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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Jaíne Cintra

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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E o palhaço o que é? - Novas adaptaçõesrevisam a obra de Hermilo Borba Filho

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EXPEDIENTE

SUMÁRIO

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EDITORIAL

O Pernambuco circula, nesta edição, com dois temas que provocam debate ereflexão: o resultado de uma pesquisa que aponta os locais de encontros de gru-pos urbanos na da Boa Vista, bairro que ainda guarda o cheiro e o sabor de umaaristocracia pernambucana que sofre alterações significativas. A matéria deCarolina Leão mostra o que vem mudando naquela área, em lugares os mais diver-sos, antes ocupados por normalistas e funcionários públicos.

Não menos interessante é a matéria de Ivana Moura sobre os noventa anos deHermilo Borba Filho, um dos intelectuais mais respeitados de Pernambuco, múltiploem seus romances, novelas, contos, além de uma atividade desde sempre crescentee importante no teatro. Criador do Teatro Popular do Nordeste - TPN -, que revo-lucionou a cena pernambucana, fez incursões inovadoras no mamulengo, mani-festação popular que também levou para a sua obra de contista.

Aliás, o trabalho intelectual de Hermilo também foi levado para o cadernoSaber +, sob a responsabilidade da jornalista Marilene Mendes, onde escritores eartistas debatem a revolucionária atividade, ora como político, ora como ence-nador, sempre deixando a sua marca de vanguarda. Hermilo trouxe para o roman-ce pernambucano os temas mais controversos, como a política e o sexo, de umamaneira despojada e verdadeira.

Para homenagear os noventa anos do criador de "Um cavaleiro da segundadecadência", este jornal mobilizou a sua equipe de redatores e repórteres, esca-vando os seus baús e excentricidades fotográficas, sempre com a colaboração deLeda Alves, responsável pela preservação da memória deste pernambucano quereinventou o Estado, com a sua inteligência e com a sua criação cada vez maisviva e presente.

"O riso demolidor da ironia" é a matéria assinada por Carol Almeida, na terceirapágina, mostrando que ativistas encontram formas cada vez mais inusitadas parase proteger contra a ordem vigente. No texto, ela assegura que "não levar umasituação a sério quando ela trivialmente demanda por isso muda radicalmente aordem das coisas".

Na página doze, o leitor encontrará um precioso e inédito texto de IvanaArruda Leite, em que ela se debruça sobre aquela atividade que considera funda-mental e básica na vida: a arte de escrever. De escrever sempre e com obsessão. Otexto é enriquecido pela diagramação de Jaíne Cintra, aliás criadora da primeirapágina, que mais do que um trabalho de diagramadora e de design, é com certezauma obra de arte.

Eduardo Sol se debruça surpreendentemente sobre a obra de Cyro dos Anjos,um autor clássico da literatura brasileira, mas que não mereceu a consagraçãopública, apesar da sua riqueza de criador. "O Amanuense Basílio", seu romancemais importante, tem merecido constantes estudos universitários, com amplarepercussão na academia. Num texto rico de sugestões e seguro na redação,Eduardo procura examinar as conquistas literárias do mestre mineiro.

E atenção para a Fennart, destacada na página onze, com matéria assinada porMarilene Mendes, sob o título "A reinvenção dos mundos", e na qual se analisa,sobretudo, o aproveitamento de material reciclado para a construção da obra dearte, e se anuncia a riqueza dos Quilombolas. Tudo isso numa edição recheada deinusitadas páginas cheias de colorido e invenção.

Boa [email protected]

O riso demolidor da ironia - Novo ativismo ensi-na a trocar armas por flores

O ar que você respira - Algumas das maisfamosas separações que marcaram a história damúsica pop

Em busca do nono chope - O clássico esquecidode Cyro dos Anjos completa setenta anos

Flocos, napolitano, morango... - Pesquisadoraanalisa como shopping do centro do Recifecomporta as mais variadas identidades

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VICE-GOVERNADOR

JJooããoo LLyyrraa NNeettooSECRETÁRIO DA CASA CIVIL

RRiiccaarrddoo LLeeiittããoo

EQUIPE DE PRODUÇÃO

DDéébboorraa LLoobboo,, EElliisseeuu BBaarrbboossaa,, JJoosseellmmaa FFiirrmmiinnoo,, LLííggiiaa RRééggiiss,, RRoobbeerrttoo BBaannddeeiirraa ee AAlluuííssiioo RRiiccaarrddoo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

Companhia Editora de Pernambuco -CCEPERua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

TRATAMENTO DE IMAGEM

SSeebbaassttiiããoo CCoorrrrêêaaREVISÃO

GGiillssoonn OOlliivveeiirraa

DIRETOR DE GESTÃO

BBrrááuulliioo MMeennddoonnççaa MMeenneesseess DIRETOR INDUSTRIAL

RReeggiinnaallddoo BBeezzeerrrraa DDuuaarrtteeGESTOR GRÁFICO

JJúúlliioo GGoonnççaallvveess

Inédito - Ivana Arruda Leite descreve osdetalhes da sua obsessão pela escrita

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A reinvenção dos mundos -A Fenneartaponta as mudanças da arte popularno estado

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A vanguarda vem de longe - Gonzaga Leal esua MPB fascinada pelo passado

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Play - O uso de trailers como estratégia de divulgação nas artes plásticas

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PRESIDENTE

FFlláávviioo CChhaavveess

EDITOR EXECUTIVO

SScchhnneeiiddeerr CCaarrppeeggggiiaannii

GOVERNADOR DO ESTADO

EEdduuaarrddoo CCaammppooss

EDIÇÃO DE ARTE

JJaaíínnee CCiinnttrraa

EDITOR

RRaaiimmuunnddoo CCaarrrreerroo

SECRETÁRIO GRÁFICO

GGiillbbeerrttoo SSiillvvaa

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Nova reforma ortográfica”. Você parti-pará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

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Comportamento

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como se você pedisse foie gras para um garçom que vai anotar o pedido e voltar mais tarde com umpato de borracha. Daqueles de banheira. Ou como se na hora de propor alguém em casamento, a pes-

soa engula a aliança. De propósito. A humanidade se acostumou desde sempre a agir com coerência entreo pedido da mesa e a produção da cozinha, entre uma declaração de amor e a aliança na mão. E de repente,tudo começa a ficar esquisito demais quando o mundo clama para que as pessoas gritem indignação e, emlugar disso, elas ergam alguns pompons e dancem uma coreografia de cheerleader para falar mal da Guerrado Iraque. A mensagem é sempre uma só: para levar o mundo a sério, é preciso ironia e, sobretudo, umacâmera por perto. Porque para a mídia de massa, protestar com panfletos e pedras só pode mesmo legiti-mar a seriedade de quem está do outro lado.

