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PERSPECTIVAS GERATIVAS PARA A COMPLEMENTAÇÃO NOMINAL EM PORTUGUÊS BRASILEIRO MOREIRA, Tiago – PUCPR [email protected] Eixo Temático: Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Este trabalho aborda a complementação nominal em PB sob um enfoque Gerativista, baseado na Teoria dos Papéis Temáticos e na Teoria do Caso. A escolha deste tema deve-se a disparidades encontradas entre o que a NGB (Norma Gramatical Brasileira) classifica como “correto” e o que é praticado na norma culta atual. São buscadas respostas para algumas questões como o porquê da presença da preposição antecedendo o complemento, sua origem e razões para o apagamento diante de orações desenvolvidas completivas nominais. Foi efetuado um breve levantamento em livros didáticos de língua portuguesa aprovados pelo PNLEM/2009 (Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio) e em compêndios gramaticais utilizados para a composição da matriz gramatical de tais obras didáticas, com o objetivo de verificar a forma como é abordado este tema. Uma pequena seleção de sentenças provenientes de jornais e arquivos do VARPORT (Projeto Variação do Português) compôs o corpus de análise, o qual evidencia que o padrão culto atual do PB utiliza orações completivas nominais desenvolvidas em vários contextos sem intermediação da preposição. Esse fato, apesar de destoar do preconizado pela NGB, é coerente com as regras internas ao português, regras estas que são comuns às línguas naturais. Esta última evidência confirma o componente gerativo transformacional da teoria que embasa a abordagem feita neste estudo. A relevância deste estudo reside na contribuição que o enfoque gerativo proporciona para o modo como fatos gramaticais são trabalhados e abordados em sala de aula, ou seja, o professor de língua portuguesa, de posse de conhecimentos da perspectiva gerativista, pode explicar para os alunos a lógica imanente aos usos feitos da língua. Palavras-chave: Teoria do Caso. Papéis temáticos. Sintaxe gerativa. Introdução A complementação nominal normalmente é tida como um fenômeno bastante simples de ser entendido, pois, numa visão mais simplista, basta identificar um nome “incompleto” e verificar o que lhe completa a significação. Na escola, aprende-se que este fenômeno sintático se dá por meio da intermediação de uma preposição, ou seja, para haver complementação

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PERSPECTIVAS GERATIVAS PARA A COMPLEMENTAÇÃO

NOMINAL EM PORTUGUÊS BRASILEIRO

MOREIRA, Tiago – PUCPR [email protected]

Eixo Temático: Didática: Teorias, Metodologias e Práticas

Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Este trabalho aborda a complementação nominal em PB sob um enfoque Gerativista, baseado na Teoria dos Papéis Temáticos e na Teoria do Caso. A escolha deste tema deve-se a disparidades encontradas entre o que a NGB (Norma Gramatical Brasileira) classifica como “correto” e o que é praticado na norma culta atual. São buscadas respostas para algumas questões como o porquê da presença da preposição antecedendo o complemento, sua origem e razões para o apagamento diante de orações desenvolvidas completivas nominais. Foi efetuado um breve levantamento em livros didáticos de língua portuguesa aprovados pelo PNLEM/2009 (Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio) e em compêndios gramaticais utilizados para a composição da matriz gramatical de tais obras didáticas, com o objetivo de verificar a forma como é abordado este tema. Uma pequena seleção de sentenças provenientes de jornais e arquivos do VARPORT (Projeto Variação do Português) compôs o corpus de análise, o qual evidencia que o padrão culto atual do PB utiliza orações completivas nominais desenvolvidas em vários contextos sem intermediação da preposição. Esse fato, apesar de destoar do preconizado pela NGB, é coerente com as regras internas ao português, regras estas que são comuns às línguas naturais. Esta última evidência confirma o componente gerativo transformacional da teoria que embasa a abordagem feita neste estudo. A relevância deste estudo reside na contribuição que o enfoque gerativo proporciona para o modo como fatos gramaticais são trabalhados e abordados em sala de aula, ou seja, o professor de língua portuguesa, de posse de conhecimentos da perspectiva gerativista, pode explicar para os alunos a lógica imanente aos usos feitos da língua.

