Peter Sloterdijk. a Novela Dos Espaços

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    TOMO So Cristvo-SE N 16 jan./jun. 2010

    RESUMO

    Na obra As esferas (Volume I, II e III) para uma antologia dos es-paos humanos, Sloterdijk em quase 1.350 pginas recria a novela

    da produo de mltiplos espaos: como bolhas, globos e espumas,e se inscreve no projeto de uma ontologia relacional que se perguntaonde o homem quando est no mundo: para o pensamento antigo,estar-no-mundo equivale a um estar-ampliado-na-me, pois esta suaoriginal incubadora de proteo contra os males externos; no mundometafsico medieval um estar-em-Deus; no mundo moderno umestar-em-uma-subjetividade-pensante; e no mundo contemporneo eps-metafsico, o homem estar-lanado-no-mundo, sem sua incubadoraimunizante materna ou divina ou pensante. A inteno desse artigo a investigao de sua concepo de espao, principalmente, de suaidia de espaos espumosos.

    Palavras-chave: esferas, novela, Nietzsche

    PETER SLOTERDIJK:A NOVELA DOS ESPAOS

    Edilene Leal*

    * Doutoranda em Sociologia no Ncleo de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais daUniversidade Federal de Sergipe, membro do grupo de pesquisa Sociedade, Cincia e Tcnica(SOCITEC) e do Laboratrio de Estudos Urbanos (LABEURC). Email: [email protected] .

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    PETER SLOTERDIJK: THE SPACES NOVEL

    ABSTRACT

    In the book The Spheres (Vol. I, II and III) for an anthology ofhuman spaces, Sloterdijk recreates on about 1.350 pages the novelof the production of multiple spaces: how bubbles, balloons and foamshape the design of a relational ontology that wonders where is theman when being in the world: for the ancient thought, being-in-the-world equivalent to a stand-in-mother-extended, as this is his original

    incubator for protection from external evils ; in the metaphysical worldis a medieval be-in-God in the modern world is a being-in-one-and-thinking subjectivity in the contemporary world and post-metaphysicalman be-released-in-world without your mother incubator immunizingor divine or thinking. The intention of this paper is the investigation ofhis conception of space, especially his idea of foamy spaces.

    Keywords: spheres, novel, Nietzsche

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    I INCIO

    Muitos dos espaos habitveis pelos seres humanos contemporneoscaracterizam-se, fortemente, pela construo de fachadas que bloqueiama entrada de externos e por um interior confortvel, tranqilo, aberto,onde as tenses constitutivas das relaes sociais foram superadas. Essacena do cotidiano, como diria Michel de Certeau, encontra-se na arqui-tetnica de condomnios luxuosos de casas ou de apartamentos visvelem quaisquer grandes cidades atuais quase como franquias reveladoras

    de desejo e de consumo do espao globalizado. Nos templos de con-sumo, como os shoppings centers, hermeticamente cerrados e seguroscontra toda exterioridade, construdos para atender s demandas degrupos sociais economicamente dominantes e socialmente engajadosnos discursos de negao de sua prpria riqueza. Mas tambm nosespaos ldicos, com sua atmosfera artificialmente fabricada e suasrelaes supostamente no-tencionais.

    Esses espaos podem ser considerados verses recortadas e recons-tituveis do famoso Palcio de Cristal dos ingleses do sculo XIX doqual nos fala Sloterdijk (2004b), antes Dostoivski (1824-2000), comometfora e arquitetura construda pelos modernos para representar seuideal de espao que comporta todo seu entorno e que garanta seguranacontra as intempries, os riscos e as tenses externas.

    No seu estudo sobre Esferas (2009), Sloterdijk revela que o motivoda construo moderna de seus espaos surreais, os palcios de cristal, a erradicao da penria e da realidade. Isso significa, em primeirolugar, que o que caracteriza a histria dos seres humanos desde seu vir-ao-mundo o impulso ao elevado ou ao anti-gravitacional; os homensteriam se aprimorado cada vez mais tecnicamente para a conquista deseus espaos e de seus respectivos sistemas de proteo (ou de imu-nidade) contra as interferncias de seu ambiente externo. A gravidaderelacionada pobreza, dor e s perdas materiais e no materiais,evolutivamente, cedeu presso ontolgica pelo mimo e pelo luxo.

    Em segundo lugar, a vitria do impulso anti-gravitacional significoutambm a vitria de um sentido de realidade simbolicamente constru-

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    da. Isto , os contemporneos desprezam o real efetivo atravs de suainverso: a conquista de um mundo de luxo e conforto convive com odiscurso de recusa dessa mesma realidade segundo o qual caminhamospara a degradao e a misria. Talvez por isso mesmo esse discursovenha acompanhado da defesa dos ideais mais fundamentais dasredes scio-tcnicas da modernidade (Estado racional e economia demercado): liberdade e igualdade para todos indistintamente (Sloterdijk,2004a-2009: 606).