Não levar uma situação a sério quando ela trivialmente demanda por isso muda radicalmente a ordemdas coisas. É com base nessa idéia que se molda um novo ativismo, criado a partir de dois preceitos bem sim-ples: chamar muita atenção e, digamos, "tirar onda". Não há ciência que melhor saiba fazer isso do que apublicidade. Nos preceitos da propaganda a máxima de que toda ação leva a uma reação serve para aten-der ao produto ou serviço que se tenta vender. O ativismo deixa então de ser o lugar apenas da reação e passaa criar artifícios de sedução próprios, que se guiam não mais pela reação a ações políticas ou econômicas,mas sim pela ação dentro de uma sociedade alienada. Como? Fazendo cenas de cinema, servindo chás datarde ou, como já foi dito, jogando o pompom pra cima e pra baixo. Para vender uma idéia ou, quem sabe,uma ideologia, vale tudo.

Afinal de contas, quando o G8 se reuniu no começo de junho, a coisa mais divertida de assistir nos tele-jornais foi a espetacular perseguição que o barcão da polícia alemã fez atrás dos 11 barquinhos doGreenpeace. Tratamento para as vítimas de aids na África? Novas relações com economias emergentes? Ostelespectadores bocejam, Homer Simpson dorme sobre sua lata de cerveja. A perseguição no melhor estiloJames Bond rendeu boas imagens e, por isso, mereceu seu lugar de honra nas emissoras de TV. A mensagemque ficou, embora estivesse claro que a ação do Greenpeace era ligada às questões do aquecimento global,é a de que aqueles jovens souberam chamar a atenção do mundo sem precisar levantar placas na rua. Nãoera James Bond, era o Greenpeace. Não era Goldfinger, era o G8... levando um banho de água fria.

O caso do chá da tarde é ainda mais expressivo. Surgiu no final dos anos 80 e hoje, com You Tube eMySpace, se transformou em uma entidade. Fala-se aqui das Raging Grannies, algo como "vovozinhasraivosas". Hoje, elas são grupos de mulheres mais velhas, geralmente vovós, cujo princípio é tirar proveito doprotótipo alienado que todos nós fazemos dessa pessoa que supostamente vive em função de um tempoque já foi. Nos Estados Unidos e no Canadá, elas vão às ruas exageradamente vestidas de vovós e cantamcomo vovós. Mas as músicas, melodias que costumam ser familiares ao repertório de qualquer um, pedemo impeachment de Bush, denunciam os maus-tratos com as vítimas do furacão Katrina e, no meio de todoesse dó-re-mi, elas entoam o refrão: "Tragam nossos soldados de volta." As Raging Grannies vieram cozinharo Lobo Mau e servi-lo com biscoitos e erva doce.

O modelo protesto-perfomance é idêntico ao trabalho de outro grupo que, assim como as RagingGrannies, nasceu em um contexto norte-americano em que fica difícil ganhar 15 minutos de fama sem algumrecurso cênico de sedução (novamente a publicidade). As Radical Cheerleaders, como elas fazem questão deesclarecer, fazem "ativismo de pompom". Algumas de suas performances ganharam destaque na mídia norte-americana justamente por "renderem" aos jornalistas um texto menos formal. Aliás, grupos ativistas – ou indi-víduos agindo por conta própria – trabalham sempre com o pressuposto da pauta jornalística, dos níveis deinteresse que aquela performance pode provocar em um editor de redação e, particularmente, no repórterde rua à procura de uma imagem interessante (entenda-se: estereotipada).

É claro que a idéia não é nova. No sempre lembrado maio de 68 em Paris, estudantes e intelectuais sou-beram ganhar a mídia a partir dos famosos slogans pintados pela cidade. Há quem chame isso de "mídia táti-ca", uma expressão que surgiu no começo dos anos 90 e lida basicamente com o conceito de um ativismocriado com a consciência das representações que a opinião pública faz de grupos sociais. Tática ou não, éfato que trata-se de um movimento mais espontâneo do que coordenado. Mesmo grupos gigantes – e cheiode hierarquias e problemas "capitalistas" como o Greenpeace – terminam respondendo a estímulos de umaera que trata a informação como entretenimento e a notícia, muitas vezes, como trailer de cinema.

Ativismo pode ser, sim, um artigo de consumo. Melhor ilustração disso está no artista e ativista londrinoBanksy, o autor da imagem que ilustra esta página. Em um dos vídeos de sua "Paranoid Pictures", vê-se oartista grafitando em um outdoor branco: "O prazer de nada estar sendo vendido". A não ser uma idéia.

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Carol Almeida

Ativistas encontram formas cada vez mais inusitadas paraprotestar contra a ordem vigente

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A volta do The Police, após histórias de ódio absoluto entre seus integrantes,nos leva à pergunta: qual o preço de um retorno?

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iferente de uma "sensação agradável, que se experimenta por acaso", o amoré uma arte, segundo Erich Fromm. Isso significa que exige esforço e conheci-

mento. Se amar é uma arte, e isto já parece ser complicado o suficiente, imagine oquanto pior não deve ser conciliar à arte de amar a arte de fazer arte. A história damúsica pop está cheia dessas histórias de uniões e separações, amor e ódio, queultrapassam a dimensão das relações pessoais e acabam refletindo nas própriasobras - às vezes, para a nossa sorte.

O meu caso preferido é o de certa banda que, em meados dos anos 70, era com-posta de dois casais entre os seus integrantes. A banda inglesa Fleetwood Maccomeçou durante a era hippie, no final da década de 60, e passou por uma série demudanças na sua formação. O primeiro casal, John e Christine McVie, respectiva-mente baixista e tecladista, já fazia parte do grupo desde 1970. Por volta de 75,quando num desses entra-e-sai de integrantes a banda quase deixava de existir, ocasal norte-americano Lindsay Buckingham e Stevie Nicks, que já tocava junto - ele,vocalista e guitarrista; ela, cantora - foi incorporado. Neste ano, eles lançaram umálbum homônimo, que passou uma semana no topo da parada norte-americana evendeu cinco milhões de cópias. Mas isto é só o começo da história.

Nos anos que se seguiram, os integrantes do Fleetwood Mac tiveram queenfrentar, além da pressão da gravadora por outro álbum de sucesso, as turbulênciascausadas pelo divórcio do casal McVie, o fim da relação amorosa entre Buckingham eNicks e o conseqüente abuso no consumo de álcool e drogas por parte dos músicos.Em 77, separados os casais, mantida a banda, é lançado o álbum Rumours. Aqueleque tinha tudo para ser um desastre artístico é, até hoje, um dos discos mais vendidosde todos os tempos (19 milhões de cópias vendidas só nos Estados Unidos, tendo pas-sado 31 semanas na parada da Billboard), além de ser considerado geralmente o me-lhor disco da banda por grande parte da crítica especializada.

Rumours é crise, drama, separação, medo, incerteza, futuro, do começo ao fim.Tem desde Gold Dust Woman (algo como "mulher do pó de ouro"), referência óbviaao consumo de cocaína, até a música mais famosa da banda, Dreams. Nela, StevieNicks canta: lá vem você de novo dizendo que quer sua liberdade, e quem sou eupara impedir? Mas, em Go Your Own Way, Buckingham dá a Nicks uma resposta àaltura: amar-te não é a coisa certa a se fazer, você pode seguir seu próprio caminho.

