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,.- 123 , ...•. - capftulo 11 O OBJETIVO DA FJLOSOFIA Quem filosofa dá um passo além do mundo do trabalho cotidi- ano. O seiltido de um passo, porém) é detemunado menos pelo ponto de partida que pelo ponto de chegada. Continuamos, portanto, a indagar: para onde vai o mosofanre ao transcender o mundo do trabalho? Evidentemente, ultrapassa uma fronteira: que tipo.de região é essa que se encontra além da fronteira? E como se relaciona O i:ampo no qual o ato filosófico avança com o mundo que juscamente por ineio desse mesmo ato filosófico é Buperodo e ultmpnss~o? Será aquele ca.mpo o "o..utêntico» e o mundo do trabalho o "inautêntico"? Será o !(todo" em contra- posição à "parte"? A verdadeira realidade em contraposição a uma realidade meramente aparente ou sombra do real? Seja qual for a resposta dada a essas questões particulares, emtodo caso ambos os campos, o do mundo do trabalho eaque- le no qual o ato mosótico avança ao. ultrapassar o mundo do trabalho, pertencem ao mundo do homem, que portanto possui uma esttutura evidentemente articulada de modo poliédrico. Eis, portanto, nossa próxima questão: de que espécie é o mundo do homem? - uma questão que obviamente não pode set respondida sem levar em consideração o próprio homem. :: ' .,. 't .. lI': '::

Pieper Texto 7-Capítulo II- Objetivo Da Filosofia

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capftulo 11

O OBJETIVO DA FJLOSOFIA

Quem filosofa dá um passo além do mundo do trabalho cotidi-ano.

O seiltido de um passo, porém) é detemunado menos peloponto de partida que pelo ponto de chegada. Continuamos,portanto, a indagar: para onde vai o mosofanre ao transcender omundo do trabalho? Evidentemente, ultrapassa uma fronteira:que tipo.de região é essa que se encontra além da fronteira? Ecomo se relaciona O i:ampo no qual o ato filosófico avança como mundo que juscamente por ineio desse mesmo ato filosófico éBuperodo e ultmpnss~o? Será aquele ca.mpo o "o..utêntico» e omundo do trabalho o "inautêntico"? Será o !(todo" em contra-posição à "parte"? A verdadeira realidade em contraposição auma realidade meramente aparente ou sombra do real?

Seja qual for a resposta dada a essas questões particulares,em todo caso ambos os campos, o do mundo do trabalho e aque-le no qual o ato mosótico avança ao. ultrapassar o mundo dotrabalho, pertencem ao mundo do homem, que portanto possuiuma esttutura evidentemente articulada de modo poliédrico.

Eis, portanto, nossa próxima questão: de que espécie é omundo do homem? - uma questão que obviamente não podeset respondida sem levar em consideração o próprio homem.

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1-" ,~i:ci~am~s, a f~d:~:~ aqw um:~es;~s:a mili':' :e,,''los clara, começar bem do início, bem de baixo.

:.'~ Pertence à essência do ser vivo o fato de que viva e esteja em,~mmundo, ~ "seu" mundo, de que possua um mundo. SerVivo significa estar "no", mundo. Mas uma pedra não está tam.:~~m"no"mundo? Não,estâ simplesmente tudo o que em abso-l~to'(existe" "no" mundo? Tomemos a pedra inanimada, que se

, ' e!lcontra em ~gum lugar: ela está com e ao lado de outras coi,

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s.~,', ('no" mundo? "No", "com", "ao lado de" - essas são palavras .,d relação. Mas uma pedra não possui re~enre uma relação

"p a com o mundo, "no" qual se encontra, nem para com as :._~,.isas vizinhas, "ao lado" das quais e "com" as quais está "no'~.-

, , undo. Relação em sentido genuíno se estabelece de dentro. p fora. Só há relação onde há um interior, portanto, um,~, htro dinâmico a partir do q~ toda ação surge e ao qu~ ser ~retudo o que se recebe e sofre. O interior (no sentido quali-

vo - a respeito do "interiot" da pedra só se pode f~ar no,s rido de situação espaci~ de suas partesl) é a capacidade de

o real.de possuir relação, de se põr em relação com um exte-;:,.'f:. ,r. "Dentro" significa capacidade de relaçã~ e de inclusão

:( ,eziebunU' und Einbez.iehunukmft), E mundo? Mundo significao;lnesmo que campo de re1ação(Be:dehunuftlá). Somente um ser'

',t~a.z ~erelação,' somente um ser-interior (Itmcn--Wcscn), c issoq..ferdizer somente um ser vivo, possui mundo. Somente a ele

