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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE BELAS ARTES
PROGRAMA PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
LUIZAN PINHEIRO DA COSTA
PIXAÇÃO: ARTE CONTEMPORÂNEA
Tese de Doutorado apresentada pelo aluno Luizan Pinheiro da Costa ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ) para obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte.
Orientadora:
Profª. Drª Angela Ancora da Luz
Rio de Janeiro 2008
LUIZAN PINHEIRO DA COSTA
PIXAÇÃO: ARTE CONTEMPORÂNEA Tese de Doutorado apresentada pelo aluno Luizan Pinheiro da Costa ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas -Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ) para obtenção do título de Doutor em História e Crítica de Arte.
Banca Examinadora:
________________________________________
Profª. Drª. Angela Ancora da Luz (Orientadora) Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
_________________________________________ Prof°. Dr. André Queiroz (Co-Orientador) Universidade Federal Fluminense - UFF
________________________________________ Profª. Maria Luiza Luz Távora
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
________________________________________ Prof°. Dr. Paulo Knauss
Universidade Federal Fluminense - UFF
________________________________________ Profº. Dr. Roaleno Ribeiro Amâncio Costa
Universidade Federal da Bahia - UFBA
DEDICATÓRIA
Para
Wenna, Yuri, Ítalo e Ian, minha família,
naquilo que compõem a dimensão de dureza, beleza e alegria deste
trabalho.
Odir e Darcy, meus pais. In memoriam.
E meus irmãos Lucélia, Lucival, Lucinéa, Lucilene e Lúcia.
AGRADECIMENTOS
A
André Queiroz, Angela Ancora da Luz, Afonso Medeiros, Edilson
Coelho, Felipe Scovino, Fernando de Pádua, Karlo Rômulo (Krom),
Isabela Lago, Adriano Castanho, ALMA: Antonio Luciano Mesquita de
Azevedo, COOL: Rodrigo Magalhães, NUP: Gabriel Magalhães e aos que
acreditam que é possível pensar um outro lugar.
EPÍGRAFES
De um exame de doutorado. – Qual é o objeto de toda instrução superior? – Converter o homem numa máquina. Que meios devem ser empregados para isso? Ensinar o homem a aborrecer-se. Como se consegue isso? Com a noção do dever. Que modelo se deve propor? O filólogo, que ensina a trabalhar sem descanso. Qual o homem perfeito? O funcionário de Estado. Qual é a filosofia que fornece a fórmula superior ao funcionário do Estado? A de Kant; o funcionário como coisa em si, colocado como o funcionário como aparência.
Nietzsche. In: Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo.
―Nossos corpos ganham vida a partir do nada. Existir onde o nada existe é o que significa a frase ‗a forma é o vazio‘. O fato de tudo existir a partir do nada é o que significa ‗vazio é a forma‘. Deve-se levar em conta que essas coisas são inseparáveis‖.
HAGAKURE: O Código do Samurai (1750)
In: Ghost Dog (1999) de Jim Jarmusch ―A arte só serve para alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos a nossa consciência‖
Pedro Juan Gutierrez. In: Trilogia Suja de Havana
(1998)
RESUMO
Este estudo é um olhar estético sobre o fenômeno da Pixação, tomado
aqui do lugar de uma experiência artística nas cidades. Fundado a partir
da relação com as idéias estéticas de Nietzsche, busca pensar o objeto
como um tipo de arte contemporânea, na medida em que dialoga com
diversas expressões artísticas, desde as experiências originárias de arte
parietal até o grafite e movimentos e tendências da arte moderna e
contemporânea. Veste-se neste estudo com a potência de diversos
elementos que dão à sua condição matérica e experimental uma
dimensão artística outra. Vale ressaltar que a forma deste estudo está
pautada na própria natureza de seu objeto: fragmentário, explosivo e
descontínuo como impunha seu acontecimento no real. Antes de tudo,
trata-se de uma experiência teórica no âmbito da estética, da história e
da teoria da arte.
Palavras-chave: Arte, Estética, História da Arte, Pixação
ABSTRACT
Thesis is an aesthetic approach on fenomenon of pixação, identified as
artistic experience in thecities. Founded from the relation with
Nietzche's aesthetics ideas, pixação relates the object as a pattern of
contemporary art, since it dialogues with several artistic expressions
from the first experiences of parietal art to graffiti and movements as
well as themes from contemporary and modern art. It uses in the study
with the potency of several elements that transmits to its material and
experimental conditions an another artistic dimension. We would like to
let you know that the form of this study is guided in the constitution of
the object: fragmentary explosive and discontinue as placed its
occurrence on the real. First of all, it's a theorical experience on the
scope of Aesthetics, History and Theory of Art.
Key-words: Art, Esthetic, History of Art, Pixação
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................. Erro! Indicador não definido.
1. O aforismo, o tag e o pixo .......................................................................... 10
2. O aforismo. ..................................................................................................... 11
3. O tag. ................................................................................................................. 16
4. O pixo. .............................................................................................................. 18
5. Outros traços da pesquisa. ....................................................................... 19
CAPÍTULO I: UMA HISTÓRIA DA PAREDE ................................... 21
1. Da analogia aos eixos de similaridade. ............................................... 21
2.Práxis. ................................................................................................................ 25
3.Atravessamento e migração. .................................................................... 28
4.Objetos-vivências. ......................................................................................... 30
5. Devires-formas: a herança atávica da pixação. ............................... 32
6. Anti-composição. ......................................................................................... 35
7. Grafism neolíticos. ...................................................................................... 39
8.Intervenção urbana neolítica: Çatal Hüyük. ..................................... 41
9. A parede egípcia. .......................................................................................... 42
10. A parede cretense. ..................................................................................... 44
11. Etruscos, gregos e romanos: mais paredes na cena histórica. 47
12. Os graffitis de Pompéia. .......................................................................... 52
13. A parede no Medievo. ............................................................................... 56
14. Giotto e a parede moderna. ................................................................... 62
15. Grandes paredes na Renascença. ........................................................ 66
16. Os tetos barrocos: o ocaso do afresco. .............................................. 72
17. O Século XX. Os muralistas mexicanos. A parede política I. ... 77
18. Portinari: a parede política II. ............................................................. 81
19. Maio de 68. O nascimento da pixação. .............................................. 84
20. Epílogo.I ....................................................................................................... 90
CAPÍTULO II: A PIXAÇÃO E SUA DIMENSÃO ESTÉTICA ........ 91
1. Dos sentidos da arte: Filosofia da Arte e Estética. .......................... 92
2. Nietzsche: uma máquina de guerra. .................................................... 94
3. Nietzsche: das trilhas. ................................................................................ 97
4. O barco de Apolo. ....................................................................................... 102
5. Do carro de Dionísio ................................................................................. 108
6.Dionísio pelas mãos dos pixadores. .................................................... 114
7.Da embriaguez. ............................................................................................ 116
8. Apolíneo e Dionisíaco: o retorno. ....................................................... 120
9. Epílogo II. ..................................................................................................... 123
CAPÍTULO III: PIXAÇÃO: MANIFESTAÇÃO DE UMA ARTE CONTEMPORÂNEA................................................................................. 125
1. Graffiti: dos guetos para o mundo. ..................................................... 125
2. Graffiti e Grafite: dos termos. .............................................................. 127
3.No Brasil: Grafite. ....................................................................................... 133
4. Grafite: do estatuto. .................................................................................. 136
5.Grafite: o controle. ..................................................................................... 139
6. Grafite e Pixação: con-fusões. .............................................................. 142
7. Pixação: do não-autorizado. .................................................................. 147
8. “Não há estatuto na zona!” .................................................................... 149
9. Pixação: do princípio de volatibilidade. ........................................... 151
10. Pixação: na vitrine-virtual. .................................................................. 156
11. Da cidade-obra e seus atravessamentos. ........................................ 157
12. Cidade-obra: instauração de um Corpo sem Órgãos. ............... 161
13. Pixo-ruído. .................................................................................................. 166
14. Ruído 1: Cézanne e o cubismo. ........................................................... 168
15. Ruído 2: Duchamp e a Fonte. .............................................................. 173
16. Ruído 3. Fluxos literários. .................................................................... 175
17. Ruído 4. Pixação: ruído no espaço urbano. ................................... 177
18. O som e a fúria. ......................................................................................... 179
19. Um si sem sim. .......................................................................................... 181
20. O outro lugar. ........................................................................................... 181
20.Epílogo III. .................................................................................................. 183
CAPÍTULO IV: DUAS CIDADES ........................................................ 185
1. Belém-Rio: um caso. ................................................................................. 185
2. Belém: pixos e riscos. ............................................................................... 187
3. Belém: Action Painting no corpo da cidade. ................................... 191
4.Rio de Janeiro. ............................................................................................. 198
5. Rio de pixos-tags. ....................................................................................... 200
6. De Nova York ao Méier: o trem da história. ................................... 202
7.Epílogo IV....................................................................................................... 205
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 206
1. Aspectos finais em torno da pesquisa................................................ 206
2. Fade out. ........................................................................................................ 208
GLOSSÁRIO................................................................................................ 209
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 213
10
INTRODUÇÃO
1. O aforismo, o tag e o pixo.
1. O aforismo, o tag e o pixo. – Pensar a pixação1 como um tipo de
arte contemporânea é o sentido último deste trabalho. Sua concepção se liga
às questões sugeridas pelos processos de intervenção na cidade: dos
originários tags novayorkinos, da força dos pixos espalhados pelo espaço
urbano de diversas cidades e da dimensão teórica e estrutural dos aforismos. A
pixação emerge em cada cidade e mantém conexão com outras formas de
expressão, como o grafite, com o qual mantém uma estreita relação desde o
nascedouro desta expressão. Este olhar sobre a pixação tomando-a do lugar
artístico e estético caracteriza-se fundamentalmente por ser uma
experimentação teórica, na medida em que a pixação não se inscreve na
história da arte como um tipo de arte em si, sustentada por uma teoria estética.
Daí a pesquisa se investe da teoria estética, que tem no filósofo alemão
Friedrich Nietzsche sua fonte principal e fundamental quanto à leitura do objeto
e sua manifestação contemporânea, elevando-o à condição de experiência
artística e estética. E em função deste trabalho caracterizar-se como um
imbricamento de estética, história e teoria da arte, instaura-se a condição da
1 A pichação é originária do piche de onde derivam os termos pichar (pixar) e pichação
(pixação). ―O piche é o resíduo da destilação de diversos alcatrões, especialmente da hulha. Quando obtido do petróleo é largamente usado na pavimentação de ruas e estradas‖. In: Dicionário Quimicamente Falando do Profº Rossetti http://www.rossetti.eti.br. Uma outra questão importante é quanto à grafia. Os pichadores costumam grafar o termo pichação com x (pixação) o que é mais usual na escrita dos grupos, gangs ou galeras. Assim como pixo para uma determinada pichação sobre qualquer superfície, o equivalente de uma pintura, desenho ou gravura, isto é, o objeto em si. Foi dessa forma que se grafou no título do livro Tsss: a grande arte da pixação em são paulo, brasil, BOLETA. (Org.). São Paulo: Editora do Bispo, 2005. E por coerência poético-política mantivemos tal grafia: pixação, pixador, pixar, pixo.
11
pixação como um fenômeno poético, sem que para isso se evidencie em dados
objetivos, passíveis de quantificação, implicando apenas o desvendamento de
sentidos que a nosso ver são disparados a partir das intervenções nas cidades,
ao mesmo tempo, marcados na história da arte pela tradição da arte parietal.
Neste caso, é preciso considerar algumas questões que definem o trabalho e
assinalam sua característica teórica, estética e estrutural. Aspectos que afastam-
no, num certo sentido, por ser da ordem de uma experimentação teórica, de
uma formatação de trabalhos mais tradicionais permitindo sua compreensão
mais específica. O aforismo, o tag e o pixo são os três termos que estão por trás
dos sentidos estéticos e da forma escritural e estrutural do trabalho.
2. O aforismo.
2.O aforismo. – O aforismo2 presentifica-se no trabalho em função
da relação filosófica e poética apropriada dos escritos de Nietzsche sobre arte. A
2 ―[Nietzsche] recorreu ao ensaio, aos aforismos, à dissertação, ao poema, ao drama etc. Essa
variedade estilística reflete a busca de uma linguagem singular que é indissociável de seu pensamento: ao recusar a verdade, a idéia de sistema e a própria possibilidade de fundamentação, seria incongruente que Nietzsche privilegiasse o discurso argumentativo. Além disso, sua obra é marcada por uma imprecisão e uma flutuação de vocabulário, o que faz com que um mesmo termo tenha sentidos diferentes e mesmo antagônicos, o que sem dúvida contribui para gerar interpretações bastante divergentes. Esse caráter ―assistemático‖ ou
12
razão deste vínculo incide no fato de dialogarmos com um filósofo que antes de
mais nada é um artista, um poeta, um músico. E seu modo de escrever em
aforismo permitiu que nos aliássemos a este modo de pensar e escrever, onde o
poético e o filosófico se fundem produzindo uma potência ampliada do
pensamento, e projetada sobre o objeto do estudo. E tal projeção não se investe
de uma espécie de automatismo teórico ou citacionismo gratuito, mas da
condição de imantar o objeto com força e potência estética e artística evocadas
nas reflexões do filósofo. Nietzsche retoma3 o aforismo e o intensifica com
outros matizes a ponto de constituírem verdadeiros ensaios, tão potentes
quanto as longas reflexões que marcam os sistemas filosóficos mais tradicionais.
O lugar da arte no pensamento de Nietzsche no século XIX tem uma
importância indiscutível e abriu inúmeras trilhas para o pensamento da arte
moderna e contemporânea. Desde o acento dado por Nietzsche em O
Nascimento da Tragédia, seu livro de estréia, até os escritos póstumos, as
reflexões em torno da arte tomaram um caminho completamente diferente
afastando-se sobremaneira do modo como a tradição a formulava: um tipo de
conhecimento que se integrava como espécie de acessório dos grandes sistemas
de pensamento desde Platão a Hegel. Em Nietzsche o modo como a arte
dissemina-se em suas obras ganha uma marca inconfundível, pois sente-se de
―fragmentário‖ de sua escritura provavelmente contribuiu para a imagem de um Nietzsche ―ensaísta‖, que reúne reflexões esparsas sem o rigor de um sistema; mas isso não impede que seu pensamento apresente uma rigorosa coerência e mesmo uma surpreendente constância.‖ ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. In: CULT Especial Biografias: Nietzsche. n. 2. Ano 1, 2004, p. 9.
3 Paulo César de Souza diz que Nietzsche fez da forma do aforismo ―uma utilização pessoal, pois tradicionalmente o aforismo era uma sentença breve e incisiva, sintetizando um conceito ou julgamento. Assim o encontramos nos moralistas franceses (...) e no alemão Gerog Christoph Lichtenberg (também nos românticos Schlegel e Novalis, mas com outro espírito). Os ‗aforismos‘ de Nietzsche cobrem de uma a duas linhas ou várias páginas. Nisso é clara a influência de Schoppenhauer de Parerga e paralipomena, que traz, segundo o próprio autor, ‗pensamentos ordenados sistematicamente, sobre temas diversos‘. Nietzsche reuniu as tradições francesa e alemã neste ponto.‖ In: NIETZSCHE, F. Humano Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 335.
13
um modo claro a mão do filósofo-poeta a pensar seu tempo, atravessando os
lugares conformados pela ciência e a filosofia sistemáticas, abrindo as entranhas
da realidade nas suas diversas manifestações. Eis porque Nietzsche afirma a
dimensão estética da existência. E de um modo muito particular de escrita nos
atira às estranhezas de seu modo de pensar. Não como um sistema de
pensamento fechado, mas no sentido em que, filosofia e poesia explodem
através dos estilhaços de imagens a nos inquirir, incomodar e pulsar em muitas
direções. É por meio dos aforismos, essas armadilhas da escrita, que o filósofo
destila a força de seu pensamento no mundo e nos oferta os instrumentos para
fazer pulsar o objeto de nossa investigação: ―Vocês imaginam lidar com uma
obra fragmentária porque ela lhes é apresentada (e só pode ser apresentada) em
fragmentos?‖4, diz o filósofo; e essa condição fragmentária do pensamento é o
que faz de Nietzsche nosso lugar de habitação. Lá onde nosso corpo e mente se
flagram a perscrutar, nesse abismo sem fim, a matéria para o pensar da pixação
em sua dinâmica explosiva. Diego Sánchez Meca diz que:
―Esse estilo fragmentário, próprio da maioria dos escritos de Nietzsche, é o estilo específico de um pensamento que se volta para uma coabitação do individual e do comum, do fragmentário e do sistemático, na qual cada fragmento é, tal como cada indivíduo, expressão de algo limitado, provisório, incompleto, mas ao mesmo tempo – e sob essa forma parcial – tradução igualmente de uma força criadora viva, múltipla em sua inabarcável riqueza e indefinida em seu inesgotável desenrolar‖.5
Essa percepção de Adolfo Sánchez Meca é uma das pistas na qual
recorremos: a força criadora por trás de cada fragmento, em que é necessário
uma contínua busca para encontrar os lugares que se abrem para cada reflexão
sobre o objeto em questão. Nada é tão claro em Nietzsche que não precise ser
revolvido, retomado, ruminado, para usar uma expressão do próprio filósofo. E
4 ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. In: CULT Especial Biografias: Nietzsche. n. 2. Ano 1, 2004, p.