O mais bonito do disco, contudo, é o manifesto pela união da banda, TheChain, escrita por todos os integrantes em conjunto - um manifesto pela não-sepa-ração do grupo, mesmo com os problemas entre eles. Amores findos, a formaçãoclássica do Fleetwood Mac ainda duraria alguns bons anos, com álbuns à altura(e, data venia, melhores) que Rumours. Essa é a história bonita, mas nem todassão assim.

Tem a do tenebroso grupo sueco Abba, que era formado por dois casais,Agnetha Fältskog com Björn Ulvaeus e Benny Andersson com Anni-Frid Lyngstad. Oprimeiro se divorciou em 79 - foi o começo do fim. O segundo não resistiu até 81.A banda finalmente acabou em 82. Outro caso, o do The Mamas and The Papas,mais parece uma novela mexicana. O grupo vocal era formado por dois rapazes,John Phillips e Denny Doherty, e duas moças, Cass Elliot e Michelle Phillips. John eracasado com Michelle, que tinha um caso com Denny, que contou para Cass, que eraapaixonada por Denny, que foi pego in the act com Michelle, que foi colocada parafora da banda e deixada por John. O casal original ainda chegou a se juntar de novo,mas a banda acabou em 68.

Tem também a história de Patty Boyd, que por alguns anos se chamou PattyHarrison, e depois casou com o melhor amigo do ex-beatle George e virou PattyClapton, para, no fim das contas, virar Patty Boyd de novo. Mas se a arte de amarparece incompatível com a arte de fazer arte, a arte de odiar parece ser mais viável -ao menos financeiramente. Que diga o trio inglês The Police, que anunciou umareunião em 2007 após um hiato de quase 25 anos.

As histórias sobre o ódio entre o baixista e vocalista da banda, Sting, e o bate-rista, Stewart Copeland, estão entre as mais folclóricas do rock. Dizem que Copelandtinha ciúme porque Sting aparecia demais; que Sting não dava espaço para os ou-tros integrantes; que, durante os anos finais da banda, os dois mal se dirigiam apalavra nas gravações e shows. As apresentações da volta do The Police no Canadáforam elogiadas pelos críticos locais.

O trio inglês está se preparando para participar de um mega evento programa-do para o próximo mês, o Live Earth, um show beneficente destinado a arrecadarfundos em prol de ações contra o aquecimento global. Oportunismo? Caça-níquel?Não sei. Desde que não inventem de reunir o Abba, por mim está tudo bem.

"BandsThose funny little plansThat never work quite right"1 (Mercury Rev, "Holes", do álbum Deserter's Songs, de 1998)

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m um mundo de bytes, não é em vão que os blogs (os diários virtuais) sejam tão populares. Complexas releituras de seus similaresde papel, diferem-se, no entanto, em seu caráter público e exibicionista. Enquanto os antigos eram escondidos dos curiosos. O

modelo, porém, permanece o mesmo, ou seja, escrever e existir enquanto vida e letra. Por isso, diários sempre foram fontes literárias.Um dos mais competentes textos a utilizar essa forma em português comemora seu 70º aniversário: “O Amanuense Belmiro”, de Cyrodos Anjos. Livro festejado. E, paradoxalmente, esquecido.

Modernista de segunda hora, que cria de um futurismo já amaciado em Minas Gerais pós-Carlos Drummond de Andrade, o livro deCyro dos Anjos é pouco lido hoje e pouco citado, apesar de ser um dos romances mais fortemente bem construídos do Modernismobrasileiro. Obra atual, por sua certeza de a observação inteligente da vida ser a chave para a compreensão da própria existência. Ou parao aniquilamento dessa certeza.

Belmiro Borba (heterônimo de Cyro em artigos publicados em jornais) começa a escrever seu diário após celebrar a vida com amigos,num parque de Belo Horizonte, cidade na qual a ação (ou a falta dela) acontece. "Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de quetodos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono chope, argumentando que outro copo talvez encerrasse umasolução geral". A busca dessa solução geral já no primeiro e belo parágrafo, e a sensação de estar "grávido" de uma idéia, como diz capí-tulos depois, são as forças que levam o entediado funcionário público a se perder em uma explicação literária da realidade, que nuncaalcança. A vida que não vive tenta vivê-la em anotações.

Ao longo de um ano e meio, sua vida, as de suas irmãs e de seus amigos (os existentes e os que vão aparecendo e desaparecendopáginas adentro) vão sendo relatadas/analisadas sob a ótica da polícia, cultura e filosofia da época. Belmiro é um personagem que sópoderia ser possível na então infantil Belo Horizonte. Cidade planejada, representava em suas primeiras décadas um confronto profun-do entre a necessidade cosmopolita (o traçado da capital mineira foi influenciado por Paris e Washington) e as raízes interioranas.

No caso de Belmiro, a Vila Caraíbas, onde era simplesmente um Borba, com toda a força do "sangue", como observou o crítico SilvianoSantiago. Não era exclusividade de Belmiro. Cyro dos Anjos viveu isso. Drummond também. Os intelectuais da capital não eram da capi-tal. Seus corações e mentes, muitas vezes, olhavam passados interioranos, reforçado pelo fato de a própria Belo Horizonte ser provin-ciana em relação à capital brasileira de então, o Rio de Janeiro, ou mesmo São Paulo, já com o modernismo e a industrialização acelera-dos em sua gente.

O curioso é que para viver na capital, substituindo Vila Caraíbas (onde quase casou, quase seguiu os sonhos do pai e se tornou umBorba), Belmiro escolheu a provinciana Rua Erê, do provinciano bairro Prado. Provincianismo metalingüístico; e a mente em busca domundo, de filosofias, de literaturas (Belmiro gasta boa parte do romance mergulhado em Homero, enquanto vai trilhando sua própriaodisséia ao nada). Provincianismo quebrado pelas idéias do amigo Silviano, o contraponto intelectual de Belmiro e de sua escrita.Conservador e hedonista, meio louco, quase amigo, quase confiável, Silviano é mais uma das não-realizações de Belmiro, que o analisa,às vezes o inveja, mas nunca o compreende.

Em seu diário, Belmiro, espécie de representação em prosa do gauchismo drummondiano (não é por acaso que Drummond é cons-tantemente citado), não consegue escapar de suas relações sangüíneas. Da lua caraibana, de seu amor de infância não-concretizado (esublimado em novo amor não concretizado por uma jovem de classe alta). Da burocracia do serviço público, foge apenas na memória.O futuro tenta se projetar em delírios. Belmiro exercita o que aprendera com Silviano, ou seja, a imaginação de como um fato podeacabar, quando ele mal aconteceu, num ficcionalismo em que não mais importa o fato, mas a intenção. Mais triste: pensa sempre empublicar o que escreve, mas sabe que não o fará, o que talvez precipita a chegada de uma página final.