':.;~~ existir no meio de um campo de relação. Trata~se,por prin-.;'.~ ia, de formas diferentes de estar ao Jado de: a que subsiste na, , - entre pedras encontradas em ~gum lugar, amontoadas 'x:a. rua - eJ portanto, vi.zinl?os - e a forma d.a.da,em i:pntrapar~tida, na relação de uma planta para com as substánciasnutriti-vas que se.en~onttamna região de sua r~. no solo. Não há aqUiuma prOXlID1dademeramente espacial como fato qbjetivo, mas~ relação autêntica (no sen~dooriginal, nomeadamente, nosentido ativo de inclusão): as substáncias nutritivas estão incluí-das no âmbito da vida da planta - a partir do interior autêntico

...24 I Que É! filosofar?

da planta, mediante sua capacidade de relação e inclusão. Etudo o que for abrangido pela capacidade de inclusão da planta_ tudo isso perfaz o campo de relação, o mundo da planta. Aplanra tem mo mundo; a pedra não.

O primeiro ponto, portanto, é: mundo significa campo derelação. Possuir um mundo significa: ser centru e suporte demo campo de relação. O segundo, porém, é: quanto mili ~to olugar do ser-interia,r, ou seja, quanto mais extensa e abrangentefor uma capacidade de relação, tanto mais amplo e elevado seráo campo de relação submerido a esse ser. Dito de outro modo:quanto' mais alto um ser estiver na ordenação hierárquica darealidade, tanto mili amplo e elevado o lugar de seu mundo.

O mundo mais inferior é o das plantas, que em suadistensão espaci~ não vai ~ém da proximidade de contato. Omundo hier~quicamente superior, e também mais amplo, dosanimais corresponde à maior capacidade de relação dos ani-'mais. A capacidade de relação e inclusão dos animais é maiorna medida em que o anim~ é capaz de percepção sensivel, deperceber algo: trata-se de um modo, em contraposição ao âm-bit!? meramente vegetal, especial e completamente novo de secolocar em relação com um,exterior.

Isso não significa de maneira ~guma que tudo o que umanimal, tomado por assim dizer "abstratamente", é capaz deperceber (pois possui olhos para ver e ouvidos para ouvir) jápertença também ao mundo desse anim~. Não significa deforma alguma que todas as coisas visíveis ao seu redor sejamvistas por um animal dotado de sentido de visão, e nenl quepossam ser vistas. O espaço ao redor, mesmo o que é perceptí-vel "em si", não é ainda mundoI Essa era a concepção geral atéas pesquisas sobre o meio ambiente (Umwelt) do biólogo Jakobvon Uexküll. Até então, tal como Uexküll mesmo formulou1

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l.]akab voa UBXKO~ Derunsterbliche Geistin der Natur, Hamburg, 1938,p.63 .

o objetivo da filosofia I 25

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[. ;-l:itava-se-~-m ~:~~ que todos os animais dotados de olhosPfrcebiarn os mesmos objetos". Uexkü1l descobriu que isso oeor-

: '.r~ de'modo totalmente diverso: eros ambientes dos animaisJJ •

~sim afirma Uexk.ülF, "não se identificam à ampla natureza: .~ a um habitat estreito, escassamente mobiliado'). Por exem- ,"

~,' p"",Ib: deveríamos pensar que uma gralha puderia, pelo fato de,."p~ssuir "olhos na cabeça", ~er um gafanhoto, para ela um oh--.:jel0 especialmente de:sejà~o, sempre que o recebesse à vista o~,. df2:endo de modo maJ.Scwdadoso, sempre que aparecesse dian-:. t~./de seus olhos. Mas não é isso que ocorre I Ocorre na verdade. ~reguiote (cito novamente Uexküll): nA gralha é completamen-t~/n~paz de vet um gafanhoto imóvel [...] Vamos SUPOtaqui,

: :t:fmel~amente, que a forma do gafanhoto em repouso é bem.:~ nheada pela gralha, m'lS não pode reconhecê-lo devido à

. a que se lhe sobrel'õe, tal como nós temos dificuldade de'. ;re onhecer uma forma a partir de imagens ocultas -em outras......~agens (VexierbiJder). Somente no salto é que a forma, seguo-• :d' essa concepção, se livra das imagens secundárias. Após ou-..~ ~eriênàas, no'entanto, deve-se supor que a gralha nãoretonhece de modo alguol a forma do gafanhoto em repouso,

ls6 -quando a forma está em movimento. Isso explicaria oi,' obilismo de muitos insetos. Se a forma em repouso não está.~_~sente em absoluto no mundo 'perceptivo do inimigo perse-

t.: I dor, então, pelo imobilismo esCápam em segurança do cam-:' p.~ clevisão do inimigo e não podem nem ser encontrados por'l,,"JiO de busca"], .. " .::.. Esse meio restrito (Ausschnittmilieu), no qual o animal ~e

encontra, por um lado; totalmente adaptado, por ouero, total-mente preso (de tal modo que não' pode de modo algum ultra-passar o lim.ite - pois "unem sequer pela, procura", ainda que

2. !bic!., p. 76.3.10., Strdftügedurr:hàie Umwelten von 7i~ undMf:1Ischen, Berlin, 1934,~.. .

