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Fortuna de super-ricos é 'incontrolável', diz sociólogo Ruth Costas Da BBC Brasil em São Paulo O sociólogo Antonio David Cattani, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com formação na Paris-Sorbonne, diz ter escolhido um caminho diferente de 99% de seus colegas. Enquanto a maioria dos cientistas sociais se debruçam sobre questões relativas a pobreza e a miséria, Cattani resolveu desbravar o outro lado da problemática da desiguandade social - a extrema riqueza, ou os super-ricos. A escolha já foi mais difícil de ser justificada. Desde que o francês Thomas Piketty tornou-se um best-seller com a tese de que o capitalismo está concentrando renda em vários países, o que ocorre no topo da pirâmide social global tem ganhado um pouco mais de espaço nos debates de economistas e sociólogos - ao menos no exterior. Para Cattani, no Brasil a situação é um pouco diferente da de outros países, porque aqui ao menos se avançou no combate à pobreza. "Mas só isso não basta. Precisamos reduzir a distância entre ricos e pobres para termos uma sociedade

Pesquisa sociológica (3)

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Reportagem crítica

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Fortuna de super-ricos 'incontrolvel', diz socilogo

Ruth CostasDa BBC Brasil em So Paulo

O socilogo Antonio David Cattani, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com formao na Paris-Sorbonne, diz ter escolhido um caminho diferente de 99% de seus colegas.Enquanto a maioria dos cientistas sociais se debruam sobre questes relativas a pobreza e a misria, Cattani resolveu desbravar o outro lado da problemtica da desiguandade social - a extrema riqueza, ou os super-ricos.A escolha j foi mais difcil de ser justificada. Desde que o francs Thomas Piketty tornou-se um best-seller com a tese de que o capitalismo est concentrando renda em vrios pases, o que ocorre no topo da pirmide social global tem ganhado um pouco mais de espao nos debates de economistas e socilogos - ao menos no exterior.Para Cattani, no Brasil a situao um pouco diferente da de outros pases, porque aqui ao menos se avanou no combate pobreza. "Mas s isso no basta. Precisamos reduzir a distncia entre ricos e pobres para termos uma sociedade equilibrada, com qualidade de vida e sem violncia", defende.Em A Riqueza Desmistificada (ed. Marcavisual) - livro escrito durante um ano de estudos na Universidade de Oxford, no Reino Unido - o pesquisador defende que a extrema riqueza precisa deixar de ser um "tabu" para que possamos entender o papel dos multimilionrios na economia, na poltica e na sociedade brasileria. Confira abaixo a entrevista concedida por Cattani BBC Brasil:BBC BRASIL: O que o caso Eike Batista diz sobre o modo como encaramos a riqueza em nossa sociedade?Cattani - Eike teve uma asceno meterica que envolveu o uso de recursos pblicos e, aparentemente, tambm informao previlegiada. Mas havia um certo deslumbramento da opinio pblica por ele. No auge de sua carreira, centenas de pessoas pareciam dispostas a pagar US$ 1.000 ou US$ 2.000 para ouvir uma palestra sua. E no havia qualquer questionamento sobre a forma como seu imprio foi construdo - um gigante com os ps de barro.De certa forma isso ocorreu porque h um fascnio em torno da riqueza, um deslumbre. Os grandes empresrios, executivos, e ricos de uma maneira geral so tratados como superiores. natural que a riqueza seja vista como algo positivo, que todos almejam. Isso at legtimo. Mas esse deslumbramento tem impedido uma anlise mais rigorosa sobre como algumas dessas fortunas so construdas - o que pode envolver processos abusivos e predatrios, monoplios, vantagens junto ao poder pblico e outros subterfgios, como no caso de Eike.Leia mais: Brasil 10 pas com maior nmero de multimilionrios, diz estudoBBC BRASIL: Por que o sr. escolheu estudar os ricos?Cattani - Cerca de 99% dos estudos na rea de cincias sociais se debruam sobre os pobres, a classe mdia e a classe trabalhadora. Poucos estudam os ricos. Mas em um dos pases mais desiguais do mundo o estudo da riqueza crucial. o topo da pirmide social que controla os meios de comunicao, as grandes empresas, os negcios e processos polticos e eleitorais, tomando decises que afetam todo o resto da populao. Ou seja, os ricos e super-ricos ajudam a influenciar processos que determinam a estrutura da sociedade.Os pobres so milhes mas tm um poder mais limitado, no esto organizados, esto sob a influncia dos meios de comunicaes. s vezes, meia dzia de megaempresrios influencia decises econmicas que alteram a vida de todos.O financiamento das empresas s campanhas polticas, por exemplo, me parece inconveniente. Por que elas do milhes para esse ou aquele candidato? De alguma forma, querem retorno - e isso no ajuda a melhorar a qualidade de nossa democracia.Antonio David CattaniAntonio David Cattani, da UFGRSAlguns dados apontam que 1% da populao controla de 17% a 20% de toda riqueza nacional. E os ricos, como os pobres, no so autorreferentes ou autoexplicativos. Ou seja, a riqueza ajuda a explicar a pobreza - e vice-versa. Por isso, temos de entender como se estrutura essa sociedade de alto a baixo. No que os estudos sobre os pobres no sejam importantes, mas eles precisam ser complementados com anlises de economistas e socilogos sobre o topo da pirmide - e sobre de que forma esse topo est acumulando sua fortuna.BBC BRASIL: Por que to difcil estudar o topo da pirmide social?Cattani - A riqueza tratada em nossa sociedade como um objeto de venerao, um totem, algo superior que precisa ser respeitado. um tema proibido.Alm dessa dimenso ideolgica, h as dificuldades prticas. Os pobres so acessveis. Os