9. 5 MECA, Diego Sánchez. Prefácio. In: Sabedoria Para Depois de Amanhã. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. VIII.
14
aqui reside um dos interesses de nossa investigação: dotar o objeto, a cada
trecho da viagem, com a potência dos fragmentos encontrados na imensidão do
deserto que se espraia a nossa frente. Deserto nietzscheano: perdendo-nos a
cada trajeto, adentrando-o sem medo, sabendo que ―não há superfícies bonitas
sem profundezas assombrosas‖6. Assim, optamos por dois trabalhos do filósofo
em que o pensar da arte é evidenciado de forma diferente mas interligados: O
Nascimento da Tragédia (1872) e o Crepúsculo dos Ídolos (1888).
Em o Nascimento da Tragédia e por meio da influência de
Schopenhauer e Wagner, o jovem Nietzsche busca nos gregos antigos as fontes
da arte de seu tempo. Partindo das imagens de Apolo e Dioniso, o filósofo
propõe nesse primeiro trabalho uma espécie de metafísica de artista tendo como
objetivo principal resgatar os valores antigos da arte através de análises da
tragédia grega.
―É claro que em O nascimento da tragédia o que está ainda em tela, sob esse ângulo, é a própria essência metafísica e schopenhaueriana da vontade. Mas, já aí, também, se tem em núcleo a des-agregação dessa essência, a sua re-humanização na dramaticidade trágica da existência‖.7
E é nessa esteira que nos situamos para enfrentar o desafio de pensar a pixação
intuindo-a em sua condição existencial, pois nela vislumbramos toda a potência
dionisíaca e trágica que faz com que ela se torne no contemporâneo uma das
mais impressionantes manifestações artísticas, deflagrando intervenções
urbanas que são da ordem da destruição e criação de um outro espaço. Não só o
espaço topológico, urbano, mas um espaço como trânsito de intervenção para
além de um locus específico. Uma espécie de espaço-ação que se agencia no
6 NIETZSCHE, F. Sabedoria Para Depois de Amanhã. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 10.
Af. 7 [91]. 7 GUINSBURG, J. Nietzsche e o Teatro. In: NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou
Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.156.
15
corpo próprio da cidade. Com isso a condição da arte a que nos filiamos tem em
Nietzsche uma potência inigualável em que o sentido dionisíaco é colocado num
plano afirmativo em que a arte se situa no contemporâneo: ―o artista trágico não
é um pessimista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, é
dionisíaco‖.8 Intuímos desde já tal tragicidade como um dos princípios que
movem a prática da pixação na sua forma mais torpe, destruidora e terrível, em
que o instintivo dispara sua densidade imagética.
Em Crepúsculo dos Ídolos o filósofo recoloca questões da arte com
uma força visceral, deslocando seu centro daquele teor metafísico da primeira
obra, e afirmando sua dimensão mundana e imanente. E tudo aumenta em força
e potência corroborando cada vez mais a opção por este autor. Os fragmentos
continuam em máximas, ensaios e aforismos. E Paulo César de Souza indica a
marca de Nietzsche no Crepúsculo: ―Já no prólogo a obra é caracterizada como
uma declaração de guerra, e é com ânimo guerreiro que ele se lança sobre os
‗ídolos‘‖.9 Essa investida guerreira ganha fôlego no modo como a pixação vai ser
visada em certos trechos do trabalho, ressoando o modo como pensamo-la nas
trilhas da pesquisa. Assim percorremos o pensamento nietzscheano num
diálogo com as noções acerca da arte e outras indicações necessárias que se
espraiam por outras obras também. E nossa formulação teórica não se pauta por
uma espécie de construção sistemática do discurso, o que a nosso ver seria
incoerente com o pensamento a que nos aliamos. E a pixação é pensada assim
com tal sustentação teórica, opção esta que repercute no fato de que
―escrever em fragmentos é então o estilo necessário de quem procura pensar a existência do múltiplo e a experiência do mutável no quadro de uma compreensão
8 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos ou A Filosofia a Golpes de Martelo. Edson Bini &
Márcio Pugliesi (Trad.) São Paulo: Hemus, 1976. p. 30. 9 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução,
posfácio e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 69.
16
básica da vida como vicissitude irrefreável de uma inesgotável riqueza de possibilidades e de uma energia criadora/ destruidora superabundante‖.10
E essa compreensão básica da vida tem nas manifestações
contemporâneas um papel fundamental, e a pixação é uma dessas
possibilidades, posto que um de seus aspectos reveladores é sua energia
criadora/ destruidora inquestionável, e na medida em que Nietzsche vai afirmar
a retomada do sentido dionisíaco da arte, o absurdo da arte se verifica e as
condições de possibilidades da pixação no contemporâneo, emergem carreando
para si tal sentido.
É necessário ainda deixar claro que não é objetivo deste estudo ater-se à
interpretação e discussão da obra geral de Nietzsche, visto que isto não é
possível aqui, mas permitirmo-nos lançar mão de definições e conceitos
relevantes para o estudo, abrindo trilhas por entre o emaranhado de achados
que asseguram a condição ontológica do objeto e sua dimensão estética.
Inesgotável em sua própria natureza, a obra de Nietzsche faz-se imprescindível
no estudo, sobretudo pelas sugestões poéticas que marcam seu pensamento.
Assim é possível falar, gritar, rugir com o filósofo. Partilhar de suas dores e
alegrias vivificantes na percepção do objeto a que submetemos à condição de
arte.
3. O tag.
3.
O tag. – O tag (assinatura) é a marca inalienável dos primeiros
grafites em Nova York no final dos anos 60 e início dos 70: um nome seguido de
um número. O tag TAKI 183, juntamente com outros, tornou-se um marco para
as gerações posteriores, constitui o fundo energético de toda intervenção
10 MECA, Diego Sánchez. Prefácio. In: Op. Cit. p. IX.
17
naqueles anos. Com o passar do tempo o grafite se desenvolveu, sendo acrescido
de outros elementos formais e estilísticos, afastando-se dos tags dos primeiros
anos. E a característica formal inicial passou a se verificar na pixação, com a
ausência do número. A força do tag está no fato de ser um fragmento. Com isso
sua dimensão matérica é evidenciada na direção da própria concepção do
trabalho: estilhaços que se movem em diversas direções, imprimindo na
constituição visual da pesquisa os ânimos de um objeto em estado de ser arte e
as estranhezas dos tags a compor os novos perfis da cidade. Uma materialidade
a fundar um outro campo de ressonância no estudo. Expostos como fragmentos
que se afirmam no espaço urbano, os tags realizam uma visualidade movente,
isto é, podem ser lidos autonomamente, tal como cada fragmento do trabalho
comporta uma leitura possível, individualizada, sem que seu sentido esteja de
todo acabado. E visto que cada corpo matérico na cidade funciona em
agenciamento com inúmeros outros, há uma conexão no modo como os
fragmentos textuais são dispostos: regidos por uma autonomia intrínseca.
Assim, a natureza do tag permite um ativar o modo próprio como o trabalho
funciona, pois aquele, imanta-se com a força de seu deslocamento no espaço. E
sua tomada, como um tipo de arte a compor o campo das intervenções, é um
fator de onde retira-se o sentido estético do objeto. A matéria do tag está plena
de sentidos que nos fragmentos textuais são marcados e, ao mesmo tempo,
perdidos, porque eles também se dão em apagamento e desaparecimento.
1. TAKI 183. O primeiro tag que ganhou a mídia no final dos anos 60 e início dos 70 em Nova York. Fonte: http://9cdr.blogia.com/
18
4. O pixo.
4.
O pixo. - Pela boca dos pixadores o pixo veio à luz. Numa
equivalência ao tag o pixo é o que remete a pixação ao seu mais potente estado
de arte. Um fragmento de natureza díspare, mutante: traço, risco, palavra,
imagem etc., ele revive em sua mutabilidade agressiva. As fusões e
metamorfoses marcam sua existência. Não temos como enumerar ou classificar
os pixos em razão de sua própria mutabilidade matérica que está
completamente implicada na própria materialidade da cidade. Assim, eles se
investem de deslocamento, apagamento e mutabilidade que só o trânsito pela
cidade é capaz de dar a perceber. E aqui é preciso dizer que do mesmo modo
como sua mutabilidade na cidade é um dado, no próprio trabalho ele se funde e
19
se perde. Ora tag, ora pixo, ora tag-pixo, ora pixo-tag. E são nessas
composições móveis que os pixos afirmam sua natureza esvaziada e mutante
registrada em um dado percurso da pesquisa. E uma vez mais dos pixos:
fragmentos explosivos, evidenciam, tal como no aforismo e no tag, a própria
forma do trabalho. A movença de sentido do estudo está completamente
acometida pelos sentidos expostos da natureza do pixo, assim como da sua
natureza exprime-se seus sentidos captados por nossa lente.
5. Outros traços da pesquisa.
5.
Outros traços da pesquisa. – Os aforismos compõem os capítulos
que os abrigam em seu corpo como a cidade abriga os tags e os pixos. E se
deslocam numericamente para, aquecidos de informações históricas, artísticas,
estéticas e temporais, dar a localização do objeto e sua pulsação no corpo da
pesquisa. Assim, denominamos o primeiro capítulo de Uma História da Parede,
que se constitui num trânsito pela história da arte, observando o modo como as
paredes foram usadas desde a pré-história. Não se caracteriza por análises de
obras e estilos, mas concentra-se nas possibilidades das paredes. Do Paleolítico
ao Maio de 68 as paredes são visitadas conectando-as ao objeto da pesquisa.
Não há uma cronologia rígida, apenas as fortes referências aos diversos períodos
com seus artistas em exposição. Um modo um tanto descontínuo, fazendo saltos
para pressentir o objeto em sua herança atávica inevitável.
20
O segundo capítulo intitula-se A Pixação e sua Dimensão Estética.
Um diálogo com o pensamento de Nietzsche que oferta as possibilidades de
ruminações do objeto, gerando sua densidade artística e estética. A idéia básica
é manter na escritura uma inflexão poética que faça, numa certa medida, jus ao
modo de escrever do filósofo-poeta. Foi assim que optamos, menos por uma
analítica do pensamento do filósofo, por uma conexão que nos permitisse
vislumbrar a potência de seu pensamento filosófico e poético para dentro do
objeto de estudo. Nas figuras de Dionísio e Apolo disparam-se inúmeras outras
imagens que emergem dotando o objeto de força, e com isso, sua manifestação
como experiência artística e estética.
O terceiro capítulo, Pixação: Manifestações de uma Arte
Contemporânea é onde situamos as manifestações concretas da pixação em
diálogo com o grafite e outras tantas expressões. Os vários episódios e percursos
reflexivos permitem um entrever a experiência artística da pixação nas cidades.
Assim como desvendamos sentidos que a nosso ver afirmam a força dessa
manifestação como um tipo de arte contemporânea. Por isso construímos um
capítulo específico sobre a pixação em Belém e no Rio de Janeiro. Esse capítulo
denominado Duas Cidades refere-se a Belém, cidade onde nasceu a pesquisa, e
ao Rio de Janeiro, cidade onde a pesquisa se concretizou. Elas aparecem como
exemplos de cidades em que a pixação se dá de um modo mais concreto,
revertem-se em espécie de campo de onde retiramos os dados mais concretos
para projetar os sentidos estéticos da pixação. Assim, entendemos que o trajeto
e a concepção da pesquisa por nós propostos, revela uma maneira bem pessoal
de investigar o modo como os acontecimentos urbanos se instauram. Eis o que
ofertamos neste tempo que nos atravessa.
21
CAPÍTULO I: UMA HISTÓRIA DA PAREDE
CAPÍTULO I
UMA HISTÓRIA DA PAREDE
―Não conseguimos evitar estetizar uma arte rupestre, cujo alcance, tudo leva a crer, era essencialmente tecnológico e cultural. Assim, toda leitura do passado é necessariamente sobrecodificada por nossas referências do presente. Tomar partido de tais referências não significa que tenhamos que unificar ângulos de visão basicamente heterogêneos‖. Felix Guattari. In: Caosmose: um novo paradigma estético.
1. Da analogia aos eixos de similaridade.
1.
Da analogia aos eixos de similaridade.11 - Não é de agora que o
homem grafita, risca, desenha, escreve, faz incisões e intervenções nas paredes
do mundo. A história da arte está repleta de exemplos provando que a
capacidade de se expressar vem acompanhada, desde os primórdios da história
do homem, pelo uso do espaço, do tempo e das matérias que o cercam. O
homem produziu um variado acervo de instrumentos e expressões que
passaram a ser denominados de arte no processo histórico; espalhados pelos
museus e sítios arqueológicos, intrigam pela beleza e capacidade criativa e
imaginativa de seus criadores. As experiências expressivas do homem tornaram-
11 Expressão usada por Gita K. Guinsburg para enfatizar a abordagem de Roland Azeredo
Campos quanto às relações entre a arte e a ciência na passagem do séc. XIX para o XX. In: CAMPOS, Roland Azeredo. Arteciência: afluência de signos co-moventes. São Paulo: Perspectiva, 2003.
22
se condição inalienável de sobrevivência, tanto no que se refere ao caráter das
crenças com sua dimensão mágico-religiosa quanto como forma de resistência
diante dos desafios da natureza; produziram instrumentos, no sentido mais
amplo do termo, pois os rituais de magia, as celebrações, estão inclusos no
instrumental das práticas de sobrevivência, resultando concomitante em
técnicas artísticas: desenho, pintura, escultura, arquitetura, gravura, objetos.
Não obstante a condição de sobrevivência guardada nestas práticas, o caráter
estético impregnado em cada expressão, revelou um homo aestheticus
emergindo em cada gesto. Mais vestígios aparecem: técnicas, formas, cores,
grafismos, incisões e intervenções de diversas naturezas. A ciência continua a
investigar as origens, hábitos, organização, através desses objetos, a fim de
desvendar o pensamento, o modo sentir, os segredos da existência humana.
Nesse sentido as formas artísticas têm um papel de destaque, pois carregam em
si, além de sua dimensão prático-utilitária no cotidiano de cada cultura, marcas
e sentidos ocultos em que, menos que entender seus processos intrínsecos, vale
contemplá-los como signos das vivências de tempos remotos. Muito já se falou
dos significados e mistérios da arte pré-histórica, de sua maravilhosa construção
e expressão, de sua dimensão mágico-ritualística e do assombro de seus
processos técnicos. É na conexão com essas dimensões que este primeiro
momento de nossa investigação se dá; e nas fendas do que foi construído pela
história da arte, capturamos sentidos outros sob o impacto do que as paredes
propõem. Assim, os suportes, os materiais e as técnicas, que são os aspectos
sempre determinantes no processo de produção artística em cada momento
histórico, e da verificação dos valores artísticos e sentidos estéticos que os
envolvem, vasculharemos a arte parietal,12 desde seu surgimento, evocando os
12
A "arte parietal" é a que tem como suporte as paredes de grutas ou abrigos sob rocha e inclui
23
sentidos que atravessam a pixação, sua força artística e sua compreensão
estética. A arte parietal amplia-se enquanto estabelece relações de seus signos
com o objeto desta investigação. A dimensão artística e estética presentes nas
expressões parietais é o que interessa, pois revela uma conexão com o modo de
fazer da pixação no contemporâneo, ressoando o campo originário de sua
manifestação: a pré-história. E mesmo dialogando com os sentidos clássicos
sustentados por inúmeros historiadores da arte, voltamos o foco para o tempo
presente onde o objeto se localiza, e com isso afirmamos sua importância na
contemporaneidade.
A pré-história permite que se coloque em evidência o caráter estrutural
de inúmeras manifestações artísticas, projetando seus significados num diálogo
intensivo com o objeto da pesquisa, deslocando-se num percurso fragmentário e
descontínuo por sobre as diversas manifestações, visitando estilos e formas
diversas e afirmando sua dimensão estética. Com isso, não se processa uma
análise totalizadora de tais manifestações, visto que não comporta aqui tal
atitude, mas localizar na história da arte como as manifestações artísticas em
seus primórdios produziram experiências artísticas fundamentais tendo o
próprio espaço físico como suporte e base dos processos de criação e expressão,
atravessando a história e revelando o modo como aquelas culturas viviam, se
organizavam, produziam e se comunicavam. A pixação é entendida como um
ponto de chegada, no contemporâneo, das experiências históricas da arte
parietal. E como um devir-artístico a pixação não se reduz às leituras correntes
representações de diversos tipos - baixos relevos, gravuras, pinturas. A distribuição das figuras pelas paredes dos sítios decorados é também variada, ocorrendo tanto em locais mais ou menos expostos à luz natural como nas zonas mais interiores de galerias profundas cuja freqüentação obrigava à utilização de luz artificial (lamparinas de pedra em que se queimava gordura animal, ou archotes de madeira). In: http://www.ipa.min-cultura.pt/coa/pt/Paleolithic/Paleo_Art. Visitado em março/ 2007
24
sobre ela, pois a referência à pré-história como sendo sua origem, coloca-a
dentro da tradição da história da arte como um tipo de arte parietal em que pese
as distinções que lhe cabem das experiências do passado. Daí a necessidade de
um trânsito por determinadas manifestações pré-históricas com a intenção de
estabelecer os pontos de contato entre a pixação e as práticas tradicionais da
arte parietal no tempo histórico; destacando as que se relacionam com o objeto
e contribuindo com a potência artística e estética das diversas manifestações no
quadro fragmentário que se anuncia. A razão essencial da relação entre a arte
parietal e a pixação está na própria prática de ambas manifestações e de seus
sentidos estéticos em diálogo. Pensando a dimensão instintiva como a base de
sustentação desses processos de criação, cristalizando de modo efetivo tal
relação. Da afirmação de ser arte em que a ciência estética e a história da arte
postularam acerca das formas de expressão do homem pré-histórico,
evidenciam-se as analogias e os eixos de similaridades mais fundamentais
entre tais manifestações, e que soam como herança atávica nas formas de
expressão da pixação no contemporâneo. Não de forma totalizadora, abarcando
suas caracterizações e dimensões, mas numa práxis reveladora da força da arte
como transmissão de sentidos distintos em cada contexto específico. Com isso
colocamos em evidência diversas formas de arte parietal que contribuem de
maneira peculiar para marcar a pixação como uma espécie de campo de
ressonância das formas pré-históricas. No mais, erige-se aqui uma história da
parede para que as conexões possíveis com o objeto desta investigação se
esgarcem e se intensifiquem.