.26 I Que é f1lcso'far?

dotado de um órgão de busca equipado aparentemente paratal, pode encontrar um objeto que não corresponda ao prind-pio de seleção desse mundo animal) -, essa realidade-restrita(Ausschnitt-WlTkkhkeit), determinada e limitada mediante a fi-nalidade biológica do individuo ou da espécie, é denominadaP0I" Ue.xkU1l meiu i:1.1ubiem;e (em oposição a "ao udor" [Umge-bung]; em oposição também a mundo IWeltJ). O campo de rela-ção do animal não é o seu ao redor, menos ainda o seu mundo,mas seu "meio ambiente" neste sentido determinado: um mun-do no qual algo é deixado de fora, um meio recortado, no qualseu possuidor ao mesmo tempo está adaptado e trancado.

Talvez alguém se pergunte agora o que rudo isso tem a vercom nosso tema "que é. ftlosofar?". A rc1ação, porém, não é cãodistante e indireta quanto parece. EstarDos perguntando sobre .o mundo do homem;e este é o aspecto sob o qual o conceito demeio ambiente de Uexk.üll se t,oma diretamente interessante,particularmente porque, seguodo a opinião de Uexküll, nossomundo humano "de maneira alguma pode pretender ser maisreal que o mundo da percepção dos animaiS"4. Portanto, o ho-mem a principio es~ limitado, do mesmo modo que o animal,a seu meio ambiente; ou seja, ao meio restrito que foi seleciona-do do ponto de vista da adequação a fins biológicos. Tambémo homem não poderia perceber algo colocado fora desse meioambiente e "nem mesmo encontrar pela busca" (como umagralha não pode encontrar um gafanhoto em repouso). Poder-se-ia, certamente, indagar: como é possível que tã! ser, limitadoa seu meio ambiente, preso a ele, poderia empreender pesquisasobre o meio ambiente?

No entanto, não. pretendemos provo~ polêmicas. Vamosdeixar eSse ponto num primeiro momento e indagar, voltandonosso olhar para o homem e pa.x:ao mundo que lhe é ordenado,de que espécie e de que força é a capacidade 'de relação do ser

4. lo., Diel<b~, Potsdam/Zürich,1930, p. 131. .

o obletlvo da filosofia I '2:7

I~ _,:-. ,~.-:,::""~,.::~~_:té, em contraposição ao mundo vegetal, uma força de rela-o , :~... lnova e mais ampla. Não se deve talvez agora reconhecer amjmeira própria do homem, há muito denominada capacidadeci~jconhecimento espiritual, como um m9do novo, não realizá. \.vej no campo da vida vegetal e animal, de se colocar em rela-, çK9? E a essa capacidade de relação, essencialmente diferente,',"nãb está associado também um campo de relação, isto é, um:mfrjJdo com dimensões essencialmente de outro tipo? Deve-sete. ponder a essa questão que, de fato, a r,.ldiçãO mosófica.do.o idente compreendeu a faculdade do conhecimento espiri'. ,~, e justamente a defltliu como faculdade de se colocar emr~1f.ção com a totalidade das coisas existentes. Como foi dito,

".i,i;~ não significa uma mera característica, mas uma determi-':":',p:c~. '.ã~essencial, uma defmição. O espírito, segundo sua essên-.ci, não é determinado tanto pela característica da nã<?-cor- ...Pc; eidade, mas primariamente pela capacidade de relação dire-..d nada à totalidade do ser. Espírito siguifica uma faculdaded.: relação com tal amplidão e tal abrangência de força, que o:c _, po de relação associado a ele a princípio ultrapassa as fron-rtã' ei as do meio ambiente. Pertence à natureza do espírito que; $e', campo de rel.ação seja o mundo. O espírito não possui meio

i; ': . '. ,': bien~e:,.possui m~ndo. R. elan~hlreza. do ser espiritual rOID-r ,l\e os limites do melO amblente e, portanto, superar ambas asrt?~as: a adaptação e a liruitação (aqui já aparece aquilo que é,,'!,;;t9-lmesmotempo, libertador e ameaçador, dado diretamentet~ a essência do espírito).

