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Reportagem sobre o fortalecimento do carnaval sem cordas em Salvador
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36 SALVADOR DOMINGO 12/2/2012 37SALVADOR DOMINGO 12/2/2012
#202 / DOMINGO, 12 DE FEVEREIRO DE 2012REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
MILTON MOURA COMIDA ENERGÉTICA MÁSCARAS KEKA ALMEIDA MEXICANO «
Pipoca
MODERNA
Grandes estrelas baixamas cordas e tocam para ofolião com o apoio depoderosos patrocínios
IBBI
18 SALVADOR DOMINGO 12/2/2012 19SALVADOR DOMINGO 12/2/2012
QUE BLOCOÉ ESTE?
Texto TATIANA MENDONÇA [email protected]ções BRUNO AZIZ [email protected]
Chiclete e Timbalada resolverambaixar as cordas, graças apoderosos patrocínios. Danielafoi a pioneira, seguida porBrown e Saulo. A iniciativasinaliza um novo modeloempresarial no Carnaval
Quem vem de longe com
olhos estrangeiros há de
seespantarcomasfaixas
azuis que se estendem
por certas ruas de Salva-
dor, solenemente igno-
radas por motoristas e pedestres. Só no
Carnaval ganham sentido, mostrando co-
mo a lógica da segregação increveu-se na
cidade. Por ali devem passar os cordeiros
que separam os pagantes da pipoca, mas
há esperanças de que não seja para sem-
pre (só) assim.
Este ano, por variadas razões, artistas
famosos e endinheirados resolveram bai-
xarascordasetocarindistintamenteparao
“povão”. Na quinta, 16, abrindo o Carna-
val,oChicletecomBananaapresenta-sede
graça. No domingo, é a vez da Timbalada e
de Carlinhos Brown, seguidos por Tuca Fer-
nandes, na segunda, e pela Banda Eva, na
terça.TodosvãodesfilarnoCircuitoOsmar,
no Campo Grande, com o discurso de re-
vitalizar o percurso tradicional da festa.
O movimento foi iniciado no ano passa-
do por Saulo Fernandes, vocalista da Ban-
da Eva, numa ação promocional em come-
moração aos 30 anos do bloco. A iniciativa
deu tão certo que este ano ele repete a do-
se,alémdeter inspiradooscolegaseaque-
les que comandam a festa. Os convites pa-
ra que Carlinhos Brown, Timbalada e Tuca
Fernandessaíssemsemcordaspartiramdi-
retamente da Saltur (Salvador Turismo),
presidida por Cláudio Tinoco.
Para dar uma visão “histórica” do pro-
cesso,Tinococontaquedepoisdeanosten-
tando fortalecer a Avenida com trios inde-
pendentes sem “atrativos suficientes para
trazer o folião de volta”, percebeu, com a
PipocadoEva,queoimportanteera“apos-
tar tudo” em grandes bandas. “Como esse
movimento foi bacana, ajudou muito num
fator que não depende da gente, que é a
disposição e a motivação dos artistas”.
Pelo acordo inicial, a prefeitura entra
com a reserva de um bom lugar na fila de
desfiles e cabe aos grupos buscar recursos
para botar os trios na rua. A princípio, só o
Chiclete com Banana tinha patrocínio ga-
rantido. A Skol armou uma pomposa cole-
tiva de imprensa para anunciar o feito. O
TrioSkolFolia foialardeadocomoum“pre-
sente sensacional” para a cidade.
Na praça Castro Alves, Bell Marques irá
encontrar a banda dos filhos, a Oito7No-
ve4, para “resgatar” os antigos encontros
18 SALVADOR DOMINGO 12/2/2012 19SALVADOR DOMINGO 12/2/2012
QUE BLOCOÉ ESTE?
Texto TATIANA MENDONÇA [email protected]ções BRUNO AZIZ [email protected]
Chiclete e Timbalada resolverambaixar as cordas, graças apoderosos patrocínios. Danielafoi a pioneira, seguida porBrown e Saulo. A iniciativasinaliza um novo modeloempresarial no Carnaval
Quem vem de longe com
olhos estrangeiros há de
seespantarcomasfaixas
azuis que se estendem
por certas ruas de Salva-
dor, solenemente igno-
radas por motoristas e pedestres. Só no
Carnaval ganham sentido, mostrando co-
mo a lógica da segregação increveu-se na
cidade. Por ali devem passar os cordeiros
que separam os pagantes da pipoca, mas
há esperanças de que não seja para sem-
pre (só) assim.