25
2.Práxis.
2.
Práxis. - O Paleolítico é o período onde se localizam as primeiras
grandes experiências da arte parietal em que o homem demonstrou suas
habilidades de caçador-artista de forma ampla. É espantoso perceber o grau de
maturidade expressiva e formal que o Paleolítico produziu com sua mais
absoluta precariedade de meios, quando já se atingiu um amplo
desenvolvimento tecnológico no mundo atual. Assim como é fascinante tentar
entender que àquela altura do ―processo histórico‖ a dimensão que se passou a
chamar de artística pudesse estar no cerne da formação da consciência humana.
Um fato importante que contribuiu para isso diz respeito ao insight em relação
à parede, demonstrando que a intervenção na verticalidade desse suporte,
2. Pintura da Caverna de Altamira (Espanha). Fonte: http://www.arikah.net/enciclopedia-
portuguese/Arte_rupestre
26
constituiu seu grande achado. Instigando-nos a imaginar o que se passava na
mente desses homens quando de seu processo de criação. Nesse momento a
formação da consciência estava ligada ao próprio processo do fazer, na medida
em que havia uma intrínseca relação entre o formar, o agir e o auto-formar.
Fayga Ostrower diz que
“os chamados „hominidas‟ deixaram vestígios que permitem inferir uma existência já de certo modo consciente-sensível-cultural” (...) entendemos que precisamente na integração do consciente, do sensível e do cultural se baseiam os comportamentos criativos do homem. Somente ante o ato intencional, isto é, ante a ação de um ser consciente, faz sentido falar-se de criação”13
O que mostra que os processos artísticos foram responsáveis pela
formação desse estado consciente-sensível-cultural em que os mecanismos de
criação foram se aperfeiçoando numa intencionalidade capital. O
relacionamento com o espaço e os objetos se alterando, o desenvolvimento
técnico, os achados, as escolhas, se evidenciando na construção da imagem e na
formação da consciência. A vivência do homem pré-histórico está marcada pela
busca de sobrevivência num meio caótico. Os homens do paleolítico ―viviam em
nível econômico improdutivo e parasitário, que eram obrigados a apanhar ou a
capturar os meios de subsistência, em vez de produzir‖.14 Este tipo de vivência
levou-os a um aperfeiçoamento de suas técnicas de sobrevivência em que a arte
vai aparecer como um das formas de produção de sua subsistência. Processo
este que não era tomado como manifestação artística e estética isolada, mas
como parte integrante de um modus vivendi que o levou às futuras descobertas.
A criação de imagens foi decisiva para a expansão do pensamento humano. O
fundamento dessa criação está diretamente ligado ao modo como o homem se
relacionava com o meio. É interessante observar que a pedra, o sílex lascado,
13 OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 11. 14 HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1976. p. 16.
Tomo I.
27
tem função determinante na forma de instauração de seu desenvolvimento, de
sua experiência espaço-temporal. Indício de uma causalidade em que o ato de
viver conecta-se à potência do objeto. Extensão de sua força e gesto. Não o
objeto em si afirmado como elemento fundamental em sua existência, mas a
expansão de sua função dimensionada para além do próprio objeto,
concretizando seu domínio sobre a natureza, o meio.
3. Bisonte. Caverna de Altamira (Espanha). Fonte: http://www.arikah.net/enciclopedia-
portuguese/Arte_rupestre
28
3.Atravessamento e migração.
3.
Atravessamento e migração. - As pinturas pré-históricas deram
um outro sentido ao modo como o homem pré-histórico passou a experimentar
a vida. Na profundidade das cavernas foi possível a descoberta de um mundo
outro em que se situa a experiência da imaginação, do atravessamento e da
migração mental para outras dimensões, contudo, atreladas à praticidade que
sua existência produzia. Não havia separação entre a representação e realidade,
esse processo formava um todo vincado na própria práxis de subsistência.
Estamos diante da força da imagem a criar essa espécie de duplo.15 Esta
constatação se baseia também na vivência de culturas atuais que cultivam
práticas semelhantes como corte de pedras, incisões e pinturas em rochas. ―O
caçador e o pintor da era paleolítica supunham encontrar-se na posse do
próprio objeto desde que possuíssem a sua imagem; julgavam adquirir poder
sobre o objeto por intermédio de sua representação‖.16 Assim, o homem pré-
histórico caminhou rumo a novas conquistas mentais em que os signos serviram
de passagem nessa direção, criando em sua mente um equivalente do real, de
suas lutas cotidianas. E o domínio do espaço selvagem a que estava submetido
possibilitou esse mecanismo de ampliação, forjado no plano da imaginação e
transferido como imagem para as paredes. Inúmeros olhares possíveis
ampliaram a relação com o objeto real, visto que já se constituira em sua mente
15 Gombrich diz que ―se trata das mais antigas relíquias da crença universal no poder produzido
pelas imagens‖. In: GOMBRICH, E. H. História da Arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993. p. 22.
16 HAUSER, Arnold. Op. Cit. p. 16.
29
um equivalente vivencial com tudo o que podia conter de realidade e desejo,
mesmo que tal imagem não se distinguisse de per si daquela experiência prática.
Por extensão deu-se um grande passo para um mergulho no abismo da
imaginação e do domínio do meio. Pelo menos na medida em que as pinturas
conectavam, pelas referências sígnicas, apenas aspectos dessas experiências
reais; supunha-se que nem todas as estratégias de domínio da caça e do meio
tornavam-se possíveis, visto que no real nem sempre impera uma lógica objetiva
e fechada. Assim, os processos de intervenção do real e seus acidentes foram
também produzidos pelos transportes imagéticos: proximidade com a imagem
do animal, interferência em sua forma na parede, compreensão mimético-
realista de sua representação, sobreposição e fusão dos desenhos. Experiência
xamânica17 nos seus primórdios em que a lógica da imagem é sempre múltipla,
complexa e conecta níveis de interpretações que mantêm sempre as incidências
culturais e as experiências de cada sujeito, marcadas por diversas nuanças. O
que representa o objeto, o evento, produz de antemão na mente, inúmeras
aberturas para amplos processos de conhecimento. Isso se observa nos diversos
registros feitos dos animais para que se chegasse a partir das lutas cotidianas ao
domínio de suas forças. Daí a multiplicidade de traços, sobreposições e
apagamentos. As interferências nas imagens do animal como para feri-lo,
sangrá-lo remete a uma relação de confronto e ao mesmo tempo revela o
desenvolvimento de suas vivências no mundo.
17 ―Determinadas formas e estilos podem ser atribuídos à influência do xamanismo, e certos
métodos e técnicas, tais como o drama, a dança, a recitação de odes e o uso de máscaras, provavelmente se originaram, em grande parte, do processo de autocura a que o xamã em potencial teve de se submeter‖. In: LOMMEL, Andreas. Et Alli. O Mundo da Arte: a arte pré-histórica e primitiva. 7 ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1979. p. 19.
30
4.Objetos-vivências.
4. Objetos-vivências. - Nos estranhos processos de auto-formação com
as interferências do caçador na ordem da natureza a arte teve papel crucial:
cindir o mundo em partes estranhas produzindo o afastamento pelas fendas de
uma vivência nova; encontrar-se diante dos novos desafios em que a própria
sobrevivência impõe algo para além de apenas manter-se de pé diante do vasto
4. Pinturas e desenhos na caverna de Lascaux, França. Fonte: http://www.arikah.net/enciclopedia-portuguese/Arte_rupestre
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mundo, distinguindo-se da natureza ao perceber que sua matéria-corpo se
difere das outras matérias.
―O caçador sente-se unido à natureza. Sua visão do mundo é de uma entidade espiritual e material. Só muito lentamente chega a separar-se de seu meio-ambiente, assim obtendo uma consciência de si próprio como indivíduo distinto do mundo da natureza. Gradualmente expressa esse sentimento de distinção por meio da arte, embora permanecendo intimamente envolvido com a natureza. Procura impor a força de seu intelecto ao meio que o rodeia, pois a noção de um mundo espiritual, capaz de ser influenciado pelo homem, é uma invenção do caçador‖.18
Formas de intervenção intelectual que o fortaleceram para o
enfrentamento do mundo. Estabelece-se assim uma relação entre as pinturas e
sua vivência, revelando o lento processo de distinção entre a imagem e o mundo
caracterizando as imagens pelas experiências que a elas se ligam. Dimensão de
subsistência ―colada‖ no próprio signo, porém, ativando a imaginação para
outros campos. Uma vivência sobrecarregada de episódios que não revela a
totalidade de sua dimensão ontológica, apenas fragmentos dessas experiências.
Ou o empalidecido de nossa razão a ruminar as dores do mundo de outrora,
disparando para o inimaginável das cenas. Sombras do que nosso olhar pode
apontar, descobrir: o raso das verdades apenas intuídas, conjeturadas. A
condição de familiaridade das pinturas evidenciada no processo histórico a
partir do estilo naturalista impregnado a elas, produz esse grande paradoxo: a
idéia de que as representações são o equivalente do real e não apenas aparência
desfigurada dele. A apreensão da arte das cavernas inaugura uma outra
dimensão, mostrando que para além da experiência do real havia um outro
plano: o mundo da imagem. Não no sentido de uma transfiguração metafísica,
mas no de um lugar outro ativo, agente de nossa descoberta de um outro tanto
de real. A arte como um lugar de experiências intensivas, imanentes. Ligadura
ao ser-pintura naquilo que constitui sua existência, sem que por isso se precise
18 LOMMEL, Andreas. Et alli. Op. Cit. p. 16/ 17.
32
pensar como um plano outro extrínseco a ela. Outra condição de luta do homem
para estabelecer esse nexo de sobrevivência tão decisivo na experiência pré-
histórica. As mensagens permanecem abertas a tantos significados quanto
possíveis, pontuações e cesuras a envolver e remeter à força dos acontecimentos
por trás de cada imagem. A pintura, o machado, foram objetos-vivências
cruciais na extensão da mão do homem para resistir ao caos ininterrupto que o
assolava no tempo da sobrevivência.
5. Devires-formas: a herança atávica da pixação.
5.
Devires-formas: a herança atávica da pixação. - Criar a partir do
plano em vertical: eis o ponto de contato entre a arte parietal e a pixação.
Herança atávica que remete aos processos expressivos iniciais do artista-
caçador. Devires-formas gerados das marcas da invenção da arte em tempos
imemoriais. Processos de criação à base da explosão sígnica. Espaços
compostos de forma inteiramente radical sob a égide dos instintos. Processos
legítimos de deflagração do pensamento artístico em nível embrionário, mas
não menos profundo. Aquele estar-se de pé diante da parede foi o grande
acontecimento que atravessou toda a história da arte. E desde as primeiras
interferências, se criou toda uma tradição de uso da parede que, de cultura em
cultura, foi se presentificando até o contemporâneo com a pixação. Intervenção
ligada aos atos de passagem para planos diversos em que o artista-xamã soube
explorar: ―desenhos, poemas e danças, tudo serve ao xamã como meio para
33
descrever sua viagem ao além. O segredo da magia propiciatória da caça
consiste na mímica‖.19 Um caminho aberto das experiências artísticas fundadas
na exploração da parede, do teto e de todas as possibilidades que a imaginação
do homem permitiu, na medida em que lançou mão de todas as possíveis
técnicas criadas para esse fim; inventou um mundo outro constituído no que a
cultura ocidental passou a chamar de arte: a imagem como uma espécie de
mímica do real, mas ao mesmo tempo uma viagem pelas fendas desse real. Um
composto que se vivifica da utilização das irregularidades das paredes na criação
da imagem. Sulcos e deformidades indicando a forma dos animais, um dado que
revela o quanto o instinto de criação do artista-caçador estava em amplo
processo de evolução. Seu olho captava as tortuosidades, texturas, fendas para
nelas fazer emergir a imagem do animal. As mãos sobre o plano evidenciam um
método de criar em que o gestual e o corporal ativam a existência das formas:
domínio do espaço e do tempo. Todas as dimensões em ação: a força do caçador
transmutada em energia criadora, física e porque não dizer, estética. Num certo
sentido essa gestualidade inaugura todas as formas de intervenção no plano. As
mãos imprimem a marca do pensamento artístico na história. E a partir dessa
descoberta do uso das paredes nas cavernas atravessa-se a história para atingir
a deflagração de novos processos formais como a pixação: práxis
intervencionista; recolocando no contemporâneo aquelas aquisições plástico-
formais imemoriais geradas pelo artista-caçador. O que se inscreveu no tempo,
signos e formas, apreensão inevitável dos fenômenos da natureza, das leis de
sobrevivência e da ordem social que se instauraria posteriormente, fora
gravado, produzido pelo artista-caçador, e depois agricultor, organizado num
19 LOMMEL, Andreas. Et alli. Op. Cit. p. 20.
34
universo completamente novo de cores, linhas, formas e texturas, definindo a
expressão de suas lutas e ações, de seus sentimentos e mistérios. E dessas
formas-ações-gestos nasceu a arte parietal, perpetuando-se nas paredes do
mundo. E a pixação herda desses processos intervencionistas sua natureza
artística inscrita num modo de manipular o espaço através de signos diversos,
formas caóticas, não-sentidos e uma gestualidade que impinge forças advindas
do confronto entre matéria-espaço-corpo.
5. Cavalos e mãos em negativo – Gruta de Peche Merle (França). Fonte: http://www.bolmanahaa.org
35
6. Anti-composição.
6.
Anti-composição. – Os procedimentos construtivos das pinturas e
desenhos pré-históricos podem ser entendidos como anticomposição: processo
de criação que não se baseia numa ordem compositiva de fundo racional, na
medida em que a disposição dos signos no espaço indicam uma ausência de
elaboração quando se toma como referência conceitual os cânones clássicos:
equilíbrio, simetria, justa proporção que geraram as regras de composição
acadêmicas posteriormente. A anticomposição é anterior a qualquer elaboração
lógico-matemática e, portanto, legítima. Assim como promove uma experiência
original que só mais tarde é reintroduzida nos múltiplos processos de criação:
desprendimento daquelas regras apriorísticas de composição, como veremos
principalmente na pintura abstrata. Nas pinturas e desenhos pré-históricos os
artistas-caçadores transgrediam a autonomia do signo no espaço, superpondo-
os a partir de sua própria ação, função e imaginário de caçador. ―As imagens não
fazem qualquer referência formal a um fundo ou a um meio ambiente externo,
ao qual pudessem ser relacionadas. Cada figura de animal encerra em seus
contornos seu próprio espaço‖.20 Regendo-os num espaço fluido e ampliado,
evidencia uma consciência em desenvolvimento cuja dimensão lógico-racional
ainda não havia se formado em sua totalidade, mas se fazia presente em
diversas atitudes. A representação de certos animais no Paleolítico com
elaborado detalhismo de formas revela essa dimensão. Os dados racionais se
20 OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 13. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1983. p. 300.
36
evidenciam nas ações,21 demonstrando um tipo de elaboração distinta das
regras compositivas criadas séculos mais tarde, e caracterizando
indubitavelmente um tipo de composição própria do estágio de vida do homem
pré-histórico, assentada noutra dimensão em que o estético22 amplia-se abrindo
novos fossos discursivos. O que aqui se erige como anticomposição revelam a
força instintiva da criação, reativando os processos pré-históricos originais de
construção na parede. Processos esses que se tornaram parte do próprio
contexto da história da arte realizados em diversos estilos, desde o advento do
impressionismo, com a derrocada definitiva da perspectiva geométrica, até o
seu apogeu com o abstracionismo, especialmente com o abstracionismo
sensível de Kandinsky e a gestualidade instintiva do Action Painting de Pollock
a posteriori. E a pixação reativa no contemporâneo essa dimensão instintiva
pré-histórica. Não mais em cavernas mas pelas metrópoles a céu aberto. A
superposição dos signos é uma característica de ambas as práticas como nos
mostra as Figuras 6 e 7. A expressão se evidencia no próprio caos sígnico que se
instaura.
21 Fayga diz que ―o consciente racional nunca se desliga das atividades criadoras; constitui um
fator fundamental de elaboração. Retirar o consciente da criação seria mesmo inadmissível, seria retirar uma das dimensões humanas‖. In: OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 55.
