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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu – 2 a 5/9/2014 1 Cinema Pop, Ostentação e Letramento Midiático em “Bling Ring” 1 Livia PEREIRA 2 Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB Thiago SOARES 3 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE Resumo O artigo propõe uma leitura crítica do filme Bling Ring: A Gangue de Hollywood, da diretora Sofia Coppola a partir de um debate sobre o estilo e a linguagem que a crítica cinematográfica classifica como pop, a ideia de uma cultura da ostentação das redes sociais e diante de um contexto do letramento midiático. Na obra, um grupo de adolescentes invade mansões de celebridades de Hollywood para roubarartigos de luxo e postar fotos em ambientes virtuais. É possível estabelecer uma discussão sobre a dupla vinculação da busca pela fama: aquela que se apropria de produtos das celebridades para tentar seruma celebridade. O texto questiona as benesses do letramento midiático, apontado por Henry Jenkins (2008), apontando a necessidade de um debate moral e ético nas redes sociais. Palavras-chave: cinema; cultura pop; redes sociais; ostentação; estilo. O que levaria adolescentes de classe média dos Estados Unidos a invadirem mansões de artistas famosos para roubar joias, roupas caras e artefatos de luxo? Esta pergunta parece ter “movido” a jornalista Nancy Jo Sales, que escreveu a reportagem "The Suspects Wore Louboutins" para a revista Vanity Fair, narrando a história de um grupo de adolescentes que entrava em casas de celebridades para furtar produtos de grife e dinheiro. Mansões de gente como Paris Hilton, Lindsay Lohan e Audrina Patridge foram saqueadas e os rapazes e moças furtavam de produtos Prada e Birkin a sapatos Louboutins. O destino? Fazer fotos e colocar na internet. Em outras palavras: ostentar. Também levavam os dólares que encontravam pelo caminho. A reportagem de Nancy Jo Sales chamou atenção da cineasta Sofia Coppola, diretora de “Virgens Suicidas” (1999) e “Encontros e Desencontros” (2003), que adquiriu os direitos 1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Cinema e Audiovisual, da Intercom Júnior X Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2 Estudante de Graduação 6º. semestre do Curso de Jornalismo da UFPB, email: [email protected]. 3 Orientador do trabalho. Professor do Curso de Jornalismo da UFPE, email: [email protected].

[PEREIRA, Livia; SOARES, Thiago] Cinema Pop, Ostentação e Letramento Midiático Em 'Bling Ring

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[PEREIRA, Livia; SOARES, Thiago] Cinema Pop, Ostentação e Letramento Midiático Em 'Bling Ring'

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  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Foz do Iguau 2 a 5/9/2014

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    Cinema Pop, Ostentao e Letramento Miditico em Bling Ring1

    Livia PEREIRA2

    Universidade Federal da Paraba, Joo Pessoa, PB

    Thiago SOARES3

    Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

    Resumo

    O artigo prope uma leitura crtica do filme Bling Ring: A Gangue de Hollywood, da diretora Sofia Coppola a partir de um debate sobre o estilo e a linguagem que a crtica

    cinematogrfica classifica como pop, a ideia de uma cultura da ostentao das redes sociais e diante de um contexto do letramento miditico. Na obra, um grupo de adolescentes invade

    manses de celebridades de Hollywood para roubar artigos de luxo e postar fotos em ambientes virtuais. possvel estabelecer uma discusso sobre a dupla vinculao da busca

    pela fama: aquela que se apropria de produtos das celebridades para tentar ser uma celebridade. O texto questiona as benesses do letramento miditico, apontado por Henry

    Jenkins (2008), apontando a necessidade de um debate moral e tico nas redes sociais.

    Palavras-chave: cinema; cultura pop; redes sociais; ostentao; estilo.

