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Pernambuco 22

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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�Pernambuco_Dez 07.2

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Quanto dura um cartão postal? - Na dúvida, siga para a Romênia nas próximas férias

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O homem que (não) estava lá - �� �� morte do popstar que odiava ser um popstar

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E então temer o quê?- ��delaide Ivanova descobre que em certos momentos não há mp3 player nas alturas que resolva o problema

O Pernambuco traz neste número – páginas seis e sete, além do Saber + , com ensaio fotográfico de Alexandre Belém, uma análise da obra literária de Marcus Accioly, sem dúvida um dos poetas mais representativos da literatura brasileira, em artigos assinados por Diego Raphael, Anco Márcio e Pedro Lyra, especializados na obra do autor de “Sísifo”, além de uma entrevista com o escritor. Um autor maiúsculo, que honra a literatura do Estado, ao lado de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto.

Sua poesia leva em consideração as questões da epopéia, cujas bases estão lançadas, por exemplo, em “Poética pré-manifesto ou anteprojeto do realismo épico”, em que conceitua que “a beleza na arte, desde Aristóteles, continua sendo a imitação da vida e da arte”. No entanto, uma das suas afirmações mais importantes está na citação de Maiakovski: “Depois de ver a eletricidade, deixei completamente de me interessar pela natureza. Objeto não-aperfeiçoado.”

A verdadeira proclamação, porém, está aqui: “A substituição do tempo cir-cunstancial de hoje, pelo tempo permanente de sempre, conduz ao ‘tempo’ – dentro um ciclo histórico – da constatação de uma nova verdade: o mundo lírico morreu e o épico renasce do crepúsculo”. Ou ainda: “A beleza épica é novamente mais bela que a beleza lírica e o belo pelo belo equivale ao nada pelo nada”.

O escritor Diego Raphael chama atenção para o fato que “não se pode fechar os olhos para as incríveis revisões que Acciolly faz das epopéias a ele precedentes. Em “Sísifo”, por exemplo, não apenas o mito, mas a própria es-trutura poética é reavaliada, de forma a confundir o leitor menos preparado”. Pedro Lyra ressalta a forte impressão que lhe causou a poesia de Accioly e sua preocupação em analisá-la.

Anco Márcio Tenório Vieira resenha o livro “Um novo velho de Restelo – a épica ‘satírica’ de Latinomérica”, do professor Saulo Neiva, da Universidade Blaise Pascal, na França, onde se afirma que “Accioly, dentro de sua postura satírica, alterna os decassílabos com poemas em redondilhas e em versos de tamanho diverso: hexassílabos, pentassilabos, tetrassílabos, além de versos que alternam o decassílabo com dissilábicos ou monossilábicos, de dísticos que ora são compostos em decassílabos ou em alexandrinos”.

Nas páginas quatro e cinco, Marcella Sampaio escreve sobre a irônica volta das mulheres para casa, “trabalhando fora de casa, sim, mas continuando a ser a principal responsável pela manutenção da casa, da família e dos filhos”. A matéria traz, ainda, uma breve entrevista com a antropóloga Marion Teodó-sio, para quem a “mulher sempre trabalhou muito dentro e fora de casa. Na época do feudalismo, não havia essa separação entre o público e o privado, que só começou a existir com a chegada do capitalismo”. Na terceira página, leia curiosa matéria de Daniela Lacerda sobre a Romênia, além da análise de Urariano Mota sobre a pintura de Rodolfo Mesquita. E mais: Raul Azevedo de Arruda Ferreira sobre os 150 anos de “As flores do mal”, de Baudelaire, e a marca inédita de Mariana Guerra.

Boa leitura.Raimundo Carrero ([email protected])

SUMÁRIO EDITORIAL

A revisão da epopéia - Dois artigos analisam o legado do poeta Marcus ��ccioly

06

EXPEDIENTEGovernador do estado

Eduardo Camposvice-Governador

João Lyra Netosecretário da casa civil

Ricardo Leitão

Presidente

Flávio Chaves diretor de Gestão Bráulio Mendonça Meneses

diretor industrial Reginaldo Bezerra Duarte

Gestor Gráfico

Júlio Gonçalves

equiPe de Produção

Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernam-buco - CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

editor

Raimundo Carreroeditor executivo

Schneider Carpeggiani

edição de arte

Jaíne Cintra

tratamento de imaGem

Sebastião Corrêa secretário Gráfico

Militão Marques

revisão

Gilson Oliveira

conselho editorial

Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

Estou voltando pra casa outra vez - E o femi-nismo faz o caminho de volta...

Inédito - Uma imagem da fotógrafa Mariana Guerra para colocar ponto final em 2007

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E stá decidido: vou para a Romênia. Este ano, dois filmes romenos foram premiados no Festival de Cinema de Cannes, um deles com

a Palma de Ouro. O som romeno foi protagonista do último verão euro-peu e vem influenciando músicos de tudo quanto é lugar do mundo. A modelo mais badalada do momento nasceu na Romênia. O país está em todas e está com tudo. Sorte nossa. Porque tudo isso de que falei aí em cima é bom, muito bom. Não é que ficou bom de repente, mas só agora explodiu. Talvez porque a cena ocidental estivesse estagnada e buscasse algo diferente, talvez por conta da abertura política no leste europeu, talvez por um efeito da globalização (sempre ela...). O que importa é que agora está tudo aí, pra quem quiser ver e ouvir.

No cinema, em particular, a Romênia está dando todas as cartas – e batendo com canastra limpa de ás a ás. Basta dar uma olhada na lista de premiados em Cannes nos últimos três anos para entender o que isso significa. Este ano, o prêmio mais importante do festival de cinema mais importante do mundo foi para “4 meses, 3 semanas e 2 dias” (“4 luni, 3 saptamini si 2 zile”), de Cristian Mungiu, que também ganhou o prêmio da crítica internacional. Outro romeno, “California dreaming”, de Cristian Nemescu, venceu a mostra paralela Un Certain Regard.

No ano passado, “A leste de Bucareste”, de Corneliu Porumboiu (sim, sim, romeno), foi exibido na Quinzena dos Realizadores e levou o prêmio Câmera de Ouro, que vai para o melhor filme de um estreante. Em 2005, “A morte do senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu (r-o-m-e-n-o), ganhou o prêmio de melhor filme da mostra Un Certain Regard e, se-gundo o crítico de cinema Kleber Mendonça Filho, “já tem lugar reser-vado na lista dos 10 melhores filmes desta década”.

Kleber explica que essa nova leva de “pequenos grandes filmes” romenos faz uma crônica crua do período comunista no país, que che-gou ao fim em 1989 com a morte do ditador Nicolae Ceausescu. São produções baratas, realistas, sem muitos enfeites, que valorizam o que o cinema mainstream subestima e, quando as luzes se apagam, “pegam as pessoas pelo pescoço” (vá ver e depois a gente conversa...).

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Pernambuco_ Dez 07.2�

Daniela Lacerda

urismoT

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Entenda o que é que (por enquanto) a Romênia tem

Na música, não dá para trilhar uma história tão expressiva de prêmios, mas a Ro-mênia também vem arrebatando e influenciando um monte de gente com uma so-noridade marcada por instrumentos de sopro e percussão, remetendo às fanfarras e à música cigana. “Há um movimento forte na Europa em torno dos sons dos Balcãs e arredores”, explica Renato L, crítico de música e repórter do caderno “Viver”, do Diario de Pernambuco. Ele conta que esse foco vem se espalhando mundo afora e inspirando o trabalho de músicos de tudo quanto é país, incluindo, é claro, o Brasil.

Aqui em Pernambuco, Renato cita o trabalho do DJ Dolores e de Fabio Trummer, da banda Eddie, como ícones dessa tendência. Dolores se apaixonou pela sonoridade do leste europeu ao assistir ao filme “Underground”, de Emir Kusturica, que tem a trilha sonora assinada pelo sérvio Goran Bregovic. Anos depois, num festival realizado na Ale-manha, Dolores participou de uma jam session com músicos da fanfarra que toca no filme (uauuuu!). Adivinha de onde eles são? Romênia. Também é da Romênia o grupo Taraf des Haidouk, que Dolores remixou pela gravadora Crammed no disco “Electric Gipsyland”, lançado este ano lá fora. “O espírito da música romena me lembra muito o da música de rua brasileira. O samba, o frevo, o cavalo marinho... Há um espírito hedonista que tem tudo a ver com a gente”, diz Dolores.

Para Fabio Trummer, a Romênia e seus vizinhos estão exportando para o mundo a música mais instigante do momento. Ele passou o verão na Europa, em turnê com a banda Eddie, e conta que, na França, os bons concertos da temporada foram realiza-dos por fanfarras do leste europeu. “A elegância atual passa pelo charme cosmopolita cigano”, diz o músico, que vem se esbaldando em tudo que vem daquela região. “Os trompetistas são os novos guitar heroes”, decreta.

Uma das explicações para essa efervescência em torno da música da Romênia e seus vizinhos seria a autenticidade. “Esse som desponta como uma resposta à estagnação da música pop anglo-saxã, que procura estímulo em outras tradições musicais”, afirma Renato L. “Pelo posicionamento geográfico, os músicos dessa região podem beber e comer tanto do Ocidente como do Oriente. E, por estar longe dos centros industriais de cultura, eles ficam imunes ao balizamento que o consumo de ídolos exige – e que levou à repetição e ao cansaço os sons embalados para vender muito”, completa Fabio Trummer.

Eu quero saber de onde saíram Cristian Mungiu, Corneliu Porumboiu, Cristi Puiu e Cristian Nemescu... E o Taraf des Haidouk... E Irina Lazareanu, o rosto da vez. Ok, ela foi criada no Canadá e na Inglaterra. Mas nasceu na Romênia, pronto. A moça vem sendo considerada a nova Kate Moss e foi descoberta graças à própria (depois ficou com o namorado dela, mas isso não vem ao caso). Kate, inclusive, escolheu Irina para ser a cara da sua coleção para a Topshop.

A modelo já trabalhou para Chanel, Balenciaga, Alexander McQueen, Versace, Lanvin e por aí vai. É a musa de estilistas como Nicolas Ghesquiè-re e Karl Lagerfeld. Mas não se contenta com as passarelas. Dançarina, baterista, cantora e compositora, já tocou com a banda de Pete Doherty (o ex dela e de Kate) e cantou com Sean Lennon. É cheia de atitude. E você ainda vai ouvir muito falar dela.

Nem que seja nos tablóides ingleses, é verdade. Porque depois que você vira moda, nunca se sabe quanto tempo dura... E Irina virou. E Cristian Mungiu ganhou a Palma de Ouro. E o verão europeu rendeu-se aos músicos do leste. Pensando bem, acho melhor ir logo pra Romênia. Hoje, de preferência. Te mando um postal de lá. Só não sei se vai chegar a tempo. Ou se o Zimbabwe vai ter se tornado o país da hora.

Para ver e ouvir os romenos (e seus pupilos) Cinema“4 meses, 3 semanas e 2 dias” (“4 luni, 3 saptamini si 2 zile”), de Cristian Mungiu, “Califórnia dreaming”, de Cristian Nemescu “A morte do senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu “Como celebrei o fim do mundo”, Catalin Mitulescu MúsicaTaraf des Haidouk Gipsy Beat & Balkan Bangers Too Balkan Beat Box Gogol Bordello DJ Dolores Eddie Móveis Coloniais de Acaju Siba Beirut

ModaQuer ver a Irina? Passa na banca e pega uma Harper’s Baazar, ou Elle, ou Vogue, ou Vanity Fair, ou Cosmopolitan, ou...

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A fissura de Baudelaire - Os 150 anos do clás-sico “��s flores do mal”

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Louco e sincero - ��s surpresas de quem dri-bla as escolas e os esquemas artísticos

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Quanto dura um cartão postal? - Na dúvida, siga para a Romênia nas próximas férias

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O homem que (não) estava lá - �� �� morte do popstar que odiava ser um popstar

08

E então temer o quê?- ��delaide Ivanova descobre que em certos momentos não há mp3 player nas alturas que resolva o problema

O Pernambuco traz neste número – páginas seis e sete, além do Saber + , com ensaio fotográfico de Alexandre Belém, uma análise da obra literária de Marcus Accioly, sem dúvida um dos poetas mais representativos da literatura brasileira, em artigos assinados por Diego Raphael, Anco Márcio e Pedro Lyra, especializados na obra do autor de “Sísifo”, além de uma entrevista com o escritor. Um autor maiúsculo, que honra a literatura do Estado, ao lado de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto.

Sua poesia leva em consideração as questões da epopéia, cujas bases estão lançadas, por exemplo, em “Poética pré-manifesto ou anteprojeto do realismo épico”, em que conceitua que “a beleza na arte, desde Aristóteles, continua sendo a imitação da vida e da arte”. No entanto, uma das suas afirmações mais importantes está na citação de Maiakovski: “Depois de ver a eletricidade, deixei completamente de me interessar pela natureza. Objeto não-aperfeiçoado.”

A verdadeira proclamação, porém, está aqui: “A substituição do tempo cir-cunstancial de hoje, pelo tempo permanente de sempre, conduz ao ‘tempo’ – dentro um ciclo histórico – da constatação de uma nova verdade: o mundo lírico morreu e o épico renasce do crepúsculo”. Ou ainda: “A beleza épica é novamente mais bela que a beleza lírica e o belo pelo belo equivale ao nada pelo nada”.