Palavras-chave: Teoria do Caso. Papéis temáticos. Sintaxe gerativa.

Introdução

A complementação nominal normalmente é tida como um fenômeno bastante simples

de ser entendido, pois, numa visão mais simplista, basta identificar um nome “incompleto” e

verificar o que lhe completa a significação. Na escola, aprende-se que este fenômeno sintático

se dá por meio da intermediação de uma preposição, ou seja, para haver complementação

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nominal é necessária a existência de um nome incompleto e de uma preposição encabeçando

o respectivo complemento. Quando se consulta uma gramática tradicional do português

(Evanildo Bechara, Celso Cunha & Lindley Cyntra, Celso Pedro Luft, por exemplo) percebe-

se que o requisito básico apontado para haver a complementação é a presença de uma

preposição.

Todavia, ao se observar alguns enunciados, produzidos contemporaneamente, é

perceptível o fato de que quando se efetua a complementação de um nome por meio de uma

oração, a preposição, na maioria dos casos, não aparece na estrutura sentencial. Por exemplo:

(1) Eu tenho certeza que o melhor trote seria que todos os que fossem aptos

passassem por um hemocentro e fizessem doação de sangue.

(Gazeta do Povo – 25/02, p. 03)

(2) “[...] a necessidade que ele tem para emagrecer é grande [...]”

(arquivos do VARPORT)

Será que estamos diante de uma mudança linguística? Ou há erro por parte da

abordagem feita pela Gramática Normativa?

A explicação para o fenômeno existente nas sentenças (01) e (02) deve ser buscada em

algumas teorias apresentadas pela Gramática Gerativa e aplicadas na análise de fenômenos

sintáticos da atualidade: a Teoria Temática e a Teoria do Caso (LOBATO, 1986; MIOTO,

2007).

O objetivo deste estudo é abordar uma particularidade da complementação: o uso de

preposição. Não simplesmente abordar quando ela é utilizada ou quando não, mas tentar

formular uma explicação para um fato particular: o uso da preposição em determinados

contextos e sua dispensa em outros, considerando o mesmo núcleo predicador, conforme

exemplificado abaixo:

(a) Ana gosta de Carlos

(b) * Ana gosta (O) Carlos

(c) Ana gosta de que Carlos use roupa clara

(d) Ana gosta (O) que Carlos use roupa clara

Temos o predicador gostar e ele é empregado em contextos sintáticos diferentes: em

(a) e (b) como complemento deste predicador há um SP (Sintagma Preposicional) (ou PP (do

inglês Prepositional Phase), de acordo com a Teoria Gerativa), já em (c) e (d) há uma oração

(CP (Sintagma Complementizador, do Inglês Complementizer Phrase), de acordo com a

Teoria Gerativa).

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É perceptível que nas duas primeiras sentenças a preposição é indispensável, ou seja,

sem a presença deste elemento a sentença torna-se agramatical (b). Já nas duas sentenças

seguintes a presença ou a ausência da preposição não constitui (ou parece não constituir)

condição para a gramaticalidade ou agramaticalidade da sentença. A presença ou a ausência

denota a formalidade da oração, ou seja, confere a ela um caráter mais ou menos formal.

A abordagem aqui proposta tem como parâmetro a Gramática Gerativa, mais

especificamente a Teoria X-barra e os questionamentos norteadores da pesquisa são: por que a

exigência de preposição entre o complemento nominal e seu respectivo nome predicador?

Qual a função desempenhada por esse elemento de ligação? Há restrições impostas pelo nome

quanto à sua complementação? Para essas questões serão buscadas explicações ao longo deste

presente estudo.

Desenvolvimento

O Gerativismo e a Teoria X-Barra

Gerativismo, corrente de estudos linguísticos proposta por Noam Chomsky, busca

determinar os elementos comuns às línguas e os princípios universais que as regem.