pesquisadores podem entrar em suas casas e fazer as perguntas mais inconvenientes sobre todos os aspectos de suas vidas. Eles respondem porque esperam que isso possa ajud-los a melhorar a sua situao.J os multimilionrios no respondem s pesquisas porque no tm interesse em informar sobre a origem e a exata dimenso de sua riqueza. No querem que ningum v bisbilhotar seu patrimnio. E o resultado que os dados estatsticos sobre eles so extremamente fracos. No d para confiar apenas na declarao de imposto de renda - at porque poucos ricos so assalariados. E difcil obter dados sobre o patrimnio. Muitos multimilionrios mantm parte de sua riqueza no exterior - tm imveis em Paris, Londres ou Miami e escondem fortunas em parasos fiscais.Para completar, eles so protegidos por mecanismos legais e jurdicos, como o sigilo bancrio e de declarao do imposto de renda.BBC BRASIL: Piketty tenta h alguns anos estudar o Brasil, mas um de seus colaboradores relatou a BBC Brasil ter dificuldade em acessar dados da Receita Federal...Cattani - Acho que no Brasil h regras especficas que garantem o sigilo desses dados e pouca colaborao das autoridades.Leia mais: Crtico sensao do capitalismo quer estudar o Brasil, mas Receita no libera dadosBBC BRASIL: Quem so esses ricos?Cattani - difcil quantificar isso. No Brasil, em geral as pesquisas demogrficas e sociais estabelecem um patamar de renda de R$ 6 mil, s vezes R$ 10 mil por ms - elas dizem: todo mundo que est acima disso rico, classe A. Mas precisamos estabelecer melhor as diferenas dentro desse grupo. Quem ganha R$ 6 mil por ms pode ter um bom padro de vida, mas seu poder e o impacto na sociedade muito diferente do que quem ganha centenas de milhares de reais.A partir de um certo patamar, o indivduo em questo dispe de uma corte de serviais, assessores tributaristas e advogados para ajudar a multiplicar sua fortuna, assessores de marketing pessoal e institucional. Faz parte do topo da pirmide que verdadeiramente tem poder. No caso dos super-ricos eu trabalho com um percentual de 0,1% da populao adulta, por exemplo.Eike Batista (Reuters)Eike Batista diz que agora "classe mdia"Tambm h um patamar em que a riqueza gera riqueza continuamente - mesmo em situao de crise, quando a economia real sofre. Uso um conceito interessante que o de "riqueza substantiva" - essa riqueza to grande que escapa at ao controle poltico. Quem assalariado no tem noo do que ganhar milhes de dlares, ms aps ms, ano aps ano. Nem quem tem uma pequena empresa, um apartamento na praia e um mesmo automvel do ano. Tem l seu capital, alguns trabalhadores - mas no tem uma riqueza que se multiplica continuamente.BBC BRASIL: O sr menciona no livro a srie de TV Mulheres Ricas, de 2012. Temos os colunistas sociais, revistas sobre ricos e famosos ... At que ponto o mundo dos super-ricos est mesmo oculto, como o sr diz?Cattani - Um famoso apresentador de TV pode tirar uma foto em seu iate para mostrar como bem sucedido. Mas essa publicidade pouco relevante - e eles s mostram o que interessa. O prprio Eike era uma excesso. H toda uma camada de ricos do setor financeiro, do agronegcio que so discretissimos, no tem interesse nenhum em se mostrar. Circulam incolusive em outra esfera, internacional.BBC BRASIL: Afinal, h algum problema em ser milionrio ou bilionrio? No "justo" que um indivduo talentoso e trabalha duro possa gozar dos frutos de seus esforos?Cattani - A partir de um certo nvel muitas fortunas no tem mais origem no empreendedorismo, mas em situaces de poder. esse o caso dos monoplios, por exemplo, que reduzem a eficincia da economia como um todo. Ao anular a concorrncia, um determinado grupo impe seu preo, sua prtica de negcios, se vale de mecanismos tributrios para aumentar sua riqueza. um mito essa ideia de que toda riqueza produto de talento e trabalho duro. H fortunas que so, sim resultado de um esforo legtimo e talentos empresariais. Mas h tambm herdeiros que no fazem bom uso do que receberam, multimilionrios de mentalidade rentista, riquezas montadas a partir de privilgios e prticas ilegtimas. A riqueza extrema tambm pode ser nefasta para os negcios, para a democracia e para o prprio capitalismo.Leia mais: Ricos brasileiros tm quarta maior fortuna do mundo em parasos fiscaisBBC BRASIL: O Brasil um dos poucos pases em que a desigualdade de renda teria diminudo nos ltimos anos. Estamos no caminho certo?Cattani - Estamos no caminho correto das polticas pblicas para reduo da pobreza, mas as distncias entre os ricos e os demais ainda so imensas. H muito a fazer no tema da concentrao de renda.O problema que quem est no topo da pirmide quer manter seus privilgios. No Brasil, o pobre paga proporcionalmente mais imposto, por exemplo. No h impostos sobre heranas e doaes, como em muitos pases desenvolvidos. Tambm no h imposto sobre dividendos e rendimentos do capital. Quem ganha milhes com dividendos no paga nada, enquanto um assalariado a partir de dois mil, trs mil reais j paga imposto de renda. Precisamos de uma reforma na rea tributria, alm de um combate mais firme a parasos fiscais.BBC BRASIL: Por que importante combater a desigualdade? No basta combater a pobreza?Cattani - Enquanto no avanarmos nessa rea, no teremos uma sociedade mais equilibrada, com mais qualidade de vida e no qual todos tenham boas oportunidades de trabalho para desenvolver suas capacidades. H estudos que mostram que a violncia est diretamente relacionada s distncias sociais, por exemplo. Alm disso, a partir de determinado patamar, a concentrao de renda prejudica a eficincia de uma economia, tira dinamismo do mercado interno. melhor ter uma fortuna reinvestida na produo, gerando emprego, do que imobilizada em uma manso luxuosa ou em contas no exterior.