    O que levaria adolescentes de classe mdia dos Estados Unidos a invadirem manses

    de artistas famosos para roubar joias, roupas caras e artefatos de luxo? Esta pergunta parece

    ter movido a jornalista Nancy Jo Sales, que escreveu a reportagem "The Suspects Wore

    Louboutins" para a revista Vanity Fair, narrando a histria de um grupo de adolescentes que

    entrava em casas de celebridades para furtar produtos de grife e dinheiro. Manses de gente

    como Paris Hilton, Lindsay Lohan e Audrina Patridge foram saqueadas e os rapazes e moas

    furtavam de produtos Prada e Birkin a sapatos Louboutins. O destino? Fazer fotos e colocar

    na internet. Em outras palavras: ostentar. Tambm levavam os dlares que encontravam pelo

    caminho.

    A reportagem de Nancy Jo Sales chamou ateno da cineasta Sofia Coppola, diretora

    de Virgens Suicidas (1999) e Encontros e Desencontros (2003), que adquiriu os direitos

    1 Trabalho apresentado na Diviso Temtica Cinema e Audiovisual, da Intercom Jnior X Jornada de Iniciao

    Cientfica em Comunicao, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao 2 Estudante de Graduao 6. semestre do Curso de Jornalismo da UFPB, email: [email protected].

    3 Orientador do trabalho. Professor do Curso de Jornalismo da UFPE, email: [email protected].

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    autorais para levar ao cinema a histria. Da foi rodado o filme Bling Ring: A Gangue de

    Hollywood, uma obra de fico baseada em fatos reais narrados por Nancy Jo Sales em seu

    texto jornalstico. Este artigo uma tentativa de compreender duas questes que parecem

    emergir do filme Bling Ring: A Gangue de Hollywood: 1. a vinculao esttica de um

    cinema marcadamente classificado pela crtica como pop e 2. o debate em torno do

    letramento miditico como aporte para compreenso de uma pedagogia da ostentao na

    cibercultura e, mais detidamente, nas redes sociais. Comeamos tentando entender como a

    crtica de cinema trouxe tona opinies sobre Bling Ring, muitas vezes, identificando

    marcas estilsticas de Sofia Coppola e, de maneira contundente, classificando a obra como

    marcadamente pop.

    Sofia Coppola, uma cineasta pop

    Como comum na crtica cinematogrfica, grande parte das identificaes de marcas

    estilsticas de uma obra so atribudas aos diretores. O diretor , frequentemente, atrelado

    tanto ao sucesso quanto ao fracasso de um filme. Para entender Bling Ring: A Gangue de

    Hollywood, preciso, antes, compreender a sua diretora: Sofia Coppola. Filha do diretor

    Francis Ford Coppola, Sofia estreia na direo de longas-metragens em 1999, em As

    Virgens Suicidas, baseado no livro homnimo de Jeffrey Eugenides. Em 2003, realiza seu

    filme mais bem recebido pela crtica, Encontros e Desencontros, pelo qual tambm ganhou

    o Oscar de melhor roteiro original. Executa dois filmes que dividiram opinies (Maria

    Antonieta, de 2006, e Em algum lugar, em 2010), para, s em seguida, dirigir Bling Ring:

    A Gangue de Hollywood. sobre Sofia Coppola e no sobre o filme, necessariamente

    que, grande parte de crtica se refere.

    O crtico de cinema Luiz Zanin, que mantm um espao de crticas no Blog do

    Estado (Estado de So Paulo) traz tona no ttulo de seu texto, a referncia aberta diretora:

    Bling Ring um exemplo perfeito do cinema soft e alusivo de Sofia Coppola. Por cinema

    soft, ele descreve como uma obra que se mantm na superfcie, sem adentrar a questes

    mais densas dos personagens e das narrativas. Ao tratar do termo alusivo, tem-se a inteno

    de evidenciar que se trata de uma produo que parece fazer parte de uma linhagem esttica

    caracterstica da diretora. Assim refere-se o crtico Sofia Coppola e a seu filme:

    livia.marinhoHighlight

    livia.marinhoSticky NoteIsso por causa da poltica de autores, miga

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    Como crnica de costumes, Bling Ring interessante. Mas, como acontece com frequncia no cinema de Sofia, ela no mostra estmago para

    descer mais fundo nos problemas. No uma mergulhadora. s vezes, esse

    nado de superfcie funciona, como em Encontros e Desencontros, talvez seu melhor trabalho. Outra, nos deixa com uma sensao de

    desapontamento ao final, como o caso deste Bling Ring, que em mos mais ambiciosas poderia ser um raio-X poderoso da alienao contempornea, mas com Sofia revela-se apenas uma interessante crnica

    de costumes, e pouco mais. (ZANIN, 2013, p. 1)

    Percebe-se no texto de Luiz Zanin um certo ressentimento com o que chama de

    crnica de costumes. Este termo usado de forma negativa, na opinio do crtico, que acha

    que a diretora no mostra estmago para descer mais fundo nos problemas. H, tambm,

    uma reivindicao, por parte do autor do texto, de que Bling Ring pudesse ser um raio-X

    poderoso da alienao contempornea e ele relata, inclusive, ter ficado desapontado ao final

    da narrativa.

    A referncia superficialidade na obra de Sofia Coppola vista no como sintoma de

    desapontamento ou falta de densidade, mas a partir de uma marca estilstica que mescla

    contedo e forma. o que relata o crtico de cinema Jlio Cavani, no jornal Dirio de

    Pernambuco. Na obra da cineasta [Sofia Coppola], a embalagem sempre confunde-se com

    o contedo e o que poderia ser visto como superficial apenas torna tudo mais aprofundado

    (CAVANI, 2013, p. 1). H aqui, uma visvel inverso dos valores propostos por Luiz Zanin:

    se para o primeiro, ser superficial era motivo de desapontamento e ausncia de densidade;

    para o segundo, a superficialidade uma marca estilstica do cinema de Sofia Coppola que

    mescla embalagem e contedo, deixando tudo mais aprofundado. Ainda debatendo o

    estilo da direo, h um destacamento feito por Cavani:

    trata-se de um filme de Sofia Coppola, diretora diretamente ligada cultura

    do videoclipe e da moda. Tudo apresentado com uma linguagem

    altamente pop, que deve fazer sucesso entre adolescentes, com direto presena de Emma Watson (Harry Potter) entre as protagonistas. (CAVANI, 2013, p.1)

    Classifica-se a trajetria de Sofia Coppola como diretamente ligada cultura do

    videoclipe e da moda e sua linguagem como altamente pop e que deve fazer sucesso

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    entre adolescentes. Neste sentido, percebe-se que comum a crtica de cinema trazer

    elementos de ordem biogrfica para acionar questes estilsticas. A relao de Sofia Coppola

    com a cultura do videoclipe e da moda, como se refere o crtico, pode estar relacionada ao

    relacionamento amoroso da cineasta com o msico Thomas Mars, da banda de indie rock

    Phoenix. Sabe-se que eles se conheceram quando o msico concedeu uma de suas msicas

    para o filme Encontros e Desencontros. Como figura pblica que , as relaes de amizade

    e amor de Sofia Coppola, naturalmente afetam a percepo pblica sobre sua obra. Por isso,

    o fato de namorar msicos (Sofia j teve tambm um relacionamento com Anthony Kiedis,

    vocalista da banda Red Hot Chili Peppers) e por circular por ambientes da moda (ela

    frequenta semanas de moda e desfiles de importantes designers e criadores), posicionam

    Sofia Coppola como uma diretora afeita cultura do videoclipe e da moda. Tem-se aqui

    um claro (re)enquadramento da figura do cineasta que sai daquele universo mtico de criao

    e isolamento romnticos e passa a ser uma figura mundana, que circula por festas, ambientes

    da noite e acaba se tornando to celebridade quanto os prprios atores que participam de seus

    filmes. Parte desta caracterstica de Sofia Coppola parece posicionar a cineasta como uma

    diretora pop, fazendo emergir uma problemtica questo, a da linguagem pop no cinema.