Este ano, por variadas razões, artistas
famosos e endinheirados resolveram bai-
xarascordasetocarindistintamenteparao
“povão”. Na quinta, 16, abrindo o Carna-
val,oChicletecomBananaapresenta-sede
graça. No domingo, é a vez da Timbalada e
de Carlinhos Brown, seguidos por Tuca Fer-
nandes, na segunda, e pela Banda Eva, na
terça.TodosvãodesfilarnoCircuitoOsmar,
no Campo Grande, com o discurso de re-
vitalizar o percurso tradicional da festa.
O movimento foi iniciado no ano passa-
do por Saulo Fernandes, vocalista da Ban-
da Eva, numa ação promocional em come-
moração aos 30 anos do bloco. A iniciativa
deu tão certo que este ano ele repete a do-
se,alémdeter inspiradooscolegaseaque-
les que comandam a festa. Os convites pa-
ra que Carlinhos Brown, Timbalada e Tuca
Fernandessaíssemsemcordaspartiramdi-
retamente da Saltur (Salvador Turismo),
presidida por Cláudio Tinoco.
Para dar uma visão “histórica” do pro-
cesso,Tinococontaquedepoisdeanosten-
tando fortalecer a Avenida com trios inde-
pendentes sem “atrativos suficientes para
trazer o folião de volta”, percebeu, com a
PipocadoEva,queoimportanteera“apos-
tar tudo” em grandes bandas. “Como esse
movimento foi bacana, ajudou muito num
fator que não depende da gente, que é a
disposição e a motivação dos artistas”.
Pelo acordo inicial, a prefeitura entra
com a reserva de um bom lugar na fila de
desfiles e cabe aos grupos buscar recursos
para botar os trios na rua. A princípio, só o
Chiclete com Banana tinha patrocínio ga-
rantido. A Skol armou uma pomposa cole-
tiva de imprensa para anunciar o feito. O
TrioSkolFolia foialardeadocomoum“pre-
sente sensacional” para a cidade.
Na praça Castro Alves, Bell Marques irá
encontrar a banda dos filhos, a Oito7No-
ve4, para “resgatar” os antigos encontros
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de trio. No evento, Bell parecia mais emo-
cionado com a possibilidade de tocar com
os rebentos do que com o arriamento das
cordas. “Esse encontro vai ser um momen-
to único na história da música baiana”, dis-
se,emendandoqueporviadasdúvidasiria
levar um médico para a Avenida.
Desde 1991, o Chiclete com Banana es-
tá à frente do Bloco Camaleão, o mais caro
do Carnaval baiano – neste ano, o abadá
custaR$840porumúnicodia.Detodomo-
do, não será a primeira vez que o Chiclete
sairá sem cordas no Carnaval. Bell garante
que a história da banda é “baseada em to-
car para o povo”. “Quando a gente chega-
va na Casa de Itália, sempre baixava as cor-
das e ficava tocando para o povão. O que
acontece é que o Carnaval cresceu tanto
que se a gente fosse fazer isso hoje, só ia
acabar no outro dia de manhã”, ri. “Agora
vai ser um delírio total”.
Uma semana depois da coletiva, a Skol
anunciou, por e-mail, que o cantor Tuca
Fernandes, que pela primeira vez em sua
carreiradesfilarásemcordas, tambémserá
patrocinado pela marca de cerveja. O valor
pago para dar os tais presentes não foi re-
velado, apesar da nossa insistência, mas
pode fortalecer um incipiente modelo de
negócio carnavalesco – o dos trios inde-
pendentes, com artistas consagrados, que
saem bancados por grandes marcas.
Nesse sentido, o caso de Daniela Mer-
cury é emblemático. A artista sai pelo me-
nosumdiasemcordasdesdeoCarnavalde
1999. Este ano, prepara-se para seu 14º
desfile independente.EmentrevistaaMui-
to, contou que pagou caro pelo pioneiris-
mo. “Os departamentos de marketing das
empresas não estavam habituados a esse
tipodepatrocínio.Muitasvezes,saíapenas
pagando os custos, sem receber cachê.
Nunca desisti porque acho fundamental
dar essa opção para quem não pode ou
não quer sair em bloco”.
ÓPERA E PIANO NO TRIONos últimos anos, Daniela conseguiu
um patrocinador “fiel” para bancar o seu
trio sem cordas, mas ainda é difícil fechar
todas as contas, justamente porque “a
maioria das marcas prefere se associar às
classes médias dos blocos do que ao po-
vão”. Apesar dos percalços, ela segue ani-
mandosuapipocaeénotrioindependente
que mais ousa. Foi neste palco democrá-
tico que levou a música eletrônica e até um
piano de cauda para o Carnaval. Este ano,
ela promete encenar uma Ópera Popular
em cima do caminhão.