O escritor Diego Raphael chama atenção para o fato que “não se pode fechar os olhos para as incríveis revisões que Acciolly faz das epopéias a ele precedentes. Em “Sísifo”, por exemplo, não apenas o mito, mas a própria es-trutura poética é reavaliada, de forma a confundir o leitor menos preparado”. Pedro Lyra ressalta a forte impressão que lhe causou a poesia de Accioly e sua preocupação em analisá-la.

Anco Márcio Tenório Vieira resenha o livro “Um novo velho de Restelo – a épica ‘satírica’ de Latinomérica”, do professor Saulo Neiva, da Universidade Blaise Pascal, na França, onde se afirma que “Accioly, dentro de sua postura satírica, alterna os decassílabos com poemas em redondilhas e em versos de tamanho diverso: hexassílabos, pentassilabos, tetrassílabos, além de versos que alternam o decassílabo com dissilábicos ou monossilábicos, de dísticos que ora são compostos em decassílabos ou em alexandrinos”.

Nas páginas quatro e cinco, Marcella Sampaio escreve sobre a irônica volta das mulheres para casa, “trabalhando fora de casa, sim, mas continuando a ser a principal responsável pela manutenção da casa, da família e dos filhos”. A matéria traz, ainda, uma breve entrevista com a antropóloga Marion Teodó-sio, para quem a “mulher sempre trabalhou muito dentro e fora de casa. Na época do feudalismo, não havia essa separação entre o público e o privado, que só começou a existir com a chegada do capitalismo”. Na terceira página, leia curiosa matéria de Daniela Lacerda sobre a Romênia, além da análise de Urariano Mota sobre a pintura de Rodolfo Mesquita. E mais: Raul Azevedo de Arruda Ferreira sobre os 150 anos de “As flores do mal”, de Baudelaire, e a marca inédita de Mariana Guerra.

Boa leitura.Raimundo Carrero ([email protected])

SUMÁRIO EDITORIAL

A revisão da epopéia - Dois artigos analisam o legado do poeta Marcus ��ccioly

06

EXPEDIENTEGovernador do estado

Eduardo Camposvice-Governador

João Lyra Netosecretário da casa civil

Ricardo Leitão

Presidente

Flávio Chaves diretor de Gestão Bráulio Mendonça Meneses

diretor industrial Reginaldo Bezerra Duarte

Gestor Gráfico

Júlio Gonçalves

equiPe de Produção

Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernam-buco - CEPE

Rua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

editor

Raimundo Carreroeditor executivo

Schneider Carpeggiani

edição de arte

Jaíne Cintra

tratamento de imaGem

Sebastião Corrêa secretário Gráfico

Militão Marques

revisão

Gilson Oliveira

conselho editorial

Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

Estou voltando pra casa outra vez - E o femi-nismo faz o caminho de volta...

Inédito - Uma imagem da fotógrafa Mariana Guerra para colocar ponto final em 2007

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E stá decidido: vou para a Romênia. Este ano, dois filmes romenos foram premiados no Festival de Cinema de Cannes, um deles com

a Palma de Ouro. O som romeno foi protagonista do último verão euro-peu e vem influenciando músicos de tudo quanto é lugar do mundo. A modelo mais badalada do momento nasceu na Romênia. O país está em todas e está com tudo. Sorte nossa. Porque tudo isso de que falei aí em cima é bom, muito bom. Não é que ficou bom de repente, mas só agora explodiu. Talvez porque a cena ocidental estivesse estagnada e buscasse algo diferente, talvez por conta da abertura política no leste europeu, talvez por um efeito da globalização (sempre ela...). O que importa é que agora está tudo aí, pra quem quiser ver e ouvir.

No cinema, em particular, a Romênia está dando todas as cartas – e batendo com canastra limpa de ás a ás. Basta dar uma olhada na lista de premiados em Cannes nos últimos três anos para entender o que isso significa. Este ano, o prêmio mais importante do festival de cinema mais importante do mundo foi para “4 meses, 3 semanas e 2 dias” (“4 luni, 3 saptamini si 2 zile”), de Cristian Mungiu, que também ganhou o prêmio da crítica internacional. Outro romeno, “California dreaming”, de Cristian Nemescu, venceu a mostra paralela Un Certain Regard.

No ano passado, “A leste de Bucareste”, de Corneliu Porumboiu (sim, sim, romeno), foi exibido na Quinzena dos Realizadores e levou o prêmio Câmera de Ouro, que vai para o melhor filme de um estreante. Em 2005, “A morte do senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu (r-o-m-e-n-o), ganhou o prêmio de melhor filme da mostra Un Certain Regard e, se-gundo o crítico de cinema Kleber Mendonça Filho, “já tem lugar reser-vado na lista dos 10 melhores filmes desta década”.

Kleber explica que essa nova leva de “pequenos grandes filmes” romenos faz uma crônica crua do período comunista no país, que che-gou ao fim em 1989 com a morte do ditador Nicolae Ceausescu. São produções baratas, realistas, sem muitos enfeites, que valorizam o que o cinema mainstream subestima e, quando as luzes se apagam, “pegam as pessoas pelo pescoço” (vá ver e depois a gente conversa...).

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Entenda o que é que (por enquanto) a Romênia tem

Na música, não dá para trilhar uma história tão expressiva de prêmios, mas a Ro-mênia também vem arrebatando e influenciando um monte de gente com uma so-noridade marcada por instrumentos de sopro e percussão, remetendo às fanfarras e à música cigana. “Há um movimento forte na Europa em torno dos sons dos Balcãs e arredores”, explica Renato L, crítico de música e repórter do caderno “Viver”, do Diario de Pernambuco. Ele conta que esse foco vem se espalhando mundo afora e inspirando o trabalho de músicos de tudo quanto é país, incluindo, é claro, o Brasil.

Aqui em Pernambuco, Renato cita o trabalho do DJ Dolores e de Fabio Trummer, da banda Eddie, como ícones dessa tendência. Dolores se apaixonou pela sonoridade do leste europeu ao assistir ao filme “Underground”, de Emir Kusturica, que tem a trilha sonora assinada pelo sérvio Goran Bregovic. Anos depois, num festival realizado na Ale-manha, Dolores participou de uma jam session com músicos da fanfarra que toca no filme (uauuuu!). Adivinha de onde eles são? Romênia. Também é da Romênia o grupo Taraf des Haidouk, que Dolores remixou pela gravadora Crammed no disco “Electric Gipsyland”, lançado este ano lá fora. “O espírito da música romena me lembra muito o da música de rua brasileira. O samba, o frevo, o cavalo marinho... Há um espírito hedonista que tem tudo a ver com a gente”, diz Dolores.

Para Fabio Trummer, a Romênia e seus vizinhos estão exportando para o mundo a música mais instigante do momento. Ele passou o verão na Europa, em turnê com a banda Eddie, e conta que, na França, os bons concertos da temporada foram realiza-dos por fanfarras do leste europeu. “A elegância atual passa pelo charme cosmopolita cigano”, diz o músico, que vem se esbaldando em tudo que vem daquela região. “Os trompetistas são os novos guitar heroes”, decreta.

Uma das explicações para essa efervescência em torno da música da Romênia e seus vizinhos seria a autenticidade. “Esse som desponta como uma resposta à estagnação da música pop anglo-saxã, que procura estímulo em outras tradições musicais”, afirma Renato L. “Pelo posicionamento geográfico, os músicos dessa região podem beber e comer tanto do Ocidente como do Oriente. E, por estar longe dos centros industriais de cultura, eles ficam imunes ao balizamento que o consumo de ídolos exige – e que levou à repetição e ao cansaço os sons embalados para vender muito”, completa Fabio Trummer.

Eu quero saber de onde saíram Cristian Mungiu, Corneliu Porumboiu, Cristi Puiu e Cristian Nemescu... E o Taraf des Haidouk... E Irina Lazareanu, o rosto da vez. Ok, ela foi criada no Canadá e na Inglaterra. Mas nasceu na Romênia, pronto. A moça vem sendo considerada a nova Kate Moss e foi descoberta graças à própria (depois ficou com o namorado dela, mas isso não vem ao caso). Kate, inclusive, escolheu Irina para ser a cara da sua coleção para a Topshop.

A modelo já trabalhou para Chanel, Balenciaga, Alexander McQueen, Versace, Lanvin e por aí vai. É a musa de estilistas como Nicolas Ghesquiè-re e Karl Lagerfeld. Mas não se contenta com as passarelas. Dançarina, baterista, cantora e compositora, já tocou com a banda de Pete Doherty (o ex dela e de Kate) e cantou com Sean Lennon. É cheia de atitude. E você ainda vai ouvir muito falar dela.

Nem que seja nos tablóides ingleses, é verdade. Porque depois que você vira moda, nunca se sabe quanto tempo dura... E Irina virou. E Cristian Mungiu ganhou a Palma de Ouro. E o verão europeu rendeu-se aos músicos do leste. Pensando bem, acho melhor ir logo pra Romênia. Hoje, de preferência. Te mando um postal de lá. Só não sei se vai chegar a tempo. Ou se o Zimbabwe vai ter se tornado o país da hora.

Para ver e ouvir os romenos (e seus pupilos) Cinema“4 meses, 3 semanas e 2 dias” (“4 luni, 3 saptamini si 2 zile”), de Cristian Mungiu, “Califórnia dreaming”, de Cristian Nemescu “A morte do senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu “Como celebrei o fim do mundo”, Catalin Mitulescu MúsicaTaraf des Haidouk Gipsy Beat & Balkan Bangers Too Balkan Beat Box Gogol Bordello DJ Dolores Eddie Móveis Coloniais de Acaju Siba Beirut

ModaQuer ver a Irina? Passa na banca e pega uma Harper’s Baazar, ou Elle, ou Vogue, ou Vanity Fair, ou Cosmopolitan, ou...

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uando Winona Rider interpretou, no filme “Mulherzinhas” (o termo ficou politicamente incorreto e a película foi rebatizada de “Adoráveis Mulheres”, na refilmagem), a moça questionadora de uma família de mulheres cuja pers-

pectiva de futuro era o casamento, parecia que se avizinhava um tempo novo, onde determinados conceitos ficariam tão fora de moda e despropositados que não seriam nem sequer levantados. O filme, aliás, depois de muitas idas e vindas da personagem principal, terminou sendo sobre a indefectível busca pelo amor, pelo parceiro ideal e, afinal, pelo casamento. Mesmo assim, a mulher independente, profissional de talento e clichês agregados virou, no período pós anos 60/70, auge do feminismo, o ideal de comportamento da maioria das moças mundo afora. A sociedade de consumo, cada vez mais dependente dessa força de trabalho, começou a estimular, via disseminação de ideologia, a ampliação do espaço social feminino. Porém, pasmem ou não, nenhuma alma abriu a boca para sugerir de que forma o homem se readaptaria a essa nova ordem. De forma que ele não se readaptou, naturalmente, e continuou a viver a vida tal e qual outrora, com uns ajustezinhos aqui e ali. Essa equação que não fecha começa a provocar desconforto, e está gerando uma espécie de retrocesso onde, mais uma vez, as mulheres deverão ser a parte que cede.

Os Estados Unidos, país onde a vanguarda e o conservadorismo extremo convivem lado a lado, são o reflexo mais contundente desta tentativa de enquadrar as mulheres num papel considerado “adequado” – ou seja, trabalhando fora de casa, sim, mas continuando a ser a principal responsável pela manutenção da família, da casa e dos filhos. Lite-ratura de auto-ajuda com títulos como The Surrended Wife (Mulheres Submissas) estão fazendo um sucesso absurdo por lá. O movimento, claro, começa a reverberar por aqui. A autora Laura Doyle, dona de casa de 33 anos, vomita pérolas como: “Seu salário deve ser todo repassado para seu marido. A mulher deve receber uma mesada para suas despesas pessoais”. Sim, meu bem, o maridão permite que você trabalhe fora, mas o dinheiro é dele. Ela continua: “Se seu marido for infiel, seja tolerante e finja que não percebe”. Tem mais: “Esteja sempre disponível quando ele quiser fazer sexo, mesmo que não tenha vontade”. Segundo ela, essa é a receita para que os casamentos se harmonizem e sejam estáveis, promovendo o bem-estar dos filhos e, conseqüentemente, da sociedade. Estáveis, não felizes, notem bem. A mulher, mais uma vez, é que terá que arcar com o peso da insatisfação, já que o homem terá ampla liberdade para se realizar fora do casamento, sem nenhuma responsabilidade agregada a não ser a de não se separar.

O dado mais recente do IBGE diz que 29,2% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Ainda assim, 33% dos entrevistados em uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha acham que elas deveriam deixar de trabalhar fora para cuidar dos filhos, e 49% aceitam que a mulher trabalhe, desde que o salário dela seja indispensável ao orçamento familiar. A antropóloga Marion Teodósio, professora da Universidade Federal de Pernambuco, contesta a informação de que as mulheres só passaram a trabalhar no século XX e discorda radicalmente de quem afirma que o gênero determina habilidades relativas a casa e filhos. “As mulheres sempre trabalharam muito, dentro e fora de casa. Na época do feudalismo não havia essa separação entre o público e o privado, que só começou a existir com a chegada do capitalismo. O que chamamos de ‘família higiênica’, com pai, mãe e filhos convivendo juntos, só passou a existir a partir de então. Antes, as mulheres até tinham filhos mas não cuidavam deles enquanto pequenos. As amas faziam esse papel. A necessidade de maior quantidade de força de trabalho no século passado abriu caminho para que as mulheres fossem ocupando outros espaços profissionais, mais formais, o que se juntou a uma vontade legítima destas mesmas mulheres, que passaram a querer ter mais autonomia e poder de decisão”, diz.