..No livro de Aristóteles Sobre a alrruf se lê: "Agora pretende-mos, resumindo o que,foi dito até agora sobre a alma, enunciar-mais uma vez: a alma é no fundo todo o ser" - um enunciadoque se tomou na antropologia da alra Idadé Média uma locuçãofrancamente estabelecida: anima est quodammodo omnia, a alma é

.s. m, 8.431 b 21.

28 I Que é filosofar?

em certo sentido tudo, o todo. "Em certo sentido"; nomeadamen-te a alma é de tal modo tudo na medida em que ê capaz de, conhe-

" cendo, se colocar em relação com a totalidade dos seres (e conheceralgo siguifica: tomar-se realmente idêntico ao que ê conhecido).A alma espiritual está, assim afIrma Tomás de Aquino em Sobrea verdade, essencialmente disposta a "convenire cum omni enW'6,convirá conformar-se com todo os seres, a enttar,em relação coma totalidade daquilo que possui ser. "Qualquer outro ser possuisomente""UII1aparticipação fragmentária no ser", enqué?Jlto o serdotado de espírito ~cécapaz de apreender o -Sertotal,,7..Na medidaem que há espírito, "é possível que em um único. ser a perfeiçãodo tod~ completo possua existência (Dasein)''''.

Eis pois a afIrmação da tradição ocidental: possuirespíri-to, ser espírito, ser espiritual, tudo isso significa: existir em meioà realidade total, voltado à da totalidade do ser, vis-à.vis del'univers. O e~pfrito não vive C~nummundo." ou em "seu" mun-'do, mas "no" mundo. Mundo no sentido de visibilia omnia etinvisibilia [totalidade do visível e do invisível].

Espírito e realidade total são conceitQs recíprocos, que res-pondem um ao ou;tro. Não se pode "possuir" um sem o outr~.A tentativa de atribuir ao homem superioridade sobre o melOambiente, de dizer que o homem possui um mundo (não ummeio ambiente), sem porém falar de .sua ~:spidtualidade; maisqu~ isso, a tentativa de afirmar que esse fato (de que o homempossÚi mundo e não um mero meio ambiente) não tem nada aver com o outro fato de que o homem é um ser dotado deespírito - essa tentativa é. empreendida no livro muito comen-tado e abrangente de Arnold Gehlen O homem. Sua natureza esuaposiçãono ~Undo9.Gehlen volta-se, com razão, contra Uexküll:

6. ToMÁS DB AQUINO, De Veritate 1,1.7. ID., Summa cotJt:m Gentiles 3, 112.8. ID., V. V'"""" 2,2.9. Der Memch. Seme Natur und seine Stellung',in der Welt, Berlin, 1940 .

o objetIvo da filosofia I 29

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! -~~m~ não ~~- como um-:::, pr~~=-:~:: ~_

Ji;re, o homem é livre do meio ambienre e aberto ao mundo,:~t?Fvia, continua Gehlen, essa diferenciação entre' o animal~.~uanto ser do meio ambiente e o ho~em enquanto ser aber--t~::i1Omundo não se baseia "na característica '[1"] do .espírito .,[ ,,]\'10 N '. ',".1 • o entanto, )l1.Stalllt:llte essa capadd'¥ie de possuir mUD-

dO)é o ~píritol Espírito segundo sua ~sência; faeti1dade de ''"",!,-preensão para o mundo I ' ,

',' ~ Para a ftlosofia mais antiga - para Platão Aristóteles Ago.:~:bJT?,rnás .....o. co.perten~~entd ~os co;ceitos "espírito" e~eJ do (no sentIdo de realidade roral) é tão ~treita e profun-..;' ente ancorado em ambos os membros que não s6 é v.erdaMdet,fa a frase "espírito é relâÇão para com a rotalidade dos se-!e~ t. como também a outra afirmação, de que todas as coisas.~tn~esest~ em relação com o espírito, e isso em wn senti.~o,ài wto preCISO que ~al ousamos, "num primeiro momento,.levJ,ao pé da letra. Nao só perteJnce à ~sência do ~pírito que(~_s ~ campo de relação é a totalidade das coisas existerites, masr~ém que pertence à e~sência das coisas existentes estarempo'!ampo de relação do ~pírito, Ainda mais: para a ftlosofia.Ft slgn~fic~ mcl~ive o mesmo se digo "as coisas possuems,e(lou se digo as COiSas~tão no campo de relação do ~plrito,~s~ refendas ao espírir.n" -. se bem que, obviamente, não se,.t~de uma espiritualidade "que paira livremente" como algo, ~.tf:aro,mas ttata-se de espírito 'pessoal, de capacidade de re-__~ fundada em si m~ma. E de modo algum se trata, no.' t.o, som~nte de D~us,mas também inteiramente do espI-to cn~o, nao ab~oluto, do espIrito humano I ,

, ~...,. ~.