Acantoraestáanimadacomaiminência
demaisartistas juntando-seacausa.“Acho
maravilhoso, porque é uma forma de ofe-
recer às pessoas um espetáculo completa-
mente livre. Ouvi muito que os empresá-
rios tinham medo de sair sem cordas e com
isso reduzir a venda dos abadás. No meu
caso, o público do Crocodilo nunca aban-
donou o bloco. Acho que era mais um mito
do que um risco concreto. Talvez isso esteja
mais claro para o mercado agora”.
Outro artista que defende os trios inde-
pendentes com um discurso político con-
tundente é Carlinhos Brown. Em 2006, nu-
ma madrugada de Carnaval, ele passou
em frente ao camarote do então ministro
Gilberto Gil, e pediu providências para aca-
bar com o “apartheid escroto” da festa. No
ano seguinte, declarou à agência Reuters
que as cordas eram “desnecessárias” e tra-
ziam “resquícios de navio negreiro”.
Desde 1994, Brown sai sem cordas no
Arrastão da Quarta-feira de Cinzas e em
2003deuvidaaoCamaroteAndante,mas,
assim como Daniela, enfrenta percalços
para botar os trios na rua. “Existem patro-
cinadores e apoiadores que chegam no
Carnaval com a estratégia clara de associar
a marca com iniciativas independentes,
mais populares. Infelizmente, ainda são
poucos com esse pensamento”.
CORDAS, SÓ AS VOCAISApesar da declaração de que as cordas
eram “desnecessárias”, a Timbalada, cria-
da por Brown em 1992, continua a desfilar
como um bloco de trio, do mesmo modo
que Daniela Mercury persiste como atra-
ção do Bloco Crocodilo, apesar de já ter es-
palhado outdoors pela cidade exaltando
que “cordas, só as vocais”. O ‘radicalismo’
parece ser, nesse momento, uma opção
econômica ainda inexeqüível. “Se colocar-
mos no papel todo o custo de produção pa-
ra sair nas ruas, o projeto fica quase inviá-
vel. Tudo triplica no Carnaval: aluguel de
trio ou manutenção, cachês, engenharia
de som...”, explica Brown.
André Silveira, um dos sócios do bloco
Eva, junta-se ao coro. “Infelizmente, é im-
possível fazer todos os dias sem cordas”.
Ele admite que assim seria até menos tra-
balhosoemaisprazeroso,porqueo“maior
problema” é justamente coordenar a ope-
ração que envolve os cordeiros. “Eles não
são funcionários nossos, é um trabalho
muito difícil... Mas é o modelo que ainda
consegue viabilizar as atrações. Qual é a
outra opção? É patrocínio ou poder públi-
co. Não acho que dinheiro público deva ser
gasto dessa maneira, não tem sentido. Os
patrocínios cresceram com a maior visibi-
lidade do Carnaval, mas ainda não cobrem
todos os custos”.
No ano passado, a Pipoca do Eva des-
filou com os mesmos patrocinadores do
bloco, mas a renda gerada pela venda dos
abadás não foi coberto pelas empresas.
“Não conseguimos esse plus. Para este
ano, fizemos um projeto específico para a
terça-feira e acho que vamos conseguir
captar, porque a repercussão foi muito
boa”. Ele se apressa a dizer, no entanto,
que a ideia não é ganhar dinheiro. “Se fos-
se para pensar na parte financeira, o mais
fácil seria manter o bloco. A grande cam-
panha do Eva é o fortalecimento da Ave-
nida, que é o coração do Carnaval. Toma-
mos a decisão de diminuir uma pequena
parte da receita e graças a Deus estamos
sendo seguidos por outros grupos”.
O empresário Joaquim Nery, um dos só-
cios fundadores do Camaleão e diretor da
Central do Carnaval, que comercializa 26
blocos e 11 camarotes, estava presente na
coletiva da Skol que anunciou a saída do
Chiclete para o povão, mas tratou a inicia-
tiva como algo pontual. ”O Carnaval é plu-
ral. Essa possibilidade é um reforço que en-
20 SALVADOR DOMINGO 12/2/2012 21SALVADOR DOMINGO 12/2/2012
de trio. No evento, Bell parecia mais emo-
cionado com a possibilidade de tocar com
os rebentos do que com o arriamento das
cordas. “Esse encontro vai ser um momen-
to único na história da música baiana”, dis-
se,emendandoqueporviadasdúvidasiria
levar um médico para a Avenida.