Sociologia da alta burguesia

Sociology of the haute bourgeoisie

Michel Pinon; Monique Pinon-Charlot

Socilogos, diretores de pesquisa no CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Cientfica) e trabalham no CSU (Culturas e Sociedades Urbanas) do IRESCO (Instituto de Pesquisa sobre as Sociedades Contemporneas) Paris. Frana

RESUMO

Enquanto a pobreza estudada sob todos os ngulos possveis, as classes mais ricas raramente so objeto de anlises sociolgicas. Neste artigo so discutidas as causas desse desequilbrio, a comear pela timidez dos socilogos. Os obstculos metodolgicos provm, em parte, da origem social dos pesquisadores que ficam mais a vontade nas pesquisas sobre a populao pobre e os movimentos sociais e inibidos em face das classes abastadas. A esse problema subjetivo se agrega um segundo relativo ao desinteresse ou recusa dos ricos em fornecer informaes tornando a avaliao das fortunas um exerccio complexo. O tema sofre tambm preconceitos tericos e sociais tendo pouca legitimidade acadmica; o pesquisador frequentemente acometido de um mal-estar deontolgico que dificulta sua relao com o objeto de estudo. Por fim, o distanciamento social se traduz numa ambgua relao de dominao.

Palavras-chave: Teoria Social, Classes sociais, Sociologia da burguesia, Sociologia da classe dominante, Metodologia de pesquisa sobre classes sociais.

ABSTRACT

While poverty is studied from all possible viewpoints, wealthier classes are seldom the object of sociological analyses. This article discusses the causes of this imbalance, starting with the reluctance of sociologists. Methodological obstacles result partly from the social background of researchers, who feel more comfortable studying the poor population and social movements, and become hesitant faced with the affluent classes. To this subjective aspect should be added a second issue: the wealthy classes' lack of interest or refusal to provide information, making the evaluation of wealth into a complex exercise. The subject also suffers from theoretical and social prejudice, with low academic legitimacy; researchers are often stricken by a deontological unease that hampers their relationship with their object of study. Social distancing is finally translated into an ambiguous relationship of domination.

Key words: social theory, social classes, sociology of the bourgeoisie, sociology of the dominant class, social class research methodology

A pobreza se deixa auscultar, inventariar, descrever. So numerosos os estudos sobre os conjuntos habitacionais populares, sobre as famlias em dificuldade, sobre os jovens em situao de marginalidade. Todas essas anlises tm uma utilidade incontestvel. A riqueza porm, pouco explorada pelos socilogos, que parecem no se arriscar de bom grado nos bairros nobres. Isso ocorre devido a dificuldades atinentes aos prprios socilogos ou, antes, s suas relaes com as classes dominantes: a timidez social sem dvida uma das razes determinantes para esse receio da Sociologia. Acrescente-se a ausncia de crditos que poderiam ser consagrados ao financiamento de pesquisas sobre esse objeto; com efeito, os financiamentos pblicos vo muito naturalmente para os lugares de cristalizao dos problemas sociais. Ora, estes so raros nos bairros nobres. O absentesmo das cincias sociais sobre esses temas fortalecido pelas dificuldades metodolgicas encontradas por aqueles que se arriscam nessa empreitada ou pressentidas pelos que se abstm de se arriscar nestas terras desconhecidas. Ela tambm reforada pelos tormentos deontolgicos sofridos ou simplesmente supostos, no trabalho de pesquisa e, sobretudo, em sua publicao.

Pelo que sabemos, essa escassez de trabalhos sociolgicos, patente na Frana, real tambm no Brasil. Tivemos a oportunidade de fazer uma srie de conferncias em outubro de 1997 em universidades brasileiras, em Campinas, So Paulo, Florianpolis, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. O pblico mostrou-se interessado, mas parece que no conseguimos motivar vocaes entre os estudantes e jovens pesquisadores que nos assistiram. No Brasil, assim como na Frana, as favelas e os bairros pauperizados so os terrenos de eleio das Cincias Sociais. Na prpria Frana, graas a seus temas, a dezena de livros que publicamos sobre a nobreza afortunada e a burguesia antiga no passou despercebida, e a imprensa lhes deu bastante cobertura. Curiosamente, isso no levou colegas a seguirem nossos passos.