Com os olhos na página final do romance/diário, o leitor se pergunta: qual o motivo de Belmiro ter parado de escrever, argu-mentado que não havia mais assunto, se em muitos capítulos/dias anteriores já não havia?. Talvez a gravidez tenha sido interrompi-da, teria respondido o melancólico amanuense, nesse hipotético diálogo. "A vida se torna vazia", escreveu de fato. Aos 38 anos (masou menos a idade de Dante quando se encontrou no meio do caminho de sua vida, antes de descer ao Inferno em busca de Beatriz),Belmiro já estava "morto", embora certamente fosse cumprir a sentença dos Borba e partir só de velhice. Coloca um fim na existên-cia em palavras, mas se esquece de avisar ao amigo que tinha ido buscar mais papéis, que ficariam em branco, deixando ao leitor abusca do nono chope.

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Eduardo Sol

O modernismo de segunda hora de "O AmanuenseBelmiro", de Cyro dos Anjos, chega aos setenta anos

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ilberto Freyre definiu o Recife como uma cidade de habitantes silenciosos. Aocontrário da sua opulenta vizinha, Olinda, Recife era, para o Mestre, uma

cidade para ser descoberta em seus mistérios. Freyre construía sua psicologia urbana,analisando, por exemplo, os sobrados burgueses: de moças recatadas a espiar pelasfrestas das janelas os homens desfilando sua importância pelo passeio urbano.Sobrados silenciosos como os do bairro da Boa Vista que guardavam crimes e fan-tasmas. Sobrados substituídos por apartamentos histéricos que gritam com a mo-dernização da cidade a desordem da vida coletiva. Ruas que esperavam o cair danoite para transformar os gatos em bichos pardos, sorrateiros, à espera da caça. Oaburguesamento do Recife trouxe consigo a "domesticação dos sentidos". Casas queresguardavam jovens grávidas, escândalos e tabus. Enquanto, do lado de fora, a vigi-lância punia com seu olhar invisível o desejo, a vontade.

Bem, Gilberto, o Recife mudou e sua melancolia tentou até ser arrastada paradebaixo do tapete da história. Mas é também da memória e dos sentimentos doshomens que a cidade é construída. Portanto, ainda não podemos dizer: aqui jazo velho Recife. Pois o velho Recife se reproduz nas avenidas com sua impaciênciae ansiedade. O velho Recife nos "tapeia", com luva de pelica. As diferentes posiçõessociais que nos são mostradas, hoje, ainda apontam para a segmentação entre onormativo e o transgressivo. Há uma saída para cada caminho chegado, entre-tanto, mesmo que este seja voltar-se para o próprio sobrado de onde o normal édesafiado com novas regras e códigos. Uma saída que nos revela as facetascuriosas da cidade em seus trajetos sinuosos onde ora se escondem, ora semostram as diferentes identidades urbanas cuja composição caracteriza o seucotidiano.

Essa saída pode ser um Shopping Center. Conceituados como "não-lugar" peloscríticos do contemporâneo, os shoppings são visto como locais de uma populaçãoflutuante, cuja única identificação é o fato de haver a possibilidade farta decomunhão e exercício do consumo. O não-lugar é a lacuna entre a memória e ahistória cultural. Não há índices que nos remetam a uma experiência coletiva, comoos monumentos urbanos, os casarios, as praças, os parques, os teatros e os museus.O Recife, com tantas marcas urbanísticas que traduzem a contemplação de per-tencer a um território específico, guarda espaço também para esse não-território. Aartificialidade da arquitetura, decoração e iluminação desses verdadeiros templos docapitalismo indicam também um sujeito/consumidor sem rosto: marionetes dapublicidade que os trapaceiam com sonhos e felicidades fast-food.

As lembranças nos shoppings centers são apenas passaporte para o lucro capi-talista. Eis que no coração da cidade, no maior corredor de circulação do centrourbano, o shopping surge como prática de uma cidadania negociada, com cartãode identidade carimbado com uma marca própria. A passagem do não-lugar paraa fronteira. Inaugurado em 1998, o Shopping Boa Vista chegou com a missão deimplementar na avenida mais movimentada da histórica da Boa Vista, um centrode compras que contribuísse para a revitalização do comércio nessa área.

Atualmente, ele consta como uma das dicas dos sites brasileiros destinados aopúblico GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e travestis). Grupos de adolescentes comoo EMO e turmas de deficientes auditivos também se aglomeram em suas lan-chonetes com códigos de comportamento cultural que fogem ao estigma do con-sumo. No entanto, são marcados com o estigma da diferença.

Cerca de 50 mil pessoas vão ao Shopping Boa Vista diariamente. Mais de 100lojas, duas praças de alimentação e seis salas de cinemas estão à disposição dos seuspossíveis consumidores. Grupos de rapazes e moças escolhem o lugar para paque-rar, namorar, bate-papo e consumir muito pouco. Ao contrário de outros shoppingsda região metropolitana, o Boa Vista fez valer um certo sentimento de apego dorecifense às suas origens. Entrecortado por bares freqüentados pelo público GLBT, oespaço conservou o que para muitos relembra o ar de decadência da zona boêmiana qual o centro mergulhou a partir dos anos 50. Traz também os novos tons dosfardamentos escolares; a união óbvia de quem encontra no centro o local de encon-tro por ser de fácil acesso e deslocamento. Não mais as normalistas de outrora, BoaVista. O shopping ouve rock and roll; embora ainda masque chicletes. Em suaarquitetura kitsch, reserva, a atmosfera conservadora que perpassa a aura dorecifense. Um sobrado high-tech, com lojas de departamento uniformizadas, redesde atendimento fast-food; afetos e tabus.

O centro de compras mais uma vez contrariando a lógica dos grandes mercadosde consumo, situa-se dentro de um paradigma de identificação através das micro-políticas de grupos. Para o crítico literário Fredric Jameson, elas surgem do "vazio"deixado pelo fracasso da luta de classes. Jameson reflete essa micropolítica comobaseada em conceitos que são legitimados pela tríade "democracia, mídia e merca-do". Essa democracia ascende como fragmento de cidadania, ou melhor, de umacidadania utópica que remete à universalidade dos direitos humanos, datada daRevolução Francesa, e do espírito burguês do século XVIII. Para a mídia, as diversasvertentes de grupos culturais são modelos de consumo, cujo mercado publicitáriose inspira à medida que fomenta a prática da diferença consumível, digerível. Nãoobstante, a diferença causa sim desconforto. Porque é a partir de determinadospadrões de aceitação e normalidade que a diferença é aceita. Se ela se arrisca a sairdo "permitido", o vigilante invisível que a acompanha não hesitará em demarcá-laem sua não-normatividade.

Para além do moderno; do resgate da cidadania institucional, do olhar que puneo outro (que instiga a curiosidade alheia); para além da oportunidade banal de ape-nas ser um passageiro, antes do consumidor; para além do shopping. Contraditória,como Gilberto Freyre, a capital pernambucana fez de um lugar improvável a possi-bilidade de exposição das tantas e tantas formas de sentir, participar e estar nacidade. Uma "invasão" que nos leva a refletir sobre a ocupação dos diferentes gru-pos urbanos como resistência cultural, cujo objetivo não é ser domínio de podersocial. Apenas diversão. Pois, como diria uma velha canção da cultura pop: "the girlsjust wanna have fun".