Desde 1991, o Chiclete com Banana es-
tá à frente do Bloco Camaleão, o mais caro
do Carnaval baiano – neste ano, o abadá
custaR$840porumúnicodia.Detodomo-
do, não será a primeira vez que o Chiclete
sairá sem cordas no Carnaval. Bell garante
que a história da banda é “baseada em to-
car para o povo”. “Quando a gente chega-
va na Casa de Itália, sempre baixava as cor-
das e ficava tocando para o povão. O que
acontece é que o Carnaval cresceu tanto
que se a gente fosse fazer isso hoje, só ia
acabar no outro dia de manhã”, ri. “Agora
vai ser um delírio total”.
Uma semana depois da coletiva, a Skol
anunciou, por e-mail, que o cantor Tuca
Fernandes, que pela primeira vez em sua
carreiradesfilarásemcordas, tambémserá
patrocinado pela marca de cerveja. O valor
pago para dar os tais presentes não foi re-
velado, apesar da nossa insistência, mas
pode fortalecer um incipiente modelo de
negócio carnavalesco – o dos trios inde-
pendentes, com artistas consagrados, que
saem bancados por grandes marcas.
Nesse sentido, o caso de Daniela Mer-
cury é emblemático. A artista sai pelo me-
nosumdiasemcordasdesdeoCarnavalde
1999. Este ano, prepara-se para seu 14º
desfile independente.EmentrevistaaMui-
to, contou que pagou caro pelo pioneiris-
mo. “Os departamentos de marketing das
empresas não estavam habituados a esse
tipodepatrocínio.Muitasvezes,saíapenas
pagando os custos, sem receber cachê.
Nunca desisti porque acho fundamental
dar essa opção para quem não pode ou
não quer sair em bloco”.
ÓPERA E PIANO NO TRIONos últimos anos, Daniela conseguiu
um patrocinador “fiel” para bancar o seu
trio sem cordas, mas ainda é difícil fechar
todas as contas, justamente porque “a
maioria das marcas prefere se associar às
classes médias dos blocos do que ao po-
vão”. Apesar dos percalços, ela segue ani-
mandosuapipocaeénotrioindependente
que mais ousa. Foi neste palco democrá-
tico que levou a música eletrônica e até um
piano de cauda para o Carnaval. Este ano,
ela promete encenar uma Ópera Popular
em cima do caminhão.
Acantoraestáanimadacomaiminência
demaisartistas juntando-seacausa.“Acho
maravilhoso, porque é uma forma de ofe-
recer às pessoas um espetáculo completa-
mente livre. Ouvi muito que os empresá-
rios tinham medo de sair sem cordas e com
isso reduzir a venda dos abadás. No meu
caso, o público do Crocodilo nunca aban-
donou o bloco. Acho que era mais um mito
do que um risco concreto. Talvez isso esteja
mais claro para o mercado agora”.
Outro artista que defende os trios inde-
pendentes com um discurso político con-
tundente é Carlinhos Brown. Em 2006, nu-
ma madrugada de Carnaval, ele passou
em frente ao camarote do então ministro
Gilberto Gil, e pediu providências para aca-
bar com o “apartheid escroto” da festa. No
ano seguinte, declarou à agência Reuters
que as cordas eram “desnecessárias” e tra-
ziam “resquícios de navio negreiro”.
Desde 1994, Brown sai sem cordas no
Arrastão da Quarta-feira de Cinzas e em
2003deuvidaaoCamaroteAndante,mas,
assim como Daniela, enfrenta percalços
para botar os trios na rua. “Existem patro-
cinadores e apoiadores que chegam no
Carnaval com a estratégia clara de associar
a marca com iniciativas independentes,
mais populares. Infelizmente, ainda são
poucos com esse pensamento”.
CORDAS, SÓ AS VOCAISApesar da declaração de que as cordas
eram “desnecessárias”, a Timbalada, cria-
da por Brown em 1992, continua a desfilar
como um bloco de trio, do mesmo modo
que Daniela Mercury persiste como atra-
ção do Bloco Crocodilo, apesar de já ter es-
palhado outdoors pela cidade exaltando
que “cordas, só as vocais”. O ‘radicalismo’
parece ser, nesse momento, uma opção
econômica ainda inexeqüível. “Se colocar-
mos no papel todo o custo de produção pa-
ra sair nas ruas, o projeto fica quase inviá-
vel. Tudo triplica no Carnaval: aluguel de
trio ou manutenção, cachês, engenharia
de som...”, explica Brown.