10. IbicL,~. 24. Impr~sionado com a crftica aqUi aposta, Geh1enmo-eou sua pOSiçãonas edições posteriores. Agora estli dito q~ o conctito

ttu~ra1 do homem se bastia "ni/o somente na caracterfstica do entendi.~to <.GuammUlusgabe, ed. I<.-S. Rr:hberg, Frankfurt: am Main, 1993' itáli-

. o do editor). (Nota do editor alemão) , ,

o I Que é filosofar?

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Para a antiga ontologia, pertence à essência do ser estar aoalcance da alma espirituaL "Possuir ser" significa a m~ma coi-sa que "estar no campo de relação da alma espiritual". Ambosos enunciados querem dizer o mesmo estado das coisas. Este enão outro é, de fato, o sentido da antiga frase, cujo entendi-mento perde~.se de nçs totalmente: todo ente é verdadeiro(omne em est verum), bem como da outra frase de mesmo signi~ficado: ttente" e {verdadeiro" são conceitos permutáveis. O quesignifica "verdadeiro" no sentiCio da verdade-coisa, da verdadeda coisa? "Uma coisa é verdadeira" significa: é conhecida ecognosável, conhecida medianre o ~pírito absoluto, cognosávelpara b ~píriro não-absoluto, (Infelizmente não é possível aquifundamentar ~sa interpreração de modo mais detalhado".)Qualidade de ser conhecido e cognosável - o que é isso seJnãoreferência ao espírito cognoscen~el E qU3:l1do,portanto, a filo~sofia antiga. diz que pertence à essência das coisas existentesserem conhecidas e cognos~veis, que não há de modo algumeJnr~ que não sejam conhecidos ou cognosáveis (todo enre éveJtdadeirol); quando'ainda a filosofia antiga diz mesmo que osconceitos "ente", por u~ lado, e t'co'nhecido, cognosdvel", poroutro, são permutáveis, que um pode tomar o lugar do outrode tal modo que é o mesmo se digo "as coisas possuem ser' ouse digo "as coisaS são conhecidas ou cognosáveis" - então, afilosofia antiga enunciou com isso justamente que está na es~sência da coisa mesma' ser referida ao espírito. (Esse é o pontoimportante para nós no contexto de nossa q':lestão.) .. Reswnamos, portanto: o mundo associado ao ser espiritualé a totalidade das coisas existentes. Isso equivale a.dizer que essaassociação perteJnce tanto à ~sência do ~p{rito - ~plrito é afaculdade de compreensão da totalidade do ser - como à ~sên-cia das coisas existentes - ser significa estar"remetido ao espírito.

11. Cf jasef PIBPBR., Wbarbeit, der Dinge. Bine Untersuchung zurAnthropalogie des HochmirceWrers, MOnchen, 194~ (Werke 5).

o obletlvo da filosofia I 31

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12. Suma teo16gica l, 76, 5 ad 4•

o objetivo da fllcscfla I 33

Isas existentes s6 pode ser atributo de um ser fundado em sim~mo, não um quê, mas um quem, um eu.-mesmo, uma pessoa.

Agora chegou o momento de lançar um olhar retrospecti-vo à questão da qual partimos. Eram duas, uma: mais pr6xima,outra mais distante. A mais pr61tima.: de que espécie é o mundodo homem? A mais distante: que é fuusofar?

Antes, porém, de retomá-lasJ mais uma nota sobre a estru-tura do mundo associado ao espírito. Não é somente por meioda ampla distensão espacial que o mundo do ser espiritual sediferencia do meio ambiente do ser não-espiritual (em getalnão se presta atenção a isso no debate sobre mundo e meioambiente). Não é somente por meio da "totalidade das coisas")mas simultaneamente por nleio da "essência das coisas" que omundo associado ao espírito se constitui. Por isso é que o ani-mal está limitado em um meio reéortado, pois a essência dascoisas se mantém oculta para eles. E somente porque o espíritoé capaz de alcançat a essência das coisas é-lhe dado apteender asua totalidade - cujo contexto a antiga ontologia compreende~assim como o universo, t~bém a essência das coisas é "univer-sal", Tomás de Aquino ~rma: "porque é capaz de a.preender ouniversal, a alma espiritual possui a capacidade do infinito"12.Quem, ao conhecer, alcança a essência universal, a essência to-tal das coisas, adquire justamente a partir disso um ponto devista de onde a totalidade e o todo do ser, de todas as coisasexistentes tornam-se acessíveis, e visíveis. No conhecimento es-piritual atinge-se a posição de um posto avançado ou aindaalcançável, a partir do qual o campo do universo pode ser visto. ,Aqui se abte um campo pata o qual s6 podemos lançat umolhar de passagem, mas que conduz ao centro de uma doutrina .tfilosófica do ser, do conhecer, do espírito.