Segundo a antropóloga, a sociedade, ao mesmo tempo em que cobra a participação feminina nos orçamentos das famílias e prega a cultura do consumo, ainda não conseguiu se adaptar totalmente à necessária divisão de tarefas que tem que vir relacionada a este processo. “O que acontece é que não há mecanismos estatais que dêem estruturas às

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O padrão mulher de verdade reverbera na sociedade e levanta questões sobre patriarcado, força de trabalho feminina e maternidade

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famílias, tais como creches e pré-escolas. O Estado tem que reconhecer sua função na organização familiar brasileira. Se as mulheres não têm com quem deixar os filhos quando saem para trabalhar, não cabe aí a responsabilização delas, mas sim uma solução do ponto de vista governamental. Por outro lado, não acredito que a mulher teria mais ‘vocação’ para os cuidados com a casa e a família. È tudo uma questão cultural. O homem também tem as mesmas condições de exercer esse papel”. Para ela, essa literatura e esses movimentos que apregoam a “volta ao lar” são ab-solutamente retrógrados e bobos. “Essa teoria psicologizada de que ‘mãe é insubstituível’ é balela. O que acontece é que, sem estrutura e sem condições de crescer profissionalmente, já que tem que arcar sozinha com o ônus dos cuidados familiares e domésticos, a mulher acaba desestimulada, cansada. E muitas vezes volta a ser dona de casa apenas por não querer mais dar murro em ponta de faca”.

Há muita gente, porém, que discorda da professora. Secretárias, com formações distintas, Andréa Chada, Audi-cléia de Souza e Renata Nóbrega acham que as mulheres deveriam trabalhar apenas meio expediente, no máximo seis horas por dia. “Minha prioridade é a família”, diz Andréa, que afirma trabalhar por necessidade, mais do que por realização pessoal. Audicléia se ressente da longa jornada, porque vê pouco a filha adolescente, embora reconheça a importância do trabalho na educação dela. Todas concordam que o desequilíbrio social era menor quando as mu-lheres estavam mais tempo em casa e que a responsabilidade pela criação dos filhos é prioritariamente feminina. “O papel do pai é importante, mas não é nunca como o da mãe, que tem uma relação de mais afinidade com os filhos”, acredita Renata.

Já Roberta Andrade, gerente distrital de vendas, afirma que o exercício da profissão é uma coisa tão natural na sua vida quanto comer ou dormir. Roberta viaja bastante a trabalho mas conta com a ajuda do marido, da mãe e de uma empregada doméstica, que dividem com ela os cuidados com a casa e com as crianças. “Não me sinto pressionada, nem pelos meus filhos, nem pelo meu marido. Pessoas que não têm profissão definida às vezes questionam: ’como você consegue conciliar’?, mas eu não vejo assim, não é um peso pra mim. Não me sinto oprimida, porque há um equilíbrio na divisão de tarefas na minha casa. Acho que a profissão, a casa e a maternidade podem estar aliadas, sem problemas. Não sinto culpa”, diz, bem resolvida.

E os homens nessa confusão toda? Rafael Régis, 27 anos, bacharel em Direito, tem uma história até certo ponto diferente para contar. Aos 16 anos, teve um filho com uma namorada tão novinha quanto ele na época, e hoje a criança mora com o pai, num arranjo familiar que ainda é muito raro de se ver. Segundo ele, a mãe do seu filho não teve maturidade para lidar com a responsabilidade de criar alguém. Mesmo assim, e sendo tão jovem, Rafael consi-dera que a situação não é ideal, e que a função que ele exerce hoje em relação ao filho deveria ser da sua ex-mulher. “Acho que a construção da família é responsabilidade da mulher. Claro que o pai deve participar, mas a maior parcela de atribuições deve ser feminina. Admito que é uma visão machista, vinda da minha criação, não sei, mas é assim que eu penso”. Ele diz que mora com o filho por força das circunstâncias, e que já se ressentiu bastante por ter que abdicar de uma série de coisas por causa disso.

Quando da discussão dessa pauta, algumas vozes masculinas manifestaram sua opinião dizendo achar que a mu-lher teria mais vocação para as coisas do lar, não apenas levando em consideração a questão cultural, mas biológica também. O fato é que ninguém provou, até hoje, que o gênero teria alguma relação com esse tipo de habilidade, mas a sociedade ainda está tateando na busca por uma solução que contemple a todos, homens e mulheres. Talvez aquela continha básica de matemática, que soma e divide, noves fora, resolva a questão. Enquanto a balança pender para um lado só, porém, os conflitos serão inevitáveis.

Marcella Sampaio

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uando Winona Rider interpretou, no filme “Mulherzinhas” (o termo ficou politicamente incorreto e a película foi rebatizada de “Adoráveis Mulheres”, na refilmagem), a moça questionadora de uma família de mulheres cuja pers-

pectiva de futuro era o casamento, parecia que se avizinhava um tempo novo, onde determinados conceitos ficariam tão fora de moda e despropositados que não seriam nem sequer levantados. O filme, aliás, depois de muitas idas e vindas da personagem principal, terminou sendo sobre a indefectível busca pelo amor, pelo parceiro ideal e, afinal, pelo casamento. Mesmo assim, a mulher independente, profissional de talento e clichês agregados virou, no período pós anos 60/70, auge do feminismo, o ideal de comportamento da maioria das moças mundo afora. A sociedade de consumo, cada vez mais dependente dessa força de trabalho, começou a estimular, via disseminação de ideologia, a ampliação do espaço social feminino. Porém, pasmem ou não, nenhuma alma abriu a boca para sugerir de que forma o homem se readaptaria a essa nova ordem. De forma que ele não se readaptou, naturalmente, e continuou a viver a vida tal e qual outrora, com uns ajustezinhos aqui e ali. Essa equação que não fecha começa a provocar desconforto, e está gerando uma espécie de retrocesso onde, mais uma vez, as mulheres deverão ser a parte que cede.

Os Estados Unidos, país onde a vanguarda e o conservadorismo extremo convivem lado a lado, são o reflexo mais contundente desta tentativa de enquadrar as mulheres num papel considerado “adequado” – ou seja, trabalhando fora de casa, sim, mas continuando a ser a principal responsável pela manutenção da família, da casa e dos filhos. Lite-ratura de auto-ajuda com títulos como The Surrended Wife (Mulheres Submissas) estão fazendo um sucesso absurdo por lá. O movimento, claro, começa a reverberar por aqui. A autora Laura Doyle, dona de casa de 33 anos, vomita pérolas como: “Seu salário deve ser todo repassado para seu marido. A mulher deve receber uma mesada para suas despesas pessoais”. Sim, meu bem, o maridão permite que você trabalhe fora, mas o dinheiro é dele. Ela continua: “Se seu marido for infiel, seja tolerante e finja que não percebe”. Tem mais: “Esteja sempre disponível quando ele quiser fazer sexo, mesmo que não tenha vontade”. Segundo ela, essa é a receita para que os casamentos se harmonizem e sejam estáveis, promovendo o bem-estar dos filhos e, conseqüentemente, da sociedade. Estáveis, não felizes, notem bem. A mulher, mais uma vez, é que terá que arcar com o peso da insatisfação, já que o homem terá ampla liberdade para se realizar fora do casamento, sem nenhuma responsabilidade agregada a não ser a de não se separar.

O dado mais recente do IBGE diz que 29,2% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Ainda assim, 33% dos entrevistados em uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha acham que elas deveriam deixar de trabalhar fora para cuidar dos filhos, e 49% aceitam que a mulher trabalhe, desde que o salário dela seja indispensável ao orçamento familiar. A antropóloga Marion Teodósio, professora da Universidade Federal de Pernambuco, contesta a informação de que as mulheres só passaram a trabalhar no século XX e discorda radicalmente de quem afirma que o gênero determina habilidades relativas a casa e filhos. “As mulheres sempre trabalharam muito, dentro e fora de casa. Na época do feudalismo não havia essa separação entre o público e o privado, que só começou a existir com a chegada do capitalismo. O que chamamos de ‘família higiênica’, com pai, mãe e filhos convivendo juntos, só passou a existir a partir de então. Antes, as mulheres até tinham filhos mas não cuidavam deles enquanto pequenos. As amas faziam esse papel. A necessidade de maior quantidade de força de trabalho no século passado abriu caminho para que as mulheres fossem ocupando outros espaços profissionais, mais formais, o que se juntou a uma vontade legítima destas mesmas mulheres, que passaram a querer ter mais autonomia e poder de decisão”, diz.

Segundo a antropóloga, a sociedade, ao mesmo tempo em que cobra a participação feminina nos orçamentos das famílias e prega a cultura do consumo, ainda não conseguiu se adaptar totalmente à necessária divisão de tarefas que tem que vir relacionada a este processo. “O que acontece é que não há mecanismos estatais que dêem estruturas às

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O padrão mulher de verdade reverbera na sociedade e levanta questões sobre patriarcado, força de trabalho feminina e maternidade

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famílias, tais como creches e pré-escolas. O Estado tem que reconhecer sua função na organização familiar brasileira. Se as mulheres não têm com quem deixar os filhos quando saem para trabalhar, não cabe aí a responsabilização delas, mas sim uma solução do ponto de vista governamental. Por outro lado, não acredito que a mulher teria mais ‘vocação’ para os cuidados com a casa e a família. È tudo uma questão cultural. O homem também tem as mesmas condições de exercer esse papel”. Para ela, essa literatura e esses movimentos que apregoam a “volta ao lar” são ab-solutamente retrógrados e bobos. “Essa teoria psicologizada de que ‘mãe é insubstituível’ é balela. O que acontece é que, sem estrutura e sem condições de crescer profissionalmente, já que tem que arcar sozinha com o ônus dos cuidados familiares e domésticos, a mulher acaba desestimulada, cansada. E muitas vezes volta a ser dona de casa apenas por não querer mais dar murro em ponta de faca”.

Há muita gente, porém, que discorda da professora. Secretárias, com formações distintas, Andréa Chada, Audi-cléia de Souza e Renata Nóbrega acham que as mulheres deveriam trabalhar apenas meio expediente, no máximo seis horas por dia. “Minha prioridade é a família”, diz Andréa, que afirma trabalhar por necessidade, mais do que por realização pessoal. Audicléia se ressente da longa jornada, porque vê pouco a filha adolescente, embora reconheça a importância do trabalho na educação dela. Todas concordam que o desequilíbrio social era menor quando as mu-lheres estavam mais tempo em casa e que a responsabilidade pela criação dos filhos é prioritariamente feminina. “O papel do pai é importante, mas não é nunca como o da mãe, que tem uma relação de mais afinidade com os filhos”, acredita Renata.

Já Roberta Andrade, gerente distrital de vendas, afirma que o exercício da profissão é uma coisa tão natural na sua vida quanto comer ou dormir. Roberta viaja bastante a trabalho mas conta com a ajuda do marido, da mãe e de uma empregada doméstica, que dividem com ela os cuidados com a casa e com as crianças. “Não me sinto pressionada, nem pelos meus filhos, nem pelo meu marido. Pessoas que não têm profissão definida às vezes questionam: ’como você consegue conciliar’?, mas eu não vejo assim, não é um peso pra mim. Não me sinto oprimida, porque há um equilíbrio na divisão de tarefas na minha casa. Acho que a profissão, a casa e a maternidade podem estar aliadas, sem problemas. Não sinto culpa”, diz, bem resolvida.

E os homens nessa confusão toda? Rafael Régis, 27 anos, bacharel em Direito, tem uma história até certo ponto diferente para contar. Aos 16 anos, teve um filho com uma namorada tão novinha quanto ele na época, e hoje a criança mora com o pai, num arranjo familiar que ainda é muito raro de se ver. Segundo ele, a mãe do seu filho não teve maturidade para lidar com a responsabilidade de criar alguém. Mesmo assim, e sendo tão jovem, Rafael consi-dera que a situação não é ideal, e que a função que ele exerce hoje em relação ao filho deveria ser da sua ex-mulher. “Acho que a construção da família é responsabilidade da mulher. Claro que o pai deve participar, mas a maior parcela de atribuições deve ser feminina. Admito que é uma visão machista, vinda da minha criação, não sei, mas é assim que eu penso”. Ele diz que mora com o filho por força das circunstâncias, e que já se ressentiu bastante por ter que abdicar de uma série de coisas por causa disso.

Quando da discussão dessa pauta, algumas vozes masculinas manifestaram sua opinião dizendo achar que a mu-lher teria mais vocação para as coisas do lar, não apenas levando em consideração a questão cultural, mas biológica também. O fato é que ninguém provou, até hoje, que o gênero teria alguma relação com esse tipo de habilidade, mas a sociedade ainda está tateando na busca por uma solução que contemple a todos, homens e mulheres. Talvez aquela continha básica de matemática, que soma e divide, noves fora, resolva a questão. Enquanto a balança pender para um lado só, porém, os conflitos serão inevitáveis.