André Silveira, um dos sócios do bloco
Eva, junta-se ao coro. “Infelizmente, é im-
possível fazer todos os dias sem cordas”.
Ele admite que assim seria até menos tra-
balhosoemaisprazeroso,porqueo“maior
problema” é justamente coordenar a ope-
ração que envolve os cordeiros. “Eles não
são funcionários nossos, é um trabalho
muito difícil... Mas é o modelo que ainda
consegue viabilizar as atrações. Qual é a
outra opção? É patrocínio ou poder públi-
co. Não acho que dinheiro público deva ser
gasto dessa maneira, não tem sentido. Os
patrocínios cresceram com a maior visibi-
lidade do Carnaval, mas ainda não cobrem
todos os custos”.
No ano passado, a Pipoca do Eva des-
filou com os mesmos patrocinadores do
bloco, mas a renda gerada pela venda dos
abadás não foi coberto pelas empresas.
“Não conseguimos esse plus. Para este
ano, fizemos um projeto específico para a
terça-feira e acho que vamos conseguir
captar, porque a repercussão foi muito
boa”. Ele se apressa a dizer, no entanto,
que a ideia não é ganhar dinheiro. “Se fos-
se para pensar na parte financeira, o mais
fácil seria manter o bloco. A grande cam-
panha do Eva é o fortalecimento da Ave-
nida, que é o coração do Carnaval. Toma-
mos a decisão de diminuir uma pequena
parte da receita e graças a Deus estamos
sendo seguidos por outros grupos”.
O empresário Joaquim Nery, um dos só-
cios fundadores do Camaleão e diretor da
Central do Carnaval, que comercializa 26
blocos e 11 camarotes, estava presente na
coletiva da Skol que anunciou a saída do
Chiclete para o povão, mas tratou a inicia-
tiva como algo pontual. ”O Carnaval é plu-
ral. Essa possibilidade é um reforço que en-
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grandece a festa, mas não significa que as
cordas vão acabar, porque para isso seria
preciso um investimento muito grande por
parte dos patrocinadores. Nos grandes
blocos, os abadás representam de 50 a
60% do faturamento”.
CORDÃO DE BATUCADAAos puristas e adjacentes, eis uma infor-
mação um tanto desalentadora. O Carna-
val da Bahia sempre teve cordas. Mas se
elas eram antes um elemento agregador,
transformaram-se, nas últimas décadas,
em símbolo da segregação. O professor
Paulo Miguez, que estuda a festa há quase
20 anos, atesta que as cordas não são uma
invenção do mercado. “O cordão era exa-
tamente um grande bloco, uma batucada
que cresceu muito, se organizou, e para o
desfile você punha a corda, justamente pa-
ra garantir alguma uniformidade”.
Até mesmo os blocos com espírito co-
munitário, que juntavam vizinhos de um
mesmo bairro, tinham corda. Com o sur-
gimento dos grandes blocos, como Os In-
ternacionais, de 1962, é que elas se trans-
formaram no esteio que separa pagantes
de não pagantes. “O problema não é exa-
tamenteacorda,masoqueelaproduzcom
o significado que tem hoje”.
A notícia de que grandes estrelas vão
desfilar sem cordas é bem recebida por Mi-
guez, mas com algumas importantes res-
salvas. Para ele, a questão central é reor-
ganizar a lógica dos desfiles. “O Carnaval é
a mais importante manifestação do patri-
mônio imaterial da cultura baiana e, des-
graçadamente, vem sendo cuidado como
se fora apenas um fato de mercado. A or-
dem da fila obedece exclusivamente a in-
teresses empresariais, que empurram pa-
ra determinados horários verdadeiros mo-
numentos, como os afoxés e o Trio Elétrico
de Armandinho, Dodô e Osmar”.
E não vá lhe falar dessa história de que
saem primeiro os blocos mais antigos,
mesmo porque alguém ainda acredita nis-
so? “É uma mentira, um desrespeito. Se
fosse assim, quem desfilaria primeiro seria
oMudançadoGarcia,queédosanos1930,
e, depois, o Filhos de Gandhy, que é de
1949”. Para o professor, bonito seria o dia
em que critérios culturais ditassem a or-
dem da fila, e aí poderíamos ver os blocos
de trio, os blocos afro, os afoxés, os trios
independentes e os blocos de travestidos
revezando-se na Avenida. “Uma das per-
versidades que esse mercado desregulado
provocou é o empobrecimento plástico da
festa”.