A teoria X-Barra é uma parte do programa Gerativista que vai estudar a estruturação

das sentenças demonstrando que elas são formadas a partir de relações lógicas e da associação

entre constituintes menores, que, quando associados, formam a estrutura maior - a sentença

Os Papéis Theta

A noção dos Papéis Temáticos (ou Papéis Theta) corresponde a uma noção semântica

relativa aos DPs que compõem a sentença. A determinação dos Papéis Temáticos relaciona-se

diretamente com a propriedade de s-seleção (seleção semântica); esta propriedade, além de ser

a responsável pela atribuição dos Papéis Temáticos, mantém relação com a seleção

argumental operada por núcleos lexicais.

Teoria do Caso

A Teoria do Caso, conforme concebida por Chomsky, remete à tradição clássica

(tradição latina). Chomsky estabelece que é atribuído Caso a DPs para que estes sejam

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pronunciados na estrutura sentencial. A diferença existente entre os Casos Latinos e o que

acontece no português, por exemplo, está no fato de que naquela língua o caso era

morfológico, ou seja, dependendo da função sintática desempenhada pelo vocábulo na

sentença, este tinha uma terminação específica

Tabela 1 – caso morfológico X Caso Abstrato

Tabela 2 – Atribuidores do Caso Abstrato

Relação entre a Teoria Theta e a Teoria do Caso

Contrastando-se as posições temáticas com as casuais, percebe-se que não há uma

relação biunívoca entre elas, ou seja, nem sempre uma posição casual corresponde a uma

posição temática (figura 1), todavia ambos os processos são complementares, pois

[...] para ser licenciado numa sentença, um DP tem que ter papel θ e, se for pronunciado, tem que ter Caso [...] um DP tem que pertencer a uma cadeia marcada por um papel θ e um Caso. A falta de qualquer dessas duas propriedades inviabiliza a ocorrência de um DP numa sentença (MIOTO, 2007: 192)

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Assim é de fundamental importância reconhecer que estes dois fenômenos são bastante

importantes nas línguas naturais, e que somente por meio da atuação dessas duas teorias é que

sentenças gramaticais serão produzidas e DPs licenciados para tornarem-se gramaticais na

estrutura sentencial.

Figura 1 – Posições casuais, temáticas e argumentais Fonte: MIOTO, 2007:183

[+A] e [-A] – posições argumentais e não-argumentais; [+θ] e [-θ] – posições temáticas e não-

temáticas e [+K] e [-K] – posições temáticas e não-temáticas

A complementação em PB

Dentro da língua portuguesa há palavras transitivas, termos cuja significação é

incompleta, ou seja, palavras que, para transmitirem uma idéia, necessitam de um

complemento (um termo, ou oração) que lhe complete a significação, a esses termos, de

significação incompleta, dá-se o nome de termo transitivo. Esta denominação é dada em

contraste às palavras intransitivas, que são aquelas que têm significação plena em si.

Em português, podem-se considerar como palavras transitivas alguns nomes e alguns

verbos, contudo, o maior enfoque quando se fala da transitividade é para os verbos, ou seja,

normalmente quando se cita a propriedade da transitividade, vem-nos à mente a categoria

gramatical dos verbos, contudo categorias nominais (como substantivos, adjetivos e

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advérbios) também podem exigir complementos. Perini (2006) caracteriza esse enfoque

tradicional dado à classe dos verbos:

Ainda não foi realizado, que eu saiba, um estudo detalhado da transitividade nominal, comparável aos que existem para a transitividade verbal. (PERINI, 2006:173). A análise tradicional não limita a transitividade aos verbos; considera-se também que certas palavras de outras classes – substantivos, adjetivos e advérbios – podem exigir ou recusar a presença de certos termos. (PERINI, 2006:173).

Da GT para o livro didático: um percurso com pedras no caminho

Parte dos livros didáticos de língua portuguesa, material que acompanha o estudante

em seu cotidiano escolar e serve de base para muitos docentes, parece não estar pautada na

explicação dos fenômenos linguísticos e no desenvolvimento da capacidade reflexiva dos

estudantes.

Muitos autores (para não falar a maioria) compõem a matriz gramatical de suas obras

pautados em Gramáticas Tradicionais (GT) da língua portuguesa. Há algo de errado com isso?