Marcella Sampaio

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arcus Accioly é, para utilizar um termo de Dom Pedro Diniz Quaderna, um ‘epopeieta’. Um dos poucos, legítimos e poeticamente habilidosos ‘epopeie-

tas’ da Literatura Brasileira de hoje. Um ‘epopeieta’ num tempo épico de poesia rala. Mesmo nos poemas ditos ‘líricos’ – como no caso dos poemas que com-põem o livro Érato (1990) –, o sopro é épico. O épico é algo inescapável a Accioly. Que o diga a chamada ‘trilogia épico-clássica’ do poeta, composta pelos livros “Sísifo” (1976), “Íxion” (1978) e “Narciso” (1984) – que se contrapõe, ou an-tes se completa, à trilogía ‘épico-popular’, composta pelos livros Nordestinados (1971), “Xilografia” (1974) e “Guriatã (1980).

O épico em Accioly é tão impositivo que o fez escrever – e publicar, inicialmen-te no Diário de Pernambuco em dezembro de 1975 e depois em livro, dois anos depois, pela editora da UFPE – um manifesto, intitulado “Poética: pré-manifesto ou anteprojeto do realismo épico”, no qual afirma peremptoriamente: “o mundo lírico morreu e o épico renasce do crepúsculo”.

Não é incomum a afirmativa de que os poemas épicos de Accioly são pós-mo-dernos. O próprio autor destas linhas já o fez, e hoje se arrepende. Não porque eles não sejam pós-modernos – eles o são, como o comprovam certas caracte-rísticas da obra de arte pós-moderna, como o double coding, a ironia, a paródia etc. –, mas porque classificá-los de pós-modernos é diminuir-lhes o valor, por enquadrá-los numa época específica. Os épicos de Accioly são mais que pós-mo-dernos: são para sempre.

Não se pode fechar os olhos, no entanto, para as incríveis revisões que Ac-cioly faz das epopéias a ele precedentes. Em “Sísifo”, por exemplo, não apenas o mito mas a própria estrutura poética é reavaliada, de forma a confundir o leitor menos preparado. À primeira vista, poder-se-ia encará-lo como um livro-poema de extrema vanguarda – o que, por um lado, não deixa de ser –, mas, por trás das aparências, há forte apego à tradição. De novo, o manifesto: “a) conservar a tradição como tradição é parar a história ou inverter o tempo; b) escrever sem uma raíz clássica é o mesmo que plantar uma árvore no ar”.

Em “Sísifo” não há, apenas, a oitava rima tradicional, a oitava rima de Pulci, Ariosto, Camões e outros, nem o soneto tradicional, nem o terceto dantesco tra-dicional, mas uma fragmentação dessas formas fixas, assim como há uma busca incessante pelo todo, por todas as formas poéticas mais ou menos conhecidas, como a sextina, mas uma reelaboração conteudístico-estrutural delas. Não po-demos esquecer, para fechar este parágrafo, de lembrar ao leitor que há, nesse

longo e quase inescrutável poema-livro de Accioly, poemas concretos, a poesia práxis, o linossigno de Cassiano Ricardo, etc., ou seja, incursões poéticas de ex-trema vanguarda, todos eles ancorados, porém, na tradição.

Passando de “Sísifo” a “Íxion” – não mais, como o anterior, um livro-poema épico, mas tragédia-épica –, vamos encontrar um Marcus Accioly menos van-guardista, ao menos do ponto de vista formal, porque, no que concerne ao conteúdo, a vanguarda, ainda que de forma ‘tímida’, está lá. A ironia de certas passagens – sobretudo no tocante à perversão sexual de Perséfone – nos faz lembrar não das tragédias gregas tradicionais, as tragédias de Sófocles, Eurípides e etc., mas do quarto-drama, no qual os mesmos tragediógrafos escreviam joco-samente temas por natureza trágicos. De certa forma, a tragédia épica de Accioly está mais para o ‘drama’ romântico à Goethe e Victor Hugo, em que o sublime se mescla harmoniosamente ao grotesco, que para a tragédia grega tradicional.

Já “Narciso” é um jogo de espelhos. A mesma reestruturação épica nele se realiza, embora seja um livro-poema inteiramente composto de sonetos, forma poética tradicionalmente lírica. Talvez – e apenas talvez, na opinião do autor destas linhas – seja o mais complexo livro de Accioly. Para a sua compreensão, não basta uma leitura, por mais cuidadosa que seja, do livro, mas, antes de tudo, realizar uma comparação constante com o mito de Narciso. Boa pedida para isso é ler a parte a ele dedicada nas “Metamorfoses” de Ovídio.

Para coroação – ou condensação – de tudo isso, temos “Latinomérica” (2000), épico – ou epopéia? – no qual Accioly reconta a história – ou estória? – da Améri-ca Latina como se fosse o locutor de uma luta de boxe – ou talvez um (ou os dois) dos lutadores. A mesma preocupação em reestruturar o épico dito clássico está presente neste mais um dos longos livros de Accioly. O personagem, uma mis-tura de Dante, Telêmaco e Édipo, peregrina por toda a América – do sul, central e do norte – em busca do pai. Como não o encontra, retorna ao útero da mãe – América –através de um incesto brutal e seco, numa das passagens mais cruéis – e poeticamente tocantes – de todo o poema.

Marcus Accioly, torno a dizer, é um dos últimos poetas épicos da língua. É motivo de orgulho e admiração que tenha escrito obras tão significativas. É mo-tivo de descaso e omissão que, neste ano de 2007, em que o autor comemora 40 anos de vida literária, pouco se tenha falado/escrito sobre ele. É uma lacuna que este número do Suplemento Cultural do Estado de Pernambuco tenta, hu-mildemente, suprir. Vale!

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m uma sociedade que se pauta pelo embate de idéias e pelo conflito entre classes sociais, pela fragmentação ideológica, pela consciência histórica, pela “negação

do passado” e a “afirmação de algo diferente” (Octavio paz), como é que a literatura, enquanto linguagem artística, pode resgatar a “totalidade original”? Eis uma pergunta que, nos últimos 200 anos, vem atormentando escritores e críticos literários; eis uma pergunta espinhosa que tenta ser respondida por Saulo Neiva, professor da Universi-dade Blaise Pascal (Clemont 2, França), em seu último livro: “Um novo velho do Restelo — a épica ‘satírica’ de Latinomérica” (Edições Bagaço, 2007).

De todos os gêneros resgatados do mundo Clássico pela Europa renascentista, o épico (mesmo antes dos românticos decretarem sua morte) sempre pareceu o menos adaptado ao mundo moderno. Se, para usar as palavras do crítico e teórico húnga-ro Georg Lukács, “O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso [...]”, é porque o “nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade”. É essa substantivação da totalidade que caracteriza a arte grega; em particular, a épica. Obras como a “Ilíada” e a “Odisséia” não apenas mimetizam os valores religiosos, políticos, sociais e filosóficos da sociedade que as gerou, mas essa mesma sociedade, protagonista desses épicos, se vê espelhada em cada verso heróico, em cada ação e em cada verdade que Homero fixou em palavras. Não há no mundo grego, dentro de um ponto de vista ontológico, a dissonância entre o Sujeito (Eu) e o Objeto (Outro). O mundo clássico é um mundo uno e consoante, afirma o Lukács idealista.

Daí que quando lemos “Os Lusíadas” (1572), de Camões, e vemos o bardo portu-guês cantar a unidade de um reino, que por meio das navegações iniciadas em 1492 dilatou sua Fé, seu Império “e as terras viciosas/ de África e de Ásia”, parece-nos que essa unidade, essa totalidade buscada pelo poeta, dá-se antes por uma estética e uma forma que tenta naturalizar a ideologia de determinados segmentos da sociedade lusa do que por se tratar, de fato, de uma sociedade que, à época, se caracterizava por ser una e consoante. Bastaria, à guisa de exemplo, que confrontássemos o livro de Camões com crônicas portuguesas que, de certo modo, lhe são contemporâneas: “Peregrina-ção” (1614), de Fernão Mendes Pinto, e “Ásia” (1552-1615), de João de Barros. Ambas tratam das “terras viciosas” de Ásia e, principalmente, de como por trás das supostas unidades da Fé e do Império portugueses encontramos os conflitos de interesses di-versos entre a nobreza palaciana e os mercantilistas burgueses. Mais: de como a Fé era invocada ou rejeitada de acordo com as vantagens e os objetivos econômicos dos envolvidos na dominação e exploração daquelas “terras viciosas”.

Ora, se em pleno universo dos valores classicistas o épico camoniano já nos sina-liza para uma certa extemporaneidade do gênero — particularmente quando tenta alinhavar uma “totalidade” ontológica entre os sonhos do seu herói épico (Vasco da Gama) e os da sociedade que promove sua odisséia — como cantar, em pleno século XXI, os cinco séculos de história do continente latino-americano? Continente tão diverso sócio-culturalmente e que é, no plano histórico, o primeiro grande re-sultado do mundo moderno — degradado e desintegrado — que se ia constituindo no quatrocentos europeu.

Para Saulo Neiva, o autor de “Latinomérica”, Marcus Accioly, tem consciência dessa extemporaneidade do gênero. Daí a sua negação em perseguir uma época de ouro, idílica, do passado histórico do continente. No lugar desse suposto passado de ouro, ele se volta para “[...] uma concepção idílica do ‘exílio da infância’, em que o autobiográfi-

co se associa ao simbólico”. Para tal, lança mão da “indignação crítica”, predominante no gênero satírico, urdido com “a sensualidade de um delicado erotismo”.

Lembramos, no entanto, que inserir a sátira num gênero considerado “sério” não é a única subversão praticada por Accioly. Como se sabe, a sátira, em sua origem grega (refiro-me aos escritores Menipo e Luciano), não somente mistura formalmente num mesmo texto a prosa e o verso (prosemétrico), como versos de diferentes metros, além de desrespeitar, por meio da paródia, os modelos e as tradições literárias tidos como su-periores na tradição Clássica (a épica e a tragédia). É dentro dessa miscelânia de gêneros que Accioly constrói um épico que, enquanto gênero, fala de si mesmo e, por sua vez, termina por se constituir num metaépico. Só por meio da sátira, enquanto “indignação crítica” e como paródia de gêneros sérios, é que o poeta acredita que se pode retomar um gênero aparentemente extemporâneo ao seu tempo presente. Nada mais pós-mo-derno, diriam alguns; nada mais radicalmente moderno, se pensarmos num processo de intertextualidade crítica dos gêneros.

Mesmo sendo um poema narrativo, como se espera de um épico que busca descrever a história da América Latina como uma luta entre homens num ringue de boxe, “Latino-mérica” divide-se em 20 partes, subdivididos em 423 “micro-poemas” que, em sua maio-ria, são escritos na oitava-rima, em decassílabo, como requer o verso épico. Criando novi-dades e quebrando expectativas quanto ao gênero, Accioly, dentro da sua postura satírica, alterna os decassílabos com poemas em redondilhas e em versos de tamanhos diversos: hexassílabos, pentassílabos, tetrassílabos, além de versos que alternam o decassílabo com dissilábicos ou monossilábicos, além de dísticos que ora são compostos em decassílabos ora em alexandrinos. Para Neiva, essa solução formal, dada por Accioly, “constitui um ótimo exemplo de um esforço de conciliação entre a dimensão fragmentária que domina na poesia moderna e a famosa coerência da obra épica”.

Outro ponto a ressaltar, segundo Neiva, é que o poeta não vai cantar a “raça” e a “terra predestinada a acolher o homem do futuro”, como fizera, por exemplo, Cassiano Ricardo em “Martim Cererê” (1928), mas narrar “a História da América Latina como uma sucessão de atos de espoliação ou degradação”, como poetizaram antes Castro Alves e Pablo Neruda.

Por ser um poema épico num mundo em que as narrativas curtas, como o conto, ganham força em detrimento de narrativas de fôlego mais longo, como o romance; tal-vez, como lembra Neiva, pela “hegemonia na poesia brasileira do lirismo do cotidiano e das formas curtas, na linha das considerações efetuadas anteriormente por João Cabral de Melo Neto” (“Poesia e Composição”, 1952); talvez por ser o gênero épico objeto de preconceito desde o oitocentos romântico; quem sabe pela junção de tudo isso, “Latinomérica”, quando do seu lançamento em 2002, passou quase desapercebido pela crítica especializada. Mas como toda obra que nasce clássica, esse livro de Mar-cus Accioly vem, pouco a pouco, conquistando leitores e estudos críticos que tentam entender a sua complexidade. A recente e urgente publicação de Saulo Neiva é apenas um entre outros estudos em andamento — a exemplo da Tese de Doutorado que vem sendo desenvolvida por Ricardo Soares na Pós-Graduação de Letras da UFPE — que se debruça de maneira verticalizante nesse metaépico; obra que fala da nossa miséria latino-americana e termina por encerrar na metáfora de uma luta de boxe o próprio destino de um povo, a própria existência do homem na terra. Mais: “Latinomérica” é um épico que empareda o próprio gênero épico; separa-o da sua concepção clássica; e resgata-o, por meio da sátira, como gênero literário adequado para cantar o nosso tempo presente.

EMarcus Accioly inventa epopéia moderna, muda forma, transgride e alcança timbre pessoal

Diego Raphael

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Anco Márcio Tenório Vieira

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arcus Accioly é, para utilizar um termo de Dom Pedro Diniz Quaderna, um ‘epopeieta’. Um dos poucos, legítimos e poeticamente habilidosos ‘epopeie-

tas’ da Literatura Brasileira de hoje. Um ‘epopeieta’ num tempo épico de poesia rala. Mesmo nos poemas ditos ‘líricos’ – como no caso dos poemas que com-põem o livro Érato (1990) –, o sopro é épico. O épico é algo inescapável a Accioly. Que o diga a chamada ‘trilogia épico-clássica’ do poeta, composta pelos livros “Sísifo” (1976), “Íxion” (1978) e “Narciso” (1984) – que se contrapõe, ou an-tes se completa, à trilogía ‘épico-popular’, composta pelos livros Nordestinados (1971), “Xilografia” (1974) e “Guriatã (1980).