    O filme cinema puro, mas usa um vocabulrio visual baseado em fotos de

    Facebook, cmeras de segurana e webcams. O ritmo da montagem

    associado ao uso da trilha sonora, entre outros elementos narrativos, deixa

    o resultado 100% cinematogrfico. (CAVANI, 2013, p, 1)

    Percebe-se um delineamento de linguagem que atrela ritmo, montagem e trilha

    sonora como caractersticas pop, neste caso, evidenciando uma aproximao de Sofia

    Coppola com a cultura musical como um tempero de seus filmes. Alis, a relao do cinema

    com a msica pop parece estar no epicentro do que se classifica como cinema pop. Grande

    parte das referncias e classificaes de um filme ser pop est ligado ao fato de destacada

    presena de uma trilha sonora com canes, presena de artistas da msica cantando tais

    faixas e aproximao com a esttica mais clssica e hegemnica do videoclipe. No toa,

    obras como Os Embalos de Sbado Noite (1977), com msica dos Bee Gees; Pulp

    Fiction Tempo de Violncia (1994), com faixas que traduzem o surf rock e O Guarda-

    livia.marinhoHighlight

    livia.marinhoHighlight

    livia.marinhoHighlight

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    Costas (1992), com msicas da cantora Whitney Houston, so comumente classificadas

    como pop, a nosso ver, em grande parte, por aproximaes com o universo da msica.

    No caso da diretora Sofia Coppola, a msica tambm sempre se fez presente nos

    filmes, inclusive, tendo um papel de destacamento em funo das trilhas sonoras

    descoladas remetendo a artistas pouco conhecidos do grande pblico. Logo na sua estreia

    em longas-metragens, a cineasta utilizou o duo de msica francesa pop Air para criar a trilha

    sonora de As Virgens Suicidas. Em Encontros e Desencontros, alm de faixas do

    Phoenix, h referncias a canes clssicas dos anos 80, como More Than This, do Roxy

    Music, cantada num karaok em Tquio. Em Maria Antonieta, Sofia Coppola chocou parte

    da crtica francesa ao colocar a personagem histrica da Frana usando tnis e com uma trilha

    sonora que passeava pelo rock e pelo pop. Em Bling Ring, mais uma aproximao da

    cineasta com a msica pop, como destacada na crtica de Marcelo Hessel:

    Crianas ricas com nada alm de amigos falsos, canta Frank Ocean na cano que encerra Bling Ring A Gangue de Hollywood, o filme de Sofia Coppola sobre crianas ricas com amigos falsos. uma escolha

    bastante literal para os crditos finais, mas a figura de Ocean, que hoje

    representa o oposto do gangsta no rap dos EUA, interessante para contrapor a relao que as personagens do filme tm com esse subgnero

    musical e com o gangsterismo americano em geral. A imagem que todos

    tm do gangsta rap so os videoclipes cheios de manses, carres, mulheres de biquni e correntes de ouro, e o ideal de vida das patricinhas de Bling Ring no muito diferente. (HESSEL, 2013, p. 1)

    H, no texto em questo, uma referncia esttica que estabelece um dilogo do filme

    de Sofia Coppola com um gnero musical, o gangsta rap, ou um tipo de rap mais pesado,

    masculino, ligeiramente misgino e de grande popularidade nos Estados Unidos. Para retratar

    o universo ftil e superficial retratado na obra, a diretora recorre a referncias do universo da

    msica pop neste caso, a imagtica de um gnero musical para compor o quadro de sua

    obra. este universo, povoado de palavres e de imagens de celebridades que vivem em

    funo do corpo, que Sofia Coppola busca referncia. Como percebe o crtico Jlio Cavani,

    h evidncias, na obra, de um tipo de moral circunscrito a um estilo de vida disseminado pela

    cultura do gangsta rap e, consequentemente, da ostentao.