A timidez dos socilogos

A alta burguesia aprecia a discrio. No gosta muito que falem dela fora das ocasies que controla, como as festas de caridade ou os grandes prmios hpicos. Entregar-se investigao sociolgica leva a pensar, a priori, que se vai enfrentar hostilidade. Ora, no nada disso. Sob certas condies, pode-se com bastante facilidade conseguir entrevistas e testemunhos e ser suficientemente aceito para fazer observaes. Resta que a burguesia vive em um mundo parte, em um crculo fechado que pressagia pouca disposio a se entregar curiosidade do socilogo, o que intervm na timidez do pesquisador acerca desse meio. Considerar sua anlise sociolgica se choca imediatamente com a antecipao suposta da recusa dos interessados e vem agravar a timidez social de socilogos, que quase nunca pertencem a esse meio.

A Sociologia um lugar de verdadeira convergncia social, j que seu recrutamento compsito, mesclando filhos da alta burguesia, filhos de professores e de comerciantes e alguns filhos de operrios ou pequenos agricultores sobreviventes do sistema de triagem escolar. Devido a esse prprio carter de convergncia, poucos socilogos se arriscam a enfrentar situaes de pesquisa em que a assimetria das posies sociais no lhes favorece. Oriundos das classes mdias ou populares e tendo alcanado uma posio social apenas mdia, ou excepcionalmente nascidos na boa sociedade e se encontrando objetivamente em posio de declnio, os socilogos nunca esto vontade para enfrentar um mundo social que ignoram ou que, tendo deixado, sabem muito bem lhes ser socialmente superior.

Trabalhando em meios populares ou mdios, o socilogo goza de uma relao desequilibrada a seu favor. Na situao de pesquisa, encontra-se em posio dominante, mesmo que essa dominao possa ser contestada, por exemplo, por uma atividade viril em meio popular, ou por uma competncia especfica rara em meio pequeno-burgus. Mas diferente quando se trata de enfrentar, na entrevista e no trabalho de campo, agentes providos de mais capital sob todas suas formas, mesmo sob a forma cultural, agentes ricos em capital simblico, isto , em modos e saberes capazes de evidenciar, de tornar indubitvel a legitimidade da posio ocupada. Um grande burgus sempre sabe se manter no seu lugar e colocar o socilogo no seu, com uma polidez refinada, na maior parte das vezes, arma temvel da dominao de classe.

Por outro lado, o clima poltico e intelectual ps-Maio de 1968 certamente teve um papel importante. O peso de concepes de contestao ordem social, em torno de um marxismo muito em voga reivindicado pelos grupos de esquerda ou maostas ou pelo Partido Comunista, ou em torno das teses de Althusser e de muitos outros, dentro do prprio microcosmo sociolgico no favorecia muito a investigao consagrada s classes burguesas e aristocrticas. E isso de duas maneiras. Por um lado, a Sociologia se tornara suspeita aos olhos de categorias sociais que estavam muito escaldadas e ainda em estado de alerta. Por outro, a pesquisa prxima da ao poltica era muito valorizada. Privilegiava as formas de trabalho mais em contato com o mundo operrio, chegando, s vezes, ao estabelecimento, isto , entrada na fbrica, com um objetivo mais militante, alis, do que de conhecimento. O modo de vida das baronesas do nobre Faubourg Saint-Germain no estava exatamente na ordem do dia e, de qualquer maneira, era pouco acessvel observao e ao questionamento.

De fato, trata-se exatamente de modos de vida: a alta burguesia no estava ausente da pesquisa, mas era essencialmente apreendida atravs de seus papis sociais de direo dos negcios, de gesto do poltico, de apoderamento do sistema escolar. Houve, portanto, trabalhos sobre os dirigentes de empresas, sobre os altos funcionrios, sobre as Grandes coles2, mas a partir de mtodos que pretendiam dar conta sobretudo do funcionamento das instituies.

O dia-a-dia, os modos de vida mal eram abordados e, quando isso acontecia, eram primeiramente os das famlias operrias que atraam a ateno. Outra razo para o silncio das Cincias Sociais sobre a alta sociedade a natureza da prpria riqueza. At recentemente, a fortuna era sobretudo industrial ou comercial: mostrava-se nas atividades de produo ou de troca, mais do que hoje, na forma eminentemente financeira. Os valores mobilirios, annimos, administrados discretamente nos servios de gesto dos bancos de negcios, so menos visveis e chamam menos a ateno.

H excees a essa indiferena das Cincias Sociais em relao s famlias afortunadas. A mais notvel a de Pierre Bourdieu e de pesquisadores prximos a ele, que nunca desdenharam se debruar sobre as altas classes para lhes desvelar os processos de dominao e de reproduo. Pode-se citar o primeiro nmero de Actes de la recherche en sciences sociales, publicado em janeiro de 1975, que continha um artigo sobre a alta costura; aquele consagrado ao patronato, publicado em 1978; ou La Distinction, obra na qual a alta burguesia estava bem presente e, sobretudo, La Noblesse d'Etat, (Bourdieu e Delsaut, 1975; Bourdieu e Saint Martin, 1978; Bourdieu, 1979 e 1989). Inspirando-nos nesses trabalhos, abordamos as classes dominantes aps pesquisas sobre as classes populares e as classes mdias apreendidas em seus meios urbanos. Portanto, foi a partir dessa entrada urbana que comeamos a nos interessar pelas classes privilegiadas, o que nos levou a escrever Dans les beaux quartiers (Pinon e Pinon-Charlot, 1989) e depois, pouco a pouco, a nos interessar pelos bairros de negcios, pela "chasse courre"3 e pelos novos patres.

Obstculos metodolgicos

Os obstculos metodolgicos encontrados na abordagem sociolgica da alta burguesia so de duas ordens. Por um lado, na relao com os prprios entrevistados na situao de pesquisa e, por outro, na acessibilidade dos dados que lhes dizem respeito. Esses obstculos pressentidos podem levar os socilogos a recuar diante de tal objeto.