Agora, no entanto, voltemos às questões que nos propuse-mos responder. Primeíro, a qúestão maís próxima.: de. que es-

. ~2 I Que é. filosofar?

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f < l~~o~~~:-~~~~ ::~:::~:o:~::e~~::=-:doj das plantas, é limitado já espacialmente à proximidade de'~co~tato;sobre este sobrepõe-se o meio ambiente. dos animais;:PP'~fim, abrangendo por sobre todos esses mundos. pequenos

':'.e" ~arciais. o mundo associado ao esp&-ito, o ronndo autêntico;~enguanto totalidade do ser. A essa hierarquia dos mundos CO[-

\)'es~ondem os campos de re1aç,ão, portanto, vimos que há uma.'hi~ratquia das capacidades de relação: quanro mais abtangente'a ,~dade de relação, tanto mais extensamente wmensio-nâ:~o é ,o.campo. de relação, o. ({mundo." subordinado. A essa

. sê::' 'Üência gradual dupla deve-se acrescentar agora um terceiro \

. er- ento constitutivo: o fato de que à capacidade de relação.". 's forte corresponde um graú mais elevado de interioridade;

'.:-q , portanto, a faculdade de relação é mais abrangente e mais-, pia na mesma medida em que o pottador da relação é "mais

:i1C; ado de interioridade"; que à faculdade de relação mais bai-~JàL;corresponde não s6 a forma mais baixa de mundo, mas

;1 L,. bém o.menor grau do ser~em.si~enquanto ao espírito como'fa¥.., dade de telação dirigida para a totalidade do ser deve1 ~aiPbém corresponder o modo mais supremo do ser-em-si.::',Qtlanto mais abrangente a capacidade de se remeter ao mun-:duJdo ser objetivo; tanto mais profundamente a capacidade de':t~ abrangência está ancorada no interior do sujeito. Onde,,~t~ um grau mais elevado de "amplidão de mundo", especial-qnente de orientação pata a totalidade, ai também é alcançado, .: I au máximo de fundação-em-si-mesmo, que é o pr6ptio doespírito. Assim, ámbas as coisas'juntas perfazem a essência doespirito: não somente ,!,faculdade de telação ditigida ao totumdo mundo e da realidade, mas também a capacidade exterior

.do estar em si mesmo, do em-si-mesmo, da independênqa, daautonomia - precisamente aquilo que na tradição ocidental~esde sempre é caracterizado como ser pessoa, como persona-

. lidade. Possuit um mundo, ser remetido à totalidade das coi-

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."::'1~;. _ '__ .,',: = __ •• ,~"::":.:'_ _ _ .. _ .. _ ..... .:....-. __ .. -._.

t pJeé-~ m~~: :0 homem? É o mundo associado ao espíritoo ,~undo do homem? Deye-se responder: o mundo do homemé;aJealidade total, o homem vive em meio e em face da totali-aa~edas coisas existentes, visaà~visde l'univen - enquanto e nfSÇfljàa em que o homem é espírito I No entanto, ele não s6 não

é, P¥:lm.cncc espírito, m:lS 6 espírito finito. Assim, 3. essência

daS~coisas e a totalidade destas não lhe são dadas de maneira~êf.fítiva e perfeita, mas trem esperança ": Voltaremos a issoadiànte. . .. :tAntes de mais nada, o homem não é.espírito putO. Pode-se~!i~cia< essa frase com diversos ac~tos. É usual enunciá-la nomo' o de lamento - uma acentuaçao que costuma ser tornada;

~~:.Cristãose não-cris~sJ como espedficamen.te qistã. A frasepo também ser enunCIada de tal modo que diga.: com certeza0'"11'mem não é espírito puro, mas o t'homem autêntico" é aaJrill~espiritual Ess~ opiniões, todavia, não têm apoio nenh1J!Il~a:. adição doutrinal-clássica no Ocidente cristão. Em TOIIl:ás(Je-.. quino há, a ess.-respeito, uma formul~ muito aguda ep()". o conhecida. Ele faz a si mesmo a seguinte objeção: "Afm .dade do homem é o assemelhar-se perfeitamente a Deus.Maij; do que a alma unida ao corpo, será porém a alma separa-na:,4o corpo a mais semelhante a Deus) que é incorpóreo. E, porissc4 as almas no estado de beatitude última serão separadas do,:CuxPu".&~a objeção revda a tese d~que o homem auténticqsefi~a alma espiritual, tese que, por assim dizer, é coroada com'.o.j,tillio tentador de um argumento teológico. A essa objeção,

,~~nde Tomás ,de.AquiI1o ~ se~te maneira: erA alma uni.corpo. é mais semelhante a Deus do que a alma s~parada,

porque possui de modo mais'perfeito á sua natureza própria"13.. - uma frase não tão sird'ples de ser compreendida,. na qual está

afirmado não s6 que ~.h~me~é corpóreo, mas até mesmo, emcerto sentido, que a própriâ altna é corpórea. .