    Na denncia desse discurso vitimizante, Sloterdijk (2004a-2009:597) analisa aspectos importantes das sociedades de paredes finas.De um lado, a prpria histria da ontologia humana caracterizada,

    sobretudo, pela tendncia ao mimo o que explica o fato de que todosanseiam ser Fausto e conquistar riqueza e bem estar sem a luta sofridapela sobrevivncia: realizar desejos com um passe de mgica do alm.A sustentao das sociedades atuais depende dessa farsa de que todospodem ter tudo, ou seja, de que todos podem consumir o que quiserem.Por outro lado, e ai est a ironia desse discurso e seu estandarte, amuito suportvel leveza do ser1 somente se atualiza enquanto outrostrabalhem. Atualmente: a explorao acostumada do povo por grandessenhores segue a explorao inovadora dos senhores e dos artesos porseres humanos excepcionais, quer se trate de um sbio, de um artistaou de um conselheiro de empresa (Sloterdijk, 2004a-2009:596). A con-dio para que alguns poucos desfrutem do conforto produzido pelasprticas tcnicas dos homens ao longo de sua histria depende de queuma grande parte fique de fora dela. Por que quem quer seriamenteajudar aos demais a se converterem em competidores do gozo de bensescassos? (Sloterdijk, idem: 607).

    nessa medida que os palcios de cristal como grandes viveirosde segurana e mimo esto no mundo para serem desejados por todos,mas no para comportarem essa suposta totalidade. A pergunta seesses que esto do lado de fora esto de fato passivamente esperandosua vez de entrar.

    respondendo negativamente a essa questo que Sloterdijk elabora

    1 Sloterdijk refere-se ironicamente ao livro de Milan Kundera (1984), A insuportvel levezado ser.

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    um diagnstico do mundo atual segundo o qual a histria das lutas dosgrupos sociais pelo estado de bem estar chega contemporaneidadeanimada pela existncia de espaos frgeis, conflituosos e inseguros,ou seja, espumas porosas. A tenso patente entre os privilegiados dosviveiros de cristal e os perdedores da histria fortemente motivadapela falsa esperana universalmente divulgada desde os albores dasociedade moderna de que todos podem ter tudo. Isso desencadeou oimpulso desinibitrio que se encontrava latente entre os perdedorespara a conquista do espao de mimo valendo-se de meios que pem porterra todo o processo civilizatrio encaminhado pelos seres humanosdesde o comeo do seu vir-ao-mundo e estar-no-mundo.

    A reconstruo de aspectos importantes dessa tese de Sloterdijkconfigura o objetivo desse artigo. Para tanto, abordaremos rapidamenteo processo de criao das esferas (I, II e III), mas com ateno especialsobre a Esfera III Espumas, volume no qual o autor elabora seudiagnstico da atualidade. Deve-se destacar as discusses crticas queo autor mantm com Nietzsche e Heidegger para compor o texto sobreas esferas; so crticas exatamente porque no se trata meramente deapropriao de idias, mas do ato de questionar a validade explicativade alguns dos conceitos fundamentais dos filsofos alemes e do atode refazer outros porque assumem sentidos e acentos diversos quandoinseridos no movimento de seu prprio pensar.

    II A NOVELA DOS ESPAOS

    Na obra As Esferas (Vol. I, II e III), para uma ontologia dos espa-os humanos, Sloterdijk recria, em quase 1.350 pginas, a novelada produo de mltiplos espaos: como bolhas, globos e espumas,se inscreve no projeto de uma ontologia relacional que se perguntaonde o homem quando estar no mundo: para o pensamento antigoestar-no mundo equivale a um estar-ampliado-na-me, pois est suaoriginal incubadora de proteo contra ao perigos exteriores; no mundometafsico medieval um estar-em-Deus; no mundo moderno umestar-em-uma-subjetividade-pensante e no mundo contemporneo eps-metafsico o homem estar-lanado-no-mundo, sem sua incubado-

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    ra imunizante materna ou divina ou pensante (Sloterdijk, 2003: 166).Apenas esse homem conhece o exterior ou o real. Por isso:

    Afirmo, pois, que a primeira atividade comum entre os seres huma-nos no a casa nem a sexualidade, no o cuidado das crianas enem se quer a agricultura, a criao de animais ou a indstria, masa criao de um espao de ressonncia entre os que tm vida emcomum (Idem: 242).