    livia.marinhoSticky Notetotalmente mesmo, miga

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    Em Bling ring, as garotas da gangue vulgarizam a si mesmas. Apesar de

    terem bom acesso educao (no roubam por necessidade, mas por

    prazer), elas chamam umas s outras de bitches (cadelas, putas), gostam de sempre mostrar as pernas (uma delas admite que no tem uma

    saia ou vestido que chegue at o joelho), esto seriamente preocupadas com

    o tamanho da bunda em determinada roupa e s demonstram vontade de

    envolver-se com atores famosos ou traficantes. Essa questo da banalizao da sexualidade complementa uma caracterstica que est presente em toda

    a obra de Sofia Coppola. Todos os filmes da cineasta so marcados por

    situaes de travao sexual. Filha de Francis Ford Coppola, a diretora cresceu em um ambiente que sempre confrontava os rgidos valores

    moralistas catlicos italianos com a liberdade da contracultura norte-

    americana e do mundo dos artistas. (CAVANI, 2013, p. 1)

    Mais uma vez, a referncia biografia da cineasta vem tona, fazendo um

    contraponto ao universo retratado no filme. Neste sentido, Luiz Zanin destaca o papel de

    observadora de Sofia Coppola na obra:

    Sofia procura manter tom neutro ao mostrar o grupo. Apenas observa aqueles rapazes e garotas bem nutridos que costumamos ver nos filmes

    highschool americanos. Autoconfiantes (ao menos em aparncia), meio

    desligados do mundo, interessados em roupas de marca, namoricos, baladas, vivem plugados fulltime em seus aparelhinhos eletrnicos. A

    diferena, aqui, que o grupo simplesmente passa ao ato como se diz em psicanlise. No apenas cobia, mas se apropria daquilo que deseja.

    (ZANIN, 2013, p. 1)

    Sociedade do espetculo e cultura da ostentao

    H um tipo de referncia no filme da ordem da apropriao: furtando celebridades,

    diz uma das envolvidas, no fundo roubou-lhes a fama e tornou-se ela prpria uma dessas

    figuras da mdia contempornea o que faz com que o crtico de cinema, inclusive, cite o

    clssico texto A Sociedade do Espetculo, de Guy Debord. Estamos em plena era do

    espetculo (o pobre Guy Debord, que forjou o termo em 1968 no poderia imaginar o que

    viria depois). Ser conhecido o que conta. (ZANIN, 2013, p. 1)

    A espetacularizao do cotidiano est presente no que podemos chamar de uma

    cultura da ostentao em redes sociais, em que indivduos compartilham momentos com a

    finalidade de deixar vestgios de sua vivncia. Um dos principais artifcios da cultura da

    ostentao o selfie, ou a fotografia feita com celular em que indivduos clicam, em geral, o

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    rosto, em poses que tentam traduzir um senso de beleza. O selfie (Fig.1) aparece em Bling

    Ring sobretudo nas cenas seguintes aos roubos das casas, quando os jovens vo festas a

    fim de exibir os novos "pertences". A necessidade de exibio no se restringe, entretanto,

    ao ambiente fsico da festa - quem no est no local tambm precisa tomar conhecimento de

    quem foi, o que vestia, o que bebia, etc. - e o selfie vem como meio de propagar essas

    informaes nas redes sociais. A finalidade, ao menos dos jovens em Bling Ring, de

    mostrar o que eles - e no os amigos do bairro ou escola - podem fazer e causar, dessa forma,

    inveja nos outros.