O que, em última instância, prejudica
atémesmoonegócio.“Nãosepodeterna-
da contra o Carnaval ter produzido um
grande mercado, mas o mercado tem que
estar subordinado ao Carnaval, e não o
contrário.Domesmomodo,asgrandeses-
trelasprecisamentenderquefoioCarnaval
que os fez grandes, não foram eles que fi-
zeramdoCarnavalumagrandefesta.Essas
inversões precisam ser enfrentadas com
governança democrática e transparente”.
Nessepontodaconversa,éinevitávelfa-
lar do Conselho Municipal do Carnaval,
que, na visão de Miguez, é “uma farsa”. “O
Conselho é formado por uma série de ins-
tituições que nem existem mais. Não tem
legitimidade para organizar a festa”.
Em outubro do ano passado, o Carnaval
de Salvador foi lançado em São Paulo (!)
para jornalistas e patrocinadores. Na oca-
sião, o prefeito João Henrique declarou
que seria “inimaginável” intervir no mode-
lo da festa por ela ser “espontânea”. “Ela
aconteceriasozinha,semopoderpúblico”,
disse ao Terra Magazine. Miguez rebate:
“Não há nada que tenha um grau de es-
pontaneidade que impeça a prefeitura de
disciplinar. O prefeito há alguns anos fez
um apelo aos artistas para que não aban-
donassem o circuito do Campo Grande.
Quem determina onde os blocos vão sair?
É o mercado ou ele, que tem mandato pú-
blico para tomar conta do espaço?”
Mas se estamos na mão do mercado,
pode-se pensar num modelo de negócio
mais democrático? “Tem uma coisa genial
nisso tudo, o Carnaval é uma festa com
uma capacidade de produzir soluções im-
pressionante. Tá na medida inversa da in-
competência dos gestores que cuidam de-
la. Sempre foi assim. O trio elétrico foi um
meio que o povo da Bahia encontrou para
produzir alegria. Esse projeto dos trios sem
corda é interessante, mas não sei como vai
experimentar desdobramentos. A lógica
dos blocos é muito forte”.
A pesquisa Carnaval 2010: Comporta-
mento dos Residentes de Salvador na Festa
e suas Práticas Culturais, divulgada no ano
passado pela Secretaria Estadual de Cultu-
ra, mostrou que a maioria dos soteropo-
litanos (77,9%) não tirou o pé de casa para
ir brincar Carnaval. O dado é próximo ao
registrado nas edições anteriores do estu-
do: 79,1% em 2008 e 77,0% em 2009. Dos
que vão até os circuitos, a maioria (58,9%)
é folião pipoca. Só 15,6% saem em blocos
de trio e 11% vão para camarotes.
O MANUAL DO JACUHaviaumblocoquenãotinhacordapor-
que tinha coração. Esse era o singelo slo-
gandoJacu,criadoem1964.Ocompositor
e poeta Walter Queiroz era um dos respon-
sáveis por dar-lhe alma. “Era uma equação
muito simples. Não tinha nada de melhor
nem pior, apenas não separava. O que a
gente prezava era justamente o pé no
chão. Todo mundo igual”.
OJacudesfiloupor impagáveis20anos.
Acabou porque os espaços diminuíram e o
barulho que vinha dos trios venceu os so-
pros da bandinha que animava os foliões.
Insistente, Walter ainda ajudou a criar o
Chegando Bonito – Associação Etílica, Sen-
timental e Carnavalesca, que sobreviveu
por 18 anos. Por ter memória e por ser um
apaixonado pelo Carnaval de Salvador, ele
reclama, e muito, do modelo que a festa
assumiu. Mas vê saída se três condições fo-
rem cumpridas. Abre aspas:
1. Que o povo de Salvador proteste
quantoàagressãoqueessemodelodeCar-
naval comete contra a cidade.
2. Que o Ministério Público do Trabalho
atueparaacabarcomabsurdoscomoains-
tituição dos cordeiros, que ferem o direito
administrativo quando são guindados à
condição de parapoliciais.
3.Queopoderpúblicotomeconsciência
de que não pode continuar concordando
com a usurpação do espaço público pelos
blocos de trio, que transformaram o Car-
naval de Salvador num balcão de negócios
para a auferição de lucros, com o lamen-
tável apoio de artistas outrora compromis-
sados com a causa popular.
“Vai ser caco para todo lado, mas essa é
minha obrigação moral”, diz, indo de um
lado a outro da sala do seu apartamento.