22 Deleuze diz: ―composição, composição, eis a única definição da arte. A composição é estética, e o que não é composto não é uma obra de arte. Não confundiremos todavia a composição técnica, trabalho do material que faz freqüentemente intervir a ciência (matemática, física, química, anatomia) e a composição estética, que é o trabalho da sensação. Só este último merece plenamente o nome de composição, e nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica.‖ DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 247.
37
A intencionalidade do gesto se afirma independente de uma
compreensão lógica dos signos em toda sua amplitude. Em que pese as
distinções funcionais e estilísticas de ambas as práticas, o procedimento de
superposição23 dos signos está implicado num gesto de base instintiva criadora
dos espaços. O instinto é a força emergente do ser do artista-caçador pré-
histórico assim como do pixador no contemporâneo. Isto em direção a um
modo de absorver o meio, experimentá-lo, descobri-lo em busca de domínio e
conhecimento. ―Os caçadores primitivos precisavam compensar a falta de
equipamento com um grau mais elevado de habilidade, paciência e puro
instinto‖.24 Assim, a gestualidade remete a uma dimensão do corpo-
consciência como a dimensão responsável pela criação. O animal desenhado ou
pintado não posa para que o artista o desenhe, sua apreensão é dada pela
memória e a definição da forma pelo instinto criativo que conduz a mão-corpo
na construção da imagem. A distribuição dos signos no espaço envolvia um
planejamento, não no sentido de uma ordem de ações pré-estabelecidas e pré-
estudadas racionalmente, mas um acontecimento que emerge visando a
finalidade de sobreviver pelo domínio do meio e da caça. Daí a idéia de que as
representações são controladas. ―Tudo leva a crer que os conjuntos não se
formaram ao acaso, que sua composição foi intencional‖.25 Eis porque mesmo
em se tratando de representações figurativas, principalmente no Paleolítico, o
espaço não tem importância enquanto estrutura funcional: primeiro, segundo,
terceiro planos como ocorreu posteriormente constituindo o universo
23 ―Entretanto, se não existe uma relação figura-fundo, cabe observar que existe uma relação
formal com outras figuras de animal: cavalos, dentro de touro, bisontes encostados um no outro, ou superpostos, ou tronco a tronco, fileiras de veados, ou uma corça se defrontando com um grande grupo de bisontes etc. Esses agrupamentos de animais e as relações de vizinhança representam um aspecto espacial significativo. In: OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 13. ed. Rio de Janeiro: Campus. 1983. p. 300. Grifos da autora.
24 LOMMEL, Andreas. Et Alli. Op. Cit. p. 15/16. O grifo é nosso. 25
OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 13. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1983. p. 300.
38
euclidiano-aristotélico. Mas sua concepção e visualização são evidenciadas pelo
tamanho do animal, porte físico, imponência e força, expressadas com suas
mais reais características e detalhes. Movimentos do olho-corpo deflagrando
um outro mundo parede adentro. E aquela dimensão atávica anteriormente
mencionada herdada pela pixação, evidencia-se nas similaridades de certas
construções. Símbolos ou motivos geométricos na parede como retângulos
próximo aos animais são interpretados como armadilhas como mostra a Figura
8. O que levou Lommel a afirmar que é mais provável serem vistos como
símbolos usados nos rituais mágicos propiciatórios de caça, destinados a
aprisionar a alma dos animais a serem caçados, e eram um instrumento mais
psíquico do que físico de caça. ―Podem também indicar uma espécie de sinal de
anulação, por meio do qual uma pintura naturalista é “matada” pelas linhas
sobre elas traçadas.‖26 Esse procedimento se assemelha ao que na pixação se
chama de queimar27 como se vê na Figura 6 e 7. Com isso, o pixador
reinvestido de uma condição atávica realiza seus signos em pleno estado de
tensão diante do espaço e de suas contradições sócio-materiais. E reativa na
contemporaneidade essas práticas de intervenção como possibilidades de
inumeráveis falas e sentidos que deflagram novas configurações parietais.
26 LOMMEL, Andreas. Et Alli. Op. Cit. p. 44. Os negritos são nossos. 27
Nos conflitos territoriais entre as gangs e galeras de pixadores, superpor um pixo a outro, ou a uma determinada expressão é um procedimento comum.
7. Pixação num muro de Belém (Pará/Brasil). Foto: Luizan Pinheiro.
6. Nicho Policrômico - Toca do Boqueirão da Pedra Furada - Serra da
Capivara (Piauí/Brasil). Fonte: http://www.ab-arterupestre.org.br
39
7. Grafism neolíticos.
7.
Grafismos neolíticos. - No amplo desenvolvimento que se
estabeleceu do Paleolítico para o Neolítico28 o processo de criação revelou
características diferentes do período anterior. É a passagem da caça para a
agricultura e portanto de uma nova ordem organizativa. Com isso observamos
as mudanças estilísticas nas imagens consolidadas por um modo próprio de vida
instalado em comunidades. Esse aspecto incide na estrutura espacial das obras e
articula a predominância de um estilo em que as formas perdem suas
características naturalistas próprias do estilo anterior. O modo de expressão
neolítico identificado tanto na arte parietal quanto na cerâmica intensifica a
geração de formas que inauguram um estilo abstratizante e geométrico de
conceber as imagens, cuja dimensão estrutural solidifica cada vez mais o espaço
compositivo,29 impondo-se como um processo de construção elaborado e
28 A transição da caça à agricultura deu-se na Europa Setentrional por volta de 2.000 a.C., nítido
resultado de influências da Ásia Ocidental, onde já ocorrera entre 10.000 e 4.000 a.C. In: LOMMEL, Andreas. Et Alli. Op. Cit. p. 47.
29 A relação figura-fundo – como princípio de composição – só passa a existir a partir do período neolítico, quando o homem se torna sedentário. Seu horizonte se torna estável na vida e o homem começa a participar ativamente nos ciclos de produção da natureza. Seu conceito de
40
racionalizado. O predomínio de grafismos de diversas características é a tônica
nesse novo percurso. Um nível de elaboração formal elevado tanto nas pinturas
quanto na cerâmica. Prova de que o pensamento-forma tomou um outro
caminho, mas mantendo sua qualidade inventiva. Os grafismos abstratos ou
esquemáticos ganham força numa mobilidade extremada. Há um pensamento
sendo gerado neste período que evoca o surgimento de um outro espaço. Pelo
agenciamento dos grafismos essa espacialidade toma uma direção fundamental
reveladora da capacidade de abstração. O homem não mais está inserido nas
lutas de sobrevivência atroz do caos selvagem da natureza, mas mantém um
controle econômico e cultural de sua vida: a agricultura requer a criação de
técnicas de armazenamento; a domesticação de animais é uma grande
conquista, e o artesão aparece com toda sua força e inventividade. Há um outro
tempo que o permite a elaboração de novas formas gráficas. Observar esse novo
processo de produção é colocar os pés num campo de justificativa que engloba a
pixação permitindo ver seu arsenal de grafismos e formas dialogando explícita e
francamente com a tradição neolítica construtiva.
espaço então muda – o que é reconhecível nas representações artísticas do espaço. In: OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 13. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1983. p. 300. Nota 8.
9. Figuras esquemáticas da Cueva del Tajo de las Figuras (Casas Viejas – Cádiz -
Espanha). Fonte: http://www.mundocultural.net
8. Vaso policrômico do Neolítico Superior, proveniente da Tessália. c. de 2.500 a.C. Cerâmica branca pintada de
negro e vermelho. Dimini, perto de Volos, Grécia. Museu Nacional, Atenas.
Fonte: http://greciantiga.org
41
8.Intervenção urbana neolítica: Çatal Hüyük.
8.
Intervenção urbana neolítica: Çatal Hüyük. – No período
neolítico ocorreram mudanças estruturais que se mostraram bastante
significativas na direção do objeto desta investigação. A arqueologia legou-nos
descobertas impressionantes. Uma delas: Çatal Hüyük, uma das mais antigas
cidades do mundo. ―Só escavado em 1961, este é um fascinante registro do
progresso efetuado pela humanidade com o surgimento das primeiras cidades
verdadeiras no Sul da Anatólia [Turquia]‖.30 Nela foram encontrados inúmeros
registros de pinturas feitas no interior e exterior das casas. O que mostra que,
independentes de suas funções propícias, as escavações comprovam a
intervenção urbana em seu nascedouro. ―São as mais antigas pinturas que se
conhecem feitas sobre paredes de casas, e não sobre rochas‖.31 Uma experiência
que indica o concreto amadurecimento do homo aestheticus, ampliando seus
suportes de criação, gerando uma nova ordem espacial afastada daquela das
cavernas paleolíticas.
30 LOMMEL, Andreas. Op. Cit. p. 38. 31 Idem. p. 38.
11. Casa modelo construída em Çatal Hüyük. Fonte:
http://www.flickr.com/photos/catalhoyuk
10.Pintura em vermelho de uma das casas de Çatal Hüyük. Fonte:
http://www.flickr.com/photos/catalhoyuk
42
Observamos aqui um novo processo em curso, pois em Çatal Hüyuk o
senso decorativo está mais apurado e é indiscutível esse gosto pelo decorativo
nessa época. Insinua-se uma mentalidade moderna,32 pois a cidade é
experimentada em suas formas mais ampliadas na medida em que tais atitudes
se auto-referenciam nelas mesmas. É o homem pensando e intervindo no
próprio tempo e espaço com a consciência de que o faz com clareza e total
intencionalidade e prazer de fazer. ―Cenas de caça, com pequenas figuras a
correr à volta de enormes touros ou veados, lembram a Idade da Pedra Lascada,
indício de que a Revolução Neolítica teria sido um acontecimento recente ao
tempo‖.33 As palavras de Janson povoam nosso imaginário com a revolução
desse homem que avançou no tempo e espraiou suas criações para o corpo da
própria cidade, fundindo-a e significando-a na própria condição sígnica. Não
obstante o diálogo com o passado vê-se um novo processo emergir, colocando
em cena um objeto novo: a cidade. Agora ela é suporte para o pensamento
artístico, e espaço ampliado e passível de intervenção.
9. A parede egípcia.
9.
32 No sentido de tempus novum, o tempo presente. 33 JANSON. H. W. (1992). História da arte. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes. p. 31.
12. Çatal Hüyük. As figuras saltitantes e rodopiantes envolvidas por faixas pontilhadas, representam provavelmente dançarinos vestidos em peles de leopardos. Se for realmente
este o caso, teremos aí as mais antigas imagens dos ritos extáticos do culto de Dioniso, que os gregos julgavam ter-se originado na Ásia Menor‖. In: LOMMEL, Andreas. Et Alli. Op.
Cit. p. 38. Fonte: http://www.danceit.org/origmed.html
43
A parede egípcia. – Inúmeras outras experiências de arte parietal
pós-neolítico surgiram em outros contextos na história da arte. É importante
aqui se perceber que a parede continuou sendo usada de forma efetiva, tanto
nas casas, como em Çatal Hüyuk, quanto nos templos. As técnicas foram
aperfeiçoadas, os estilos sendo criados e a arte tomando cada vez mais
importância nas diversas culturas. O modo de compor os espaços de fato
ganharam novas características. E tal modo de intervir na parede ganhou
importância permitindo diversos modos de experimentá-la. Os egípcios com sua
maneira de decorar bastante peculiar criaram interessantes murais.
―A maioria das pinturas murais egípcias (...) se criaram com a técnica de afresco seco. Segundo este método, a pintura a têmpera se aplicava sobre gesso que previamente se havia deixado secar, à diferença do bom afresco, em que a pintura se aplica sobre gesso úmido‖.34
Ausência de escorço, perspectiva segundo o status social dos
personagens, lei da frontalidade, foram algumas das contribuições para a
criação de um estilo bastante duradouro, pois o culto aos mortos, herança de
cultos mágicos neolíticos foi o condicionante dessa expressão cheia de regras e
34TORRES, Milko A. García. La píntura en el Antiguo Egipto. In: http://www.imageandart.com. Visitado em abril de 2007.
13. Pintura egipcia: Cazando aves. Da tumba de um nobre em Tebas- Técnica de afresco seco. Fonte: http://www.imageandart.com.
44
padrões construtivos. Na Figura 13 ―a pintura pertence a uma tumba real, e
nesses casos, as convenções aplicadas às formas de representação eram rígidas e
convencionais, sagradas. É o que se conhece como hieratismo‖.35
Assim de dinastia em dinastia a presença do uso da parede foi
fundamental. As pinturas que decoravam os túmulos dos faraós, estavam
ligadas ao culto da imortalidade da alma, e além das imagens, as paredes eram
recobertas também com escrita hieroglífica. Um indicativo de que a parede
passou à história da arte como um suporte fundamental para a intervenção
tanto com imagem e escrita quanto com ambas, como no caso dos murais
egípcios.
10. A parede cretense.
10.
A parede cretense. - O uso da parede teve em Creta um tratamento
especial. As contribuições da cultura minóica e micênica foram importantes
para um certo padrão de embelezamento dos templos construídos na ilha,
principalmente em Cnossos. A chamada Idade do Bronze, que antecipa o
desenvolvimento subseqüente da cultura grega, deixou impressionantes obras
35 DIAZ, Maria Rosa. Dibujo realista vs dibujo conceptual. In: http://contexto-educativo.com.ar/2000/6. Visitado em março/ 2007
45
artísticas, não só em termos parietais mas também quanto a obras escultóricas,
jóias e objetos. Com isso é importante observar que quanto ao uso da parede, as
escavações em Creta legaram inúmeros fragmentos de murais que são prova de
um afastamento da concepção egípcia de criar. Um caráter moderno insinua-se
nas composições naturalistas que trazem uma movimentação e espontaneidade
como características mais evidentes. Hauser comenta a idéia de ―distribuição
casual‖ de G. Rodenwaldt que daria o fator definidor do estilo cretense de
compor.36 Nessa direção a arte de Creta introduz um rompimento com a
monumentalidade e a padronização da arte egípcia que mais tarde terá sua,
digamos, afirmação na arte grega. Evidencia-se assim uma variedade de
criações que demonstram um espírito alegre nos motivos:
―A predileção pela mera justaposição vai tão longe na arte cretense que por toda a parte se encontra, em vez das decorações geométricas, o crescimento luxuriante de motivos dispersos, não só em composições de gêneros, mas também em pinturas ornamentais de vasos.‖37
36
―Este ‗arranjo casual‘ esta composição mais pictórica, mais livre e flexível, constitui a expressão de uma liberdade de invenção que pode talvez caracterizar-se melhor, chamando-lhe ‗européia‘ em oposição às restrições orientais da arte egípcia e babilônica, e de uma concepção que, em vez do princípio da concentração e subordinação, favorece a acumulação e a abundância da matéria temática‖. In: HAUSER, Arnold. Op. Cit. p. 85.
37 HAUSER, Arnold. Op. Cit. p. 85/ 86.
15. A Cratera de Zeus. Cratera-ânfora micênica procedente de Enkomi.
Data: -1400/-1350. Nicósia, Cyprus Museum. Fonte:
http://greciantiga.org
14. Flores e plantas estilizadas. Jarro estilo palacial, Minóico Recente de
Cnossos. Data: -1300/1200. Iraklion, Herakleion Archeological Museum.
Fonte: http://greciantiga.org
46
Vê-se que a contribuição minóica e micênica no que tange às pinturas
em vasos de cerâmica vai consubstanciar as experiências da pintura em
cerâmicas desenvolvidas pelos gregos mais tarde, mas já com grandes
descobertas do ponto de vista principalmente do tratamento da figura humana.
A arte cretense para muitos estudiosos surpreende em suas formulações, e que
se afastam de uma concepção oriental para a fundação de uma arte européia de
fato. Atributo esse que tem seu fundamento na prática de um intenso comércio
da ilha como é sabido:
―Trata-se de produtos de indústria de luxo, jóias, taças, tripés, caldeirões, peças de ourivesaria, armas trabalhadas, barras de metal, tapetes, tecidos bordados. (...) Formam a matéria de um comércio abundante que ultrapassa amplamente as fronteiras do reino‖.38
38 VERNANT, Jean Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1996. p. 19.6
17. "A Parisiense". Fragmento de afresco do
Palácio de Cnossos. Data: -1550/-1450. Iraklion
Archaeological Museum. Fonte:
http://greciantiga.org
16. Cena representando um salto do touro. Afresco do Palácio de Cnossos. Data: -1550/-1450. Iraklion
Archaeological Museum. Fonte: http://greciantiga.org
47
Isto levou a construção de magníficos palácios como o de Cnossos e
Festos, Mália e Zakros. Assim, a parede não passou incólume na arte cretense,
principalmente nos afrescos decorativos dos grandes palácios principalmente o
Palácio de Cnossos. Há uma variação de estilo mas dentro daquele espírito
alegre e festivo enfatizado acima.
11. Etruscos, gregos e romanos: mais paredes na cena histórica.
11.
Etruscos, gregos e romanos: mais paredes na cena histórica.
– As paredes continuaram sendo exploradas. Aqui três exemplos de seu uso,
tanto com os painéis em afresco quanto os murais em mosaico que dão
continuidade às experiências parietais que assomaram a história: etruscos,
gregos e romanos. Estes povos mantiveram, em relação à arte egípcia e cretense,
a mesma técnica do mural em afresco. No entanto, os estilos ganharam um
realismo bastante expressivo que surpreende já pela busca de uma mímesis
exacerbada. São pinturas especificamente decorativas e de interiores. Os
etruscos deixaram bons exemplares de pintura mural, que mesmo ressoando
ainda o perfilamento das figuras advindos do formalismo egípcio, revelam uma
agitação compositiva que é marcante nas futuras composições picturais da
península itálica, como se pode observar na Tumba dos Leopardos.