    Figura 1 Selfie em Bling Ring

    O compartilhamento em redes sociais, na obra, ocorre atravs, sobretudo do

    Facebook. Em determinado momento, o telespectador levado por um "passeio" pelas

    pginas das redes dos jovens e somos bombardeados pelo que realmente importa nesse estilo

    de vida claramente encenado: as mtricas do sucesso ciberntico, ou seja, as curtidas, os

    comentrios e o buzz gerado entre sua rede de amigos. Num determinado momento, vemos

    uma das personagens utilizando um dos produtos dos furtos da manso da socialite Paris

    Hilton: um telefone rosa (Fig.2) que se conecta ao celular e cria uma atmosfera vintage (retr)

    para a fotografia.

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    Figura 2 Telefone rosa roubado da manso de Paris Hilton

    Num outro momento de Bling Ring, as personagens do filme performatizam a

    duck face (ou a cara de pato), que consta de juntar os lbios (Fig.3) e posicionar o rosto

    na descendente, de forma a criar um alongamento da face e uma certa atitude no encarar a

    cmera fotogrfica. A duck face cristalizou-se como uma das mais usuais expresses

    performticas na fotografia em redes sociais, justamente por seu carter de enfrentamento da

    cmera e, portanto, do espectador.

    Figura 3 Duck face das personagens: atitude na cmera

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    Fico ancorada na realidade

    Bling Ring: A gangue de Hollywood um filme de fico - no um documentrio

    - mas que pode ser descrito como uma espcie de instantneo da realidade. Por ser baseado

    em uma reportagem da revista Vanity Fair, dialoga diretamente com o que se pode chamar

    de zeitgeist, ou, o esprito do tempo, de uma poca. uma tentativa de captar um fenmeno

    cronologicamente atual, ou seja, o processo contemporneo de banalizao da vida ntima e

    coletiva em nome de sonhos descartveis e efmeros. Neste sentido, parte do que visto no

    filme pode ser debatido luz de apontamentos do real e dos procedimentos utilizados pelos

    personagens. Sabe-se que a histria de Bling Ring versa sobre jovens que invadiram

    manses de famosos em Hollywood para furtar itens de luxo. Cabe questionar como eles

    procediam para descobrir onde moram as celebridades, como podem fazer para entrar na

    vida delas. O crtico de cinema Rubens Edwald Filho vai buscar na referncia no estilo de

    vida de Los Angeles, cidade norte-americana, justificativa para o espanto em torno das aes

    retratadas no filme. Quem no conhece Los Angeles no se espante porque realmente do

    jeito que mostra o filme. Manses sem nenhuma segurana, sem muro, quase sempre com

    portas sem serem fechadas a chave (mas h alarme e vigilncia diurna que o filme ignora).

    (EDWALD, 2013, p. 1)

    Neste caso, tem-se um grupo de jovens que se conectava pela internet e acessava

    informaes, sobretudo nas redes sociais. Para discutir esta expertise contempornea de

    descobrir informaes na internet, no uso popular de termo stalkear, que pode ser definido

    como o ato de vigiar de forma exacerbada algum, com um motivo, em geral, obsessivo,

    possvel debatermos que a vivncia com a internet gera novas partituras pedaggicas. Ou

    seja, possvel aprender novas expertises no cotidiano virtual.

    Henry Jenkins (2008), em seu livro A Cultura da Convergncia, trata a ideia de

    mdia literacy ou letramento miditico, para falar de fenmenos em que usurios da

    internet aprendem com tutoriais na rede. Hoje podemos afirmar que nos tornamos

    dependentes da tecnologia. O uso de smartphones, computadores, carros, reprodutores de

    udio e tablets, se fundiu ao nosso cotidiano, como parte natural de nossas vidas. Em poca

    de convergncia de mdias, inteligncia coletiva e cultura participativa, como diz Jenkins, a

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    tecnologia se tornou indispensvel e responsvel pelo aprimoramento das mais diversas reas,

    como o acesso ao conhecimento.

