNunes; tradução Ciro Sales; Salvador: UNESCO/Quarteto,2002.

130p.

ISBN: 85-87243-16-0

1. Participação social �– Salvador, BA. 2. Antropologia urbana. 3. Ci-dadania. 4. Pobreza. I. Título.

CDD:307.98142

FICHA CATALOGRÁFICA(Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade Salvador - UNIFACS)

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Introdução ................................................................................................................................ 7

Capítulo I �– O contexto da experiência participativa .................................... 11

I - Contexto intelectual da experiência ................................................................................ 11A hipótese ................................................................................................................................. 11Pressupostos teóricos ............................................................................................................... 12Influências teóricas ................................................................................................................... 13

O urbanismo participativo ................................................................................................. 13O intelectual orgânico gramsciano ................................................................................... 15A comunicação de intercompreensão de Habermas ........................................................ 16A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire ....................................................................... 18Diferenças entre a pobreza no Brasil e a exclusão na Europa ......................................... 20

II - Contexto material da experiência ................................................................................... 23O Brasil ..................................................................................................................................... 23Salvador .................................................................................................................................... 25O bairro de Vila Verde ............................................................................................................. 28

Capítulo II - Compreender uma comunidade interagindo com ela ...... 33

I - Perfil econômico e social dos habitantes do bairro ...................................................... 33Emprego e renda ...................................................................................................................... 33Escolaridade .............................................................................................................................. 35Relações familiares ................................................................................................................... 36Vida cotidiana das famílias ....................................................................................................... 36As relações de vizinhança ........................................................................................................ 37Os lazeres .................................................................................................................................. 49Vida pública e vida cidadã ........................................................................................................ 40As relações dos habitantes com pessoas de fora do bairro .................................................... 43

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II - As mentalidades e os comportamentos dos habitantes .............................................. 44

Horizontes de vida e de interesses dos habitantes ................................................................ 47

As preocupações com a sobrevivência ocupam o tempo e o espírito das pessoas econdicionam seu olhar sobre a vida .................................................................................. 48

A baixa escolaridade conduz a um difícil acesso à cultura escrita e dificulta oconhecimento aprofundado da realidade ......................................................................... 49

O isolamento físico e social e a falta de informações impõem uma exclusãosociocultural ........................................................................................................................ 50

O sentimento de impotência perante as questões que ultrapassam o cotidiano sereflete no horizonte de interesse pessoal .......................................................................... 52

III �– A estigmatização dos pobres ........................................................................................... 52

A interiorização do estigma ..................................................................................................... 54

Conseqüências da interiorização do estigma ......................................................................... 56 A auto-imagem negativa do grupo ................................................................................... 56 O apoio a líderes fortes ..................................................................................................... 58 A inveja despertada pelos líderes que se distinguem ...................................................... 61 A inexperiência em ações coletivas .................................................................................. 63

Capítulo III: O desenrolar da experiência-piloto ............................................. 65

I - As atividades pedagógicas ................................................................................................... 66

Atividade I: a confecção da maquete do bairro ............................................................. 67As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 70Deixar as pessoas à vontade ............................................................................................... 70Fazer dos habitantes os sujeitos da experiência desde a primeira atividade ................... 70Chamar a atenção das pessoas para o bairro como um todo ........................................... 71Trabalhar coletivamente ..................................................................................................... 71Passar uma imagem agradável do trabalho realizado coletivamente .............................. 72

Atividade II: a localização do lote de cada um na grande planta do bairro .......... 72As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 74

Atividade III : a discussão das prioridades de intervenção da Prefeitura .............. 75As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 77

Atividade IV: a discussão das regras do mutirão dos passeios ................................... 79As intenções que guiaram o desenrolar da atividade ....................................................... 82

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II - As ações coletivas ................................................................................................................. 83

Primeira ação coletiva: a criação da associação de moradores ........................................ 84Nossa experiência conjunta no bairro .............................................................................. 85A Associação em ação ......................................................................................................... 87Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 88

Segunda ação coletiva: a eleição para a escolha do nome do bairro ................................ 90Nossa experiência conjunta em Vila Verde ...................................................................... 90Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 91

Terceira ação coletiva: a organização da escola comunitária ........................................... 92Nossa experiência conjunta em Vila Verde ...................................................................... 93Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 95

Quarta ação coletiva: a organização da creche comunitária ............................................ 96Nossa experiência conjunta em Vila Verde ...................................................................... 97Avaliação da ação coletiva ................................................................................................... 99

Outras iniciativas pedagógicas e alguns erros exemplares ........................................ 101Alguns erros exemplares .................................................................................................... 103

Capítulo IV: Os resultados práticos da experiência ......................................... 105

I - A Mudança no comportamento dos habitantes ............................................................ 105Despertar do interesse das pessoas para o coletivo ................................................................ 106Aprendizado das iniciativas de trabalho coletivo .................................................................... 108Emergência de líderes �“mobilizadores�” .................................................................................. 110Mudança na relação entre os habitantes e a Prefeitura .......................................................... 111Capacidade de ação coletiva autônoma ................................................................................... 112Refletindo sobre as conquistas da experiência ....................................................................... 113

II - A interação do animador externo com os habitantes ................................................. 115Romper com as relações hierárquicas ................................................................................... 116Construir a legitimidade do animador no bairro ................................................................. 117Reconhecer a diferença sem estabelecer uma hierarquia..................................................... 118Passar da dependência para a autonomia ............................................................................... 119

III - Os papéis do animador externo ...................................................................................... 119O animador como estimulador do trabalho coletivo .......................................................... 119O animador como organizador ............................................................................................ 120O animador como mediador dos conflitos .......................................................................... 122O animador como intermediário entre dois mundos ......................................................... 123

Conclusão ................................................................................................................................. 125

Bibliografia citada ...................................................................................................................... 127

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Este livro é o produto de uma experiência-piloto, realizada no bairro de Vila Verde, na pe-riferia do município de Salvador, (BA). Trata-se de um bairro projetado pela Prefeitura, e as500 famílias que, inicialmente, deslocaram-separa o local, o fizeram por se encontraremdesabrigadas, depois dos graves desabamentosde terra e de residências ocorridos durante aschuvas de maio e junho em 1995. Origináriasde diferentes regiões populares de Salvador, es-sas famílias começaram a reconstruir suas vidasem Vila Verde e, em razão disso, tornou-se pos-sível observar desde o início a dinâmica do bairroe testar um método participativo em um terre-no praticamente virgem.

Durante o ano de 1996, quando se passa-ram os acontecimentos aqui descritos, a Prefei-tura pretendia intervir fortemente no bairro. Oprojeto urbanístico já estava realizado, mas vá-rias decisões referentes aos equipamentos pú-blicos (prioridade, tamanho, local, construção,modo de funcionamento etc.) deveriam aindaser tomadas, o que sugeria ainda haver espaçopara a interferência da população. Com essa ex-periência, para a qual se obteve o acordo da Pre-feitura de Salvador, teve-se como objetivo levaros habitantes, reconhecidamente de extremapobreza e de baixa escolaridade, a participar des-sas decisões e engajá-los em ações coletivas de

melhoria de suas condições de vida. Aprovandoa metodologia participativa proposta, a Prefei-tura se comprometeu a pôr em prática os resul-tados advindos do processo, que passo agora adescrever.

A essência do método testado consistia noprincípio de que participar e se engajar em açõescoletivas significam, em si, um processo deaprendizagem da cidadania. A preocupação detestar um método provinha da consciência deque a grande legitimidade pouco a poucoalcançada pela reivindicação de participação eraacompanhada dos riscos de manipulação. A re-tórica dos políticos e profissionais de todos ostipos se apropria dessa idéia como slogan, o quenão significa que eles se disponham a enfrentaras dificuldades concretas de sua realização. Parauma participação verdadeira, o puro discursonão é suficiente, mesmo se sincero. É precisovontade política, conhecimento profissional demétodos de trabalho participativos e conheci-mento antropológico da realidade.

No caso dos bairros populares, é precisoainda uma disposição pedagógica e a busca cons-tante de uma relação igualitária com os habi-tantes. O propósito seria então retomar a ques-tão da participação em seu sentido prático, daobservação direta sobre o terreno, e contribuirpara a criação de um know-how participativo,

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ainda que modesta e pontualmente. Para aten-der a esses objetivos, propus um método comatividades pedagógicas e ações coletivas, queforam se aperfeiçoando no andamento da expe-riência. Uma concepção precisa da maneira pelaqual os animadores do processo participativodeveriam interagir com os habitantes consti-tuía-se num dos pilares fundamentais desse mé-todo.

Neste livro, o leitor vai encontrar chavespara a ação baseada na prática, ao se familiarizarcom as dificuldades cotidianas de um processoparticipativo e ao refletir conosco sobre as mes-mas. Serão vistos também os fatores que podembloquear a participação popular, a exemplo dodesconhecimento dos habitantes relativamenteàs palavras, lógicas e ferramentas dos urbanistase dos rituais práticos da democracia direta. Ou-tro desses fatores é a interiorização do estigmada pobreza, o que faz com que muitos se consi-derem incapazes de tomar parte em discussõesdesse tipo. Estes são temas aprofundados nestelivro com o propósito de fundamentar ações deincentivo à participação.

A experiência durou dez meses, durante osquais foram feitas mais de 80 visitas ao bairro,em torno de três por semana, com uma dura-ção mínima de duas horas. Nessa fase do traba-lho, ou seja, nos primeiros meses, aí estive acom-panhada de estudantes de pós-graduação emArquitetura e Urbanismo, e a partir da metadedo processo, com o final do estágio destes, pas-sei a trabalhar sozinha com os moradores dobairro. Ao fim da experiência, estavam construí-das uma associação de moradores, uma escolacomunitária e uma creche, ainda hoje em plenofuncionamento.

No primeiro capítulo deste livro, são dis-cutidas as influências teóricas que nortearam ométodo participativo, bem como o contexto noqual se desenrola a experiência. Os traços ge-rais da sociedade brasileira são brevemente de-lineados e o contexto específico de Salvador éestudado na confirmação desses traços e na re-velação de suas especificidades. Em seguida, éapresentado o caso do bairro de Vila Verde.

No segundo capítulo, o contexto é consi-derado nos seus aspectos antropológicos, bus-cando-se responder às seguintes questões: qualé o perfil social e econômico dos homens emulheres com os quais nós trabalhamos? Qualé sua visão de mundo diante da idéia de partici-pação? Quais são os comportamentos coletivosmais comuns? Por quê? Nessa fase, buscou-sea aproximação com uma das dificuldades cen-trais da participação popular: a interiorização doestigma da pobreza.

No terceiro capítulo, as etapas sucessivas daexperiência são descritas de forma jornalística eo leitor poderá, assim, seguir o animador doprocesso participativo e os habitantes da comu-nidade no desenrolar concreto do método nobairro. Entende-se que esse método, com vari-ações de adaptação a cada contexto, pode serusado em outras comunidades como forma deincentivar a participação popular no processo demelhoria de bairros populares, justificando-se,assim, sua apresentação minuciosa.

No quarto capítulo, é realizado um balan-ço dos resultados práticos da experiência emtermos de melhoria das condições de vida dosmoradores da comunidade e, sobretudo, doaprendizado da cidadania. A experiência foi con-siderada positiva, uma vez que atendeu a esses

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dois objetivos, sobretudo possibilitando a toma-da de consciência por parte de uma parcela sig-nificativa da comunidade. O alcance dos obje-tivos é também objeto de discussão neste capí-tulo, particularmente no que diz respeito à con-duta do animador em face dos moradores da

comunidade, de forma a que se possa tirar li-ções práticas para futuros processos partici-pativos.

Por fim, na Conclusão, é feito um balançopessoal acerca da experiência vivida e das liçõesaprendidas com a população de Vila Verde.

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O contexto daexperiência participativa

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I �– Contexto intelectual da experiência

A hipótese

Fui a campo com a hipótese de que A PAR-TICIPAÇÃO DOS HABITANTES EM DECI-SÕES DE URBANISMO em determinada áreapode CONSTITUIR-SE EM UM APRENDI-ZADO DE CIDADANIA. Para bem compre-ender essa premissa, quatro conceitos-chavedevem ser explicitados: participação, decisões deurbanismo, aprendizagem e cidadania.

Participar significa tomar parte em discus-sões e em decisões, desde o momento em que oproblema se apresenta até aquele de pôr em prá-tica as soluções encontradas, resultantes das dis-cussões. Participar é uma atitude voluntária, con-tínua e de longa duração. A participação pressu-pondo um conhecimento dos rituais democráti-cos, é necessário, se a população chamada a par-ticipar é inexperiente, desprovida desse arcabou-

ço, prepará-la para adquiri-lo num processo quedenominamos de Pedagogia da participação.

Decisões de urbanismo são aquelas que,tomadas em relação à cidade ou bairro, repercu-tirão no cotidiano futuro dos seus habitantes, quese traduzirão em ações concretas, seja de aplica-ção física, seja de funcionamento urbano.

Aprendizagem é o processo pelo qual umindivíduo assimila conhecimentos (e/ou), com-portamentos (e/ou), experiências que não tinha(ou tinha, mas incipientes), antes de sua vivênciade �“aprendiz�”. A aprendizagem se passa segun-do alguns princípios de cognição que foram aquilevados em conta.

Cidadania é um conceito de mão dupla:de uma parte, é a condição concreta do indiví-duo cujos direitos políticos, civis e sociais sãorespeitados; de outra, é o engajamento do indi-víduo na luta pela preservação dos seus direitose pela ampliação desses mesmos direitos numadimensão coletiva. Devem-se observar as di-mensões social (involuntária, dada) e pessoal(voluntária, adquirida) no conceito de cidada-nia aqui utilizado. A aprendizagem da cidada-nia se refere, portanto, ao processo de mudança

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Reunião para discutir a organização de um evento na comunidade.

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de mentalidade e de atitude que possibilita ummaior engajamento em torno das questões co-letivas.

Pressupostos teóricos

n O urbanismo, ao se basear numa visão deconjunto, pode incitar os moradores dobairro �– que vão aprender a perceber arealidade como um todo �– a se reconhe-cerem como grupo de interesse que seconstitui em torno dessa realidade.

n A compreensão que os habitantes possuemdas questões de urbanismo é favorecidapelo caráter concreto que elas têm no co-tidiano de suas vidas. A longa duração doprocesso participativo de discussão e de

negociação das decisões de urbanismo fa-vorece a assimilação, pelos moradores dobairro, dos dados, dos mapas, das lógicase dinâmicas urbanas etc. O caráter concretodessas questões e a longa duração do pro-cesso podem tornar compreensíveis aoshabitantes os desafios do urbanismo, so-bretudo se existir interesse dos dirigentesda experiência nesse sentido.

n O afastamento lingüístico, simbólico,temporal e cultural existente entre os ha-bitantes e os técnicos e administradorespúblicos pode ser reduzido com técnicasadequadas, permitindo o diálogo no mo-mento do processo participativo. A insta-lação de uma �“comunicação de intercom-

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preensão�” entre esses interlocutores(como será proposto mais tarde) é um doscaminhos que permitirá esse diálogo.

n A democratização das decisões urbanísti-cas, resultado da participação, permite aentrada de novos protagonistas, os mora-dores da comunidade, na discussão e for-mação dos seus líderes. Para o habitante-participante, trata-se da possibilidade desair do seu horizonte pessoal e do seu co-tidiano para uma visão mais ampla e maiscoletiva do mundo. Passa-se, desse modo,conforme o contexto, de um estado de es-pectador ao de ator da sua comunidadeou da sua cidade.

n A participação dos habitantes em um pro-cesso como o aqui proposto e descrito(com suas reuniões, discussões, polêmi-cas, negociações, votações etc.) consisteem um aprendizado dos mecanismos de-mocráticos e das regras que lhes são im-plícitas (pauta prevista, direito a voz comtempo limitado, decisões tomadas pormaioria etc.). Essas regras são pouco co-nhecidas das populações excluídas e seuaprendizado tem conseqüências diretas noexercício da cidadania.

n Na literatura corrente sobre a cidadania,esse conceito é definido como oposto aode exclusão; a cidadania é traduzida emurbanidade e em engajamento. Dessemodo, falar ao mesmo tempo em cidada-nia e em urbanismo constitui uma abor-dagem particular, pois entende-se que oato de se engajar em discussões acerca dofuturo da cidade implica exercício e/ouaprendizagem da cidadania.

n Além de todos esses pressupostos, há aidéia geral de que as discussões sobre ur-banismo podem constituir-se, para os mo-radores de uma comunidade, em ummeio efetivo de tomar conhecimento dosatores e dos processos da dinâmica social,pois as formas de organização socioeconô-micas desta última encontram-se inscri-tas na forma e no funcionamento da ci-dade (a desigualdade social, por exemplo,se inscreve na forma da cidade através dasegregação urbana).

Influências teóricas

A idéia que está na origem da proposta dopresente método de intervenção é a de reivindi-cação de um urbanismo participativo, que pro-põe intervir na cidade de modo democrático. Asdemais influências teóricas presentes no desen-volvimento desse método são: o estudo do inte-lectual que intervém em meio aos excluídos, ointelectual orgânico de Antônio Gramsci; o tra-balho desenvolvido com eles, inspirado na peda-gogia de Paulo Freire, e o tipo de comunicaçãoque deve existir nas relações entre esses parcei-ros, a chamada comunicação de intercompreen-são, formulada por Jürgen Habermas. Essas qua-tro referências são tratadas brevemente a seguir.

O urbanismo participativo

A urbanização acelerada dos últimos 50 anose a evolução política do mundo a partir dos anos1960 levaram os habitantes das comunidadeslocais a uma mobilização constante na defesa dos

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seus interesses. É por conta dessa transforma-ção que aparecem na cena urbana novos tiposde representação do cidadão: associações, comi-tês e conselhos se constituíram para dar voz aoshabitantes nas intervenções em seus bairros ecidades. Resultantes desses movimentos e ba-seadas nas iniciativas de militantes, pesquisado-res e profissionais que as apoiavam, várias ex-periências de urbanismo participativo forampostas em prática, construindo uma lógica maispróxima do cidadão.

Os Estados Unidos foram o primeiro país acolocar-se numa via de urbanismo democráti-co. Nos anos 1960, uma nova prática se impõenos bairros deteriorados das grandes cidades,contrapondo-se às renovações feitas a ferro efogo. Trata-se do Advocacy Planning, uma novadimensão da prática dos urbanistas, que se co-locam como advogados dos pobres e dos negros,defendendo-os quando ameaçados de expulsãodo seu território (KATAN, 1979). São profissi-onais que se põem ao lado desses habitantes etrabalham a partir dos seus apelos e de suas rei-vindicações. Experiências inspiradas na práticado Advocacy Planning ou próximas dela difundi-ram-se amplamente, e outros exemplos de par-ticipação popular se seguiram na Europa, comoem Bruxelas (Bélgica), Pávia e Bolonha (Itália),Delft (Holanda), Roubaix (França) e outras(BERNFELD et al., 1980).

A palavra participação ganhou grande no-toriedade a partir desses movimentos. Nos paí-ses ricos, o primeiro entendimento dessa idéiaera o de �“dar o lápis aos habitantes�”, tendo oprofissional de urbanismo como mediador. Nospaíses pobres, a participação sempre teve umsentido mais amplo de repartição dos poderes

de decisão relativamente ao uso do dinheiropúblico. Apesar disso, em todos os horizontes,uma parte dessa procura de participação foi des-virtuada pelas práticas manipuladoras de auto-ridades municipais.

No Brasil, a questão da participação nasdecisões de urbanismo se colocou de forma des-tacada nos anos 1980, período de redemocra-tização do país, tomando então uma amplitudeparticular e fazendo com que as palavras �“parti-cipação�” e �“cidadania�” aparecessem sempre jun-tas. Num país onde o poder de decisão foi his-toricamente monopolizado pelos representan-tes de uma elite econômica muito restrita, a par-ticipação da população significa uma democra-tização desse poder. No Brasil, hoje, dificilmentese cogita uma intervenção urbana sem se per-guntar sobre sua viabilidade econômica e suaprioridade em relação às imensas demandas dacomunidade beneficiária. Logo, levar os mora-dores de uma comunidade a uma participaçãonas decisões de urbanismo significa, implicita-mente, dar-lhes poder de decidir onde e comogastar o dinheiro público. A participação é as-sim portadora de uma esperança de mudançadas prioridades dos investimentos e da ação doEstado para o atendimento das carências da po-pulação desfavorecida.

A necessidade de participação dos habitan-tes do país foi reconhecida pela Constituição doBrasil de 1988 �– ao especificar que as associa-ções representativas de moradores devem par-ticipar da planificação municipal �– e reafirmadacom veemência no Estatuto da Cidade, em 2001.Muito antes disso, entretanto, algumas Prefei-turas, dirigidas por antigos militantes de oposi-ção à ditadura militar, deram um sentido con-

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Antonio Gramsci(1891-1937)

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tacreto à idéia de participação, unindo-a, na prá-tica, à idéia de cidadania. Entre as iniciativas pio-neiras no Brasil, encontramos as de Lages (SC) ePiracicaba (SP), além da experiência mais recen-te de debate público de investimentos urbanosdo Orçamento Participativo de Porto Alegre (RS).

O intelectual orgânico gramsciano

Para compreender o papel do(s) ani-mador(es) de processos participativos, presenteno método que se materializou no Vila Verde,fez-se uso de conceitos de Antonio Gramsci -intelectual e militante comunista italiano do iní-cio do século XX - sobre a necessidade de umaintervenção exterior para a transformação deuma dada situação:

(...) as idéias não �‘nascem�’ de forma espontâneano cérebro de cada indivíduo. As idéias possuem umcentro de formação, de irradiação, de difusão, de persua-são: um grupo de homens, ou mesmo um indivíduo,que as elaborou e apresentou sob a forma política deatualidade (GRAMSCI, 1966).

Isso quer dizer que existe sempre umcatalisador das mudanças, pois,

uma massa humana não se �‘distingue�’ e não setorna independente �‘por ela mesma�’, sem se organizar(no sentido amplo); e não existe organização sem osintelectuais, ou seja, sem organizadores e dirigentes(GRAMSCI, 1966).

Uma das inovações de Gramsci em relaçãoaos outros revolucionários de sua época foi aprofunda preocupação com a necessidade daexistência de uma ligação estreita entre os inte-lectuais e os oprimidos. O papel desses intelec-tuais, nomeados de �“orgânicos�”, seria o de ins-

taurar um �“movimentofilosófico transforma-dor�” em conjunto como povo:

Um movimento filo-sófico merece esse nomequando, no trabalho de ela-boração de um pensamentosuperior ao senso comum ecientificamente coerente,não esquece jamais de ficar

em contato com os �‘simples�’, ou melhor, encontra atra-vés desse contato a fonte dos problemas que devem serestudados e solucionados (GRAMSCI, 1966).

Assim, Gramsci enriquece as proposiçõesrevolucionárias da época: o intelectual orgâni-co era um catalisador de mudanças e não a van-guarda �“iluminada�” que chega com um projetopronto a ser aplicado sem contestação. A novi-dade de Gramsci em relação ao pensamentomilitante de sua época é a intensidade com quepensava na necessidade do que ele chamava de�“reforma intelectual e moral�” na sociedade, afir-mando que: �“toda relação de hegemonia é ne-cessariamente uma relação pedagógica�”(GRAMSCI, 1966). Ele levava em considera-ção o caráter heterogêneo do �‘bloco histórico�’que iria realizar as transformações na sociedadee o modo como seria possível estabelecer rela-ções em seu seio: a base destas estaria na nego-ciação e no compromisso. No espírito dessasidéias, Gramsci criou ainda dois conceitos queserão úteis no exercício da interferência em umbairro: o �“consentimento ativo�” e a �“vontadecoletiva�”. O �“consentimento ativo�” seria a ati-tude de aprovação consciente e de participaçãoem um projeto baseado em compromissos da

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parte de cada uma das pessoas envolvidas:�“Quem consente se engaja (...) a participar deum trabalho ativo e responsável�” (GRAMSCI,1966). A �“vontade coletiva�” seria o objetivo atin-gido após um processo de negociação de inte-resses entre os sujeitos do projeto hegemônico:�“a hegemonia pressupõe sem dúvida que é pre-ciso levar em consideração os interesses e as ten-dências dos grupos sobre os quais a hegemoniaserá exercida�” (GRAMSCI, 1966).

A comunicação deintercompreensão de Habermas

Tinha-se em mente que, para o sucesso doprocesso participativo, a questão da comunica-ção entre habitantes, animadores, técnicos eautoridades públicas seria fundamental. Comopossibilitar uma relação de igualdade, sem ma-nipulações, em clima de entendimento e

objetivando acordos? O que fazer para que arelação �“intelectual/grupo�” não derivasse para arelação �“dirigente/dirigido�”, bem próxima da de�“dominante/dominado?�” Para evitar essas arma-dilhas, enfrentamos o problema utilizando al-guns princípios de Jüngen Habermas.

A abordagem habermaniana da comunica-ção consiste em classificar essas relações em doistipos: a comunicação que visa a um acordo parti-lhado entre os interlocutores (intercompreen-são), e a orientada para a obtenção da aceitaçãoda idéia pelo interlocutor (estratégica). Haber-mas define a comunicação de intercompreensãocomo um �“processo de entendimento entre su-jeitos capazes de falar e de agir (...) compreen-dendo do mesmo modo uma expressão lingüís-tica�”, acrescentando ainda que �“os processos deintercompreensão visam a um acordo que satis-faça as condições de assentimento, racionalmen-

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te motivado, do conteúdo de uma expressão�”. Nacomunicação estratégica, que não é uma relaçãode real diálogo, o acordo pode ser obtido pelamanipulação, pois seu objetivo é o sucesso de umdos interlocutores (HABERMAS, 1987).

Para Habermas, o acordo que resulta deuma comunicação de intercompreensão éconstruído, ao contrário do acordo �“obtido�” pelacomunicação orientada para o sucesso. Essa di-ferenciação remete aos participantes da comu-nicação: no primeiro caso, trata-se de uma rela-ção SUJEITO-SUJEITO e, no segundo, umarelação SUJEITO-OBJETO. Entretanto, naexperiência concreta, é difícil identificar os ti-pos de comunicação: sempre há uma certaambivalência (comunicação estratégica eintercompreensiva ao mesmo tempo). A dife-rença entre os dois tipos de comunicação éidentificada pela preponderância de uma delas:na intercompreensão ultrapassa-se a ambivalên-cia, que pode ser mantida na estratégica. Estaavaliação da ultrapassagem da ambivalência éuma questão interpretativa e, uma vez que nãofornece certezas �“quantitativas�”, encontramo-nos no domínio da sociologia compreensiva. Adistinção feita por Habermas entre as duas açõesremete ao contexto e à intenção do interlocutor.

Jeanneret, em um artigo sobre Habermas,resume com muita clareza os princípios conti-dos nos seus escritos, úteis, neste momento, àconstrução da metodologia de intervenção ob-jeto deste livro: �“Considerar o outro como umsujeito e não como um objeto é o que distingue acomunicação de intercompreensão de uma sim-ples manipulação�” (JEANNERET, 1992). A con-tribuição teórica buscada em Habermas, para estetrabalho, encontra-se assim em dois domínios:como uma das inspirações do método parti-

cipativo e como uma das bases de análise do de-senvolvimento do processo de participação.

No trabalho de campo, os conceitos deHabermas foram utilizados para observar comose processava a comunicação entre os interven-tores e a comunidade, assim como outras rela-ções no bairro. Assim, a questão de haver parti-cipantes com um estatuto prévio, o que lhesconfere mais poder que aos outros, pode ser umobstáculo para a intercompreensão. Dessa for-ma, impôs-se a idéia de caracterizar a comuni-cação intercompreensiva.

As condições necessárias para que existauma relação de intercompreensão entre os par-ceiros do processo participativo podem ser re-sumidas assim:

1. os parceiros se reconhecem mutuamen-te como sujeitos e desejam a troca;

2. a busca do entendimento é o meio esco-lhido para construir o acordo e, assim, não háimposição dos pontos de vista: na comunicaçãoentre os parceiros não se utilizam os argumen-tos de autoridade e de poder;

3. uma compreensão mútua da linguagem éessencial para a intercompreensão; dessa forma,a etapa prévia de escuta e aprendizado mútuosda linguagem de parte a parte é indispensável,bem como a construção de um saber comumatravés de conversas, de atividades coletivas etc.;

4. as convicções adquiridas durante o pro-cesso são baseadas na exigência recíproca de va-lidade em três campos, conforme estabelecidopor Habermas na referida obra:

n verdade: a possibilidade de verificação doque dizem os interlocutores é sempre pre-sente no mundo objetivo, pois os argu-mentos partem da racionalidade e da pos-sibilidade de refutação;

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Paulo Freire (1921-1997).

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que extinguissem as injustiças sociais e a opres-são. Freire participou desse momento da histó-ria e criticou a prática da educação existente, li-gando o analfabetismo ao atraso do desenvolvi-mento do país. Foi ele que criou expressão �“edu-cação bancária�”, afirmando que, então, proces-sava-se um �“depósito�” de conhecimento do pro-fessor para o aluno, visto como mendicante dosaber e submetido a uma hierarquia esmagado-ra para com o �“mestre�”. Contrapondo-se a tudoisso, Freire propunha uma �“educação deproblematização�”, na qual o aluno, situado noseu contexto e reconhecido em sua riqueza par-ticular e no saber fazer, seria incitado àcriatividade e a ter uma consciência crítica. Nes-se processo, fundamentando-se no diálogo, aaprendizagem deveria ser efetuada conjunta-mente pelo educador e pelo educando.

Para lutar contra o analfabetismo reinanteno país, Paulo Freire criou um método que al-fabetizaria adultos em 40 horas, por meio dediscussões nos �“Círculos de Cultura�”. Os de-bates deveriam ser conduzidos por um �“coor-denador de debates�”, apto ao diálogo, e não porum �“mestre�”. As bases práticas desse método dealfabetização são:

1. a alfabetização deve partir da vida cotidi-ana do aluno, em um processo no qual ele é osujeito e não um objeto; assim, as �“palavras ge-radoras�” de debates e de aprendizagem no Cír-culo de Cultura sairiam do �“universo vocabular�”dos alfabetizandos;

2. o meio para a alfabetização é o diálogo;é preciso, portanto, criar situações existenciaistípicas da vida dos alfabetizandos para promo-ver o debate e incitar a fala dos participantesdo grupo;

n justiça: no mundo social, logo, na legiti-midade moral de cada um, é que se buscaa validade do que é dito;

n sinceridade: a autenticidade do que édito em relação ao contexto pessoal.

A Pedagogia do Oprimidode Paulo Freire

A terceira influência teórica, a mais impor-tante e decisiva na elaboração desta metodologiade intervenção, é a da �“Pedagogia do Oprimi-do�”, de Paulo Freire, que, reflete um momentoimportante do pensamento engajado, típico dosanos 1960, quando o Brasil vivia um período deintensa mobilização por reformas estruturais

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1 Consciência mágica ou intransitiva: o homem,vendo a realidade, os fatos, como uma forçasuperior, se torna fatalista.

Consciência ingênua: o homem, crendo-sesuperior aos fatos e interpretando-os comoquer, torna-se assim fanático.

Consciência crítica: o homem, vendo arealidade através das suas relações causais ecircunstanciais, pode, assim, agir de uma formaflexível, analítica, inscrevendo-se na realidadesem se adaptar nem se submeter a ela.

2 Esta afirmação é próxima daquela de Marx, noManifesto comunista: a ideologia de umasociedade é aquela da sua classe dominante.

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Utilização do método Paulo Freire na escola comunitária.

3. o objetivo fundamental é a passagem daconsciência mágica à consciência crítica e quese ultrapasse também a consciência ingênua1 .Os objetivos a serem alcançados são a alfabeti-zação e a �“conscientização�”.

Assim, alfabetizar seria �“dar a voz�” ao alfa-betizando e chegar com ele à �“conscientização�”.Para Weffort, em prefácio de Educação como práti-ca de liberdade, importante obra de Freire (1985),�“a alfabetização e a conscientização não se sepa-ram jamais. Este princípio, na verdade, não temnecessidade de se limitar à alfabetização, pois éaplicável a todos os tipos de aprendizagem�”. Épreciso ressaltar que a �“aprendizagem da cidada-nia�” de que se fala neste livro está muito próximado conceito de �“conscientização�” de Paulo Freire,termo-chave da sua pedagogia, pois encerra to-dos os conceitos-base dessa concepção:

A conscientização implica superar a esfera de apre-ensão espontânea do mundo, para alcançar uma esfera

crítica na qual a realidade se torna um obje-to passível de conhecimento e na qual o ho-mem assume uma posição epistemológica(...) a conscientização é um compromissohistórico (...) não pode existir fora da práxis,ou seja, sem o ato ação-reflexão. Essa uni-dade dialética constitui, de maneira perma-nente, o modo de ser e de transformar o mun-do que caracteriza os homens (FREIRE,1979).

Em suas obras, Paulo Freire ultra-passa a simples constatação da existên-cia da opressão e revela os mecanismospsicológicos que ela produz nos opri-midos. Trata-se de um desprezo de simesmo, originado da introjeção dasidéias negativas que os opressores têm

do povo. O oprimido interioriza a idéia de serinferior, identificando-se aos ricos e querendose parecer com eles. Esta seria a �“adesão�” ao do-minante, quando os oprimidos �“hospedam emsi o opressor2 �” e são empurrados para uma de-pendência emocional. Assim, na prática peda-gógica, é necessário quebrar esse mecanismo de

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Quadro 1: Síntese das constatações e propostas de Paulo Freire

INDIVÍDUO SOCIEDADE CONSCIÊNCIA

Objeto/Massificação Sujeito/ Humanização Sociedade Sociedade Consciência Consciêniafechada aberta intransitiva transitiva

Contatos no Contatos com Alienação Participação Instinto e emoção Intelecto emundo o mundo Simplificação problematização

Reações irrefletidas Reações refletidas Soluções Estudos e Ausência de Responsabilizaçãoe fixas dinâmicas e plurais importadas projetos compromisso

próprios

Hoje constante Historicidade Pessimismo Autoconfiança Explicações Princípiosfabulosas causais

Abstenção Interferência Sectarismo Tolerância Polêmica Diálogo

identificação do oprimido com o opressor, queé, ao mesmo tempo, de dependência. Esse atonão pode ser puramente intelectual, mas práti-co, quando o oprimido dá espaço à própria voz,reconhece o valor da sua ação no mundo e se dáconta que ele transforma este mundo, ainda quemodestamente, dia após dia. À medida que seapercebe de sua condição de oprimido e do seuvalor como homem, passa a ter vontade de mu-dar esse estado de coisas. Essa transformação échamada de conscientização.

Paulo Freire enfatiza que a conscientizaçãonão é jamais dada e que ela é fruto da repetiçãode palavras de ordem; ela é sempre construídaem cada um através de sua relação com os ou-tros. Freire lembra aos líderes revolucionários,assim como aos educadores, que o engajamentode cada um deles numa luta maior foi precedi-do da convicção da necessidade de lutar: �“é suainserção lúcida na realidade, na situação histó-rica, que os levou à critica dessa situação e ao

impulso da transformação�”. A educação crítica,ressalta Freire, compreende assim a conscienti-zação. No quadro abaixo, buscou-se fazer umasíntese das idéias de Paulo Freire, apresentan-do-se o movimento, sempre ressaltado peloeducador, da passagem possível de uma situa-ção de opressão a uma outra de libertação. Essapassagem efetua-se em escalas variadas (indiví-duo, sociedade, consciência), aqui consideradas.

Diferenças entre a pobreza no Brasil e aexclusão na Europa

Antes de passar à descrição e análise do con-texto material e antropológico do bairro, do qualse pode dizer que se trata de um bairro �“pobre�”e/ou �“excluído�” dos progressos materiais da ci-dade, é importante estabelecer-se a distinçãoentre os sentidos dados por europeus, brasilei-ros e outros povos latino-americanos aos ter-

Fonte: elaboração da autora.

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mos pobreza e exclusão, verificando-se uma efe-tiva riqueza antropológica na interpretação des-ses dois conceitos. A noção de pobreza é vistaaqui como característica do contexto brasileiroou ainda latino-americano (preferindo-se nãofalar de contextos próximos, mas pouco conhe-cidos, como o africano), e a noção de exclusão éassociada a sociedades de maior igualdade social,particularmente ao contexto europeu.

A pobreza se distingue da exclusão sob vá-rios pontos de vista. Para traçar um quadro com-parativo, foi utilizada a obra coletiva organizadapor Paugan (1996), segundo a qual, no contex-to europeu, há diferenças manifestas entre osconceitos de exclusão e de pobreza. Paugan dizque �“a pobreza caracteriza a entrada na socieda-de industrial, antes das conquistas sociais e dasregulações estatais�”, enquanto �“a exclusão tra-duz a crise estrutural de seus fundamentos, de-pois de várias décadas, durante as quais a misé-ria parecia haver desaparecido�”. Em termos con-cretos, as duas situações são caracterizadas pelaprecariedade do emprego, pela falta de qualifi-cação, pelo desemprego e pela incerteza quantoao futuro. O espaço do habitat é também umacaracterística comum dos pobres e dos excluí-dos, apesar das diferenças materiais e tecnoló-gicas entre alguns subúrbios europeus ditos�“problemáticos�”, por exemplo, e a favela brasi-leira. O que os aproxima é o fato de que este-jam localizados geralmente longe do centro dascidades e que sejam freqüentemente percebi-dos de uma maneira negativa.

A maior diferença é o contexto moral e so-cial dos pobres e dos excluídos. Como pano defundo, há o fato de que a pobreza é um fenô-

meno mais �“hereditário�”, no sentido de que sãoas crianças pobres que têm maiores riscos decontinuar pobres quando adultas. O sentido deexclusão é mais amplo, consistindo num pro-cesso que pode conduzir uma faixa significativada população à miséria material e moral. Aindaconforme Paugan, a exclusão decorre de umacúmulo de dificuldades concretas e de umaruptura progressiva dos laços sociais, que ex-põem os que vivem em situação de instabilida-de (desemprego, trabalho precário, ruptura con-jugal, dificuldade de acesso à moradia) ao riscoda marginalização. Essa diferença de escala �– apobreza numericamente extensa, mas social-mente circunscrita, e a exclusão restrita nume-ricamente, mas socialmente ampla �– é acompa-nhada de uma diferença de contexto que torna osofrimento moral da exclusão mais difícil, a meuver, que o sofrimento advindo da pobreza.

A diferença aqui estabelecida entre o estadomoral das pessoas que vivem a pobreza e a exclu-são é baseada tanto nos discursos sobre a exclu-são na França e a pobreza no Brasil quanto noque pude perceber no cotidiano do bairro deVila Verde. Os clássicos sintomas do sentimentode exclusão, largamente difundidos na literaturafrancesa sobre o tema �– sentimento de solidão,tédio, vazio existencial, amargura �– não foramobservados no bairro popular onde se passa aexperiência aqui descrita. Ali, encontram-se ossentimentos de abandono, fatalismo, revolta, ro-tina, mas não a miséria moral, e, como será vistoadiante, percebe-se alegria de viver em Vila Ver-de. Não se trata de um discurso para atrair turis-tas, mas de um dado da realidade, na praia ou nafavela.

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Ser pobre no Brasil de hoje(semelhanças com o século XIX na Europa)

Sentimento de pertencer a uma maioria �– o povo.

�“Consciência de integração periférica�” (CHAUI, 1986),inconsciência ou, menos freqüentemente, identidadepelo sentimento de ser explorado pelos ricos.

Esperança religiosa de uma recompensa em outra vida,ou de vida no dia-a-dia. Em alguns casos: sonho defundação de uma sociedade mais justa.

Impressão de seguir um destino de pobre, herdado dospais ou, às vezes, o sentimento de alguma melhora emrelação à geração precedente.

Convivência num ambiente gregário e vivência dasolidariedade de vizinhança.

Suporte familiar nos momentos de derrota social.Vínculos fortes com uma família polinucleada esentimento de dever para com os parentes.

Para a maioria, distância física dos ricos e da classemédia. Sentimento de estar desprovido de meios deinserção social e de consumo exibidos na mídia.

Vida social paralela ao modo de vida dos ricos

Grande sofrimento material.