O épico em Accioly é tão impositivo que o fez escrever – e publicar, inicialmen-te no Diário de Pernambuco em dezembro de 1975 e depois em livro, dois anos depois, pela editora da UFPE – um manifesto, intitulado “Poética: pré-manifesto ou anteprojeto do realismo épico”, no qual afirma peremptoriamente: “o mundo lírico morreu e o épico renasce do crepúsculo”.

Não é incomum a afirmativa de que os poemas épicos de Accioly são pós-mo-dernos. O próprio autor destas linhas já o fez, e hoje se arrepende. Não porque eles não sejam pós-modernos – eles o são, como o comprovam certas caracte-rísticas da obra de arte pós-moderna, como o double coding, a ironia, a paródia etc. –, mas porque classificá-los de pós-modernos é diminuir-lhes o valor, por enquadrá-los numa época específica. Os épicos de Accioly são mais que pós-mo-dernos: são para sempre.

Não se pode fechar os olhos, no entanto, para as incríveis revisões que Ac-cioly faz das epopéias a ele precedentes. Em “Sísifo”, por exemplo, não apenas o mito mas a própria estrutura poética é reavaliada, de forma a confundir o leitor menos preparado. À primeira vista, poder-se-ia encará-lo como um livro-poema de extrema vanguarda – o que, por um lado, não deixa de ser –, mas, por trás das aparências, há forte apego à tradição. De novo, o manifesto: “a) conservar a tradição como tradição é parar a história ou inverter o tempo; b) escrever sem uma raíz clássica é o mesmo que plantar uma árvore no ar”.

Em “Sísifo” não há, apenas, a oitava rima tradicional, a oitava rima de Pulci, Ariosto, Camões e outros, nem o soneto tradicional, nem o terceto dantesco tra-dicional, mas uma fragmentação dessas formas fixas, assim como há uma busca incessante pelo todo, por todas as formas poéticas mais ou menos conhecidas, como a sextina, mas uma reelaboração conteudístico-estrutural delas. Não po-demos esquecer, para fechar este parágrafo, de lembrar ao leitor que há, nesse

longo e quase inescrutável poema-livro de Accioly, poemas concretos, a poesia práxis, o linossigno de Cassiano Ricardo, etc., ou seja, incursões poéticas de ex-trema vanguarda, todos eles ancorados, porém, na tradição.

Passando de “Sísifo” a “Íxion” – não mais, como o anterior, um livro-poema épico, mas tragédia-épica –, vamos encontrar um Marcus Accioly menos van-guardista, ao menos do ponto de vista formal, porque, no que concerne ao conteúdo, a vanguarda, ainda que de forma ‘tímida’, está lá. A ironia de certas passagens – sobretudo no tocante à perversão sexual de Perséfone – nos faz lembrar não das tragédias gregas tradicionais, as tragédias de Sófocles, Eurípides e etc., mas do quarto-drama, no qual os mesmos tragediógrafos escreviam joco-samente temas por natureza trágicos. De certa forma, a tragédia épica de Accioly está mais para o ‘drama’ romântico à Goethe e Victor Hugo, em que o sublime se mescla harmoniosamente ao grotesco, que para a tragédia grega tradicional.

Já “Narciso” é um jogo de espelhos. A mesma reestruturação épica nele se realiza, embora seja um livro-poema inteiramente composto de sonetos, forma poética tradicionalmente lírica. Talvez – e apenas talvez, na opinião do autor destas linhas – seja o mais complexo livro de Accioly. Para a sua compreensão, não basta uma leitura, por mais cuidadosa que seja, do livro, mas, antes de tudo, realizar uma comparação constante com o mito de Narciso. Boa pedida para isso é ler a parte a ele dedicada nas “Metamorfoses” de Ovídio.

Para coroação – ou condensação – de tudo isso, temos “Latinomérica” (2000), épico – ou epopéia? – no qual Accioly reconta a história – ou estória? – da Améri-ca Latina como se fosse o locutor de uma luta de boxe – ou talvez um (ou os dois) dos lutadores. A mesma preocupação em reestruturar o épico dito clássico está presente neste mais um dos longos livros de Accioly. O personagem, uma mis-tura de Dante, Telêmaco e Édipo, peregrina por toda a América – do sul, central e do norte – em busca do pai. Como não o encontra, retorna ao útero da mãe – América –através de um incesto brutal e seco, numa das passagens mais cruéis – e poeticamente tocantes – de todo o poema.

Marcus Accioly, torno a dizer, é um dos últimos poetas épicos da língua. É motivo de orgulho e admiração que tenha escrito obras tão significativas. É mo-tivo de descaso e omissão que, neste ano de 2007, em que o autor comemora 40 anos de vida literária, pouco se tenha falado/escrito sobre ele. É uma lacuna que este número do Suplemento Cultural do Estado de Pernambuco tenta, hu-mildemente, suprir. Vale!

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m uma sociedade que se pauta pelo embate de idéias e pelo conflito entre classes sociais, pela fragmentação ideológica, pela consciência histórica, pela “negação

do passado” e a “afirmação de algo diferente” (Octavio paz), como é que a literatura, enquanto linguagem artística, pode resgatar a “totalidade original”? Eis uma pergunta que, nos últimos 200 anos, vem atormentando escritores e críticos literários; eis uma pergunta espinhosa que tenta ser respondida por Saulo Neiva, professor da Universi-dade Blaise Pascal (Clemont 2, França), em seu último livro: “Um novo velho do Restelo — a épica ‘satírica’ de Latinomérica” (Edições Bagaço, 2007).

De todos os gêneros resgatados do mundo Clássico pela Europa renascentista, o épico (mesmo antes dos românticos decretarem sua morte) sempre pareceu o menos adaptado ao mundo moderno. Se, para usar as palavras do crítico e teórico húnga-ro Georg Lukács, “O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso [...]”, é porque o “nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade”. É essa substantivação da totalidade que caracteriza a arte grega; em particular, a épica. Obras como a “Ilíada” e a “Odisséia” não apenas mimetizam os valores religiosos, políticos, sociais e filosóficos da sociedade que as gerou, mas essa mesma sociedade, protagonista desses épicos, se vê espelhada em cada verso heróico, em cada ação e em cada verdade que Homero fixou em palavras. Não há no mundo grego, dentro de um ponto de vista ontológico, a dissonância entre o Sujeito (Eu) e o Objeto (Outro). O mundo clássico é um mundo uno e consoante, afirma o Lukács idealista.

Daí que quando lemos “Os Lusíadas” (1572), de Camões, e vemos o bardo portu-guês cantar a unidade de um reino, que por meio das navegações iniciadas em 1492 dilatou sua Fé, seu Império “e as terras viciosas/ de África e de Ásia”, parece-nos que essa unidade, essa totalidade buscada pelo poeta, dá-se antes por uma estética e uma forma que tenta naturalizar a ideologia de determinados segmentos da sociedade lusa do que por se tratar, de fato, de uma sociedade que, à época, se caracterizava por ser una e consoante. Bastaria, à guisa de exemplo, que confrontássemos o livro de Camões com crônicas portuguesas que, de certo modo, lhe são contemporâneas: “Peregrina-ção” (1614), de Fernão Mendes Pinto, e “Ásia” (1552-1615), de João de Barros. Ambas tratam das “terras viciosas” de Ásia e, principalmente, de como por trás das supostas unidades da Fé e do Império portugueses encontramos os conflitos de interesses di-versos entre a nobreza palaciana e os mercantilistas burgueses. Mais: de como a Fé era invocada ou rejeitada de acordo com as vantagens e os objetivos econômicos dos envolvidos na dominação e exploração daquelas “terras viciosas”.

Ora, se em pleno universo dos valores classicistas o épico camoniano já nos sina-liza para uma certa extemporaneidade do gênero — particularmente quando tenta alinhavar uma “totalidade” ontológica entre os sonhos do seu herói épico (Vasco da Gama) e os da sociedade que promove sua odisséia — como cantar, em pleno século XXI, os cinco séculos de história do continente latino-americano? Continente tão diverso sócio-culturalmente e que é, no plano histórico, o primeiro grande re-sultado do mundo moderno — degradado e desintegrado — que se ia constituindo no quatrocentos europeu.

Para Saulo Neiva, o autor de “Latinomérica”, Marcus Accioly, tem consciência dessa extemporaneidade do gênero. Daí a sua negação em perseguir uma época de ouro, idílica, do passado histórico do continente. No lugar desse suposto passado de ouro, ele se volta para “[...] uma concepção idílica do ‘exílio da infância’, em que o autobiográfi-

co se associa ao simbólico”. Para tal, lança mão da “indignação crítica”, predominante no gênero satírico, urdido com “a sensualidade de um delicado erotismo”.

Lembramos, no entanto, que inserir a sátira num gênero considerado “sério” não é a única subversão praticada por Accioly. Como se sabe, a sátira, em sua origem grega (refiro-me aos escritores Menipo e Luciano), não somente mistura formalmente num mesmo texto a prosa e o verso (prosemétrico), como versos de diferentes metros, além de desrespeitar, por meio da paródia, os modelos e as tradições literárias tidos como su-periores na tradição Clássica (a épica e a tragédia). É dentro dessa miscelânia de gêneros que Accioly constrói um épico que, enquanto gênero, fala de si mesmo e, por sua vez, termina por se constituir num metaépico. Só por meio da sátira, enquanto “indignação crítica” e como paródia de gêneros sérios, é que o poeta acredita que se pode retomar um gênero aparentemente extemporâneo ao seu tempo presente. Nada mais pós-mo-derno, diriam alguns; nada mais radicalmente moderno, se pensarmos num processo de intertextualidade crítica dos gêneros.

Mesmo sendo um poema narrativo, como se espera de um épico que busca descrever a história da América Latina como uma luta entre homens num ringue de boxe, “Latino-mérica” divide-se em 20 partes, subdivididos em 423 “micro-poemas” que, em sua maio-ria, são escritos na oitava-rima, em decassílabo, como requer o verso épico. Criando novi-dades e quebrando expectativas quanto ao gênero, Accioly, dentro da sua postura satírica, alterna os decassílabos com poemas em redondilhas e em versos de tamanhos diversos: hexassílabos, pentassílabos, tetrassílabos, além de versos que alternam o decassílabo com dissilábicos ou monossilábicos, além de dísticos que ora são compostos em decassílabos ora em alexandrinos. Para Neiva, essa solução formal, dada por Accioly, “constitui um ótimo exemplo de um esforço de conciliação entre a dimensão fragmentária que domina na poesia moderna e a famosa coerência da obra épica”.

Outro ponto a ressaltar, segundo Neiva, é que o poeta não vai cantar a “raça” e a “terra predestinada a acolher o homem do futuro”, como fizera, por exemplo, Cassiano Ricardo em “Martim Cererê” (1928), mas narrar “a História da América Latina como uma sucessão de atos de espoliação ou degradação”, como poetizaram antes Castro Alves e Pablo Neruda.

Por ser um poema épico num mundo em que as narrativas curtas, como o conto, ganham força em detrimento de narrativas de fôlego mais longo, como o romance; tal-vez, como lembra Neiva, pela “hegemonia na poesia brasileira do lirismo do cotidiano e das formas curtas, na linha das considerações efetuadas anteriormente por João Cabral de Melo Neto” (“Poesia e Composição”, 1952); talvez por ser o gênero épico objeto de preconceito desde o oitocentos romântico; quem sabe pela junção de tudo isso, “Latinomérica”, quando do seu lançamento em 2002, passou quase desapercebido pela crítica especializada. Mas como toda obra que nasce clássica, esse livro de Mar-cus Accioly vem, pouco a pouco, conquistando leitores e estudos críticos que tentam entender a sua complexidade. A recente e urgente publicação de Saulo Neiva é apenas um entre outros estudos em andamento — a exemplo da Tese de Doutorado que vem sendo desenvolvida por Ricardo Soares na Pós-Graduação de Letras da UFPE — que se debruça de maneira verticalizante nesse metaépico; obra que fala da nossa miséria latino-americana e termina por encerrar na metáfora de uma luta de boxe o próprio destino de um povo, a própria existência do homem na terra. Mais: “Latinomérica” é um épico que empareda o próprio gênero épico; separa-o da sua concepção clássica; e resgata-o, por meio da sátira, como gênero literário adequado para cantar o nosso tempo presente.

EMarcus Accioly inventa epopéia moderna, muda forma, transgride e alcança timbre pessoal

Diego Raphael

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Anco Márcio Tenório Vieira

Saber+

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hovia há 10 dias quando eu cheguei numa praia do sul da Bahia: com uma mochila cujo peso equivalia a 1/3 dos meus

parcos quilos, duas câmeras pesadas e um nebulizador. Tudo o que eu queria era dar vez ao barulho dos meus pensamentos, do qual há tanto eu fugia.

Engraçado como é fácil se anestesiar diante de uma enxurrada de fatos ácidos. É como quando você está no ônibus e vai aumen-tando o volume do seu mp3player para parar de ouvir o barulho do motor – até o momento em que ambos ficam ensurdecedores. Aí, o que era pra ser um alívio se torna um tormento e, muito a contragosto, você é obrigado a ouvir o barulho inicial do qual es-tava fugindo.