A relao com os pesquisados

A pesquisa sociolgica em meio burgus ou aristocrtico leva o socilogo, quando ele no pertence a esses meios, a experimentar uma posio social bastante desconfortvel e qual no foi habituado nos trabalhos de pesquisa. Trata-se de uma posio dominada, inversa daquela que se estabelece em meio popular, at pequeno-burgus. Essa relao desigual em desfavor do socilogo quando pesquisa junto a famlias da alta sociedade acerca de sua vida cotidiana, da educao dos filhos, das alianas matrimoniais, da sociabilidade nos rallyes4 e nos crculos, pode levar a diferentes tipos de manipulao do pesquisador, em funo do tema preciso da pesquisa. De um modo geral, "os pesquisados possuem, alm de seus diplomas, um capital cultural certo e sabem utiliz-lo com discernimento. Eles querem dominar a representao que do de si mesmos e buscam ento dominar a demanda etnogrfica, passando, por exemplo, do status de informante ao de interlocutor (Le Wita, 1988, p. 23)".

Essa manipulao do pesquisador pode assumir outra tonalidade quando os assuntos abordados causam problemas para os grandes burgueses interrogados que, a despeito do poder e dos capitais de que dispem sob as formas mais diversas, podem se sentir ameaados.

Isso aconteceu em duas pesquisas que fizemos. Uma sobre a "chasse courre" esporte regularmente contestado pelas organizaes zofilas, pelos projetos de lei de alguns deputados e pela viva hostilidade de inmeros parlamentares europeus dos pases da Europa do Norte e outra sobre a invaso dos negcios e comrcios de luxo nos bairros nobres do centrooeste de Paris, o que desestrutura o meio residencial das grandes famlias. De fato, o 8 arrondissement vai perdendo seus moradores em proveito das sedes sociais, dos escritrios das sociedades de consultoria de todo tipo, dos grandes costureiros e dos joalheiros. As grandes famlias, cujos endereos suntuosos so cobiados, devem deixar o centro-oeste parisiense por bairros mais perifricos e por municpios do oeste de Paris. A cidade de Neuilly constitui o arqutipo.

Nesses casos e em outros, o socilogo corre o perigo de ser manipulado por seu objeto, por seus interlocutores socialmente dominantes que, experts na utilizao do discurso, tero no mnimo a tentao de utilizar, dentre outras, a tribuna oferecida pela pesquisa. A grife cientfica do CNRS, a presumida legitimidade intelectual do socilogo podem transformar a relao. Ele tende a ser percebido como o porta-voz possvel de uma causa e de interesses ameaados. Em outras situaes de pesquisa, tambm pode acontecer isso. Porm, nas classes dominantes, o risco de manipulao maior na medida em que o interlocutor do pesquisador domina a arte da conversao, da expresso oral e ficar tentado, apresentando uma defesa de sua causa, a transformar o socilogo em transmissor de seus argumentos.

Essa tentao de fazer do socilogo um porta-voz apresenta, do ponto de vista da prpria pesquisa, vantagens e desvantagens. Apoiando-se sempre na recomendao de um colega, o contato ento facilitado. A prpria entrevista mais fcil de conduzir, mesmo que o discurso assuma facilmente um carter militante. Este deve fazer com que se considere com prudncia o contedo factual da entrevista; sua veemncia relativa, sua mordacidade, seu envolvimento pessoal do, contudo, preciosas indicaes sobre as questes pessoais e coletivas em jogo. Compreende-se assim o quanto morar nesses bairros preservados dos arrondissements do centro-oeste parisiense, assim como a prtica da montaria, fazem parte de certo modo de vida e podem fundamentar a identidade daquele que fala disso com paixo.

O socilogo corre o grande risco de ser tomado tambm como testemunha da causa daqueles que est investigando. Ao redigir seu relatrio de pesquisa, ter ento, por vezes, a impresso de ser o defensor dos interesses daqueles com quem conversou, desde que os problemas abordados possam ser apresentados sob uma aparncia favorvel. Ora, acontece assim com a evoluo dos bairros do oeste de Paris. Criados pelas grandes famlias no sculo XIX e no incio do XX, esses bairros beneficiaram-se da imagem social de seus fundadores, que lhes valeu uma grife espacial, espcie de reconhecimento coletivo da excelncia de certos endereos. Isso explica a vinda cada vez mais macia de atividades de alto nvel, sempre procura de endereos valorizadores para sua imagem social. Mas o despovoamento desses bairros, ligado instalao de atividades tercirias nos apartamentos e residncias particulares, leva a uma degenerescncia urbana e a um declnio inelutvel, como ocorreu com os Grands Boulevards. Em outras palavras, as famlias que protestam contra os processos urbanos que as afastam pouco a pouco de seus bairros tradicionais vo ao encontro das preocupaes de todo responsvel pelo urbanismo, que deplora o despovoamento de bairros centrais e as dificuldades de todo tipo que se seguem. O equilbrio da cidade rompido, mas descrev-lo parece dar razo queles que vivem essa evoluo urbana e se queixam dela amargamente.