ParaWalter,omodeloatualdoCarnaval
fortalece o “rancor social” e “liquida os va-
lores eternos da folia”, como a música, a
cordialidade, a fantasia, a diversidade.
“Tudo isso fez do Carnaval de Salvador o
maior do mundo. Hoje está falido. É uma
festa feita para turistas entediados. Agora,
vejo quase como numa bola de cristal que
mais cedo ou mais tarde os blocos vão en-
contrar pra eles um lugar num sambódro-
mo, brincar com seus próprios umbigos e
deixar o Carnaval em paz”.
Para levar a frente seu intento, Walter
escreveu um “utópico e poético” manifes-
to: Carnaval sem corda, você concorda? /
Corda não é cordial / Acorda, acorda Bahia
/ A corda nos separa em pleno Carnaval «
«As grandes estrelas precisam entender que foio Carnaval que os fez grandes, não foram elesque fizeram do Carnaval uma grande festa»Paulo Miguez, historiador
22 SALVADOR DOMINGO 12/2/2012 23SALVADOR DOMINGO 12/2/2012
grandece a festa, mas não significa que as
cordas vão acabar, porque para isso seria
preciso um investimento muito grande por
parte dos patrocinadores. Nos grandes
blocos, os abadás representam de 50 a
60% do faturamento”.
CORDÃO DE BATUCADAAos puristas e adjacentes, eis uma infor-
mação um tanto desalentadora. O Carna-
val da Bahia sempre teve cordas. Mas se
elas eram antes um elemento agregador,
transformaram-se, nas últimas décadas,
em símbolo da segregação. O professor
Paulo Miguez, que estuda a festa há quase
20 anos, atesta que as cordas não são uma
invenção do mercado. “O cordão era exa-
tamente um grande bloco, uma batucada
que cresceu muito, se organizou, e para o
desfile você punha a corda, justamente pa-
ra garantir alguma uniformidade”.
Até mesmo os blocos com espírito co-
munitário, que juntavam vizinhos de um
mesmo bairro, tinham corda. Com o sur-
gimento dos grandes blocos, como Os In-
ternacionais, de 1962, é que elas se trans-
formaram no esteio que separa pagantes
de não pagantes. “O problema não é exa-
tamenteacorda,masoqueelaproduzcom
o significado que tem hoje”.
A notícia de que grandes estrelas vão
desfilar sem cordas é bem recebida por Mi-
guez, mas com algumas importantes res-
salvas. Para ele, a questão central é reor-
ganizar a lógica dos desfiles. “O Carnaval é
a mais importante manifestação do patri-
mônio imaterial da cultura baiana e, des-
graçadamente, vem sendo cuidado como
se fora apenas um fato de mercado. A or-
dem da fila obedece exclusivamente a in-
teresses empresariais, que empurram pa-
ra determinados horários verdadeiros mo-
numentos, como os afoxés e o Trio Elétrico
de Armandinho, Dodô e Osmar”.
E não vá lhe falar dessa história de que
saem primeiro os blocos mais antigos,
mesmo porque alguém ainda acredita nis-
so? “É uma mentira, um desrespeito. Se
fosse assim, quem desfilaria primeiro seria
oMudançadoGarcia,queédosanos1930,
e, depois, o Filhos de Gandhy, que é de
1949”. Para o professor, bonito seria o dia
em que critérios culturais ditassem a or-
dem da fila, e aí poderíamos ver os blocos
de trio, os blocos afro, os afoxés, os trios
independentes e os blocos de travestidos
revezando-se na Avenida. “Uma das per-
versidades que esse mercado desregulado
provocou é o empobrecimento plástico da
festa”.
O que, em última instância, prejudica
atémesmoonegócio.“Nãosepodeterna-
da contra o Carnaval ter produzido um
grande mercado, mas o mercado tem que
estar subordinado ao Carnaval, e não o
contrário.Domesmomodo,asgrandeses-
trelasprecisamentenderquefoioCarnaval
que os fez grandes, não foram eles que fi-
zeramdoCarnavalumagrandefesta.Essas
inversões precisam ser enfrentadas com
governança democrática e transparente”.
Nessepontodaconversa,éinevitávelfa-
lar do Conselho Municipal do Carnaval,
que, na visão de Miguez, é “uma farsa”. “O
Conselho é formado por uma série de ins-
tituições que nem existem mais. Não tem
legitimidade para organizar a festa”.