E a desordem da orquestração vai doer.Trancoso foi o lugar em que desliguei meu i-Pod imaginário

para ouvir a barulheira do motor capenga da minha alma. E não foi surpresa ver que, depois de um ano submersa na doçura da ignorância, faltava óleo, faltava água no carburador.

Na tarde que eu cheguei lá, parecendo um caracol, fez sol. Ale-goria boa para quem quer explicações. Deixei a mochila no alber-gue e fui andar.

Não deve ter sido por acaso que a primeira coisa em que trope-cei foi num cemitério. Desses de lápides baixas, que ficam do lado das igrejas mais antigas. Era o barulho do motor do ônibus pedindo pra ser ouvido: ficar sozinha com seus mais histéricos pensamentos não deve ser mais doloroso do que a dor causada pela morte.

Então, temer o quê?A cidade tem dois lados, em relação à Igreja (faz de conta que

você tá de frente pro mar): o direito dá na Praia dos Coqueiros, mais vazia e mais linda, mas tão comprida que dá medo de ir até o fim. A praia da esquerda, que se chama Praia dos Nativos, é menor, é mais cheia de turistas, aparentemente pouco atrativa. Mas é do lado esquerdo que passa o rio: frio e silencioso, que atravessa incó-lume o mangue e chega, cor de âmbar, ao mar.

Trancoso é como tudo na vida: tem dois lados. E, muito embora a gente ache que um deles é melhor, qualquer uma das escolhas traz misturados em si não somente o ônus, mas também a re-compensa. Eu quero muito aprender a assinar embaixo das minhas decisões, sabendo que nem tudo o que eu decidir pra mim vai ser somente bom ou somente ruim. Nossas escolhas podem ser am-bivalentes, como ambivalentes somos nós mesmos, e nada disso é um demérito.

É que essa recorrente arrogância nos faz crer que o sofrimento da escolha (vamos ser honestos, escolher dói porque a gente tem que a abrir mão da outra coisa) vai ser recompensador – e aí a gen-te vira uma cambada de levianos. Mas na maioria das vezes a op-ção só traz uma coisa diferente. É como quando a gente abre mão da panela de brigadeiro e, mesmo se roendo, acha que foi melhor assim por causa das calorias a menos. E logo mais tá ali comendo arroz de polvo com cerveja.

Acho que todo mundo devia, nem que seja uma vez na vida, ir sozinho para um lugar que exija apenas muita energia contem-plativa. Você não vai fazer um momento auto-ajuda se tiver que se preocupar com a fenda do metrô de Londres, certo? E, pare de olhar a Internet e desligue o celular (coisa que eu, devo confessar, só consegui lá pelo terceiro dia).

2007 tá acabando, graças a Deus. Tudo bem que toda ruptura é renovadora, mas tá bom já. Engraçado que este foi o ano do porco e este representa, na balela do horóscopo chinês, riqueza, abundância e alegria. Ah, tá, claro. Eu só tenho uma coisa a dizer a respeito dos porcos: eles até são rosinha e bonitinhos, mas só quando se chega perto é que se sente o tamanho da catinga.

Na minha viagem pessoal, 2008 deve ser bom. Primeiro por-que não tem como o tsunami rolar dois anos seguidos (eu sei que o tsunami real rolou em 2004, mas você entendeu minha metá-fora); segundo porque se 2+8 = 10 e 10 é 1 na numerologia, então é o ano de juntar as peças do Lego da sua vida e começar tudo de novo.

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Adelaide Ivanova

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E então, temer o quê?

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SXC.

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sia

á está ele. Um pouco escondido pela aba do chapéu do vizinho. Sem entender direito por que o colo-caram entre dois comediantes, ainda mais ingleses. Sem entender direito o que está fazendo na capa

de um disco, ainda deste disco. Mas Karlheinz Stockhausen está lá. Porque, na dúvida, é melhor estar do que não estar. E toda vez que esta imagem aparece, toda vez que ela é citada, ele está presente. Mesmo que a gente não saiba.

Stockhausen está na última fila, em pé. É o quarto, no sentido horário, da esquerda para a direita. Não olha para nós, mas também não se exime de olhar. Ele dirige os olhos para alguma coisa que a gente não está vendo, nem vai ver. Não agora. Não tão cedo.

Stockhausen não gostava dos Beatles. Nem de drogas. Mas os Beatles gostavam dele, é claro, e tam-bém de drogas, e resolveram que o compositor alemão deveria estar na capa do seu disco mais falado, “Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band”. Não tem nada de Stockhausen no álbum. E nem caberia. Mas ele está lá, mesmo que apenas em imagem. E isto basta.

Acho que Stockhausen também não gostava de Miles Davis, nem do Pink Floyd, nem de Frank Zappa, nem de Björk. Mas todos eles, em algum momento de suas carreiras, o citaram como influência. Foi fala-do ainda por Alan Moore em “Watchmen” e por Philip K. Dick num dos seus romances. Stockhausen foi professor dos caras do Can e do Kraftwerk, e de mais um monte de gente que ele provavelmente nunca citou como influência.

Karlheinz Stockhausen morreu no último dia 5 de dezembro aos 79 anos. Foi um dos mais importantes e controversos compositores do século 20, pelo que me dizem. Trabalhou com música eletrônica, com música aleatória, incorporou o sistema serial, depois discordou dele, e continuou a discordar até o fim da vida. Tem peça de Stockhausen que pode ser lida de trás pra frente, de frente para trás, de cabeça pra cima ou pra baixo, da esquerda para direita e também no sentido contrário. Ele foi um dos primeiros, se não o próprio, a fazer música eletrônica ao vivo. Nada a ver com o que a gente chama hoje de música eletrônica. Mas ela não existiria sem ele. Com desgosto.

“Ele foi o mais pop dos eruditos até hoje”, diz José Guilherme Lima, produtor musical. “Foi um dos principais expoentes da geração de compositores que colocou a eletrônica à serviço da música, do ponto de vista da composição. Criou uma estética musical que expandiu os limites da música ocidental, ao ad-mitir sonoridades e combinações que estavam fora do que era permitido até então”. Stockhausen gostava do oriente, do Japão, e gostava de sintetizadores.

O alemão fez música pra coral, piano, trompete, orquestra, potenciômetro, microfone, tom tom e helicóptero. Ele gostava da arte dos sons, mas também gostava de falar. Disse, na ocasião dos ataques de 11 de setembro, que havia renunciado a Lúcifer, mas que o tinhoso “estava muito presente, como em Nova York recentemente”. Afirmou que o atentado era “a maior obra de arte já feita”. Não disse isto assim, isoladamente. Mas disse. E eu não sou ninguém para discordar.

“É importante levar em conta a contribuição do Stockhausen e dos demais compositores ‘sérios’ do século 20 no desenvolvimento da tecnologia musical. Até essa geração de compositores surgir, a tec-nologia existente se prestava a registrar a música popular e a música de concerto”, diz Lima. Em suma: o celular do seu colega de trabalho não ia tocar o tema do “Poderoso chefão” sem que Stockhausen tivesse vindo à Terra.

“A geração do Stockhausen transformou os equipamentos disponíveis nos instrumentos para se fazer música, e acabou desenvolvendo novas geringonças para este fim. A necessidade acabou se transforman-do, décadas depois, em uma produção de escala industrial de sintetizadores, samplers, e seqüenciadores”, diz o produtor.

No obituário escrito no jornal inglês The Guardian, o repórter questiona: é verdade, como os estudiosos mais conservadores afirmam, que Stockhausen não é nada além de um sintoma de aberração na história da música? Acho que sim. Numa era de aberrações, a música de Stockhausen é a mais provocante e desafiadora de todas.

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Haymone neto

Stockhousen podia até não gostar, mas foi transformado em ícone pop

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hovia há 10 dias quando eu cheguei numa praia do sul da Bahia: com uma mochila cujo peso equivalia a 1/3 dos meus

parcos quilos, duas câmeras pesadas e um nebulizador. Tudo o que eu queria era dar vez ao barulho dos meus pensamentos, do qual há tanto eu fugia.

Engraçado como é fácil se anestesiar diante de uma enxurrada de fatos ácidos. É como quando você está no ônibus e vai aumen-tando o volume do seu mp3player para parar de ouvir o barulho do motor – até o momento em que ambos ficam ensurdecedores. Aí, o que era pra ser um alívio se torna um tormento e, muito a contragosto, você é obrigado a ouvir o barulho inicial do qual es-tava fugindo.

E a desordem da orquestração vai doer.Trancoso foi o lugar em que desliguei meu i-Pod imaginário

para ouvir a barulheira do motor capenga da minha alma. E não foi surpresa ver que, depois de um ano submersa na doçura da ignorância, faltava óleo, faltava água no carburador.

Na tarde que eu cheguei lá, parecendo um caracol, fez sol. Ale-goria boa para quem quer explicações. Deixei a mochila no alber-gue e fui andar.

Não deve ter sido por acaso que a primeira coisa em que trope-cei foi num cemitério. Desses de lápides baixas, que ficam do lado das igrejas mais antigas. Era o barulho do motor do ônibus pedindo pra ser ouvido: ficar sozinha com seus mais histéricos pensamentos não deve ser mais doloroso do que a dor causada pela morte.

Então, temer o quê?A cidade tem dois lados, em relação à Igreja (faz de conta que

você tá de frente pro mar): o direito dá na Praia dos Coqueiros, mais vazia e mais linda, mas tão comprida que dá medo de ir até o fim. A praia da esquerda, que se chama Praia dos Nativos, é menor, é mais cheia de turistas, aparentemente pouco atrativa. Mas é do lado esquerdo que passa o rio: frio e silencioso, que atravessa incó-lume o mangue e chega, cor de âmbar, ao mar.

Trancoso é como tudo na vida: tem dois lados. E, muito embora a gente ache que um deles é melhor, qualquer uma das escolhas traz misturados em si não somente o ônus, mas também a re-compensa. Eu quero muito aprender a assinar embaixo das minhas decisões, sabendo que nem tudo o que eu decidir pra mim vai ser somente bom ou somente ruim. Nossas escolhas podem ser am-bivalentes, como ambivalentes somos nós mesmos, e nada disso é um demérito.

É que essa recorrente arrogância nos faz crer que o sofrimento da escolha (vamos ser honestos, escolher dói porque a gente tem que a abrir mão da outra coisa) vai ser recompensador – e aí a gen-te vira uma cambada de levianos. Mas na maioria das vezes a op-ção só traz uma coisa diferente. É como quando a gente abre mão da panela de brigadeiro e, mesmo se roendo, acha que foi melhor assim por causa das calorias a menos. E logo mais tá ali comendo arroz de polvo com cerveja.

Acho que todo mundo devia, nem que seja uma vez na vida, ir sozinho para um lugar que exija apenas muita energia contem-plativa. Você não vai fazer um momento auto-ajuda se tiver que se preocupar com a fenda do metrô de Londres, certo? E, pare de olhar a Internet e desligue o celular (coisa que eu, devo confessar, só consegui lá pelo terceiro dia).

2007 tá acabando, graças a Deus. Tudo bem que toda ruptura é renovadora, mas tá bom já. Engraçado que este foi o ano do porco e este representa, na balela do horóscopo chinês, riqueza, abundância e alegria. Ah, tá, claro. Eu só tenho uma coisa a dizer a respeito dos porcos: eles até são rosinha e bonitinhos, mas só quando se chega perto é que se sente o tamanho da catinga.

Na minha viagem pessoal, 2008 deve ser bom. Primeiro por-que não tem como o tsunami rolar dois anos seguidos (eu sei que o tsunami real rolou em 2004, mas você entendeu minha metá-fora); segundo porque se 2+8 = 10 e 10 é 1 na numerologia, então é o ano de juntar as peças do Lego da sua vida e começar tudo de novo.

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Stockhausen está na última fila, em pé. É o quarto, no sentido horário, da esquerda para a direita. Não olha para nós, mas também não se exime de olhar. Ele dirige os olhos para alguma coisa que a gente não está vendo, nem vai ver. Não agora. Não tão cedo.

Stockhausen não gostava dos Beatles. Nem de drogas. Mas os Beatles gostavam dele, é claro, e tam-bém de drogas, e resolveram que o compositor alemão deveria estar na capa do seu disco mais falado, “Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band”. Não tem nada de Stockhausen no álbum. E nem caberia. Mas ele está lá, mesmo que apenas em imagem. E isto basta.

Acho que Stockhausen também não gostava de Miles Davis, nem do Pink Floyd, nem de Frank Zappa, nem de Björk. Mas todos eles, em algum momento de suas carreiras, o citaram como influência. Foi fala-do ainda por Alan Moore em “Watchmen” e por Philip K. Dick num dos seus romances. Stockhausen foi professor dos caras do Can e do Kraftwerk, e de mais um monte de gente que ele provavelmente nunca citou como influência.

Karlheinz Stockhausen morreu no último dia 5 de dezembro aos 79 anos. Foi um dos mais importantes e controversos compositores do século 20, pelo que me dizem. Trabalhou com música eletrônica, com música aleatória, incorporou o sistema serial, depois discordou dele, e continuou a discordar até o fim da vida. Tem peça de Stockhausen que pode ser lida de trás pra frente, de frente para trás, de cabeça pra cima ou pra baixo, da esquerda para direita e também no sentido contrário. Ele foi um dos primeiros, se não o próprio, a fazer música eletrônica ao vivo. Nada a ver com o que a gente chama hoje de música eletrônica. Mas ela não existiria sem ele. Com desgosto.