Ser excluídona Europa de hoje

Sentimento de estar fora de tudo, fora dasociedade de consumo.

Perda de identidade. Vergonha da derrotasocial.

Falta de perspectivas coletivas, desinteressepela política e distância das questõesreligiosas.

Sentimento de derrota diante do fato de que ageração precedente é mais bem-sucedidasocial e economicamente.

Laços sociais fracos e ambiente de vizinhançaindiferente.

Perda de laços sociais nos momentos dederrota social. Contatos reduzidos com afamília e desengajados.

Proximidade física dos ricos e da classe média.Enorme oferta de bens de consumo, sempremonetarizados. Sentimento de estardesprovido de meios de inserção.

Ausência de vida social, perda de tradições.

Comparativamente, menos sofrimentomaterial.

Com o quadro abaixo, propõe-se um elo entre as idéias já discutidas, acrescentando-se outras:

Quadro 2: Comparações Pobreza x Exclusão

Fonte: elaboração da autora.

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II - Contexto materialda experiência

O Brasil

No Brasil, a concentração de riquezas é umadas mais fortes do mundo. A herança da épocacolonial �– concentração de terras e escravidão �–é uma das origens da desigualdade em geral eda pobreza dos descendentes de escravos emparticular. A industrialização, vinda após a Re-pública, e particularmente pós segunda Guerra,não mudou radicalmente a sociedade de senho-res e escravos, ainda que tenha contribuído paraa urbanização galopante e a criação de uma classemédia quase inexistente anteriormente. Tudomudou e nada mudou ao mesmo tempo no sé-culo XX, pois jamais existiu um verdadeiro Es-tado de Bem-Estar Social para colocar em xe-que o modelo de riqueza concentrada e misériageneralizada. Durante o período de ditaduramilitar, o processo de modernização se acele-rou, o país tornou-se uma das maiores potênci-as econômicas do mundo, mas a concentraçãode riquezas também se acentuou. Hoje, o PIBbrasileiro é de aproximadamente 350 bilhões dedólares (sendo o PIB por habitante mais oumenos 2 mil dólares), enquanto o salário míni-mo mensal está em torno de 60 dólares. Maisainda, a precariedade dos empregos e a ampli-tude do mercado informal fazem com que estesalário e as garantias sociais mínimas adquiridasao longo do tempo não sejam acessíveis a todos.

Como será visto mais adiante, o conjuntodesses dados sobre as desigualdades sociais foisignificativo durante o desenrolar da interven-ção. Tratava-se de membros de uma �“elite bra-sileira�”, encontrando no bairro uma conjunçãode fatores ligados à pobreza �– baixos rendimen-tos, fraca escolaridade e uma forte presença depopulação mestiça. Assim, a experiência-pilotoserá vista muitas vezes como convivência de doismundos, o dos pobres e o dos ricos. A relaçãoentre animadores / habitantes, refletindo essadualidade do país, será, portanto, um elementoessencial nas análises aqui feitas.

A sociedade dual aparece hoje em dia demaneira flagrante nas cidades, onde a opulênciae a alta tecnologia convivem lado a lado com apobreza e o atraso socioeconômico. Os arranha-céus estão encostados em barracos; as comuni-cações via e-mail coexistem com as cartas quenão chegam aos destinatários por causa da lamaque invade as ruas dos bairros pobres, impedin-do o carteiro de ter acesso às casas; as máquinassofisticadas de controle automático do tráfego,presas aos postes dos sinais de trânsito, susci-tam o interesse das crianças, mas elas estão lápara mendigar junto aos automóveis parados.Este quadro é bem definido pela expressãoBelíndia, neologismo muito usado nos anos1970, pelo qual se reconhecia que o Brasil eraao mesmo tempo a pequena Bélgica desenvol-vida e a imensa Índia pobre. A expressão podeser atualizada, no mundo neoliberal globalizado,pelas decorações luminosas do Natal, vistas nasfachadas dos imóveis ricos, assim como nos bar-racos das favelas: decorações luminosas,fabricadas nos Estados Unidos, compradas nosimponentes shopping centers de Miami, e outras,

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vindas da China, adquiridas nos camelôs do cen-tro da cidade.

Para manter esse quadro de desigualdade,potencialmente explosivo, a tradição políticabrasileira misturou autoritarismo e paternalis-mo, e as relações entre os pobres e os ricos, en-tre os poderosos e os �“fracos�” são fundamenta-das nesse duplo suporte (LEAL, 1975; FREIRE,1982). Desde a escravidão até as relações políti-cas de hoje, encontramos esta fórmula: �“eu lhepresto serviço, você me resta fiel�”. Nas relaçõesde poder observadas em Vila Verde, essa carac-terística sempre esteve presente. É evidente queessa vivência do autoritarismo e do paternalismoé contrária à participação e à autonomia pressu-postas na idéia de cidadania; é assim que, paravários observadores, a cidadania é uma constru-ção não concluída no Brasil (SANTOS, 1987;DA MATTA, 1986; SANTOS, 1978)

O Brasil retomou a via democrática depoisdas grandes campanhas civis dos anos 80 do sé-culo XX, sem deixar de ser um dos países maisdesiguais do mundo. Entretanto, a contestaçãodos anos 1990 à sociedade dual tornou-se maisampla, no sentido de envolver a sociedade civilmenos politizada e voltar-se para ações mais prá-ticas e cotidianas, sem deixar de questionar omodelo brasileiro de sociedade e mostrar um paísem curso de mudança. Parece que depois da tor-menta da inflação galopante, o país encontroutempo e capacidade para ver suas misérias.

Passa a existir uma sensibilização crescentepara os problemas sociais, talvez porque estesaconteçam também fora dos bairros pobres edegenerem em violência urbana, a qual cresceuenormemente. Alguns fatos são significativospara esta sensibilização. Um deles é a reforma

agrária, que, por décadas, foi uma palavra de or-dem subversiva, vista como �“coisa de comunis-tas�”, e passa, nos anos 1990, a ser uma questãonacional, mobilizando favoravelmente a opiniãopública. No mesmo período, a sociedade civilsustentou um grande movimento de solidarie-dade aos mais desfavorecidos, a �“Campanha con-tra a fome e pela cidadania�” ou a �“Campanha doBetinho�”, marco de mobilização e tomada deconsciência nacional sobre a necessidade de umaação contra a miséria. As questões ligadas ao ra-cismo e à violência policial principalmente, an-tes relegadas às páginas policiais dos jornais, co-meçaram a ocupar lugar de destaque na impren-sa, demonstrando que a sociedade passa, pouco apouco, a perceber como seus, problemas que atin-gem preferencialmente os pobres. O tema domeio ambiente, antes visto como questão demico-leões dourados e tartarugas em extinção,passa a se vincular cada vez mais às questões ge-rais da sociedade, como as condições de vida dapopulação pobre no meio urbano.

A busca de uma �“cidadania para todos�” sebaseia em movimentos de caráter nacional, masaparece preferencialmente na esfera local, mui-tas vezes se constituindo em experiências e prá-ticas alternativas de exercício do poder nos mu-nicípios. Esses movimentos e essas Prefeiturassão dirigidos, de modo geral, por personalida-des políticas e militantes, oriundos dos movi-mentos sociais contra a ditadura e pela redemo-cratização. Outros agentes sociais importantessão as ONGs �– que proliferaram na última dé-cada �– e as Universidades, cujas experiências setornam cada vez mais presentes, contribuindoassim, mesmo pontualmente, para mudar o qua-dro do país. A experiência no bairro de Vila

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Verde, em Salvador, como tantas outrasdesse tipo que vêm se desenvolvendo lo-calmente no Brasil, pertence a essa cor-rente em que pequenas vitórias sobre omodelo da desigualdade e da opressãosobre os pobres se destacam para mos-trar uma outra via de desenvolvimento,a que é feita com a participação do povo.

Salvador

Salvador foi a primeira cidade e a pri-meira capital do Brasil (de 1549 a 1753) e,durante três séculos, a mais importanteaglomeração urbana do país. Hoje, a cida-de de Salvador é a terceira municipalidadebrasileira em população (2.443.107 habi-tantes), depois de São Paulo e do Rio de Janeiro,constituindo-se numa metrópole regional moder-na, tipicamente latino-americana, onde as classesdesfavorecidas estão relegadas à periferia e às ilhasde pobreza ao lado dos bairros ricos.

Com uma gritante precariedade dos servi-ços públicos, a cidade de Salvador apresenta umproblema específico que vitimou também a po-pulação do bairro de Vila Verde, que apresen-taremos a seguir. Trata-se do fato de que a po-pulação pobre mora principalmente nos valese nas encostas da cidade, que são as superfíciesmenos disputadas pelo mercado imobiliário.Essas zonas eram até recentemente considera-das de alto risco, pois os desabamentos de ter-ra nas encostas eram freqüentes e os vales, naépoca das chuvas, recebiam os detritos prove-nientes destes desabamentos e sofriam inun-dações. Os acidentes em Salvador possuemcausas de ordem natural e uma outra, urbanís-

tica. As chuvas fortes (concentradas essencial-mente durante os meses de março, abril emaio), a existência de um escarpamento decor-rente de uma falha geológica e a presença deum solo que se desagrega facilmente são cau-sas naturais. A urbanística, é a ocupaçãodesordenada dessas encostas. Durante a cons-trução das casas, o aproveitamento do terrenonão é feito da maneira correta, para permitir oescoamento das águas e não sobrecarregar osolo. Há a destruição da proteção vegetal na-tural dos talvegues, corte das encostas de modoabrupto e sem arrimos de proteção (para cons-truir ou aumentar suas casas) e despejo dosdejetos domésticos sobre o trajeto natural deescoamento das águas da chuva.

Os desmoronamentos de terra devidos àocupação inadequada das colinas escarpadasaumentaram nas ultimas décadas, em razão dourbanismo acelerado. Durante muito tempo, a

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Ondina – convivência da formalidade e informalidade.

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cidade assistiu a tragédias na época das chuvas: asinundações em ruas e avenidas provocam o caosna cidade e os bairros pobres sofrem os maioresdesgastes, dada a precariedade de suas constru-ções. Nesses locais, os desmoronamentos de ter-ras soterram as casas e provocam também o de-sabamento de edifícios, que caem uns sobre osoutros, resultando, geralmente, em casos de mor-tes, feridos, famílias sem abrigo, perdas de bensfamiliares, e deixando seqüelas irreparáveis.

A Prefeitura ignorou durante muito tempoos desabamentos, pois se tratava de uma questãourbana periférica, jamais levada seriamente emconsideração. Dentre outras razões para essaincúria, sabemos que enfrentar o problema dosdesabamentos de terra nos talvegues implica in-tervenções de grande porte, que devem ser pla-

nificadas e administradas minuciosamente, pois épreciso deslocar as famílias em perigo para outrosbairros e realizar obras demoradas e onerosas. Nosúltimos anos, em face do clamor da sociedade,essas obras começaram a ser realizadas.

Alguns números permitem conhecer ascondições de vida da população de Salvador, queé uma mostra mais ou menos representativa doque ocorre no resto do Brasil. De início, é pre-ciso registrar que, na Região Metropolitana deSalvador (RMS), os 10% mais ricos concentramaproximadamente 50% dos rendimentos, en-quanto os 10% mais pobres detêm apenas cercade 1%. Entretanto, Salvador é um caso particu-lar, pois, ao lado de uma população com altosíndices de pobreza, possui a reputação de umacidade onde reina a alegria de viver. A dança e

Desabamentos deixaram muitas vítimas em 1995, entre elas a população de Vila Verde.

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3 Muitos pesquisadores e escritores, entre elesJorge Amado, já fizeram esta observação, queVilmar Faria resumiu da seguinte forma: �“Parao visitante eventual (...de Salvador ...) aimpressão que passa é que ele está diante deuma pobreza fácil e alegre, não-ressentida,brincalhona, até desdenhosa do bem-estarmoderno (...) Mesmo para um pesquisadormais atento, se ele não é baiano, não é fácilcompreender o sentido, a amplitude e aprofundidade da pobreza (...). Um grave erroseria se manter neste plano, seja paradenunciar isto como uma mistificação, sejapara se maravilhar desta pobreza feliz�” (p. 23).

os ritmos da cultura popular, assimcomo sua beleza natural e o seupatrimônio arquitetônico exercemuma forte atração. Essa aparência ale-gre advém da sua organização urbana,cujo setor �“formal�” se localiza próxi-mo das belas praias e esconde por trásdele as favelas e invasões. Contudo,aquele que vive durante algum tempoentre a população de um desses bair-ros miseráveis se dá conta de que nãose trata somente de uma aparência, masque existe realmente essa porção dealegria �“quase gratuita�” em Salvador,que revela uma �“pobreza mais auto-confiante, mais alegre, menos triste�”(FARIA, 1980)3 . Existe certamenteuma tendência a usufruir os prazeressimples, que estão na origem tambémda criatividade e da vivacidade da suacultura popular. É difícil dizer se a ex-plicação desse fato se encontra no cli-ma, na mestiçagem, na espontaneida-de das relações humanas ou em qual-quer outro fator, mas é útil salientaressa constatação antes de passar aos da-dos que mostram a pobreza existente na cidade.

A taxa de desemprego total na Região Me-tropolitana de Salvador, em junho de 2002, erade 28,0%, a maior do Brasil (www.sei.ba.gov.br/conjuntura/rel_ped.asp). Se tomarmos a Pes-quisa de Orçamento Familiar do IBGE (1996),veremos que as famílias extremamente pobres,que ganham até dois salários mínimos, repre-sentam 21,6% do total. As famílias pobres, con-sideradas aqui como aquelas cuja renda total deseus membros está compreendida entre dois e

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cinco salários mínimos, representam 27,7%. Aclasse média, em amplo espectro, ou seja, as fa-mílias que ganham entre cinco e vinte saláriosmínimos, representa 59,7% do total e as famíliasricas, que têm renda superior a vinte salários mí-nimos, são 9,7%.

Para completar o panorama atual da pobre-za e da desigualdade, podemos acrescentar da-dos que testemunham a dificuldade em modi-ficar esse quadro no futuro: a maioria dos em-pregos da cidade encontra-se no setor terciário�– cerca de 80% a população �– (Salvador em da-dos �– 2000, PMS), que conserva vestígios dasrelações escravistas, pois uma grande parte dasempregadas domésticas, por exemplo, aindamora na casa dos patrões, o que lhes permite asolicitação dos seus serviços a qualquer momen-to. O interesse pelo emprego doméstico justifi-ca-se sobretudo pelo fato de que se constitui,praticamente, na única opção de emprego paraas mulheres do bairro de Vila Verde.

O bairro de Vila Verde

O loteamento situa-se na região de Mussu-runga, no chamado �“miolo�” de Salvador, ondese concentra grande parte das favelas e das inva-sões da cidade e onde ainda restam vários espa-ços de aparência quase rural. O novo bairro estásituado numa colina no meio de uma grandefazenda. Essa localização propicia o clima agra-dável, muito arejado, podendo-se ver o mar dealguns pontos do bairro, enquanto o verde seestende por todo os lados. Um rio corre a 1kmde distância do bairro e diversos caminhos, pas-sando por campos não-cultivados, levam a ou-

tros bairros populares. Quase todas as frontei-ras do bairro são ainda traçadas pelos campos,salvo um lado, que toca um outro conjunto ur-bano, a invasão chamada �“Vila Verde�”, de ondese originou o nome do bairro.

O aglomerado urbano é formado por cercade 500 lotes de 84 m2, numa superfície total demais ou menos 15 ha (150.649,00 m2). O parti-do urbanístico adotado no bairro se baseia emduas vias de acesso situadas no topo da colina �–as ruas �“A�” e �“B�” �– de seis metros de largura,revestidas por uma camada de asfalto simples,com calçadas não-pavimentadas. A via �“A�”, situ-ada na primeira colina, encontra a rua �“B�”, quecontinua rumo à colina seguinte, mas sem saí-da. O bairro se organiza com cerca de vinte ca-minhos que, partindo dessas vias, descem a en-costa em direção aos vales alagados que cercamas duas colinas. Os caminhos são exclusivos parapedestres, revestidos em concreto armado comdois metros de largura. Apenas nas ruas �“A�” e�“B�” é possível o trânsito de veículos.

As pequenas casas embriões, de 20m2, foramcolocadas umas ao lado das outras ao longo doscaminhos, em lotes de 6 metros de largura por14 metros de comprimento. Hoje, a maior partedelas encontra-se modificada, mas originalmen-te tinham telhado de fibrocimento em duas águas,o chão era feito em cimento rústico e as portas ejanelas eram de madeira pintada de amarelo. Cadacasa tem um reservatório de água de 250 litros eestá ligada a uma fossa coletiva, que derrama aságuas servidas nos pântanos lindeiros ao bairro.Varandas, muros, ampliações laterais, jardins econstrução do primeiro piso foram as modifica-ções mais comuns.

Os primeiros habitantes chegaram em de-

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Vista aérea do Conjunto Vila Verde.

zembro de 1995 e, pouco a pouco, até setembro/1996, se formou o contingente atual, quando to-das as casas estavam prontas. Nos primeiros tem-pos, o conjunto habitacional parecia um jogo decrianças, por causa do tamanho das casas e de suahomogeneidade �– todas brancas e amarelas e se-paradas pela mesma distância �– e pelo isolamen-to do conjunto. As mudanças no bairro, após achegada dos moradores, foram marcantes, e erapossível perceber novidades quase todos os dias.O que era um aglomerado de pequenas casas setorna rapidamente um local cheio de vida, com o

trânsito constante de pessoas nas ruas, músicanos rádios a todo volume e as mudanças perso-nalizadas nas casas.

Para se ter uma noção das necessidades dobairro e de sua atmosfera nos primeiros tem-pos, é interessante mencionar as respostas da-das pelos habitantes sobre suas carências, naocasião da aplicação dos questionários. Faltavatudo, segundo seus testemunhos, na seguintehierarquia (em ordem decrescente):

�– água;�– posto médico;

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�– escola;�– posto de polícia;�– transporte público;�– pavimentação;�– creche;�– telefone público;�– limpeza das ruas e coleta de lixo;�– iluminação pública;�– feira;�– lazer.

Um ano depois, algumas dessas necessida-

des já tinham sido atendidas. As respostas da-das à mesma questão, formulada no últimoquestionário, foram as seguintes:

n o maior problema, a falta de um posto depolícia (30 citações sobre 38 respostas);

n em seguida, o transporte público (19/38);n o posto de saúde (18/38);n a escola (13/38);n o comércio de proximidade (6/38);n outros problemas (10/38).

Contrariamente ao que se pensava, aspessoas achavam que as casas cedidas pelaPrefeitura eram piores do que as que tinhamantes (72,8% responderam �“pior�”; 13,2%,�“igual�”; 14,0%, �“melhor�”). Conhecendo-sealguns dos bairros de invasão de onde vi-nham os habitantes, esperava-se que esses,na maioria dos casos, fizessem uma boa ava-liação das casas, do seu tamanho, dos mate-riais de construção, do acabamento, da pre-sença de água, de esgoto e de eletricidade,dos equipamentos de cozinha (pia) e sanitá-rios (chuveiro, pia e latrina). Isso não acon-

teceu. As respostas à questão foram reveladorasda escala de valores dos moradores, relativamen-te à habitabilidade de uma casa. Uma boa partejulgou a casa em relação às noções urbanas, enão ao conforto da casa em si. A facilidade paraa compra dos alimentos, a proximidade do pontode ônibus, a vizinhança, foram critérios impor-tantes, bem mais que os detalhes de constru-ção. Certamente, entre os entrevistados, haviapessoas que realmente tinham possuído umacasa melhor, considerando-se que ao longo dotempo puderam fazer pequenos aperfeiçoamen-

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tos. Havia também aqueles para os quais a novapequena casa era um verdadeiro palácio. Dequalquer forma, o bairro, que para um estra-nho era certamente mais ordenado e dispunhade uma melhor infra-estrutura que a maioriados bairros populares de Salvador, não corres-pondia inteiramente, de início, aos critérios deconforto dos habitantes.

Os contrastes de Salvador.©

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Compreender uma comunidadeinteragindo com ela

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O conjunto de dados, apresentado agora, foiobtido a partir dos resultados do primeiro ques-tionário da pesquisa4 . Pode-se dizer, de ante-mão, que o que estabelece a identidade entre oshabitantes do bairro de Vila Verde é a sua ori-gem na cidade. A maioria deles é originária decinco bairros, que possuem duas característicascomuns: estão situados próximos da falha geo-lógica de Salvador (o que explica os desabamen-tos de terra), e se situam em locais tradicionaisde ocupação ilegal, as invasões organizadas pelapopulação pobre de Salvador (GORDILHOSOUZA, 1990).

I -Perfil econômico e socialdos habitantes do bairro

Emprego e renda

O quadro traçado a seguir é um �“instantâ-neo�” dos habitantes, pois, como veremos, asmudanças de ocupação e salário são freqüentes,ainda que não haja modificações substanciais nacondição social dos mesmos. Trata-se de uma

população pouco inserida no mercado formaldo trabalho, como é comum no meio popularem Salvador, mais de 50% da população do bair-ro não tendo emprego fixo e sendo obrigada atraçar estratégias de sobrevivência cotidiana.

Tabela 1Ocupação e salário da população de Vila Verde

Com salário:

Emprego fixo: 26,5%

Aposentados: 6,0%

Comerciantes/autônomos: 8,8%

Total: 41,3%

Sem salário fixo:

Biscates: 20,5%

Procurandoemprego: 35%

Total: 55,5%

Fonte: pesquisa de campo.

4 Em março de 1996, quando da chegada damaior parte das famílias no bairro, foramaplicados 114 questionários, tendo cada um84 questões. Estas versavam sobre o perfilsocioeconômico das famílias, a visão demundo do entrevistado, seus conhecimentosacerca dos termos e lógicas do urbanismo,suas idéias sobre o bairro e seus vizinhos, suaexperiência de ação coletiva, etc.

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Para esse contingente de famílias que não temsalário fixo as formas de sobrevivência são os bis-cates e a ajuda da família ou de amigos e vizi-nhos. Para os homens, é comum que eles se de-diquem a mais de uma profissão pouco especia-lizada, como ajudante de pedreiro ou pintor, alémde porteiro, para ter uma ocupação �– às vezes, nopróprio bairro �– durante os períodos de falta detrabalho. As mulheres fazem serviços domésti-cos para as famílias ricas: faxina, lavagem e pas-sagem de roupas etc. Como os antigos mascates,fazem também venda em domicílio de produtosde beleza e outros. Existe ainda a produção do-méstica de alimentos vendida em casa, na vizi-nhança ou fora do bairro por outros membrosda família, incluindo as crianças.

A outra parte das famílias, a que pode con-tar ao final do mês com um rendimento certo, éformada pelos empregados, os comerciantes eos autônomos que prestam regularmente servi-ços. As ocupações mais freqüentes estão entre

as mais humildes e malpagas da sociedade. Para oshomens: porteiro, pedrei-ro, vigilante, operáriospouco qualificados, pintor,marceneiro, mecânico.Quanto às mulheres, em-pregada doméstica, fa-xineira, lavadeira, costu-reira, cabeleireira, mani-cure etc.

Se observarmos aten-tamente, por um lado, osdados do emprego e, poroutro, os dos salários,

constataremos um afastamento entre ambos, pois,na verdade, poucas famílias têm rendimentomenor que um salário mínimo (15,8%), en-quanto em 55,5% delas o chefe de família en-contra-se desempregado. Isso reflete bem a eco-nomia informal brasileira, em que uma grandevariedade de atividades possível permite a so-brevivência de muitas famílias. É necessáriodestacar a capacidade de adaptação das pessoas,as atividades provisórias que conseguem parasobreviver, mas que significam, certamente, umainquietação constante sobre o futuro.

Vila Verde é um bairro muito homogêneo doponto de vista dos salários, pois a diferença entreos ganhos da maioria da população ativa e os gan-hos mais altos não é muito grande, contrariamen-te ao que podemos observar na cidade como umtodo. O ganho familiar mais alto encontrado é deoito salários mínimos, o que ocorre nas famíliasem que há mais de um membro da família traba-lhando e que representam 20,2% do total.

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Tabela 2Rendimentos das famílias do bairro Vila Verde

Rendimentos Famílias

Menos de um SM (> 1) 15,8%Igual a um SM (= 1) 36,8%Entre um e dois SM (> 1 e <2) 6,1%Igual a 2 SM (= 2) 27,2%Entre dois e três SM (>2 e >3) 3,5%Maior ou igual a 3 SM (>= 3) 10,6%

Fonte: pesquisa de campo.

Tabela 4Escolaridade da população de Vila Verde

Escolaridade População

Analfabetos: 8,8%Até 4 anos de freqüência à escola: 50,9%Até 8 anos: 30,7%Até 11 anos: 9,6%Mais de 11 anos (Universidade) 0%

Fonte: pesquisa de campo.

Escolaridade

A população do bairro Vila Verde é muitopouco escolarizada, como pode ser visto no qua-dro a seguir, e é necessário assinalar que, prova-velmente, o número de analfabetos funcionaisé ainda maior que o aferido com base na decla-ração dos habitantes6 , considerando-se que, emalguns casos, o constrangimento em mostrar afalta de instrução influenciou as respostas.Pode-se observar ainda que é muito baixo onúmero de pessoas aptas a uma inserção nummercado de trabalho que exige cada vez maisum nível maior de escolaridade.

Tabela 3Comparação entre os rendimentos dapopulação de Vila Verde e de Salvador

Rendimentos Vila Verde Salvador

De zero a 2 SM 86% 21,6%De 2 a 10 SM 14% 47,9%Mais de 10 SM �— 21,5%

Fonte: pesquisa de campo da autora e IBGE �– Pesquisa deOrçamento Familiar �– 1996.

OBS: Sem declaração de rendimento para Salvador: 0%.

6 Ao longo dos contatos mantidos com oshabitantes quando da implantação da escolacomunitária, várias pessoas que se diziamescolarizadas mostraram-se, na verdade,analfabetas.

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Relações familiares

As famílias do Vila Verde são, na maior par-te, formadas de casais (mais de 70%), com ousem filhos, na maioria jovens e não casados ofi-cialmente. As pessoas separadas representam emtorno de 10% e os solteiros cerca de 20%. Asuniões não são muito estáveis e, às vezes, as pes-soas estão num segundo ou terceiro concubina-to. Pôde-se observar, durante a pesquisa, diver-sas mudanças de parceiros entre casais próxi-mos, estimando-se que uma grande parte dasfamílias é constituída de um novo casamento.

Ainda que as famílias sejam pouco estáveis,as relações intrafamiliares e de vizinhança são ospontos de referência das crianças para a vida emsociedade, pois a escola é freqüentada durantepouco tempo. Em muitos casos, o pai biológicose afasta por causa de um novo casamento, pormudanças ligadas ao trabalho ou por mortes pre-coces ocasionadas por doença ou violência. Paraas crianças, a presença mais constante é a da mãee, às vezes, a da avó. Este dado confirma as dis-cussões recentes sobre a feminilização da pobre-za e sobre as responsabilidades que assumem cadavez mais as mulheres no seio da família,notadamente no meio urbano (DOCUMEN-TOS DAS CONFERÊNCIAS DA ONU DEPEQUIM, 1995, e ISTAMBUL, 1996).

Contrariamente às expectativas, as famíliasnão são muito grandes, verificando-se que 68,4%dessas são compostas por dois a cinco membros,o que decorre, em muitos casos, do fato de osfilhos do casal ou de um antigo casamento mo-rarem em outros bairros com os avós. Tal cir-cunstância evidencia que as relações ainda sãomarcadas pelo espírito da família ampliada, in-cluindo avós e tios, mesmo que esses morem lon-ge da família nuclear em questão. Crianças au-

sentes das próprias casas, vários casamentos dospais, assim como outras características que serãomostradas mais tarde, dão a marca da instabili-dade na vida dessas pessoas pobres.

Vida cotidiana das famílias

O contato constante com as pessoas maisengajadas nas atividades pedagógicas e nas açõescoletivas do trabalho de campo, assim como avisita às suas casas, permite uma descrição apro-ximada de sua vida no dia-a-dia. Houve conta-tos, certamente menos íntimos e menos cons-tantes, também com os outros habitantes dobairro, quando se ia de porta em porta fazendoconvites para as reuniões e atividades, realizan-do as entrevistas e aplicando os questionários,ou promovidos pela necessidade de pedir em-prestada uma ferramenta qualquer ou, simples-mente, pelo interesse em conversar.

Por ocasião desses contatos, verificamos queuma família com o salário fixo, mesmo se tra-tando de um salário mínimo (em torno de 80dólares, mais o transporte e, algumas vezes, aalimentação do trabalhador), pode ser conside-rada uma família com uma vida �“organizada�”.Essas famílias têm dificuldades no cotidiano e,certamente, se angustiam com a falta de dinheiropara os seus deslocamentos do bairro, para pa-gar o consumo de água e de eletricidade, paracustear as despesas de um modo geral, mas,comparadas àquelas que não possuem saláriofixo, seu modo de vida é próximo ao das classessociais mais favorecidas. Do ponto de vista ma-terial, podemos observar em suas casas a pre-sença de mobiliário e utensílios domésticos maiscomuns �– móveis, roupas, louça, aparelhos

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eletrônicos e até alguns objetos de decoração.Trata-se de uma arrumação semelhante à quepodemos encontrar na maioria das casas no Bra-sil. Certamente o salário fixo permite crédito aessas famílias e, dessa forma, o acesso a produ-tos mais sofisticados.

Do ponto de vista da vida cotidiana, em ra-zão da estabilidade do emprego do chefe da fa-mília, o ritmo de vida dos membros é regular.Ou seja, há uma hora mais ou menos fixa paradormir e acordar, comer, trabalhar ou para ir àescola etc. Os habitantes tomam mais cuidadosconsigo mesmo, estabelecem uma nítida separa-ção entre as roupas de sair e as �“de ficar em casa�”,saem mais do bairro, fazem �“compras mensais�”de comida etc. Esse modo de vida tende a perdu-rar ainda que se perca o emprego, desde que talcondição não se prolongue muito ou que a famí-lia encontre biscates para substituí-lo.

Por outro lado, nas famílias que não têmsalário fixo durante muito tempo a desordemda vida é evidente, sobretudo se essa situação seprolonga. Há casos em que a casa é mais umamontoado de objetos diversos que uma arru-mação organizada. Freqüentemente as criançasnão vão à escola e, como o trabalho é incerto, areferência da disciplina de horários e de obriga-ções não se faz presente: as pessoas acordam tar-de ou dormem durante a tarde. A ociosidade émuito comum, salvo para as mulheres que têmfilhos pequenos. É provável que essa vida semum ritmo cotidiano possa reforçar uma tendên-cia à anomia, a um desregramento da vida, noscasos mais extremos e contínuos.

As relações de vizinhança

Segundo os relatos obtidos no bairro, aspessoas de Vila Verde moravam quase sempre

próximas dos seus pais nos bairros de origem.Para além das relações parentais, muito estrei-tas, havia relações de proximidade com os vizi-nhos de longa data. A chegada ao novo bairronão significou um choque cultural tão grande,pois a origem sociocultural comum favoreceu acomunicação e a solidariedade entre as pessoas,que tinham, além disso, vivido a mesma tragé-dia. É preciso observar também que, em certoscasos, houve acordos com os funcionários daPrefeitura para colocar membros de uma mes-ma família próximos uns dos outros.

Com o passar do tempo, novas relações so-ciais foram criadas, baseadas sobretudo em tro-cas com os vizinhos, propiciadas por necessida-des ocasionais, como empréstimo de utensíliosdomésticos e comida e solicitação de serviços.Para as mulheres, havia ainda a guarda recíprocadas crianças, por ocasião da saída para as com-pras e das diversas ocupações das mães. Para oshomens, a freqüência aos bares, as �“peladas�” eoutros jogos coletivos ocasionaram os encontros.Um grupo significativo de pessoas entrou emcontato e estabeleceu relações continuadas umascom as outras através das atividades desenvolvi-das no bairro e do trabalho comunitário.

As respostas ao questionário inicial, aplicadono momento em que as pessoas acabavam dechegar no bairro, permite perceber que as rela-ções de vizinhança começavam a se estabelecer:

Tabela 5

�“O que os vizinhos significam para você?�”

�“são uma ajuda em caso de necessidade�” 50,9%�“são os amigos de todas as horas�” 21,1%�“sou cordial, mas não preciso deles�” 21,1%�”�“nada�” 5,3%�“eles incomodam�” 1,8%

Fonte: pesquisa de campo.

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O modo e a rapidez com que se estabelece-ram as relações de vizinhança provavelmentetêm relação com a tradição de solidariedade queexiste nos bairros populares no Brasil, já perce-bida por outros observadores. Essa �“solidarie-dade íntima�” contrasta com uma solidariedadesocial e política, que, segundo Paulo Freire(1985), seria mais rara no Brasil. TambémAlmeida (1992), em seu estudo sobre crechescomunitárias em Belo Horizonte, identificouessa solidariedade que se manifesta através doencargo privado dos problemas sociais. Esse pro-cesso, a que chamou de �“sociedade de provi-dência�”, se desenvolveria sempre que o Estadose isenta das suas responsabilidades.

A aproximação entre as pessoas tem motiva-ções variadas, mas é certo que as dificuldades doquadro de vida foram, no mínimo, um dos as-suntos das conversas dos moradores de Vila Ver-de. À pergunta �“com quem discutem os proble-mas do bairro?�”, 43,9% responderam �“com osvizinhos�”; 27,2%, �“apenas em casa com a famí-lia�”; 3,5%, �“na igreja, no trabalho ou na escola�”, e25,4%, que �“não discutiam sobre o assunto�”.

A religião deu oportunidade para o estabe-lecimento de muitas relações entre os habitan-tes de Vila Verde, sobretudo as igrejas pente-costais. Durante o ano da experiência, a influ-ência dessas igrejas aumentou muito no bairroe, recentemente, quatro das casas portavam suasinsígnias. O fenômeno já era notado ao aplicar-se o primeiro questionário, quando 57,9% daspessoas se diziam �“católicas�”; 24,6%, membrosde �“outras igrejas�”, e 17,5%, �“não ter religião�”.Enquanto isso, 49,1% dos entrevistados diziam�“jamais ir à igreja�”, provavelmente uma grandeparte dos católicos; 21,9%, diziam �“ir todas as

semanas�”; 14,0%, �“quase nunca�”; 10,5%,freqüentá-la �“diariamente�”, e 4,4%, ir �“todos osmeses�”. É provável que essa freqüência diáriase verifique sobretudo no caso dos evangélicos,uma vez que tal comportamento é característi-co desses.

As relações de vizinhança se intensificaramcom o tempo, dada a proximidade física entreas pessoas e o fato de permanecerem constante-mente no bairro, principalmente as mulheres,que dificilmente saem. Certamente, o aspectoinformal da sociedade brasileira e o espíritogregário das pessoas são motores da tessituradesses laços, mas, de um ponto de vista prático,os vizinhos são também os amigos mais desejá-veis. O custo do deslocamento faz com que asamizades formadas ao longo da vida se tornemquase inacessíveis. O telefone não é comum nomeio dos mais pobres e, em Vila Verde, foi pos-sível observar a dificuldade que as pessoas ti-nham de entrar em contato com os seus amigospor esse meio, mesmo em seus locais de traba-lho, pois o único telefone público do bairro es-tava sempre ocupado.

O local público que permite o encontro devizinhos desconhecidos é o ponto de ônibus,sobretudo para os que trabalham fora do bair-ro, tendo assim compromisso em horário fixo,e para as pessoas mais comunicativas. Os barestambém são muito freqüentados, principalmen-te nos finais de semana. Todavia, os locais deencontro mais utilizados eram, e ainda o são, asombra oferecida pelas casas particulares, ondeas conversações entre vizinhos são freqüentes.Devido às atividades do trabalho de campo des-ta pesquisa, com suas reuniões pedagógicas etrabalho comunitário, a sede da Prefeitura no

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bairro, que viria depois a se tornar a sede da es-cola comunitária, se tornou também um pontode encontro de muitos moradores.

Sobre as relações de vizinhança, é interes-sante observar ainda que as pessoas participamdos acontecimentos da vida pessoal umas dasoutras de forma bem mais intensa do que ocor-re nas classes sociais mais favorecidas. Assim,acontecimentos privados por natureza, comobrigas de casal, reclamações dos pais aos filhos,visitas de parentes, gravidez, doenças, abortos,viagens, tornam-se acontecimentos de domíniopúblico e os vizinhos os comentam entre si. Se,por um lado, tem-se a impressão de que a vidacotidiana no bairro é monótona, pois pouca coisaacontece em termos de vida coletiva (festas pú-blicas, manifestações, feiras etc.), a socializaçãodas relações particulares imprime movimentoao bairro e é assunto para discussões. Emcontrapartida, a vida privada fica comprometi-da pela promiscuidade ocasionada pela casas,muito pequenas para o número de ocupantes epara uma ocupação tão densa.

Os lazeres

O maior lazer da população de Vila Verdeacontece, de uma forma geral, no seio da famí-lia, quando as pessoas assistem juntas à televi-são, em casa, particularmente à noite. Havia umtelevisor em 70% das casas e pôde-se observarque a televisão não é desligada nem quando hávisitas; às vezes as pessoas vão à casa do vizinhojustamente para assistir televisão. O rádio é tam-bém muito utilizado e, muitas vezes, no volu-me máximo, o que dá ao bairro um aspecto ba-rulhento, mas também alegre. Os programas

populares de rádio e televisão, em que há umaintimidade entre os animadores e os ouvintes etelespectadores, são muito apreciados, principal-mente pelas mulheres.

As áreas externas também são largamenteutilizadas, particularmente pelas crianças, já queas atividades culturais organizadas, que atrairiamos adultos, são raras. Os bares, pontos de en-contro e lazer no bairro durante os finais de se-mana, são sobretudo freqüentados por homense mulheres mais jovens. As pessoas tomam cer-veja ou �“cachaça�” e conversam, ouvindo músi-ca; alguns grupos de samba se formam e se se-param nesse ambiente. O campo de futebol, quejá existia num terreno baldio, é utilizado geral-mente no fim do dia, particularmente peloshomens.

O fato de o bairro estar situado no meio decampos faz com que a população possa ter al-guns hábitos típicos dos meios rurais, como acolheita de frutas e o corte de madeira bruta parausos diversos, mas também distrações como obanho do domingo numa antiga barragem nasproximidades, construída para o abastecimentod�’água de Salvador. Os habitantes também têma possibilidade de caçar, mas isso exige materiale conhecimento; é uma atividade corrente ape-nas para alguns.

Segundo o questionário, são poucos os mo-radores que saem do bairro nos finais de sema-na, seja para visitar parentes ou para ir à praia.Para alguns, essas saídas são também para traba-lhar, vendendo comida e outros produtos. Amaioria fica no bairro, em casa, e outros vão àigreja, o que significa uma mudança na vida coti-diana. Mesmo a praia, lazer gratuito, não é mui-to freqüentada, pois é preciso pagar o transportee isso não é fácil para os habitantes de Vila Verde.

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Os bares são locais de encontro, sobretudo nos fins de semana.

Vida pública e vida cidadã

O que significa a vida cidadã para os habi-tantes de Vila Verde? Sair da vida familiar e davizinhança não é fácil, pois os deslocamentossão difíceis e caros, como visto, e o contato compessoas de outros meios não é usual. A vida ci-dadã é aqui compreendida de dois pontos devista: a relação com o Poder Público e a açãocoletiva dos habitantes.

Se pensarmos na vida pública como a somadas relações individuais e coletivas com os po-deres públicos, poderemos encontrar contras-tes. Os habitantes de Vila Verde têm conheci-mento no que diz respeito às funções dos pode-res públicos, no sentido de prestação de servi-

ços. No questionário inicial, foi pedido às pes-soas que fizessem a ligação entre o serviço pú-blico (abastecimento de água, eletricidade, tele-fone e coleta de lixo), a empresa que assegura aprestação e também a autoridade pública que édiretamente responsável (Prefeitura ou Gover-no do Estado). As respostas, para todos os ser-viços, estavam corretas em cerca de 80% dosquestionários �– mesmo considerando-se a difi-culdade de fazer uma relação dupla para cadaserviço �– e as pessoas sabiam a quem se dirigirem caso de problema, tanto do ponto de vistada empresa como da autoridade pública.