O mesmo acontece com a "chasse courre". Aqueles que a praticam regularmente, que alimentam a estrutura das equipes de apoio, so apaixonados por esse tipo de caa, consagrando-lhe uma boa parte de sua vida. Para alm dos efeitos desencantadores da anlise das relaes sociais paternalistas entre caadores a cavalo e seguidores populares que participam a p, de bicicleta ou de carro, a descrio da intensidade da paixo e a da intimidade desenvolta com a natureza que esse tipo de caada supe j parecem facilmente uma defesa contra os argumentos dos muitos adversrios da arte venatria. Ora, a maioria destes socialmente prxima do socilogo, que se encontra assim em uma posio de ruptura aparente com seu meio. Poderiam as classes mdias intelectuais urbanas ver essa descrio da paixo comum que rene banqueiros, duques, operrios de obras e carteiros na floresta mas que, simultaneamente, as exclui, como algo diferente de um argumento em favor da caada?

V-se que, objeto impossvel ou manipulao do pesquisador, tema da pesquisa, a sociologia das classes dominantes no tem apenas de enfrentar as dificuldades inerentes relao interpessoal que se estabelece ao longo da entrevista. A suspeita de complacncia pode logo surgir, e verdade que a posio social daqueles que so aqui os "objetos" da pesquisa leva facilmente a pensar que a empatia, prpria a todo procedimento de pesquisa, se traduz por comprometimentos. Em outras palavras, as dificuldades da pesquisa nas classes dominantes se devem com certeza s relaes entre pesquisador e pesquisado, mas tambm s relaes entre o pblico das Cincias Sociais, seus leitores, e essas mesmas categorias dominantes. No prprio desenrolar da enqute est sempre presente esta obsesso da recepo de um trabalho que, no tendo um problema social em seu princpio, corre fortemente o risco de ser percebido como o revelador do fascnio do sujeito por seu objeto.

O acesso aos dados

Se a alta burguesia aprecia a discrio sobre seus modos de vida, cultiva ainda mais o sigilo sobre seu patrimnio, tanto financeiro quanto de gozo, sobre suas carteiras de valores mobilirios, suas propriedades imobilirias, suas fontes de renda no-salariais. Da mesma forma, sempre muito discreta sobre o inventrio das obras de arte e objetos de valor que mobliam suas inmeras residncias (apartamento parisiense, castelo, manso beira-mar, etc.). As fontes fiscais, que poderiam ser de grande utilidade, so to protegidas quanto um segredo militar. Assim se d com as declaraes de sucesso, que fornecem inventrios do patrimnio aps falecimento, mas so incomunicveis aos pesquisadores. O mesmo acontece com o imposto de solidariedade sobre a fortuna, fonte preciosa de informaes se a publicao dos dados assim coletados no fosse reduzida a alguns dados muito gerais, diludos pelo efeito de mdia entre as grandes fortunas e as que se situam no nvel mnimo desse imposto.

Por outro lado, escolher a alta burguesia como objeto, isto , na Frana, a burguesia antiga hoje intimamente mesclada nobreza afortunada, levanta o problema da delimitao do grupo. Desse ponto de vista, preciso superar dois obstculos. De um lado, a riqueza desse meio multidimensional, feita evidentemente de riquezas materiais, sobretudo de capital financeiro e profissional, mas tambm de capital cultural e escolar e de capital social, isto , de um sistema de relaes e de uma inscrio em redes que garantem uma grande parte do poder. Mas a riqueza social pode compensar uma relativa mediocridade da riqueza econmica, e a riqueza cultural, atenuar uma falta, relativa, de relaes: a disperso dentro dessas dimenses da riqueza pode ser considervel. O pesquisador se encontra, portanto, diante da dificuldade de definir e contabilizar a populao que pretende analisar.

Uma dificuldade que, felizmente, essa prpria populao resolve, tomando o cuidado de se delimitar por seus prprios meios. So os grandes burgueses que definem os limites de seu meio, praticando constantemente o mtodo da cooptao. Por exemplo, tanto para os clubes chiques quanto para os conselhos de administrao das sociedades, a cooptao o princpio de reconhecimento e de aceitao que permite aos novos membros serem admitidos nesses cenculos. Foi a partir disso que ns trabalhamos, utilizando tambm as relaes entre famlias e indivduos que nos permitiram estender progressivamente o campo de nossas investigaes. Um mtodo tanto mais necessrio na medida em que nenhuma categoria da estatstica pblica (profisso e status [empregador, trabalhador independente, assalariado], nvel de renda) consegue isolar esse grupo. Nenhuma fonte delimita essa populao que conta em suas fileiras industriais, banqueiros, mas tambm polticos, agricultores (residentes em Paris, mas possuindo grandes domnios), oficiais superiores (generais ou pelo menos coronis), membros da Academia Francesa, escritores e artistas, alguns jornalistas e, s vezes, um socilogo.

A avaliao dos nveis de fortuna e a construo de um limite de riqueza ficam difceis devido a essa multidimensionalidade que mistura a economia, a cultura e as redes de sociabilidade. Propusemos a noo de capital patrimonial para designar essa imbricao, constitutiva do pertencimento s esferas mais elevadas da sociedade. As classes dominantes possuem objetos de arte, quadros, livros antigos, mveis, residncias que tm alto valor econmico, mas que no podem se reduzir a essa dimenso. Esses bens culturais so tambm uma parte da memria familiar e da notoriedade do nome. Esse capital patrimonial na medida em que a forma material do acmulo, durante vrias geraes, da boa fortuna, que permitiu famlia se constituir e se manter.