“Ele foi o mais pop dos eruditos até hoje”, diz José Guilherme Lima, produtor musical. “Foi um dos principais expoentes da geração de compositores que colocou a eletrônica à serviço da música, do ponto de vista da composição. Criou uma estética musical que expandiu os limites da música ocidental, ao ad-mitir sonoridades e combinações que estavam fora do que era permitido até então”. Stockhausen gostava do oriente, do Japão, e gostava de sintetizadores.

O alemão fez música pra coral, piano, trompete, orquestra, potenciômetro, microfone, tom tom e helicóptero. Ele gostava da arte dos sons, mas também gostava de falar. Disse, na ocasião dos ataques de 11 de setembro, que havia renunciado a Lúcifer, mas que o tinhoso “estava muito presente, como em Nova York recentemente”. Afirmou que o atentado era “a maior obra de arte já feita”. Não disse isto assim, isoladamente. Mas disse. E eu não sou ninguém para discordar.

“É importante levar em conta a contribuição do Stockhausen e dos demais compositores ‘sérios’ do século 20 no desenvolvimento da tecnologia musical. Até essa geração de compositores surgir, a tec-nologia existente se prestava a registrar a música popular e a música de concerto”, diz Lima. Em suma: o celular do seu colega de trabalho não ia tocar o tema do “Poderoso chefão” sem que Stockhausen tivesse vindo à Terra.

“A geração do Stockhausen transformou os equipamentos disponíveis nos instrumentos para se fazer música, e acabou desenvolvendo novas geringonças para este fim. A necessidade acabou se transforman-do, décadas depois, em uma produção de escala industrial de sintetizadores, samplers, e seqüenciadores”, diz o produtor.

No obituário escrito no jornal inglês The Guardian, o repórter questiona: é verdade, como os estudiosos mais conservadores afirmam, que Stockhausen não é nada além de um sintoma de aberração na história da música? Acho que sim. Numa era de aberrações, a música de Stockhausen é a mais provocante e desafiadora de todas.

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Raul Azevedo de Andrade Ferreira

á exatos 150 anos, Charles Baudelaire publicava seu volume de poesias intitulado “As flores do mal”, e hoje ainda se pode dizer que sua obra guarda um indiscutível vigor. Como é de praxe no ritual de assimilação

da obra dos grandes gênios artísticos, Baudelaire foi incompreendido e julgado negativamente pela crítica es-pecializada de sua época, assim como pelo tribunal parisiense, sendo obrigado a excluir determinados poemas que ofendiam a moral burguesa. Mas o fenômeno Baudelaire também recebeu acolhimento receptivo por algumas sensibilidades de seu tempo, dentre elas a de Victor Hugo que, ao agradecer a dedicatória de alguns poemas, afirmava: “o que você faz? Você marcha? Você dotou o céu da arte de um certo raio macabro. Você criou um novo frisson...”

As palavras de Victor Hugo denunciam que ele se encontrava de alguma forma desorientado; sem saber exatamente como e para onde, sabia apenas que o jovem poeta ousava em dar um passo mais adiante. Hugo apenas identifica a inauguração de uma nova sensibilidade artística, e se a característica principal de toda gran-de obra é o fato de ela possibilitar uma multiplicidade de leituras, pode-se dizer que é esse frisson nouveau que sintetiza o núcleo da moderna poética inaugurada por Baudelaire. Mas, para além da identificação dessa nova sensibilidade, caberá a cada artista ou crítico que quiser se incluir numa tradição baudelairiana construir seu próprio Baudelaire, pois, nas palavras de um eminente baudelairiano, o poeta inglês T.S. Eliot, “sua própria amplitude cria dificuldades, pois ela induz o crítico partidário, mesmo nos dias de hoje, a reconhecer em Bau-delaire o patrono de suas próprias crenças”.

Baudelaire era consciente do poder de inovação de sua poesia, ele inclusive preferia os seus leitores do futuro aos seus contemporâneos. Mas o que ele não poderia ter consciência era qual Baudelaire seria lido pela posteridade. Um outro baudelairiano, Paul Valéry, afirmava que todo grande homem se nutre da ilusão de pres-crever algo ao futuro, e que essa ambição, chamada por ele de duração, seria a saúde que conservaria a obra do tempo. A permanência de uma obra de arte não é devida a um congelamento de suas possibilidades, mas a uma elasticidade que impede que as intempéries do tempo a desgaste até o completo esquecimento. Palavras do próprio Valéry: “A obra dura à medida que ela é capaz de parecer uma outra que seu autor fez. Uma obra

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dura por ser transformada, assim como por ser capaz de milhares de interpretações e transformações”. Assim, se Baudelaire desejou ser lido no futuro, ele nunca poderia saber como a posteridade iria entendê-lo, pois a du-ração é uma qualidade independente de seu autor; ela é justamente a possibilidade da obra se fazer uma outra e, assim, poder continuar oferecendo alguma resposta às necessidades de significação do homem.

A elasticidade dos signos artísticos é a irmã gêmea da riqueza múltipla que os olhos contempladores irão ex-perimentar. Nada mais apropriado, portanto, que o plural no título do livro, pois o jardim da poética de Baude-laire possui uma variedade de espécimes que surpreenderia o seu próprio autor. Em Baudelaire, por exemplo, os simbolistas colheram uma perspectiva mística do real pautado pela correspondência dos sentidos; os decaden-tistas puderam ver nele o semeador de seu satanismo estético; Rimbaud clariviu o abalo sísmico da linguagem poética; já Eliot cheirou a desagregação da moral moderna nas grandes cidades expressa, numa dicção clássica que somente a tradição mediterrânea poderia lhe ensinar.

Um caso exemplar da duração artística pode ser vista no que acontecia com o próprio Baudelaire em rela-ção aos seus ícones artísticos. Diz-se nos Estados Unidos que o Poe de Baudelaire é melhor que o Poe de Poe. Outro exemplo é a atitude do escritor francês para com Richard Wagner. Em sua famosa carta ao compositor, Baudelaire confessa que em sua música ele havia provado certo “sentimento de uma natureza assaz bizarra, alguma coisa de excessivo e de superlativo (...) o grito supremo da alma montada ao seu paroxismo”. Vê-se que o poeta francês se referia à música do alemão com palavras que descreveriam muito bem a sua própria poesia. O poeta, aliás, possuía consciência desse efeito que fazia a expressão do outro se voltar para si mesmo : “pareceu-me que esta música era a minha, e eu a reconheci como todo homem reconhece as coisas que ele está destinado a amar”. E assim termina sua carta: “Senhor, eu vos agradeço; você me chamou a mim mesmo e ao grande, nas horas más”

O que Baudelaire experimentava na literatura de Poe e na música de Wagner era o efeito de uma grande obra de arte. O mesmo que viriam experimentar os futuros baudelairianos com “As flores do mal”: uma duração que em certo sentido é totalmente independente do próprio Charles Pierre Baudelaire. Ver mais de si mesmo nas palavras do outro: não seria esse o trabalho da leitura da poesia e da arte?

Lançado há 150 anos, “As flores do mal” causou um frisson na literatura moderna

indivíduo físico Rodolfo Mesquita é muito difícil de separar da sua arte. Não pelo retrato chapado, 3 x 4. Mas pelo que ele é, quando fala, quando age,

quando anda. A quem não o conhece, e com isto queremos dizer a quem não tem acesso à sua arte, ele é, pelo que parece, um indivíduo louco, porque é sincero até o ponto do constrangimento e porque também guarda em 2007, o visual de um hippie que sobreviveu à hecatombe.

No Recife, em Olinda, a fundamental ignorância, que vem a ser a ignorância artística, conhece um Rodolfo Mesquita distorcido pela caricatura, pela ignara fama. Tratam-no às vezes por uma antonomásia, quando lhe esquecem o nome: “Aquele pintor louco, genial”. Dito o qual, passa, a fundamental ignorância, a narrar uma ou várias histórias folclóricas de Rodolfo, tão ignorantes quanto fan-tasiosas. Mas esse artista, mesmo para os que foram tocados pelo dom da sua arte, surpreende. Lembro dele há uns dez anos, quando o encontrei num bar em Olinda, pelo carnaval. Um amigo nosso, comum, estava preso, em razão de ter sido encontrado com uns cigarros de maconha. Ao lembrar-lhe esse amigo, Rodolfo me perguntou, em frente a meus dois filhos pequenos: - Você também fuma maconha?

Difícil foi depois explicar às crianças que eu não fumava maconha, e mais ainda dizer-lhes que ainda assim, eu poderia ser preso.

Em outra oportunidade, levei-o convidado para uma palestra no Banco do Brasil. Alertado por ele, antes, que falar, dar palestras, não era o que ele sabia fazer, “não é minha praia, sabe?”, deixei-me ficar ao seu lado como entrevista-dor, enquanto numa tela eram projetadas imagens dos quadros da sua última exposição. Foi um sucesso. Eu lhe perguntava:

- Rodolfo, o que representa esta imagem?- Um homem, ele me respondia. - Certo, mas o que o esse homem faz no quadro?- Ele está caminhando. A platéia delirava de tanto rir. Provavelmente ao ouvir os silêncios guardados

pelo entrevistador, depois de tais respostas. Bem feito, como diziam os meninos em nossa infância, quando éramos punidos depois de algum ato mau. Bem feito. Se o entrevistador queria razões transcendentais, mistificadoras, para os quadros, não teria o artista Rodolfo para indicá-las. Que o público entendesse como bem entendesse o que ele pintava. E aqui chegamos à honestidade radi-cal desse artista.

Se nos seus quadros ele nada concede ao gosto, mau gosto ou bom gosto do distinto público, quando fala sobre o próprio trabalho ele também afasta de si qualquer medalha falsa:

“Eu sou desenhista. Na verdade, não me considero pintor. Eu desenho sem-pre. Eventualmente, faço pintura. Em meus quadros nunca parto da pintura. Sempre parto do desenho. Eu sou pintor porque pinto. Mas não sou um pintor no sentido em que Ismael Caldas é”.

Evidentemente, e jamais eventualmente, tal prática de radical honestidade tem conseqüências práticas, nada belamente artísticas.

“Eu trabalho há quarenta anos. O sucesso financeiro é um nó cego. Mas, ao mesmo tempo (é um negócio até meio masoquista), eu ficaria muito descon-fiado de mim mesmo se o meu trabalho agradasse à burguesia cafona. Se, de repente ela começar a gostar do que faço, será por algo circunstancial e não pelo valor do meu trabalho. O cara pode vender bem, mas é diferente vender bem de ser um bom artista. O sucesso material nada tem a ver com o sucesso

artístico. O fato de o meu trabalho ser subterrâneo tem a ver com o teor dele. Se ele fosse decorativo, seria mais vendável. ‘Esse quadro de Rodolfo cai direitinho naquela minha sala’, ia dizer a madame. Madame estaria enganada.”

Aquelas palavras curtas, lacônicas, nas respostas ao entrevistador durante a palestra, eram uma recusa à mistificação, um sonoro não à mentira, Jamais uma incapacidade verbal, ou uma incompreensão do próprio trabalho.

“Se eu me desse bem com a burguesia, eu venderia mais. Isso tem a ver com as coisas que eu recuso na vida. Por exemplo: eu sou inconformista. Eu sou porque aceitar a ordem social como ela é não me agrada de forma nenhuma. Esse cotidiano, as coisas que eu vejo, eu não aceito. Eu não agüento isto. É isso que eu procuro colocar no meu trabalho. Eu canalizo minha revolta para o meu trabalho. O que eu vou fazer, brigar com punhal, dar tiro em todo o mundo? Então eu desenho e pinto. Se eu não fizer isto, eu vou ficar muito mal comigo mesmo.”

Daí que para um artista que vende pouco, e por um preço baixo quando comparado a outros da sua mesma idade e tempo (como deveriam ser pesados os artistas e a sua arte?); daí que, ao se lembrar dos novos-ricos que compram quadros por metro quadrado e pela última cotação do mercado (atenção, sen-síveis burgueses, Rodolfo Mesquita logo terá a sua mais alta valorização, porque aos 53 anos de idade pouco se distancia da sua morte); daí que o artista não se ofenda em ser tido e tomado como um outsider.

“Eu não me ofendo, porque a minha situação social é esta. Mas é uma con-tradição. É ridículo, de certa forma, porque eu sou também considerado um medalhão. Meu currículo é cheio de prêmios, prêmios de Salão, eu sou um artis-ta premiado por instituições oficiais. Se os prêmios fossem medalhas, juntando todos, eu seria uma grande medalha. A contradição é que isto não se traduz em conforto material. Os prêmios que eu recebi não se traduzem em dinheiro, para a minha sobrevivência. Eu sou aquilo que os franceses chamam um “sucesso de estima”. E morre por aí mesmo.”

Então eu lhe pergunto do que o artista vive, do que o artista se alimenta, de um ponto de vista espiritual. Na sua voz rouca de cigarros me responde:

“Das informações que recebo, entende? Se eu vejo um desenho que eu acho bonito, aquilo me estimula em meu trabalho. Arte se alimenta de arte. Eu refli-to o que eu leio, o que eu vejo, o que eu vivo. Eu gosto muito do desenho de Millôr Fernandes, por exemplo. Eu gosto mais do desenho dele do que do texto dele. Já vi coisa boa de Siron Franco. Aqui em Pernambuco, Samico é muito bom, é muito boa a gravura dele. Ismael, eu já falei. Da história, eu me lembro de Van Gogh, é um mestre. Goya é outro desenhista extraordinário. Velásquez, Bosch, Breughel ... mas eu não gosto de citar nomes da história da arte, porque de repente dá a impressão de que a gente é pretensioso, que deseja passar a impressão de que é da mesma família. Não é isto. Cito assim porque esses caras são uma fonte de alimento.”