Enquanto isso, durante a minha estada nobairro pude constatar que se as pessoas sabem,teoricamente, a quem se dirigir, não se relacio-

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nam com as empresas prestadoras como usuári-os detentores de direitos. Esse fato faz parte deuma problemática brasileira mais global, que setraduz na ausência do sentimento de cidadaniana maioria da população (SANTOS, 1987). Paracompreender isso, é preciso levar também emconta os impedimentos digamos, psicossociais,que tornam difícil um comportamento maisreivindicante, o que se deve à interiorização daestigmatização social, que será analisada em se-guida. Por outro lado, uma demanda mais forte édirigida às autoridades municipais, que são, porsua vez, mais próximas dos habitantes e maisfreqüentemente responsabilizadas pelos acon-tecimentos na cidade.

Durante algum tempo, a autoridade muni-cipal esteve muito presente em Vila Verde, porocasião das obras de construção do bairro. En-tretanto, desde que essas foram concluídas, olocal assumiu o aspecto dos outros bairros po-bres de Salvador, onde o Estado é quase ausentedo ponto de vista material. Não existem servi-ços nem equipamentos e somente a polícia apa-rece, de vez em quando. Apesar disso, não sepode dizer que, em Vila Verde e nos demais bair-ros pobres, o Estado seja ignorado.

O Poder Público é legitimado como auto-ridade maior da sociedade (o que Weber chamade �“dominação legal�”), e isso é verdade para oshabitantes de Vila Verde, apesar da fragilidadeda Prefeitura. Esses habitantes crêem haver uminterlocutor possante e legítimo, embora, dadassuas condições de vida, duvidem �– e existemrazões para isso �– que suas demandas estejamsendo levadas em consideração. Tal raciocínioadvém de uma realidade histórica que mostrauma falta continuada de interesse em relação às

periferias urbanas, seja por falta de vontade po-lítica, seja pela fragilidade institucional ou finan-ceira da municipalidade.

A pergunta feita aos habitantes, quando daaplicação do primeiro questionário, sobre seuapoio à �“invasão�” de terrenos no próprio bairro,revela uma legitimação da Prefeitura, pois 71,1%deles dizem estar �“de acordo, desde que antesse consulte a Prefeitura�”; 6%, declaram �“totalacordo�”; 17,5%, �“não acham correto�”, e 5,3%dos entrevistados respondem que �“não se im-portam�”. Mesmo em questões cujo objetivo eracompreender o potencial de participação, é vi-sível que, para as pessoas, a autoridade do Po-der Público e sua responsabilidade estavam evi-dentes. Um exemplo �– à questão �“Como serápossível resolver os conflitos de interesse doshabitantes, a exemplo da ordem de prioridadesdas intervenções no bairro?�”, 77,2% dos entre-vistados estimam que habitantes e autoridadesdevem resolver juntos tais questões; 6,1%, pen-sam que os habitantes devem buscar a resolu-ção sozinhos, e 16,7 %, que as autoridades de-vem resolver sem ouvir a população.

A ausência da polícia, representante da forçalegítima do Estado, assim como de quaisquer ins-tituições públicas no bairro, faz com que as pes-soas vivam em um mundo onde as leis são pou-co presentes. As regras de vida em comum fo-ram adquiridas com a tradição, mas o fato de aspessoas terem origens em bairros diversos tor-nava maiores as possibilidades de conflitos, poisnada estava ainda consolidado. A classe média temsuas instituições intermediárias de organizaçãoda vida coletiva, que independem da ação do Es-tado. Um exemplo disso são as regras de condo-mínio dos edifícios pluridomiciliares, estabeleci-

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das em conjunto, a legitimidade do síndico eleito,que tem autoridade para resolver os conflitos. Nocaso dos bairros populares, como o Vila Verde,isso não acontece, e a maioria das pessoas pensaque é necessária a intervenção da polícia para re-solver qualquer conflito.

A organização coletiva dos habitantes não seimpõe naturalmente e, no caso presente, essa or-ganização teve que ser estimulada externamente.À pergunta, �“Você, ou qualquer um de sua famí-lia, já participou de uma associação, grupo, clubeetc.?�”, quase 70% das pessoas responderam ja-mais ter participado, assim como sua família, deorganizações coletivas de atividade contínua.

larmente, vai até o engajamento político. As asso-ciações de moradores são uma mistura de partici-pação dos âmbitos pessoal e coletivo, e cada casodeve, assim, ser estudado mais de perto.

No caso dos 30% que declararam já ter tidouma experiência direta ou indireta de participa-ção, pessoal ou familiar, pôde-se verificar que essaparticipação se situa mais no âmbito pessoal queno coletivo. Por âmbito pessoal entendem-se aquias associações ligadas à religião e ao esporte, que,de ordinário, propõem sobretudo atividades derealização pessoal, física ou cultural, ou, mesmo,de caridade. O âmbito coletivo é o dos sindica-tos, por exemplo, que normalmente propõematividades envolvendo todo o grupo, como asreivindicações salariais, e que, no Brasil particu-

Tabela 7Tipos de associação de que participam oshabitantes de Vila Verde

Esportiva ou religiosa: 14%Associação de moradores: 8,8%Política ou sindical: 6,1%Outra: 3,5%

Fonte: pesquisa de campo.

Tabela 6Participação da população de Vila Verdeem associações diversas

Participação Alguém da NenhumaPessoal família participa participação

14% 16,7% 69,3%

Fonte: pesquisa de campo.

Apesar de os habitantes de Vila Verde nãoterem experiência com a ação coletiva contínua,pudemos perceber que uma grande parte delesjá participou de lutas pontuais em torno de ques-tões de melhoria do quadro de vida. Diante dapergunta �“Você já teve uma experiência de lutacoletiva para obter um benefício para todos?�”, apopulação se repartiu em dois grupos: 50,9%dizem que sim, e 49,1% dizem não. De que tipode participação se tratava? Normalmente, se-gundo as respostas dos habitantes, tratava-se deuma ação breve, como uma manifestação de ruapara reivindicar uma ação urgente da Prefeitu-ra; uma ação conduzida pela escola do bairropara ajudar vítimas de uma catástrofe pontual,etc. Esse tipo de ação, normalmente, não tira oparticipante pontual de seus hábitos, de seu qua-dro mental cotidiano. Trata-se de um espasmode ação coletiva, em que o participante atendeao apelo repentino de um vizinho, manifestan-do-se ou agindo a seguir, mas volta depois aoseu cotidiano.

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As relações dos habitantes com pessoasde fora do bairro

Nos bairros pobres, as pessoas ficam a mai-or parte do tempo no seu próprio ambiente esuas relações mais freqüentes são com os vizi-nhos. No caso de Vila Verde, pela particularida-de da sua criação, seus habitantes estabelece-ram uma série de relações com pessoas de forado bairro. Desenvolveram-se, sobretudo, rela-ções funcionais, que foram mais importantes noprocesso de instalação do bairro. O maior con-tato foi estabelecido com os vigias da obra; emseguida, vinham os funcionários da Prefeitura,mas também pessoas ligadas à Igreja Católica;por fim os operários e os funcionários das em-presas de construção, que ficaram no bairrodurante certo tempo, e sobretudo, a equipe depesquisadores ativos.

Os habitantes do bairro limítrofe, o VilaVerde original, surgido de uma invasão de ter-reno e chamado pelos seus criadores de�“Loteamento Vila Verde�”, introduziram-se pou-co a pouco no novo bairro planejado, denomi-nado de Conjunto Vila Verde (cf. esclarecimen-tos sobre a nomenclatura no Capítulo III). Paraalguns habitantes desse Conjunto, o contato eraindesejável porque, segundo eles, não queriamse misturar com �“invasores�”. As relações entreas pessoas dos dois bairros se estabeleciam so-bretudo nos grupos de samba, que já existiamna antiga invasão e seduziam novos adeptos nosbares nos fins de semana. O comércio do bairroplanificado, o Conjunto, mais desenvolvido,também atraiu os habitantes do Loteamento.

A imprensa, que acompanhou os habitan-tes desde o começo da tragédia, seguindo-os nos

locais em que foram provisoriamente abrigadosaté a sua mudança para o bairro, também estevepresente mais tarde, por ocasião dos vários acon-tecimentos que chamaram a atenção da socie-dade para os �“desabrigados�”. Mais de 70 repor-tagens de imprensa, falando do bairro e de seushabitantes, foram publicadas, sem citar os nu-merosos artigos do período dos desabamentosnem os do jornal oficial da Prefeitura.

Afora esses contatos, acima mencionados,com os não-residentes que vinham ao bairro,verificaram-se contatos pessoais de cada um doshabitantes com o exterior, não só intraclasses, fa-miliares ou de amizade, mas também interclasses.Os contatos interclasses são raros quando não têmum caráter funcional, como os citados anterior-mente, salvo no que se refere à religião. Comovisto, o abismo social prevalecente no Brasil fazcom que existam dois mundos separados: de umlado, a cidade formal, que pertence aos ricos e àclasse média, com seu comércio, serviços e lazeresreservados, e onde se anda de carro; do outro, agrande cidade intermediária e informal, onde seencontram os lugares freqüentados pelos pobres�– áreas de comércio popular, agrupamentos decamelôs, mercados populares, algumas praças. Aí,as pessoas circulam em transportes coletivos. Nascidades onde não existe transporte público dequalidade ricos e pobres raramente se encontramlado a lado. Os contatos entre eles são limitadosaos estabelecidos nas relações hierarquizadas detrabalho, na mendicância ou em festividades po-pulares.

Entre as relações de trabalho mais encon-tradas na realidade da experiência, pode-se citara das empregadas domésticas, numerosas nobairro. O caso delas é muito particular, pois têm

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uma relação em falso com seus patrões: no coti-diano, as trocas interpessoais são, ao mesmo tem-po, intensas, pela proximidade, e frágeis, peloafastamento social e enraizamento da desigual-dade nos costumes. Não veremos patrões e em-pregadas discutindo assuntos culturais, po-líticos ou outros, numa troca que possa enri-quecer estas últimas, que têm dificuldade de teracesso às informações, ou que possa aproximaros empregadores de toda uma realidade cultu-ral que pertence à maioria da população do país(KNAEBEL, 1992).

II -II -II -II -II - As mentalidades e osAs mentalidades e osAs mentalidades e osAs mentalidades e osAs mentalidades e oscomportamentos doscomportamentos doscomportamentos doscomportamentos doscomportamentos doshabitanteshabitanteshabitanteshabitanteshabitantes

São apresentados a seguir dados sobre a vi-são de mundo e os comportamentos dos mora-dores do bairro de Vila Verde, sempre partindodo questionário, mas também de observaçõespessoais. É preciso destacar que certamente nãoexiste homogeneidade de pensamento e de açãoentre os habitantes do bairro; o que se pode di-zer é que foram identificadas característicascompartilhadas em maior ou menor grau pelos

habitantes, entendendo-se que, em grande me-dida, as mentalidades são tributárias das condi-ções de vida. O que aqui se buscou foi compre-ender esse conjunto de dados, particularmentea potencialidade das pessoas para a participaçãonas atividades do método de intervenção, segun-do suas condições materiais de vida. Para facili-tar a compreensão do tema, os habitantes fo-ram classificados em dois pólos, de acordo como seu engajamento nas atividades: de um lado,localizam-se as pessoas difíceis de mobilizar �– ochamado aqui de �“pólo anômico�” 7 �– e do ou-tro, as pessoas mais propensas à participação,grupo a que se chamou de �“pólo potencialmen-te engajado�”.

Esses dois pólos indicam tendências, e nãogrupos fechados nem determinismos pré-fixa-dos. Na verdade, identifica-se a existência devariáveis que se reforçam mutuamente e possi-bilitam a probabilidade de comportamentos ex-tremos, que não são verificáveis na maioria doshabitantes. Para levantar as características des-ses dois pólos potenciais foram utilizadas res-postas de algumas perguntas-chave do questio-nário feito no bairro, com base em hipótesesprovenientes do conhecimento empírico. Evi-dentemente os pólos identificados na teoria nãopodem ser quantificados, pois se trata de pro-babilidades aproximativas da realidade dos fa-tos. Dessa forma, são tênues as fronteiras quedefinem os grupos.

7 Fala-se aqui em anomia no sentido usado por Merton, citado no Dictionnaire de la SociologieLarousse, ou seja, comportamento do indivíduo quando não vê possibilidades de chegar a umobjetivo definido pessoalmente ou prescrito pela cultura para si mesmo, e então, por umaimpossibilidade concreta, tende a se retirar da vida social e a se ligar menos aosacontecimentos coletivos.

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Quadro 3Características dos pólos indicando as tendências à participação ou à recusado habitantes às ações coletivas propostas 8

As questões-chave são: 1) renda; 2) tipo deemprego ou ocupação; 3) escolaridade; 4) exis-tência ou não de lembrança sobre fatos impor-tantes da vida; 5) grau de interesse pelas ques-tões nacionais em maior evidência; 6) existên-cia de referências �– pessoas admiradas �– fora da

família e dos próximos; 7) interesse em discutiros problemas do bairro; 8) vivência pessoal oufamiliar de experiências de participação em or-ganizações coletivas; 9) existência ou não de umsentimento fatalista perante a realidade; 10)pertinência dos raciocínios práticos ante as ques-tões relativas ao bairro.

8 Para que o leitor possa compreender a amplitude de cada grupo de habitantesreferente a cada questão-chave é dada a porcentagem destes em relação ao total.Esses números são dados a título indicativo já que se consideram esses gruposcomo uma potencialidade e não como um fato concreto, mensurável.

Fonte: elaboração da autora.

Pólo �“potencialmente anômico�”, Pólo �“potencialmente engajado�”

Os mais pobres (salário menor que um SM �– são 15,8%do total dos habitantes do bairro)

Os menos pobres (salário maior que três SM - são 10,2% dototal dos habitantes do bairro)

Os desempregados de longa data (35%) Os que possuem emprego fixo (26,5% do total)

Os analfabetos funcionais (21,9%) Os que freqüentaram a escola em torno de oito anos (30,7%);

Os que não se lembram de nada do que marcou suasvidas (27,2%)

Os que se lembram de alguma coisa pessoal que marcou suasvidas (particularmente a tragédia dos desabamentos de queforam vítimas), (44,7%) ;

Os que não podem citar de memória uma notícia daatualidade nacional que teve uma repercussão em suasvidas (45,6%)

Os que podem citar de memória uma notícia da atualidadenacional que teve uma repercussão em suas vidas (31,6%)

Os que não admiram ninguém em particular (31,6%) Os que admiram alguém pelos seus atos perante o coletivo(artistas, esportistas, políticos, religiosos, etc.) (29,8%)

Os que não discutem jamais os problemas do bairro(25,4%)

Os que discutem os problemas do bairro fora do contextofamiliar (47,4%)

Os que nunca tiveram experiências participativas(69,3%)

Os que já tiveram (ou alguém de sua família) experiênciasparticipativas (30,7%)

Os que pensam que o destino já está escrito e que nãovale mais a pena fazer o que quer que seja para mudar arealidade (21,9%)

Os que pensam que o destino será traçado pelos próprioshomens (14,9%)

Os que não têm nenhuma idéia da ordem de grandezado preço de sua nova casa (11,4%)

Os que têm alguma idéia da ordem de grandeza do preço de suanova casa (40,4%)

Os que possuem uma vaga idéia do número dehabitantes do bairro (35,1%)

Os que possuem uma idéia próxima do número de habitantes dobairro (32,5%)

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Aplicação do questionário de campo.

Essas questões foram formuladas com basenas observações de campo e na literatura sobre apobreza e os movimentos sociais em Salvador,sendo esta última, na verdade, muito escassa. Paraque se compreenda a pertinência dessa escolha,são apresentadas as observações, feitas posterior-mente, relativas às pessoas efetivamente engajadase àquelas que se mantiveram completamenteafastadas das ações realizadas no bairro.

Se o primeiro pólo pode ser encontrado ale-atoriamente no bairro, o segundo pólo agregaas pessoas com quem convivi freqüentementedurante a experiência-piloto. De uma maneirageral, são pessoas que participaram das ativida-des pedagógicas e das ações coletivas e sobre asquais se vai falar mais detalhadamente no quar-to capítulo deste livro.

Para sermos coerentes com a complexidadeda realidade, devemos dizer que se a experiênciade campo autoriza a falar da probabilidade deencontrar em um pólo pessoas engajadas e, nooutro, pessoas �“anômicas�”, os casos particularespodem mostrar o oposto. As histórias pessoaisde vida têm uma influência no comportamentodas pessoas diante do coletivo que às vezes ultra-passa as dificuldades da vida material. Por exem-plo, podem-se observar líderes analfabetos, as-sim como líderes desempregados. Por outro lado,foi possível notar várias pessoas cujas caracterís-ticas as identificariam como �“potencialmenteengajadas�” e que não se interessam em nenhumamedida pelas questões coletivas.

***

Depois desse quadro global dos habitantesdo bairro no que diz respeito à sua potencialidadede participação, voltemos aos aspectos concretosde suas mentalidades e comportamentos. Asquestões centrais tratadas são: os horizontes devida e de interesse das pessoas, restritos às ques-tões pessoais, familiares e imediatas; a estigma-tização social dos pobres; a interiorização dessaestigmatização, que está na origem de umaautopercepção negativa como grupo e um altolimiar de resignação diante das dificuldades; a faltade experiência coletiva e a busca de líderes fortese �“salvadores�” (o que existe, de forma variada, natradição das sociedades que possuem um PoderPúblico frágil). Deve-se dizer, todavia, que váriostraços que serão propostos, a seguir, como carac-terísticos da pobreza (a partir do exemplo de VilaVerde), são sobretudo questões humanas, acen-tuadas pela pobreza.

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Assunto Muito Pouco Mais ou menos Vizinhança e Bairro 64,9% 12,3% 22,8% Salvador e Bahia 53,5% 13,2% 33,3% Brasil e o mundo 54,4% 14,9% 30,7%

Horizontes de vida e de interessesdos habitantes

As respostas dos habitantes para algumasquestões do questionário inicial já mostramque seu interesse majoritário é ligado às ques-tões próximas, imediatas. Gramsci falava deuma �“visão de mundo interior�”, que jamais ul-trapassa os muros da casa (GRAMSCI, 1966).Esse conceito certamente pode ser utilizadopara falar dos pobres, mas também de outrascategorias sociais. Essas respostas serão agoraapresentadas para, em seguida, serem discuti-das, com base também em situações vividas e

Tabela 9�“Qual é o grau do seu interesse pelas informações televisivas?�”

Fonte: pesquisa de campo.

conversas tidas com os habitantes durante a ex-periência-piloto.

Essas respostas são próximas do que foi obser-vado nas conversas no bairro. Os assuntos de con-versa das mulheres, por exemplo, são mais ligadosà vida privada, aos problemas de família e da casa, àscrianças, a seus amores; elas falam também de notí-cias da vizinhança e do que aconteceu nas novelas.Os homens discutem nos bares e seus assuntos sãomais vastos, pois eles falam também de política,embora o assunto preferido seja o trabalho (ou an-tes, sua falta) e o futebol. A religião também é umtema muito debatido pelos homens e mulheres,quando eles são ligados às religiões pentecostais.

Tabela 8�“Quais são seus três primeiros assuntos de preocupações?�”

Preocupação Citada emprimeiro lugar

Citada emsegundo lugar

Citada emterceiro lugar

A família 50,0% �— �— A sobrevivência 35,1% 35,1% �— Os problemas mundiais 8,8% 7,0% 6,1% Os problemas do Brasil 0,9% 14,0% 1,8% O futuro dos filhos 2,6% 31,6% 35,1% O bairro 0,9% 2,6% 42,1% Nada 1,8% 9,6% 14,9%

Fonte: pesquisa de campo.

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É preciso dizer também que a idéia de umhorizonte de interesse restrito e imediato nãoimplica um julgamento negativo sobre a capaci-dade de raciocínio ou sobre uma �“banalidade�”deste. A maneira como as pessoas pensam mos-tra-se perfeitamente lógica e em acordo com suasnecessidades, observando-se que suas estratégi-as de vida são perfeitamente inteligentes e adap-tadas. Trata-se de uma espécie de resignação nosentido etimológico do termo, em latim, re-signare, que quer dizer �“dar um outro sentido�” ou�“re-interpretar�” os dados da vida de uma maneiraadaptada às possibilidades de intervenção de cadaum. Fala-se de horizontes de interesse restritodo ponto de vista que nos interessa aqui: a cida-dania, o compromisso histórico perante a socie-dade, que nem todos se sentem capazes de esta-belecer.

A vontade de alargar os horizontes de vidaé aliás evidente em várias situações. Por exem-plo, uma das respostas à pergunta �“sobre o quevocê gostaria de discutir�”, foi �“sobre tudo queme faça aprender mais�”. As respostas à questãoreferente à Tabela 9 mostram que a maioria daspessoas se interessa muito por todos os assun-tos apresentados. Quanto ao �“apetite educativo�”,do qual fala Paulo Freire, pude tambémconstatá-lo fora das atividades da experiência-piloto e durante os cursos da escola comunitá-ria. O fato de as pessoas adorarem as novelas étambém revelador de uma maneira de fugir des-se universo restrito.

Do que foi observado em campo, deduz-seque, mais do que uma �“cultura da pobreza�”,defendida por Lewis (1972) existe uma �“cultu-ra do oprimido�”, como diria Paulo Freire. Ascondições de vida que levam a esse horizonte

estreito são árduas, e isso é um dado a mais daopressão. Pude observar em campo que a vidamaterial leva à limitação de interesses, que aspreocupações cotidianas ocupam a maior partedo tempo das pessoas. Todavia, essa não é umasituação determinada somente pelas condiçõeseconômicas, vários outros fatores aí interferem.

Dentre as condições objetivas que consti-tuem esse estado de coisas, podemos citar: 1)preocupações com a sobrevivência, que absor-vem o indivíduo; 2) fraca escolaridade; 3) isola-mento físico e social e falta de informações; 4)sentimento de impotência perante as questõesque ultrapassam o seu cotidiano.

Vejamos agora cada um desses dados cons-tituintes do modo de vida e que condicionamesse horizonte de interesse restrito.

As preocupações com a sobrevivênciaocupam o tempo e o espírito das pessoase condicionam seu olhar sobre a vida

Como vimos, o cotidiano dos pobres é mar-cado pela precariedade, em diferentes graus,certamente, mas também por uma luta pela so-brevivência ou, no melhor dos casos, pela bus-ca de uma vida digna. Com relação ao dado�“tempo�” no horizonte de interesse das pessoas,percebe-se que a fixação em um horizonte ime-diato está vinculada às situações de proviso-riedade que são constantes, causadas pela inter-mitência do trabalho, pela fragilidade dos casa-mentos, etc. Segundo o questionário aplicado,57% das pessoas do Vila Verde têm um hori-zonte estreito (36,8% no dia de hoje; 20,2% noano em questão) e 43% pensam no futuro a

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médio ou longo prazo. Isso quer dizer que émais natural pensar no dia seguinte do que fa-zer planos de longo prazo, pois, diferentemen-te do que acontece nas classes sociais mais abas-tadas, o futuro para os pobres implica freqüente-mente um maior número de fatores impon-deráveis. Assim, o horizonte de interesse restri-to no tempo seria uma estratégia de adaptaçãoperfeitamente racional.

Assim, não poderíamos mais dizer comoBeaumarchais, em seu Barbeiro de Sevilha, quesó os indivíduos sem nenhum problema pessoalpoderiam se ocupar dos problemas dos outros.Isso pode ser verdadeiro em vários casos, masexemplos contrários foram observados no bair-ro. Às vezes, ocupar-se dos outros é uma ma-neira de dar sentido à própria vida. Certamen-te, tudo depende do indivíduo, de sua história,de seus valores. Para simplificar, digamos quecondições materiais precárias constituem umacondição restritiva à construção de um horizontede interesse vasto e de longo prazo.

A baixa escolaridade tem como efeito umdifícil acesso à cultura escrita e dificulta oconhecimento aprofundado da realidade

Não se falará aqui das conseqüências nefas-tas da fraca escolaridade no que diz respeito àcultura, pois são muito evidentes. De todo modo,é preciso lembrar que para o indivíduo poucoescolarizado a percepção do mundo é restrita àcultura oral do meio e da televisão ou do rádio.Entretanto, é preciso destacar um aspecto me-nos discutido, que é a vivência do ambiente daescola. Não ter feito um esforço consciente e

contínuo para adquirir o saber, mesmo o mais sim-ples, tem como efeito o desconhecimento dosmecanismos de �“aprender a aprender�”. Além dis-so, a disciplina, o tempo dedicado ao conheci-mento e toda a dinâmica do que se passa em umasala de aula configuram também a visão do mun-do e o comportamento. A leitura, por exemplo, éum hábito que adquirimos ou não; a curiosidadetambém pode ser mais ou menos favorecida pelavida em sociedade.

No caso dos analfabetos, não se trata somenteda ignorância de uma técnica, adquirida para umafunção utilitária �– ler e escrever. O desconheci-mento dessas técnicas tem repercussões cogniti-vas importantes, no sentido da �“leitura da lingua-gem como leitura do mundo�” (MACEDO eFREIRE, 1990). Para esses autores, não é possí-vel passar à leitura da palavra sem antes ter pas-sado por uma decifração da realidade. Assim,dominar os mecanismos de ler e escrever é um�“aspecto essencial do que significa ser um agenteindividual e socialmente constituído�” (GI-ROUX, 1990).

Além do horizonte restrito de interesse, ve-rificou-se uma dificuldade para compreender ascoisas em suas relações de causa e efeito. É o quePaulo Freire chamou de �“consciência intransitiva�”ou ingênua, em que o indivíduo apenas percebeo tempo passar, sem conceber o significado dra-mático dessa passagem, mesmo quando sofre suasconseqüências. Assim, é freqüente que as pessoasnão percebam os mecanismos estruturais quecondicionam suas condições de vida ou que dêemexplicações superficiais e mesmo fantasiosas paraos fatos da vida corrente.

No questionário inicial, apresentamos trêspares de bairros, sendo que apenas um desses

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era composto de bairros com diferenças sociaisbem marcantes, e perguntamos qual era o parmenos homogêneo. Se a maior parte das pessoasdeu a resposta correta, houve também 35% derespostas erradas, demonstrando a dificuldadede alguns em identificar as desigualdades urba-nas aparentemente evidentes. No questionáriofinal, recolocamos a pergunta, mas pedindo àspessoas para explicar a diferença. Um entrevis-tado fez a seguinte observação: �“Barra eMalvinas? Nada a ver. Na Barra as pessoas sãomuitas civilizadas, o aperfeiçoamento do bairrose dá em ordem. Malvinas é um bairro desorga-nizado, as pessoas não sabem viver juntas�”. Adesigualdade das condições de infra-estrutura edo conforto das casas é vista como desencadeadapelas qualidades morais dos habitantes e nãopelas condições estruturais da sociedade. É im-portante guardar na memória esse exemplo, poisa lógica da reposta poderá ser compreendidamelhor mais tarde quando trataremos daestigmatização dos pobres.

O isolamento físico e social e a falta deinformações impõem uma exclusãosociocultural

O Vila Verde, como outros bairros pobres,é isolado da cidade e as condições econômicascondicionam as pessoas a permanecer nele pormuito tempo, sobretudo os homens e mulhe-res desempregados. Esse isolamento configura-se numa barreira a qualquer novidade e ao aca-so, que são típicos da vida nos grandes centrosurbanos e, assim, usuais para os que aí transi-tam. Dessa forma, muitos habitantes dos bair-

ros pobres �– principalmente os que não traba-lham na cidade �– vivem como se morassem emvilarejos, imersos na limitação e previsibilidadeque isso significa.

A condição de isolamento faz com que hajano bairro características próximas daquelas dasinstituições �“totais�” �– asilos, conventos, etc. �–onde a continuidade de um só papel social e aimpossibilidade de variar os contatos levam auma certa saturação (GOFFMAN, 1968). Oscontatos familiares e de vizinhança imediatatambém são muito próximos, devido às condi-ções materiais do habitat, pequenas residênciascom alta densidade. Essa possibilidade de variarde papel social �– que é freqüente na elite, qual-quer um podendo ser, ao mesmo tempo, pro-fissional, mãe/pai de família, membro de umaassociação, jogador de vôlei em uma equipe, etc.�– falta na vida dos pobres e pode acarretar certaagressividade. Para compreender esse dado nãoé preciso comparar mecanicamente as necessi-dades das pessoas que sempre tiveram papéis al-ternativos a desempenhar com aquelas das pes-soas que tiveram poucos papéis em toda sua vida.Estes últimos talvez tenham construído alter-nativas particulares, como ter uma cultura deconvívio diferente daquela das classes ricas.

Um outro aspecto da questão aqui tratada éo isolamento social vis à vis das pessoas que po-deriam aumentar o horizonte de interesse doshabitantes graças a conversas e opiniões dife-rentes, enriquecedoras. Desse ponto de vista, háuma certa homogeneidade no bairro e, assim,são menores as possibilidades de surgirem no-vas questões. Uma conversa sobre as novidadesda informática ou sobre o cenário cultural, porexemplo, é inacessível aos pobres, pois eles não

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têm, geralmente, relações com pessoas que tra-balham nessas áreas.

A falta de conhecimentos variados eaprofundados é uma constante na vida dos po-bres, o que se deve não somente à baixa escola-ridade que acabamos de mencionar, mas tam-bém às condições econômicas das pessoas. As-sim, é difícil o acesso aos produ-tos culturais de qualidade, pois épreciso pagar por eles; mesmoquando se trata de programaçõesgratuitas, o custo do transporte éum impedimento. Existem aindaas restrições materiais, mesmopara se ter acesso à informação,às vezes superficial, da TV e dosrádios. Esses veículos de comu-nicação estão presentes (81,6 %das casas possuem um aparelhode rádio e 69,3 % uma televisão),mas 30% das casas não possuem um aparelhotelevisor. Diferentemente de noutros contextos,pode-se dizer com certeza que, no caso brasi-leiro, não possuir uma televisão não é uma es-colha das famílias, pois, assim que há umamelhoria nas condições de salário (ou de crédi-to) populares, a TV é um dos primeiros bensadquiridos.

A escolha da programação da TV influi so-bre o nível de qualidade das informações rece-bidas. Para compreender não só essa escolhacomo outras condutas é preciso levar em consi-deração o fator psicológico, pois é necessáriauma energia particular para se sobreviver semse deixar abater pelas condições de pobreza. Aspreocupações com a sobrevivência levam as pes-soas a procurar uma informação mais leve, que

lhes permita fugir dos próprios problemas. Issoé confirmado pelo grande interesse dado às no-velas, que são dramáticas, mas onde o toque dehumor e romance é sempre presente, podendodar ainda a ilusão, àqueles que as acompanham,de fazer parte do mundo das elites que elas des-crevem.

Programa Em 1o

lugar Em 2o

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lugar Em 4o

lugar Sem

resposta Esporte 18,4 17,5 17,5 30,7 15,8 Polícia 12,3 20,2 29,8 18,4 19,3 Noticiários 44,7 21,1 7,9 13,2 13,2 Novelas/Filmes 25,4 22,8 23,7 15,8 12,3

Tabela 10Em suas fontes de informação (TV sobretudo), quais são osassuntos que mais lhe interessam (em porcentagem)?

Fonte: pesquisa de campo.

Com mais de 66% de respostas indicando oprimeiro e o segundo lugares, os habitantes deVila Verde mostram seu apego, como o resto doBrasil, ao jornal das 20:00h. A participação nessa�“grande missa�” é, além da principal forma de in-formação, um laço importante que liga cotidia-namente os habitantes do Vila Verde a todos osoutros brasileiros, ricos ou pobres. É natural quea população pobre, particularmente na Bahia, te-nha fontes próprias de informação oral, especial-mente aquela ligada à cultura afro-brasileira �– aocandomblé e às canções, por exemplo, que sãomuito ricas. Entretanto, tratamos aqui de umaamplitude cívica, e se essa cultura de fundo temsua função importante em termo de identidades,ela não consegue constituir por si mesma umapossibilidade de exercício de cidadania.

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O sentimento de impotência perante asquestões que ultrapassam o cotidiano sereflete no horizonte de interesse pessoal

Esta última condicionante do horizonte res-trito de interesse já se aproxima do tema da vidasubjetiva das pessoas, que será discutido a se-guir. A falta de interesse pelas questões maisvastas vem também de um sentimento de im-potência, o de não poder intervir em outras ins-tâncias além do domínio privado. Por exemplo,quando perguntados a respeito dos projetos parao futuro, 95,6% deles tinham planos para suascasas (aumento, melhoria); apenas 25,1% refe-riram projetos relacionados ao bairro, e 24,6%,para sua rua.

O sentimento de não ter controle sobre seudestino, exceto no que concerne a questõesmuito pessoais, faz com que o amor e o sexoocupem o centro de numerosas discussões nomeio popular. Mas isso também é uma caracte-rística de outros meios sociais, em que a dimen-são coletiva da vida é menos exercida ou quan-do não há outras possibilidades de realizaçãopessoal. Como foi dito, trata-se, novamente, deuma arrumação lógica para se sair da impotên-cia: o indivíduo restringe seus interesses aosâmbitos sobre os quais ele tem algum controle,como, por exemplo, sua vida pessoal.

III �– A estigmatização dospobres

Serão tratados agora alguns aspectos antro-pológicos da pobreza, que estão na base das di-ficuldades do trabalho coletivo. Para compre-ender o que significa ser pobre recorremos aosestudos de Erving Goffman sobre os deficien-tes físicos, considerando as similitudes navivência das duas situações concretas. SegundoGOFFMAN (1975), a palavra estigma tem umaorigem grega e se referia, na antiguidade, a umsinal corporal particular, através do qual se que-ria deixar evidente algo de mal ou de extraordi-nário sobre o estatuto moral de alguém. O ter-mo será utilizado no sentido atual mais corren-te, para se referir à identificação condenatória apriori de uma pessoa ou de um grupo (Dicioná-rio Aurélio).

Dizer que os pobres são estigmatizados nasociedade capitalista não é uma novidade, vári-os autores já o fizeram antes. Mas se os pobressão estigmatizados, do que são eles acusados?De serem pobres e potencialmente perigosos.A ideologia difundida por muito tempo em nos-sas sociedades �– apesar das resistências a tal no-ção ao longo da história e de mudanças recentena abordagem do problema �– é de que os po-bres são pobres por sua própria culpa, por suaignorância, por sua incapacidade, por sua faltade esforço para progredir ou mesmo pela corde sua pele. O problema social da pobreza épouco reconhecido e é considerado como deresponsabilidade individual. A identificação

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condenatória dos pobres como �“violentos�” temuma história própria, da qual essa identificaçãocom as �“classes perigosas�” na Paris do século XIXé apenas uma parte (CHEVALIER, 1978).

Para compreender a estigmatização dos po-bres na sociedade brasileira, é necessário lem-brar alguns dados históricos, que são tambémverificados em outros países.

n A escravidão, que durou 400 anos e cujaextinção, há cerca de 115 anos, não foi suficien-te para extinguir sua influência, suas formaspersistindo ainda em algumas profissões. Essepassado escravagista e a concepção religiosa dotrabalho como um castigo originaram o despre-zo da elite pelo trabalho manual repetitivo �– e,consequentemente, pelas pessoas que o exercem�– o qual ainda subsiste (DA MATTA, 1986).

n A inexistência de uma consciência repu-blicana e a ausência de um serviço público fun-cional que fariam com que a pobreza fosse vistacomo um problema de sociedade a ser tratadoestruturalmente pelas instituições responsáveis,sob a responsabilidade de toda a sociedade(LEEDS e LEEDS, 1978). A herança de um es-tado patrimonialista que cria e mantém na de-pendência da boa vontade dos ricos e podero-sos, políticos, administradores, �“coronéis�”, etc.,os desprovidos (FAORO, 1987).

n As idéias religiosas, que fazem aceitar apobreza como um sofrimento que será recom-pensado no além.

Como na Grécia, a estigmatização começapelo visual. O primeiro sinal visível da condi-ção de pobreza é a cor da pele e os cabeloscacheados. Se no Brasil as estatísticas mostramque os negros e mestiços são mais pobres queos outros, isso é ainda mais verdadeiro em Sal-

vador. O segundo sinal pode ser então o das rou-pas, seja porque são muito utilizadas e perde-ram a cor e a forma, seja porque não estão namoda ou porque o corte, o acabamento ou omaterial �“denunciam�” que são de baixo preço,adquiridas em lojas populares ou camelôs. Oterceiro sinal é a saúde: a pobreza se lê nos cor-pos, na pele e no rosto. Os pobres têm mais den-tes cariados ou ausentes e lesões visíveis na pele,e apresentam, em vários casos, magreza ou obe-sidade devido a uma má alimentação.

Outros sinais podem ser perceptíveis �– an-tes de tudo, o lugar onde as pessoas se encon-tram, pois a cidade é segregada e os pobres nãoestão presentes em todos os seus espaços. Emseguida, o modo de falar, as falhas nas concor-dâncias verbais e nominais e o desconhecimen-to de coisas simples, como o funcionamento deum telefone celular ou outro objeto caro. É bemevidente que todas essas características não sãoencontradas nem em todas as pessoas nem emtodos os grupos. Trata-se aqui de um esforçopara tentar deixar claros na imaginação do lei-tor sinais que ele, com certeza, já tinha percebi-do, mas talvez sem inventariá-los.

A estigmatização é também uma relação so-cial. Goffman comenta que �“um atributo queestigmatiza alguém pode confirmar normalida-de em outro�” e, desta forma, observa-se que,freqüentemente, aquele que estigmatiza quermanter o afastamento entre si mesmo e o outropara se tranqüilizar a respeito de sua �“normali-dade�”. No caso da estigmatização da sociedadebrasileira relativamente aos pobres existe o dese-jo da elite de não se confundir com esses e deconsolidar a diferença de classe. O exemplo damoda ilustra bem os mecanismos de estigmati-

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zação, principalmente porque se trata de um exem-plo visual por excelência. Zaluar (1985) refere-seà rapidez com a qual as coisas �“da moda�” ficamdemodées, para não serem imitadas a tempo, e ex-plica que se trata de um recurso encontrado pelaelite para �“evitar esta insuportável confusão sociale manter os meios simbólicos de continuar a mar-car as diferenças de classe�”.

O comportamento da elite perante os po-bres, ou dos �“normais�” perante os �“estigmatiza-dos�” decorre de um mecanismo descrito porGoffman:

�“Por definição, está claro que acreditamos que al-guém que tem um estigma não é completamente hu-mano (...). Nós construímos uma teoria do estigma,uma ideologia para explicar sua inferioridade e dar contado perigo que ele representa, racionalizando assim al-gumas vezes uma animosidade baseada em outras di-ferenças, como as de classe�” (op. cit.).

Essa animosidade ou incômodo social éperceptível em várias situações; uma estratégiapara evitar o incômodo pode ser ignorar os po-bres ou se afastar deles. O exemplo no espaçopúblico é a estratégia de evitar o contato, quan-do a pessoa fecha os vidros do carro para nãoser abordada ou evita alguns locais da cidadeonde os encontros interclasse seriam mais pro-váveis. É possível que, em alguns casos, essecomportamento dos �“normais�” seja decorrentedo medo (dada a associação estabelecida entrepobre e malfeitor) ou mesmo de um certo sen-timento de culpa.

A interiorização do estigma

Como reagem os pobres à sua estigmati-zação? Segundo a literatura e a experiência decampo, é possível dizer que existem pelo me-

nos dois tipos de reação. De um lado, há umainteriorização do estigma que parece ser larga-mente difundida e que se poderia classificarcomo uma reação conformista ao modelo social.De outro lado, existe uma consciência de quese é posto à margem da sociedade, ou seja, háuma reação mais crítica, que pode desencadearreações de resistência, como a luta política(CHAUI, 1986), ou de revolta, como a margina-lidade (ZALUAR, 1985). Essas reações não sãoexcludentes.