    A idia, por excelncia, desse espao de ressonncia que caracterizatoda a histria da cultura humana, desde a bolha passando pelo globo

    at a espuma, , tanto o fato ontolgico fundamental de que os homenscriam seus espaos e os criam aperfeioando-se tcnico-praticamente,quanto o motivo que os anima aventura da antropotcnica: o impulsoat o elevado, o transcendente, o mimo. Dado esse elemento relacional,afirma j de incio que seu propsito a inverso de Ser e Tempo deHeidegger com o estudo das esferas j que coloca o acento entre o ser eo mundo e no entre o ser e tempo. Mas mais que isso: recusa a compre-enso de Heidegger de que o estar-no-mundo pressupe uma totalidade,pois sempre um estar contido em um exterior de algo: Estamos emuma casa, esta casa est em uma cidade, a cidade est em um pas, opas est na Terra, a Terra est em um espao universal... (Sloterdik,2003: 175). Por isso, esse mundo como totalidade, mas tambm comoindividuao (um mundo para cada indivduo), Sloterdijk (2004a: 2009:299) substitui por esfera e a expresso ser-no-mundo por vir-ao-mundo,a fim de dotar o ponto de partida fundamental do Dasein de um certodinamismo ou de um certo movimento. Mesmo porque o ser humano primeiro um estar-fora de sua incubadora originria com o ato donascimento, para depois ser-em-um-mundo. Essa relao com o mundono dado, no um dado ontologicamente fundante, mas fruto deum constante fazer e refazer sempre com-os-outros, de um devir queno encontra termo em uma aconchegante existncia autntica comoqueria Heidegger (1927: 1995).

    Esse dinamismo do espao aproxima-se da concepo de Michel deCerteau que, na tentativa de diferenciar espao de lugar, afirma que esteltimo esttico j que pressupe posies prprias e bem definidas;

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    espao, ao contrrio, o lugar que praticado pelo convvio humano,por seus signos e sentidos variados, por conseguinte, est em movimentoirrefrevel. Assim escreve: (...) o espao existencial e a existncia espacial (1990-1994: 202), sua configurao transformada e rein-ventada pela experincia com o fora ou com o mundo circundante.Nesse sentido, os espaos so produtos da inveno e da criatividadedas prticas humanas.

    PRIMEIRA ESFERA: BOLHA

    Essa novela da produo antropotcnica permite ao leitor acompa-nhar, mediante sobressaltos, relaes, sopros, devires, a criao dasesferas e seus sistemas de imunizao. Sloterdijk define claramente oque chama de sistema de imunidade: De tais observaes se obtmum conceito de imunidade de rasgos ofensivos, que, partindo do nvelbioqumico de sentido, se eleva at uma interpretao antropolgicado modus vivendi humano como auto-defesa mediante criatividade(2004a-2009: 192).

    Na primeira esfera trata da imerso dos seres humanos no mundo dacoexistncia, em que a configurao de sua intimidade existe enquan-to um ns e no enquanto um eu individual; o sentir-se protegidodeve-se, em grande parte, a essa proximidade ontolgica com o outro.O mundo dos humanos, Sloterdijk aprende com Heidegger, diferente-mente do mundo das pedras um mundo exttico, ou seja, mantm-seaberto a co-existncia com outros seres humanos.

    A micro-esferologia traduz a era da pr-histria at a idade mdia emque a criao de bolhas (grupos sociais como hordas), revela o acentona coletividade como nexo primordial de segurana e proteo. A bolha uma pequena esfera psico-acstica ou espao de ressonncia capazde aprender e de se reproduzir pela aprendizagem cujo individualcomparece como plo de ressonncia das relaes coletivas.

    A existncia individual e o cosmos estavam to ontologicamentevinculados que no havia motivo para insegurana: um espao redondoe uma existncia igualmente redonda cujas alianas por semelhana,participao simbitica ou de ressonncia ntima davam o tom na com-

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    preenso do mundo como asilo (Sloterdijk & Heinrichs, 2001:2003:178-9). Esse asilo fortemente ampliado com a metafsica crist queintroduz a idia de que todos so privilegiados porque esto includosno globo celeste, mundo terreno e mundo celeste so equivalentes, da ootimismo do homem da metafsica clssica com relao ao seu espaode habitao: est no melhor dos mundos possveis apenas porque esteparticipa do mundo de Deus, o globo celeste.

    SEGUNDA ESFERA: GLOBO

    A segunda esfera caracteriza-se pela era da expanso do mundo apartir do sculo XVI. O espao das bolhas no qual os seres humanos sesentiam em casa como se estivessem existindo em espaos interiores eem suas ampliaes redondas, superado pelo acontecimento ainda emcurso da globalizao da terra, iniciado desde as conquistas martimasde Cristovo Colombo e os questionamentos filosficos de Coprnico.