    A tecnologia mudou a orientao da educao de forma que o modelo de que

    professores e acadmicos seriam os detentores absolutos do conhecimento dentro das

    instituies de ensino entrou em falncia. H, nessa cultura de convergncia, a criao de um

    novo tipo de consumidor de informaes e uma migrao dos antigos meios de comunicao

    para se adequarem aos novos modelos. Os consumidores esto utilizando novas tecnologias

    miditicas para se envolverem com um contedo dos velhos meios de comunicao,

    encarando a Internet como um veculo para aes coletivas solues de problemas,

    deliberao pblica e criatividade alternativa. (JENKINS, p. 235, 2008)

    Para o autor, a participao dos consumidores na cultura e na construo do

    conhecimento tornou esses elementos acessveis a qualquer um atravs de meios de

    comunicao tecnolgicos, uma vez que a inexistncia de gatekeepers informacionais

    propicia a cultura participativa, onde produtores e consumidores no possuem lugares

    distintos. A gerao atual est reivindicando o direito de participar da cultura, sob suas

    prprias condies, quando e onde desejarem (JENKINS, p. 236, 2008).

    O pesquisador aborda a atual configurao regida pela tecnologia informacional, como

    uma luta sobre o letramento; uma luta pelo direito de possuir, produzir e repassar o

    conhecimento. De que habilidades as crianas precisam para se tornar participantes plenos

    da cultura de convergncia?, Jenkins se pergunta e, na tessitura do conceito de letramento

    miditico, ele expe os exemplos dos fs e o relacionamento destes com as obras originais

    atravs das fices de fs, do termo em ingls fan fictions4.

    Jenkins ento ressalta que esta experincia um tipo de domnio intelectual que s se

    tem por meio da participao ativa, mas que ao mesmo tempo, brincar de interpretar

    papis se torna fonte de inspirao para se expandam outras habilidades de letramento. O

    extraordinrio nesse processo, no entanto, que ele ocorre fora da sala de aula e sem qualquer

    4 Como uma comunidade formada por afinidades e interesses pessoais, o universo ficcional criado na Internet

    se torna muito mais atraente para as crianas do que uma sala de aula. A participao ativa na construo de

    um universo, o compartilhamento de informaes teis para seus semelhantes e o interesse genuno pelo

    assunto permitem que estas pessoas reivindiquem um espao prprio dentro das narrativas originais como no caso das fan fictions, como personagens reais das histrias em que se baseiam.

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    controle adulto direto. Crianas esto ensinando crianas o que elas precisam saber para se

    tornarem participantes plenas da cultura de convergncia. (JENKINS, 2008, p. 249).

    James Paul Gee, da Escola de Educao Madison, da Universidade de Wisonsin, chama essas culturas informacionais de aprendizado de

    espaos de afinidade [...]. Gee afirma que os espaos de afinidade oferecem poderosas oportunidades para o aprendizado porque so

    sustentados por empreendimentos comuns, criando pontes que unem

    as diferenas de idade, classe, raa, sexo e nvel educacional; porque

    as pessoas podem participar de diversas formas, de acordo com suas

    habilidades e seus interesses; porque dependem da instruo de seus

    pares, de igual para igual, com cada participante constantemente

    motivado a adquirir novos conhecimentos ou reafirmar suas

    habilidades existentes; porque, enfim, esses espaos de afinidades

    permitem a cada participante sentir-se um expert, ao mesmo tempo

    em que recorrem expertise de outros. (JENKINS, 2008, p. 249-250).

    No filme Bling Ring, percebe-se que os personagens aprendem a entrar nas manses

    atravs do contato com a internet. Eles sabem do cotidiano das celebridades que tanto

    admiram atravs das redes sociais e do contato com os sites noticiosos. De maneira especfica,

    descobrem atravs de vestgios deixados pelos artistas-clebres os perodos em que as

    manses, por exemplo, estaro desocupadas (Fig.4). E parte para as invases com

    informaes que so colhidas na internet.