Para falar das atitudes menos conformistasà condição de pobre, as análises dos pesquisa-dores que estudaram a pobreza e a cultura po-pular parecem mais pertinentes que as deGoffman, pela origem da estigmatização. O es-tigmatizado por deficiência física deve enfren-tar um tipo de má sorte �“da natureza�”, pela qualninguém pode reprová-lo, enquanto os pobresseriam vítimas de uma falta de sorte social, pelaqual a sociedade poderia ser reprovada. Entre-tanto, como visto, não é freqüente que os po-bres estabeleçam uma relação de causa e efeitotão clara entre sua pobreza e a estrutura econô-mica e social do contexto em que vivem. As-sim, se se pode dizer que as estratégias dos po-bres giram em torno de dois pólos, resistência econformismo, a análise de Goffman mostra-sepertinente apenas no segundo caso.

A interiorização do estigma foi abordada porPaulo Freire, quando ele diz que os oprimidos,�“de tanto escutar que eles são incapazes, que nãoservem pra nada, que não sabem de nada, quesão doentes, preguiçosos, que não produzembem, acabam por se convencer de sua �‘incapa-cidade�’�” (FREIRE, 1982). Goffman vai no mes-mo sentido quando afirma que as prescrições

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vindas da sociedade inteira, que o estigmatizadoincorporou,

o deixam intimamente suscetível ao que os outrosvêem como seu defeito e isso o leva, inevitavelmente,ainda que somente por alguns momentos, a concordarcom o fato de que, afinal de contas, ele ficou abaixo doque deveria estar (GOFFMAN, 1975).

As estratéias que provêm da interiorizaçãodo estigma podem ser variadas. No pólo do con-formismo, o pobre tenta retirar alguns benefí-cios da sua condição. Goffman nomeia essa ati-tude de �“aceitação�” �– o estigmatizado tenta des-cobrir como pode obter �“o respeito e a conside-ração�” que não obtém naturalmente. A�“vitimização�” e a �“compensação por gan-hos secundários�” são algumas das tendênciasdecorrentes da aceitação.

A vitimização é uma atitude mais freqüen-te e encontrada na estratégia da mendicância.Pôde-se observar, em vários exemplos, no bair-ro, quando os habitantes, diante de alguém visi-velmente não-pobre (de mim, por exemplo, mastambém de outros), desenvolviam o discurso davítima, como um mendigo. Do ponto de vistada cidadania, a �“vitimização�” é uma estratégiaperversa, pois leva a sociedade à comiseração eà caridade para com os pobres, o que reforça osmecanismos estruturais de ausência de direitos.

Segundo Goffman, a compensação porganhos secundários é uma outra forma dosestigmatizados se adaptarem à sua condição eocorre, seja através de uma correção de ma-neira indireta, seja através da crença em umabenção secreta. Em campo, observamos quea busca dessas compensações é menos freqüen-te do que a vitimização, provavelmente porqueelas estão menos de acordo com a expectativada sociedade relativamente aos pobres.

A correção de maneira indireta pode serencontrada no esforço para se sair da dificulda-de material e do estigma. Exemplos: a opção pelocrime, com as compensações materiais possíveis,assim como a opção pelo engajamento em al-guma forma de busca de melhoria da vida cole-tiva, atitude que é reforçada pelo prestígio mo-ral que pode acarretar. A crença numa bênçãosecreta como pobres é encorajada pelas con-vicções religiosas, tais como as do cristianismo,segundo o qual �“é mais fácil para um camelopassar pelo buraco de uma agulha do que paraum rico entrar no reino dos céus�”. É o caso tam-bém das igrejas pentecostais que insistem naexistência de um povo eleito �– seus crentes, os�“irmãos de fé�” �– merecedor da confiança e doauxílio mútuo para progredir em todos os cam-pos, inclusive na política.

Um outro aspecto do problema da interiori-zação da estigmatização pelos pobres é a exis-tência de um �“limiar de resignação�” ao sofri-mento �– definição de um limite de miséria queas pessoas podem suportar �– muito alto, se com-parado ao de outras categorias sociais maisfavorecidas. Assim, os equipamentos públicos,como as escolas, as creches e, principalmente,os lazeres públicos, são ainda considerados comoum verdadeiro luxo nos bairros mais pobres eas pessoas dificilmente se mobilizam parareivindicá-los. Todavia, os problemas situadosantes desse �“limiar de resignação�”, como o aces-so a um alojamento ou à água, provocam nor-malmente a revolta. As invasões de terreno sãoum exemplo. Salvador e várias outras cidadesbrasileiras têm uma boa parte de sua superfícieocupada pelos bairros de invasão (MALHEI-ROS, 1990; GORDILHO SOUZA, 1990) e isso

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ocorre apesar da dureza das leis que protegem apropriedade privada e das perseguições que seseguem a essas ações. No próprio bairro de VilaVerde, cuja população era recém-chegada e pou-co organizada, pôde-se encontrar exemplos quepermitem constatar os limites desse limiar deresignação. Assim, quando houve uma interrup-ção no fornecimento de água, por exemplo, ummotim se produziu no bairro. O primeiro ques-tionário nos mostra que apenas 17,5% dos habi-tantes se colocam contra a ocupação de terrenosvazios em seu loteamento, o que significa umaaceitação das invasões. Como observou um en-trevistado, �“cada família tem direito a um abrigo�”.

O sentimento que pode desencadear rea-ções dos pobres perante a dureza de suas condi-ções de vida é a percepção do lugar deles no sis-tema a que pertencem. Numerosas canções po-pulares simbolizam, por exemplo, os valorescorrentes e às vezes não-explícitos na socieda-de. Uma canção antiga e muito famosa,regravada com sucesso pelo cantor Gilberto Gil,exprime um sentimento popular diante da po-breza:

�“Madalena choravasua mãe consolavadizendo assim:�– Pobre não tem valorpobre é sofredore quem ajuda é o Senhor do Bonfim�”

É a partir dessa percepção dos pobres do seuestatuto na sociedade que pode nascer uma cons-ciência dos fatores estruturais que produzem suacondição de oprimidos (ou de explorados). Elapode ser o ponto de partida da formação de uma

consciência de classe de que fala Thompson(1988). Entretanto, para que esse processo de�“conscientização�”, como diria Paulo Freire, pos-sa acontecer, seria necessário ultrapassar todas asconseqüências sociais da interiorização do estig-ma, que discutiremos a seguir.

Conseqüências da interiorizaçãodo estigma

A auto-imagem negativa do grupo

A interiorização do estigma atinge tanto osindivíduos pessoalmente como o grupo do qualo estigmatizado faz parte. O comportamento doestigmatizado perante os outros �“estigmatizá-veis�” é muito ambíguo, pois estes últimos são,ao mesmo tempo, companheiros de infortúnioe aqueles que confirmam a existência dos seus�“defeitos�”. Na interpretação de Goffman: �“Seugrupo real é, na verdade, a categoria que podeservir ao seu descrédito�”. Paulo Freire faz amesma observação: �“O comportamento do opri-mido é um comportamento prescrito�”, pois osoprimidos �“hospedam neles o opressor�” e ten-dem a agir da mesma forma quando estão emposição de fazê-lo. �“Os camponeses que, pro-movidos a feitores, não se tornam opressorestão duros quanto seus patrões são raros�”(FREIRE, 1982).

As respostas dos entrevistados do bairro VilaVerde sobre as pessoas admiradas por eles sãoreveladoras do estigma de raça e classe social queexiste entre os próprios pobres e da ambivalênciaque eles carregam. Quando perguntamos �“Qualé a pessoa que você mais admira?�”, as respostas,conforme visto, freqüentemente dizem respei-

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to aos artistas, mas são de dois tipos. Quandofalam de uma pessoa de cor branca, dizem �“Euadmiro Xuxa porque ela é fofa�”, �“Admiro Tarcísio Meiraporque ele faz bem seu papel na TV�” ou �“Admiro oCelulari porque ele é maravilhoso�”. Entretanto, sefalam de um negro ou de um mestiço, comoMike Tyson, Martinho da Vila ou Djavan, elesnão fazem observações diretas sobre seu traba-lho �– ou as fazem depois �– mas dizem que essaspessoas são �“esforçadas�” ou que não têm �“bes-teiras�”. Por exemplo, �“Eu admiro Lazzo (cantore compositor baiano, negro) porque ele é humilde,ele veio �‘de baixo�’, ele ficou famoso e apesar disso elenão tem �‘besteiras�’�”.

A interiorização do estigma pode criar umdesprezo por si e pelo grupo (GOFFMAN,1975; FREIRE, 1982). Uma das reações possí-veis é a de querer se identificar com os �“ganha-dores�” da sociedade. Paulo Freire diz que o ide-al dos oprimidos �“(...) é realmente serem ho-mens, mas ser homem para eles �– na contradi-ção na qual eles estão mergulhados e cuja supe-ração não está à vista �– significa serem opres-sores�”(op. cit.). Goffman descreve o mecanismode aliança com os normais, em que o estigmati-zado quer se distinguir do seu grupo: �“É prová-vel que quanto mais o indivíduo se alie aos nor-mais, mais ele se considere em termos não-estigmáticos, apesar de existirem contextos emque o oposto parece ser verdadeiro�”. SegundoGoffman, o indivíduo estigmatizado tem umatendência a estratificar seus �“pares�” de acordocom o grau de visibilidade de seu estigma. Elepode então tomar atitudes típicas dos �“normais�”perante os seus semelhantes, ainda mais�“estigmatizáveis�” do que ele. Um exemplo pre-senciado repetidas vezes em campo foi a atitu-

de depreciativa de um mestiço perante um outromestiço de pele mais escura que a sua.

A outra face do mecanismo de identifica-ção com os poderosos é a vontade de se distin-guir do que eles acreditam ser a verdade sobreseus pares. Nos primeiros contatos com os ha-bitantes do bairro, por exemplo, quando elesainda falavam muito do período em que fica-ram nos abrigos provisórios �– onde houve vári-os episódios de vandalismo, roubos, etc. �– aspessoas diziam: �“Nós somos pobres, mas cada umtem sua moral�”, ou �“Estávamos todos lá, mas cadaum ao seu modo de agir�”, ou, ainda, �“nós somos po-bres, mas não somos todos marginais�”.

Esse fenômeno foi observado também atra-vés das modificações externas que foram feitasnas casas, desde a chegada das pessoas no bairro.Parece que, em muitos casos, o fato de embelezaras casas servia para se diferenciar da pobreza pre-dominante. O valor simbólico desse ato é aindamais evidente, pois, para várias famílias, fazermodificações nas casas implicava abrir mão doatendimento a necessidades essenciais. Outrasintervenções, relativas à segurança das casas, re-velam que as famílias com um pouco mais dedinheiro se sentiam, de alguma forma, ameaçadaspor esses vizinhos imediatos ainda mais pobres.Esse fato foi muitas vezes confirmado pela falados moradores. Por outro lado, muitas vezes co-mentou-se, orgulhosamente, que, por ser legali-zado, mesmo pobre e periférico aquele bairroseria muitas vezes melhor que o bairro originá-rio de invasão, situado na colina fronteiriça.

A ambivalência para com os seus semelhan-tes tende a desaparecer quando a intimidadepessoal se estabelece. Antes de haver ligaçõessólidas entre as pessoas, uma visão impessoal e

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depreciativa dos vizinhos era possível. A princí-pio, as pessoas falavam umas das outras comode um grupo mais ou menos homogêneo de�“pobres�”, e não como de pessoas conhecidas.Para com �“os outros�” havia uma intolerânciapelos erros mais simples. Assim, um atraso oufalta nos mutirões era visto como prova deirresponsabilidade �“dessa gente�”, mesmo por partedos que haviam tido o mesmo comportamentoantes. O mesmo ato poderia ser perdoado maisfacilmente caso se tratasse de alguém próximo.

Os exemplos de conversas que revelam aexistência de uma imagem negativa do grupo sãonumerosos. Durante a organização da associação,que iremos descrever a seguir, eram freqüentesos comentários maldosos de que as pessoas quese interessavam pela atividade teriam interesseem �“aparecer�” e conseguir benefícios secundáriosda organização. As atividades pedagógicas e açõescoletivas, que serão comentadas mais adiante,foram palco de exemplos interessantes.

Uma mulher, na primeira reunião dosmoradores: �“As pessoas daqui não são sérias. As mãesvão aproveitar da existência da creche para passear, enão para trabalhar�”.

Nas discussões do mutirão para a constru-ção dos passeios de todas as casas do bairro, al-guém disse: �“O mutirão não vai funcionar, pois cadaum vai sair assim que o passeio de sua casa estiverpronto e não ajudará os outros�”.

Ainda nas discussões do mutirão: �“É neces-sário que haja alguém da Prefeitura para vigiar os tra-balhos do mutirão senão haverá problemas. É melhorque tenha alguém de fora para comandar�”.

Nas discussões sobre a creche, a opiniãoseguinte era muito difundida: �“As mães não vãocuidar dos filhos dos outros, elas vão bater nas criançase tomar conta apenas dos seus�”.

Ou ainda, em um dos mutirões para arrumara creche: �“Não se deve deixar nada na casa da creche,pois as pessoas vão roubar tudo. As pessoas daqui são oque há de pior na sociedade�”.

Por outro lado, várias vezes ouvi compara-ções entre meu mundo �– segundo eles o dos�“brancos e dos ricos�” �– e o mundo deles �“dosfracos, dos pobres�”. Quando eu citava, comoexemplo para a organização da creche, um pro-cedimento existente nas creches do �“meu meio�”,eles não aceitavam o argumento, dizendo quepara pessoas ricas era diferente, pois são �“bem-educadas�”.

O apoio a líderes fortes

A interiorização do estigma faz com que aspessoas esperem dos líderes que eles sejam dife-rentes delas próprias, mais próximos do modelo�“bem-sucedido�” da sociedade. É verdade que, emsua ascendência sobre os outros, todos os líderesse distinguem por características concretas, maseste fato pode ser realçado ou não pelo líder. Sehá rejeição a um líder originário do meio popu-lar e que quer se manter próximo do modo devida e comportamento das pessoas comuns, asconseqüências da interiorização do estigma setornam problemáticas para a cidadania.

Em um bairro popular, de uma maneirageral, o líder é mais escolarizado e seu nível sa-larial é um pouco maior. Pela sua vivência pes-soal e suas características próprias, o líder é al-guém que possui uma visão de mundo alargadacom relação aos outros habitantes. Ele tem tam-bém capacidades pessoais particulares, como ade convencer, seja pela sinceridade e o exemplo�– a persuasão �– seja pela autoridade que inspira.

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Ele se distingue dos outros por uma perseveran-ça particular na busca dos seus objetivos, e deveter também uma certa capacidade de sacrifíciopessoal, porque a liderança significa a saída domundo privado para o engajamento nos proble-mas que dizem respeito aos outros. O líder fica àvontade em público e se distingue sem dificul-dades da multidão, sendo capaz, dessa forma, deobter que as pessoas o escutem, o respeitem e osigam.

Dois tipos de líderes foram identificados emcampo: um, cuja ascensão sobre os habitantes ébaseada na autoridade ou capacidade de coman-dar, e outro, que baseia sua ascensão na influ-ência, ou capacidade de persuadir. Freqüente-mente, existe uma mistura dessas duas capaci-dades e os líderes foram caracterizados com basena preponderância do tipo de ascendência queeles têm sobre os habitantes: aquele que funda-menta sua liderança na autoridade é um líder�“forte�”, enquanto o que fundamenta sua lide-rança na influência é um líder �“mobilizador�”.O líder forte é o que pode convencer as pessoasde que ele tem um poder particular de melho-rar suas vidas. O líder mobilizador é o que podepersuadir as pessoas que elas podem, por simesmas, melhorar suas vidas. Fica claro, assim,que é este último que melhor pode contribuirpara o sucesso de uma intervenção que buscaimpulsionar o aprendizado da cidadania.

Foi possível observar que o líder natural tí-pico de um bairro como Vila Verde é sem dúvi-da alguma o líder forte. Em um ambiente deestigmatização, de interiorização da opressão ede identificação com os dominantes, é normalque o líder típico seja o que está em sintoniacom as características tradicionais da sociedade,

autoritarismo e paternalismo, com as quais aspessoas estão habituadas. O líder forte seria as-sim legitimado pela tradição, mas isso não é su-ficiente para descrever suas características. Paraexercer sua liderança, o líder forte é legitimadotambém pelo seu carisma. Segundo Weber(1991), a legitimação de um líder carismáticovem de uma certa idealização que os adeptosfazem a seu respeito: trata-se de característicasnão-cotidianas, não-medidas, vindas de umheroísmo, de uma graça qualquer. A interpreta-ção que parece próxima em nosso caso é a docarisma como sedução, do que serão mostradosexemplos mais adiante.

O líder mobilizador, o que legitima sua li-derança pelo seu poder de persuadir as pessoas,de mobilizá-las em uma luta baseada em suaspróprias forças, é fruto de uma construção ex-terior à tradição do cotidiano. Ao contrário doslíderes fortes, os líderes mobilizadores têm ne-cessidade de serem impulsionados para se dis-tinguir. Sua legitimação parte de uma racionali-dade dos �“liderados�” com relação ao interesseque eles têm de ter um líder assim. Esse temaserá tratado sobretudo ao final deste livro, poisa construção desse tipo de líderes era um dosobjetivos da intervenção e será examinada comoresultado prático desta.

Concluindo essa distinção dos tipos de lí-deres, é interessante assinalar que, quando fala-mos de um líder forte, usamos o singular, poisé intrínseco àquele cuja ascendência baseia-sena autoridade o exercício exclusivo da inteiraliderança em um grupo humano restrito. Se fa-lamos de líderes mobilizadores, usamos o plu-ral, já que eles não se excluem e podem se aju-dar mutuamente na ação. Entretanto, a distin-

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ção objetiva dos dois tipos de líderes pode levara apreciações românticas de suas ações. Minhaprópria experiência mostra uma tendência, noinício, a �“angelizar�” os líderes mobilizadorescom argumentos puritanos. Assim, o líder fortepretenderia se distinguir por vaidade pessoal,enquanto o líder mobilizador atuaria por purocompromisso ideológico. A experiência de cam-po mostrou que é melhor entender os fatos semmaniqueísmo: existe certamente uma vaidade,uma vontade de poder, que impulsionam tam-bém o líder mobilizador.

As relações de liderança não podem sercompreendidas se observamos apenas um ladodo problema: se existe um líder forte, que sesente lisonjeado pela tutela que exerce sobre osoutros, existem, de outro lado, os �“liderados�”,que se eximem da responsabilidade de seremautônomos. O líder forte deve também demons-trar uma capacidade concreta de suprir necessi-dades dos seus �“liderados�” e mostrar que é ca-paz de agir para melhorar a vida das pessoas. Porexemplo, ao real poder que Aristeu - nome fic-tício de personagem importantíssimo do bairro�– possuía, ele adicionava fantasias de poder. As-sim, fazia as pessoas acreditarem que todas asmelhorias no bairro aconteciam graças a seu tra-balho e utilizava os contatos pessoais privilegia-dos que possuía para levar as pessoas a crerem,ávidas de referências, que ele era poderoso.

Aristeu fazia o papel de guardião dos �“valo-res do bem�”, além daquele de guardião da or-dem, o que lhe era conferido por sua função depolicial. Utilizava-se freqüentemente de fórmu-las vagas, opiniões anônimas que não podiamser contestadas, para transmitir sua própria opi-nião, tendo, assim, um lado autoritário. Essa ati-

tude pôde ser melhor compreendida pelas suasreações durante a realização das obras da crechee da escola, quando ele utilizava expedientesobscuros para tentar impedir o curso normal dasiniciativas.

A imagem de autoridade que Aristeu tinhano bairro pode ser compreendida pelos argu-mentos dados pelos habitantes para justificar sua�“respeitabilidade�”, os quais recaíam em duas si-tuações: aquela ligada diretamente à sua funçãode policial, que constituía sua imagem de �“au-toridade�”, e aquela tirada de suas característicaspessoais, tais como seu charme, sua imagem de�“líder paternal�” e suas ações caridosas. Em umnúmero significativo de respostas ao questioná-rio (20 em 47), os habitantes justificavam seurespeito por Aristeu pela sua condição de poli-cial �– o rigor de sua autoridade é aí exaltado.Alguns não justificaram suas respostas, e outrosmisturam as duas imagens: �“Ele é o chefe dos vigi-as e ele ajuda a comunidade na medida do possível�”;�“Ele merece nosso respeito porque ele é devotado aobairro e nos respeita a todos�”.

O fenômeno da liderança foi tratado porWeber (1991) com base na idéia de dominação,que seria �“a probabilidade de encontrar obedi-ência a ordens específicas�”. Weber trata a domi-nação em um sentido mais amplo que o sim-ples autoritarismo, fundamentalmente distintode liderança, que significa mais a relação de umlíder com os �“liderados�” que o aceitaram comotal. Ele fala assim da legitimação da dominação.Não existe, segundo Weber, dominação sem�“um mínimo de vontade de obedecer, quer di-zer, o interesse (interno ou externo) perante àobediência�”. A legitimidade ou, pelo menos,uma crença nessa legitimidade, é procurada em

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todas as formas de dominação, mesmo se existetambém a autoridade imposta, aceita por fraque-za individual e/ou coletiva. Ainda conformeWeber, é a natureza das motivações ou dos inte-resses a obedecer que define a natureza dalegitimação e, por conseqüência, os diferentes ti-pos de dominação. Existem motivações materi-ais, afetivas e as que são do âmbito dos valores.Essas motivações podem, naturalmente, coexis-tir em cada caso. Segundo o mesmo autor, exis-tem três tipos puros de dominação legitimada: adominação racional, a dominação tradicional e adominação carismática. A dominação legitimadaracionalmente é encontrada nas instituições decaráter legal; a dominação legitimada afetivamen-te é encontrada nas relações de respeito à pessoa,ligadas à tradição; a dominação legitimada pelocarisma é encontrada nos seguidores do líder quetêm uma �“graça�” particular.

Em campo, foi possível observar o nascimen-to dos dois tipos de líder, que não são exemplospuros como os de Weber, mas cuja ascensão so-bre os outros pode ser compreendida à luz dassuas categorias. A emergência desses líderes e oreconhecimento de sua liderança pelos habitan-tes são reveladores de alguns valores fundamen-tais das pessoas em suas relações com o poder.

A experiência geral evidencia que os verda-deiros líderes carismáticos devem mostrar, ousimular, um amor profundo para com as mas-sas �“lideradas�”. A compreensão tradicional dopoder concebe que os pobres estejam sob a de-pendência dos poderosos e que eles nada po-dem fazer sem sua cumplicidade. A atitude deAristeu era típica daquela dos líderes �“popu-listas�”: ele era, ao mesmo tempo, duro e simpá-tico, vaidoso e afetivo, e dizia freqüentementeque era apenas sua presença que evitava a vio-lência no bairro. Jamais mostrou interesse pelas

discussões comunitárias. Contrariamente aos lí-deres mobilizadores, o líder forte não é do tipoque pode trabalhar em equipe. Ele não sabe es-timular o trabalho de cada membro de um gru-po, tudo devendo estar sob o seu controle abso-luto e seguir a sua visão das coisas.

A inveja despertada pelos líderesque se distinguem

Como visto, o típico líder de um bairropopular é o líder forte e sua ascendência sobreos demais não suscita inveja. Todavia, quandoexiste um líder mobilizador em ação, a atitudeinvejosa é muito freqüente. Esse comportamen-to é muito difundido e, mesmo se é tambémfreqüente em outras classes sociais, parece quese torna mais agudo com a interiorização do es-tigma da pobreza. Várias hipóteses podem ex-plicar a inveja relativamente aos que se distin-guem: 1) a idéia de que o líder quer tirar pro-veito de sua condição, seja para se fazer perce-ber, seja para enriquecer ou, ainda, para chegara uma posição de prestígio; 2) o sentimento deque se é ameaçado por essa posição de distinçãodo outro, porque se coloca em questão o seupróprio papel: �“por que eu não sou destacadocomo ela?�” 9 ; 3) a inveja da posição do líder, pois

9 No princípio era difícil para mim �– vinda de umoutro mundo - entender os motivos de brigas entreas pessoas. O poder ligado a cada função �– serprofessora da escola, diretora da associação, �“mãe dacreche�” (referente às fundadoras), etc., constituía, ameu ver, acima de tudo obrigações, dedicação,trabalho duro e não prestígio, honraria. Este erro sófoi compreendido mais tarde quando oentendimento acerca da busca de reconhecimentofoi se instalando e a visão sobre a disputa dos micro-poderes disponíveis de serem exercidos no bairrofoi se clareando.

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esse se distingue também perante o animadorexterno, que é alguém amado e respeitado nomeio. Essa terceira explicação é, na verdade, umavariação da segunda, que será discutida agora.

É provável que a lógica que está por trás dainveja seja a da diferenciação. Antes da ação con-junta dos habitantes era difícil reconhecer asdiferenças de condição de vida e de personali-dade em um meio caracterizado pela exclusão.Todos eram �“os pobres�”, para o observador ex-terno e para eles próprios. Quando se dá inícioa um trabalho coletivo, certamente alguns sedistinguem e é difícil para os demais suportaressa distinção, sobretudo se esses líderes são,normalmente, pessoas que se diferenciam dogrupo também com relação à escolaridade, aosalário, à história de vida, etc.

Mas de onde vem esse medo da diferencia-ção? Como será visto com mais detalhes poste-riormente, aquele que se distingue coloca o ou-tro em situação de �“falta de reconhecimento�”,já que, segundo Todorov (1995), a base das re-lações humanas é a busca do reconhecimentodo outro. No caso do bairro popular, ser lídersignifica ser reconhecido e os que também as-piram a ser líder sentem que o reconhecimentodo outro impede o seu. Logicamente isso acon-tece somente num processo igualitário, do con-trário é a lógica da dependência que prevalece,como no caso dos líderes fortes.

É claro que essa atitude invejosa não é aúnica. Existem pessoas que admiram os que as-sumem mais responsabilidades do que os ou-tros e reconhecem que elas são úteis, pois fa-zem avançar as coisas, mobilizam os demais, osmenos capazes ou menos disponíveis. Esses lí-deres são, às vezes, reconhecidos rapidamente,

e as pessoas aprovam sua dedicação, lhes rendemhomenagens e os apoiam. Nesse caso, normal-mente existe um reconhecimento mútuo, umacumplicidade na ação, um �“consentimento ati-vo�”, em que líderes e �“liderados�” caminham jun-tos, cada um em seu papel, para um objetivo co-mum (GRAMSCI,1966).

O problema da atitude invejosa é que nor-malmente provoca disputas no grupo, acarretadesavenças e, em conseqüência, a formação de�“facções�” �– ela impede a constituição de uma�“vontade coletiva�” no sentido gramsciano. Naverdade, na maior parte do tempo não se tratanem de diferença de pontos de vista nem demétodo de ação, pois, num início de ação cole-tiva, as pessoas são ainda muito inexperientespara ter esse tipo de desentendimento. Trata-serealmente de desacordos de cunho pessoal. Oscomentários malévolos daí decorrentes minama confiança dos que são mais fracos no grupode ação, e bloqueiam o processo. Os líderesemergentes se retiram frente à pressão dos opo-nentes, o vazio de liderança se instala de formaintermitente e, nesse caso, muitas vezes o ani-mador externo é quem deve tomar a direção dosacontecimentos, até que a liderança se recom-ponha. De fato, esses líderes nascentes dizem :�“Não é justo se dedicar a uma causa coletiva, colocá-lana frente de nossa vida pessoal e ainda assim ser perse-guido pelos outros�”.

Para as pessoas do bairro que não partici-pam do trabalho comunitário é natural que asações coletivas também se tornem tema de con-versas: elas ouvem falar do assunto e, por suavez, fazem seus comentários, pois se trata deuma novidade interessante. Esses �“outros�”, osque não são pessoalmente engajados, podem ter

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reações positivas ou negativas, que também têmconseqüências sobre o trabalho comunitário. Sea reação é positiva, eles admiram uma tal audá-cia e torcem pelo seu sucesso, se colocando àdisposição dos engajados para ajudar em peque-nas coisas. Essa atitude favorece um bom ambi-ente e faz crescer a disposição do grupo que estáem ação. Na atitude negativa, os habitantes fa-lam malevolamente uns dos outros, mesmo dosque não conhecem, dizendo que essas pessoassão �“bestas�”, que perdem seu tempo, que issonão irá funcionar, que existem intenções escu-sas por trás, etc. São os boatos dos quais fala-mos anteriormente. A atitude negativa pode ser,mais uma vez, explicada pela inveja, com osmesmos fundamentos, mas é também tributá-ria da estigmatização, ou seja, da desconfiançada capacidade do grupo de ultrapassar sozinhosuas dificuldades. Para esses, crer que perderamlogo toda a batalha é uma forma de evitar qual-quer decepção e desconfiam ou zombam dosque não têm a mesma atitude.

A inexperiência em ações coletivas

A inexperiência da ação coletiva prolonga-da, consolidada em uma prática cotidiana, é as-sim um dado de base do quadro antropológicoda experiência, que discutiremos em seguida.Isso conduz, como veremos, a uma busca de lí-deres fortes, que �“salvem�” as pessoas das suasmisérias cotidianas. As origens dessa falta deorganização coletiva e de participação são varia-das. Se, de um lado, existe a tradição brasileiradas relações de dependência e de tutela entre�“poderosos�” e �“fracos�”, outros aspectos contri-

buem igualmente. Muitas vezes, quando as pos-sibilidades de participação se apresentam, ainteriorização da estigmatização impede o indi-víduo de se disponibilizar, bem como são em-pecilhos o desconhecimento dos rituais demo-cráticos, as manipulações de todo tipo e a faltade conhecimento dos problemas internos derelações humanas em um processo coletivo.

A ação coletiva contínua está fora da vivênciados habitantes do bairro e não tem nada a vercom os hábitos das pessoas, embora elas tenhamexperiências pontuais de ação conjunta. Essainexperiência da continuidade das ações, que foipercebida desde o começo, era um ponto de re-ferência importante na experiência-piloto, quetentava justamente preencher essa falta. As ati-vidades pedagógicas que foram desenvolvidasconstituíram uma primeira etapa que devia serseguida nas ações coletivas. Para as primeirasdessas ações (a eleição do nome do bairro e aorganização da associação), mais simples e me-nos duradouras, os problemas identificados nãose colocaram de maneira significativa. Entretan-to, para a organização da escola e da creche, ainexperiência e as disputas entre os participan-tes foram fatores que, às vezes, impediam oprocesso de avançar.

À inexperiência das ações coletivas alia-se apassividade e, se não há uma intervenção exter-na, o ciclo vicioso pode facilmente se instaurar.É aí que deve entrar, segundo Gramsci, o inte-lectual orgânico ou o pesquisador engajado dapesquisa-ação, ou, ainda, o coordenador dos cír-culos de debate freirianos. Como visto também,a passividade deve-se à dependência histórica daspopulações pobres relativamente aos poderespúblicos e às classes ricas. As pessoas são habi-

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tuadas a esperar as ações sempre tardias dos po-deres públicos ou o socorro pessoal da parte dosmembros das classes ricas com quem mantêmrelações mais estreitas. Assim, na maior partedos casos, as pessoas sofrem em silêncio as suasnecessidades e, quando esses serviços são final-mente implantados, adaptam-se em seguida aoseu modelo. O sofrimento mudo e a resignaçãoao modelo existente são os desafios da atitudedependente.

A proposição de uma ação coletiva contí-nua põe nas pessoas um desafio inteiramentenovo: é necessário pensar e agir globalmente,ser ativo, ter iniciativa, espírito de negociação,perseverança, etc. Para organizar uma crechecoletiva, por exemplo, será necessário encon-trar um lugar para o seu funcionamento,mobiliá-lo, decidir o que fazer com as criançasao longo do dia, encontrar meios para cuidardelas e as alimentar, e se colocar continuamen-te de acordo com as outras mães sobre a manei-ra de gerir. Isso já é uma proeza, mesmo para aspessoas mais ativas e experimentadas em inicia-tivas coletivas �– para um grupo de mães pobrese inexperientes significa uma mudança de men-talidade e de prática que se dá com dificuldade.

É normal, portanto, que no começo do tra-balho comunitário as pessoas ajam de maneiradependente, como se a responsabilidade para oseu sucesso estivesse em outro lugar: isso estáem seus hábitos. Eles encontram rapidamentesubstitutos da �“autoridade externa�”, que vãotudo resolver para eles: seja o interventor �– estamoça �“branca�” presente na reunião �– seja mes-mo uma habitante mais ativa �– �“aquela que semete em tudo�”, como alguns falavam de Ada,um outro personagem importante do bairro. Os

habitantes não se engajam inteiramente no êxitode uma ação comunitária, enquanto não tiveremaprendido o seu penoso senso de responsabili-dade. É necessário um longo trabalho pedagógi-co para fazê-los compreender sua responsabili-dade implícita, como participantes de uma taliniciativa.

Na prática, as pessoas não se sentem respon-sáveis pelo significado de suas falas e de seus atosnas reuniões ou nos mutirões, por exemplo. Elastomam parte nas ações coletivas, sempre conti-nuando a agir como anteriormente �– repetem asexperiências cotidianas, tudo se passa como umprocesso de vizinhança. Observa-se que algunsproblemas pessoais podem se deslocar e ganharimportância nas atividades coletivas. Por exem-plo, as brigas entre as mães de família com rela-ção aos seus filhos (quando os métodos de edu-cação de uma são criticados pela outra). Se essasdesavenças não têm conseqüências para a conti-nuidade de suas relações de vizinhas, isso mudaquando o processo é coletivo. As disputas pesso-ais sobre a educação dos filhos têm peso signifi-cativo quando está em jogo a organização de umacreche comunitária. Isso pode semear desconfi-anças entre as mães, acarretar o afastamento dealgumas e atrasar o trabalho iniciado em conjun-to. Foi o que vi em Vila Verde. Quando as pesso-as começam a perceber que as suas ações podemacarretar retrocessos no trabalho coletivo, elasaprendem a se controlar. Esse processo de apren-dizagem é longo para a maioria e, às vezes, im-possível para alguns. Face a estes últimos, o gru-po deve se impor e exigir seu afastamento; issotambém não é simples, pois o conflito aberto émuito penoso de administrar. Aqui, mais umavez, trata-se de um aprendizado.

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O desenrolarda experiência-piloto

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A experiência se desenrolou em duas grandesetapas: �“Atividades pedagógicas�” e �“Ações coleti-vas�”. As atividades pedagógicas foram reuniõesfeitas por iniciativa do animador externo e da equi-pe de três estagiários que o acompanhava nessemomento e foram concebidas e organizadas sem aparticipação dos habitantes. Elas tinham comoobjetivo iniciar as pessoas nas palavras e lógicasdo urbanismo, assim como nos rituais da demo-cracia direta. As atividades pedagógicas deviamtambém permitir aos participantes experimenta-rem o fato de ser parte integrante de um coletivomaior, o bairro. Assim, ao processo natural de vi-zinhança dos bairros populares �– compartilharpreocupações comuns ao longo do tempo �– ou-tras situações de encontro foram acrescentadas.As atividades pedagógicas deveriam ainda inspirarnos habitantes a vontade de agir coletivamente,sugerir sua organização e permitir que, juntos,dessem os primeiros passos nesse sentido.

A partir desse ponto, passou-se às ações co-letivas, que se basearam nas iniciativas dos habi-tantes, impulsionadas por nós, visando trazermelhorias concretas em suas condições de vida.Assim, era necessário não só continuar a motivaras pessoas para que trabalhassem juntas, mas con-tinuar a encontrar objetivos mobilizadores e lí-deres para impulsionar e organizar as ações. Con-vém relembrar que o objetivo da experiência-pi-loto era a aprendizagem de cidadania, no sentidode preparar as pessoas para a participação e, a se-guir, para um engajamento comunitário autôno-mo e continuado. Assim, se as ações coletivas so-brevivessem à nossa passagem no bairro elas po-deriam ser chamadas de �“trabalho comunitário�”.Alcançar esse engajamento e essa independênciasignificaria que os habitantes teriam passado porum processo pessoal e coletivo de conscientizaçãoe superação das condições adversas à participação,o que era nosso objetivo.

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I - As atividades pedagógicas

As quatro atividades desenvolvidas forammuito diversificadas e complementares ao �“exer-cício de autonomia�” que era entendido comonecessário. Nessas atividades buscava-se, de iní-cio, estabelecer um contato entre os habitantes,mas um contato diferente daqueles de vizinhan-ça, pois deveria permitir o relacionamento daspessoas na escala do bairro. Seu objetivo era fa-zer o habitante sair do seu quadro imediato �–sua vida pessoal e familiar, seus vizinhos, suarua �– para reencontrar o bairro e os outros, osvizinhos desconhecidos. Essas primeiras ativi-dades de intervenção foram importantes tam-bém para continuar a apresentação da equipe deanimadores aos habitantes, o que havia come-çado com a aplicação dos questionários.

As primeiras atividades pedagógicas tinhamassim, como assunto, o bairro, num aspecto maislúdico e cognitivo que reivindicativo. As sessõeseram sempre uma experiência de ação; de iníciouma ação mais física �– modelar e desenhar �– e,em seguida, mais intelectual: discutir um objeti-vo e votar. A intenção era passar da percepçãoviva das situações ao pensamento abstrato.

O tema �“o bairro�” foi assunto majoritáriode todas as atividades, mas decidiu-se não co-meçar por discussões dos �“problemas do bair-ro�”, pois esse tipo de discussão atrai prioritaria-mente pessoas que já têm alguma experiênciacoletiva. O objetivo era atrair todos os habitan-tes, mais pela curiosidade do que por um inte-

resse objetivo, pois não era interessante limitaro alcance do trabalho a uma pequena parte dapopulação. As atividades estavam abertas a to-dos.

Teve-se também um cuidado especial emnão reunir as pessoas para que elas se queixas-sem de suas dificuldades, com o sentimento deimpotência que as acompanha por causa de suafalta de confiança como grupo. O objetivo detodas as atividades era fazer o grupo vivenciarexperiências agradáveis e bem-sucedidas, que asincentivassem à ação conjunta e à confiança re-cíproca. A cada participante particularmente, asatividades deveriam oferecer a possibilidade deum reforço da autoconfiança, pela resposta po-sitiva aos desafios propostos. Esses objetivoseram imperativos para superar os efeitos daestigmatização que sofrem os pobres e que,como vimos, eles interiorizam pessoalmente ecomo grupo.

As atividades seguiam uma hierarquia queia da mais simples à mais complexa e da maislúdica à mais engajada. Esse procedimento res-peita princípios simples da pedagogia, de fazerprogredir o desafio cognitivo mantendo o pra-zer de aprender e de ser ativo (FREIRE, 1985).Em todas as reuniões, contudo, objetivou-secompreender questões globais, sem partir dosproblemas pessoais para chegar aos coletivos,pois essa passagem é extremamente difícil.Como as pessoas normalmente não possuemmeios de fazer repercutir suas queixas fora desua família, amigos e vizinhos, o trabalho teriasido muito mais longo, se as reuniões fosseminiciadas pelo relato dos problemas de cada um.

Essa questão deve ser discutida, porque atécnica da Pedagogia do Oprimido nos reco-

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Confecção da maquete do Pão de Açúcar do Rio de Janeiro.

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menda partir do vivencial �– como o que as pes-soas mais dominam é o cotidiano, elas tendem afalar torrencialmente disso e terminaria por sernecessário interrompê-las. Era mais interessan-te que as discussões se desenrolassem natural-mente, sem reprimendas, que são nocivas àaprendizagem e ao reforço da autoconfiança. Dessaforma, partíamos sempre diretamente de ques-tões gerais, do bairro e do coletivo dos habitantes,mas tendo o cuidado de escutar com atenção orelato pessoal de cada um, que vinha a exemplificara questão geral em pauta, desenrolando-se a dis-cussão com naturalidade e sem conflitos.

As ações propostas nas seções deveriam tersempre um aspecto de novidade, de jogo, mas seprestando, também, à aprendizagem e à experi-ência de autonomia. Ao mesmo tempo, estáva-mos atentos para que o aspecto �“novidade�” nãofosse intimidador para as pessoas, pois, tal como

a curiosidade, o medo e a timidez perante o des-conhecido são naturais. Assim, em todas as ativi-dades sempre começamos dando um exemploque servia de ponto de referência aos que nãoqueriam se aventurar muito. Esse problema tam-bém estava presente do ponto de vista do segui-mento progressivo das atividades pedagógicas �–as atividades eram abertas a todos e as pessoasvinham quando queriam, não se verificando as-sim continuidade na presença de cada um. Dessaforma, a cada nova atividade era preciso começarpelos pontos de referência para que os ausentesna sessão anterior pudessem acompanhar o quese fazia.