48
E no
afresco de Rivo de Puglia ―em que uma procissão luminosamente colorida de
mulheres enlutadas avança com força implacável‖.39 Ambas representações
impressionam pela construção bastante expressiva.
No que se refere aos gregos, as referências à pintura são estudadas a
partir dos vasos pintados e da própria pintura romana, o que leva a observação
dos processos técnicos e os avanços em relação ao esquematismo egípcio.
Gombrich diz: ―a única maneira que temos para formar uma vaga idéia sobre a
39 In: www.portalartes.com.br/porta. Visitado em março/ 2007.
18. Tumba dos Leopardos (Tarquínia). Fonte: http://www.portalartes.com.br
19. Afresco das dançarinas. Tumba das Dançarinas de Ruvo (Itália). Data: séc. -V. Nápoles, Museo Archeologico Nazionale. Fonte:
http://greciantiga.org
49
pintura grega é observando as decorações em cerâmica.‖40 Isto demonstra de
fato que as novas conquistas na representação pelos gregos caracterizavam um
afastamento paulatino dos murais egípcios. Essa questão é facilmente percebida
num vaso executado pelo mestre Exekias na Figura 20. Ainda o estilo
orientalizante egípcio aparece nas figuras esguias de Aquiles e Ajax jogando
dama. Contudo, num vaso do pintor de Cleofrades na Figura 21, do período
clássico, vê-se a representação do pé de um guerreiro em escorço, o que
corrobora tal descoberta, além de um deslocamento das figuras no espaço que
são inovações de inegável revolução que se deu também na escultura. Gombrich
afirma que
―os pintores fizeram a maior de todas as descobertas – a descoberta do escorço. Foi um momento assombroso na história da arte quando, talvez um pouco antes de 500 a.C., os artistas se atreveram pela primeira vez na história a pintar um pé tal como é visto de frente‖.41
Assim os vasos tanto do período arcaico quanto clássico são
verdadeiros documentos da capacidade pictórica grega desenvolvida nesses dois
períodos. E demonstram, o concreto avanço na compreensão da realidade em
relação ao modo como os egípcios a representavam.
40 GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 50. 41 GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 51.
20. Vaso Grego no "Estilo de Figuras Negras" com Aquiles e Ájax jogando damas. Assinado por Exekias. Circa (sic) 540 a.C. Museu do Vaticano.
Fonte: GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 50.
21. A despedida do guerreiro. Vaso no “Estilo de Figuras Vermelhas”, Eutimídes. Circa (sic) 500 a. C.
Munique, Antiquarium Museum. Fonte: GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p.
50.
50
Outra referência importante é uma das pinturas que foi encontrada na
cidade de Vergina na Macedônia: Figura 22. E que tem como tema O Rapto de
Perséfones, uma pintura de origem grega que impressiona. Atribuída a
Polignoto permite observar que a pintura mural na Grécia também teve um
grande avanço em relação aos exemplares egípcios: a movimentação das
personagens, uma certa agitação e leveza nos traços, um caráter ambíguo em
que a dramaticidade da cena, de um notável expressionismo, remete ao período
conturbado de grandes conquistas que o tema mitológico sugere nos traços
deste painel.42
42
―Considerado o primeiro a dar vida e caráter à arte da pintura. Nenhuma das pinturas de Polignoto chegou até nós, mas Plínio deixou uma descrição de seu ―Discóbulo‖. Entre as pinturas gregas remanescentes do século IV a.C., Entre as pinturas gregas remanescentes do século IV a.C., a mais notável é O rapto de Perséfone, na parede de uma tumba do mesmo complexo funerário onde foi sepultado Filipe II da Macedônia, que morreu em 356 a.C. Com a vitalidade e o naturalismo que caracterizam a arte daquela época, essa imagem evocativa e inquietante mostra como os gregos explicavam as estações do ano. Perséfone é a filha de Deméter, deusa da fertilidade. ades leva Perséfone à força para o mundo interior, do qual ela emergirá trazendo a primavera. Essa pintura parece estabelecer o grande ciclo das estações, e, graças a ela, o mito continua a viver.‖ In: www.portalartes.com.br/porta. Viditado em março/ 2007.
22. O rapto de Perséfone. Detalhe de pintura da parede do "Túmulo de Perséfone", Vergina,
Macedônia. Data: c. -340. http://www.portalartes.com.br
51
A direção a que os murais em afresco gregos tomaram vão ser
percebidos de modo mais amplo na medida em que se observa as pinturas
romanas como as que foram feitas no período helenístico. É o caso da Figura 23,
encontrada na cidade de Estábias, cidade que fora soterrada juntamente com
Herculano e Pompéia na erupção do Vesúvio em 79 d.C. “Essas pinturas
romanas do século I revelam um naturalismo sem precedentes e um caráter
descontraído e lírico.”43 Isto demonstra que as cópias gregas feitas pelos
romanos se tornaram uma lição fundamental, não só na escultura como é mais
conhecido, quanto nas pinturas murais.
Os romanos legaram inúmeros exemplares de trabalhos parietais em
que essa influência grega se faz sentir. Os painéis de Herculano e Pompéia
foram classificados pelo historiador da arte e arqueólogo alemão August Mau,
que os dividiu em quatro estilos: incrustação, arquitetural, terceiro estilo e
estilo fantástico. Permaneceu assim a tradição dos painéis com a técnica do
43
In: www.portalartes.com.br/porta. Visitado em maio de 2007.
23. Moça a Colher Flores. Pintura Romana. Fonte:
http://www.portalartes.com.br
52
afresco, variando apenas nos estilos: naturalista, idealista e expressionista
conforme o caso. As Figuraas 24 e 25 são exemplares descobertos na cidade de
Pompéia.
A Figura 26 mostra que os romanos usaram as paredes não somente
para decorá-las com painéis em afresco mas também para a construção de
painéis com a técnica do mosaico como demonstra.
12. Os graffitis de Pompéia.
12.
Os graffitis de Pompéia. – Um capítulo à parte nas experiências
parietais que diz respeito aos romanos deu-se especificamente em Pompéia. O
uso de inscrições denominadas de graffitis pelos arqueólogos levou a um
25. Grande afresco dos mistérios dionisíacos, na Vila dos Mistérios, em
Pompéia. http://br.geocities.com/vulcoes/Cidadesro
manas
26. Orfeu e os animais. Detalhe de um mosaico provincial romano da Villa di Orpheo, Leptis Magna, Líbia. Data: c. 150/200. Tripoli, Jamahiriya Museum.
24. Afresco no Estilo Fantástico. Pompéia. Fonte:
http://www.brasileirosnoexterior.com/Pintura_da_Roma_Antiga
53
conhecimento mais aprofundado das relações cotidianas dos pompeianos com a
política, o sexo, o lazer etc. A cidade de Pompéia, como já ressaltamos
anteriormente foi soterrada junto com Herculano e Estabias no ano de 79 d. C.,
sob a erupção do vulcão Vesúvio.44 As escavações deram a conhecer a vida e os
costumes dos habitantes da cidade. E com eles os graffitis. Segundo Tatiana
Kugler Rodrigues em seu artigo Pompéia, uma existência voltada aos prazeres
os romanos eram aficcionados na arte de escrever nas paredes, a ponto de eles
mesmos exporem suas próprias preocupações com relação a essa prática
chegando a escreverem: “Surpreende-me, parede, que não tenhas caído, tendo
de agüentar tal quantidade de fastidiosos escritores”.(C.I.L., IV, 1904).45
Evidencia-se com isto que escrever em paredes é um hábito bastante antigo e
que os pompeianos o fizeram de forma extrema. Encontram-se diversos tipos de
inscrições, mas o que se nota é que tendo em vista a licenciosidade das práticas
sexuais romanas, o número de graffitis com esse tipo de conteúdo é bastante
elevado. Era a forma como por exemplo as prostitutas divulgavam seus serviços
para os clientes. Na entrada da cidade foi encontrado num banco o seguinte
graffiti: “Se alguém senta aqui a descansar, leia primeiro este aviso: Quem
quiser foder procure Ática. Custa 16 ases” (C.I.L., IV, 1751).46 Como espécie de
cartão de visita para possíveis clientes que ali chegassem. E assim foi-se
descobrindo a relação que os romanos tinham com as práticas sexuais. Seguem-
44
―As ruínas de Pompéia foram descobertas no final do século XVI. As escavações, que representaram o começo da arqueologia moderna, iniciaram-se em 1709, em Herculano, e em 1748, em Pompéia. Em 1860, os trabalhos arqueológicos se intensificaram e tornaram-se mais sistemáticos, mas foram interrompidos pela segunda guerra mundial.‖ In: Pompéia, Herculano e Estábias. http://br.geocities.com/vulcoes/Cidadesromanas.htm. Visitado em abril/ 2007. 45
C.I.L. é a abreviação de Corpus Inscriptionum Latinarum (Corpo de Inscrições Latinas), onde se encontram os fac-símiles de todas as inscrições latinas do mundo todo. (Nota da Autora). In: RODRIGUES, Tatiana Kugler. Pompéia, uma existência voltada aos prazeres. In: http://www.geocities.com/pjchronos. Visitado em abril de 2007. 46 O ás era uma moeda de cobre de pouco valor. O sestércio era de prata e valia um ás e meio. O denário era de prata e valia dez asses. In: RODRÍGUEZ, Alfredo Maceira. Dos Grafiteiros de Pompéia aos Pichadores Atuais. http://www.kke.org.br.
54
se outros exemplos: “Eutique, grega. Dois ases. De deliciosas habilidades”
(C.I.L., IV, 4592). “Esperança. De deliciosas habilidades. Nove ases” (C.I.L., IV,
5127). “Laís chupa por dois ases” (C.I.L., IV, 1969).47
E toda essa escrita publicitária tomava Pompéia em seu lugar de
cidade avançada no tempo, desde sua licenciosidade sexual de modo algum
perniciosa mas hospitaleira daquilo a que o corpo quer como lugar do afago e
aconchego já no corpo de uma cidade-puta. E para além desta condição outras
atitudes são grafadas nas paredes da cidade. A fala política se insinua: ―Os
quitandeiros, todos juntos com Helvius Vestalis, querem a eleição de Marcus
Holanius Priscus para duúnviro com poder judicial‖. ―Peço seu voto para eleger
Gaius Julius Polybius vereador. Ele tem bom pão‖. ―Os almocreves querem a
eleição de Gaius Julius Polybius duúnviro‖.48 Assim, Pompéia erige-se como o
lugar pleno da escrita podendo num certo olhar contemporâneo ser pensada
com espécie de intervenção urbana. Prática em que a própria cidade reveste-se
como um documento ampliado de hábitos e costumes.
47 RODRIGUES, Tatiana Kugler. Pompéia, uma existência voltada aos prazeres. In:
http://www.geocities.com/pjchronos. Visitado em abril/ 2007 48 RODRÍGUEZ, Alfredo Maceira. Dos Grafiteiros de Pompéia aos Pichadores Atuais.
http://www.kke.org.br. Duúnviro. Pessoa que no Império Romano exercia funções administrativas e judiciárias em uma localidade (duunvirato). (Nota do Autor). Visitado em abril/ 2007.
27. Murais da Vicolo del Barone Pensile em Pompéia. Fonte: http://www.geocities.com/pjchronos.
55
―Essa escrita (não-oficial, alternativa, marginal, contestatória, de protesto ou como mais se queira chamar) existe desde que o homem dispõe de algum tipo de comunicação visual (gravuras, pinturas, símbolos pictóricos, ideogramas e, principalmente, com a representação escrita da linguagem humana, portanto, os grafitos de Pompéia não são as primeiras manifestações de escrita alternativa. Eles revestem-se de importância para ajudar a conhecer aspectos de sociedade não conservados na literatura nem em documentos convencionais.‖ 49
Podemos verificar que essa prática era comum antes e depois do
soterramento de Pompéia e localidades circunvizinhas, chegando a nossos dias
com nomes e pretextos diversos, mas pelas mesmas causas e por autores
semelhantes. Reconhece-se assim todos os valores e vivências dos romanos e
sua paixão pela escrita parietal, engendrando um capítulo fundamental na
história da arte e das letras na medida em que ambas experiências se conectam
desde o surgimento da escrita.
49 RODRÍGUEZ, Alfredo Maceira. Dos Grafiteiros de Pompéia aos Pichadores Atuais.
http://www.kke.org.br. Visitado em abril/ 2007.
29. Graffiti de Pompéia. O latim vulgar, como o deste graffiti político encontrado em Pompéia, foi a língua falada pelas classes populares do Império Romano, em contraste com o latim clássico literário. In: http://pt.wikipedia.org
28. Entrada da casa de Faun, prostituta aparentemente "famosa". Fonte: http://www.geocities.com/pjchronos.
56
13. A parede no Medievo.
13.
A parede no Medievo. – A Idade Média é um período de grande
densidade histórica e riqueza cultural. Segundo alguns historiadores são dez
séculos que separam a antiguidade greco-romana do Renascimento, e não
caracteriza a chamada idade das trevas. Do séc. V com a queda do Império
Romano e as invasões dos povos bárbaros até o séc. XV, há uma clara
demonstração do percurso das experiências parietais, assim como sua
ampliação, além do surgimento de outras técnicas que serão importantes para a
própria divulgação da mensagem cristã, sendo que tal recorte histórico insere a
Igreja Católica no seu papel mais imponente em termos de domínio cultural,
artístico e científico em toda a sua amplitude. Contudo, serão evidenciadas aqui
as experiências não só do ocidente como também do oriente centrada no
período bizantino (330 a 453). Dessa forma a arte parietal do medievo será
representada pela chamada arte paleocristã (ou das catacumbas), a bizantina, a
românica e a gótica. Compõe-se assim um quadro artístico em que a temática
teológico-religiosa se expõe em todas as demais expressões, a começar pela arte
cristã ou paleocristão do III e IV séculos, responsável pela evolução subseqüente
da arte bizantina. Nas catacumbas romanas se encontram diversos murais em
afresco que exemplificam os cultos e a fé cristã no submundo do império
57
romano, posto que a liberdade de culto cristão era proibida até o Edito de Milão
assinado por Constantino, tornando o cristianismo religião oficial do império
romano e instituindo a liberdade de culto. Essa arte mantém aspectos da arte
pagã romana e explora temas bíblicos, principalmente do Antigo Testamento.
São notórias nessas pinturas as características da pintura mural romana técnica
e formalmente.
A arte bizantina surge de
inúmeras influências culturais e estilísticas. E nas experiências parietais
verifica-se tal confluência de estilos: romanos, gregos, orientais que definirão de
modo preciso um período e uma região atravessada por diversos povos, línguas
e culturas. Tendo Bizâncio como a capital do Império Romano transferida para
o Oriente pelo Imperador Constantino I por volta do séc. IV, desfrutou a certa
altura de grande riqueza como se mostra nos mosaicos e ícones das igrejas
bizantinas como Hagia Sophia. Uma arte que recobre três grandes períodos
denominados de Primeira Idade do Ouro, Segunda Idade do Ouro e Terceira
Idade do Ouro. Para Nora Ricalde:
―É da arte Bizantina de onde surgem modelos para toda a Idade Média. Entre outras coisas, se representa em Bizâncio pela primeira vez a corte angelical. A arte Bizantina dentro dos templos, foi realmente uma teologia em imagem. (...) A imagem Bizantina
30. O Peixe e o Pão Eucarístico. Início do III séc. Catacumba de São Calixto. Cripta de
Lucina. Roma. In: http://pt.wikipedia.org
31. O Bom Pastor. Segunda metade do séc. III d.C.
Catacumba de Priscila. Roma. In: http://pt.wikipedia.org
58
foi a prolongação do dogma, e o desenvolvimento da doutrina na arte Bizantina teria caráter de livro sagrado de amena leitura.‖50
Assim, a abismal dimensão do que era o sentido do religioso, do
transcendente, do metafísico nos primeiros séculos da era cristã ganharam
formas cada vez mais explícitas. E combinando o poder dos imperadores, essa
arte fundiu o sagrado e o profano na medida em que não havia uma distinção de
ambos os poderes. O mosaico da Figura 32 representa o imperador Justiniano
imponente, tendo em torno da cabeça a auréola que evoca seu poder sagrado.
Destacam-se assim os mosaicos como a máxima expressão desse estilo, mas os
murais não perderam a importância enquanto possibilidade decorativa no
império como exemplifica a Figura 33.
Um outro momento
importante para as práticas dos murais em afresco dá-se no primeiro grande
estilo após a queda do Império Romano denominado de estilo românico. Nesse
estilo os afrescos estão completamente submetidos à arquitetura e há pouco
50 RICALDE, Nora. LA PRIMERA EPOCA: El arte bizantino en los primeros siglos. In: http://www.imperiobizantino.com/. Visitado em abril/ 2007.