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Pesquisadora analisa como o shopping negocia e reúne as várias identidadesque transitam pelo centro do Recife, entre a modernidade e a tradição

Carolina Leão

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O Palhaço Jurema e os Peixinhos Dourados tem estréia em agosto eretoma a discussão da obra teatral de Hermilo Borba Filho, que com-pletaria 90 anos em 2007

Saber +

Ivana Moura

lória internacional no passado, mesmo na decadênciafísica e profissional, o palhaço Jurema brilhava no pic-

adeiro do mambembe Estrela do Norte, na Zona da Mata per-nambucana. Ele garantia a risada de orelha a orelha. É certo que

já sentia o incômodo daquele processo repetitivo. "E vai que esse usoda alegria cansou, mas e daí? Só aquilo sabia fazer na vida". Numa das

sessões, em meio a salamaleques ele avistou a menina "naquela fase entreo cheiro de leite e o de flor". O instinto sexual despertou o velho palhaço. No

crepúsculo da vida, esse desejo fertilizava um território seco de emoções.Temática espinhosa e difícil, de desdobramentos eticamente reprováveis. Mas o

autor não escorrega na armadilha fácil. Num ritmo acelerado revela o mundo sub-jetivo do protagonista, habitado por frustrações, angústias, mesquinharias, solidãoe erotismo impetuoso.

O Palhaço Jurema e os Peixinhos Dourados é a versão teatral do conto O Palhaço,de Hermilo Borba Filho, que deve estrear em agosto. O texto articula várias temáti-cas: sedução quase canibal, velhice, solidão, sexo e violência, impulsos instintivos e amorte como saída. Gilberto Brito e Andrezza Alves estão no elenco do espetáculo,que tem direção de arte de Marcondes Lima.

Na verdade, desde 1999 o encenador Carlos Carvalho investe nas adaptações dasficções de Borba Filho para o palco. Uma prosa que é extremamente teatral. Antesde O Palhaço Jurema, Carvalho montou A Gloriosa Vida e o Triste Fim de Zumba-Sem-Dente, versão do conto O Traidor. O espetáculo persegue o ideário hermiliano,do teatro nordestino, universal, e a encenação utilizou elementos do cavalo-marinhoe do maracatu na trilha sonora. Zumba-Sem-Dente, o protagonista interpretado porJones Melo, é um sapateiro analfabeto e comunista, que durante a ditadura, nacidade de Palmares, sonha em implantar a democracia no país. O linguajar popularremete às utopias do período e retrata os estragos provocados pelo regime militar.

Os procedimentos épicos foram aprofundados na peça Mucurana, o Peixe, adap-tada por Carvalho do conto O Peixe. Com trechos narrados e outros dramatizados, aencenação utiliza projeção de imagens e canções críticas integram a encenação dessafábula que versa sobre um homem alienado, um morador de rua, que é humilhadopor um temido senhor de engenho e passa várias semanas carregando um peixe pen-durado no pescoço. Um dos temas recorrentes na obra de Hermilo, a denúncia daopressão, de situações cotidianas ao massacre da dignidade do indivíduo.

Dos 23 textos especificamente dramatúrgicos que escreveu, o de repercussãorecente foi encenado em 1998, pela Cia. Teatro de Seraphim: Sobrados eMocambos, uma peça segundo sugestões de Gilberto Freyre nem sempre seguidaspelo autor, de 1972, que estreou no Teatro do Parque, na abertura do 2º FestivalRecife do Teatro Nacional. A peça é uma releitura de Sobrados e Mucambos, o livrode Gilberto Freyre publicado em 1936, e traça uma linha de ascensão, crise edecadência do sistema patriarcal.

A peça apresenta os impactos da modernização sobre a antiga ordem colonial. Oconflito de classe é elevado a primeiro plano, expondo a sexualidade sem pudorimpregnada muitas vezes de uma conotação impiedosa e cruel, das relações entredominados e dominadores. A peça revela a vida privada da casa-grande e da senzala,as várias formas de relacionamento entre representantes da elite e do povo. Descortinatambém as violências e erotizações dos sobrados e mocambos e os sentimentos quecontribuíram na formação do povo brasileiro. Com a montagem, dirigida por AntonioCadengue, a trupe discutiu a identidade nacional a partir da conexão entre passado epresente e suas reverberações.

A paródia de Hermilo sobre o ensaio histórico gilbertiano traz uma outra visãodo mundo muito além da distinção do "o" da peça de Borba Filho e o "u" do traba-lho de Gilberto Freyre. Se o sociólogo de Apipucos buscava no seu texto o amacia-mento do choque de contrários, o dramaturgo de Palmares expõe os conflitos, astensões, as fraturas do tecido social brasileiro. Escrita durante a ditadura militar(apoiada por Freyre), a peça de Hermilo critica a situação política da época, faz umagostosa e irreverente crônica de costumes, de estilo direto, com deboche e um ero-tismo vital, que marca sua obra. Em Sobrados e Mocambos, o escritor se posicionaao lado dos oprimidos.

Esse pensamento de engrandecer os humildes norteou a criação de ADonzela Joana (1966), que transfere para o Nordeste as façanhas da virgem deOrléans, na peça com a missão de comandar a expulsão dos holandeses dePernambuco, libertar Olinda e coroar João Fernandes Vieira. Hermilo ambi-cionava juntar no palco atores contracenando com bonecos de mamulengo,personagens do bumba-meu-boi e figuras do pastoril. A Donzela Joana estános planos de montagem de Carlos Carvalho, projeto que está em fase de cap-tação de recursos. O diretor pretende fazer um diálogo entre o teatro Nô e omamulengo.

Hermilo Borba Filho tem uma obra dramatúrgica que merece maior pro-jeção. Seu compromisso em combater injustiças sociais estão presentes desdeas primeiras peças como Electra no Circo de 1944, que faz a retomada do clás-sico de Sófocles. Em João sem terra (1947) mostra o homem dominado porimpulsos sexuais e antecipa em décadas o debate sobre a questão da posse deterra no teatro. O conflito de pescadores às voltas com a aparição de uma mu-lher irresistível, que desperta o sentido erótico desses homens é o leitmotiv deA barca de ouro, de 1949. No Auto da mula-de-padre, o autor propõe a uti-lização do elemento sobre-humano, inspirado nas crendices populares. Em Umparoquiano inevitável ele apresenta forças estranhas com poder de decidir odestino dos homens.