Alm disso, quer se leve em conta a fortuna profissional ou o patrimnio de gozo, as variaes entre os ricos mais "pobres" e os ricos mais ricos vo de 1 a 500. Estamos em um universo diferente daquele dos assalariados, cujas variaes so muito mais reduzidas.

Mal-estar deontolgico

Os socilogos que investigam as famlias afortunadas da aristocracia e da burguesia antiga experimentam um duplo sentimento de traio, invertido. De um lado, mostram um meio social cujo fechamento e reserva so as regras de outro. De outro, deixam de lado uma certa vocao da Sociologia, analisar os problemas sociais para contribuir para a definio de sua soluo. Nessas duas dimenses, intervm as relaes com os pesquisados e com os colegas. Os afetos que entram em jogo so contraditrios, difceis de explicitar e controlar. A sociologia das famlias que cumulam todas as formas de capitais , sem dvida, um dos melhores reveladores da complexidade das relaes do socilogo com seu objeto, isto , com agentes sociais que nunca lhe so indiferentes, mas que, neste caso, cristalizam tenses que, em outra situao, podem permanecer latentes. Disso resulta um mal-estar deontolgico e, portanto, crnico, que nasce da posio objetiva em que se encontra o pesquisador.

Esse mal-estar pode ser diferentemente vivenciado conforme os grupos sociais submetidos pesquisa. Os socilogos que fazem investigaes junto a membros das classes populares, embora fornecendo descries e anlises dos problemas sociais aos responsveis polticos e aos diversos agentes encarregados da manuteno da ordem social, podem alimentar, ao denunciar injustias e desigualdades, o sentimento de fazer o bem, sendo os porta-vozes dos dominados. Alis, a denominao "Cincias Sociais" facilita o deslizamento semntico para o "social", para a "ao social". O que no quer dizer que o socilogo que investiga hoje, por exemplo, os sem-teto franceses, no sinta mal-estar: o conhecimento da misria social e humana pode ser fonte de angstia e de sofrimento psicolgico.

O socilogo que trabalha sobre as classes dominantes, sobretudo quando se trata das fraes mais antigas e mais afortunadas, encontra-se confrontado com uma dupla dificuldade. Deve gerir uma relao social delicada com agentes muito mais bem armados do que os outros "objetos" habituais da pesquisa e que desejam viver afastados dos outros grupos sociais. O pesquisador deve, por outro lado, justificar diante de seus pares a validade de seu objeto, levando em conta ao mesmo tempo a discusso cientifica, seus prprios afetos e os de seus colegas relativos a esse grupo social. Assim, durante seminrios ou colquios em que expusemos os resultados de nossas pesquisas, levantou-se de maneira recorrente a suspeita de que sentamos um certo fascnio por nosso objeto.

A ambigidade e a ambivalncia so os caracteres dominantes dos afetos que marcam as relaes do pesquisador com as famlias afortunadas junto s quais faz sua investigao. H um primeiro aspecto dessa ambivalncia que se pode generalizar a qualquer procedimento que operacionalize uma observao, mais ou menos participante, ou uma proximidade com o meio pesquisado, cuja confiana se deve ganhar para encontrar dados que sero a seguir publicados, portanto, tornados pblicos. o do risco de dar informaes que no foram produzidas pelos prprios agentes com esse fim de publicidade, o que choca uma noo moral dominante, que reza o respeito discrio acerca das falas e prticas que no se destinam divulgao. No se trata necessariamente de elementos confidenciais sobre a vida privada, mas de fatos produzidos na segurana de uma reserva social onde o observador, esquecido, acaba por se tornar voyeur e se encontrar numa posio que lhe permite extrair observaes que, sem sua presena, no sairiam do prprio meio. Os rituais das mundanidades, como o beija-mo ou a arte da conversao, so para uso interno e, por tangerem a uma etiqueta especfica, no podem ser percebidos do exterior seno como prticas ultrapassadas e um tanto ridculas. O carter incoerente das conversaes mundanas, durante coquetis e vernissages, por exemplo, que constatamos e relatamos, constitui na verdade uma verdadeira tcnica social na gesto do capital de relaes. Fazer a descrio disso tirar de seu quadro de referncia o que jamais deveria ter sado e correr o risco de passar da descrio e da anlise dos fatos a uma leitura irnica de prticas que s tm sentido para os agentes que pertencem ao campo em que elas so pertinentes. Disso resulta um mal-estar que no prprio apenas ao socilogo das classes dominantes. Um mal-estar cujo resultado mais evidente impedir uma fuso perfeita com o meio investigado. O socilogo ficaria tentado a esquecer seu papel de agente duplo que a tarefa inelutvel de restituio das observaes e dos dados coletados, nas publicaes cientficas, impede sempre de se deixar iludir pela perfeita harmonia com o meio.