    Desde que Coprnico revelou o grande segredo por trs da confort-vel crena dos ocidentais de que tudo, inclusive o Sol, girava em tornodo seu mundo com sua teoria do heliocentrismo; seu narcisismo des-pedaado teve que buscar motivaes para a recuperao de seu lugarprivilegiado. Por isso, lanam-se conquista soberana do mundo atento desconhecido e inexplorado por meio de uma ao desinibida, isto, os agentes produzem justificativas para sua ao na compreenso deuma subjetividade autnoma e transcendente. Nesse contexto, Sloter-dijk parece buscar em Foucault a idia de que a subjetividade modernacaracteriza-se em suas ambies infinitistas e sua humilhante finitude(2001-2003: 189). Kant , nesse sentido, um dos mais fecundos motiva-dores da ao desinibida porque dele a idia de que a subjetividade, simultaneamente, limitada a sua finitude, mas tem autonomia paratranscender seus limites empricos e alcanar a infinitude. A idia deque as subjetividades autonomamente escolhem a orientao para agir o que est na base da ao desinibida dos expansionistas europeusque, de maneira geral, acreditou conter nico e exclusivamente emsi mesmos o direito de ser grande e dominar unilateralmente todo oespao globalizado.

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    O principal resultado dessa ofensiva europia foi a interconexo en-tre dois grandes acontecimentos: a implementao do sistema mundial(capitalismo e Estado Nao) e a mudana nas estruturas imunitrias.A globalizao terrestre significou, em larga medida, a emergncia dofenmeno novo e homogneo da globalizao econmica e tecnolgica.A ao desinibida da expanso europia levou aos quatro cantos domundo o aperfeioamento tcnico como meio de produzir cada vezmais lucro e consumo capitalista. Para tanto, estava respaldada, politi-camente, na constituio de um outro fenmeno igualmente importante,os Estados Nacionais, como redes de defesa dos ideais de liberdade eigualdade para todos.

    Do sculo XVI ao incio do sculo XX, o homem dedica-se ao aprimo-ramento de suas capacidades tcnicas e domesticao de seus corpospor meio da construo dessas instituies tcnico-sociais, a fim deconstituir viveiros de proteo contra os perigos externos. A unificaodos espaos em torno da macro-esfera, um s espao compartilhado porseres humanos dceis e civilizados, responde demanda de infinitudedo homem moderno (Sloterdijk, 2001-2003:217).

    TERCEIRA ESFERA: ESPUMASloterdijk acredita que o sculo XX inicia o processo de derrocada da

    modernidade, do globo e do humano construdo como um corpo dcile uma entidade uniforme. A motivao principal para a antropotcnicatambm no mais dada por um horizonte espao-temporal estabiliza-do, unificado, funcional. Em seu lugar, o humano se auto-constri comocyborg e constri seu espao motivado unicamente pelo conforto e peloluxo. Esse humano se fragmenta, se individualiza, se auto-constitui ese re-constitui em partes diversas e desiguais; o humano-cyborg do es-pao atual quase o humano-esquizide de Deleuze e Guatarri, ambosconstroem zonas habitveis plurais, irregulares, frgeis, mveis, ilhasconstitudas auto-referencialmente como espumas, em Sloterdijk, oucomo espaos estriados e rizomticos, em Deleuze e Guatarri (Sloter-dijk, 2009: 33). As espumas representam a poliesferologia que marcaos tempos atuais.

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    So unidades simbiticas conformadoras de mundo, por isso pare-cem comunicar-se entre si, mas tm em comum apenas o aprendizado,regras de convivncia social, o habitus , a cultura. Sloterdijk comparaas espumas com os ocupantes de veculos, que viajam em filas unsatrs de outros: cada grupo de viajantes conforma dentro uma clularessonante, entre os veculos, sem dvida, reina o isolamento, e assim melhor, posto que a comunicao significaria coliso (Idem: 52).

    compreensvel que Sloterdijk retome aqui a teoria dos sistemas deLuhmann. Pois este parte da tese da ontologia pluralista ou da existnciade entornos mltiplos dos seres humanos para defender que o que ca-racteriza a sociedade atual a auto-constituio de subsistemas sociais

    mediante operaes tcnicas de diferenciao com seu mundo ambiente.Cada subsistema fechado estruturalmente em suas especificidadestcnicas e aberto cognitivamente entrada de informaes provenientesdo mundo e de outros subsistemas. So aes que acoplam informaes(sentidos, regras, cdigos, etc) funcionalidade estrutural dos sistemas,selecionando o que se adequa e excluindo o que no se adequa. SegundoSloterdijk (2009:198-9), da possibilidade de desacoplamento dos sistemasde seu entorno, geram espaos de liberdade internos que permitem aproduo de indeterminao e de desordem no interior do sistema. Nessasituao, surgem as espumas como espaos sobre os quais as normasexternas no exercem controle. nesse sentido que afirma que apenas oser humano das espumas conhece seu entorno (seu mundo exterior) bemcomo conhece concretamente a liberdade, entendida como a liberaodo funcionar conjuntamente e do discurso da verdade.