A resposta seria não se tais autores observassem com atenção a forma como as GTs tratam os

assuntos, observando e analisando, reflexivamente, além da caracterização e definição dos

conceitos gramaticais, também as notas de rodapé e as exceções que estas trazem. Esses

elementos, na maioria dos casos, não são considerados e o que os livros didáticos contêm é a

simplificação, a padronização de conceitos, excluindo ou ignorando os adendos que as GTs

trazem.

[...] a gramática tradicional aponta questões importantes sobre o funcionamento da língua, acumuladas ao longo de muitos anos. No entanto, muitas dessas observações sobre a língua não resultam numa reformulação profunda do conceito ou da regra. O gramático prefere manter a regra intacta, e apresentar essas observações sob a forma de comentários, notas, etc. Nos livros didáticos, [...] essas questões, [...] comentários, observações, notas de rodapé, exceções, [...], que aparecem secundariamente no texto da gramática tradicional, são apagadas. (DIAS, 2008:127-28)

Partindo-se desse pressuposto, de que a maioria dos livros didáticos tende a praticar

certa forma de “generalização” em conceitos e definições, é premente observar como livros

didáticos tratam da complementação nominal. Para isso foram selecionados dois exemplares

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de livros didáticos, constantes no PNLEM/2009 (Português – Volume Único, de João

Domingues Maia e Português – Ensino Médio, de José de Nicola), e verificou-se como é feita

a exposição e explicação sobre a complementação nominal. Paralelo a isso foi efetuado um

levantamento nos compêndios gramaticais, que embasaram a composição dos livros (Nova

Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha & Lindley Cintra, e Lições de

português pela análise sintática, de Evanildo Bechara.), para verificar como a mesma questão

é tratada, exemplificada.

Análise comparativa

O fato de os livros didáticos estarem presentes na sala de aula, fazerem parte do dia-a-

dia dos estudantes e serem o principal auxiliar dos professores na condução de aulas e de

explicações, remete ao pensamento de que as lições gramaticais ali contidas primem (ou

devessem primar) pela explicação e pela fundamentação dos conceitos no uso feito da

linguagem no cotidiano, em situações formais e coloquiais efetivas, reais. Todavia, a análise

das duas obras, aprovadas pelo MEC (Ministério da Educação e Cultura) e que compuseram a

lista dos livros indicados ao PNLEM/2009, não mostrou esse pressuposto.

Era esperado que a parte destinada à complementação nominal explicitasse a

possibilidade de esta função gramatical, quando sob a forma oracional, poder ser empregada

sem a regência da preposição. Contudo, apenas uma das obras consultadas suscitou a

possibilidade de haver esta alternância quanto ao uso preposicional. Embora possua este

avanço, nenhuma das obras consultadas explica o porquê de a preposição anteceder o

complemento na forma de sintagma nominal e a possibilidade de uso ou não perante uma

oração.

Em Português – Volume Único, de João Domingues Maia, a parte destinada à

abordagem e estudo da complementação nominal restringe-se a apenas citar que:

Não são apenas os verbos que podem necessitar de complemento. Um substantivo, um adjetivo ou um advérbio também podem exigi-lo. Observe: Tenho necessidade... Necessidade de quê? [...] Tenho necessidade de afeto [...] Observe que o complemento nominal liga-se ao substantivo, ao adjetivo ou ao advérbio por intermédio de uma preposição. (MAIA, 2008:361)

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Há uma simples menção à complementação, mas nenhuma explicação para tal

fenômeno é tecida ou efetuada, por exemplo, quais critérios norteiam a complementação ou

não de um nome? Como fará o aluno para identificar e separar os nomes que requerem o

complemento dos que não o fazem? Isso faz com que esse assunto ganhe uma subjetividade

exacerbada, pois, pelo que deixam tais obras transparecer, não há critérios sólidos para

identificar se um nome requer ou não a presença de um complemento.

Na caracterização das sentenças substantivas completivas nominais, novamente o

autor peca em não citar a possibilidade de estas virem sem a presença da preposição,

menciona o autor: “Subordinada substantiva completiva nominal – funciona como

complemento da oração principal: Temos necessidade de que todos compareçam” (MAIA,

2008:390)

Em momento algum cita, o autor, a possibilidade de haver orações completivas

nominais desenvolvidas nas quais não há a presença da preposição, ou seja, o livro didático

não dá conta de explicar o mecanismo subjacente ao fenômeno da complementação nominal e

nem o fato de haver sentenças que fogem à regra padrão.