Em outubro do ano passado, o Carnaval
de Salvador foi lançado em São Paulo (!)
para jornalistas e patrocinadores. Na oca-
sião, o prefeito João Henrique declarou
que seria “inimaginável” intervir no mode-
lo da festa por ela ser “espontânea”. “Ela
aconteceriasozinha,semopoderpúblico”,
disse ao Terra Magazine. Miguez rebate:
“Não há nada que tenha um grau de es-
pontaneidade que impeça a prefeitura de
disciplinar. O prefeito há alguns anos fez
um apelo aos artistas para que não aban-
donassem o circuito do Campo Grande.
Quem determina onde os blocos vão sair?
É o mercado ou ele, que tem mandato pú-
blico para tomar conta do espaço?”
Mas se estamos na mão do mercado,
pode-se pensar num modelo de negócio
mais democrático? “Tem uma coisa genial
nisso tudo, o Carnaval é uma festa com
uma capacidade de produzir soluções im-
pressionante. Tá na medida inversa da in-
competência dos gestores que cuidam de-
la. Sempre foi assim. O trio elétrico foi um
meio que o povo da Bahia encontrou para
produzir alegria. Esse projeto dos trios sem
corda é interessante, mas não sei como vai
experimentar desdobramentos. A lógica
dos blocos é muito forte”.
A pesquisa Carnaval 2010: Comporta-
mento dos Residentes de Salvador na Festa
e suas Práticas Culturais, divulgada no ano
passado pela Secretaria Estadual de Cultu-
ra, mostrou que a maioria dos soteropo-
litanos (77,9%) não tirou o pé de casa para
ir brincar Carnaval. O dado é próximo ao
registrado nas edições anteriores do estu-
do: 79,1% em 2008 e 77,0% em 2009. Dos
que vão até os circuitos, a maioria (58,9%)
é folião pipoca. Só 15,6% saem em blocos
de trio e 11% vão para camarotes.
O MANUAL DO JACUHaviaumblocoquenãotinhacordapor-
que tinha coração. Esse era o singelo slo-
gandoJacu,criadoem1964.Ocompositor
e poeta Walter Queiroz era um dos respon-
sáveis por dar-lhe alma. “Era uma equação
muito simples. Não tinha nada de melhor
nem pior, apenas não separava. O que a
gente prezava era justamente o pé no
chão. Todo mundo igual”.
OJacudesfiloupor impagáveis20anos.
Acabou porque os espaços diminuíram e o
barulho que vinha dos trios venceu os so-
pros da bandinha que animava os foliões.
Insistente, Walter ainda ajudou a criar o
Chegando Bonito – Associação Etílica, Sen-
timental e Carnavalesca, que sobreviveu
por 18 anos. Por ter memória e por ser um
apaixonado pelo Carnaval de Salvador, ele
reclama, e muito, do modelo que a festa
assumiu. Mas vê saída se três condições fo-
rem cumpridas. Abre aspas:
1. Que o povo de Salvador proteste
quantoàagressãoqueessemodelodeCar-
naval comete contra a cidade.
2. Que o Ministério Público do Trabalho
atueparaacabarcomabsurdoscomoains-
tituição dos cordeiros, que ferem o direito
administrativo quando são guindados à
condição de parapoliciais.
3.Queopoderpúblicotomeconsciência
de que não pode continuar concordando
com a usurpação do espaço público pelos
blocos de trio, que transformaram o Car-
naval de Salvador num balcão de negócios
para a auferição de lucros, com o lamen-
tável apoio de artistas outrora compromis-
sados com a causa popular.
“Vai ser caco para todo lado, mas essa é
minha obrigação moral”, diz, indo de um
lado a outro da sala do seu apartamento.
ParaWalter,omodeloatualdoCarnaval
fortalece o “rancor social” e “liquida os va-
lores eternos da folia”, como a música, a
cordialidade, a fantasia, a diversidade.
“Tudo isso fez do Carnaval de Salvador o
maior do mundo. Hoje está falido. É uma
festa feita para turistas entediados. Agora,
vejo quase como numa bola de cristal que
mais cedo ou mais tarde os blocos vão en-
contrar pra eles um lugar num sambódro-
mo, brincar com seus próprios umbigos e
deixar o Carnaval em paz”.
Para levar a frente seu intento, Walter
escreveu um “utópico e poético” manifes-
to: Carnaval sem corda, você concorda? /
Corda não é cordial / Acorda, acorda Bahia
/ A corda nos separa em pleno Carnaval «
«As grandes estrelas precisam entender que foio Carnaval que os fez grandes, não foram elesque fizeram do Carnaval uma grande festa»Paulo Miguez, historiador