Então eu lhe peço que deixe uma referência, para que as pessoas de sensibi-lidade vejam o nível e a qualidade do seu trabalho. Ele me responde que pode ser visto no site www.rodolfomesquita.com .

E por último, e por fim, antes de desligar o telefone, eu lhe pergunto de que vive um artista, de um ponto de vista estritamente material. E ele, com a mesma voz rouca, me solta, sem nem um pigarro:

“De carne, de pão, de arroz e feijão. Artista come e defeca, entende?” Entendo. E desligo.

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Louco e sincero

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Raul Azevedo de Andrade Ferreira

á exatos 150 anos, Charles Baudelaire publicava seu volume de poesias intitulado “As flores do mal”, e hoje ainda se pode dizer que sua obra guarda um indiscutível vigor. Como é de praxe no ritual de assimilação

da obra dos grandes gênios artísticos, Baudelaire foi incompreendido e julgado negativamente pela crítica es-pecializada de sua época, assim como pelo tribunal parisiense, sendo obrigado a excluir determinados poemas que ofendiam a moral burguesa. Mas o fenômeno Baudelaire também recebeu acolhimento receptivo por algumas sensibilidades de seu tempo, dentre elas a de Victor Hugo que, ao agradecer a dedicatória de alguns poemas, afirmava: “o que você faz? Você marcha? Você dotou o céu da arte de um certo raio macabro. Você criou um novo frisson...”

As palavras de Victor Hugo denunciam que ele se encontrava de alguma forma desorientado; sem saber exatamente como e para onde, sabia apenas que o jovem poeta ousava em dar um passo mais adiante. Hugo apenas identifica a inauguração de uma nova sensibilidade artística, e se a característica principal de toda gran-de obra é o fato de ela possibilitar uma multiplicidade de leituras, pode-se dizer que é esse frisson nouveau que sintetiza o núcleo da moderna poética inaugurada por Baudelaire. Mas, para além da identificação dessa nova sensibilidade, caberá a cada artista ou crítico que quiser se incluir numa tradição baudelairiana construir seu próprio Baudelaire, pois, nas palavras de um eminente baudelairiano, o poeta inglês T.S. Eliot, “sua própria amplitude cria dificuldades, pois ela induz o crítico partidário, mesmo nos dias de hoje, a reconhecer em Bau-delaire o patrono de suas próprias crenças”.

Baudelaire era consciente do poder de inovação de sua poesia, ele inclusive preferia os seus leitores do futuro aos seus contemporâneos. Mas o que ele não poderia ter consciência era qual Baudelaire seria lido pela posteridade. Um outro baudelairiano, Paul Valéry, afirmava que todo grande homem se nutre da ilusão de pres-crever algo ao futuro, e que essa ambição, chamada por ele de duração, seria a saúde que conservaria a obra do tempo. A permanência de uma obra de arte não é devida a um congelamento de suas possibilidades, mas a uma elasticidade que impede que as intempéries do tempo a desgaste até o completo esquecimento. Palavras do próprio Valéry: “A obra dura à medida que ela é capaz de parecer uma outra que seu autor fez. Uma obra

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dura por ser transformada, assim como por ser capaz de milhares de interpretações e transformações”. Assim, se Baudelaire desejou ser lido no futuro, ele nunca poderia saber como a posteridade iria entendê-lo, pois a du-ração é uma qualidade independente de seu autor; ela é justamente a possibilidade da obra se fazer uma outra e, assim, poder continuar oferecendo alguma resposta às necessidades de significação do homem.

A elasticidade dos signos artísticos é a irmã gêmea da riqueza múltipla que os olhos contempladores irão ex-perimentar. Nada mais apropriado, portanto, que o plural no título do livro, pois o jardim da poética de Baude-laire possui uma variedade de espécimes que surpreenderia o seu próprio autor. Em Baudelaire, por exemplo, os simbolistas colheram uma perspectiva mística do real pautado pela correspondência dos sentidos; os decaden-tistas puderam ver nele o semeador de seu satanismo estético; Rimbaud clariviu o abalo sísmico da linguagem poética; já Eliot cheirou a desagregação da moral moderna nas grandes cidades expressa, numa dicção clássica que somente a tradição mediterrânea poderia lhe ensinar.

Um caso exemplar da duração artística pode ser vista no que acontecia com o próprio Baudelaire em rela-ção aos seus ícones artísticos. Diz-se nos Estados Unidos que o Poe de Baudelaire é melhor que o Poe de Poe. Outro exemplo é a atitude do escritor francês para com Richard Wagner. Em sua famosa carta ao compositor, Baudelaire confessa que em sua música ele havia provado certo “sentimento de uma natureza assaz bizarra, alguma coisa de excessivo e de superlativo (...) o grito supremo da alma montada ao seu paroxismo”. Vê-se que o poeta francês se referia à música do alemão com palavras que descreveriam muito bem a sua própria poesia. O poeta, aliás, possuía consciência desse efeito que fazia a expressão do outro se voltar para si mesmo : “pareceu-me que esta música era a minha, e eu a reconheci como todo homem reconhece as coisas que ele está destinado a amar”. E assim termina sua carta: “Senhor, eu vos agradeço; você me chamou a mim mesmo e ao grande, nas horas más”

O que Baudelaire experimentava na literatura de Poe e na música de Wagner era o efeito de uma grande obra de arte. O mesmo que viriam experimentar os futuros baudelairianos com “As flores do mal”: uma duração que em certo sentido é totalmente independente do próprio Charles Pierre Baudelaire. Ver mais de si mesmo nas palavras do outro: não seria esse o trabalho da leitura da poesia e da arte?

Lançado há 150 anos, “As flores do mal” causou um frisson na literatura moderna

indivíduo físico Rodolfo Mesquita é muito difícil de separar da sua arte. Não pelo retrato chapado, 3 x 4. Mas pelo que ele é, quando fala, quando age,

quando anda. A quem não o conhece, e com isto queremos dizer a quem não tem acesso à sua arte, ele é, pelo que parece, um indivíduo louco, porque é sincero até o ponto do constrangimento e porque também guarda em 2007, o visual de um hippie que sobreviveu à hecatombe.

No Recife, em Olinda, a fundamental ignorância, que vem a ser a ignorância artística, conhece um Rodolfo Mesquita distorcido pela caricatura, pela ignara fama. Tratam-no às vezes por uma antonomásia, quando lhe esquecem o nome: “Aquele pintor louco, genial”. Dito o qual, passa, a fundamental ignorância, a narrar uma ou várias histórias folclóricas de Rodolfo, tão ignorantes quanto fan-tasiosas. Mas esse artista, mesmo para os que foram tocados pelo dom da sua arte, surpreende. Lembro dele há uns dez anos, quando o encontrei num bar em Olinda, pelo carnaval. Um amigo nosso, comum, estava preso, em razão de ter sido encontrado com uns cigarros de maconha. Ao lembrar-lhe esse amigo, Rodolfo me perguntou, em frente a meus dois filhos pequenos: - Você também fuma maconha?

Difícil foi depois explicar às crianças que eu não fumava maconha, e mais ainda dizer-lhes que ainda assim, eu poderia ser preso.

Em outra oportunidade, levei-o convidado para uma palestra no Banco do Brasil. Alertado por ele, antes, que falar, dar palestras, não era o que ele sabia fazer, “não é minha praia, sabe?”, deixei-me ficar ao seu lado como entrevista-dor, enquanto numa tela eram projetadas imagens dos quadros da sua última exposição. Foi um sucesso. Eu lhe perguntava:

- Rodolfo, o que representa esta imagem?- Um homem, ele me respondia. - Certo, mas o que o esse homem faz no quadro?- Ele está caminhando. A platéia delirava de tanto rir. Provavelmente ao ouvir os silêncios guardados

pelo entrevistador, depois de tais respostas. Bem feito, como diziam os meninos em nossa infância, quando éramos punidos depois de algum ato mau. Bem feito. Se o entrevistador queria razões transcendentais, mistificadoras, para os quadros, não teria o artista Rodolfo para indicá-las. Que o público entendesse como bem entendesse o que ele pintava. E aqui chegamos à honestidade radi-cal desse artista.

Se nos seus quadros ele nada concede ao gosto, mau gosto ou bom gosto do distinto público, quando fala sobre o próprio trabalho ele também afasta de si qualquer medalha falsa:

“Eu sou desenhista. Na verdade, não me considero pintor. Eu desenho sem-pre. Eventualmente, faço pintura. Em meus quadros nunca parto da pintura. Sempre parto do desenho. Eu sou pintor porque pinto. Mas não sou um pintor no sentido em que Ismael Caldas é”.

Evidentemente, e jamais eventualmente, tal prática de radical honestidade tem conseqüências práticas, nada belamente artísticas.

“Eu trabalho há quarenta anos. O sucesso financeiro é um nó cego. Mas, ao mesmo tempo (é um negócio até meio masoquista), eu ficaria muito descon-fiado de mim mesmo se o meu trabalho agradasse à burguesia cafona. Se, de repente ela começar a gostar do que faço, será por algo circunstancial e não pelo valor do meu trabalho. O cara pode vender bem, mas é diferente vender bem de ser um bom artista. O sucesso material nada tem a ver com o sucesso

artístico. O fato de o meu trabalho ser subterrâneo tem a ver com o teor dele. Se ele fosse decorativo, seria mais vendável. ‘Esse quadro de Rodolfo cai direitinho naquela minha sala’, ia dizer a madame. Madame estaria enganada.”

Aquelas palavras curtas, lacônicas, nas respostas ao entrevistador durante a palestra, eram uma recusa à mistificação, um sonoro não à mentira, Jamais uma incapacidade verbal, ou uma incompreensão do próprio trabalho.

“Se eu me desse bem com a burguesia, eu venderia mais. Isso tem a ver com as coisas que eu recuso na vida. Por exemplo: eu sou inconformista. Eu sou porque aceitar a ordem social como ela é não me agrada de forma nenhuma. Esse cotidiano, as coisas que eu vejo, eu não aceito. Eu não agüento isto. É isso que eu procuro colocar no meu trabalho. Eu canalizo minha revolta para o meu trabalho. O que eu vou fazer, brigar com punhal, dar tiro em todo o mundo? Então eu desenho e pinto. Se eu não fizer isto, eu vou ficar muito mal comigo mesmo.”

Daí que para um artista que vende pouco, e por um preço baixo quando comparado a outros da sua mesma idade e tempo (como deveriam ser pesados os artistas e a sua arte?); daí que, ao se lembrar dos novos-ricos que compram quadros por metro quadrado e pela última cotação do mercado (atenção, sen-síveis burgueses, Rodolfo Mesquita logo terá a sua mais alta valorização, porque aos 53 anos de idade pouco se distancia da sua morte); daí que o artista não se ofenda em ser tido e tomado como um outsider.

“Eu não me ofendo, porque a minha situação social é esta. Mas é uma con-tradição. É ridículo, de certa forma, porque eu sou também considerado um medalhão. Meu currículo é cheio de prêmios, prêmios de Salão, eu sou um artis-ta premiado por instituições oficiais. Se os prêmios fossem medalhas, juntando todos, eu seria uma grande medalha. A contradição é que isto não se traduz em conforto material. Os prêmios que eu recebi não se traduzem em dinheiro, para a minha sobrevivência. Eu sou aquilo que os franceses chamam um “sucesso de estima”. E morre por aí mesmo.”

Então eu lhe pergunto do que o artista vive, do que o artista se alimenta, de um ponto de vista espiritual. Na sua voz rouca de cigarros me responde:

“Das informações que recebo, entende? Se eu vejo um desenho que eu acho bonito, aquilo me estimula em meu trabalho. Arte se alimenta de arte. Eu refli-to o que eu leio, o que eu vejo, o que eu vivo. Eu gosto muito do desenho de Millôr Fernandes, por exemplo. Eu gosto mais do desenho dele do que do texto dele. Já vi coisa boa de Siron Franco. Aqui em Pernambuco, Samico é muito bom, é muito boa a gravura dele. Ismael, eu já falei. Da história, eu me lembro de Van Gogh, é um mestre. Goya é outro desenhista extraordinário. Velásquez, Bosch, Breughel ... mas eu não gosto de citar nomes da história da arte, porque de repente dá a impressão de que a gente é pretensioso, que deseja passar a impressão de que é da mesma família. Não é isto. Cito assim porque esses caras são uma fonte de alimento.”

Então eu lhe peço que deixe uma referência, para que as pessoas de sensibi-lidade vejam o nível e a qualidade do seu trabalho. Ele me responde que pode ser visto no site www.rodolfomesquita.com .

E por último, e por fim, antes de desligar o telefone, eu lhe pergunto de que vive um artista, de um ponto de vista estritamente material. E ele, com a mesma voz rouca, me solta, sem nem um pigarro:

“De carne, de pão, de arroz e feijão. Artista come e defeca, entende?” Entendo. E desligo.

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Louco e sincero

Urariano MotaFora das escolas e esquemas Rodolfo Mesquita é considerado surpreendente

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Mariana Guerra

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