Depois das atividades pedagógicas, que a se-guir serão apresentadas com detalhes, tornou-sepossível empreender ações coletivas comunitá-rias, que estavam previstas desde o começo, paralhes dar continuidade.

Atividade I:a confecção damaquete do bairro

Depois de ter convida-do cerca de 80 famílias, en-tregando convites de portaem porta, a reunião foi rea-lizada em um bar na entra-da do bairro, em um localde passagem constante dapopulação. No salão, deaproximadamente 40m2,foram colocadas cadeirasem círculos e, nas paredes,

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fotos das pessoas do bairro e artigos da imprensasobre a história recente da construção do bairro.As pessoas entravam um pouco intimidadas, olha-vam as fotos e os artigos, reconheciam aquelesque apareciam nas fotografias e o cenário, e, aseguir, se sentavam menos constrangidas.

O objetivo da primeira reunião foi lhes fa-zer descobrir alguns dos instrumentos de tra-balho dos urbanistas �– a maquete e o mapa to-pográfico do bairro �– para poder, através destes,discutir os problemas da população. A maqueteé a representação urbanística mais simples: umamaquete é um modelo reduzido da realidade.Trata-se de uma abstração de fácil identificação,pois representa o real com as mesmas três di-mensões existentes na realidade. Os habitantesnão tiveram dificuldade para compreender essaabstração, conhecendo bem o modelo reduzidodo qual as bonecas e os carros em miniatura sãoexemplos muito comuns.

Para levar as pessoas a tomar a palavra na reu-nião desde o início, foi-lhes perguntado quais

eram os instrumentos detrabalho das profissões co-muns no bairro, tais comoos do pedreiro, da cozi-nheira, do agricultor. Aspessoas respondiam sor-rindo, como se fosse en-graçado falar dos seus ob-jetos de trabalho �– facas,colheres de pedreiro e pás,por exemplo �– em umareunião pública. Eles co-meçavam assim a ultrapas-sar sua timidez.

Como introdução àatividade pedagógica em torno da maquete dobairro, a equipe de animação mostrou fotos doPão de Açúcar (no Rio de Janeiro) e, em segui-da, o mapa topográfico desse local. Essa ima-gem foi escolhida porque é bem conhecida detodos e por ser muito expressiva da topografia,que é o que se queria deixar em evidência. Maistarde, um artista plástico, membro da equipe,fez uma maquete em argila do monumento na-tural do Rio.

Após a confecção da maquete, que as pesso-as acompanharam atentamente, foram coloca-dos cordões onde estariam as curvas de nívelimaginárias da elevação, representando, em es-cala, o morro do Pão de Açúcar. Em seguida, foimostrado o mapa topográfico daquele lugar e aligação desse com a maquete e as curvas, sem-pre de um modo �“freiriano�”, ou seja, pedindo àspessoas que exprimissem o que elas compreen-diam daquilo que estavam vendo. Por exemplo,os presentes foram convidados a olhar de cimaa maquete, com seus cordões/curvas de nível,

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Os participantes preparam uma maquete do bairro em argila.

colocada no chão, para compará-la com o mapatopográfico, que estava ao lado. Vendo esse mapae essa maquete, os habitantes puderam compre-ender a lógica do mapa topográfico.

Depois dessa primeira apresentação, as pes-soas foram convidadas a fazer uma maquete emargila do próprio bairro. Para lhes dar referências,foram mostradas fotos aéreas e o mapa do local,estimulando sua memória. Houve hesitações, mas,finalmente, uma parte dos habitantes se organizouem quatro grupos, que receberam argila para tra-balhar, diante do olhar interessado dos demais. Oartista plástico citado iniciou também umamaquete para orientar as pessoas no começo; tra-

tava-se de uma representação simplificada da to-pografia, com as ruas e a marcação de alguns ele-mentos-chave, conhecidos de todos.

Foram produzidas quatro maquetes (duas doPão de Açúcar e duas do bairro), em quatro gru-pos diferentes. A atividade durou cerca de 1h40.Durante todo esse tempo as pessoas entravam esaíam da sala e muitas crianças estavam presen-tes. Essas idas e vindas e uma certa confusão fo-ram aceitas naturalmente pela equipe de anima-dores, que tentava se adaptar tranqüilamente asituação. Uma média de 20 pessoas estiverampresentes e cerca de 40 estavam no salão no mo-mento de maior afluência.

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As intenções que guiaram odesenrolar da atividade

A idéia de começar as atividades com a con-fecção de uma maquete do bairro em argila, apartir do exemplo do Pão de Açúcar, tinha comoobjetivo satisfazer várias condições necessáriasao trabalho pedagógico em vista. Essas condi-ções foram referências também para as outrasatividades pedagógicas.

Deixar as pessoas à vontade

As reuniões são sempre acontecimentos nosquais apenas os mais habituados a esse tipo desituação se sentem à vontade. Além do mais,nesse caso, a timidez é ainda maior para comesses estranhos que chegam de carro, que sa-bem �“falar bem�”, que tomaram a iniciativa dereuni-los. Eles pertencem obrigatoriamente aomundo �“dos brancos, dos ricos�”, como se dizno bairro. Assim, era preciso estabelecer formasde contato desde o primeiro momento, dissi-pando a timidez dos presentes. O objetivo eradeixar as pessoas à vontade.

É possível dissipar a timidez quando se levaas pessoas a agir diante de outros sem o senti-mento de ser julgado, em um clima de afinida-de. Foi por isso que foram colocadas fotos nasparedes, que as pessoas foram chamadas a falarde coisas conhecidas �– seus instrumentos de tra-balho �– e que foi escolhido o �“jogo�” da maquetedo Pão de Açúcar e, em seguida, feita a do bairro.O jogo cria uma relação sem disputa viva, umambiente de cumplicidade. A modelagem é umaatividade que favorece também a descontração,

mas a ambientação do jogo é determinante: setivesse sido feito um �“concurso de maquete�” sé-rio, o objetivo de vencer a timidez �– e assimobter uma grande participação e comunhão deinteresses entre os participantes �– não seria atin-gido.

Fazer dos habitantes os sujeitos daexperiência desde a primeiraatividade

A meta da atividade pedagógica era levar aspessoas a participar ativamente da experiênciadesde o princípio: com a confecção da maquete,seria possível obter a contribuição dos que nãotinham coragem de falar. As fotos das pessoassobre as paredes eram também uma forma designificar que eram elas os protagonistas da ex-periência. Não era interessante fazer uma reu-nião somente �“explicativa�”. Ficar à escuta podeprovocar uma admiração excessiva pelo que falae algumas vezes reforça no ouvinte a interiori-zação do estigma: ele tem a impressão de sermenos capaz do que os que têm voz.

Para fazer dos habitantes os protagonistasda atividade lhes foi explicado que eles conhe-ciam o bairro melhor do que os animadores dareunião, pois aí viviam. Eles próprios é queiriam fazer a modelagem da maquete e as refe-rências cotidianas de cada um sobre a topogra-fia do bairro eram importantes para o sucessodo trabalho coletivo. Realizar uma maquete emargila não é uma tarefa fácil, mas não é impossí-vel mesmo para pessoas não-habituadas, sobre-tudo se não nos preocupamos muito com a per-feição dos resultados, pois se trata de um jogo.

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O desafio era então encontrar o meio termo en-tre certa busca de precisão na tarefa e o prazer dojogo, para não haver obstáculo à aprendizagem.

Chamar a atenção das pessoas para obairro como um todo

Era importante começar o trabalho por umavisão global do bairro, pois a apreensão do con-junto não é um fato comum. Normalmente aspessoas vêem do seu bairro apenas os caminhosque percorrem: algumas ruas, passeios. Essapercepção é obtida a partir de um ponto de vistade cerca de 1,65m de altura e, sob o ângulo davisão humana, de 111 graus, que é muito limi-tado. A maquete dá àqueles que a constroemum ponto de vista totalmente novo: é como seeles fossem pássaros. Ver o bairro do alto per-mite ver os caminhos dos outros e, ainda, dis-tanciar-se da realidade cotidiana e aproximar-seduma visão de coletivo. Como não é simplessobrevoar o bairro, a maquete permite uma boavista de conjunto.

Trabalhar coletivamente

As maquetes deviam ser feitas conjuntamen-te, e isso significa que as regras que regem ostrabalhos coletivos deveriam ser seguidas. Essasregras, que se impuseram aos poucos, à medidaque se desenrolava a tarefa coletiva, foram: 1) aclareza do objetivo a alcançar em conjunto; 2) aharmonia dos gestos, que significa o respeito pelotrabalho dos outros; 3) a divisão de tarefas, de

acordo com a competência de cada um; 4) o re-conhecimento de líderes. A seguir é explicadocomo cada uma delas foi posta em prática.

1) No que concerne à clareza dos objetivos,é o animador da atividade que deve se fazer com-preender. Os participantes também devem, evi-dentemente, fazer esforços, e é a partir daqui queas diferenças entre eles �– líderes ou simples par-ceiros �– começam a se estabelecer.

2) O respeito ao trabalho de cada um e aharmonização dos gestos decorre do fato de quecada participante é portador de informação, mes-mo modesta, sobre o bairro. Assim, se alguém selembra que uma rua cruza outra em seu caminhocotidiano, pode enriquecer sua maquete de de-talhes, sulcando o barro para indicar a rua emquestão. Como esse trabalho é importante paracumprir a tarefa coletiva, ele é respeitado pelosoutros, que podem iniciar assim um revezamentoharmonioso.

3) Para a divisão de tarefas, é preciso conhe-cer a habilidade de cada um dos participantes paralhes solicitar uma justa contribuição. Ou as pes-soas se conheciam de antes e anunciavam os talen-tos uns dos outros, ou cada um informava sua ha-bilidade própria, ou o reconhecimento se davagradativamente com o trabalho.

4) A liderança se estabelece a partir da audá-cia dos que começam o trabalho ou que ousamdar as primeiras referências aos outros. As pes-soas dão a vantagem da iniciativa aos que sabem oque fazer diante do desconhecido.

As regras para o sucesso de um trabalhofeito em grupo se impõem às vezes de formaconflituosa. As discussões para resolver os pro-blemas e os acordos para superar as controvér-

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sias foram acontecimentos enriquecedores paraos participantes. Desse modo, a dinâmica dasações coletivas começava a ser dominada.

Passar uma imagem agradável dotrabalho realizado coletivamente

O sentido tátil é muito utilizado no cotidi-ano de todos, mas freqüentemente em uma fun-ção utilitária. Contrariamente aos outros senti-dos, o tato é pouco explorado para obter sim-plesmente o prazer do contato em situações co-tidianas. Ouvimos música pelo prazer de ouvir;olhamos belas coisas e belas pessoas pelo prazerde olhar; provamos os alimentos pelo prazer dogosto e não somente para nos alimentar; colo-camos perfume pelo prazer do cheiro; mas nor-malmente não tocamos as coisas pelo prazer detocar. O sentido tátil fica assim mais ou menosinexplorado e é por isso que é difícil resistir aoconvite à modelagem.

A atração que temos pela modelagem não ésomente devida à novidade: se para um adultonão é freqüente a modelagem, a ação de tocar éuma das mais antigas de nossa experiência hu-mana. É o sentido do tato que a criança utilizapara conhecer o mundo, e esse fato certamenteinflui na nossa atração pela modelagem. O pra-zer aí encontrado deve-se também ao fato deque nos permite criar, modelar segundo a nossavontade, o que também não é uma atividadecorriqueira.

O resultado dessa primeira atividade foi umcontato das pessoas entre si como parte de umcoletivo. Sendo realizado em um quadro lúdico,esse contato propiciou boa troca entre vizinhos

e conhecidos, mas também abriu portas para ou-tros contatos. Pode-se dizer que a maioria daspessoas que estiveram presentes à atividade pe-dagógica viveu uma pequena experiência bem-sucedida de participação e começou a lançar �“umolhar de conjunto�” sobre o bairro.

Atividade II:A localização do lote de cada um nagrande planta do bairro

A atividade II seguiu os mesmos passos quea primeira e aconteceu quinze dias depois. A salade reunião foi a mesma, com as mesmas fotosutilizadas anteriormente nas paredes, às quaisforam juntadas outras, mais recentes. A ativida-de teve como inspiração uma maquete do bair-ro, feita de argila, papel, folhas e cordões repre-sentando as curvas de nível do terreno. Essamaquete, feita pela equipe de animadores, esta-va acompanhada de um grande mapa do bairro(escala 1/500), sobre a qual os habitantes deve-riam trabalhar. Pretendia-se que as pessoas quehaviam participado da Atividade I dessem maisum passo para a abstração, uma vez que o maparepresenta o bairro apenas em duas dimensões.Para passar as referências para os novatos, foirepetido o conteúdo da sessão anterior, pois acompreensão do mapa se dava a partir de umaexplicação sobre a maquete.

Essa atividade não foi uma reunião, como aanterior e outras que se seguiram, mas uma ses-são com atendimento individualizado: os mem-bros da equipe trabalhavam com cada um doshabitantes que chegavam ao bar fazendo-os ver

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Os habitantes marcam a localização dos seuslotes na planta do bairro.

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a maquete e explicandocom palavras simples alógica das curvas de nívele das representações emtrês dimensões. Em se-guida, quando as pessoascompreendiam a lógicada maquete, eram levadaspelos animadores para vero mapa, que explicavamse tratar da mesma idéia,mas em uma representação em duas dimensões,ou seja, achatada. Cada morador deveria, ao fimda atividade, mostrar seu lote no mapa. O mapaera suficientemente grande (pequena escala) paraque se pudesse simular, com uma caneta ou como dedo, o circular de uma pessoa pelo que seri-am as ruas do bairro, e explicar-se assim a lógicada vista aérea.

A partir do discurso dos habitantes sobre ageografia do bairro, os animadores identificavamjunto com eles os pontos de referência no mapa.Para ajudar os que tinham maior dificuldade, oanimador tentava localizar a casa de seus vizi-nhos, o que se mostrou ser a referência mais efi-

caz. Durante toda a ses-são contou-se com a aju-da de pessoas mais expe-rimentadas com o uso demapas e plantas, sobretu-do trabalhadores da cons-trução civil, que ajuda-vam a explicar a lógicadessa forma de represen-tação aos demais.

Ao fim das demons-trações �– sempre utilizando o método interativo�– todos os presentes encontraram o seu lote, oque significava que haviam compreendido a ló-gica da cartografia. Uma vez os lotes encontra-dos, os participantes os coloriam e assinavam oseu nome para tornar a �“apropriação�” de sua des-coberta ainda mais evidente. Alguns chegaram aperguntar se essa assinatura significava algum tipode documento de propriedade dos terrenos! Ape-sar da completa falta de conforto (como na ativi-dade I, as pessoas tiveram que trazer suas cadei-ras) tudo se passou muito bem: foram coloridosmais de 50 lotes no mapa, numa época em quehavia aproximadamente 200 famílias no bairro.

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As intenções que guiaram odesenrolar da atividade

Aqui foram buscados os mesmos objetivosda sessão anterior: deixar as pessoas à vontade,fazer delas os sujeitos da atividade, chamar aatenção para a idéia de conjunto do bairro e daruma boa imagem do nosso trabalho. As mudan-ças introduzidas, relativamente à primeira ses-são educativa, foram a abordagem individuali-zada e um aumento no grau de abstração. A su-peração dos efeitos da estigmatização �– um dosobjetivos de longo prazo das atividades pedagó-gicas �– começou então a se fazer sentir: para cadaum dos participantes, o ato de se encontrar nomapa, através de seu lote, foi visto como umafaçanha. Isso renovava o sentimento de ser umprotagonista importante das atividades (ou pro-vocava esse sentimento, se a pessoa não tivessecomparecido à primeira atividade).

Em um trabalho pedagógico, é indispensá-vel aumentar gradativamente a dificuldade dasatividades, o que permite às pessoas que com-parecem a uma primeira sessão o sentimentode que aprendem coisas novas. Nesse caso, eratambém importante retomar noções já difun-didas na atividade anterior (a maquete) para nãoimpedir o engajamento dos que não vieram daprimeira vez. É ainda interessante poder ter doistipos de contato, um com o conjunto de pre-sentes e outro, mais personalizado. Para os ani-madores externos era importante conhecer aspessoas, o que foi viabilizado pela abordagemindividual, que oportunizou relações mais pró-ximas. Para as pessoas é importante se sentiremacompanhadas atentamente, pessoalmente, atéa realização da tarefa proposta.

A atividade se mostrou útil também �– e issonão estava previsto �– para revelar a habilidadeparticular dos trabalhadores da construção ci-vil, que tinham se destacado menos na primeiraatividade. A distinção de alguns indivíduos den-tre outros é o primeiro passo para a diferencia-ção dos líderes que, no caso, foi se desenvol-vendo em seguida e de modo muito lento. Essadiferenciação não é definitiva, pois se viram po-tenciais líderes se distinguirem e atuarem comolideranças num primeiro momento, e se afasta-rem, no decorrer do processo, naturalmente.

* * *

Outras atividades poderiam ser realizadasno sentido das duas primeiras, com variaçõesde material, de escala, mas sempre voltadas paraa aprendizagem da representação do bairro. To-davia, as atividades não eram um fim em simesmas: representar a realidade significa ape-nas um exercício para sair de si mesmo, dopequeno mundo cotidiano e concreto de cadaum. Julgou-se que essa etapa estava completa-da, mas que a experiência coletiva tinha sidorestrita, pois as atividades iniciadas haviam le-vado os participantes a uma espécie de comu-nhão, sem conflito.

A partir desse ponto, foi decidido que de-veriam ser feitas mudanças, tendo-se em vista aaprendizagem e o exercício das discussões cole-tivas, do conflito de idéias e de interesses. As-sim, as novas atividades foram orientadas paraum maior engajamento nos problemas reais,evitando-se, entretanto, ficar na simples consta-tação desses e no sentimento de impotência pararesolvê-los. Com essa mudança no caráter dasatividades pedagógicas, a intenção continuava a

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Apresentação dos resultados do questionário aos habitantes.

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ser a de reforçar a confiança das pessoas em simesmas, fazendo-as viver a experiência de se-rem importantes, responsáveis por um trabalho,capazes de estar à altura dos desafios encontra-dos. As atividades seguintes tiveram como temaa atualidade do bairro.

Atividade III:A discussão das prioridades deintervenção da Prefeitura

As discussões da Atividade III giraram emtorno das prioridades estabelecidas pelos habi-tantes, no questionário, para a intervenção dos

poderes públicos no bairro. Os resultados fo-ram apresentados e a discussão incidiu napertinência dos resultados para cada um doshabitantes presentes. Tratava-se de evidenciar adiferença entre as opiniões pessoais e a opiniãoda maioria. Havia cerca de 40 pessoas na sala, equase todas as que, anteriormente, tinham tidoexperiências pessoais como líderes, estavam pre-sentes. Para dar um aspecto mais concreto àsdiscussões, um funcionário da representação daPrefeitura no bairro foi convidado para ouviros habitantes e falar das propostas do PoderPúblico para aquela comunidade.

Para começar, perguntou-se às pessoas pre-sentes quem dentre elas tinha respondido oquestionário; de fato, não havia muitas, o que

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mostra que a intervenção tinha um público dife-rente a cada momento. A pergunta do questio-nário que pedia uma hierarquia das prioridadesdo bairro foi relembrada e explicou-se o signifi-cado das palavras �“hierarquia�” e �“prioridade�”,dando-se exemplos tirados do cotidiano. Em se-guida, foram apresentados os resultados em umgráfico, que se revelou excessivamente compli-cado e, por isso, foi traduzido em palavras sim-ples. Ao serem perguntados sobre os resultadosdos questionários, os habitantes se manifestaramsobre cada uma das prioridades estabelecidas, emgeral aprovando-as. Foi sugerido então aos fun-cionários presentes que essa lista de prioridadesfosse levada em consideração nas decisões da Pre-feitura acerca do bairro.

Perto do fim da atividade, a discussão já abor-dava questões práticas. Como dar continuidadeàs discussões fazendo chegar ao prefeito as prio-ridades dos habitantes? As pessoas falavam da ne-cessidade de ter um líder do bairro, para �“fazer ascoisas andarem�”, para ser seu porta-voz, sendo�“respeitado por todos�”. Nesse momento pere-ceu evidente que elas tinham uma visão precisada iniciativa a tomar: escolher representantes.Da mesma maneira, delineava-se a visão do tipode líder que as pessoas tinham em mente: o pro-tótipo do líder �“forte�”.

Essa atitude mostra a concepção popular dopoder como transcendência, ou seja, afastado docorpo social. O poder que se quer é um poder�“que pode resolver as coisas�” e, portanto, decerta forma, não pode ser exercido pelos seme-lhantes, seja por que se encontram na mesmacondição de impotência cotidiana ou seja por-que, pelas alianças com os �“grandes�”, poderiamnão cumprir seu papel �“salvador�” (CHAUÍ,

1986). Essa tendência a se preferir a assistênciaao invés do engajamento de cada um na resolu-ção dos problemas coletivos foi também encon-trada em Nova Iguaçu por Leïla Wolf (1993).Em seu estudo sobre os movimentos de bairro,ela fala de �“assistidos felizes�” para explicar a não-busca de autonomia e, mesmo, a submissão alideres carismáticos, se eles prestam serviços.

Os participantes diziam que seria importan-te ter uma liderança �“que saiba falar às autori-dades�”, �“que seja competente�” e �“instruída�”.Criou-se uma polêmica na sala, pois, para al-guns, esse líder deveria ser �“do bairro�”, e, paraoutros, ele deveria ser �“de fora�”, alegando estesúltimos que as pessoas do bairro não tinham ascaracterísticas necessárias. Nesses posiciona-mentos podem ser verificados traços do perfildaqueles que vivem uma situação de estigmati-zação e que introjetam o estigma, como vistona abordagem antropológica do capítulo ante-rior: a identificação com os dominantes, a auto-imagem negativa do grupo, a falta de autocon-fiança. Enquanto muitos defendiam que a lide-rança não deveria ser exercida por pessoas dobairro, havia aqueles que questionavam essaposição, o que confirma que não se pode falardos pobres como categoria homogênea. As ten-dências contraditórias encontradas nesse mo-mento do trabalho sugerem que é procedente aidéia das polaridades (as pessoas potencialmen-te engajadas ou potencialmente anômicas), an-teriormente mencionada.

No vivo debate que se seguiu, foi precisoque o animador da atividade pedagógica inter-viesse algumas vezes para pedir o respeito à falade cada um e para tentar organizar as discus-sões. Se o debate estava interessante, ele corria

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o risco de se perder, pois a discussão não tomavaum caminho concreto e desejável, que seria o deeleger um representante ou representantes dacomunidade. Coube ao animador sugerir a cria-ção de uma comissão de habitantes para continu-ar as discussões e/ou iniciar ações para resolveros problemas identificados. Diante da falta deexperiência das pessoas, o animador teve queexplicar o processo de listar o nome dos interes-sados em tornar-se representantes dos demaispara, assim, compor-se uma comissão para tra-balhar em beneficio do bairro.

Em seguida, a representante da Prefeiturafoi convidada a tomar a palavra, comunicandosua intenção de se reunir com mais freqüênciacom a população para discutir seus problemas.Sugeriu ainda a organização dos habitantes apartir de cada rua do bairro, com o objetivo deconstruir os passeios das casas, com o apoiomaterial da Prefeitura e em regime de mutirão,após o que a reunião foi encerrada e as pessoasmarcaram um novo encontro. Rute, uma habi-tante das mais engajadas, se encarregou dessaorganização com a ajuda da equipe de anima-dores. No próximo encontro deveria ser inicia-do o trabalho da comissão, em torno dos pro-blemas identificados e da sugestão da represen-tante da Prefeitura de se fazer mutirões paraconsertar os passeios. Pela inexperiência daspessoas e por sua falta de confiança no grupo,essa comissão jamais se reuniu. O mutirão tam-bém não foi realizado, o que revela as dificul-dades concretas da Prefeitura de levar adiantesuas propostas.

As intenções que guiaram odesenrolar da atividade

Os problemas do bairro deviam penetrargradativamente no conteúdo das atividades pe-dagógicas. A idéia sendo trabalhar �“com�” as pes-soas e não �“para�” as pessoas, era preciso lhes dara oportunidade de impor suas escolhas de dis-cussões e assim, pouco a pouco, foram feitasmudanças no �“protocolo�” de intervenção pre-visto. Em seguida, durante a segunda atividade,ficou claro que as pessoas queriam discutir seusproblemas concretos, apesar de sua simpatiapelas iniciativas mais lúdicas. Se as questões so-bre a atualidade do bairro não fossem coloca-das, provavelmente teria havido uma reduçãocada vez mais significativa do número de parti-cipantes nas atividades.

Com a abordagem, na atividade III, dasprioridades dos habitantes para a intervenção daPrefeitura no bairro, respeitava-se o métodofreiriano, que propõe partir sempre de assuntospertinentes à vida das pessoas. Depois de teratraído a atenção do maior número e, sobretu-do, das pessoas menos engajadas, por causa daambientação lúdica das atividades I e II, era ne-cessário passar para uma outra etapa. A mudan-ça de abordagem das atividades pedagógicas de-veria ser atraente também para os habitantesmais engajados, capazes de fazer andar a orga-nização coletiva.

Essa atividade permitiu às pessoas aprenderuma das regras mais importantes da democra-cia participativa: o respeito à voz da maioria. O

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confronto entre a opinião de conjunto dos habi-tantes �– revelada pelo questionário �– e a opiniãoindividual de cada um dos presentes erareveladora dessa regra. Se nas atividades I e IIbuscava-se um distanciamento do cotidiano nobairro, dos locais onde se passa todos os dias, ever o conjunto (a maquete, o mapa), agora era omomento de distanciar-se das reivindicaçõespuramente pessoais. A necessidade de uma cre-che comunitária, por exemplo, que foi longa-mente discutida nessa reunião, não deveria en-volver apenas os casais com filhos, mas a todos.Para agir como coletivo se impunha a necessi-dade de compreender a amplitude dos proble-mas da maioria dos habitantes.

As atividades do tipo discursivas, como essa,ensinam aos participantes as regras básicas dofuncionamento de uma discussão coletiva: a vezda fala de cada um, o respeito para com a fala dooutro, a pertinência do discurso com relação aoassunto da discussão, o tempo definido para aexpressão de cada um, a não-repetição dos dis-cursos, etc. Conforme já assinalado, esses conhe-cimentos, mais ou menos difundidos nos meiosmais favorecidos pela via da escolarização, sãodesconhecidos da maioria das pessoas pobres, oque reforça sua exclusão das iniciativas cidadãs.

As discussões dos problemas comuns a to-dos os presentes levam as pessoas, naturalmen-te, a pensar na necessidade de agir para obtermelhorias em seu quadro de vida. A sugestãode que os próprios habitantes poderiam agir �–para a organização de uma creche comunitária,por exemplo �– nasceu nessa discussão, a partirdo relato de Ada, uma das participantes. Adadefendia a idéia de que os próprios habitantes,com a ajuda de líderes saídos do seu próprio

meio, poderiam melhorar suas condições de vidae pressionar as autoridades, e dava o exemplode outros bairros que ela conhecia. Essa posi-ção foi contestada por outros, que preferiam umaajuda externa.

O papel de animador em uma sessão comoessa é mais delicado que em outras, como asanteriores. Ele deve contribuir para que as dis-cussões cheguem a iniciativas concretas, mas nãopode conduzir sozinho o processo. Se é fato queas pessoas têm pouca experiência de iniciativascoletivas e é preciso sugerir os passos a seremdados, ficou evidente, nesse caso, que a idéiamais comum era a da necessidade de um líderque os representasse diante das autoridadesmunicipais. O animador, entretanto, propôsuma iniciativa maior rumo a uma comissão, ex-plicando, com o apoio de Ada e de outros, que aorganização dos habitantes como coletivo po-dia ser mais eficaz. Mas se a comissão não atuoucomo esperado, era porque a idéia de trabalharcoletivamente ainda não estava madura para aspessoas.

Foi a partir de discussões mais concretas queos líderes começaram verdadeiramente a se des-tacar do conjunto de habitantes, pois eram osmais capazes de enxergar a longo prazo, de pro-por, de incentivar a organização popular, etc.Sintomaticamente, foi nessa reunião que Ada �–que se tornaria uma das líderes mais fortes dobairro �– e Rute �– que também desempenhouum papel importante no processo �– destacaram-se dos demais.

Também foi possível observar, nessa reu-nião, o tipo de comunicação estabelecido entreo representante da Prefeitura e os habitantes, àluz dos conceitos de Habermas, citados no pri-

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meiro capítulo. Era evidente que se tratava deuma comunicação do tipo estratégica, que maisvisava obter o acordo dos habitantes que cons-truir esse acordo passo a passo, de modo conjun-to. A ausência de esforço para manter um diálogoem que todos os interlocutores compreendes-sem bem as palavras utilizadas caracteriza tam-bém a comunicação estratégica que se verificouna reunião. Isso mostra que, mesmo quando sefala da necessidade de participação, é possívelmanter o afastamento entre técnicos e habitan-tes, tradicional nas relações autoritárias.

A gestualidade do técnico também foi ob-servada e, em seguida, revista no resultado dafilmagem que foi feita de cada reunião, poden-do-se dizer que era clara a vontade de manteruma distância física dos presentes. O exemplomais explícito do que aqui se diz foi o da atitu-de do técnico, que mantinha constantementeum classificador entre si e seu interlocutor du-rante as conversações face a face anteriores eposteriores à reunião. Com essas observaçõesnão se pretende embasar um julgamento moralsobre o fato, mas relatar o que se constatou re-lativamente ao modo pelo qual se dá a interaçãoentre dois mundos diferentes, dentro de tradi-ções já estabelecidas e aceitas. Além do mais, oshabitantes não pareciam achar o comportamentodo técnico arrogante, pelo contrário, ele era vistocom simpatia pelas pessoas.

Atividade IV:A discussão das regras do mutirãodos passeios

Essa atividade tinha como objetivo discutiras regras do mutirão que deveria ser realizadono bairro e que fora proposto pela Prefeitura,na atividade III, ficando esta responsável porfornecer os materiais para construir os passeiosdas casas e, os habitantes, por contribuir comsua força de trabalho.

Tendo havido um atraso na reunião, os fun-cionários da Prefeitura não quiseram esperar oseu início, apesar de exortados pelo seu chefepara que não se retirassem, demonstrando umaincompreensão do significado político de umareunião desse tipo. A equipe de animadores pre-sente nesse dia começou a recear o insucesso dareunião, pois já há alguns dias verificava-se oagravamento do grande problema de falta deágua no bairro: o fato é que o problema existiade longa data, mas, nesses dias, mesmo as fon-tes alternativas de água estavam exauridas.Interrogávamo-nos, nesse momento, sobre apertinência de nosso trabalho no bairro, já queas pessoas tinham coisas urgentes e essenciais aresolver sozinhas, como conseguir ter água emcasa. Todavia, apesar do contexto difícil, reali-zou-se a reunião e isso significou um alívio paraa equipe de animadores.

A discussão girou em torno dos problemasconcretos que poderiam surgir na realização domutirão com a Prefeitura. A pedido do anima-dor da reunião �– e partindo dos problemas ima-ginados pela equipe de animadores externos epelos próprios habitantes �– os presentes estabe-

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Voluntários trabalham para limpar o terreno da futura creche em mutirão.

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leceram várias regras práticas para o funcio-namento do mutirão:

I �– Seria levantado o número de pedreirosdo bairro e estes seriam distribuídos por con-junto de ruas, para orientar as obras.

II �– A quantidade de material não deveriaser a mesma para todos. Cada participante de-veria receber uma cota suficiente para o seu ter-reno, respeitando a diferença de tamanho dospasseios.

III �– No caso de um habitante não estar pre-sente no dia do mutirão, ele só teria direito aomaterial de construção correspondente ao seupasseio se tivesse uma justificativa para sua au-sência.

IV �– Se a falta do habitante não fossejustificada, ele seria condenado pela �“comuni-

dade�”, mas, apesar disso, o passeio de sua casaseria feito pelos outros, já que o trabalho eracoletivo. A condenação não foi explicitada. Su-geriu-se que esse passeio deveria ser o último aser feito.

V �– Uma comissão de três habitantes esta-beleceria os horários de trabalho de cada um.Um pedreiro ou outro habitante faria a inspe-ção (alguns queriam uma inspeção feita pelaPrefeitura, mas esta posição foi derrotada).

VI �– Se um dos vizinhos adoecesse no diado mutirão, os outros deveriam trabalhar em seulugar, e ele, quando estivesse curado, trabalha-ria em outro mutirão, ajudando as pessoas.

VII �– Os passeios das pessoas idosas e defi-cientes físicos seriam feitos pelos vizinhos, seeles não tivessem filhos aptos a trabalhar.

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VIII �– Cada final de semana seria consagra-do a uma rua.

IX �– O mutirão deveria começar pelas par-tes �“de baixo�” do bairro, e continuar, progressi-vamente, para as partes �“do alto�”, mais próxi-mas da entrada do bairro e, por isso, natural-mente privilegiadas.

X �– As bebidas alcoólicas só seriam permi-tidas no almoço coletivo do fim dos trabalhos,para comemorar o sucesso destes.

Houve unanimidade relativamente à maiorparte das decisões, mas, pela primeira vez nasatividades, houve uma verdadeira disputa paradecidir o local onde os trabalhos deveriam sercomeçados. Os defensores do início do mutirãopela parte �“alta�” do bairro e que nela habitavam,diziam que todas as obras tinham esse percur-so. Isso era verdadeiro, pois essa parte do bairroera a mais desenvolvida do ponto de vista dainfra-estrutura e do acabamento das casas. Osoutros participantes e, dentre eles, o animador,diziam que era preciso compensar a parte �“debaixo�” pelo atraso. A discussão prosseguiu, exal-tada, até o momento em que uma velha senho-ra, D. Celina, que morava na parte alta, disse:�“�– Nós devemos cuidar dos que estão em máscondições. Aqui, estamos bem, lá é uma escu-lhambação�”. Isso sensibilizou muito os presen-tes, que pararam de discutir.

A seguir, veio o momento de votar. A maio-ria das pessoas não sabia como proceder e oanimador sugeriu o gesto de levantar a mão emcaso de assentimento. A maioria dos presentesmorava na parte alta, mas depois da posição le-vantada por D. Celina e da expressão de con-cordância do animador, vários dentre eles pre-

feriam não votar. Os primeiros votos foram afavor do início do mutirão �“por baixo�”. Para nãose ter uma eleição artificial, pois parecia que aspessoas estavam votando constrangidas pelo am-biente geral, foi proposto pelo animador umaalternativa de conciliação: fazer, durante uma se-mana, o passeio �“em cima�” e, na outra, o passeio�“em baixo�”. Esta última proposta alcançou una-nimidade entre os votantes.

Para incentivar o exercício da liderança paraum ponto de vista concreto �– o papel doorganizador �– o animador pediu ajuda a um doslíderes para conduzir a votação. Ao fim da reu-nião, aconteceu uma nova polêmica, dessa vezmenos tensa: tratava-se de decidir acerca do usode bebida alcoólica durante os trabalhos. Todosse animaram com os argumentos e os exemplosdados pelos dois lados em disputa. A decisão,como visto nas regras estabelecidas para a práti-ca do mutirão, foi previdente.

Como nas outras atividades, a participaçãodos habitantes foi grande, com uma média de30 pessoas atentas. A posição de alguns líderes,continuamente presentes e que falavam e da-vam seu ponto de vista sobre cada assunto emdiscussão, consolidou suas posições na comu-nidade. As condições materiais da reunião fo-ram muito precárias: não havia luz e foi precisoterminar a reunião ao ar livre, quando o sol sepôs; também não havia cadeiras para todos, masa maioria das pessoas ficou até o fim da discus-são, mesmo em pé.

Uma nova comissão foi criada para escre-ver um documento a ser mandado para a Pre-feitura. Alguns dias mais tarde, o documento foielaborado pelos habitantes com a ajuda do pes-quisador, mas como este teve que se ausentar

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por um longo período, os habitantes não conti-nuaram a iniciativa e o documento jamais che-gou à Prefeitura. De qualquer modo, isso teriasido provavelmente inútil, uma vez que a Pre-feitura, em razão de problemas financeiros, nãomanteve o compromisso com a comunidade eo mutirão não foi feito.

As intenções que guiaramo desenrolar da atividade

No debate a respeito da regulamentação dotrabalho coletivo, era preciso discutir e votar asregras do mutirão. Para esse debate, os habitan-tes utilizaram os conhecimentos acumulados atéaqui (visão de conjunto, atenção aos interessesda maioria, regras das discussões coletivas), oque os levou facilmente ao objetivo do exercí-cio, que era a tomada de decisões.

A discussão sobre as questões concretas per-mitiu também o conflito de idéias, já que até alias atividades tinham tido caráter mais consen-sual, com discussões sempre amigáveis. Entre-tanto, no trabalho comunitário existe tambémo desacordo, e é necessário experimentá-lo. Pelaprimeira vez, nas reuniões, o debate foi anima-do, o exercício da negociação foi realizado e fo-ram organizadas votações para conhecer a von-tade da maioria. Todos esses aspectos da demo-cracia participativa, previstos no projeto de in-tervenção, foram vividos intensamente pelaspessoas presentes.

A discussão e o voto de cada regra permiti-ram legitimar o grupo como fórum de decisões,o que pode parecer simples para os que vivem avida coletiva na escola, em associações, sindica-

tos, etc., mas não o é para as pessoas que nãopossuem esse tipo de experiência. Além do mais,para aqueles que nutrem um certo desprezo pelogrupo a que pertencem, isso significa ultrapas-sar essa dificuldade e legitimar esse grupo comofonte de decisão. Para cada um dos participan-tes, o ato de respeitar uma decisão tomada con-tra seu interesse particular é uma atitude degrande maturidade e, por isso, normalmentequestionam-se os resultados. Apenas a repeti-ção desse procedimento por várias vezes pode-rá torná-lo natural.

O gesto do animador, de pedir a ajuda deum dos líderes presentes para conduzir a vota-ção, concretizou uma passagem de papéis, queé necessária nesse momento do trabalho. Noespírito do método de pedagogia da participa-ção, a experiência do animador deve ser trans-mitida às pessoas do bairro que demonstreminteresse e capacidade para absorvê-la. Para olíder que conduziu a votação, esse fato signifi-cou uma experiência prática de liderança, já queele teve necessidade de se impor diante dos ou-tros de maneira legítima, para chegar ao fim desua tarefa. Uma dificuldade a mais para seuaprendizado foi o fato de que ele era analfabetoe, assim, só os encorajamentos e a ajuda práticado animador �– que lia para ele as regras que de-viam ser votadas �– permitiram que tudo corres-se bem. Uma outra pequena vitória foi obtidadurante essa reunião: a comissão, criada paracompor o documento sugestivo/reivindicativodestinado à Prefeitura, funcionou. É certo queo animador e sua equipe deram um empurrãozi-nho, mas isso estava previsto desde o começo.

A iniciativa de discutir o mutirão dos pas-seios com a população não agradou aos funcio-

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nários da representação da Prefeitura no bairro,apesar do acordo obtido junto ao dirigente desseposto. Provavelmente, dois fatores originaramessa atitude: 1) os funcionários achavam que osanimadores tomavam o seu lugar no bairro e 2)eles tiveram medo da pressão da população jáque não tinham certeza se o mutirão seria de fatorealizado. Quando se soube que o mutirão nãoiria acontecer, começou a ficar mais clara a fragi-lidade de ação da Prefeitura, sua incapacidade dedar seguimento aos planos, e a melhor entender-se a incerteza dos funcionários sobre o seu papele suas responsabilidades.