    Para o autor de Esferas, se no se parte dessa compreenso: O arda ilha liberta, se perder as possibilidades de retomada, sob outrosngulos mais afinados com os novos tempos, do processo de levitao.

    Uma vez que compreendemos melhor o carter construdo e insu-lar das zonas habitveis pelo homem, entendemos de forma maisinteligente os recursos escassos como a simpatia, a iniciativa e aatmosfera. No mundo moderno os homens podem degenerar de umamaneira monstruosa, podem contrair um catarro ontolgico incurvelou experimentar a solido e o desamparo, a depresso e o retiro dosentido, situaes para as quais no existem remdios disponveis.

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    Sendo conscientes dessa situao, podemos interpretar esta capa deoxignio que chamamos cultura e onde ns existimos, por um lado, deum modo mais cuidadoso e, por outro, mais tcnico do que fazemos emgeral. (...) Quem no quer pensar a margem da iluso do mundo da vida,quem no deseja colocar perguntar tcnicas, quem no tem interesse emparticipar da anlise do tipo como possvel um espao que respondas motivaes, este , em meu entender, um mero passageiro, um sim-ples consumidor das produes culturais, no um terico da cultura.Lamentavelmente, a maioria dos professores de filosofia responde aoperfil de passageiro (Sloterdijk, 2001-2003: 214-215).

    Para Sloterdijk, portanto, a cultura produzida tecnicamente a capade oxignio da qual dispem os seres humanos para se protegeremdas possveis e insondveis catstrofes que os ameaam. O humanismomoderno que orienta a recusa filosfica e cientfica da compreensodas prticas antropotcnicas dos espaos como processo civilizadore, por isso, necessrias para a sobrevivncia desses espaos e de seusmoradores, sempre serviu para legitimar as prticas centralistas outotalizantes dos Estados modernos.

    Pois, o que significou o disciplinamento dos corpos e a instalao depanpticos de vigilncia dos espaos mono-esfricos da modernidade,referendados pelo humanismo? Seno o aniquilamento da diferena,da liberdade e da pluralidade esferolgica? Segundo Sloterdijk:

    (...) a idia segundo a qual o campo social conforma uma totalidadeorgnica e est integrado em uma hiperesfera oni-mancumunadae oni-inclusiva; no significa outra coisa do que a propaganda au-toplstica dos imprios e das fices-reino-de-Deus desde temposimemoriais. (...) sociedade no designa nem (como no nacionalismoviolento) um receptculo mono-esfrico que inclui uma populaoinumervel de indivduos e famlias sob o nome poltico essencialou um fantasma constitutivo (2009: 49).

    De forma chocante, como lhe prpria, chama Hitler de filsofoclssico porque ambos anseiam pela totalidade, pela identidade imu-tvel e pela unidade.

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    Filsofos clssicos e humanistas se aliam s prticas liberais dosEstados modernos que faz muito deixaram de basear-se na funo deconstituir consensos para requererem para si a funo de redistribuiodas riquezas e de acesso ao conforto. O Estado de Bem-Estar Socialprovidencia, prioritariamente, a democratizao do luxo (Sloterdijk,2009: 600; 2004: 22), isto , acentua o desejo do homem pelo luxo que ocaracteriza desde sua chegada a terra. O que inaudito nesse momentomoderno to somente a tentativa paradoxal de horizontalizar esse pro-cesso, de pressupor que todos podem tornar-se mimados, confortveise luxuosamente refinados.

    Compreende-se por que Fausto e Mefistfeles, personagens de Goe-

    the, tornaram-se as figuras fundamentais da modernidade: o primeiro aquele que alcana o topos de luxo sem a caminhada tortuosa dotrabalho, o segundo oferece os meios tcnicos mesmo que tcnico-diablicos necessrios para o novo homem como Fausto realizar seudesejo. Com isso, Sloterdijk deixa entrever como a corrida moderna paraa realizao supostamente horizontal do desejo de luxo implicou emuma reflexo metamoral sobre os fatos morais; o que para a moralidadeanterior ao sculo XX era considerado pecado mortal neutraliza-se emfator de produo e consumo: desejar o suprfluo, o inessencial, osbens mundanos.

    A modernidade, em todas suas esferas de atuao, promoveu umareviravolta, e segundo Sloterdijk negativa, do processo civilizatrio,aqui entendido em termos de levitao ou cultivo da diferena: elevar-separa longe da maioria. Sua fora encontra-se na pedagogia inibitria dosdesejos que educava as pessoas a negaram a possibilidade de realizaode seus desejos. A possibilidade de configurar Kultur condicionadapelo controle das paixes mundanas em favor do cultivo em alto graudas artes e das cincias. A cultura se mistura prtica moral porque esta que justifica a recusa satisfao plena das vontades individuaispela prtica de valores sublimes como honra social e cultivo de simesmo. A marca caracterizadora desse processo cultural o cultivo dadiferena e da distino. Norbert Elias j havia constatado que a inibi-o dos afetos produzira, historicamente, um habitus social no qual sereconhecia a tenso entre o superior e o inferior, o elevado e o vulgar.