Hermilo Borba Filho sempre foi um homem de teatro. Começou comoponto (figura fora da cena que "soprava" a fala dos atores), depois foi ator,dramaturgo, encenador, teórico, fundador do Teatro do Estudante dePernambuco - TEP, do Teatro Popular do Nordeste, do Movimento de CulturaPopular - MCP (que depois rompeu). Seu trabalho está fincado na criação deespetáculos nordestinos de estética épica. O escritor Ariano Suassuna, com-panheiro na fundação do TEP e no TPN testemunha que "no que se refere anossa geração, não há ninguém que se possa comparar a Hermilo Borba Filhocomo abridor de veredas e apontador de caminhos."

A releitura do Hermilo Borba Filho das teorias universais do teatro passapela ótica das manifestações populares do Nordeste. Sua contribuição nocampo da pesquisa inclui as obras Teatro, Arte do Povo e Reflexões sobre aMise-en-scène (1947), Teoria e Prática do Teatro (1960), Diálogo do Encenador(1964), Espetáculos Populares do Nordeste e Fisionomia e Espírito doMamulengo, ambos em 1966, Apresentação do Bumba-Meu-Boi (1967) eHistória do Espetáculo (1968).

Numa das cartas de Hermilo para o escritor Osman Lins, o autor de A DonzelaJoana confessa em 19 de dezembro de 1966: "estamos afogados em dívidas e cadavez mais crentes que fazer teatro no Recife é um dos mais desesperados atos deheroísmo já cometidos pelo homem". Nesse sentido, Hermilo Borba Filho foi umherói até o fim da vida.

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osé Teles tem razão: a marca de Gonzaga Leal é a ousadia. Ousadia, sobretudo, de realizar um trabalho refinado, de quemnão se preocupa com as leis do mercado, mas continua investindo, sinceramente, na qualidade. O seu "E o nosso mínimo

é o prazer" - na verdade verso de canção que tenta desvendar o segredo do álbum inteiro - é cuidado em cada detalhe, em cadapequeno detalhe, e resulta num trabalho extremamente zeloso.

Durante vários meses, gravando ora no Recife, ora em São Paulo, Gonzaga conseguiu realizar aquilo que a arte tem de maisexigente: o sabor de inédito e da paixão, de algo que não termina nunca, porque se aproxima do perfeito. Zelo na escolha dorepertório, zelo na escolha dos músicos, zelo na escolha da regência. Por isso cada uma das faixas está repleta de sentimentos etranscendência.

É ainda o próprio José Teles quem destaca: "Ao contrário de muito roqueiro moderninho, não esboça o cantor o menor pre-conceito quanto a estilos, época, ou preocupação com o novo pelo novo". E, entanto, nem o novo que se pratica na música po-pular brasileira, hoje. Pudera. Pratica-se mesmo o medíocre, o insano, o horroroso.

Daí porque é ousado. Nunca cai no lugar comum, não despenca para a grosseria, não se mostra vulgar. Para tudo e paratodos, um Gonzaga Leal que prima pela maravilha da música, com peças até mesmo desconhecidas do grande público, algumasinteiramente desconhecidas, mas guardadas com cuidado, no zeloso baú da maravilha.

Por isso, Weydson de Barros Leal destaca: “Em ‘E o nosso mínimo é prazer’ a escolha do repertório, sua musicalidade, os arran-jos sofisticados sob a direção musical e regência do violinista Cláudio Moura, nos levam a uma atmosfera de outra época, umaépoca em que a poesia das letras era par irrepreensível para a poesia da música. Aqui o samba se recria em samba-canção, o cho-rinho em samba-choro, em maxixe, encontrando uma nova beleza”.

Não tenha dúvida, o bom admirador de Gonzaga Leal - e até os que ainda não são admiradores : ele consegue reunir aqui-lo que melhor se aplica à arte musical: ritmo, elegância, refinamento. Basta também ler sempre perto das letras, os nomes daque-les que estão formando o elegante conjunto de valores que faz o acompanhamento. Não o acompanhamento naquele sentidotradicional, de pessoas que se reúnem para tornar a música possível.

Nada disso. Estão todos elegantemente integrados aos arranjos, com uma leveza de que percebe os movimentos e se inte-gram a eles como folhas de uma única árvore. Basta agora, assim, comprovar minhas palavras pelas palavras de Rubem RochaFilho: "Sua narrativa dramatúrgica é de brisas espalhadas, sutilezas de um trocista capaz de se aprofundar em nossa maneira defocar o mundo. Ele contracena com os arcos da Lapa, a sonora garoa, os frevos-de-bloco, provando que quem ama não esquece".

E mais ainda: Rubem Rocha Filho usa uma palavra definitiva para caracterizar Gonzaga Leal: sutileza. Isso mesmo. Uma palavradefinitiva, verdadeira e insubstituível. Uma palavra que reunida a refinamento, sem dúvida revela todo o comportamento desteartista que realiza uma obra de vanguarda, com aqueles melhores elementos que vêm do passado.

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Gonzaga Leal consolida sua carreira no quarto álbum onde imprime ousadia, refinamento e sensibili-dade ao interpretar canções do passado

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oi numa conversa sobre as dificuldades de divulgação que os artistas enfrentam, aumentando as distâncias entreeles, curadores, público e mercado que a artista plástica Juliana Notari criou, junto com o também artista Lourival

Cuquinha, o Movimento Pró-Trailers nas artes plásticas. “O mercado é muito pequeno. São poucas as galerias e institui-ções que abrem espaço para expormos. Sendo assim, o curador não tem muitas oportunidades de conhecer os trabalhos,a não ser através de portfólio, durante as seleções para salões. Portanto, é normal que ele escolha algo que já conhece,que já viu ao vivo. Acredito ser essa a razão da dificuldade de se inserir o novo e de o circuito de artes plásticas ser tãofechado”, analisa Juliana.

A idéia - posta em prática pela primeira vez (espera-se que haja outras) na exposição Costumes – minha mãe susten-ta minha filha, de Cuquinha, no Instituto Cultural Banco Real - é exibir, em vídeo, obras em andamento, como uma ante-cipação do que se vai ver, futuramente, na exposição daquele artista. Obras já acabadas, que somente serão vistas ali, tam-bém entram. Para o artista plástico Zé Paulo, toda iniciativa a favor da divulgação é válida. “Os trabalhos têm que sermostrados mesmo, da forma que for. Eu, como público, só vejo vantagens em ir a uma exposição pensando em ver obrasde um artista, e ao chegar me deparar com criações de outras pessoas”, descreve. A artista plástica Séphora Silva tambémachou a idéia interessante, porém não chegou a ver os trabalhos porque a TV onde estavam sendo exibidos os trailersficou em lugar de pouca visibilidade. “Não acho que os trailers devam ficar no mesmo lugar das obras, porque ambospodem se confundir, e aí fica um trabalho que não é mais somente daquele artista, e sim também de todos os que estãoexibindo os vídeos. Mas sugiro que haja mais destaque no espaço da exposição, não no mesmo espaço do artista”.