II - As ações coletivas

A etapa das �“atividades pedagógicas�”, quedurou mais ou menos dois meses, com reuni-ões quinzenais, foi seguida da etapa das �“açõescoletivas�”. Classificaram-se aqui de �“ação cole-tiva�” aquelas realizadas conjuntamente peloshabitantes e o (s) animador (es) externo (s), vi-sando intervir na realidade do bairro e tendo porobjetivo a melhoria das condições de vida dapopulação. Diferencia-se do �“trabalho comuni-tário�”, que é uma etapa superior da pedagogiada participação �– e que veio a seguir no bairro �–pois este prescinde da animação externa e temcaráter duradouro.

Durante o período de passagem das ativi-dades pedagógicas às ações coletivas se tornouevidente que a Prefeitura não iria realmente rea-lizar as obras prometidas �– a escola, a creche, o

posto médico etc., que eram as prioridades doshabitantes. Diante da inutilidade das decisõesde urbanismo, que deveriam ser tomadas deforma participativa com ajuda de nossa equipede animadores, foi preciso modificar a experi-ência-piloto, antecipando seu ritmo. Respei-tando os dados da realidade decidimos ser osparceiros dos habitantes na condução de algu-mas melhorias do seu quadro de vida, ao invésde intermediários da Prefeitura. O objetivomantinha-se o mesmo, a aprendizagem da ci-dadania e o incentivo à ação autônoma dos ha-bitantes, mas o lado prático desse processo ini-ciava-se mais cedo e de forma diferente da pre-vista.

Observando o conjunto das ações coletivasapresentadas a seguir, é possível verificar queelas se desenvolveram no sentido de uma maiorautonomia dos habitantes envolvidos, que to-maram a direção dos acontecimentos de formagradativa, mesmo reconhecendo-se idas e vin-das nesse processo. A eleição do nome do bair-ro foi, em parte, ainda uma atividade pedagógi-ca, baseada em nossa iniciativa e orientação, masrealizada de maneira conjunta. A escola comu-nitária fez parte de uma ação bastante dirigidapelos animadores externos no que diz respeitoao planejamento do seu funcionamento, mas suaexecução prática foi plenamente autônoma. Acreche comunitária, um enorme desafio para oshabitantes, conheceu momentos diversos: suaorganização foi quase inteiramente impulsio-nada pelo animador externo; entretanto, podem-se ver, mesmo aí, momentos de autonomia doshabitantes na decisão de questões práticas im-portantes quando este estava ausente. Como ve-remos, a implantação da creche não seguiu um

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caminho linear, havendo interferência externa emmomentos em que esta parecia não ser mais ne-cessária. Entretanto, culminando o processo deaprendizagem, no final a creche funcionou deuma maneira absolutamente autônoma.

Primeira ação coletiva: a criação daassociação de moradores

No mês em que se desenrolavam as ativi-dades pedagógicas, amadureceu a idéia de agircoletivamente, impulsionada pelas lições dasatividades, mas sobretudo pelas dificuldadesconcretas do cotidiano das pessoas. Os habitan-tes mais ativos falavam da possibilidade de or-ganização de uma creche e de uma horta comu-nitária. Eles conseguiram arrancar uma promes-sa da Prefeitura de ceder uma das casas aindavazias do bairro para se instalar a creche, desdeque tivessem uma associação de habitantes re-gularizada. As pessoas estavam entusiasmadas emobilizadas, mas as dificuldades logo se apre-sentaram.

O primeiro problema foi obter as informa-ções sobre os procedimentos necessários pararegistrar uma associação, pois não se sabia emqual cartório deveria ser feito o seu registro. Erapreciso ter um contato com as pessoas do meio,o que não é simples para um habitante de umbairro popular. Em seguida, a dificuldade eraredigir uma Proposta de Regulamento, pois alinguagem do direito, muito hermética, tempouco sentido para as pessoas que não são domeio jurídico. Houve dificuldades materiais,

para encontrar uma máquina de escrever ou umcomputador, por exemplo, e para fazer as foto-cópias, o que também não é fácil em um bairropopular. Finalmente, era preciso realizar uma as-sembléia, eleger os diretores, fazer uma ata e ain-da pagar o registro, que custa quase um saláriomínimo. Sem a ajuda material e sem os conse-lhos de alguém mais experiente, é muito difícilpara moradores de bairros populares fundar umaassociação, o que os torna uma presa fácil para osoportunistas.

Essas dificuldades têm levado ao surgimentode profissionais especialistas na fundação de as-sociações de habitantes. Normalmente essesprofissionais são ligados aos gabinetes de parla-mentares �“populistas�”. Eles associam os habitan-tes aos seus dirigentes políticos, à medida que asiniciativas burocráticas e as promessas são feitas.Verificou-se, exatamente nesse bairro, um casotípico �– uma pessoa que dizia querer �“ajudar oshabitantes�”. Pude observar a ação desse homemno bairro, que me pareceu desdenhosa e arro-gante, numa atitude que é freqüente nos profis-sionais desse tipo que trabalham nos meios po-pulares. Os habitantes conhecem isso, aceitam ojogo social e tais atitudes não os machuca comose poderia pensar. Entretanto, se têm essa possi-bilidade, preferem iniciar a organização de umaassociação em um ambiente mais respeitoso, efoi isso o que aconteceu no bairro quando mecoloquei à disposição deles.

Foi durante essa atividade coletiva que co-meçou uma discussão acerca de como a experi-ência-piloto deveria continuar, já que a propos-ta inicial de funcionamento foi impossibilitadapela retirada da Prefeitura. As pessoas mais

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próximas do trabalho realizado até aí foram con-vidadas para examinar os desdobramentos possí-veis. A organização da associação impôs-se comoassunto da reunião e como continuidade lógicada intervenção. Os habitantes mais próximos seengajaram muito e pressionavam, amigavelmen-te, para que eu os ajudasse. Decidi assumir o pa-pel de animador da idéia da associação e exorteias pessoas a se engajarem ainda mais e a tomarema si a organização desta, com minha ajuda.

Os habitantes que se interessavam pelo fu-turo do bairro não conseguiam formar comis-sões para colocar em prática suas idéias. Os lí-deres potenciais tinham medo de assumir umpapel mais ativo, talvez por não se sentirem pre-parados ou por terem medo dos pedidos e re-clamações dos outros habitantes.

Durante esse período, uma das habitantes,Rute, distinguiu-se pelo seu papel na organiza-ção da discussão. Os presentes a levaram a as-sumir a presidência da associação. Assim, umadas dificuldades do trabalho comunitário �– adesignação de líderes �– estava resolvida, ao me-nos para esse grupo restrito. A designação deRute foi feita considerando-se o aproveitamen-to coletivo de sua liderança, em razão do seutempo livre, de sua disposição para servir, de suacompetência. Uma atitude madura, que contras-tava com a ignorância sobre o funcionamentoda organização comunitária (eles perguntavamo que era uma associação, quais eram os postosa ocupar, como se faz uma assembléia, etc.).

Depois dessa etapa, as pessoas entraram emacordo para uma assembléia na semana seguin-te, para legitimar a escolha de Rute e discutir oRegulamento da associação. Cada um dos pre-sentes se encarregou de convidar outras pesso-

as para a assembléia. Eu me comprometi a bus-car informações sobre os trâmites burocráticosem outras associações que conhecia. Elaboreiuma proposta de Regulamento �– obrigatóriapara o registro oficial �– tentando �“traduzir�” osartigos, para torná-los compreensíveis às pes-soas.

A idéia, nesse momento, não era fazer umagrande assembléia de habitantes, mas antes ele-ger uma bancada provisória, esperando as verda-deiras eleições em seis meses. As pessoas mal seconheciam, pois moravam juntas no bairro háapenas seis meses, às vezes até menos. Com a su-gestão da idéia da bancada provisória, visava-sedar tempo aos dirigentes para se fazer conhecer eaprender o funcionamento de uma associação.

Nossa experiência conjunta no bairro

A assembléia de fundação da associação de-veria realizar-se na sede onde funcionava a re-presentação da Prefeitura no bairro, à noite. Aquantidade de participantes surpreendeu a to-dos, sendo mais de 40 pessoas, ao invés das 20esperadas. Fomos para a rua, pois o local eramuito pequeno, e os participantes que não ti-nham levado suas cadeiras ficaram de pé. Rutee eu conduzimos a discussão do Regulamento ecada artigo proposto foi discutido com muitointeresse. Apesar de meu esforço para deixar ascoisas mais simples, alguns artigos continuarama não ser entendidos.

Essa discussão foi seguida da eleição dosmembros da associação. O ambiente era de ti-midez, pois os presentes não se conheciam bem,salvo o grupo que havia organizado a assembléia.

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Cada candidato (único, por posto) se apresenta-va, espontaneamente ou empurrado pelos com-panheiros, e deveria ser eleito pelos aplausos.Como as pessoas não o conheciam, ou pouco, aeleição era um pouco forçada. Era evidente que ainiciativa de uma assembléia era desconhecidados habitantes, e os dirigentes da reunião tenta-vam organizar mais ou menos as coisas. Outromembro do grupo, Ada, mostrava um certo co-nhecimento das iniciativas a serem completadase ajudou as pessoas a preencher os documentosde fundação.

Os membros da bancada provisória eramtodos pessoas que haviam anteriormente parti-cipado das atividades pedagógicas; Rute foi es-colhida como presidente. Os membros eramquase todos ignorantes dos atos de uma associa-ção, mas parecia estar claro para todos que sua

eleição correspondia à realização de uma obri-gação legal para se ter acesso a uma casa para acreche. O Regulamento aprovado pelos presen-tes previa eleições em seis meses, e a idéia eraque as coisas se organizariam melhor a seguir.

Na semana seguinte, uma nova reunião foirealizada para dar continuidade à regularizaçãoda associação. Durante toda a semana, a associ-ação foi o assunto das conversas no bairro. Rutefoi tratada com hostilidade por alguns habitan-tes, que eram contra a sua eleição para presi-dente. Eles a reprovavam por ser mulher e pornão ter nem a autoridade, nem os amigos im-portantes que poderiam ajudar o bairro. Elesqueriam um líder forte.

No dia previsto para o reencontro, a reu-nião começou com a presença dos membros dabancada, mas pouco a pouco foram chegando

Leitura e aprovação do estatuto da Associação de Moradores.

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outros habitantes. As pessoas contestavam a elei-ção feita e propunham o nome de Aristeu paraa presidência. Aristeu, como visto anteriormen-te, era um soldado da polícia, licenciado do seucargo, que dirigia a pequena força de segurançaque protegia o patrimônio da Prefeitura e dasempresas de construção desde o começo daconstrução do bairro. Ele era muito conhecidoe amado pelos habitantes.

A resistência ao nome de Aristeu, por partedas pessoas interessadas na construção da asso-ciação, devia-se ao fato de que ele não era umhabitante do bairro. Essas pessoas se inquieta-vam pela incerteza de sua permanência, o quepoderia comprometer a continuidade da orga-nização coletiva. É também verdade que o cará-ter de Aristeu estava em contradição com as ini-ciativas participativas realizadas, pois seu com-portamento era paternalista e centralizador, tí-pico dos políticos populistas. A atitude do ani-mador externo na assembléia era de apoiar ogrupo, já que o trabalho comunitário que se ti-nha em vista requeria líderes de caráter maismobilizador e democrático.

O clima estava muito tenso, com Aristeulevantando suspeitas sobre a honestidade e acompetência de alguns membros da bancadaprovisória. Para tentar resolver a situação, ten-tou-se convencer as pessoas a assumir um com-promisso: o diretório ficaria o mesmo e Aristeuseria o presidente; Rute ocuparia um outro lu-gar no diretório.

Era necessário garantir a legitimidade daAssembléia, que havia sido realizada uma sema-na antes, garantindo assim a manifestação doshabitantes nesse momento. O descrédito des-ses procedimentos para a organização da asso-

ciação seria uma perda também do ponto de vistapedagógico, considerando-se todo o processodesenvolvido até então. Depois de muita confu-são e de dificuldades provocadas por Aristeu �–que queria escolher �“sua diretoria�” �– o compro-misso foi aceito.

A Associação em ação

Coloquei-me à disposição da bancada elei-ta para ajudar nas iniciativas de legalização daassociação e fui, eu mesma, com Aristeu, iniciaro processo de registro no cartório. Em seguida,a associação não esteve muito ativa, talvez pelafalta de experiência ou de interesse de seu pre-sidente. Os membros da diretoria provisória daassociação se reuniram poucas vezes e essas reu-niões não foram nada produtivas, no sentido defazer uma programação do trabalho e definir asresponsabilidades de cada membro. As relaçõesentre o presidente e a bancada provisória eramruins; Aristeu criticava freqüentemente os di-retores, que ele não tinha escolhido e com osquais não estava contente. Entretanto, bem noseu estilo, conseguiu favorecer um dos dirigen-tes de que mais gostava, intercedendo junto aosfuncionários da Prefeitura para trocar a casa des-te para uma rua mais valorizada do bairro. Poroutro lado, alguns membros da associação dizi-am que Aristeu não era eficaz, que ele eracentralizador, etc... Os rumores corriam nos doissentidos pela comunidade.

Na prática, a associação não funcionou e,pouco tempo depois, Aristeu deixou o bairro pormotivos particulares. Os documentos para a le-galização da associação desapareceram por al-

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gum tempo, e ninguém falava mais no assunto, amenos que para criticar a imobilidade da associ-ação. Entretanto, com as iniciativas para criar acreche, as pessoas e eu mesma pressionamosAristeu para que ele devolvesse os documentos,o que acabou fazendo. Foi assim que, algunsmeses depois, foi criada a Associação de Mãesdo Vila Verde, que preencheu o vazio deixadopela associação dos habitantes.

Avaliação da ação coletiva

É certo que, mesmo com os contratempos,uma etapa da intervenção estava concluída: aspessoas tinham tido uma experiência concretade organização coletiva. Toda essa iniciativa decriação da associação deixou evidente a dificul-dade de criar e manter uma instituição que podeser portadora de direitos. Também ficou claroque, sem líderes experientes e interessados eminiciativas de mobilização, uma associação nãopode existir realmente. A mesma coisa pode serdita sobre uma associação �“de fachada�”. Se nãohá por trás uma pessoa que saiba jogar o jogo damanipulação, a associação só poderá se dissol-ver. Aristeu não era tão experimentado para verclaramente os benefícios que poderia obter nalógica de cooptação eleitoral, por exemplo, pra-ticada em outras associações.

Um elemento a notar nesse processo: haviano bairro uma homogeneidade de opiniões so-bre a necessidade e a eficácia da ação conjunta.Viu-se que a idéia da necessidade de mobilizaçãopopular unificada, para conseguir obter o so-corro das autoridades, é muito difundida, assimcomo a crença na potencialidade dessa mobiliza-

ção. Isso quer dizer que a etapa de persuasãodas pessoas relativamente à necessidade de umaação organizada já estava realizada, antes mes-mo do começo de nossa intervenção. Almeida(1992) percebeu essa situação nos movimentospopulares em Belo Horizonte: o grupo, quan-do se auto-refere como uma �“comunidade�”,obtém a legitimidade para se tornar interlocutorà altura de argumentar com as autoridades.

As respostas ao questionário inicial da pes-quisa, que continha perguntas sobre o engaja-mento dos habitantes em ações coletivas, mos-tram essa atitude. Por exemplo, à pergunta �“Vocêestá interessado em participar de reuniões paradiscutir os problemas do bairro?�” 92,1% dosentrevistados respondeu �“SIM�” e, 7,9%,�“NÃO�”. As respostas às questões seguintes re-forçam a primeira; assim, à questão �“Quais sãoas atitudes que cada um poderia ter para me-lhorar a vida de todos no bairro?�”, 78% respon-deram �“Todos juntos, poderíamos fazer muitascoisas no bairro�”; 14% disseram �“Ninguém podefazer nada, pois é responsabilidade das autori-dades�”; e 8% assinalaram �“Cada um deve se ocu-par de seus afazeres e deixar os outros se ocupa-rem dos deles�”. A pergunta �“Para resolver osproblemas do bairro você pensa que...�” obteve94% de marcações em �“A união faz a força�”, e6% em �“Cada um por si e Deus por todos�”.

Mesmo que essas questões sejam excessi-vamente �“fechadas�” e indutivas, vimos, em se-guida, com a apuração do questionário final, oqual continha perguntas abertas, respostas muitopróximas das citadas acima. À pergunta �“Quaisas atitudes que cada um poderia ter para me-lhorar a vida de todos?�”, 23/37 propõem inicia-tivas coletivas (união, reunir, petição, associa-

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ção, mutirão; a palavra �“união�” aparece em 8/23dessas respostas); 5/37 propõem atitudes práti-cas individuais (limpeza, ajudar os outros); tam-bém 5/37 mostram uma certa impotência, di-zendo que �“é difícil�” ou que �“não há nada a fa-zer�”, ou, ainda, que �“isso depende das autorida-des�”, ou que �“o problema é o desemprego�”. Fi-nalmente, 4/37 propõem �“cada um por si�”. Àquestão �“Na sua opinião, como é possível re-solver os problemas do bairro?�”, 35/38 respos-tas são positivas, dizendo que os habitantes de-vem se reunir, lutar, �“correr atrás�” das autorida-des, para resolver os problemas, e apenas 3/38das respostas são duvidosas ou fatalistas.

Ficou evidente que algumas pessoas que-riam chamar a atenção sobre si mesmas atravésdas afirmações de engajamento. Em todos osquestionários, as perguntas feitas podem levar aum certo tipo de resposta, mas somente se já háuma idéia comum do que se deve responder paraser �“correto�”. É isso que é surpreendente: deonde vêm essa homogeneidade e essa simpatiapela idéia da ação coletiva? De outra parte, deonde vem essa confiança na ação das autorida-des? É evidente que as pessoas crêem que é efi-caz ir buscar as autoridades (�“correr atrás�”) pararesolver os problemas do bairro.

Talvez seja possível compreender essas ati-tudes examinando-se as experiências anterioresdas pessoas, mesmo se relativas a experiênciaspontuais. Assim, verificou-se que conhecempelo menos as ações reivindicativas e que até ti-veram boas experiências, pois 41% dos entre-vistados disseram que sua experiência de lutafoi bem-sucedida e apenas 3% falaram de der-rotas (os demais não souberam responder). Erapreciso conhecer muito bem as lutas urbanas

em Salvador em cada bairro para aprofundar adiscussão desse dado. Entretanto, o que tam-bém ficou claro é que durante a experiência-piloto não podíamos ver as conseqüências des-sas idéias na prática. Mesmo tendo havido umamobilização significativa das pessoas, por exem-plo, para fundar a associação, na hora do en-contro para estabelecê-la ali não havia o mesmonúmero de pessoas que responderam estar in-teressadas. Pôde-se constatar que, mesmo se aspessoas estão preparadas �“ideologicamente�” paraagir coletivamente, a falta de experiência e deconfiança em si as impede de engajar-se.

Um outro obstáculo para a ação coletiva detipo pedagógico que estávamos propondo era queas pessoas esperavam líderes �“salvadores�”. Seusdiscursos na assembléia e, anteriormente, duranteas discussões nas atividades pedagógicas, mostra-vam claramente isso. Elas estariam prontas a agircoletivamente �– pontualmente, todavia �– assimque vissem um caminho a seguir, mostrado porum líder carismático. Em sua concepção origi-nal, não era possível construir o caminho à me-dida que se desenrolassem as ações.

Uma última pergunta foi feita para tentarcompreender o real interesse das pessoas pelaação coletiva, com relação aos seus interessespessoais: �“Se por acaso nós soubéssemos quehaveria dinheiro para construir equipamentospara o bairro e fosse necessário decidir, qual se-ria sua opinião? a) é preciso fazer primeiro umposto policial; b) é preciso fazer primeiro o postode saúde; c) é preciso fazer primeiro um termi-nal de ônibus; d) é preciso fazer primeiro umavotação para saber a opinião de todos�”.

Metade (46%) das pessoas respondeu queera preciso fazer uma votação para conhecer a

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opinião de todos, apesar da armadilha contida naquestão. Tratando-se de uma população que temnecessidade de todos esses tipos de intervençãopública, o número de pessoas que se preocupa-ram com a opinião coletiva parece alto. Entre-tanto, diante da quase unanimidade quanto ànecessidade da ação conjunta dos habitantes, ob-servada nas outras perguntas, trata-se de um nú-mero menos espetacular. Com base na experi-ência concreta vivida no bairro, pode-se dizer queeste último número reflete mais a realidade.

Segunda ação coletiva: a eleição para aescolha do nome do bairro

O nome do bairro era um problema queexistia desde o início de sua construção, váriasdenominações já tendo sido dadas ao lugar, oque ocasionou muita confusão. Para dar conti-nuidade à intervenção, foi proposta uma elei-ção com a qual se escolheria o nome do bairro.Para viabilizá-la, contou-se com os habitantesmais engajados, principalmente com aqueles quetinham tomado parte anteriormente na organi-zação da associação.

O nome oficial do bairro era �“COHAB II eIII�”, e esse nome estava impresso nos mapasurbanísticos dos técnicos da Prefeitura e dasempresas de construção. Era também o que es-tava escrito nas faturas de eletricidade das casas.O nome �“Vila Verde�” era o mais conhecido daspessoas, por causa do bairro de invasão, vizinho,onde uma placa muito rústica sinalizava a en-trada. Até os motoristas de ônibus da região co-nheciam o bairro por Vila Verde. Um outro fa-

tor da escolha do novo nome vinha dos convitespara as atividades pedagógicas, já rotineiras nobairro, onde ele também era sempre chamado deVila Verde.

Diante dessa confusão, foi proposta a possi-bilidade de eleger um nome, o que pareceu umaoportunidade pedagógica muito pertinente aoespírito da intervenção, e levada a idéia aos fun-cionários da Prefeitura, para um trabalho con-junto, que imediatamente a aceitaram. Os habi-tantes não se mostraram confiantes quanto à via-bilidade de uma eleição desse tipo, pois não écomum em Salvador que as pessoas escolham onome do seu bairro. Com o engajamento da Pre-feitura e os encorajamentos do animador exter-no, os habitantes também se engajaram e, maisuma vez, puderam superar sua falta de confiançacomo grupo.

Nossa experiência conjuntaem Vila Verde

Os funcionários da Prefeitura se ocuparamda lista de votantes e eu, das cédulas de voto.Os nomes propostos aos habitantes �– os maiscomuns �– foram escolhidos conjuntamente comeles, em uma reunião. A impressão passada pe-los habitantes que se interessavam pelo traba-lho coletivo era a de que eles estavam contribu-indo com este parceiro externo que, por sua vez,os estava ajudando para que tivessem êxito noseu próprio trabalho no bairro. A eleição foi umsucesso. Durou toda uma semana: de segunda asexta-feira à tarde, na sede da representação daPrefeitura, sob a responsabilidade dos seus fun-cionários; no sábado, sob minha responsabili-

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Votação para escolha do nome do bairro.

dade e dos habitantes, em dois postos de votação.Houve uma participação importante, pois 225pessoas votaram num universo de aproximada-mente 400 casas ocupadas.

Para a maior parte das pessoas que se envol-viam com a organização da eleição, ela foi umcurso prático de democracia, pois jamais haviamfeito isso anteriormente. Alguns habitantes maisexperimentados, principalmente Ada, Rute eJudson, dirigiam o processo juntamente comigoe os funcionários da prefeitura. Os habitantesvotaram muito seriamente, respeitando o segre-do do voto e o ritual da urna. A contagem devotos foi feita na presença de vários membros daassociação, que acabara de ser criada. Aristeu nãose envolveu com esse movimento e isso ilustrasua falta de interesse por esse tipo de mobili-zação.

O nome vencedor foi �“Conjunto Vila Ver-de�”, e sua escolha foi clara: 133 votos para Vila

Verde e 47 para Cohab. Houve protestos de pes-soas que diziam �– �“Ah, mas esse nome é o nome de umbairro de invasão, nós seremos confundidos pela políciacom marginais!�”. Apesar disso, parece que era maiscômodo para as pessoas nada mudar, pois o nomeVila Verde era o mais conhecido, além de ser omais poético. Aparentemente, os funcionáriosda Prefeitura preferiam o nome oficial; o resul-tado, entretanto, foi aceito sem problemas pelogrupo que organizou a eleição.

Avaliação da ação coletiva

A idéia de organizar uma eleição para esco-lher o nome do bairro era muito pertinente nodesenrolar da experiência, pois a assembléia defundação da associação acabava de programaruma para eleger seus dirigentes. A experiênciaseria certamente importante e instrutiva paraajudar os membros da associação a fazer a suaeleição seis meses mais tarde. Esse processo tam-bém alimentou o espírito de grupo e, atravésdele, as capacidades de cada uma das pessoasenvolvidas começaram a ser reconhecidas: aque-le que fazia bem os cartazes de divulgação, aque-les que se comunicavam bem com os habitan-tes, etc.

O problema que essa ação coletiva reveloufoi a inexperiência de muitos habitantes com ainiciativa democrática. Apesar de toda amobilização das pessoas para votar, houve algu-mas contestações ao resultado das eleições. Es-sas reclamações não diziam respeito à organiza-ção do processo; ninguém aventou, por exem-plo, a possibilidade de ilegitimidade dos votospor alguma razão ou de parcialidade da eleição.

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Tratava-se, efetivamente, da falta de respeito dealguns para com a voz da maioria, que havia vota-do contra a opinião dos que reclamavam.

A legitimidade da eleição não foi julgada emsi, mas por não se originar de uma instituiçãotradicional, como as eleições municipais. O fatode que ela envolvia apenas o bairro e que eraorganizada principalmente por habitantes, a fa-zia menos respeitável para alguns. Reconhecero esforço de um grupo para fazer uma eleiçãobem organizada e com a participação de todosrevela maturidade política e respeito pela inicia-tiva em si, diferente do simples reconhecimen-to de uma autoridade formal.

O erro do grupo foi o de não divulgar bemo resultado das eleições, como deveria. Para dei-xar o resultado incontestável era importantemostrar sua legitimidade, oriunda do númerode pessoas que se manifestaram votando, e ex-plicar melhor às pessoas o que isso significava.Apesar das contestações iniciais o nome VilaVerde continuou, e mesmo a Prefeitura e a im-prensa passaram a chamar o bairro assim daí emdiante, como até hoje.

Terceira ação coletiva:A organização da escola comunitária

Depois da organização da associação e daeleição do nome do bairro, havia um grupo depessoas dispostas a trabalhar em conjunto, mo-tivadas para agir e que queriam começar a orga-nizar a creche. Entretanto, a iniciativa para re-gistrar a associação para receber a casa da crechecontinuava parada pela falta de interesse de

Aristeu . Foi preciso propor uma nova atividadepara estimular o potencial de ação do grupo, poisas pessoas ainda não estavam inteiramente pre-paradas para tomar iniciativas. Essa ação foi a or-ganização de uma escola comunitária de alfabeti-zação de adultos.

A idéia de alfabetizar adultos era apropria-da à nossa intervenção no bairro em vários as-pectos. Primeiro, porque no bairro havia umareal necessidade disso, visto o número de anal-fabetos. Depois, porque o método de alfabeti-zação proposto era o de Paulo Freire �– a �“Peda-gogia do Oprimido�”. Poderíamos, assim, ver serposta em prática uma das idéias inspiradoras dapedagogia da participação.

De acordo com o método adotado, o temadas aulas deveria ser escolhido a partir davivência das pessoas, tendo sido sugerido o bair-ro e as condições de vida da população. A idéiaera juntar as discussões desenvolvidas pelos ha-bitantes até esse momento às atividades peda-gógicas e ações coletivas. O tema do bairro de-via dar origem às palavras estudadas a cada dia,e os alunos deveriam escolher as palavras queeles gostariam de aprender. A escolha das pala-vras fazia parte da estratégia de valorizar o co-nhecimento das pessoas, podendo-se chegar as-sim a uma alfabetização que é também liberta-dora, nas palavras de Paulo Freire.

Os funcionários da Prefeitura cederam oespaço da sua sede para o desenrolar das aulas, ànoite. Eles queriam se envolver, pedindo mate-rial à Secretaria Municipal de Educação. Mas,como sempre, as ações da Prefeitura forammuito lentas, e o grupo teve de ir buscar ajudaem outro lugar. Aristeu, por sua vez, opôs-se àorganização da escola, provavelmente porque se

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sentia incomodado diante da importância quealguns líderes passaram a ter durante a organi-zação desta. Um dos problemas criados por eleera o constante desaparecimento da chave dasede da Prefeitura no bairro (que ficava sob suaresponsabilidade, como chefe da segurança lo-cal), o que, às vezes, impedia a realização dasaulas. Entretanto, entre disputas e negociações,terminou-se por vencer as dificuldades.

Nossa experiência conjuntaem Vila Verde

A proposta de fazer uma escola comunitá-ria foi discutida com várias pessoas e a idéia foimuito bem aceita. Duas das pessoas ativas du-rante as ultimas ações coletivas, Ada e seu ir-mão, Judson, foram parceiros entusiastas dessaidéia, pois Ada é professora e Judson tinha von-tade de agir nesse campo. A escola deveria fun-cionar com voluntários do bairro, de acordo comminha sugestão. A idéia era ter um ou dois pro-fessores cada noite �– assim, não seria muito di-fícil encontrar voluntários. Ada, Judson e eu nosencarregamos de encontrá-los, bem como defazer o levantamento do número de adultos in-teressados em serem alfabetizados.

Várias reuniões foram realizadas com osfuturos professores, pessoas que tinham umgrau de escolaridade mais elevado que a médiados habitantes (aproximadamente oito anos deescola). O método de alfabetização proposto foiobjeto de alguns protestos, pois os voluntáriosnão o conheciam e isso era uma dificuldade amais diante do desafio de se tornar professor aque cada um tinha se lançado. Entretanto, o

apoio de Ada à idéia, cujas vantagens ela conhe-cia, fez a diferença, pois era a única pessoa re-almente experiente. Para contornar a dificulda-de com o método Paulo Freire, escrevi um tex-to que foi largamente discutido nas duas reu-niões semanais dos professores. A idéia das au-las começava pouco a pouco a ganhar forma.

Nas reuniões, a questão material foi cons-tantemente discutida. Era impossível para aspessoas do bairro solucionar esse problema, porcausa de sua penúria. Aqui, foi necessário que oanimador externo iniciasse seu papel de inter-mediário entre o mundo daqueles que precisa-vam de ajuda financeira e o mundo dos quepodiam e queriam ajudar a iniciativa popular. Apessoa �– à época chefe do estoque de materialde uma empresa �– indicada por amigos comuns,era engajada em trabalhos filantrópicos e se in-teressou imediatamente pela escola, ajudandoindividualmente e através do seu cargo.

Uma comissão de �“professoras�” foi entãover o provável parceiro. Em um contato anteri-or eu lhes explicara que essa reunião tinha umimportante caráter pedagógico, paralelamente aoseu caráter material �– era necessário mostrar àsinteressadas que era possível convencer outraspessoas a ajudá-las, que elas eram capazes dissoe que sua iniciativa era digna de admiração. Oanimador manteve-se como observador da reu-nião, que foi dirigida por líderes em formação:Ada e Rute. O parceiro foi muito simpático esolidário e as mães presentes ficaram exultantescom essa recepção respeitosa. Para elas, seremrecebidas de igual para igual, e mesmo de for-ma admirativa, por alguém de outra categoriasocial, significava uma experiência nova. Umadelas chegou a dizer que este dia seria �“ines-

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A escola comunitária em funcionamento.

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quecível�”. A comissão obteve tudo o que era ne-cessário (mesas, cadeiras, lápis, papel, etc.) e tam-bém se assegurou da disposição do parceiro paracontinuar ajudando a escola.

As aulas começaram no início de setembro.No primeiro dia os alunos fizeram uma lista deaproximadamente trinta palavras sobre o tema�“a vida no bairro�”. Com base nessa lista, os pro-fessores escolheram as palavras que eram apro-priadas para começar: deveriam ser simples, doponto de vista fonético, mas ter um conteúdosimbólico importante para as pessoas. As pri-meiras palavras estudadas foram �“comunidade�”,�“moradores�” e �“módulo�” (de módulo policial).

A organização dos pares de professores decada dia foi feita com dificuldade, por causa de

problemas pessoais entre as pessoas. A equipe deanimadores externos garantiu a aula de quarta-feira à noite. De acordo com o método PauloFreire, os alunos deveriam discutir com os pro-fessores sobre a palavra do dia, antes da aula; essadiscussão se mostrava mais interessante nos diasem que o par de professores era mais experiente.Os alunos logo mostraram sua preferência poralguns dos pares, sendo mais numerosa a presen-ça nos dias em que seus favoritos davam aulas.Essa situação originou inveja, rancores e a desis-tência de alguns voluntários.

Os alunos fizeram progressos rapidamen-te. Os habitantes do bairro, sobretudo os vizi-nhos da escola, eram parceiros também, poisemprestavam suas cadeiras para suprir as que

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Cena de um mutirão na creche.

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faltavam. Um carpinteiro, que havia anterior-mente acompanhado as atividades pedagógicas,presenteou a escola com um grande banco rústi-co, que ele mesmo fizera.

Avaliação da ação coletiva

As disputas entre os professores constituí-ram a maior dificuldade encontrada para o fun-cionamento da escola. No início, a inveja atin-gia particularmente Rute. Esta, sendo respon-sável pela área cultural da associação de habi-tantes, que ainda existia, tinha sido designadacomo coordenadora da escola. Pouco a pouco,

as intrigas e a inexperiência da direção acarreta-ram a desistência de Rute. Em seguida, tendo-se destacado Ada, que se mostrou a pessoa maisexperiente nas aulas (era professora diplomada),esta também foi alvo da inveja dos voluntários.

A organização da escola permitiu mostrar apotencialidade do trabalho coletivo e a capacida-de das pessoas para cumprir uma tal tarefa, mastambém mostrou que o caminho era longo, porcausa da inexperiência das pessoas. Os conflitosentre os voluntários poderiam ser resolvidos comum pouco de maturidade, mas essa não existia.Tive um papel de intermediária nos conflitos,divergências e desentendimentos, e essa media-ção permitiu, finalmente, o início das aulas.

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O contato com o parceiro da escola foi oprimeiro momento, na intervenção, em que osalunos saíram de seu mundo, do território dobairro, o que foi muito instrutivo. Quando aspessoas tomam a iniciativa de falar durante a reu-nião, isso mostra um certo grau de independên-cia do animador e demonstra que os objetivos daintervenção estão sendo alcançados.

As reuniões dos professores para programaras aulas da semana seguinte eram um termô-metro da autonomia do grupo engajado comrelação à ajuda externa, representada por mim.No início, as reuniões aconteciam somente seeu estivesse presente. Pouco a pouco as pessoasassumiram a direção da escola e, apesar das di-ficuldades das relações pessoais de alguns dosprofessores, essas reuniões se tornaram freqüen-tes. Eu as freqüentava cada vez menos.

A vitória que significou o funcionamentoda escola revolucionou todo o trabalho poste-rior. Não se falava mais de uma vontade de tra-balhar em conjunto, mas de uma experiênciaconcreta. Cada uma das pessoas envolvidas sa-bia o quanto tinha sido difícil alcançar essa vi-tória, ultrapassar sobretudo a inexperiência detodos e os conflitos interpessoais. Uma vanta-gem intrínseca da organização da escola é queo prazer de ensinar os outros a ler sensibiliza-va a todos, por se tratar de fato de uma expe-riência gratificante.

A organização da escola suscitou uma lutade poder entre Ada e Aristeu. Apesar da sua sim-plicidade material e de seus apenas dez alunos,a escola era uma conquista no bairro. Os alunosfalavam, os professores também, os habitantesde Vila Verde podiam ver seu funcionamentotodas as noites e a escola tinha seus partidários

incondicionais. A liderança de Ada se consoli-dava a cada dia e ela se tornava uma referênciano bairro. Por trás da disputa entre Ada e Aristeu,havia uma luta entre dois pontos de vista sobreo trabalho comunitário: um, tradicional,centralizador e paternalista, e outro, mobilizadore construtor de vitórias coletivas.

Quarta ação coletiva:A organização da creche comunitária

Após colocar a escola em funcionamento,nós nos debruçamos sobre a organização da cre-che, como continuidade lógica do trabalhoefetuado no bairro. O desafio era difícil, masseu sucesso seria muito útil para as famílias.Todas as iniciativas para a organização de umacreche seriam pertinentes para o processo pe-dagógico em questão.

Até esse momento, dois meses após a fun-dação da associação, ela não tinha sido registra-da; isso ameaçava o projeto da creche, por causada falta de local para seu funcionamento. Quan-do perguntávamos ao presidente da associaçãosobre os documentos necessários, ele dava res-postas evasivas e dizia às pessoas que a crechenão era prioritária. É provável que a motivaçãoda reticência de Aristeu fosse a mesma que ofez rejeitar as iniciativas relacionadas à escola:ele temia o prestígio do grupo em ação, quepoderia competir com sua autoridade, particu-larmente o prestígio de Ada.

É verdade que a organização da creche eraconsiderada por alguns como uma maneira deretomar a organização dos habitantes de outro

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modo, já que Aristeu bloqueava a ação da associ-ação. A idéia era que, com a fundação de um �“Clu-be de Mães�”, por meio do grupo da creche, seriapossível retomar legalmente as ações no bairro,esquecendo a associação �“de Aristeu�”. A descon-fiança de Aristeu era assim fundada, mas oengajamento das pessoas nesse projeto alternati-vo não era suficiente para abalar o imobilismo daassociação.

Apesar das dificuldades, a creche desperta-va o interesse de todo mundo. Desde o começodas atividades pedagógicas, realizaram-se lon-gas discussões sobre a oportunidade de criá-la.Essa idéia causava polêmica: alguns acreditavamna possibilidade de organização de maneira �“co-munitária�”, ou seja, sem a ajuda dos poderespúblicos, enquanto outros achavam isso impos-sível. O desafio lançado com a sugestão de criá-la por meio da organização comunitária era ummotor para aqueles que defendiam a primeiraalternativa. A maior parte dos professores daescola e até os alunos interessavam-se pela or-ganização da creche. O momento era particu-larmente propício a seu engajamento, pois elesestavam contentes de ver a escola funcionar ese sentiam importantes.

A creche era um empreendimento maiorque a escola, e as questões concretas em tornode sua organização afetavam interesses diversosno bairro, como o ilustra o caso da sua sede. Agrande força das autoridades do bairro (os fun-cionários da Prefeitura e Aristeu, como chefede segurança) era dispor das casas vazias dasquais eles tinham a guarda. Entretanto, eles nãoentravam em acordo quanto a quem ou a quetais casas seriam cedidas e a doação de uma de-las para a creche foi igualmente um ponto de

discórdia entre eles. Depois de algumas �“sabo-tagens�” da parte daqueles que eram contra a cre-che, encontrou-se uma casa vazia que poderiaservir para instalá-la.

Nossa experiência conjuntaem Vila Verde

Várias pessoas foram contatadas tendo emvista encontrar parceiros e receber conselhose ajuda para organizar a creche. Entre as pes-soas procuradas algumas possuíam experiên-cia com esse tipo de trabalho ou tinham tidocontato com instituições semelhantes. O in-teresse desses parceiros de fora do bairro es-timulava o grupo interessado desde o início eera um sinal de que a idéia começava a ga-nhar forma. Cada um pensava em uma amigaou vizinha que tinha filhos e necessitava detrabalhar. A idéia era começar a organizaçãoda creche antes mesmo da resolução do pro-blema dos documentos da associação e, por-tanto, do acesso à casa-sede, pois o processode organização prometia ser longo.

A primeira discussão sobre a creche foi rea-lizada durante uma das reuniões dos professo-res da escola, que aconteciam todos os sábados,na casa de Ada. As necessidades materiais da cre-che foram o primeiro tema e uma pessoa que jáhavia trabalhado em uma entidade com essa,Zélia, logo se distinguiu na reunião, por conhe-cer bem o assunto. Naturalmente isso geroureações invejosas e, durante todo o processo,ouviram-se comentários como o de que Zéliaqueria ser a �“dona�” da creche.