    O processo civilizatrio operado pela modernidade atravs da con-

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    descarga do ser humano. Descarga um mecanismo de proteo contraa disposio ontolgica do homem para o excesso e o gasto desmesura-do de energia. Pode-se dizer que leis, proibies, controles simblicosforam criados para conter esse animal desmedido que sempre desejaalcanar o mais elevado. Nesse processo de disciplina civilizatria, oconservador de vanguarda, segundo Sloterdijk, destaca que uns tmmaior predisposio para a prtica asctica da elevao, por isso sabemlidar melhor com a energia criativa da descarga sem serem sugadospelo excesso. Enquanto que outros tantos menos afeitos a ascese devemdedicar-se a realizao das atividades objetivas e tcnicas da cultura.Todavia, as condies scio-culturais da modernidade imprimiram de-

    sejos de realizaes igualitrias, iluses de que todos podem perseguira descarga de energia desmedida. Com isso, nega a prtica civilizatriade administrao das energias humanas de carncia e de excesso, parasugerir a implantao de um sistema de imunidade contra qualquersorte de infeces da psique: com a prtica psicolgica da rotina eantropolgico-cultural das instituies controladoras.

    Segundo Sloterdijk, Gehlen escolheu a via da carncia e da serieda-de: diante da descoberta de que o ser humano capaz de aes supe-riores e simbolicamente ambiciosas, inverte os termos da sua prpriaantropologia quando comea ver com negatividade a predisposiohumana ao mais elevado. Como um adulto srio no conseguiucompreender que a disperso, a ligeireza, a fluidez, a singularidadeque caracterizam o ser humano atual podem ser ricos que seus ideaisde rotina, disciplina e compleio.

    Por analogia com isso, deveriam ter tido mais clareza que a ligeireza toda uma dimenso mais rica que a seriedade, a indeciso que adeciso, e, finalmente, por tocar o ncleo mais quente da atualidade:que a falta de compromisso abarca um campo mais complexo desituaes, tomadas de posies e oportunidades existenciais que ocompromisso (Sloterdijk, 2009: 548).

    Pode-se dizer que Sloterdijk um pensador que acredita na possibi-lidade de retomada do processo civilizatrio vertical como cultivo dascapacidades essenciais humanas. Mas sem a carga, as preocupaes,

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    o tdio e o masoquismo que caracterizam esses pensadores. Sloterdijkretoma, dando acentos prprios, o humor e a leveza de Nietzsche. Semculpa, afirma com Nietzsche que a elevao para poucos, que apenasos que vencem a luta incessante pelo controle do mimo e da riquezapodem ter acesso pleno aos seus bens superiores. O fato de que a mo-dernidade se caracterizou pela expanso do mimo, mais exatamentepelos discursos de democratizao do mimo, no significa dizer queos seres humanos esto livres dessa tenso constitutiva: vencidos evencedores so os oponentes da guerra pelo controle dos espaos e dosprodutos. Todos so muitos, e os bens so escassos; os produtos nocomportam o volume da demanda.

    Esse Sloterdijk o mesmo que empreende a crtica da razo cnicados modernos segundo a qual estes justificam o uso de qualquer meioe de qualquer fim como bom a priori apenas porque mantm afinidadecom a verdade. A vontade de verdade e a vontade de poder se aliamna maneira como os poderes esclarecidos pensam o Estado, a sexua-lidade, a religio, as armas, a tcnica e a cincia. Como alternativa aocinismo esclarecido, Sloterdijk reconfigura a relao entre saber e podera partir do movimento de impulso qunico que se apresenta sob aforma de um humor insolente e corrosivo da verdade. O qunico imitaa atitude do homem gato Digenes de Larcio que andava com umalamparina em plena luz do dia buscando a verdade, sempre instintivo,anti-reflexivo, anti-idealista, anti-terico; investido de uma Aufkl rung jovial e desembaraada de qualquer teleologia e fundamentos ltimos.