Além de Juliana, expuseram trailers Fernando Peres e Paulinho do Amparo. Escolha do próprio Cuquinha, atuandocomo curador. A relação entre curadores e artistas, aliás, tem gerado divergências. Fernando, em vez de trailer, mostrou aobra acabada Fernandinho Viadagem - Um trailer de amor, onde critica Cuquinha e a relação de “babaovismo” que eleacredita haver entre artistas, instituições e curadores, que se legitimam uns aos outros. “O curador muitas vezes obriga oartista a fazer concessões, como impor a presença de um texto explicativo, por exemplo. Às vezes não quero que hajatexto nenhum. Se for obrigado a dividir minha exposição com um texto de um curador, vou sempre procurar uma formade tirar onda dessa imposição, pois acho que aquelas definições bitolam o artista”, diz Fernando. Para Cuquinha, essahistória de ceder à “vontade” do curador não existe. “Se dois artistas vão fazer um trabalho juntos, ninguém fala em ceder.No fundo são duas pessoas pensando numa exposição. Se não há sintonia, não há trabalho”. O critério usado porCuquinha para escolha dos artistas foi muito simples. “Escolhi os artistas ou os projetos que gostava. Mas para mim umbom curador é alguém que sabe fazer um recorte na obra de um artista (ou de vários) com um sentido de comunicação,didático até”. Zé Paulo completa: “Existe curador que pesquisa, estuda, está dentro do circuito, e consegue colocar o tra-balho em um contexto. Nada impede, no entanto, que curador seja alguém sem esse compromisso”.

“Se fosse escolher uma obra, escolheria por amizade mesmo, pois acho impossível separar artista e obra. Estou emuma fase de ultraviolência, e entendo que o tema não é facilmente digerível, e não quero de maneira nenhuma podá-lopara que fique”, diz Paulinho, que exibiu um dos episódios do seriado As mortes de Cáudio Assis, uma animação feitaquadro a quadro, a partir de seus próprios desenhos. Juliana exibiu um trailer da obra Músicos no saco. No Abril pro rockdesse ano, ela esteve no backstage empacotando os músicos dentro de sacos plásticos com códigos de barra. “A obra dis-cute a relação do músico com o mercado, e é uma mistura de crítica e admiração, pois o músico concebe um CD, algoque está pronto para o consumo, coisa difícil para o artista contemporâneo”. Apesar de não ver com bons olhos o fatode o curador estar cada vez mais inserido na obra - “É como se a teoria passasse por cima da arte” -, Juliana reco-nhece seu papel. “Muitas vezes é o curador quem tem a idéia da melhor forma de apresentar a criação, é ele quemcria a concepção toda de uma exposição. Não há como não se envolver”. “Quando o artista souber ou tivercondições de fazer isso, talvez não precise mais de curador”, completa Séphora. Já para Zé Paulo, a aproxi-mação cada vez maior entre curador e artista é um reflexo da mudança de conceitos. “O meio artístico hojetem uma dinâmica muito maior, e o curador exerce um papel tão importante quanto o do artista”.

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Artistas plásticos encontramnos trailers nova forma dedivulgação dos seus trabalhosCarol Botelho

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A Fenneart é um bom indício de como aarte popular tem se renovado

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inguém precisa perder tempo para verificar com um rápido olhar: a arte popularem Pernambuco está se renovando. Sinais do tempo? Nada disso, apenas um

encontro das novas formas da construção artística com os materiais até então rejeita-dos.. Para constatar a novidade, basta visitar a 8a. Feira Nacional de Negócios eArtesanatos - Fenneart - de 6 a 15 de julho, no Centro de Convenções do Recife.

Para que isso se tornasse possível, foi preciso valorizar o artista que recolhia nas ruaso chamado material reciclável, composto, por exemplo, de garrafa pet, arame, madeirade demolição, ao lado de jornal velho, garrafa de vidro rachada. Tudo constatado, tam-bém, pela premiada pernambucana Mariane Perreit, para que no primeiro mundo essetipo de material já era trabalhado pela artística plástica francesa Louise Bourgeois, quemora em Nova York.

Ela acrescenta que "não é só quem dispõe de dinheiro para aquisição de matéria-prima". Perreiti, porém, não está só. Tem a companhia de Renata Campos, primeira-dama do Estado, da também artista plástica Teresa Costa Rego, de Madalena Arraes, eda AD-Diper, entusiasmadas com a Primeira Galeria de Reciclados, que será implantadadurante a feira. Os visitantes também vão participar de uma votação para escolha omelhor trabalho que receberá o Prêmio Silvia Coimbra.

De alguma forma, isso altera o mapa do artesanato popular do Estado, tradicional-mente concentrado na Zona da Mata e no Agreste pernambucanos. Até porque, onúmero de inscritos das mais variadas áreas culturais do Estado se mostra surpreen-dente. Duzentos e cinqüenta e três trabalhos foram inscritos: Três Marias, Maracatu,Guerreiro Cristão, Cortador de Cana, Brinquedo de Feira, Slaver o Saber, além deluminárias, conforme atesta o curador Ticiano Arraes, com vasta experiência em ONGsque trabalham em comunidades. Ele também conta com colaboração de Eric Gomes e

Décio Genival. Mais há, ainda, uma ressalva fundamental: "Só pernambucanos partici-param da seleção para Galeria de Reciclados", salienta.

A idéia foi da coordenadora de Artesanato da AD-Diper, Yara Nóbrega, ressaltandoque "fizemos um concurso para escolher peças para o salão. Foi muito difícil, pois os tra-balhadores são maravilhosos. Escolhemos 50 trabalhos que surpreendem o olhar. Paratal levamos em consideração peso, dimensão da arte, material utilizado e técnica de re-utilização". Ela vai aproveitar a Fenneart para lançar a Companhia do Lixo Zero.

Enquanto isso, outra boa novidade foi anunciada para Fenneart 2007. Os preçosdos estandes baixaram 20%. "Também houve uma ampliação no espaço físico e pelaprimeira vez o mezanino será utilizado", conta Carlos Augusto Lira que assina toda aconcepção do maior evento de artesanato do Estado.

Nos preparativos da feira, ocorreu, ainda, o concurso para escolher as peças doSalão de Arte Popular, que recebeu 183 trabalhos de vários artistas. E artistas popularesde Igarassu, Garanhuns, Caruaru e Buíque estão comemorando. É o caso de José Abiasda Silva, 40 anos. Com galhos de árvores, aroeira e azeitona, por exemplo, em duassemanas criou uma peça, que chamou de Capoeira. Foi o grande vencedor do Salão.Roberto Vital da Silva, 32 anos, desde criança faz artesanato, e pretendia criar algo novo.Também deu certo. Arrebatou o segundo lugar com um trabalho feito de tronco decoqueiro denominado "O Cangaço".

Mais novidade? É claro: há também o poder criador dos Quilombolas, classificadode excelente pela professora Célia Novaes, também técnica de artesanato. Aliás, todo ovigor artístico dessa área vem da tradição negra no Estado, alimentada por uma popu-lação que ainda ocupa várias regiões pernambucanas, desde o Agreste até o Sertão, aexemplo de Garanhuns e Conceição das Crioulas, município de Salgueiro.