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As reuniões semanais das �“mães da creche�”,como as chamávamos, eram maratonas. Essasmulheres nunca haviam tido uma experiênciacomo essa e era muito difícil organizá-las. No-vamente o desconhecimento das regras de orga-nização do trabalho coletivo, baseado nos rituaisda democracia direta, era um empecilho ao bomandamento da experiência. Questões práticas,como o respeito ao horário de início das reuni-ões, a definição, mesmo que precária, da pauta dareunião, a garantia do direito à voz de todos ospresentes, o respeito à fala de cada um, etc., eramexplicadas a cada vez, pois sempre havia novas�“mães�” nas reuniões. Essas mães, pela suainexperiência, tornavam necessário recomeçaràs vezes a discussão, pois não entendiam que setinham chegado no meio do processo era preci-so respeitar as decisões já tomadas pelos outros.

Os professores da escola formavam, junta-mente com outros, o grupo que dirigia a creche.As disputas entre esses líderes potenciais faziamcom que esse processo de organização aconte-cesse muito lentamente, pois tudo era continua-mente reposto em discussão. Os líderes não es-tavam muito firmes em seus papéis e em cadareunião havia desistências; mesmo se estas nãofossem definitivas, causavam um problema decontinuidade no trabalho, porque não havia umnúcleo consolidado de direção. A gestão do pro-cesso vinha do animador externo, pois eu era oúnico elemento �“fixo�” do grupo e, portanto,referencial.

O que precipitou os acontecimentos da or-ganização da creche foi a percepção de que qua-se todas as casas do bairro já estavam ocupadas eque se poderia ficar sem nenhuma. O grupo se

entendeu com o funcionário da COHAB paratomar posse de uma última casa vazia. Essa casa,muito mal-localizada, foi de início recusada poralguns dos envolvidos. Entretanto, após muitadiscussão, as pessoas perceberam que era me-lhor ter um lugar mal localizado que nenhum.Essa decisão razoável foi difícil de ser tomada.

Durante muito tempo as pessoas do bairrocontinuaram a reclamar da má localização da cre-che e os que costumavam fazer comentários mal-dosos encontraram aí mais um assunto. Depoisde ter aceito uma casa, a realização dos trabalhosde acabamento do local se impunha ao grupo,bem como um fechamento do terreno. Isso sig-nificava um novo momento da ação coletiva, noqual iríamos passar realmente à ação, e as deci-sões nas reuniões se tornavam mais concretas.Os trabalhos necessários só poderiam ser feitosatravés de mutirões. Tratava-se de atividadesmuito cansativas e pesadas (desmatar e nivelar oterreno, fazer melhorias na casa, etc.), de carátermasculino, na tradição local. Portanto, era preci-so mobilizar os �“pais�” da creche e sabia-se queisso não era fácil, pois, desde o início do proces-so, as mães contavam que seus maridos resistiamàs atividades que elas vinham desenvolvendo.

Organizar os mutirões não era fácil de váriospontos de vista. Os homens presentes não eramnumerosos e isso era um motivo de briga entreas mães: as que haviam convencido seus mari-dos acreditavam ter mais direitos que as demais.As pessoas que vinham a um mutirão falavammal das que não estavam presentes sem se darconta do fato de que no mutirão anterior elasmesmas não estavam presentes. Comecei a re-gistrar as presenças e isso recolocou um pouco

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de ordem. Para atrair as pessoas e criar um espí-rito de comunidade, a cada mutirão organizáva-mos um almoço coletivo.

A direção dos trabalhos coletivos constituíauma dificuldade a mais, pois as pessoas queriamcreditá-la a mim, mas eu não podia assumir esseencargo sozinha, pois isso entrava em contradi-ção com os princípios da metodologia testada.Dessa forma, os trabalhos se atrasavam. Era pre-ciso também uma �“direção técnica�” para asobras, pois a maioria das pessoas não conhecia aprofissão de pedreiro, carpinteiro, etc., e mui-tos erros eram cometidos a cada mutirão. E eraainda preciso tomar emprestadas as ferramen-tas necessárias aos vizinhos de bairro, o queimplicava mais responsabilidade pessoal e diantedo grupo.

Além dos problemas de organização, haviaproblemas materiais �– a falta de água, que atin-gia freqüentemente o bairro, e principalmente,a falta de dinheiro, o que nos levou a buscardoações. A soma de dinheiro de que precisáva-mos era muito pequena, mas não para as pessoasque não têm nada. No começo, nos dirigimosaos comerciantes do bairro, que nos ajudaram;mas com o desenvolvimento dos trabalhos eramnecessárias doações cada vez maiores. O desti-no da creche se misturou completamente ao daescola, pois fomos buscar a ajuda do mesmoparceiro, com os mesmos princípios que tive-mos no contato anterior.

Outras iniciativas foram tomadas na buscade doações. Os auxílios externos não eram difí-ceis de encontrar e, geralmente, as pessoascontatadas ficavam felizes de poder ajudar essetipo de iniciativa. Nossa primeira grande vitó-ria foi poder garantir a alimentação das crianças

durante todo o primeiro ano, graças ao parceiroda escola. Isso permitiu o efetivo início das ati-vidades.

A elaboração das regras de funcionamentoda creche foi assunto de várias reuniões, às ve-zes tensas. As questões discutidas, que iam damaneira de tratar as crianças até a forma de ad-ministrar o dinheiro recebido eram novas paraas pessoas. Uma das decisões tomadas, envol-vendo a definição de responsabilidade de trêsmães diferentes, a cada dia, para tomar conta dascrianças, foi objeto de debates acalorados. Comoescolher o trio, apesar das brigas pessoais? Quemiria dirigir essas pessoas sem ferir suas susceti-bilidades? Quem faria o quê na creche? Comoadministrar a creche no dia-a-dia? Como admi-nistrar o dinheiro da comida? Todas essas ques-tões foram objeto de longas e cansativas discus-sões, nas quais as decisões tomadas em um diaeram esquecidas ou contestadas no dia seguinte.

Sem dúvida, a coragem e a determinação doslíderes da creche, principalmente de Ada e Zélia,assim como o apoio de um grupo próximo e dosparceiros externos, é que vêm permitindo seufuncionamento até hoje. Nada foi idílico nesseprocesso, mas ele atingiu seu objetivo.

Avaliação da ação coletiva

Na organização da creche, soubemos en-contrar parceiros, manter essas parcerias e ul-trapassar as dificuldades advindas dos �“adversá-rios�”. Os funcionários da Prefeitura foram par-ceiros muito importantes para encontrar a casa-sede. De sua parte, Aristeu foi um adversário,na medida em que, discretamente, impedia o

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avanço das coisas, seja por reter os documentosnecessários à regularização da associação, que,assim, não avançava, seja pelos comentários quedesencorajavam alguns participantes. Na verda-de, ele quase conseguiu impedir a realização doprimeiro mutirão, pois se recusou a dar a chaveda casa e foi preciso que se quebrasse o cadeadopara conseguir trabalhar com os quase 20 vo-luntários presentes. Todavia, os verdadeiros ad-versários do grupo eram alguns dos seus pró-prios membros, com sua inexperiência de tra-balho coletivo, suas mostras de irresponsabili-dade para com o projeto e, muitas vezes, pelodespeito demonstrado diante do prestígio doslíderes que despontavam.

Os mutirões eram, para mim, a ocasião dever o grau de autonomia atingido pelas pessoasem seu trabalho. Várias vezes fiquei decepcio-nada porque as coisas não andavam em minhaausência ou porque as pessoas não agiam antesde me consultar. Tentei ser sempre firme, poissabia que uma excessiva intervenção de minhaparte poderia inibir a iniciativa das pessoas. Masfinalmente compreenderam que deveriam agir,e aqueles que eram os mais interessados e ti-nham mais eficácia se destacaram. Em certomomento, um pequeno grupo realmente assu-miu a realização dos mutirões, sem a presençado animador externo.

Um problema de base sempre esteve pre-sente: o interesse de algumas mães em seremcontratadas em seguida, quando a creche esti-vesse �“pronta�”. Para as pessoas de espírito mais�“comunitário�”, esse desejo, que transparecia emalgumas, era um verdadeiro pecado. Assim, eusempre tinha de lembrar às pessoas que desejarum emprego era uma aspiração legítima. En-

tretanto, o problema se repetia desde há muitotempo, desde a discussão para a indicação dasmães que atuariam a cada dia na creche. Houvemães que propuseram pagar duas pessoas fixas,para evitar as possíveis disputas. Elas não com-preendiam que não havia fundos disponíveis ou,talvez, aguardassem o apoio de um parceiro ex-terno poderoso. Essa ilusão é reveladora do des-conhecimento do que representa um trabalhocomunitário do ponto de vista das responsabili-dades de cada um e, ainda, que a expectativa deuma relação de tutela �– como aquela dos �“assis-tidos felizes�” (WOLF, 1993) �– está sempre pre-sente, apesar dos progressos na direção da auto-nomia.

* * *

Havia, em geral, dois tipos de mulheres queparticipavam da organização da creche: as �“ex-perientes�” e as �“necessitadas�”. As experienteseram aquelas que tinham realizado um traba-lho coletivo anteriormente e que acreditavamna possibilidade de colocar a creche em funcio-namento. Normalmente, essas mulheres tinhamum nível de renda e escolaridade levemente su-perior ao das outras. Considerando-se sua cren-ça na possibilidade de conseguir fazer a crechefuncionar, elas não eram mais prisioneiras dosefeitos da estigmatização.

As �“necessitadas�” eram mulheres que vivi-am em condições muito difíceis. Entre elas ha-via mulheres muito jovens, com um comporta-mento às vezes irresponsável em face do coleti-vo. Elas eram atraídas para a ação coletiva por-que precisavam dos serviços propostos, mas nãose davam conta do percurso a completar. Algu-

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mas nem acreditavam nisso. As �“necessitadas�”tornavam o processo ainda mais difícil, pois nãocompreendiam que a creche era uma coisa quedeveria ser construída. Tinham, assim, uma certafalta de compromisso com essa construção, ape-sar de serem as que mais precisavam do funciona-mento desse equipamento comunitário, até para aalimentação de seus filhos, o que fazia com quesempre brigassem, por vezes deixando tenso oambiente das reuniões e dos mutirões.

As mais experientes entendiam que o queiria acontecer dependia delas e, desse modo, to-mavam mais cuidado com as palavras, chegan-do às vezes a voltar atrás para pedir desculpas,se isso fosse necessário para manter um bomambiente de trabalho. Entretanto, entre estas, adificuldade vinha das brigas por espaço, poiscada uma queria se distinguir mais que asoutras, inclusive diante do animador externo.

Essa distinção entre �“experientes�” e �“ neces-sitadas�” é um pouco sumária, pois havia com-portamentos de todos os tipos e nunca ninguémfoi um modelo de mulher �“experiente�”, dedica-da à causa da creche. Aqui, também foram vis-tos altos e baixos em cada uma. Trata-se antesde tendências, como as que sinalizamos ante-riormente, sobre os pólos �“potencialmenteengajado�” e �“potencialmente anômico�”.

Outras iniciativas pedagógicase alguns erros exemplares

Durante toda a duração das ações coletivas,o animador externo tentou organizar atividadescomplementares àquelas que eram desenvolvi-

das em conjunto. O objetivo era favorecer aintegração das pessoas, descontrair o ambientedo grupo e promover pequenas vitórias coleti-vas. Algumas dessas iniciativas foram muito bem-sucedidas e outras, menos, tendo em vista o ob-jetivo utilitário; entretanto, o fato de �“fazer algo�”e de fazê-lo em grupo, significava sempre umaprendizado do trabalho coletivo. Para organizaressas iniciativas sempre tive o apoio das pessoasmais engajadas, que diziam ter vontade de meprestar um serviço para me agradecer pela minhadedicação ao bairro. Como exemplo dessas ações,será citado o concurso de textos que foi realiza-do.

Durante o período de organização da cre-che, fizemos um concurso de redação sobre otema �“Meu bairro como ele é e como eu gosta-ria que ele fosse um dia�”, também consideran-do a necessidade da pesquisa de contar commateriais de estudo, escritos, que contivessemo próprio pensamento das pessoas sobre o bair-ro. O concurso não foi organizado no momen-to das atividades pedagógicas, o que talvez fossemais lógico, mas menos eficaz, pois, na época,as pessoas não tinham vivido o suficiente nobairro para falar disso. O fato de ser realizadodurante as ações coletivas conferiu-lhe um pa-pel destacado nos eventos do bairro naquelemomento: foi um motor de integração entre aspessoas que trabalhavam para a escola e aquelasda creche.

Doze pessoas participaram desse concurso,observando-se que quase todas tinham, ante-riormente, se vinculado às iniciativas de inter-venção, seja no âmbito das atividades pedagógi-cas, seja no das ações coletivas. O júri compre-endia um professor universitário, Ada (a pro-

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Crianças em momento de repouso na creche comunitária de Vila Verde.

fessora da escola e líder, já citada), e eu mesma. Oapoio dos líderes do bairro contribuiu para osucesso do concurso, pois eles ajudaram a ins-crever as pessoas e a motivá-las, em seguida, aproduzirem seus textos.

A festa de entrega de prêmios foi cuidadosa-mente organizada pelas mulheres da creche e daescola, cada uma delas tendo contribuído fazen-do um bolo. Essa foi a ocasião de reunir os alu-nos da escola, os professores e as pessoas da cre-che, além dos participantes do concurso, em tor-no da mesma mesa. O momento da festa foi im-portante para dar uma outra atmosfera às ati-vidades, normalmente muito cansativas, seja fí-sica (mutirões), seja intelectualmente (reuni-ões). Os prêmios, bem modestos (um jantar paraduas pessoas em uma pizzaria, duas entradaspara o circo e duas entradas para o cinema), fo-ram financiados pelo membro do júri estranhoao bairro, o professor universitário, que quisajudar a pesquisa e as pessoas.

A análise dos textos permitiu verificar-seque os participantes desse concurso tinham de-sejos muito precisos para o futuro do bairro eeram bem ambiciosos em seus reivindicações.De uma maneira geral, as pessoas achavam que,naquele momento, o bairro estava razoavelmen-te bem estruturado e concebiam o seu futurode forma bem otimista. Suas listas de melhoriasnecessárias misturavam a falta de serviços urba-nos e as dificuldades de relações de vizinhança,como se se tratasse de problemas de mesma na-tureza. Quando os textos falavam dos proble-mas do bairro, raramente se referiam às autori-dades especificamente; alguns mencionaram um�“presidente do bairro�” ou uma associação. Oclima de engajamento no qual vivia o grupo daspessoas envolvidas nas ações coletivas transpa-recia nos textos, o que fez com que esses nãopudessem ser considerados representativos doconjunto de habitantes do Vila Verde à época.

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Alguns erros exemplares

Alguns erros de conduta por parte do ani-mador externo foram fonte de problemas oude atrasos no processo que se desenrolava nobairro. É importante assinalá-los, já que um dosobjetivos deste livro é oferecer algumas cha-ves para a ação concreta. Eles são exemplaresdo fato de que a presença do animador em cam-po, mesmo se constante, não é nunca comple-ta e que, por essa razão, não é possível se sabertudo o que acontece, o que gera o risco de fal-sos julgamentos. Além disso, esses exemplosexprimem alguns aspectos da realidade que sãoimportantes para a compreensão do quadrogeral.

Durante a organização da associação doshabitantes, surgiu uma disputa entre dois gru-pos de habitantes. A ação desses grupos, quepretendiam, ambos, a mobilização dos habitan-tes, me parecia bem homogênea, comparati-vamente àquela, autoritária, de Aristeu. Esfor-cei-me bastante, em várias conversas com oslíderes, para derrubar as desconfianças que ain-da existiam de parte a parte e realizar a uniãodos dois grupos. Em uma reunião para viabili-zar esse acordo, propus uma direção colegiadapara contar-se com a presença de todos e, as-sim, selar-se a união. Essa proposta desagra-dou totalmente as pessoas envolvidas. Para eles,nesse caso, não havia nenhum sentido dividiro poder em nome de uma unidade de ação e semantiveram em disputa; observe-se ainda queum dos grupos, em seguida, apoiou parcial-mente Aristeu, como já visto.

Essa concepção, avessa à divisão de pode-res, pode ser talvez explicada pela excessiva

concentração dos poderes na sociedade brasi-leira (com o presidencialismo, por exemplo)ou pelo modelo familiar patriarcal (ou matriar-cal, depende do caso), sempre centrado emuma única autoridade. As pessoas diziam quea idéia de vários líderes iria semear a confusão,que era preciso ter um só presidente para a as-sociação e não os três �“coordenadores�” propos-tos. Diante dessa resistência, renunciei à mi-nha posição para observar o modo pelo qual ospróprios habitantes se organizavam. Insistir nocontrário poderia levar as pessoas a criaremestruturas artificiais simplesmente para agra-dar ao animador externo. As coisas se organi-zaram sozinhas e, para alguns, cujas diferençascom o outro grupo eram mais de caráter pes-soal, estas foram se apagando pouco a pouco,permitindo o trabalho conjunto.

Um outro aspecto a ser observado é a con-tradição que se desenvolveu durante algum tem-po entre o animador e a maioria das mães dacreche, por causa de uma das dirigentes do tra-balho comunitário. Tratava-se de uma das pes-soas mais capazes e das mais confiáveis na açãoque se realizava, ocupando-se da administraçãodo pouco dinheiro que a creche tinha inicial-mente assim como de anotar a presença das mãesnos mutirões. Essa �“anotação�” servia de �“crédi-to�” às mães para reservar a vaga de seus filhosna creche. As contestações das outras mães comrelação a essa mulher eram numerosas. No iní-cio, pensei que se tratava do fenômeno da inve-ja, ligado à distinção dessa mulher relativamen-te às demais; porém, no decorrer do processo,fui me dando conta de que algumas das suascaracterísticas pessoais não eram adaptadas aotrabalho coletivo. De certo ponto de vista era

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uma excelente gestora, mas sua excessiva exigên-cia de ordem e seu perfeccionismo eram inade-quados. Um tal comportamento inspirava naspessoas o pensamento de que ela se sentia su-perior aos outros, o que era reforçado pelo fato,que não presenciei, mas que me foi relatado, de

que não deixava seu filho brincar com as outrascrianças da creche. Apesar de saber da falta queessa mulher faria, com sua capacidade prática,nos caminhos de construção da creche, deixei dedefendê-la diante do grupo e ela terminou por seafastar do trabalho comunitário.

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Os resultadospráticos da experiência

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I �– A mudança no comportamento dos habitantes

Após a descrição e discussão da experiên-cia-piloto de Pedagogia da Participação do VilaVerde passa-se agora à sua avaliação e à inter-pretação dos resultados, para aferir as possibili-dades de generalizações. Estas poderão tornar-se suporte para outras intervenções da mesmanatureza em outros bairros populares, levando-se em consideração, entretanto, as peculiarida-des de cada experiência. Neste caso, por exem-plo, era preciso levar em conta os fatos de quenunca tinha havido no bairro uma associaçãode moradores solidamente constituída e legiti-mada em sua ação e de o Vila Verde não se situarem local particularmente atraente para a espe-culação imobiliária. Nos bairros de melhor lo-calização e/ou que tenham tradições de lutascoletivas, as dinâmicas de um processo partici-

pativo, do ponto de vista das relações internasentre os moradores e da relação desses com osagentes externos, certamente seriam outras.

Nos casos semelhantes ao de Vila Verde, quenão suscitam o interesse do mercado imobiliá-rio e em que os habitantes não possuem experi-ência de organização e de luta coletiva, o que sepassou ali pode ter caráter mais exemplar. Evi-dentemente, todos os bairros e todas as popula-ções apresentam suas particularidades e é o bomsenso do pesquisador ativo que deverá prevale-cer ao ler cada aspecto dos temas aqui tratados,considerando a sua possível aplicação em outrocontexto.

Duas grandes lições podem ser tiradas des-sa experiência. A primeira lição é que ela se fun-damentou na busca de um entendimento debase antropológica acerca das condições de vidada pobreza; a segunda, é a atenção particular quefoi dada às características das relações entre ospobres e a elite. Desses pontos de vista, estima-se que os habitantes de Vila Verde são represen-tativos do que acontece e aconteceria em ou-tros bairros pobres e que a maioria dos princí-pios de ação empregados pode ser considerada

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para uma utilização mais vasta. O que significaque esses princípios podem ser válidos para fun-damentar outras intervenções em bairros popu-lares, além daquelas de caráter urbanístico,como, por exemplo, iniciativas na área da saúdepública ou da educação de adultos. Isso, logica-mente, desde que essas intervenções tenhamcomo pano de fundo uma busca da pedagogiada participação e a aprendizagem da cidadania.

Os resultados práticos da experiência serãoexaminados, em primeiro lugar, com relação àsmudanças no comportamento dos habitantes.Em seguida, serão feitas observações sobre opapel e o comportamento do animador externoem campo, no que esses dois fatores tiveram dedecisivo para a obtenção desses resultados prá-ticos favoráveis.

Dois tipos de resultados práticos foram ob-servados: os que mostram uma melhoria doquadro de vida dos habitantes e os que demons-tram a existência de um processo de aprendiza-gem da cidadania, resultado da pedagogia daparticipação. Os primeiros são vinculados à im-plantação da escola e da creche comunitária nobairro, com as dezenas de beneficiados diretos.Os segundos são constituídos de um conjuntode sinais que revelam que os que se engajaramnas iniciativas passaram a um estado superiorda cidadania: aquele em que cada um é capaz deagir sobre seu destino.

Esses resultados práticos, que serão discuti-dos a seguir, não podem ser creditados unicamen-te à experiência-piloto. É preciso levar em contaalgumas condições favoráveis encontradas nobairro, particularmente a existência de líderesmobilizadores potenciais de qualidade. Não édifícil afirmar, entretanto, que, no caso desse bair-

ro, tais resultados práticos não poderiam ser ob-tidos em tão curto espaço de tempo sem umaintervenção externa. Se fosse necessário dar achave do nosso sucesso, falaríamos da confiançadas pessoas em si e no grupo, que soubemos es-timular e se tornou, em seguida, o motor dasações no bairro. Essa maneira de abordar a inter-venção externa nos bairros pobres para enfrentaros problemas sociais foi resumida por Dumas eSeguier (1997) em uma frase lapidar: �“Estimularo desafio, combater a desesperança�”. Eles afir-mam que, �“em grupo, as pessoas marginalizadasestão à altura de vencer as múltiplas dificuldadespara afirmar sua identidade e tomar parte no jogosocial�”. O mesmo comentário pode ser feito so-bre o que aconteceu em Vila Verde.

Despertar do interesse das pessoaspara o coletivo

Em uma escala concreta em direção à açãoautônoma, o primeiro resultado que obtivemosfoi o aumento do interesse das pessoas pelasquestões coletivas. Como vimos, o interesse es-pontâneo ia para as questões pessoais e familia-res e para aquelas ligadas à sobrevivência. É pre-ciso dizer, entretanto, que antes de nossa che-gada no bairro as pessoas já cuidavam dos pro-blemas cotidianos, como a falta de água, de ôni-bus, etc., e até se manifestavam para chamar aatenção das autoridades. Mas tratava-se, naquelemomento, de ações isoladas, como espasmos,sem preocupação de continuidade.

De maneira geral, é visível que os proble-mas de cada um ou de cada família se resolvemem seu seio e não são coletivizados, identifica-

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dos como problemas sociais mais amplos. Ob-serva-se que a solidariedade de proximidade, queexiste originalmente na vida cotidiana dos po-bres em um bairro como Vila Verde, é de umtipo quase tribal. Trata-se de uma organizaçãosocial que se constitui para enfrentar os proble-mas imediatos do grupo. A solidariedade é umtipo de crédito que cada um adquire relativa-mente àquele a que ajudou e ao grupo ao qualpertence e que aprova seu comportamento so-lidário. Essa solidariedade será �“recompensada�”um dia e é, assim, sobre uma relação direta, quese estabelecem os laços cotidianos.

A solidariedade coletiva, a que fundou, porexemplo, o Welfare State, é baseada em umaracionalidade mais ampla, que não é �“natural�”,requer ser aprendida. A passagem da solidarie-dade de proximidade àquela que concerne à co-letividade é tributária, em sua origem, de umaconstrução ideológica. Primeiro, é preciso ter umsentimento de pertencer a um grupo mais am-plo que aquele com o qual se tem relações dire-tas. É somente a partir daí que, ultrapassando osinteresses pessoais e imediatos, impõem-se asidéias de igualdade e o projeto de coesão social.Finalmente, chega-se a uma etapa de construçãode uma instância garantidora da solidariedade,como, no caso europeu, o Estado-providência.

Em um país como o Brasil, onde essa cons-trução ideológica ainda não está completa, estetipo de solidariedade coletiva ampliada não estáinscrita profundamente nos usos e costumes. É aforte solidariedade de proximidade que tem opapel de garantidora da sobrevivência. Entretan-to, mesmo existindo em algumas pessoas, comofoi visto, a consciência (mais ou menos adquiri-da) de que são credoras de direitos relativamente

ao Estado (mesmo em se tratando de um Estadoassistencialista), não há um engajamento profun-do e espontâneo para fazer valer esses direitos.

Foi nesse contexto que agimos de maneiraprogressiva em nossas primeiras atividades pe-dagógicas, para dar um conteúdo concreto à idéiade espaço coletivo e aos problemas comuns dogrupo. A maquete, o grande mapa urbanístico,a discussão das prioridades do bairro e a buscados meios para ultrapassar os problemas eram oobjeto desses encontros. Entretanto, o movi-mento mais importante naquela etapa não foi atransformação dos habitantes em reivindicantese credores de serviços de uma maneira coletiva.O essencial foi que tomassem consciência de suacapacidade de fazer valer os seus direitos.

Por exemplo, é provável que as discussõesdurante as atividades em torno do tema �“o bair-ro�” tenham estado na origem da decisão daspessoas de se organizar em associação. Os diri-gentes dessa iniciativa estavam entre os maisassíduos e os mais ativos participantes dessasatividades. A organização dessa associação, mes-mo se, finalmente, ela não seguiu adiante comoassociação de habitantes e sim como Clube deMães, revelou uma vontade de intervir de ma-neira coletiva, organizada, mas sobretudo deinscrever a ação coletiva no longo termo.

Um outro exemplo da construção da idéiade solidariedade coletiva é a organização da cre-che. Se existia, por exemplo, uma tendêncianatural a cuidar do filho da vizinha quando elasaía para fazer compras ou para ir ao médico,esse raciocínio não ultrapassava o horizonteimediato dos vizinhos. O fato de levar em con-sideração que essa mesma necessidade existia emtodas as famílias, de refletir a longo termo e de

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Assuntos das conversas

Entre os habitantes não-envolvidos com a

experiência-piloto (20entrevistas)

Entre os habitantesenvolvidos (18

entrevistas)

Vida privada (família, amores, trabalho, lazeres) 30% 11,1%

Vida privada e religião 20% 11,1%

Vida privada e bairro 10% 38,8%

Vida privada e outros temas 40% 38,8%

Tabela 11�“Sobre quais assuntos você gosta de conversar?�”

Obs: síntese das respostas dadas a uma questão aberta.Fonte: pesquisa de campo.

organizar, em seguida, uma creche comunitá-ria, foi, para as pessoas, um passo a mais na aqui-sição da cidadania.

Uma outra maneira de entender o interes-se das pessoas pelo coletivo é a comparação dosquestionários. O primeiro, aplicado no início daexperiência-piloto, mostrava um interesse ma-joritário pelas questões imediatas e de sobrevi-vência. No questionário final, aplicado um anodepois do primeiro, pôde-se observar uma di-ferença entre as pessoas engajadas e as demais.As respostas ao questionário final mostravamque as pessoas engajadas nas atividades pedagó-gicas e ações coletivas estavam mais interessa-das pelos assuntos coletivos do que as que nãoparticiparam dos acontecimentos. A diferença éparticularmente evidente no caso da ultrapas-sagem das preocupações privadas como interesseprincipal da vida das pessoas e do grau deengajamento nos problemas do bairro.

Um último exemplo do despertar do inte-resse para o coletivo vai confirmar também acapacidade de iniciativa nos habitantes. Trata-se da organização de uma estrutura coletiva de

busca de emprego. O desemprego é uma reali-dade do bairro, como vimos, mas as iniciativaspara resolvê-lo são pessoais. O grupo da crechee da escola transformou o desemprego em pro-blema coletivo quando utilizou essas estruturas�– e sua respeitabilidade �– o serviço das pessoas,como mostra um panfleto que foi produzidopelo grupo. Esse panfleto, assinado pelo �“Clu-be de mães do Vila Verde�”, oferecia serviços di-versos e dava o telefone comunitário normal-mente utilizado pela creche; ele foi distribuídotambém fora do bairro através dos parceiros dasiniciativas comunitárias.

Aprendizado das iniciativasde trabalho coletivo

A aprendizagem do trabalho coletivo come-ça pelo domínio das regras do debate em grupoe se realiza na ultrapassagem dos conflitos emtorno da tarefa a ser realizada em conjunto paraatingir os objetivos comuns. Desde o início daexperiência-piloto, foi feito o diagnóstico de que

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os pobres, por causa de sua inserção social es-pecífica, têm menos experiência nas discussõescoletivas. Nas primeiras reuniões, foi constata-da a falta de experiência das pessoas nos proce-dimentos do debate, mesmo para os mais sim-ples. O respeito dos horários de uma reunião,do momento da fala de cada um, da concentra-ção do debate em temas definidos previamentee, finalmente, o respeito ao voto majoritário, nãoeram práticas adquiridas.

Assim que essa primeira etapa de aprendi-zagem do debate e da negociação foi ultrapassa-da, foi necessário enfrentar as dificuldades con-cretas para a realização dos objetivos decididoscoletivamente. Para isso, o grupo engajado tevede buscar os meios materiais e o conhecimentoespecífico. Vimos, por exemplo, que, mesmodepois de reuniões particularmente férteis so-bre os problemas do bairro, as pessoas não ti-nham a idéia de formar uma comissão para pro-por ações. Quando finalmente ultrapassou-seessa etapa, com a ajuda do animador externo, aspessoas se perderam novamente diante das ta-refas burocráticas que deveriam enfrentar e dasiniciativas cotidianas da organização coletiva.

Todos esses passos tiveram de ser aprendi-dos: a delegação de tarefas de acordo com a ca-pacidade de cada um; a administração dos con-flitos pessoais; a negociação de interesses paralevar a um compromisso entre todas as partesenvolvidas. Atrás de tudo isso existe um fundoideológico: cada um deve ser intimamente con-vencido de que vale a pena perseverar, apesardas dificuldades. Observam-se aqui idas e vin-das, desistências, pois essa convicção interior éconstantemente posta em causa, principalmen-te nos conflitos pessoais no seio do grupo, que

se devem, prioritariamente, como visto, à inve-ja despertada pelos que se distinguem.

Se as reuniões públicas certamente ensina-ram aos participantes os elementos do debatepúblico, a organização da escola comunitária foium exercício formador para a ação coletiva con-creta, que permitiu outras vitórias posteriores.Todavia, o fato de ter conseguido colocar a es-cola em funcionamento não quer dizer que ogrupo de habitantes mais engajados tenha ad-quirido inteiramente a competência do traba-lho coletivo. A continuidade da ação coletiva eo envolvimento em outras atividades semelhan-tes, como a da creche que foi criada a seguir eque representava um desafio superior, é que tes-temunham a aprendizagem.

Entretanto, num trabalho coletivo, tudo émuito frágil, já que, como vimos, por motiva-ções pessoais ou outras, as pessoas envolvidaspodem se afastar da ação e tudo deve ser entãorecomeçado. Isso ocorreu muitas vezes ao longoda experiência. Somente um grupo constituídopor líderes e pessoas mais persistentes resistiu aospercalços, sendo capaz de recomeçar sempre egarantir a continuidade. Esse núcleo de direção,do qual fez parte, nos primeiros tempos, o pró-prio animador externo, é vital para que experi-ências comunitárias dêem certo. Todavia, de umacerta maneira, a partir de determinado momen-to da pedagogia da participação, jamais se reco-meça um projeto do zero, porque as pessoas queforam formadas no trabalho coletivo podem sem-pre ser remobilizadas em caso de necessidade.

Se as estruturas da creche e da escola conti-nuam a funcionar, hoje, sem apoios cotidianos(como os que eram dados anteriormente pormim) e se esses empreendimentos atingem sem-

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pre mais beneficiários e aumentam suas respon-sabilidades, isso significa que as pessoas apren-deram com o processo. Para o animador exter-no e os líderes da experiência ficou a lição acer-ca da fragilidade de cada vitória, dos muitos al-tos e baixos e da necessidade de ser criativo di-ante das dificuldades, no sentido de perseverare encontrar as mais variadas formas de mantero grupo unido e a esperança na consolidação dasiniciativas. A longo prazo, essa consolidação sedeu com a profissionalização de alguns mem-bros do núcleo de direção nos empreendimen-tos em questão e esse parece ser um caminhoviável a ser perseguido em outras iniciativas.

Emergência de líderes�“mobilizadores�”

A questão dos líderes já foi aqui discutida,particularmente a idéia da existência de um tipode líder �“natural�” de um bairro pobre como oVila Verde. O líder que se destaca espontanea-mente em um ambiente de estigmatização e deidentificação com os �“dominantes�” é o que nãoentra em contradição com as características ge-rais da sociedade. A admiração pelos �“podero-sos�” legitimou Aristeu, no cotidiano, como lí-der natural, mas isso, como vimos, não duroumuito.

Tratar-se-á agora de um outro tipo de líder,que dificilmente nasce sozinho nesse terrenopouco fértil para as idéias mais libertárias: o lí-der do tipo �“mobilizador�”. Esses líderes (é im-portante pensar neles sempre no plural, mes-mo se um dentre eles é preponderante) são osúnicos que podem impulsionar as iniciativas

coletivas no sentido de um aprendizado da ci-dadania. Em um movimento desse tipo, são elesque podem inscrever sua �“liderança�” de manei-ra duradoura no processo. Favorecer a emergên-cia desse tipo de líder foi um dos resultados prá-ticos da experiência.

O líder mobilizador é aquele que legitimasua liderança pelo seu poder de convencer aspessoas, de mobilizá-las em torno de uma lutabaseada em suas próprias forças. Ele deve saberpersuadir, dar o exemplo e estar acima dos co-mentários maldosos, dos conflitos interpessoais,etc. O líder mobilizador constrói sua ascensãosobre os outros a partir da influência do exem-plo: sua dedicação à ação, sempre coletiva, suacapacidade de promover o entendimento entreas pessoas engajadas na ação. Certamente os lí-deres mobilizadores também têm, às vezes, ati-tudes típicas dos líderes fortes, como o paterna-lismo. Isso ocorre devido à penúria que pesasobre as pessoas, levando-as a pedir ajuda, comotambém ao modelo tradicional de liderança. Masa estratégia do líder mobilizador é antes de tudoalertar os que ainda não tomaram consciênciados seus direitos para que eles mesmos possamreivindicá-los. Para os que já estão conscientesdesses direitos, o papel do líder é o de estimulá-los a lutar de forma coletiva para ampliar suasconquistas cidadãs.

Para que um líder mobilizador apareça emum ambiente como o descrito em Vila Verde, épreciso que ele tenha características pessoais,ideológicas e políticas diferentes daquelas quesão mais comuns nas circunstâncias. Com basenas entrevistas realizadas com os líderes maispróximos do modelo mobilizador e que se dis-tinguiram durante o processo, evidencia-se que

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existe sempre um conjunto de características ede experiências que estão na origem dos seus�“talentos�”: a imagem de alguém que tambémfoi líder e serviu de modelo, uma experiênciaanterior de distinção no esporte ou no movi-mento estudantil ou, ainda, a participação emgrupos religiosos com preocupações sociais. Oexemplo familiar foi muito marcante no casode Vila Verde, no qual, dentre os responsáveispela escola e pela creche, havia um irmão e umairmã influenciados por uma família �“militante�”.

Entretanto, a liderança é sempre uma rela-ção, um fenômeno de ida e volta, pois o líderreflete os �“liderados�”, suas perspectivas e suaspotencialidades. Se, em um grupo, pode apare-cer um líder mobilizador e não apenas um líderforte, �“salvador da pátria�”, isso revela que existeum grupo de �“liderados�” dispostos, maduros paraenveredar por outros caminhos além daqueles dadependência. A emergência de um líder mobiliza-dor é assim um sinal de um processo maior detransformação de mentalidades. Formar um lí-der mobilizador não é uma tarefa realizável emuma experiência de apenas um ano, mas é possí-vel criar uma atmosfera favorável a seu surgi-mento. No início da experiência foi possível ob-servar que os líderes mais experientes não que-riam se engajar. É o sentimento de ser apoiado,de estar sustentado por alguém ou por um grupoque leva os líderes potenciais a se revelarem. Es-cutemos Rute: �“Eu tinha vontade de fazer algumacoisa pelo bairro desde quando cheguei, mas foi o seuapoio que me fez confiar em mim mesma e aceitar res-ponsabilidades�”. Isso pode também ser atribuído aum sentimento de dever diante do animador ex-terno, que, mesmo não sendo do bairro, luta pelosucesso da ação coletiva.

Mudança na relação entreos habitantes e a Prefeitura

A relação entre os habitantes de Vila Verdee a Prefeitura era muito particular. De um lado,como originários de bairros populares, eles ti-nham a experiência da indiferença dos poderespúblicos. Por outro lado, eram beneficiários deuma ação urbanística de grande porte, a criaçãodo seu bairro, e do fato de que existia tempora-riamente uma representação da Prefeiturasediada no bairro, enquanto durasse a constru-ção. Eles estavam, dessa forma, sem referênciasclaras em suas expectativas com relação ao Po-der Público.

Entretanto, na relação direta entre os habi-tantes e os funcionários da Prefeitura nada ha-via mudado e tudo se passava como em qual-quer outro bairro popular. Tratava-se da relaçãotradicional entre �“pedintes�” e autoridades, de-rivada daquela, majoritária, de dependência dospobres relativamente à elite dirigente. Nessarelação hierárquica, os habitantes tanto compor-tavam-se como �“vítimas�”, de forma tímida,quanto se mostravam, às vezes, ameaçadores erevoltados, em situações específicas. O que nãose via era uma relação civilizada e de parceria.Muitas vezes a estratégia de alguns habitantesera arranjar-se pessoalmente na situação, apro-ximando-se dos funcionários que trabalhavamno bairro para ter a quem recorrer em caso deproblema.

Perto do fim da experiência, todavia, tudoestava mudado, pelo menos para o grupo maismobilizado. Primeiro, com os passos dados emconjunto, as pessoas sabiam a quem se dirigir ecomo. Durante alguns episódios, a capacidade

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de discussão e de negociação com as autorida-des municipais se evidenciou, bem como umacapacidade de iniciativa, de afrontamento (porexemplo, a busca de apoio do jornal de oposi-ção à Prefeitura, para pressioná-la) e de resolu-ção concreta dos problemas (a troca forçada dacasa dada para a creche por uma outra com oterreno maior). A coragem demonstrada nessesepisódios vinha também, em grande parte, dofato de que as pessoas tinham concluído algu-ma coisa, que tinham realizado a escola e a cre-che comunitárias. Eles tinham assim adquiridouma segurança diante dos funcionários da Pre-feitura, aos quais cabia o papel de provedoresde serviços públicos e equipamentos coletivos.

Capacidade de ação coletivaautônoma

A capacidade de ação autônoma é, primei-ro, a tomada de iniciativa diante de uma difi-culdade, sem influência externa. Entretanto, oisolamento dos pobres é um dado que não evo-luirá antes de mudanças estruturais no país. Apenúria de recursos materiais, técnicos e pro-fissionais nos bairros pobres não vai desapare-cer de uma hora para a outra. Isso significa queas pessoas continuarão a viver com necessidadedas ajudas externas, mesmo se elas não são maisdependentes para tomar iniciativas. Nesse con-texto, ser autônomo é saber ir buscar um apoiono momento em que fica evidente que não se écapaz de alcançar, sozinho, o objetivo.

Um acontecimento mostra que uma realcapacidade de iniciativa se instalou no bairro,

particularmente por parte das pessoas que ha-viam vivenciado conjuntamente as ações cole-tivas. Próximo do fim da experiência, uma tem-pestade de verão causou grandes transtornos emSalvador e o bairro de Vila Verde foi um dosmais atingidos. Entre cem e duzentas famílias,segundo a imprensa, viram os telhados de suascasas voarem com os fortíssimos ventos e en-contraram-se assim, novamente na condição defamílias desabrigadas. Faltou eletricidade, o te-lefone público do bairro quebrou. Não houveferidos graves, mas o pânico observado lembrouaos observadores o que essas pessoas haviamvivido anteriormente: uma tragédia ainda nãoesquecida.