    Tambm nas Esferas pretende desvendar o que estar por trs domais importante paradoxo moderno: o engajamento na luta pelo reco-nhecimento do outro implica em ter esse outro como companheiroe rival, j que se trata de abrir-lhe o campo de acesso ao mimo quej lhe foi liberado. Isso acontece porque a conquista moderna do luxovem acompanhada pelo forte embasamento de uma moral de cunholiberal-cristo que dita o texto dos discursos dos atores do sistema debem estar: valores como justia, generosidade e liberdade somente tmsentido como, respectivamente, acesso de todos ao sistema de conforto,ressentimento com as desigualdades na repartio das vantagens domimo e assentimento ao egosmo do outro. Essa suposta justia in-finita demanda uma situao impossvel de luxo interminvel. Com

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    isso, apenas se tenta encobrir, primeiro, o conflito entre os j agracia-dos com o mimo e os pretendentes a este; segundo, a confirmao eaumento da posse dos que j alcanaram o topo do sistema de bemestar. Sloterdijk escreve:

    Enquanto os atores do sistema se identificam com seus papis e criamem seus textos, no tm perspectiva global alguma sobre o viveiro debem estar e as bases de seu funcionamento. De suas autodescries,h que destacar, naturalmente, expresses como mimo, aligeira-mento, luxo e descarga: a semntica dominante as ofusca mediantefrmulas como liberdade, segurana e reconhecimento. De fato, o

    que importante para os indivduos que esto no umbral acima dosistema de bem estar seu prprioempowerment ; o segundo passoda emancipao reafirma reivindicaes a participar no fluxo doconforto. Porm, quando os habitantes do viveiro da sobreabundnciaconvertem em uma segunda natureza a docilidade s fantasias dacarncia, no se percebe facilmente de que modo haveriam de levara cabo, por sua prpria vontade, a mudana de perspectiva. Se ateoria [convertida] em meio da vida sempre o improvvel, a teoriado mimo nos mimados o mais improvvel (2009: 609).

    Para dar conta desse paradoxo e da situao de improbabilidade deledecorrente, os indivduos criam uma forma de ver e de experimentar arealidade a partir da extrapolao e do estranhamento esttico. Isto ,a sociedade atual constituda pela criao de amplos, climatizados eluxuosos espaos-espumosos envolventes que o visitante, a princpio,sabe que diferente do normal-real. Mas depois so rapidamenteatrados pela visibilidade do conforto de suas instalaes. Entram comovisitantes, mas se tornam habitantes que compartilham desejos emcomum, assimilveis assim que se encantam por eles, os consomeme os realizam esttico-artificialmente. Para Sloterdijk, todos so ouartistas ou consumidores de arte nas espumas subculturais. O que o capitalismo, o Ocidente ou o mundo de bem estar se experimentavisitando, por exemplo, aClnica dos Sonhos de Ilya Kabakow; umaestadia em Eurodisney (...) (Idem: 616).

    Tal como os modernos visitaram e experimentaram o Palcio de

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    Cristal. Para Sloterdijk, os sistemas de imunizao de fins da moder-nidade e da sociedade atual mantm uma relao indissocivel entreo universalismo global e os espaos de paredes transparentes. Isto , acolonizao do mundo mediada pela expanso do conhecimento aosmais variados e longnquos lugares do mundo e pela pressuposiode que o progresso tcnico-econmico universal e igual para todos,corresponde imagem da construo de palcios de cristal comoviveiros de proteo que no se furta ao desejo e a iluso de que todospodem neles ser includos.

    Essa metfora palcio de cristal, emprestada de Memrias doSubsolo (1864-2000) de Dostoivski, referindo-se ao suntuoso espa-

    o de Exposio Universal de Londres, construdo em 1851, guardaexatamente o mesmo sentido original. Isto , um imenso espao cominterior climatizado ou seu ar ambiente artificialmente produzido,conforto e segurana igualmente repartidos e a eterna primavera doconsenso (Palcio de Cristal) regendo a vida comunitria de vidro.

    Segundo Sloterdijk, Walter Benjamim perdeu momentaneamentesua admirvel capacidade fisionmica quando viu o palcio decristal londrino como apenas a verso ampliada de uma paisagem re-presentativa do capitalismo moderno. No percebeu, com Dostoivski,que sua estrutura arquitetnica permitia (pois ele j foi implodido em1991) uma viso integral do capitalismo como nenhum outro emblemade suas ambies visuais. Nenhuma paisagem de Paris ou descrioda conduta de seus passantes ou suas figuras tpicas comporta tantariqueza metafrica e visual para entender os viveiros de proteo dassociedades atuais quanto o palcio de cristal.