33. Afresco pintado na cidade bizantina de Trebizonda, situada na costa sudeste do Mar Negro. In:
http://www.imperiobizantino.com/obras_de_arte
32. Detalhe de mosaico de São Vital, com o imperador
Justiniano. http://www.imperiobizanti
no.com/obras_de_arte
59
destaque a eles, nesse sentido, se comparado à arte bizantina, afirmando cada
vez mais o triunfo da Igreja nos séculos XI a XIII. O crescente número de
construções românicas por toda a Europa dimensiona o poder avassalador com
que o cristianismo se expandiu desde os primeiros séculos. A pintura e a
escultura estão vinculadas ao processo de construção das igrejas, na medida em
que aquelas se caracterizam por seu aspecto didático constituindo-se em
verdadeiras ―Bíblias de pedra‖. Maria Mercè Riera i Arnijas diz que:
―A pintura mural românica é uma pintura bidimensional, submetida a um suporte que vem determinado pela arquitetura. O artista ocidental partirá da esquematização de das formas até chegar a uma composição geométrica, afastada da concepção naturalista dos elementos. A arte se separará da imitação da realidade para dar uma imagem interpretativa, um símbolo, em que se busca a essência da coisa representada.‖51
Pintura esta em que o esquematismo e as leis de construção das formas
voltarão a predominar, como ocorrera na arte egípcia. Não obstante a técnica do
afresco permanecer uma constante, afasta-se na arte românica de uma
interpretação naturalista dos temas bíblicos. Um exemplar de afresco mais bem
conservado da arte românica encontra-se na Cataluña (Espanha)52 como mostra
a Figura 34.
51 http://www.liceus.com/cgi-bin/tcua/0300.asp. Visitado em abril/ 2007. 52 Idem.
34. Conjunto iconográfico de Sant Climent de Taüll - Cataluña – séc. XII. Fonte: http://www.arteguias.com
60
61
O estilo gótico é o último grande estilo da Idade Média e a pintura tal
como a escultura mantém sua dependência em relação à arquitetura: é o
período de construção das grandes catedrais. As influências orientais,
especificamente a tradição bizantina, ainda estão presentes nas iluminuras e nos
vitrais que irão se destacar em relação às pinturas murais em afresco. Murais,
vitrais, iluminuras darão a tônica nesse estilo no que diz respeito à pintura por
toda a Europa e que podem ser considerados os antecedentes da pintura à óleo
inventada pelos irmãos Van Eyk no norte da Europa no século posterior. O
período gótico é marcado pela entrada em cena das duas principais escolas de
pintura que marcaram o afastamento com os padrões medievais de uma vez por
todas: a escola de Siena e a escola de Florença. Em Siena Duccio de Buonisegna
(1255-1319) e Simone Martini (1285?-1344), seguindo a maniera greca
provocaram mudanças no estilo de pintar a partir das contribuições bizantinas,
buscando um estilo mais realista com seus afrescos e painéis em madeira como
se vê nas Figuras 35 e 36. Ao mesmo tempo em que foram se afastando
paulatinamente da concepção medieval de arte. O didatismo imagético foi sendo
posto de lado e sofreu sua maior ruptura na figura de Giotto da escola
florentina. Com ele se inaugura um novo tempo na arte e mais especificamente
na pintura.
35. Duccio de Buonisegna. Maestá. Catedral de Siena. Tempera sobre madeira (1308/1311). Fonte: http://www.jmrw.com/m
62
14. Giotto e a
parede moderna.
14.
Giotto e a parede moderna. – A entrada de Giotto de Bondone
(1266-1337) na cena artística do séc. XIV é um dos capítulos mais importantes
da história da arte, pois este pintor florentino promoveu uma das maiores
revoluções de que se tem notícia na pintura do Trecento (séc. XIV). Giotto é
considerado o maior expoente da escola florentina de pintura, porém, seu
mestre Ceni de Peppo (c. 1240-1302) conhecido como Cimabue, que ainda
estava ligado aos padrões medievais de pintar, foi uma influência decisiva em
seus processos pictóricos. Sabe-se que Cimabue já havia colocado em circulação
uma interpretação mais realista dos temas por ele abordados e deixando para
trás a bidimensionalidade bizantina como se vê num retrato de São Francisco
que compõe um dos seus
36. Simone Martini. Afresco. Catedral de Siena. (1330). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Simone_Martini
37. Cimabue. Maria no Trono com o Menino, Quatro Anjos e São Francisco. Cerca de 1285. Basilica de São
Francisco de Assis (Assis-Itália). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:San_Francesco
_Cimabue.jpg
38. Cimabue. São Francisco de Assis. Detalhe.
http://www.fredmartin.net
63
afrescos da Catedral de Assis na Itália: Figuras 37 e 38. Foi o descobridor e
mestre de Giotto, este soube colocar em prática as lições que recebera do
mestre.
A parede de Giotto apresenta as fundamentais transformações, como
ponto de partida, daquilo que Gombrich denomina de ―A Conquista da
Realidade‖, posteriormente atingida pelos renascentistas, produzindo uma
ruptura sem precedentes na história da pintura. As paredes da Basílica de Assis
servirão de suporte para a afirmação de um novo sentido de representação. A
perspectiva, a nova concepção de espaço, a dimensão psicológica e fisionômica
dos personagens aparecerão não mais como padrões encimados por uma visão
teológica do mundo, mas constituídos de certa individualidade e humanidade
típicos dos novos tempos.
Nesse sentido Giotto manteve em suas criações a tradição do afresco,
porém, colocando-o num outro patamar, modernizando e atualizando a
representação da realidade de uma forma completamente nova. O que levou o
espectador a uma nova percepção da realidade na medida em que esta se
tornava palpável aos seus olhos. O que antes era tomado como inatingível, com
Giotto passou a ser experimentado de modo concreto. A representação se
tornava natural refletindo em certa medida os dados do real.
Referindo-se ao afresco Fé da Capella dell‘Arena em Pádua - local
considerado o ponto alto da produção de Giotto - Gombrich diz:
―É uma pintura que produz a ilusão de umas estátua arredondada. Vemos o destaque do braço, a modelação do rosto e do pescoço, as sombras profundas nas pregas flutuantes das vestes. Nada que se parecesse com isso tinha sido feito em mil anos. Giotto redescobrira a arte de criar a ilusão de profundidade numa superfície plana.‖53
53
GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 150.
64
Tal afirmação aplica-se a toda a série afrescos que o artista produziu na
Capella e que constitui sua fundamental contribuição para a pintura
renascentista. E esta contribuição pode ser facilmente notada na mesma Capella
na obra A Lamentação do Cristo da Figura 42. Uma distribuição e organização
das figuras no espaço e seu tratamento estrutural coloca novos ares na pintura
de parede. O modelado das figuras assim como a identificação das personagens
com figuras do povo, aproxima o espectador da realidade. Ao comparar o
trabalho do escultor Nicola Pisano com o de Giotto, Gombrich afirma que ―o
método de Giotto é completamente diferente. A pintura, para ele, é mais que um
substitutivo para a palavra escrita. Parecemos testemunhar o evento como se
estivesse sendo representado num palco‖.54
54 GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 152.
39. Giotto. Fé. C. 1306. Capella dell‘Arena. (Pádua-Itália). Fonte:
http://www.geocities.com
65
Com isso Gombrich indica que o caminho de Giotto é com uma ruptura
da bidimensionalidade para a teatralidade realista, pois era possível que seus
contemporâneos identificassem em seus personagens, homens do povo, isto é,
eles mesmos nos próprios acontecimentos das paredes da Capella. Para
Sevcenko
―temos aí o fato mais prenhe de conseqüências: ao definir o volume tridimensional de suas figuras, Giotto teve que desenvolver uma concepção mais nítida de espaço, dando um efeito de profundidade em suas composições. Rompia assim como tradicional fundo dourado, contra o qual as figuras góticas e bizantinas ficavam chapadas, o que eliminava a noção de espaço, reduzindo a figuração a um plano bidimensional e fechado. Essa nova concepção de espaço em profundidade, ou em perspectiva, será o eixo de a nova pintura praticamente até fins do século XIX‖.55
E não obstante os temas bíblicos e religiosos, tudo em Giotto é
moderno, no sentido de um anúncio por meio da pintura do tempus novum, a
perfeita idéia de que a natureza e a arte se pautam agora por uma descoberta do
novo, do mundano, do real. E este fato pictórico e parietal constitui a maior
55 SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. 4. ed. São Paulo: Atual; Campinas: Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 1986. p. 29.
40. Giotto. Lamentação do Cristo. (1304-1306). Capella dell‘Arena. (Pádua-Itália). Fonte:
66
herança que Giotto legou para as gerações futuras até o século XIX, pois é neste
momento que se anuncia uma outra ruptura, com o advento da máquina, da
tecnologia, de uma nova ciência, agora, na direção do que fora aquela concepção
de arte que nascera das mãos de Giotto de Bondone.
15. Grandes paredes na Renascença.
15.
Grandes paredes na Renascença. – Giotto legou uma nova
concepção de arte, fundamentalmente uma nova concepção de espaço e de
representação das figuras nesse mesmo espaço. Suas descobertas foram
posteriormente desenvolvidas e aprofundadas por inúmeros artistas que
estudaram as contribuições originárias de Giotto para a pintura parietal nos
séculos subseqüentes. Um dos artistas que destacamos aqui como representante
do Quatrocento é Masaccio (1401-1428). Dois de seus trabalhos demonstram
que as pesquisas de Giotto estavam em plena evolução e se consolidando cada
vez mais. Em 1427 Masaccio surpreende a todos com o afresco A Santíssima
41. Giotto. Adoração dos Reis Magos. (1304/ 1306). Cappella Scrovegni em Pádua (Itália). Fonte:
http://commons.wikimedia.org
67
Trindade na parede da Igreja de Santa Maria Novella. Nota-se que o trabalho do
artista nesse mural é resultado das lições tanto de Giotto quanto do arquiteto
Brunelleschi que teve participação efetiva na orientação de Masaccio quanto ao
trabalho e estudo da perspectiva no mural. Sabe-se que o arquiteto é um dos
responsáveis pelo desenvolvimento matemático da perspectiva junto com
Alberti. Assim
“as técnicas de perspectiva introduzidas por Duccio, Giotto e pelos mestres franco-flamengos, careciam de um acabamento mais rigoroso, já que nem todas as dimensões do espaço retratado se submetiam à mesma orientação de profundidade. Sua técnica foi por isso denominada de perspectiva intuitiva”.56
E nessa direção o mural de Masaccio traz inovações fundamentais para
a pintura, como a concepção espacial dada pela estrutura arquitetônica
provocada pela perspectiva, que gera uma tridimensionalidade impressionante
para a época. Era como se se abrisse diante do espectador um buraco na parede.
Gombrich diz que ―suas figuras, de fato, parecem estátuas. Foi esse efeito mais
do qualquer outra coisa, que Masaccio
intensificou pelo enquadramento em
perspectiva no qual suas figuras foram
colocadas.‖57 Além do caráter individual
das personagens que irrompem em realidade
junto aos seus contemporâneos, como no
caso dos doadores da obra, a Família
Lenzi.
56 SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. p. 30. 57 GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 173.
42. Masaccio. A Santíssima Trindade (1427). Igreja de Santa Maria Novella.
(Florença). Fonte: http://pt.wikipedia.org
68
Ainda mais surpreendente é também a Expulsão de Adão e Eva do
Paraíso (1427) das Figuras 43 e 44. Nesse afresco da Capela Brancacci Masaccio
apresenta a figura humana já em sua mais real expressão e lê-se os sentimentos
dos personagens de uma forma completamente humana. E cada vez mais o
sentido religioso aqui se afasta da interpretação medieval. O homem na sua
condição de indivíduo emerge da parede de Masaccio. Com isso se consolida a
nova experiência pictórica e parietal regida não mais por uma intuição espacial
e formal mas pelo controle racional da perspectiva e
dos modelados pelos efeitos de luz e sombra. E ainda
sob os auspícios da parede, a pintura em afresco sofrerá
um grande baque com a invenção do quadro em tela.
69
No Cinquecento ver-se-á a explosão criativa pelas mãos de Leonardo da
Vinci (1452-1519), Michelangelo (1475-1564) e Rafael (1483-1520). Sevcenko diz
que:
―A arte italiana atingiria seu auge com esses pintores, cujas obras passaram a servir como base para a identificação mesma do estilo renascentista, passando todos os seus antecessores a serem chamados de primitivos ou pré-renascentistas. Sua influência seria decisiva, impondo os caminhos de praticamente toda a arte ocidental até o início do século XX. Eles iriam incorporar todos os aperfeiçoamentos técnicos e descobertas formais que vinham se multiplicando desde Giotto e lhes dariam o acabamento mais cristalino, composto num estilo homogêneo, límpido e ao mesmo tempo denso e rico de significações que transcendiam, os próprios limites temáticos das suas obras.‖58
Dentre essas obras parietais destacamos A Última Ceia (1495-1497) de
Leonardo, O Juízo Final (1535-1541) de Michelangelo e A Escola de Atenas
(1509-1510) de Rafael. As três obras tem o sentido da demonstração mais bem
acabada do que o espírito renascentista foi capaz; logicamente, estas obras vêm
acompanhadas pela grandiosidade de uma série de outros trabalhos tanto na
escultura quanto na arquitetura. Leonardo da Vinci revela em A Última Ceia sua
vigorosa pesquisa da figura humana com suas tonalidades, nuanças, estudos
58 SEVCENKO, Nicolau. Op. Cit. p. 56.
43 /44. Masaccio. Adão e Eva expulsos do Paraíso. 1424. Capela Brancacci. (Florença). Fonte: http://pt.wikipedia.org
70
psicológicos dos personagens e domínio indiscutível da perspectiva; revelando
ao mundo sua magnífica técnica do chiaroscuro e do sfumato ―que banhava
todo o quadro de uma neblina suave e evocativa, atribuindo-lhe uma aura de
elevação e mistério‖.59
Michelangelo em seus embates com os Papas foi responsável pelos dois
mais importantes afrescos da Capela Sistina: o do teto e o de trás do altar, O
Juízo Final. Neste afresco Michelangelo revela uma das mais absurdas e
magníficas potências criativas diante da parede. O artista coloca toda a força de
seu espírito criativo interpretando a história bíblica de forma definitiva e
explorando todo o seu conhecimento da figura humana.
―Essas surpreendentes figuras exibem todo o domínio e mestria de Miguel Ângelo no desenho do corpo humano em qualquer posição e de qualquer ângulo. São jovens atletas com musculaturas maravilhosas, torcendo-se e voltando-se em todas as direções concebíveis, mas sem perderem nunca a elegância‖.60
59 Idem. p. 56. 60 GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 232.
45. Leonardo da Vinci. A Última Ceia. 1495-1498. Mosteriode Sta. Maria delle Grazie. (Milão). Fonte: http://pt.wikipedia.org
71
Por fim, o espetáculo de harmonia do mestre da composição, Rafael.
Não só em suas Madonas de que muito se falam, mas sobretudo pelo poder de
dispor as figuras num total domínio e elaboração espacial. Uma racionalização
em que se percebe a distribuição controlada de cada personagem criando um
todo harmônico e unitário a enlevar os olhos e o espírito. ―É por essa mestria
superlativa no arranjo de suas figuras, esse consumado talento em composição,
que os artistas têm desde então admirado Rafael‖.61 E em A Escola de Atenas
esse feito é apresentado de modo bastante prodigioso, pois Rafael demonstra
toda a técnica apurada e os ensinamentos que um artista da Renascença era
capaz de adquirir: Simetria, harmonia, composição rigidamente matemática,
jogos de cores, são expostos neste que é um dos maiores prodígios da pintura
renascentista.
61 GOMBRICH, E. H. Op. Cit. p. 232.
46. Michelangelo. O Juízo Final. 1534-1541. Detalhe da Capela Sistina. (Vaticano). Fonte: http://pt.wikipedia.org
72
Com isso os três maiores mestres da Renascença produziram o que
pode ser considerado a expressão mais plena da arte parietal, adensando de
forma magnífica toda uma prática de pintura em afresco dentro de condições
extremamente espetaculares, em que o desenvolvimento técnico dessa arte se
evidencia em toda sua potência e genialidade que a Renascença revelou.
16. Os tetos barrocos: o ocaso do afresco.
16.
Os tetos barrocos: o ocaso do afresco. – Consideramos neste
tópico a expressão o ocaso do afresco, estabelecendo um salto em nossa
abordagem, do Barroco para o século XX, e que tem sua razão de ser na
47. Rafael. A Escola de Atenas. 1509-1510. Stanza della Segnatura. (Vaticano). Fonte: http://www.dm.ufscar.br
73
mudança de predomínio técnico da pintura em afresco para a pintura de
cavalete. Evidentemente que a primeira não desaparece como técnica
importante, mas seu predomínio arrefece de forma significativa na história da
arte, e situamos seu ocaso no período do Barroco. Não mais se está diante do
drama artístico e humano que a Renascença produziu dos grandes gênios que
foram responsáveis pelas maiores expressões da arte de seu tempo elevados a
um patamar em que, o que se constrói posteriormente, deve àquele período
praticamente todas as possibilidades e conquistas que a pintura parietal legou
para as gerações seguintes até o século XX.62
No entanto, o período barroco é surpreendente demonstrando um
poder de criação significativo em termos de decoração parietal. Neste período, a
pintura de parede será acompanhada das pinturas de tetos, em que o
ilusionismo dessas pinturas em trompe l‟oeil terá grande força. Elas se destacam
também por sua execução em dois processos denominados de sistema de
quadratura, em função do teto ser dividido em zonas quadriculares e sua
execução em afresco se dar por meio de uma espécie de imitação de quadros; e o
quadri riportati que é o transporte de quadros em tela instalados nas
quadraturas. Esse processo também era composto de um sistema misto em que
se conjugavam os dois sistemas. Os artistas recorriam ―a uma armação
arquitetônica fingida, que parecia continuar a arquitetura real dos muros e
enquadrava as cenas prestando-lhes a aparência de marcadas pinturas de
cavalete.‖63 Foi por meio dessa técnica que Anibal Carracci (1560-1609), na
transição do maneirismo para o barroco, fim do século XVI e início do século
XVII, executou no teto do Palácio Farnese em Roma, uma série de afrescos. A
62 Ver nota 48. 63 Coleção História Geral da Arte. Pintura II. Et.Alli. Madri: Ediciones del Prado, 1996. p. 68.
74
Figura 48 nos mostra o afresco central do Palácio intitulado Triunfo de Baco e
Ariadne (1597/1609). E nessa direção os artistas barrocos explorarão tais
possibilidades de forma ampla.