Na urgência, os líderes provaram suas ca-pacidades. Imediatamente o pequeno grupo queestava à frente da creche e da escola �– entre cin-co a dez pessoas �– se mobilizou para ajudar asvítimas. Seu trabalho era convencer as pessoasa deixarem suas casas para evitar tragédias mai-ores, pois as paredes poderiam desabar a qual-quer momento, acarretando grandes estragos eperigos. O bar onde antes realizavam-se as ati-vidades pedagógicas foi transformado em localde abrigo das famílias. O grupo fez uma grandesopa para os sem-teto utilizando a comida dascrianças da creche (cujo funcionamento foisuspenso nesse dia). Nesse episódio, os papéisdos atores se cristalizaram. Fui chamada para irsocorrer as pessoas, mas preferi o papel de in-termediária, avisando as autoridades, a impren-sa, a TV. Aristeu apareceu por alguns minutos edesapareceu em seguida, para logo reaparecerfazendo as pessoas crerem �– como sempre �– queele tomava as rédeas da situação �– nesse caso,dizendo que as telhas para recobrir as casas che-

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gariam rapidamente no bairro, o que não acon-teceu. A defesa civil mostrou sua experiênciacom essa ordem de problemas, tomando medi-das urgentes, como dar às pessoas plástico sóli-do para cobrir as casas provisoriamente e acal-mar as famílias.

A atividade do grupo de socorro improvi-sado não parou por aí, o que mostra um nívelsignificativo de capacidade de ação coletiva e desolidariedade. Eles arrumaram o local onde es-tavam instalados os sem-teto, com colchões,cadeiras e uma TV emprestada por vizinhos.Ajudaram as famílias a organizar suas casas, iame vinham no bairro e contatavam pessoas de forapara conseguir ajuda. Esse episódio consolidoualguns líderes e desacreditou outros, que ape-nas se ocuparam de seus próprios problemas.

Se nos perguntarmos se tudo isso aconte-ceria dessa forma se ninguém tivesse tido an-tes as experiências de trabalho coletivo no bair-ro, podemos, com muita certeza, responder ne-gativamente. Foram a formação do grupo detrabalho, a compreensão das etapas a cumprirpara entrar em acordo e poder agir, e a confi-ança mútua das pessoas envolvidas que consti-tuíram as bases da ação. Além disso, era preci-so ter a possibilidade concreta de ajudar as pes-soas fornecendo o lugar onde se abrigar e co-mida. Foram os laços estabelecidos anterior-mente e a existência da creche que permitirama ajuda concreta.

Refletindo sobre as conquistasda experiência

Os resultados positivos, tanto materiaisquanto �“ideológicos�”, que foram explicitados,impõem ao pesquisador-ativo �– o animador daexperiência �– a questão pragmática: quais oselementos decisivos para o sucesso de uma ex-periência-piloto como esta? Dois aspectos de-vem ser sinalizados acerca do sucesso da expe-riência-piloto: o aspecto �“formador�” da primei-ra etapa, chamada de �“atividades pedagógicas�”e, em seguida, o sucesso objetivo das �“açõescoletivas�”, materializado na escola, na creche,etc. Essas duas etapas foram descritas e discu-tidas, e significaram a realização de eventospouco comuns na vida do bairro, em suas ini-ciativas e significados. Todavia, uma experi-ência desse tipo é, antes de mais nada, a histó-ria de contatos pessoais entre o animador e oshabitantes assim como entre os habitantesengajados.

Na discussão de uma metodologia de ex-periência não é fácil reconhecer que a dimen-são �“relações humanas�” tem um lugar decisivo.É mais comum pensar nas fases sucessivas paraatingir o objetivo, nos procedimentos e ferra-mentas que devem ser utilizados para alcançá-lo. Nossa sociedade de especialistas dá muitomais importância ao savoir-faire, aos meios ma-teriais, e mesmo à reflexão a posteriori sobre aação (feed back, évaluation post-usage) que à dis-cussão sobre as relações humanas que influen-ciam qualquer experiência. Além disso, existe,segundo Todorov (op. cit.), uma �“tradiçãoassocial�” no pensamento intelectual ocidental,

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que não põe em relevo a primazia das relaçõeshumanas na constituição mesma da humanida-de10 . Segundo esse autor, a herdeira modernadessa tradição é a psicanálise, que afirma, comFreud, que �“o homem é egoísta e fundamentalmentesolitário�”. Os conceitos psicanalíticos, que atin-giram uma divulgação e uma vulgarização no-táveis, criaram a imagem de um indivíduo ori-ginalmente só, tentando viver em suas relaçõessempre conflituosas com os outros.

Todorov apresenta-nos uma outra leitura,na qual o homem se constitui como homem emsuas relações com os outros. O fundamento dasrelações humanas estaria, assim, na busca �– nemsempre conflituosa �– do �“reconhecimento�”.Além disso, afirma: �“Não existe plenitude sem osoutros�”. Essa interpretação parece muito perti-nente quando se observa a experiência de cam-po aqui analisada: o que vemos todo o tempo éa busca profunda do outro, do olhar do outro,do reconhecimento da utilidade de cada um paraseu entorno �– parceiro, família, grupo ou socie-dade.

Isso não quer dizer que estejamos no me-lhor dos mundos de comunhão entre os ho-mens, e é evidente que os efeitos anti-sociaisdesse princípio de �“busca de reconhecimento�”são também cotidianos. O que importa aqui éreconhecer a efetiva importância das relaçõesentre as pessoas como dado essencial do suces-so da experiência coletiva e, também, compre-ender melhor esse reconhecimento que seria omotor das relações humanas.

A primeira experiência de busca do reco-nhecimento, segundo Todorov, aproxima-sebem mais da comunicação que do conflito: é anecessidade que a criança tem de ser reconhe-

cida em sua existência pela mãe. Na vida emsociedade, a busca do reconhecimento se mani-festa pela ambição de receber continuamentedos outros uma opinião sobre si mesmo, queconfirmaria cada um na sua própria existência.Todorov observa que essa confirmação não sedá sempre a partir de um julgamento positivo,e que o reconhecimento pode se fazer até pelaviolência. Entretanto, esses são casos extremos.O que é mais comum é a busca da aprovação,do amor dos outros. Essa aprovação se faz maisnaturalmente se esse �“outro�” ou esses �“outros�”concebem que nossa existência tem uma utili-dade, no sentido amplo.

Ainda segundo Todorov, a busca do reco-nhecimento é tão mais importante que é a par-tir da opinião dos outros sobre si que cada umfaz um julgamento sobre sua própria pessoa. Édesse movimento que nasceria, ou não, a confi-ança em si. Aqui, é necessário retomar a ques-tão da estigmatização dos pobres, debatida an-teriormente. Se partimos do princípio de que oobjetivo de cada um nas relações humanas é abusca do reconhecimento, podemos admitir queno caso dos indivíduos estigmatizados essa pro-cura ganha aspectos particulares.

10 �“Se levamos em consideração asgrandes correntes de pensamentofilosófico europeu no que diz respeitoà definição do que é humano, chega-sea uma conclusão curiosa: a dimensãosocial, a vida em comum, não égeralmente concebida como necessáriaao homem�” (página 15, tradução daautora). TODOROV (1995).

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A vivência da estigmatização faz com que anecessidade de ser reconhecido seja ainda maisimperiosa para os pobres, já que seu reconheci-mento pessoal em termos de sucesso econômi-co e social é negado de saída. Isso explica assuscetibilidades excessivas perante os outros,particularmente diante dos não-estigmatizados,e explica também, em parte, o poder de seduçãoexercido pelos líderes fortes, os religiosos e oslíderes mobilizadores dedicados, quando de-monstram seu afeto. A vontade de ser �“levado emconsideração�” pelos outros, de ser reconhecido,faz com que mesmo a vitimização �– a busca doreconhecimento como vítima �– constitua-senuma possível via de relação com os outros.

II �– A interação do animador externo com os habitantes

A partir dessas reflexões, podemos deduzira importância particular do aspecto �“relaçãohumana�” em uma experiência participativa, eisso é ainda mais importante no quadro de umapopulação estigmatizada. No caso brasileiro,essa estigmatização é provocada predominante-mente pela pobreza, mas a atenção dada a esse

problema é pertinente também em outros con-textos, nos quais a estigmatização se faz por ques-tões étnicas, de sexo, idade, etc. De qualquerhorizonte em que esteja, o animador, sobretudose vem de um meio diferente daquele da popula-ção estigmatizada, não deve negligenciar o pesodos pequenos detalhes cotidianos em sua rela-ção com as pessoas.

Serão discutidos agora detalhes dessa rela-ção no sentido de deixar evidentes erros maisflagrantes de um animador. Entretanto, se qui-sermos nos servir das reflexões aqui feitas paradesenvolver �“procedimentos�” sobre essas rela-ções humanas, correremos o grande risco detorná-las artificiais, o que estragaria toda a ex-periência. É preciso reconhecer, ao contrário,que os erros, cometidos em grande númerodurante a experiência-piloto, são próprios daatividade humana (�“errare humanum est�”) e dãoespontaneidade às relações entre os homens.

Para concluir esse parecer geral sobre a rela-ção animador/habitantes, é preciso lembrar queo animador tem particularidades pessoais quejogarão a favor ou contra o sucesso de sua experi-ência. Ora, essas características não são facilmentemodificáveis e a única possibilidade de levá-lasem conta no debate é tentar objetivá-las em ter-mos de conduta mais desejável. Além disso, asindicações de conduta buscadas não se afastamdaquelas da cortesia normal da vida em socieda-de. É imperativo, entretanto, em uma experiên-cia que tem por objetivo o aprendizado da cida-dania, que alguns outros aspectos sejam tambémlevados em consideração.

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Romper com as relaçõeshierárquicas

Como já foi destacado, a relação animador/habitante que propomos contrasta radicalmen-te com a tradição das relações elite/povo no Bra-sil; entretanto, é no contexto dessa tradição queas relações vão se desenvolver. Levar em consi-deração esse contexto significa saber que as pes-soas são habituadas a uma relação hierárquica edependente e também que é preciso buscar en-tender o que sente uma pessoa pobre diante dealguém que não pertence a seu meio.

Para começar a construir uma relação dife-rente da tradicional, o animador deve se dife-renciar do representante típico da elite até emsua aparência. É preciso minimizar, na medidado possível, a distância social e evitar que o pri-meiro olhar dos habitantes para o animador sejaum olhar para alguém considerado um supe-rior do ponto de vista material. Uma das ma-neiras de fazer isso é tentar se apresentar semsinais distintivos excessivos (evitar jóias, rou-pas e acessórios ostensivos, aparência geral ex-cessivamente �“produzida�”, postura corporal desuperioridade, olhando as pessoas �“de cima�”etc.). As atitudes dessa primeira aproximação sãoimediatamente percebidas. Evita-se, dessa for-ma, lembrar às pessoas suas condições econô-micas e sociais, o que as coloca em uma posiçãode inferioridade.

O não-reforço da diferença social existentee a atitude acolhedora �– ou seja, informal, sor-ridente �– no contato são recebidos como traçosde simplicidade, abertura em relação aos habi-tantes do bairro. Eles não ficam intimidados, oque os descontrairá. Dessa forma, diferencia-

mo-nos, à primeira vista, dos �“metidos�” ou �“chei-os de histórias�”, segundo expressões utilizadasno bairro. Essa atitude não é artificial, já que onosso interesse em agir deve-se a um efetivo in-teresse no sucesso da experiência: é necessárioconhecermos as pessoas e sermos aceitos entreelas.

Desse preâmbulo já se inicia um relaciona-mento diferente daquele que os pobres têm comos técnicos da Prefeitura e afins. Como vimos,na presença desses estranhos �“que podem�”, aspessoas pobres tendem a adotar uma atitude es-tereotipada de vítima, de necessitados, de genteque solicita: um serviço, um emprego, um fa-vor, dinheiro, etc. Evitando-se que façam o pa-pel de vítima, evita-se logo sua primeira autodepreciação, o que é um elemento positivo parauma relação de maior igualdade.

Essa distinção positiva que o animadorconstrói diante de outros membros da elite, peloseu comportamento diferenciado, não exclui, nofuturo, outras confusões. Isso pôde ser consta-tado em Vila Verde, após alguns meses de �“esta-da�” no bairro, quando o papel do animador ex-terno já parecia estar claro para todos. Numcontato fugaz, ao oferecer uma carona a umamoradora, esta, que já me vira várias vezes nobairro, me disse: �“ainda ontem, em minha casa, eupensei em você e me perguntei o que você fazia aqui...�”.Ela achava que eu era uma freira ou candidata acargo político, pois minha atitude se distancia-va daquela de um estranho �“comum�”.

Essa semelhança com políticos e missionári-os é inteiramente plausível, pois são pessoas quese misturam ao povo de tempos em tempos, porcausa das eleições ou da religião. Eles tambémtomam muito cuidado para não se distinguir muito

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dos pobres, para ser mais amados que admirados.No caso dos primeiros, fazem crer que estão pró-ximos das pessoas e de seus problemas para con-seguir seu voto; quanto aos religiosos, são sempretolerantes com os �“irmãos�” que querem conver-ter. É o desenvolvimento de atividades concretasno bairro e o contato contínuo com as pessoasque vai finalmente estabelecer, aos olhos dos ha-bitantes, a autenticidade do animador.

Construir a legitimidadedo animador no bairro

Se, no começo, foi pela simpatia que o ani-mador conseguiu ser aceito no bairro, foi im-portante que, em seguida, adicionasse motivosracionais de legitimação. É sempre necessárioque este volte a explicar quem ele é e o que fazno bairro, pois, para construir uma relação deconfiança, as pessoas precisam saber o que espe-rar. As intenções �“cidadãs�” da experiência sãomenos evidentes para explicar, mas existem asatividades práticas: fazer a maquete do bairro,ensinar as pessoas a se localizarem no mapa ur-banístico, discutir com elas as prioridades cole-tivas da experiência pública, etc., são atividadesque permitem um envolvimento e dão, assim,sentido à nossa presença.

A continuidade das idas e vindas do anima-dor externo em campo testemunha o interessepelas pessoas do bairro, o que é também uma

forma de legitimação. Entre outros aspectos, co-nhecer o que se passa no cotidiano permite terassuntos comuns de conversação. Estar lá conti-nuamente, interessando-se pelas pessoas e seusproblemas nos legitima como pessoas de algummodo ligadas às suas vidas e seus interesses.

A legitimidade se consolida nas relações con-tinuadas, principalmente com aqueles que parti-cipam do trabalho coletivo e que mantêm umcontato mais regular com o animador. Este últi-mo não deve esconder seus sentimentos. Nocotidiano, por várias vezes, ele estará impacien-te, chocado, decepcionado ou vivendo qualqueroutro estado emocional relativamente aos habi-tantes e é importante que tais sentimentos sejamexpressados. Trata-se, mais uma vez, da idéia maisgeral da comunicação de intercompreensão: con-siderar os habitantes como sujeitos, adultos, quepodem suportar pequenas desavenças sem mai-ores problemas e continuar engajados. O resul-tado será mostrar sinceridade e respeito ao outrocomo igual.

O comportamento caloroso do animadorpode também causar comportamentos excessi-vos, que não interessam à experiência. Certaspessoas o tomarão, sem sua concordância, comoconfidente de seus problemas e de suas lamen-tações, já que ele é mais disponível que os outros�“estranhos�”, e insistirão em envolvê-lo em seusproblemas pessoais. É importante então ser fir-me e não se deixar envolver nem explorar. Dei-xar claras as �“regras do jogo�” da sua presença ali eargumentar acerca disso.

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Reconhecer a diferençasem estabelecer uma hierarquia

O animador, apesar de todas as suas inicia-tivas para romper a hierarquia em suas relaçõescom os habitantes, é e será visto durante muitotempo como alguém �“superior�”. Sua diferençaé evidente e não vem somente de característicasfísicas (que, aliás, podem nem existir) ou de si-nais externos de riqueza, que podem ser evita-dos. O que não lhe é possível esconder é a suaatitude corporal, herdada do fato de pertencerao grupo �“dos que podem�”. Como a maior par-te das pessoas do seu meio, ele mantém a cabe-ça erguida ao falar, seus passos são seguros, falade modo bem articulado, seu olhar é direto, in-teressado por tudo aquilo que vê... Todos essessinais portadores de diferença são percebidospelas pessoas. Eles não devem ser negados, masatenuados na medida do possível, para não criarrelações verticais.

Em sua busca para estabelecer relações deigualdade, o animador se aproxima das pessoas.Para alguns ele se torna até o amigo ao qual secontam as coisas íntimas. Isso acontece no casodos líderes, com os quais a proximidade é cons-tante e com quem essa relação é mútua. Essaproximidade, todavia, não deve se transformarem uma confusão de papéis. O animador é an-tes de tudo um catalisador e, levando até o fimessa metáfora química, como tal ele possui umanatureza diferente dos constituintes da reaçãoque quer induzir, acelerar, ou modificar. O de-safio não é ser artificialmente �“igual�”, mas saberestabelecer relações nas quais o reconhecimen-to da diferença não introduz uma subordinação:

tem o mesmo sentido que a reivindicação quealimentou por muito tempo o movimento femi-nista �–�“Somos diferentes, somos iguais�”.

O perigo de ver a diferença entre o anima-dor e os habitantes cair ainda em uma relaçãode inferior/superior vem também da admiraçãoque o animador provoca. O contato contínuo, anatureza da experiência e a afeição que o ani-mador inspira e troca com as pessoas faz comque esse se torne quase uma �“instituição�”, res-peitada até pelos bandidos do bairro. É entãoimportante para ele não ser unicamente a pes-soa �“de bom coração�” que todos admiram, maspermanecer uma pessoa �“verdadeira�” e não cairno jogo de se tornar um personagem.

O olhar amável, mesmo admirativo, daspessoas para com ele, vem da sua escolha de es-tar ali, de seu comportamento acessível e afávele, principalmente, do seu engajamento nos pro-blemas coletivos dos habitantes através de seutrabalho. A ruptura dessa relação de admiração,mantendo as características que a experiênciaexige, vem de um esforço em uma dupla dire-ção. De um lado, do empenho em ajudar as pes-soas a superar sua baixa estima, o que constituium dos objetivos essenciais da experiência; dooutro lado, da tentativa de não esconder seuspróprios sentimentos de fraqueza, de desencora-jamento ou de raiva.

Um último aspecto que pode acarretar tam-bém uma relação hierárquica é a doação. Às ve-zes o animador é solicitado a dar dinheiro, aju-da material ou a prestar serviços. É preciso lem-brar que aquele que dá não é um igual, a doaçãomarca a diferença, salvo quando existe a consci-ência mútua que uma troca está acontecendo,quando o intelectual �“utiliza�” as pessoas como

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objeto de sua pesquisa e estas �“utilizam�” o pes-quisador como lhes convém. Essa relação comos habitantes foi descrita por Zaluar (op. cit.) arespeito do seu trabalho na Cidade de Deus noRio de Janeiro, mas trata-se de um estudo funda-mentalmente diferente do nosso, pois o aspecto�“ação�” não existia em sua pesquisa.

Passar da dependênciapara a autonomia

Poderíamos começar a discussão sobre aautonomia pelas declarações de princípio dotipo: �“o projeto no bairro era trabalhar COMos habitantes, e não PARA eles�”. Esse princípio,entretanto, não é tão simples de seguir na práti-ca. A idéia mesmo da pesquisa-ação é trabalharpara um grupo com o qual iremos interagir, coma convicção de que vamos contribuir com amelhoria do seu quadro de vida, senão isso nãoteria sentido. Trabalhar �“PARA�” é inevitável emcerto sentido; é preciso então, antes, estabele-cer regras, proteções, para que a experiência es-timule o movimento, sem tomar o seu lugar.Entretanto, está-se sempre no �“fio da navalha�”.

É normal que, no início, a relação anima-dor/habitantes seja de dependência destes últi-mos para com a iniciativa do primeiro. É preci-so aceitá-la. Entretanto, o processo pedagógicodeve levar-nos a uma relação de autonomia, oque não é simples nem definitivo, mas perma-nece sendo o objetivo que se visa alcançar.

III �– Os papéis do animador externo

O sucesso da experiência depende não so-mente da boa relação entre o animador e oshabitantes, mas também das missões que eledeve cumprir. Para consegui-lo, o animadordeve buscar um equilíbrio entre diferentes pa-péis, às vezes contraditórios, como saber diri-gir e, também, se retirar; ser firme, mas tam-bém flexível; agir de acordo com as necessida-des do momento, mas também ter um objeti-vo a longo prazo. É necessário, enfim, demons-trar muita sensibilidade e, principalmente, fle-xibilidade, quando as mudanças se produzemno projeto inicial, para que se evidencie o seurespeito pela realidade concreta e pelas pesso-as. A vontade de intervir e ser voluntário deveser combinada com a capacidade de adaptaçãoao funcionamento social do bairro, aos valoresdas pessoas, a seus interesses, a seu modo deviver e de se comportar.

O animador como estimuladordo trabalho coletivo

A idéia da �“Pedagogia da participação�” par-te do princípio, como vimos, de que os habi-tantes dos bairros populares encontram grandesdificuldades para participar de maneira autôno-ma da busca da melhoria das suas condições de

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vida. Sua maior dificuldade, também já vista, é afalta de confiança em si e no seu potencial deação. O primeiro objetivo do animador é entãoagir para encorajar as ações; dessa maneira, ele sediferencia de muitos militantes políticos queagem como vanguarda e dirigem as ações. Emum primeiro momento, contudo, algumas vezeso animador deve ter um papel de dirigente, massempre mantendo uma perspectiva pedagógicanessa atuação.

A melhor maneira de persuadir as pessoasde que elas têm capacidade de agir em conjuntoconsiste em promover pequenas vitórias. Issopode se dar de várias formas, até a mais modesta,como destacar, diante dos habitantes, o sucessode uma reunião produtiva do ponto de vista datomada de decisões. É preciso sobretudo apre-sentar desafios simples, no início, e maiores, como tempo. No caso de Vila Verde, por exemplo,alcançamos pequenas vitórias com a organizaçãobem-sucedida de uma festa coletiva, com o fun-cionamento da escola, com os trabalhos coleti-vos em mutirão para organizar a creche, etc.

No papel daquele que incita a ação, o ani-mador é sempre um portador de otimismo. Sa-bendo que as pessoas se sentem incapazes e nãoacreditam no grupo social ao qual pertencem, oanimador deve ser aquele que acredita, que dáo exemplo da perseverança, que não deixa aspessoas caírem na desesperança diante das difi-culdades da ação coletiva. Existe, certamente, orisco da personificação do trabalho coletivo.Várias vezes ouvi declarações do tipo: �“Eu sóparticipo dessa tarefa (um mutirão, por exemplo)por causa de você, os outros, eles não merecem�”. Masisso faz parte do processo e, apesar dessas de-clarações, no fundo as pessoas vinham ao

mutirão porque achavam essa atitude importan-te para si mesmas e para o bairro.

Em nenhuma situação o animador devemonopolizar a fala. É bem mais interessante, emuma conversação ou em uma reunião, que sejaum habitante, e não o animador, que defendaum ponto de vista pertinente aos interesses daexperiência. Para isso, é preciso estar próximodas pessoas, saber mais ou menos quem pensao quê, e os convidar a falar num momento opor-tuno. Nos contatos cotidianos, existe uma pre-ciosa pergunta a fazer em todas as situações: �“Evocê, o que pensa disso?�” Essa pergunta temduas vantagens: de um lado, as respostas vão nosdar informações sobre o pensamento de cadaum e do coletivo; de outro lado, ela leva as pes-soas a se darem conta de que o pesquisador-ati-vo realmente se interessa por eles.

O animadorcomo organizador

No início da experiência, o animador temum papel organizador muito forte, já que ele,normalmente, é o único que anteriormente játeve verdadeiras experiências de organização. Étambém o único que tem uma visão do conjun-to da experiência que quer desenvolver e dasetapas a cumprir. Essa visão, global e prévia, queserá adaptada no andamento da ação, o distin-gue dos habitantes e lhe dá uma capacidade deorganização particular. Essa capacidade deve serexercida na sugestão da criação de uma comis-são para acompanhar determinada iniciativa, nopapel de objetivar a discussão em uma reunião,

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ao escrever textos em uma linguagem apropriadapara serem discutidos com as pessoas, ao proporum modelo de estatuto de uma associação, etc.Mas esse papel de organizador deve ser semprecumprido de forma pedagógica, principalmentediante dos líderes, para que eles possam tomar olugar do animador no processo.

O animador, no geral, busca ver de imedia-to os resultados de uma reunião, de uma co-missão, etc. Como ele, de certa forma, tambémestá fora dos acontecimentos e possui uma vi-são de longo prazo, conhece as tarefas que vãose seguir e tem vontade de tudo orientar. É ne-cessário pensar na experiência no longo prazotambém com relação ao aprendizado dos habi-tantes, e não tomar iniciativas que possam sertomadas por eles. Ter uma visão de longo pra-zo, ter noção do tempo necessário ao aprendi-zado das pessoas, significa renunciar às vitóriasimediatas na medida em que elas não seriam oespelho do estado de andamento do processode conquista da autonomia.

Tudo isso conduz também a aceitar as dife-renças do grau de engajamento entre os habitan-tes e o animador. O fato de que este esteja intei-ramente engajado na pesquisa e no bairro nãolhe dá o direito de exigir um comportamento tãoengajado da parte dos habitantes. Ele deve terconsciência de que os acontecimentos provoca-dos pela experiência são uma pequena parte davida das pessoas e que várias vezes elas não darãoa uma reunião ou atividade a devida importân-cia, contrariamente aos anseios do animador. Estedeve tentar manter-se modesto e preservar-se,contribuindo, dessa forma, para não criar tensõesindesejáveis entre os habitantes e para preservara si próprio de decepções desnecessárias.

Para completar seu papel como organizador,o animador deve compreender bem o dado�“tempo�”. É preciso reconhecer que existem di-ferenças entre o tempo de um pesquisador ati-vo e o tempo das pessoas, dadas as diferenças deestilos de vida, de acordo com os meios em queestão inseridos. É importante que o animadorsaiba respeitar o tempo dos habitantes, sem que-rer impor o seu. Como diz a sabedoria popular,é preciso �“dar tempo ao tempo�”. Para podercompreender o dado tempo, é fundamental es-tar na mesma freqüência de onda que as pesso-as. É preciso, a todo momento, estar atento paraque as respostas obtidas sejam o resultado dareflexão dos que trabalham coletivamente e nãoapenas a repetição das observações do anima-dor ou a expressão da vontade de agradá-lo. Épreciso evitar o real perigo que representa ummovimento que só existiria pelo impulso dadoexternamente, pois isso significaria seu fracassocompleto.

Em seu papel de organizador o animadordeve ser flexível: ele não deve esperar que asreuniões comecem na hora exata nem tam-pouco pedir ordem e silêncio a toda hora. Aspessoas, normalmente, não estão habituadascom discussões coletivas e repreendê-las cons-tantemente por conversas paralelas ou discus-sões não-pertinentes à pauta é contraproducen-te pois se instalará aí uma relação vertical. Éimportante lembrar que as experiências de reu-niões públicas mais freqüentes na vida das pes-soas são as missas ou os cultos religiosos. Nes-ses casos, eles não são convidados a dar suaopinião sobre o assunto em questão, mas sim-plesmente a repetir fórmulas feitas �– ou seja, opedido da participação é novidade. Já que tudo

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o que acontecerá no trabalho é mais ou menosdesconhecido dos participantes, é preciso dar-lhes o tempo de se acostumar com as regras dadiscussão coletiva.

É preciso pensar também nas crianças nes-sas reuniões. Elas estão sempre presentes, poissão numerosas nos bairros populares e os paisnão podem deixá-las sozinhas. Elas interessam-se muito pelas iniciativas e são muito barulhen-tas. Assim, na medida do possível, é necessárioencontrar atividades para elas no contexto da ati-vidade comunitária. De qualquer modo, é preci-so tratá-las como crianças �– fixando limites �–mas também incorporar sua agitação como parteda reunião, para que seus pais não sejam cons-trangidos pelos problemas que elas causam.

Os animadores devem estar atentos ao seupróprio discurso nas reuniões, pois eles devemser bem compreendidos e, para isso, é precisofalar claramente e dar exemplos concretos. Aspalavras �“eruditas�” e as lógicas pouco conhecidasdas pessoas não devem ser evitadas, mas sim ex-pressas de forma a virem a ser compreendidas. Épreciso saber exatamente quais são essas palavrase esses raciocínios desconhecidos, pois é sem-pre difícil manifestar a não-compreensão de umapalavra ou raciocínio publicamente. Sabendoquais são as dificuldades de compreensão, é pos-sível lidar com elas no próprio contexto do dis-curso, dirimindo-as. Ao mesmo tempo, é im-portante estar sempre atento ao modo como aspessoas falam das mesmas coisas, suas palavras,seus raciocínios, para retomá-los no discurso evalorizar assim o seu saber. O objetivo de comu-nicação durante as reuniões é alcançar um tipode aculturação recíproca, em que cada uma daspessoas aprende com a outra.

O animador como mediadordos conflitos

Como já foi várias vezes sinalizado, as rela-ções interpessoais são um dos problemas maiscomuns do trabalho de grupo, particularmenteno caso dos habitantes de um bairro popular.Em todos os grupos sociais em que o nível defrustração individual é objetivamente elevado,o problema da suscetibilidade excessiva se agra-va. Encontramos aqui a discussão sobre a buscade reconhecimento: como foi dito, cada indiví-duo tem necessidade de ser reconhecido pelosoutros e esse reconhecimento pode, ao mesmotempo, acarretar em outros um sentimento denão-reconhecimento de si mesmo.

No cotidiano de uma população de um bair-ro pobre, as leves diferenças entre as pessoas,principalmente de salários e de nível de escolari-dade, são fracamente percebidas e não trazemgrandes problemas. Mas o desenvolvimento deatividades coletivas revela talentos e valoriza cer-tas pessoas, o que não é suportável para outras. Aexperiência de participação coletiva é assim ummotivo de diferenciação e, logo, de conflitos.

O animador deve ter em mente esse meca-nismo e tentar suavizar os efeitos perversos dacompetição, pois ela acarreta a frustração departicipantes potenciais e seu afastamento. Pior,ela acarreta também maledicências que, a longoprazo, são perversas para o ambiente entre aspessoas que trabalham em conjunto e podematé ocasionar o afastamento dos líderes menosperseverantes.

Por sua posição, e independentemente dasua vontade, o animador externo também pode

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provocar disputas, principalmente entre os líde-res que são seus interlocutores mais comuns.Sua relação com eles remete a um tipo de�“legitimação�” perante os demais participantes e,assim, cada líder busca atrair a atenção do ani-mador. Por esse motivo, pequenas intimidadescom o animador �– como o fato de ele permane-cer mais tempo na casa de um ou outro líder �–podem tomar uma amplitude desmesurada, cau-sar mágoa e provocar o afastamento de potenci-ais líderes do trabalho coletivo. Entretanto, o queperdemos com uma ou outra das pessoas, ga-nhamos com o conjunto dos participantes, quese sentem seguros pela sinceridade das relaçõescom o animador.

Nos momentos de decisão, verifica-se,muitas vezes, um clima de disputa entre líderespara conseguir que o animador prefira a idéiaque eles defendem. Isso pode se resolver maisou menos facilmente, pois o animador podeevitar tomar partido nas disputas ou, no casoinverso, dar argumentos para explicar sua op-ção. O verdadeiro problema é que essa disputase dá mesmo no caso da relação pessoal que oanimador tem com cada líder. Ele deve entãotentar ter uma relação igualitária com aquelesque estão encabeçando o trabalho coletivo. Nãose deve exigir muito, no entanto, dessa igualda-de de relações, já que o animador será também,ele próprio, naturalmente inclinado a estar maisfreqüentemente com aqueles de que ele maisgosta. A regra da sinceridade deve estar ligadaàquela da conveniência, e o animador deve ten-tar equilibrar esses dois embaraços.

Esse papel de mediador de conflitos lem-bra a idéia mais geral do tiers, na comunicação,na concepção habermiana. O tiers é aquele que

favorece a comunicação, na medida em que aju-da a fazer evoluir as posições tomadas pelosinterlocutores, para ultrapassar a ambivalênciada comunicação estratégica. Trata-se do poderda neutralidade, que pode se materializar atra-vés dos argumentos racionais, de experiênciasvividas, etc. É o caso do sociólogo em uma em-presa, nos debates entre patrão e sindicato: emuma relação que poderia ficar no domínio doestratégico, o fato de haver um tiers pode con-tribuir para que a comunicação se faça de umamaneira mais intercompreensiva. É o caso doterapeuta de família, do diplomata, etc. Ser neu-tro não é fácil, mas se aprende; cada um pode seaproximar desse papel sabendo que será impos-sível atingi-lo.

O animador como intermediárioentre dois mundos

Já foi discutido o fato de que no Brasil omundo dos pobres é separado daquele dos não-pobres. Em um país onde tudo pode se resolverpor relações de amizade com pessoas �“bem-posicionadas�” (DA MATTA, 1986), isso repre-senta obviamente uma enorme perda social paraos pobres. Dessa forma, um dos grandes pro-blemas dos pobres é que eles normalmente serelacionam apenas com outros pobres e, assim,não podem contar com a solidariedade e as in-formações que podem ser necessárias diante deum problema de saúde ou um problema legal,por exemplo, que são acessíveis, por amizade, apessoas de classe média e alta.

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Esse tipo de vínculo construído sobre rela-ções pessoais com pessoas bem-posicionadas re-vela uma fraqueza das instituições, verdadeiro pro-blema estrutural cuja superação não está à vista. Naperspectiva da ação imediata, que constitui o inte-resse da experiência discutida aqui, é claro que essadificuldade é incontornável e que é melhorreconhecê-la claramente, em particular quando elaé da ordem clientelista. Assim, em uma gincana dejovens organizada por Ada para unir os habitantes e,ao mesmo tempo, recolher fundos para a creche,um personagem político aceitou patrocinar o even-to, desde que todos os participantes usassem umacamiseta com dizeres elogiosos a sua pessoa.

Para superar essa relação clientelista é pre-ciso que os habitantes tenham outras opções deapoio a suas iniciativas. É o caso quando anima-dores externos disponibilizam suas relações pes-soais e profissionais no mundo �“das elites�” aoslíderes populares para favorecer esse apoio ex-terno. Embora se trate de um fato relativamentenovo no Brasil, existe um conjunto de parceirospossíveis na sociedade civil, que se posicionam

deliberadamente fora da relação clientelista. Vistaa limitação dos recursos materiais e técnicos daspopulações pobres, essa ajuda externa é impor-tante em vários casos e pode significar a supera-ção das relações de dependência. Superar essasdificuldades sem estar obrigado a cair noclientelismo, pode significar crescimento da au-tonomia do indivíduo.

A iniciativa de intermediação feita pelo ani-mador é vital, sobretudo para as iniciativas queexigem financiamentos, pois ela é a garantia deque o dinheiro vai servir a �“boas causas�”. Se aautonomia não é a ação sem parceiros, ser autô-nomo, quando estamos em uma situação difí-cil, é saber buscar o bom parceiro; por isso, oanimador pode ser muito útil. Depois dos pri-meiros passos para a aproximação o animadorpode se afastar, pois as relações entre os habitan-tes e os �“padrinhos�”, uma vez iniciadas, têm gran-des chances de se aprofundar na ação conjunta.Foi o que aconteceu em Vila Verde e permitiu acontinuidade dos empreendimentos coletivos eo enfrentamento de novos desafios11 .

11 Ver NUNES, Débora. A construção deuma experiência de Economia Solidárianum bairro periférico de Salvador. BahiaAnálise & Dados, Salvador, SEI, v. 12, n.1, junho 2002.

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Considerando o quarto capítulo deste livrocomo uma reflexão que busca fazer um balanço daexperiência, eu gostaria de concluir com apenasum comentário sobre um problema com o qualme confrontei individualmente ao longo destaexperiência-piloto, mas cuja amplitude pareceultrapassar a experiência pessoal. Trata-se da idéiade cidadania que se quer transmitir às pessoas edo modelo de sociedade de que faz parte esse con-ceito. Todo este livro gira em torno da questão dacidadania, de sua construção através da participa-ção, cujos mecanismos devem ser aprendidos.Sonha-se e luta-se pela cidadania ampla e irrestritapara todos, pelo princípio de justiça social. Acre-ditamos que essa cidadania, esse conceito cons-truído durante dois milênios, originário da Gréciaantiga e passando pelas experiências revolucioná-rias inglesa, francesa e americana, ajudará as pes-soas a viver melhor.

A experiência de campo mostra, todavia,uma incongruência. A civilização que criou edesenvolveu o conceito de cidadania perdeumuito da alegria de viver que encontramos emVila Verde. Aqui, as pessoas manifestam sua sa-bedoria diante da vida pela sua gentileza natu-ral, sua simplicidade, sua abertura aos outros, oque geralmente significa relações humanas maisricas. Talvez tenha sido a necessidade de olharde frente para as privações que os tenha levadoa desenvolver o gosto pela festa, sabendo fazerum samba com uma caixa de fósforos; sabendo

aproveitar os bons momentos, o prazer do cor-po, a sua afetividade, enfim, a vida. Poderíamosqualificar tais atitudes como �“alienação positi-va�”, para dar um conceito racionalizado ao fatoobservado. Mas uma coisa é certa, as pessoassabem viver inteiramente os momentos de ale-gria �– não se queixam tanto de solidão, de an-gústias, de depressões, apesar das inumerá-veis dificuldades de sua vida cotidiana e da vio-lência crescente.

Não se trata aqui, longe disso, de fazer umaapologia da pobreza feliz, como outros fizeramda pobreza demente ou da pobreza revolucio-nária. Há apenas uma interrogação pessoal, fru-to de uma observação concreta e que poderiase tornar objeto de pesquisa. Essa interrogaçãoadquire pleno sentido se nós a aproximamosda denúncia feita muitas vezes por Max Weber,do estado de desencantamento do mundo; daatitude insensível, sobre a qual nos fala GeorgeSimmel, ou da condição pós-moderna, tratadapor François Lyotard. Essa mesma interroga-ção tem ainda o seu sentido enriquecido quan-do invocamos o fato de que nas sociedades ri-cas ou nos ambientes abastados o consumosempre crescente de antidepressivos revela omal-estar reinante.

É preciso perguntar o que as pessoas de VilaVerde ou de outros bairros têm realmente aaprender conosco, cidadãos plenamente integra-dos, mas freqüentemente incapazes de aprovei-

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tar, como eles, dos prazeres simples que a vidaoferece. A consciência ampliada que presumi-mos ter e a riqueza de escolhas possíveis na vidatêm um ônus, do qual as regras sociais muitomais estritas e a falta de tempo para viver sãoalguns dos componentes. Se a penúria despreo-cupada é sempre penúria e a falta de perspecti-vas pode ser vista por nós como angustiante, ésempre possível ver as coisas de um outro pon-to de vista.

Esse debate é uma armadilha no momen-to e, assim, o mais proveitoso talvez seja queum animador de processos participativos se dis-ponha a proceder a trocas e não a doações.Dessa forma, será muito interessante sabermosfazer essa troca, com o desejo de aprender oque realmente representa a cidadania e a felici-dade para as pessoas às quais queremos levar o

nosso sentido de cidadania e de bem-estar.Uma das conseqüências do processo aqui

descrito vem sendo a formação, pouco a pouco,de uma nova geração de animadores externospara agir nos bairros populares, num quadro dediálogo e parceria com os habitantes. Isso estásendo feito seja na Universidade, em cursos nosquais as idéias e práticas que fundamentaramesta experiência são analisadas e discutidas, sejamediante a ação da ONG REDE - Rede de Pro-fissionais Solidários pela Cidadania. Essa enti-dade vem atuando em vários bairros de Salva-dor e apóia as iniciativas já consolidadas dos ha-bitantes do Vila Verde, como a creche e a escolacomunitárias, além de empreender junto comeles novos desafios, desta vez ligados à geraçãode emprego e renda, com base nos princípiosda Economia Solidária.

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