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O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, nãofosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias.Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seuofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrásde algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha,um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento.

Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da queserve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspi-rantes a celebridade, escrevem discursos de políticos, folhetos de liquidação etc, etc... Não é o meu caso. Sou funcionáriapública há três qüinqüênios quase completos.

Hoje são raros os escritores que ganham a vida como barnabés, prática bastante comum até meados do século pas-sado.

Reconheço que o serviço público é um bom lugar para escritores. A garantia do emprego, malgrado o baixo salário,sossega, e muito, nossa alma por natureza atormentada. Mas sou sincera em dizer que o trabalho não me dá alegria algu-ma. Não tive a graça de aliar profissão e prazer, labor e alegria. Agora já é tarde demais pra isso.

Hoje em dia não há quem desconheça as benesses de se trabalhar num lugar que te faça feliz, numa profissão que terealize espiritualmente, psicologicamente e financeiramente. As páginas das revistas, os artigos dos jornais, os programasde TV repetem esse conselho à exaustão. Como se fosse fácil. Como se houvesse tanta escolha ao alcance do cidadãocomum. Se emprego está escasso, imagine um que seja do seu agrado. O jeito é agarrar o primeiro que aparece e seguirpela estrada que, geralmente, nos leva pra bem longe do lugar que gostaríamos.

No caso de emprego público, a coisa fica ainda mais complicada. Quem, em sã consciência, tem coragem de mandaràs favas um emprego que garante o pão do mês seguinte?

Ao lado da minha cama tenho um lápis vermelho que uso para fazer risquinhos na parede, contando um a um os diasque faltam para a aposentadoria. E rezo pra que ela não chegue tarde demais e ainda me pegue inteira, a tempo de fazerda minha vida aquilo que eu queria que ela fosse.

Tendo isso em mente, segure sua língua e pense duas vezes antes de chamar um funcionário público de preguiçoso.Por trás daquele sujeito que te atende mal e que boceja desanimado do outro lado do balcão pode ter um escritor abati-do pelo fardo que lhe pesa nos ombros.

Tenha compaixão do pobre. Eu sei que poucos têm a felicidade de ter estabilidade no emprego, mas isso também pode ser uma prisão.

O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, nãofosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias.Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seuofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrásde algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha,um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento.

Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da queserve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspi-rantes a celebridade, escrevem discursos de políticos, folhetos de liquidação, etc etc... Não é o meu caso. Sou funcionáriapública há três qüinqüênios quase completos.

Hoje são raros os escritores que ganham a vida como barnabés, prática bastante comum até meados do século pas-sado.

Reconheço que o serviço público é um bom lugar para escritores. A garantia do emprego, malgrado o baixo salário,sossega, e muito, nossa alma por natureza atormentada. Mas sou sincera em dizer que o trabalho não me dá alegria algu-ma. Não tive a graça de aliar profissão e prazer, labor e alegria. Agora já é tarde demais pra isso.

Hoje em dia não há quem desconheça as benesses de se trabalhar num lugar que te faça feliz, numa profissão que terealize espiritualmente, psicologicamente e financeiramente. As páginas das revistas, os artigos dos jornais, os programasde TV repetem esse conselho à exaustão. Como se fosse fácil. Como se houvesse tanta escolha ao alcance do cidadãocomum. Se emprego está escasso, imagine um que seja do seu agrado. O jeito é agarrar o primeiro que aparece e seguirpela estrada que, geralmente, nos leva pra bem longe do lugar que gostaríamos.

No caso de emprego público, a coisa fica ainda mais complicada. Quem, em sã consciência, tem coragem de mandaràs favas um emprego que garante o pão do mês seguinte?

Ao lado da minha cama tenho um lápis vermelho que uso para fazer risquinhos na parede, contando um a um os diasque faltam para a aposentadoria. E rezo pra que ela não chegue tarde demais e ainda me pegue inteira, a tempo de fazerda minha vida aquilo que eu queria que ela fosse.

Tendo isso em mente, segure sua língua e pense duas vezes antes de chamar um funcionário público de preguiçoso.Por trás daquele sujeito que te atende mal e que boceja desanimado do outro lado do balcão pode ter um escritor abati-do pelo fardo que lhe pesa nos ombros.

Tenha compaixão do pobre. Eu sei que poucos têm a felicidade de ter estabilidade no emprego, mas isso também pode ser uma prisão.

O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, nãofosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias.Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seuofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrásde algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha,um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento.

Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da queserve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspi-

O que mais gosto de fazer na vida é escrever. Não tenho talento para mais nada além. Isso seria quase um defeito, nãofosse o que de melhor faço na vida. Por mim, ficaria o dia inteiro com os dedos no teclado, inventando histórias.Infelizmente não posso. No Brasil (com exceção daquele que todos sabemos quem é), o escritor não consegue viver do seuofício. A depender de direitos autorais e eu estaria passando fome. Como não tenho vocação para faquir, tive que ir atrásde algo que me garantisse não só a comida como também, vez ou outra, uma cervejinha com os amigos, um cineminha,um livrinho. Assim mesmo, tudo no diminutivo. Os superlativos foram abolidos de vez do meu orçamento.

Conheço muitos escritores que vivem da escrita. Não da escrita inventada, da ficção propriamente dita, mas sim da queserve a fins mais prosaicos e mercantilistas. São jornalistas, redatores de publicidade, gost whriters de biografias de aspi-rantes a celebridade, escrevem discursos de políticos, folhetos de liquidação etc, etc... Não é o meu caso. Sou funcionáriapública há três qüinqüênios quase completos.

Hoje são raros os escritores que ganham a vida como barnabés, prática bastante comum até meados do século pas-sado.

Reconheço que o serviço público é um bom lugar para escritores. A garantia do emprego, malgrado o baixo salário,sossega, e muito, nossa alma por natureza atormentada. Mas sou sincera em dizer que o trabalho não me dá alegria algu-ma. Não tive a graça de aliar profissão e prazer, labor e alegria. Agora já é tarde demais pra isso.

Hoje em dia não há quem desconheça as benesses de se trabalhar num lugar que te faça feliz, numa profissão que terealize espiritualmente, psicologicamente e financeiramente. As páginas das revistas, os artigos dos jornais, os programasde TV repetem esse conselho à exaustão. Como se fosse fácil. Como se houvesse tanta escolha ao alcance do cidadãocomum. Se emprego está escasso, imagine um que seja do seu agrado. O jeito é agarrar o primeiro que aparece e seguirpela estrada que, geralmente, nos leva pra bem longe do lugar que gostaríamos.

No caso de emprego público, a coisa fica ainda mais complicada. Quem, em sã consciência, tem coragem de mandaràs favas um emprego que garante o pão do mês seguinte?

Ao lado da minha cama tenho um lápis vermelho que uso para fazer risquinhos na parede, contando um a um os diasque faltam para a aposentadoria. E rezo pra que ela não chegue tarde demais e ainda me pegue inteira, a tempo de fazerda minha vida aquilo que eu queria que ela fosse.

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