Destacamos como artistas representantes das pinturas em afresco do
período barroco Pietro da Cortona (1596 - 1669), Guido Reni (1575-1642) e
Andrea Pozzo (1642-1709). Cortona foi responsável pelo afresco do Palácio
Barberini em Roma. O artista ―utilizou o sistema de quadratura no teto do
Grande Salão do Palácio Barberini, criando um entramado arquitetônico
ilusionístico que antecipa as soluções do pleno barroco‖64, e dando a este uma
das grandes contribuições para a pintura de tetos do período. Este artifício do
uso da arquitetura ampliada com o ilusionismo provocado pela pintura, é
determinante na expansão da religiosidade da Contra-Reforma. A pintura de
tetos ajuda a promover um retorno dos fiéis dispersos com a crise da Reforma
64 TRIADÓ, Juan-Ramon. Las claves del arte barroco: cómo identificarlo. 2. ed. Barcelona:
Planeta., 1989. p. 46.
48. Anibal Carraci. O Triunfo de Baco e Ariadne. (1597/1609). Detalhe. Palácio Farnese (Roma). Fonte:
http://spain.intofineart.com
75
Protestante. Nesse sentido a contribuição dos pintores é de grande importância.
E isto se expande em toda arte decorativa do período tanto em igrejas quanto
nos palácios, como podemos observar na Figura 49.
Segue-se a Cortona, o trabalho de Guido Reni que mantém a prática do
afresco de seu contemporâneo Cortona. Reni evidencia sua famosa sutileza no
tratamento de temas mitológicos e cerca seu afresco com uma moldura que
provoca um contraponto aos afrescos de tetos com predominância ilusionística.
Nota-se um característico classicismo em Reni fruto de suas pesquisas em
Roma e seus estudos da obra de Rafael e Caravaggio. Suas figuras são leves e
suas cores bastante alegres. Um de seus mais famosos afrescos Aurora, foi
pintado no Palácio Rospiglosi durante sua estadia em Roma.
49. Pietro da Cortona. Teinfo da Divina Providência. (1633/1639). Palácio Barberini (Roma). Fonte: http://www.sentieridelbarocco.it
50. GuidoReni. Aurora (1614). Palácio Rospiglosi (Roma).Fonte: http://utenti.romascuola.net
76
Por fim, Andréa Pozzo, pintor, arquiteto, docorador, Pozzo se
encarregou de decorar inúmeras igrejas barrocas e tornou-se mestre do
ilusionismo. Sua obra de maior destaque encontra-se na Igreja de Santo Inacio
em Roma, o afresco intitulado A Glória de Santo Inácio de Loyola da Figura 51.
Nesse afresco Pozzo revela toda sua técnica de trompe l‟oeil, em homenagem ao
fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola. O artista realiza aos olhos
do espectador a elevação do santo à sua maior glória. O embevecimento
provocado por esse afresco demonstra todo o poder de propaganda da arte à
serviço da religião católica. O espaço infinito criado por esse mecanismo é um
dos grandes feitos da pintura de teto do período barroco.
E com isso inferimos aqui, a condição de um fechamento de percurso, o
que percebemos emergir na história da arte como o ocaso do afresco. A idéia de
um ocaso pressupõe a afirmação de que após o período dos artistas barrocos,
que souberam magistralmente usar esta técnica de pintura parietal como forma
de expressão do movimento da Contra Reforma carreada, do ponto de vista
artístico-cultural pelos jesuítas, encerrou-se um ciclo da prática do afresco
considerada como a grande tradição do uso da parede desde os egípcios.
Portanto, a mais comum prática de pintura parietal de que se tem
conhecimento, cedeu seu predomínio à prática da pintura em tela ou pintura de
cavalete que irá cada vez mais predominar nos séculos seguintes, até o
surgimento do movimento dos muralistas mexicanos no século XX, que
recolocaram a prática tradicional dos murais em afresco como prática política.
Isto após um longo intervalo desde as grandes expressões parietais ocorridas no
Barroco. A parede entrará de novo em cena, num contexto não menos
convulsivo das questões políticas e sócioculturais de seu tempo.
77
17. O Século XX. Os muralistas mexicanos. A parede política I.
17.
O Século XX. Os muralistas mexicanos. A parede política I. –
No século XX emerge um influente episódio em termos de pintura parietal,
trata-se do movimento conhecido como muralismo mexicano que retoma a
técnica do afresco, tendo em vista sua dimensão propagandística dos valores
revolucionários instaurados no período da chamada Revolução Mexicana
ocorrida em 1910.
“No período pós-revolucionário (décadas de 1920 e 1930), temos um importante momento da história cultural mexicana, pois nessa época os muralistas constituíam o grupo mais atuante e criativo que formava a vanguarda cultural revolucionária do México, com forte sentido do valor social de sua arte.”65
65
CASTELANI, Gláucia Rodrigues. Murais Mexicanos: a arte para o povo. In: http://www.klepsidra.net
. Visitado em junho/ 2007.
51. Andréa Pozzo. A Glorificação de Santo Inácio de Loyola. (1691/1694). Igreja de santo Inácio (Roma). Fonte: http://www.romeartlover.i
78
Nesse momento a opção pelos murais em afresco teve sua contribuição
fundamental no processo revolucionário. Os principais expoentes desse
movimento foram: Diego Rivera (1886-1957), Davi Alfaro Siqueiros (1898-1974)
e José Clemente Orozco (1883-1949) conhecidos como ―Los Tres Grandes‖,
entre outros. O movimento teve seu apogeu com o governo do líder
revolucionário Álvaro Obregón em 1920.
―Muitos foram os motivos para o predomínio das artes visuais e a primazia cultural do muralismo. Podemos considerar que o primeiro está relacionado ao compromisso que tinha o filósofo revolucionário José Vasconcelos – nomeado por Obregón como presidente da Universidade e Ministro da Educação – com o chamado programa do mural.‖66
Desse modo, a tradição do muralismo que já havia sido praticada por
culturas pré-colombianas, foi retomado no México e isso teve influência na
formação dos estudantes mexicanos que nesse momento se opunham à
formação artística acadêmica; o muralismo foi elevado a arte nacional,
contribuindo para a redefinição das bases políticas e sociais no México. Os
prédios públicos foram completamente tomados pelos murais que carregavam a
força ideológica de uma arte para o povo, direcionada pelo Ministério da
Educação, mas não totalmente executada com o efeito do dirigismo que se
esperava, pois os artistas acabaram por criar seu próprio estilo ao mostrar os
temas por eles escolhidos. Mas é determinante o predomínio de uma temática
social e de um estilo que sofre influência do Trecento italiano (Giotto), das
vanguardas artísticas européias como o cubismo e expressionismo alemão. Os
muralistas instauraram uma nova visão sobre o próprio México e suas tradições.
É notória a retomada de aspectos da arte pré-colombiana além de temas que
expunham a vida dura do povo em suas mais diversas atividades, concretizando
66 CASTELANI, Gláucia Rodrigues. Op. Cit.. In: http://www.klepsidra.net. Visitado em junho de
2007
79
em arte, o compromisso desses artistas com as lutas sociais e políticas do
período. Segundo Dawn Ades "Os muralistas mexicanos produziram a mais
importante arte revolucionária, de sentido popular, ocorrida neste século, e a
influência deles em toda a América Latina tem sido contínua e de longo
alcance‖,67 o que contribuiu para a universalidade do movimento e sua
importância na história da arte, principalmente por seu papel político e social. O
movimento dos muralistas mexicanos tornou-se a nosso ver, o grande momento
de retomada da arte parietal no
século XX.
67 ADES, Dawn. Arte na América Latina: A Era Moderna 1820-1980, São Paulo, Cosac & Naify
Edições, 1997. p. 151.
52. Diego Rivera. A Água na evolução das espécies. (1951). Mural. Parque Chapultepec.
(Cidade do México). Fonte: http://www.klepsidra.net
53. Orozco. La trinchera (1923-27). Escuela Nacional Preparatoria, Ciudad. de México. Fonte:
http://www.academia.unach.mx
54. Siqueiros. La nueva democracia, (detalhe), 1944-45. Museo Nacional de Historia. Ciudad de México. Fonte:
http://www.klepsidra.net
80
81
18. Portinari: a parede política II.
18.
Portinari: a parede política II. – Cândido Portinari (1903-1962) é
um dos maiores representantes do uso da parede no Brasil. A menção ao seu
muralismo ganha aqui significado por estabelecer o diálogo com o muralismo
mexicano, ampliando sua visão política, social e crítica de nossa brasilidade.
Mário Pedrosa aponta a guinada de Portinari na direção do muralismo social:
―Com o afresco e a pintura mural moderna, a pintura marcha no sentido do curso histórico, isto é, na sua reintegração na grande arte totalitária, hierarquizada pela arquitetura, da sociedade socialista em gestação. Portinari já sente a força desta atração. Como se deu com Rivera, com a escola mexicana atual, aliás – a matéria social o espreita. A condição de sua genialidade está ali‖.68
Com essas palavras Pedrosa identifica uma outra trilha que o pintor
tomará, e este fato se tornará importante na produção de Portinari, pois a força
política e social de sua arte se revelará agora nas paredes por ele pintadas. E esta
é uma contribuição que situa o muralismo brasileiro num lugar fundamental na
tradição da arte parietal. O próprio Portinari afirma o lugar de importância que
as experiências da parede nesse momento têm, e a força sócio-política das
mesmas: ―A pintura atual procura o muro. O seu espírito é sempre um espírito
de classe em luta. Estou com os que acham que não há arte neutra. Mesmo sem
nenhuma intenção do pintor, o quadro indica sempre um sentido social‖.69
Portinari coloca a relevância de uma arte de sentido social e que toma partido
das paredes como suporte privilegiado. Isto é amplamente concretizado nos
68 PEDROSA, Mário. Impressões de Portinari. Diário da Noite, São Paulo, 7 dez. 1934. In:
FABRIS, Annateresa. Portinari e a arte social. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXI, n. 2, p. 79-103, dezembro 2005.
69 ―Portinari paulista de Brodowski, vae (sic) mostrar a S. Paulo seus últimos trabalhos‖. Folha da Noite. São Paulo. 20 nov. 1934. Vide também: ―Exposição de Pintura Cândido Portinari‖. Diário de S. Paulo. 21 de nov. 1934. In: FABRIS, Annateresa. Portinari e a arte social. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXI, n. 2, p. 79-103, dezembro 2005.
82
murais dos ciclos econômicos executados para o Ministério da Educação e
Saúde Pública no Rio de Janeiro, como exemplo de trabalho parietal.
Nesses afrescos Portinari tratou dos ciclos econômicos no Braisl. Um
trabalho que mesmo tendo sido encomendado pelo Estado brasileiro não evitou
que Portinari manifestasse sua crítica social por meio da figura do trabalhador
que, em última análise, é o tema central dos afrescos. Annateresa Fabris inicia
seu ensaio Portinari e a arte social dizendo que:
―No conjunto dos ‗ciclos econômicos‘ (Ministério da Educação e Saúde), Portinari demonstra como é possível ‗narrar uma história‘ sem aderir à visão oficial. E sim apresentando uma visão crítica da sociedade brasileira a partir de um tema nuclear como o trabalho‖.
55. Cândido Portinari. .Afrescos Ciclos Econômicos – Pau-brasil, Cana-de-açúcar, Gado, Algodão, Erva-mate, Café. Salão de Audiências. 1938. Fonte:
http://www.vitruvius.com.br
83
Isto evidencia o tratamento dispensado por Portinari nesses afrescos
em que foge do realismo simples para formular novos valores na construção do
espaço e das figuras. O pintor trabalha na direção da crítica social, no entanto,
sua pesquisa revela os valores plásticos que afirmam sua arte não como um
panfleto político mas uma espécie de práxis artística em si. A força escultórica
de suas figuras ganham intensidade nos gestos do trabalhador. E nesses afrescos
―O pintor situa em cada cena poucas figuras gigantescas, cuja volumetria evoca a estatuária, confere-lhes uma gestualidade estática e essencial, confiando o efeito de dinamismo a um jogo de correspondências psicológicas; despoja quase todas as fisionomias de traços característicos, construindo os rostos por planos e formas geométricas; racionaliza ao extremo o espaço; articula a temporalidade da ação em vários momentos significativos, embora imobilizados como na maior parte das obras, de uma de suas fontes visuais indiscutível, Piero Della Francesca.70
Essas caracterizações dos afrescos dos ‗ciclos econômicos‘ destacadas
por Fabris, demonstra que o pintor investe energia e criatividade numa das mais
incisivas leituras das condições de vida do trabalhador brasileiro, ajudando a
construir uma visão mais crítica da sociedade brasileira. Dessa forma o pintor
de Brodósqui se tornou um dos grandes representantes, senão o maior, do uso
da parede no Brasil, permitindo que se olhasse a vida do povo, calcada numa
tradição muralista, a exemplo dos muralistas mexicanos, de denúncia, crítica
social e valores plásticos fundamentais para a história da arte brasileira.
70
FABRIS, Annateresa. Portinari e a arte social. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXI, n. 2, p. 79-103, dezembro 2005.
56. Cândido Portinari. Afrescos Ciclos Econômicos – Cacau, Ouro, Fumo, Ferro, Borracha, Carnaúba. Salão de Audiências. 1938. Fonte:
http://www.vitruvius.com.br
84
19. Maio de 68. O nascimento da pixação.
19.
Maio de 68. O nascimento da pixação. – Além dos muralistas mexicanos,
o século XX também ficou marcado por um dos momentos históricos chaves no
aparecimento de práticas que deflagraram experiências políticas com
características artísticas e estéticas, e que em seu bojo trouxe à tona, a prática da
pixação como intervenção política e cultural: o Maio de 68 na França.
“A revolta dos estudantes em praticamente todos os países do mundo – entre eles o Brasil – resultaria num profundo questionamento da política tradicional, dos costumes, do autoritarismo, e introduziria no cotidiano valores como pacifismo, feminismo, ecologia, contracultura, música de protesto, som pop e drogas. Como poucas vezes aconteceu no passado, o mundo mudou radicalmente no espaço de um ano.”71
O levante estudantil e revolucionário desse episódio, por conta do
modelo educacional passadista francês e todas as condições de subjugação a que
71 ZAPPA, Regina e SOTO, Ernesto. In: Jornal do Brasil. Caderno B Especial. 1968 O Ano
Radical. Maio de 1998. p. 1.
85
os estudantes da Universidade de Nanterre estavam submetidos, explodiram em
contestação e confronto com o aparelho repressor estatal na época. Como
afirma Olgária Matos:
“os estudantes não pretendem adaptar a universidade à vida moderna, mas recusam-se à vida burguesa, medíocre, reprimida, opressiva; eles não se interessariam pela carreira; pelo contrário, desprezavam as carreiras de quadros técnicos que os esperavam; eles não procuravam se integrar o mais rapidamente possível na vida adulta, mas representavam sua contestação radica”.72
Os levantes estudantis evidenciaram diversas formas de expressão
fundamentais para a constituição dos fatos. Este momento histórico em nosso
estudo tem apenas o sentido de colocá-lo como pano de fundo de práticas e
ações que a nosso ver, deram um sentido radical ao ativismo estudantil da
época, e a uma postura artística e estética subjacente a estas práticas, que
influenciarão o desenvolvimento do grafite e da pixação na década de 70,
produzindo um espaço marginal que comportaria novas formas de intervenção
artística e estética: o nascimento da margem. Com isso as razões históricas,
políticas e sociais não serão aprofundadas, visto que nos deteremos em
demonstrar o arsenal que compôs as ações e deram visibilidade ao movimento,
afirmando um estado de transgressão e insubmissão latente nas ruas de Paris e
de outras cidades pelo mundo. As experimentações estéticas do período estavam
intrinsecamente imbricadas a uma práxis política e contestatória, em que os
elementos formais se conjugam para compor um discurso e um comportamento
atravessado por diversos sentidos, ao mesmo tempo em que manifestavam
desejos que se espalhavam com os ventos da mudança. Os estudantes se
valeram de toda a possibilidade de ―mídia‖, para descerrar sua fúria contra o
Estado e criar uma estratégia antimídia como menciona Jean Baudrillard: ―As
72 MATOS, Olgária C. F. Paris 1968: as barricadas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense,
1989. (Col. Tudo é História).
86
inscrições e afrescos de Nanterre, exemplificavam muito bem essa reversão do
muro como significante da quadrilhagem terrorista e funcional do espaço,
através de uma ação antimíddia‖.73 Os cartazes ocuparam um lugar relevante.