.. '" ~3. ToMÁS on AQ.UlNO. Dt potcntia ~l 10, ad ~..

34 I Que é filosofar?. . .

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Se, no entanto, é assim, se o homem essencialmente I'não é s6espírito", se o homem é, não por causa de um fracasso, nem deum retrocesso de seu ser autêntico, mas positivamente e do modomais gen\Úno, um ser no qual o campo da vida vegetal, animale espiritual se ligam em uma unidade, então o homem tambémvive essencitdmmlt: nãu só em face da realidade total, do mundototal das essências, mas seu campo de rel~ é um entre1al;a-menta entre "mundo" e "meio ambiente", entrelaçamento ne-cessário de acordo com a natureza do homem. Porque o ho-,mem não é espírito puro, não pode viver unicamente "nas estre-las", vis~ de['universoPelo contrário, ele necessita. do teto so~bte a cabeça, precisa do meio ambiente próximo e familiar docotidiano, carece da proximidade sensível do concreto, da ade-quação na forma justa das relações costumeiras - em uma pa-lavra: pertence a uma vida realmente humana também o meIOambiente "(no sentido em que este se diferencia de mundo).

Todavia, pertence ao mesmo tempo à essência do home~corpóreo-espiritual o .fato de que a alma espiritual informa osâmbitos do vegetativo. e do sensitivo, de tal modo que até aalimentação do homem é algo muito diferente da dos animais(sem contar que no 'âmbito humano existe o <'banquete", que éalgo inteiramente espiritual). A alma espiritual informa de talmaneira todos os demais âmbitos que mesmo quando o ho-mem "vegeta" isso só é possível em função do espírito (a planta.não Uvegeta", assim como o aniniall). E mesmo esse não-huma-no a auto-inclusão do homem no meio ambiente (quer dizer,,no mundo restrito 'determinado pelos frns vitais imediatos),mesmo essa degeneração só é possível" por força de. uma dege-neração espiritual. Humano, ao contrário, significa conhecer alémdas estrelas, perceber além do invólucro da adequação costu-meira ao cotidiano -a totalidade das coisas existentes, ,além domeio ambiente o mundo que o abrange.

Com isso, porém, demos de modo inteiramente inespera-do o passo p~ a primeira questão, para no~sa questão propria-

o objetivo da filosofia I 35_

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poder ser formulada, refletida e responmda (na memda em queuma resposta é possível) sem que simultaneamente "Deus e omundo" entrem no jogo, ou seja, a totalidade daquilo que é.

Tentemos uma resposta de modo ainda mais concreto. Aquestão "o que fazemos aqui e 'agora?" pode, evidentemente,ser entenmda de modos diferentes. Ela pode também ser enten-mda fUosoficamente. Vejamosl A questão pode ser formuladade tal modo que se espere uma resposta de tipo eminentementetécnico-organizatório. "O que está acontecendo aqui?", "Aquiestá oli:Orrendo uma conferência, no âmbito da Semana Univer-sitária de BonnJJ. Trata-se de um enunciado distinto e orienta-dor, inserido em um mundo (ou antes: meio ambiente) clara-mente limitado e completamente claro. Essa resposta é enuncia-da com um olhar voltado para o que está mais próximo. Mas aquestão pode também ser entendida de outro modo. Poderiaacontecer que o .indagador não se satisfiZesse com tal resposta.({O que fazemos aqui e agora?JJ: alguém fala., outros ouvem apalavra falada e os ouvintes {{entendem" o que se diz. Desenro-la-se em muitos mais' ou menos o mesmo processo mental. Oque se diz é apreendido, pensado, refletido, aceito, rejeitado,admitido com restrições, i1ltroduzido no próprio tecido de pen-samentos. Essa questão visa a uma resposta das ciências parti-culares. Pode ser entendida de tal muuu li ue a fisiologia do:ssentidos e a psicologia (da percepção, da apreensão, do apren-dizado. da contenção na memória etc.), as ciências particulares 1

sejam chamadas e sejam suficientes para a resposta. Tal respos-ta estaria num mundo mais amplo e superior ao da respostapuramente técnico-organizat6ria anterior. Mas a resposta dasciências particulares não estaria ainda no horizonte da realida-de total. poderia ser dada sem que simultaneamente se precisas-se falar {{de Deus e do mundo", Se, no entanto, a questão {{oque fazemos aqui e agora?" for entendida filosoficamente, entãonão será possível não falar '{de Deus e do mundo". Não serápossível se a questão for entenmda de tal modo que ao mesmo