Já em Português – Ensino Médio (vol. 01), de José de Nicola, a questão é tratada com

uma maior profundidade, pois além de caracterizar o complemento nominal, opondo-o ao

complemento verbal, o autor procede a uma ligeira lista de critérios, os quais auxiliam o

estudante a diferenciar o complemento nominal do adjunto adnominal. Contudo, mesmo

possuindo este diferencial, não efetua, o autor, uma explicação calcada no uso da língua, e que

valide sua exposição. Simplesmente descreve-se a função gramatical sem apontar uma relação

entre ela e o uso que o aluno encontra no dia-a-dia.

[...] alguns nomes (é o caso de alguns substantivos, adjetivos e advérbios) não apresentam sentido completo, necessitando de complemento que, por oposição ao complemento verbal, é chamado de complemento nominal e apresenta-se sempre antecedido de preposição (NICOLA, V. 1, 2008:100)

Outra coisa para ser destacada é a generalização feita pela definição “[...] apresenta-se

sempre antecedido de preposição”. Essa generalização acaba por gerar uma incoerência, pois

por ocasião da caracterização da oração completiva nominal, o autor assim registra: “Oração

subordinada substantiva completiva nominal – exerce a função de complemento nominal.

Normalmente, é regida de preposição” (NICOLA, V. 3, 2008:95)

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O emprego do termo “normalmente” abre a possibilidade de haver orações

completivas nominais nas quais a preposição não aparece. Isso pode parecer um avanço, ou

seja, o livro didático registrar a existência da ausência de preposição quando o complemento é

oracional, todavia ao mesmo tempo em que é inovação, essa “brecha” gera incoerência, pois

se a oração exerce a função de complemento nominal e este, conforme caracterizado

anteriormente, é “[...] sempre antecedido de preposição”, como pode a oração poder ocorrer

sem esse elemento?

Seria o caso de haver uma revisão do conceito de complemento nominal,

estabelecendo uma ressalva, ou uma observação, avisando ao aluno sobre o emprego

obrigatório da preposição quando o complemento é um sintagma nominal e o emprego

facultativo quando se tem o complemento sob a forma de uma oração. Com essa observação

ter-se-ia uma obra em que o estudante encontraria respaldo e aplicabilidade para a teoria e

para o fenômeno gramatical com o qual está trabalhando.

Na obra de José de Nicola, para compor a seção referente aos tópicos gramaticais, o

autor baseou seus estudos, dentre outros livros, na Nova Gramática do Português

Contemporâneo, de Celso Cunha & Lindley Cintra. Neste compêndio gramatical, é somente

feita a caracterização do complemento nominal, e não é explicado o porquê de seu uso ou

então qual o motivo da presença da preposição: “O complemento nominal vem, como

dissemos, ligado por preposição ao substantivo, ao adjetivo ou ao advérbio cujo sentido

integra ou limita.” (CUNHA & CINTRA, 2000:135)

Convém destacar novamente a preocupação da gramática tradicional em simplesmente

descrever o fenômeno, seja ele sintático ou semântico, não observando sua explicação ou a

vinculação deste fenômeno com a realidade. A definição apresentada por Cunha & Cintra

deixa vários pontos a serem questionados, como por exemplo:

1) Em que sentido o complemento nominal limita o significado do substantivo a que se

refere?

2) Em quais contextos a palavra que tem o seu sentido completado ou integrado

encerra ‘uma idéia de relação e o complemento é o objeto desta relação’?

3) Formalmente, qual o papel desempenhado pelo complemento?

4) Todos os nomes requerem a presença de um complemento?