    Isso explica o aparecimento de outras construes suntuosas,construdas nos mais diversos lugares do mundo (China, Japo, Itlia,Espanha, EUA) com cristal ou materiais substitutos do cristal comopolietileno, plstico e PVC para garantir a permeabilidade da luz edotar o espao da transparncia necessria para ser visto, visitado edesejado. um espao fechado, mas aparentemente ao alcance de todos.Tambm so assim os modelos arquitetnicos do sculo XXI, que Sloter-dijk chama de ilhas absolutas, espumas, estaes orbitais, verdadeirosviveiros de proteo cuja fuso do exterior no interior, caracteriza ostipos de zonas habitveis atuais. Essas espumas: centros comerciais,

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    recintos de festas, estdios, espaos ldicos cobertos, estaes orbitais egated communities (2004b: 13). Tambm so assim os mais modernoscondomnios fechados de casas e apartamentos nos quais o conforto eluxo so to visveis que parecem sob a luz do tangvel, qualquer umse desejar poderia a princpio habitar seu espao, pelo menos assimpropagandeia o capitalismo globalizado de hoje.

    A transparncia dos espaos revela muito do tipo de ser humanoe ser-no-mundo que habita essas ilhas espumosas. Por um lado, umaatitude voyeurista; por outro, um tdio normativo generalizado. Hei-degger j havia dito, e Sloterdijk sabe-o bem, que o mundo moderno o mundo das imagens, o ser-no-mundo absorve a realidade desde suas

    condies artificialmente estudadas. E essa absoro feita a partir deuma atitude entediada com o mundo em que diante da vitria ou darealizao sobrevm necessariamente o tdio com o realizado. Schope-nhauer advertira para o sofrimento ontolgico decorrente da realizaoda vontade segundo um ciclo sem fim: a ansiedade de uma vontade porrealizar, a realizao consumada e o tdio aterrador que se demora atque sobrevenha uma nova vontade.

    O que torna possvel o entediar-se atual a conquista do mimo.Apenas porque a modernidade cumpriu sua promessa de uma maiordemocratizao do luxo que possvel um maior nmero experimentaro tdio da existncia antigravitacional: poder experimentar o estadode viglia enquanto estado ausente de tenses privilgio recente. Doser-no-mundo como aquele que tem tempo livre porque goza do pri-vilgio da conquista do luxo e porque goza da tranqilidade, vazio,simplificao e sentimentos autnticos num continum de paz, resultana imerso do ser humano na morbidez e na epidemia do negativismo.Segundo Sloterdijk:

    As culturas do ressentimento so possveis, e prosperam como nunca,porque pelo encontro da frustrao e tempo livre existe muita aten-o concentrada em guardar rancor pelas humilhaes; os cuidadossempre em viglia dos intelectuais produzem inquisies incessantesmudam contra as ofensas do xito. Resta a dvida de que essas formasde luxo redundam em proveito da cultura total, seja l isso o que for.Desde o ponto de vista otimista, pode observar-se como o ressenti-

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    mento estimula o metabolismo da agresso mediante fantasias dehumilhao ricas em material maduro (2009: 636).

    Sloterdijk revela-se um otimista confesso, pois no somente nogrande ensaio sobre As Esferas, mas tambm em ensaios menorescomo O Desprezo das Massas, Regras para o Parque Humano e ou-tros, mostra-se decidido a desvendar o que est por trs dos discursosvitimistas de conservadores e revolucionrios bem como de humanistaspropagadores da domesticao do ser (inibio dos desejos). Talvezantes de ser um otimista ele seja, como ele prprio se autodenominava,um toxicmano voluntrio da realidade. O proceder metodolgico da

    imerso toxicolgica na realidade permite-o experimentar o excesso eo terror de seu prprio tempo a fim de melhor diagnostic-lo.Finalmente, diante da pergunta: Onde estamos quando somos no

    mundo atual? Sloterdijk responde que estamos em espaos encanta-dos, que gozam de uma imunidade imaginria e de uma comunidade deessncia e de eleio, magicamente generalizada (Sloterdijk, 2009:49);nos quais se anunciam:

    A prxis do terrorismo, a concepo de design do produto e as idias

    do meio ambiente. Com o primeiro, se estabeleceram as interaesentre inimigos sobre fundamentos ps-militares; com o segundo, ofuncionalismo conseguiu reincorporar-se ao mundo da percepo;com o terceiro, os fenmenos da vida e do conhecimento se vincula-ram entre si a uma profundidade desconhecida at ento (2009: 75).

    Esses acontecimentos demonstram o quo frgeis, fugidias, fludasso os espaos humanos e seus sistemas de proteo atuais, pois a evo-luo tcnico-cientfica do conhecimento humano dotou a guerra doterror de armas que atentam no sobre o corpo das pessoas, mas sobreo clima e atmosfera da existncia humana. A guerra desde o sculopassado transmutou-se em guerra de gs cuja produo de viveirostecnicamente aprimorados de luxo e conforto como as ilhas absolutasescondem apenas a tenso gestada e ampliada na atual situao de de-sinibio e violncia descontrolada. Os perdedores da histria da lutaentre grupos sociais pelo controle do bem estar, habitam o outro lado

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    Recebido em 05 de maro de 2010.

    Aprovado em 01 de junho de 2010.