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f,. ~~~e-mta: que é fUO:~f~~~:~:Sl~fiC~ ~t~ent~,st~~:terimcntat que o meio ambiente próximo, determinado pc-)o~ fms vitais imediatos, pode ser abalado, mais, deve ser aba1a~do!reiteradamente por meio do chamado inquietante do umun-, dói" da realidade total que espclha as eternas essênci~ das coi-:.;;;l. Filosofar significa (havíamos indagado: para onde vai o ato':fil0sófico ao ultrapassar o mundo do trabalho?): ultrapassar o:m~io restrito do mundo do trabalho na ilireção do vis-à-1lis de.fu:' ivers. Trata-se de um passo que conduz à amplidão das es-

:"0-"' , que não são um teto sobre a nossa cabeça. Um passo que.s~. antém constantemente aberto para o retomo, pois o ho-. m' in não pode viver assim por muito tempo. Quem pretende-r' levar a sério a possibilidade de abandonar completa e defi-

'.,fi 'vamente o mundo do trabalho da criada trácia, sem aban-a própria realidade humanal Aqui vale exatamente o

'"tri' mo que Tomás de Aquino afirmou a respeito da vita con-)e,,' 'Plat:iva:esta é genuinamente algo sobre-humano: "nan proprie'ku ana, sed superhumana" [não propriamente humana, mas so-

:~,~-',b,-,11,'" -r.humanaY4. Com certeza, o homem mesmo é algo sobre-,i /hT"ano. O homem supera infinitamente o homem, diz Pascal. .'i A'~entativa de uma definição completa passa longe do homem.': '<, ',:'~ Não pretendemos aqui continuar desenvolvendo ess.as.'-'id.~'as, que aparentemente cheg~ próximo do devaneio, mas.r~'-rmular de modo inteiramente concreto e, por assim dizer,

.. P. p~vel a questão "que é mosofar?", a partir do que até agora '\';'di 'semos, e tentar responder em uma nova aproximação.~" ~:'_Como se diferencia uma questão filosófica de uma não-fUosófica? Filosofar significa, tal como mssemos, voltat o olharpara a totalidade do mlltldo. É, portanto, a questão fUosófica (esomente ela) que tem ~ressa e formahnente por tema a totali-dade do ser, o todo das coisas existentes? Não! Mas, o próprio. eO diferenciador de uma questão fUosófica é o fato de ela não

14. Iv .• De virtutibus. cardirialibus 1.

~6 I oue • filosofar? o objetivo da filosofia I 37

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I, J po se inda~e a resPci-to ~ ~::::d~-co~:~er~: ~~da-detu mesmo -apenas da essência do ensinar. O que significa,:e~ absoluto e em seu fundamento último, ensinar? AlguémpbHe dizer: um homem não pode em absoluto realmente ensi-nBJr; assim como quando um doente se recupera, não foi o'tn~l:f.icoque o curou, mas a natureza cuja força curativa (talvez),0 'médico apenas libertou. Outro pode dizer: É Deus quem en-sin~ interiormente - por ocasião do aprendizado .humano.S6qrates poderia dizer: o mestre s6 faz com que o aprendiz,re~?rdando-se, "adquira o saber a partir de si mes"mo", "não háap.rendizado) somente reminiscência"15. Finalmente, outro po-'de. a afJImar: nós, humanos, estamos todos diante da mesma.r . .dade; o mestre aportta para ela, o aprendiz, o ouvinte entãoa '!' por si mesmo.,',~:' O que fazemos aqui, o que está em jogo? Algo o~tório.no:' quadro de uma série de conferências. Algo apreensível e.imt stigável por meio da fisiologia e da psicologia. Algo entre.De e o mundo.,~,:';---,Eis, portanto, o que é pr6prio e diferenciador de uma ques-:'irão" fJ.1os6fica:que nesta vem à tona aquilo que perfaz a "essên-:i:..ci.a.~'.do espírito, o convenire cum omni ente, a conveniência com; tu o o que existe. Não se pode questionar e pensar ftlosofica-':m;~te sem que entrp. p.m jngo .~tot~lida.dedo ser,o todo d~(~()~"'as.existentes, "Deus e o mundo". .

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.15. PLATÃO,'Mêno", 85 d 4; 82 aIs.

38 I Que é .fllosofar?