    Figura 4 Invaso das manses: conhecimento por causa da internet

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    Em contrapartida aos incentivadores da cultura participativa, os crticos

    ultraconservadores se preocupam com o fato das crianas estarem copiando uma mdia que

    j existe, sem criar nada original, alm de alertarem para a possibilidade de as experincias

    atraentes da cultura popular possam se sobrepor a experincias do mundo real, at que as

    crianas no possam mais distinguir entre fato e fantasia (2008, p 267). O autor rebate

    dizendo que

    deve-se pensar nessas apropriaes como um tipo de aprendizagem. Historicamente, jovens artistas sempre aprenderam com os mestres

    consagrados [...] antes de desenvolver o prprio estilo e prpria

    tcnica. [...] Erigir os primeiros esforos a partir de produtos culturais

    existentes permite-lhes concentrar sua energia em outras coisas,

    dominar a arte, aperfeioar as habilidades e comunicar suas ideias. (JENKINS, 2008, p. 255).

    Jenkins conclui suas observaes acerca desse novo modelo de aprendizagem citando

    o pesquisador James Paul Gee, que afirma esta ser uma trajetria pessoal e singular num

    espao complexo de oportunidades [...] e uma jornada social, medida que se compartilham

    aspectos dessa trajetria com outros (apud JENKINS, 2008, p. 257).

    As crianas so participantes ativas nessa nova paisagem miditica, encontrando a prpria voz por meio da participao em comunidades

    de fs, declarando seus prprios direitos, mesmo diante de entidades

    poderosas e, s vezes, sem o conhecimento dos pais, se elas sentem

    que esto agindo corretamente. Ao mesmo tempo, por meio da

    participao, as crianas esto traando novas estratgias para lidar

    com a globalizao, com as batalhas em torno da propriedade

    intelectual e com os conglomerados de mdia. [...] Devemos

    interpret-las como um espao cada vez mais amplo, onde as crianas

    ensinam umas s outras e onde, se abrissem os olhos, os adultos

    poderiam aprender muito. (JENKINS, 2008, p. 284).

    A nossa perspectiva com o debate sobre Bling Ring mostrar que sim, o letramento

    miditico traz uma perspectiva extremamente benfica para a cultura participativa, mas

    tambm evidencia os males do excesso de informao e os usos contraventores deste tipo de

    prtica.

    Apontando questes

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Foz do Iguau 2 a 5/9/2014

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    Bling Ring: A Gangue de Hollywood um filme que debate questes

    contemporneas como a linguagem pop no cinema, as marcas estilsticas de uma diretora

    ligada a um universo da moda e do videoclipe e, sobretudo, uma cultura da ostentao nas

    redes sociais. Aponta para um oportuno debate em torno das estratgias de visibilidade usadas

    para angariar mais curtidas e, tambm, sobre as performances corporais que so acionadas.

    Neste sentido, faz-se necessrio um debate ainda mais aprofundado sobre o selfie e as formas

    de exibio do corpo numa cultura de alta visibilidade.

    A obra encena uma discusso sobre o letramento miditico expondo os efeitos nocivos

    desta prtica, ao contrrio do que autores como Henry Jenkins empreendem. A perspectiva

    do filme que o aprendizado na internet gera prticas ligadas contraveno e ao efeito de

    amoralidade questionando o status excessivamente positivo como relatado pelo autor de

    Cultura da Convergncia. Atrela-se um debate moral e tico sobre as apropriaes e lgicas

    da vivncia virtual bem como as normas de conduta em redes sociais.

    Referncias DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetculo. 16.ed. So Paulo: Perspectiva, 1998.

    CAVANI, Jlio. Realidade de cinema no novo filme de Sofia Coppola. Disponvel em:

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    JENKINS, Henry. Cultura de Convergncia. So Paulo: Aleph, 2008.

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    SOARES, Thiago. Cultura Pop: Interfaces Tericas, Abordagens Possveis. Disponvel em: . Acesso em: 3.jul.

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    ZANIN, Luiz. Bling Ring: O cinema de superfcie de Sofia Coppola. Disponvel em:

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