Mas, simultaneamente a esse mal-estar, um outro afeto, de sentido inverso vem compensar essa dificuldade de viver a situao de pesquisa. Embora haja uma certa dificuldade para assumir o papel de observador que o socilogo chamado a desempenhar, desvelando o que no pblico, h tambm um intenso prazer em ter acesso ao desconhecido, ao inacessvel, quilo que no se d geralmente aos estrangeiros. Penetrar em um grande crculo parisiense, fazer uma entrevista em um salo do prmio literrio Interalli ou trabalhar na biblioteca do Jockey Club, tem algo da faanha do explorador que consegue penetrar em lugares proibidos aos estrangeiros, como Ren Cailli entrando em Tombuctu5. Conseguir observar, misturar-se a aspectos da vida social aos quais a posio ocupada pelo pesquisador no deveria dar acesso, se esse acesso no lhe for autorizado, por outro lado, em funo de suas origens, est no princpio de um prazer da descoberta, no sentido da explorao. O socilogo levado a descobrir regies desconhecidas, e embora isso se acompanhe de temor e angstia, provoca ainda assim um vivo contentamento, quer se trate de se misturar vida mundana ou de ganhar a confiana de operrios desamparados desatinados pela desqualificao e pelo desemprego. Assim, a conscincia pesada, inerente a um sentimento de traio, contrabalanada pelo estmulo da descoberta de dimenses mais ou menos ignoradas da vida social. Se a conscincia pesada um fator que contribui para manter a distncia e a exterioridade em relao ao meio investigado, essa curiosidade, ao mesmo tempo profissional e pessoal, que leva a se imiscuir cada vez mais naquilo que era fechado de incio, favorece, pelo contrrio, uma empatia que se instala progressivamente e que, com o tempo, sempre corre o risco de pesar sobre a maneira de perceber e de dar conta de seu objeto de pesquisa.

O interesse levantado pelas pessoas estudadas, necessrio motivao de qualquer procedimento de pesquisa, pode ser mais ou menos intenso conforme as condies materiais e sociais do trabalho de campo. Quando a magia dos lugares se acrescenta cortesia e amabilidade dos pesquisados, tudo concorre para suscitar no pesquisador uma curiosidade, at mesmo uma empatia, da qual deve desconfiar. Ser cortesmente recebido em um salo cujas paredes so ornadas por quadros de Matisse, de Dubuffet ou de Picasso, por uma mulher com status de princesa e nome ilustre, leva a uma relao de deferncia com a pesquisada. Mas tambm aqui h ambivalncia dos afetos. O cenrio das entrevistas quer aconteam em mbito privado ou em um meio profissional, so sempre lugares impregnados de majestade e luxo. Eles significam a importncia social dos pesquisados e criam uma relao de dominao que desfavorece o pesquisador, que experimenta agresses simblicas constantes. As demonstraes veladas, mas perceptveis do capital econmico, do capital cultural, do capital social e do capital simblico de que essas categorias dispem, so vivenciadas como violncias simblicas que favorecem o "distanciamento" e vem, de certo modo, quebrar "o envolvimento", se retomarmos os termos de Norbert Elias (1993). O socilogo, confrontado em seu trabalho de campo com agentes socialmente dominantes, encontra-se, portanto, submetido a um processo de imposio da dominao atravs das manifestaes das diversas formas possudas de capital. Ao mesmo tempo, como qualquer outro agente colocado assim em posio dominada, mas talvez com uma maior lucidez social, contesta essa imposio da dominao. A situao afetiva que resulta disso ambgua, pois ele hesita ou, antes, tenta uma sntese impossvel entre a deferncia e a rejeio pura e simples da relao. Para alm das manifestaes obrigatrias de respeito, a atitude reservada do socilogo funciona, a exemplo dos outros agentes, como contestao do desequilbrio da relao, aceito formalmente mas recusado internamente.

Referncias

BOURDIEU, Pierre e DELSAUT,Yvette. Le couturier et sa griffe, Actes de la recherche en sciences sociales, 1975/1 [ Links ]BOURDIEU, Pierre e Saint Martin Monique de , Le Patronat Actes de la recherche en sciences sociales, 1978/20-21 [ Links ]BOURDIEU, Pierre La Distinction. Critique sociale du jugement, Paris: Minuit, 1979 [ Links ]BOURDIEU, Pierre, La noblesse d'tat. Paris: Minuit 1989. [ Links ]ELIAS, Norbert. Engagement et distanciation: Paris: Fayard, 1993 [ Links ]LE WITA Batrix. Ni vue, ni connue. Approche ethnographique de la culture bourgeoise. Paris ; ditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1988 [ Links ]PINON Michel e PINON-CHARLOT Monique. Sociologie Voyage en grande bourgeoisie, Paris, Presses universitaires de France, Quadrige, 2005. [ Links ]___. Grandes fortunes. Dynasties familiales et formes de richesse en France, Paris: Payot, 2006. [ Links ]___. Sociologie de la bourgeoisie. Paris: La Dcouverte, Repres, 2007. [ Links ]___. Dans les beaux quartiers. Paris: Seuil. 1989. [ Links ]

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1 Texto traduzido do original indito "Une sociologie de la grande bourgeoisie est-elle possible?" por Patrcia Chittoni Ramos Reuillard e revisado por Antonio David Cattani. 2 Escolas de ensino superior, que preparam para os altos cargos, principalmente polticos e administrativos, s quais tem acesso sobretudo a elite francesa (Nota de trad.). 3 Modalidade de caa de animais selvagens (cervo, raposa, lebre) feita a cavalo e utilizando uma matilha de ces de caa (Nota de trad). 4 Rallye: grupos informais organizados e enquadrados sobretudo pelas mes visando a integrao e a socializao dos jovens burgueses. A partir, dos 11 ou 12 anos, os jovens aprendem a viver juntos, a organizar sua vida afetiva e sexual em conformidade com a reproduo da classe. Os rallyes envolvem atividades culturais, esportivas e sociais com pares selecionados (Pinon e Pinon-Charlot, 2007). 5 Ren Cailli, viajante francs de origem popular (1799-1838), ficou clebre por ser o primeiro ocidental a voltar da cidade de Timbuctu no Mali (Nota de trad.)