Depois de feita a explicação do que é complemento e a respectiva exemplificação, os

autores incluem duas observações, das quais a que merece destaque é a segunda, que afirma:

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2. Convém ter presente que o nome cujo sentido o complemento nominal integra corresponde, geralmente, a um verbo transitivo de radical semelhante: Amor da pátria............................................................ Amar a pátria Ódio aos injustos........................................................ Odiar aos injustos (CUNHA & CINTRA, 2000, p. 136)

A observação, ainda que pertinente, deixa espaço para possíveis casos em que o nome

“incompleto” não remeta a um verbo transitivo, como é o caso das complementações de

adjetivos e de advérbios. Observe a sentença abaixo:

Tenho certeza de que ainda estou com sede

O nome certeza não corresponde a um verbo, mas sim a um adjetivo – certo – o que evidencia o fato de

que nem sempre o nome que necessita de complemento corresponde a um verbo intransitivo.

Quando os autores se propõem a estudar as orações completivas nominais, apenas

citam que elas “exercem a função de complemento nominal” (CUNHA & CINTRA, 2000, p.

585), restringem-se a citar esse fato e não efetuam uma explicação mais detalhada ou

elucidativa sobre essa estrutura da língua.

Outra obra utilizada para a composição dos livros didáticos foi Lições de português

pela análise sintática, de Evanildo Bechara. Novamente, a abordagem feita é bastante

superficial e o autor sequer retoma estudos mais aprofundados para caracterizar a

complementação nominal. Em momento algum cita, ele, a importância dos papéis temáticos

na determinação do complemento ou então a Teoria do Caso. Ele prende-se novamente ao

emprego da preposição e à nomenclatura gramatical.

Representação arbórea de sentenças

As sentenças das línguas naturais possuem, basicamente, quatro diferentes níveis, a saber: PF

(Phonetic Form) – que corresponde à forma fonética; FF (Logical Form) – forma lógica; SS

(Surface-structure) – estrutura superficial e, por fim, a DS (Deep-structure) – estrutura

profunda da sentença. Pode-se representar esses níveis por meio do seguinte diagrama:]

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Figura 2 – Níveis da Sentença Fonte: MIOTO, 2007:26

Tomando-se como exemplo a sentença “Os torcedores tinham confiança no técnico”

verifica-se que é no nível (DS) que acontece a atribuição dos papéis temáticos aos DPs

componentes da sentença. O predicado confiança (ter confiança = confiar) é que atribui os

papéis temáticos: de experienciador para o primeiro DP, “os torcedores”, e de objeto estativo

para o DP “o técnico”, segundo a classificação de Jackendoff1.

Partindo-se para o nível SS, haverão alguns movimentos internos na estrutura

sentencial e, após estes movimentos, haverá, por fim a atribuição de Caso para os DPs.

Figura 3 – Representação Arbórea da sentença “Os torcedores tinham confiança no técnico”

1 1972, apud Márcia Cansado, 2005, p. 113.

Nível IP – Tempo – atribui Caso Nominativo ao DP

Nível VP – Verbo – atribui Caso Acusativo ao DP

Nível PP – Preposição – atribui Caso Oblíquo ao DP

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No nível SS, a atribuição de Caso ocorrerá. O nível IP atribuirá Caso Nominativo ao

DP “Os torcedores”; o VP, Caso Acusativo ao DP “confiança”; e a preposição (ou nível PP)

atribuirá Caso Oblíquo ao DP “o técnico”. Dadas essas atribuições, a sentença torna-se

gramatical, ou seja, ao ser pronunciada é interpretada por qualquer falante.

Caso a preposição não fosse empregada, haveria a infração a uma das Regras de

Atribuição do Caso, a saber:

Regras de Atribuição de Caso Atribuir a um SN: - o caso nominativo se ele for regido por TEMPO, - o caso objetivo se ele for regido por V, - o caso oblíquo se ele for regido por P Filtro dos Casos *SN, se SN tem conteúdo fonético e não tem Caso (LOBATO, 1986, p. 451

A sentença “*Os torcedores tinham confiança técnico”, infringe a regra de atribuição

do Caso, pois há um DP sem Caso, isso torna a sentença agramatical, já que DP ou NP não

são atribuidores de Caso e, também, porque um NP não pode atribuir Caso a outro NP.

Figura 3 – Representação Arbórea da sentença “*Os torcedores tinham confiança técnico”

Outro fator que torna agramatical a sentença acima representada é a infração ao Filtro

do Caso, segundo o qual: “*[DP] se DP é pronunciado e não pertence a uma cadeia marcada

com Caso” e “Todo DP pronunciado pertence a uma cadeia com Caso” (MIOTO, 2007:176)

DP torna a sentença agramatical, pois está sem

atribuição de Caso

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Quando se tem uma oração, uma sentença desenvolvida efetuando a complementação

de um nome, a presença da preposição não se faz necessária, já que, ao invés de um DP, tem-

se um CP, que não requer a presença da preposição. Mioto et. all. (2007), assim caracterizam

esta forma de complementação:

Note que se o complemento de uma categoria [+N] for um CP, a preposição não é requerida nas sentenças do PB, como vemos em (i): (i) a. O medo que a inflação dispare paralisa os negócios. b. Ele fica preocupado que ela saia sozinha (MIOTO, 2007, p. 182)

Considerações finais

A prescrição contida na NGB e reproduzida nos livros didáticos não explica os

motivos da presença do elemento prepositivo antecedendo o complemento. Outra deficiência

constatada quando se contrasta o que os compêndios gramaticais trazem como “regra” e o que

é empregado pela norma culta atual, são os casos de complementação de nomes transitivos

por orações e estas empregadas sem a regência de preposição.

Conforme apresentado, as teorias que explicam o porquê de a complementação

apresentar os contornos (atuais) traçados no presente estudo são a Teoria do Caso e a Teoria

dos Papéis Temáticos. Ambas atuam nos níveis de formulação sentencial, DS e SS

respectivamente, e promovem a geração de sentenças gramaticais. Se alguma não for

aplicada, seu respectivo filtro impedirá a formação de um enunciado gramatical.

A compreensão deste ciclo de regras é possível porque se considera o Componente

Transformacional da Gramática Gerativa. Este componente sugere que, para um enunciado

ser gramatical, há um conjunto de regras que nele atuam, as quais, ciclicamente transformam

estruturas tornando-as gramaticais. Além disso, a Gramática Gerativa postula a existência de

princípios gerais e comuns a todas as línguas naturais encontradas na sociedade, asim,

segundo a teoria de Regência e Ligação, todas as línguas naturais obedecem aos mesmos

princípios, característicos da faculdade da linguagem humana. Estes princípios são

parametrizados para cada língua humana

Fica claro, portanto, que para uma efetiva compreensão da estrutura linguística de uma

determinada língua natural, ou então para a explicação de fenômenos sintáticos e enunciados

produzidos, é relevante considerar a perspectiva gerativa dos estudos linguísticos, pois esta

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corrente linguística, na atualidade, é a que apresenta maior coerência e melhor fundamentação

teórica.

Outra conclusão observada é que um efetivo ensino de língua materna a ser

desenvolvido em escolas requer que o mesmo seja calcado na pesquisa, reflexão e análise de

dados/enunciados produzidos nas várias normas da língua. Isso, logicamente, exigirá um

aprimoramento de professores para que estes desenvolvam nos alunos a capacidade de

reflexão e possam responder de modo coerente dúvidas e questionamentos dos discentes.

Essa transformação trará, em seu bojo, grandes mudanças no ensino de língua

materna: a “decoreba” será substituída pela reflexão, a monotonia das aulas de gramática pela

dinamicidade da análise de enunciados atuais, e a falsa lógica contida na NGB e nos livros

didáticos será substituída pela compreensão da lógica envolvida no processo de formulação de

enunciados pelos falantes.

Para finalizar, cito uma observação feita por Evanildo Bechara em sua Moderna

Gramática Portuguesa: “Os gramáticos ainda não aceitaram a operação mental, apesar da

insistência com que penetra na linguagem das pessoas cultas.” (BECHARA; 2006, p. 567)

Essa observação encerra coerentemente a discussão promovida, pois evidencia o

caráter normativo assumido pela NGB e a morosidade para algo ser mudado ou adequado aos

padrões adotados, empregados pela norma culta contemporaneamente.

REFERÊNCIAS

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