Ganharam o papel de instrumentos viabilizadores das mensagens políticas nas
mãos de estudantes e trabalhadores. Tornaram-se, aos moldes do que ocorrera
na Revolução Russa em 1917, verdadeiras obras de arte, sendo organizados em
exposições anos mais tarde, como a que ocorreu na Galeria Sargadelos do Porto
em Portugal em 2006.74 Foram colados nas salas e corredores das
universidades, nas ruas, nos muros, onde era possível sua visibilidade. Criados
espontaneamente a pincel ou serigrafia e litografia, invadiram todos os meios
contribuindo para formar a própria textura do campo de batalha em que Paris
se tornou. Mesmo que a princípio fossem apenas veículos de protesto em que
havia um predomínio de palavras de ordem, num dado momento foram
ganhando um senso estético mais apurado de perfil irônico e agressivo nas
próprias palavras. Paulo Knauss evidencia a contribuição do Maio de 68 para as
práticas artísticas urbanas no Brasil dizendo que
“os movimentos do maio de 68 em Paris também tiveram sua importância na história da imaginária urbana no fim dos anos 60. Isso especialmente após a formação dos Ateliês de Cultura Popular que disponibilizou nas ruas a técnica do silk-screen ou serigrafia cobrindo a cidade em poucos dias com cartazes que promoviam a defesa de mudanças sociais. Os cartazes de cores básicas, por vezes, caracterizavam-se pela utilização do código verbal e visual, combinados ou isolados”. 75
E é interessante mencionar que a criatividade não foi um problema que
se impusesse, ao contrário, as frases estavam recheadas de cinismo e
agressividade latentes: “A vontade geral contra a vontade do General”.(De
73 BAUDRILLARD, Jean.“Kool Killer ou A Insurreição Pelos Signos.” Revista Cine Olho nº 5/6
jun/jul/ago 1979. p. 38. Este texto encontra-se também em rizoma.net. 74 In: http://galeriasargadelosporto.blogspot.com . Visitado em junho/ 2007. 75 KNAUSS, Paulo. Grafite Urbano Contemporâneo. In: TORRES, Sonia. (Org.). Raízes e
rumos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2001. p. 334.
87
Gaulle). “Abram o vosso cérebro tantas vezes como a braguilha”. “O álcool
mata. Tomem LSD”. “A Humanidade só será feliz quando o último capitalista
for enforcado com as tripas do último esquerdista”. “Quanto mais faço amor,
mais vontade tenho de fazer a Revolução. Quanto mais faço a Revolução, mais
vontade tenho de fazer amor”.76 Essas são algumas pérolas criadas no clima
revolucionário naquele ano e tornaram-se armas fundamentais no processo de
intervenção das revoltas em curso, compondo o arsenal guerrilheiro no
confronto com os poderes repressores.
No caso específico da pixação, ela estava articulada com os cartazes, as
faixas, os desenhos, paus, pedras, coquetel molotov etc., reveladores do lugar do
ativismo em cena. O professor Voltaire Schilling afirma sobre 1968:
“assemelhou-se aquele ano aloucado a um caleidoscópio, para qualquer lado que se girasse novas formas e novas expressões (grifo nosso) vinham à luz. Foi uma espécie de fissão nuclear espontânea que abalou as instituições e regimes. Uma revolução que não se socorreu de tiros e bombas, mas da pichação, (grifo nosso)
76 In: http://www.dhnet.org.br/desejos/revoluc/mai68slg.htm. Visitado em julho/ 2007.
57. Criação de cartazes durante o período das contestações no Maio de 68. Fonte: http://pt.wikipedia.org
88
das pedradas, das reuniões de massa, do alto-falante e de muita irreverência. Tudo o que parecia sólido desmanchou-se no ar.”77
E destacamos na fala de Schilling as expressões acima, para enfatizar a
condição artística e estética que se evidencia por trás dos termos usados. É uma
clara identificação do papel das práticas de intervenção com sentido político,
mas ao mesmo tempo definem uma atitude estética incontestável manifestada
nos elementos que formam a totalidade da atitude estética em si: pichação,
pedradas, alto-falante etc. Podemos considerar que aqui se trata da
constituição de uma arte engajada, mas não isoladamente, pois seu processo
tem como diretriz o confronto com uma institucionalidade ou com uma ação
repressora pelo Estado. Desse modo, a experiência da pixação tem sua
insurgência numa liga radicalmente política em que sua verve intervencionista
está a serviço dos movimentos de resistência aos sistemas ditatoriais que
explodiram nessa década e se desenvolveram na década seguinte.
O aparecimento da pixação caracteriza-se pela inscrição livre por meio
de spray, piche ou qualquer tipo de tinta. No geral são palavras de ordem
escritas diretamente nos muros das cidades, o que gera um dado estético crucial
para as atividades do grafite e da pixação que viriam ocorrer em Nova York na
década seguinte: a escrita e os signos instaurados como transgressão do espaço
institucional que eram representados pelas instituições. José Carlos Capinam
escritor, poeta e letrista que participou do movimento de 68 no Brasil diz: ―há
uma exagerada presença do institucional no cotidiano que não dá conta do
desejo, que é subversivo por natureza. Ao mesmo tempo, há todo um mundo
77 SCHILLING, Voltaire. 1968: Contestação e contracultura. In: http://educaterra.terra.com.br. Visitado em julho/ 2007.
89
periférico com outros impulsos que não quer ficar na camisa de força.‖78 E
assim se descobriu aos poucos que qualquer espaço que representasse o poder
repressor ou as instituições do Estado seria o alvo mais adequado para as
intervenções. A cidade passou a ser esse espaço passível de interferência.
Descobriu-se a potência da cidade como suporte da ação política, artística e
estética, num confronto de vozes resistindo a todo tipo de discurso e mecanismo
de controle às práticas de liberdade.
Nascia, assim, de um modo mais pleno, a pixação como deflagradora e
intensificadora do próprio espaço visual da cidade, influenciando e constituindo
esse mesmo espaço,
instaurando uma nova
prática
estética, artística, radical. Essa
prática perfurou os sistemas e
viabilizou as ações de uso do
próprio corpo da cidade como
suporte.
78 In: Jornal do Brasil. Caderno B Especial. 1968 O Ano Radical. Maio de 1998. p. 6.
58. Pixação num muro de Paris. “Gozem sem entraves”. Fonte:
http://pt.wikipedia.org
59. Pixação no Centro do Rio de Janeiro/ Brasil. Fonte:
http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br
60. Pixações e cartazes do Maio de 68. Fonte: http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br
90
20. Epílogo.I
20.
Epílogo.I – Nesse através da história da arte, pudemos encontrar
diversas maneiras com que a parede foi tratada no decorrer dos processos de
criação em cada período. O foco desse capítulo não foi analisar as formas e
estilos isoladamente, embora não tenhamos nos furtado a tal em alguns
percursos, mas colocar em evidência a parede como um suporte privilegiado na
91
tradição da arte parietal desde seu momento originário, a pré-história, e sua
conexão com o objeto de nosso estudo, a pixação. E daquilo que indicamos no
caminho proposto, percorremos alguns momentos importantes da arte parietal
para atingir a manifestação da pixação como um ponto de chegada no
contemporâneo; abrindo, assim, sua manifestação na história da formação das
intervenções urbanas, assinalando o sentido deste estudo.
CAPÍTULO II: A PIXAÇÃO E SUA DIMENSÃO ESTÉTICA
CAPÍTULO II
A PIXAÇÃO E SUA DIMENSÃO ESTÉTICA
“Este pequeno livro é uma grande declaração de guerra; e quanto a surpreender os segredos dos ídolos, desta vez não são mais os deuses em voga, mas ídolos eternos que são aqui tocados pelo martelo como se faria com um diapasão – não há, em última análise, ídolos mais antigos, mais persuasivos, mais inflados... não há mais ocos também. O que não impede que sejam aqueles em que se crê mais; e não são, mesmo nos casos mais nobres chamados de ídolos...” F. NIETZSCHE. In: Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo.
92
1. Dos sentidos da arte: Filosofia da Arte e Estética.
1.
Dos sentidos da arte: Filosofia da Arte e Estética. - Do ponto
de vista de suas formulações e definições teóricas a arte é da ordem do
arbitrário, na medida em que as definições estéticas imputadas a ela não
abarcam todas as suas possibilidades intrínsecas e suas dimensões reais. As
definições que buscam enredar os fenômenos artísticos têm a virtude de torná-
los o mais inteligível possível para enriquecer sua existência na história,
contudo, o modo de concebê-la sofre transformações constantes, daí o
surgimento de inúmeras teorias estéticas na História da Filosofia.
Com isso, definir uma determinada prática como arte é apontar sua
força incomunicativa, seus sentidos estéticos subjacentes e suas possíveis
caracterizações tecno-formais, que revelam as condições existenciais dos
sujeitos que as produziram num dado momento histórico e, ao mesmo tempo,
dotá-la de uma complexidade de sentidos fundamentais para a experiência da
realidade. As inúmeras atividades humanas se desenvolvem atingindo diversas
formas de manifestação e, por conseguinte, interpretações, como se dá com a
pixação, objeto deste estudo.
Neste caso específico, inserimos a pixação num quadro teórico que
suporta suas estranhezas e definições, na medida em que há um afastamento
fundamental entre a tradicional idéia de arte manifestada na história da estética
normativa e as condições efetivas que lhe definem seu ser arte reivindicado
neste estudo. Assim, tomamos a pixação e a definimos em bases filosóficas
deslocando-a para um corpus teórico que a lê desde seu lugar de experiência
artística e estética. Isto evidencia a prática histórica originária nos filósofos
gregos que se debruçaram sobre os fenômenos que foram denominados por eles
93
de arte, prática esta que juntamente com a filosofia e a ciência formam a base de
todo conhecimento humano. Vale ressaltar que as teorias da arte geraram um
acúmulo de definições e questões que caracterizaram uma específica Filosofia
da Arte. Contudo, no século XVIII o filósofo Alexander G. Baumgarten propôs o
termo Estética caracterizando assim a disciplina filosófica que trata dos
problemas da arte, não obstante ainda ser relegado, tal conhecimento, a uma
condição inferior à filosofia em geral.79 Só mais tarde com Kant e sua Crítica do
Juízo a Estética ganharia autonomia de disciplina filosófica tão importante para
o conhecimento quanto a Ética, a Epistemologia, a Lógica etc. Assim, a História
da Estética está permeada por teorias que desde Platão ao contemporâneo,
ampliaram e aprofundaram o modo como os filósofos perceberam o fenômeno
da arte na história. E essas teorias legaram questões que, deslocadas no tempo
histórico, permitem um re-olhar sobre determinadas práticas passíveis de
experimentação teórico-filosóficas que acedem à compreensão de sua inserção
no plano tanto da Estética quanto da História da Arte, portanto,
correspondendo a uma definição de arte plausível e lógica do que cabe a
conceituação em curso.
Nessa direção, lançamos mão, não de uma teoria propriamente dita,
mas de uma série de reflexões produzidas pelo filósofo, músico e poeta Friedrich
Nietzsche para dar ao objeto deste estudo as condições de ser lido como um tipo
de arte na contemporaneidade.
79 Baumgarten afirma nos Prolegomenos de sua Estética: ―A Estética (como teoria das artes
liberais, como gnoseologia inferior, como arte de pensar de modo belo, como arte do análogon da razão) é a ciência do conhecimento sensitivo‖. In: DUARTE, Rodrigo. O belo autônomo: os textos clássicos da estética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. p. 75.
94
2. Nietzsche: uma máquina de guerra.
2.
Nietzsche: uma máquina de guerra.80 – O quadro teórico ao
qual submetemos a pixação tem como base fundamental o pensamento do
filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). E duas obras do filósofo
predominam no processo de construção das questões conceituais acerca do
objeto: O Nascimento da Tragédia (1872) e O Crepúsculo dos Ídolos (1888). Não
obstante Nietzsche referir-se à arte em inúmeras de suas obras, é nestas duas
que seu olhar de guerrilheiro afirma-se de modo tão intenso e quiçá violento.
Mesmo sob os auspícios da metafísica de Schoppenhauer, Nietzsche faz
funcionar uma posição aguerrida nesse momento de sua primeira reflexão
filosófica importante. Em Crepúsculo dos Ídolos, obra bem mais distante da
primeira, Nietzsche ergue-se imponente como uma máquina de guerra ele
próprio, a disparar seus dardos venenosos contra a miséria do conhecimento e
da existência. Uma peculiar petulância que deixa marcas a quem por acaso
deixa-se perder nas trilhas abertas por esse pensamento. Nietzsche diz: ―Nada
triunfa a menos que a petulância tenha sua participação‖.81 Sua ousadia e
coragem se fazem sentir em cada percurso das trilhas. E o tomamos aqui como
máquina de guerra por entender que o objeto deste estudo solicita um lugar
teórico de dimensões bélicas, posicionado num fora, em se tratando de pensar
um outro lugar para a pixação. Assim, as indicações estético-filosóficas que 80 Expressão tirada de DELEUZE. G. & GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. 81
NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 7.
95
investem o objeto da condição de ser arte funcionam como um arsenal, em que
suas armas são selecionadas segundo a potência de seus disparos. Ao mesmo
tempo em que ressoam as condições do acontecimento histórico da pixação
posto que a máquina de guerra nos permite pensá-la de um certo lugar
estratégico, na medida em que a própria natureza primeva da pixação stricto
sensu, nasce nos conflitos do Maio de 68 e, ao mesmo tempo, como prática de
resistência e instrumento de confronto com os poderes constituídos nas lutas e
rebeliões daquela época como ficou evidente na primeira parte deste estudo. De
outro modo é estratégico pelo fato de sua prática atravessar movimentos de
contestações sociais e políticas caracterizando guerrilhas urbanas e não como
manifestação artística em si. Cabe pois, mencionar, que os movimentos
artísticos do início do século XX foram denominados de vanguarda (avant
garde), termo caro ao vocabulário militar, caracterizando aqueles que vão à
frente desbravando um dado território. Portanto, estavam imbuídos de um
espírito guerrilheiro nas suas estratégias e práticas artísticas e estéticas. E nada
mais propício à abordagem da pixação do que essa dimensão guerrilheira e
belicista que marca sua condição histórica.
Assim, a máquina de guerra é dimensionada na figura de Nietzsche,
ora solitário em sua bravura, ora acompanhado de parceiros de luta. Os gritos e
as palavras de ordem desse comandante ecoam na cena contemporânea,
convocando os pixadores para fazer pulsar os espaços. A voz do filósofo ou
mesmo sua sombra82 estão ali presentes nas cenas intervencionistas a localizar o
objeto num certo lugar estético dotando sua natureza da condição de ser arte.
Daí o sentido da máquina de guerra tornar-se essencial neste estudo, posto que
não só a voz de Nietzsche ecoa no tempo deste estudo, mas todas as falas 82 Alusão ao livro de Nietzsche O Filósofo e sua Sombra.
96
possíveis que dialogam com ele e que de algum modo são encontrados num
trecho qualquer dos confrontos.
97
3. Nietzsche: das trilhas.
3.
Nietzsche: das trilhas. - Aliamo-nos neste instante que chega ao
pensamento de Nietzsche. Pensamento explosivo que abre trilhas tortuosas
sobre o fazer artístico desde o final do século XIX. Justificando aquele sentido
que o filósofo mencionara em sua Tentativa de Autocrítica ao referir-se sobre
seu primeiro livro O Nascimento da Tragédia: ―mas que como seu efeito
demonstrou e demonstra, deve outrossim saber muito bem como procurar seus
co-entusiastas e atraí-los a novas trilhas83 ocultas e locais de dança‖.84 Trilhas
que se abrem criando perplexidade neste que se põe a tecer um pensamento
artístico e estético sobre a pixação. Entramos assim na floresta nietzscheana,
espessa, carregando nas costas, como Zaratustra, nosso cadáver-objeto até
encontrar uma árvore oca para colocá-lo, e depois descansar no musgo e
adormecer com o corpo cansado, mas a alma tranqüila.85 Ao percorrer as trilhas
abismais, descobrimos também o martelo86 de Nietzsche, propício para o
enfrentamento das batalha atrozes que nos atormentam o espírito. E certos de
sermos surpreendidos pelo que pode ser encontrado como o lugar da arte nesse
pensamento, tomamos sua trilha aberta e fragmentária, ofertada como travessia
para territórios inóspitos; e assim procedendo, todas as paradas são possíveis:
recuos, quedas, desvios, repetições, contradições, encontrando os tons e semi-
tons que esse pensamento sugere. E à medida em que adentramos a trilha:
83 Grifo nosso. 84
NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. §1. p. 27.
85 NIETSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. p. 38/39. 86 Menção ao título de Crepúsculo dos Ídolos ou A Filosofia a Golpes de Martelo.
98
bifurcações, mãos duplas, terrenos acidentados ativando a vida do objeto a nos
perder sempre mais, necessariamente mais, como numa paisagem becketiana:
―Em diante. Dizer em diante. Ser dito em diante. Dalgum modo em diante. Até de modo nenhum em diante. Dito de modo nenhum em diante. Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito. Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Mover-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado.‖87
Nesse através das trilhas que se precipitam a nossa frente, descobrir
o que nos cabe. Dispersivo, ativo, mas em diante.
E eis que os umbrais de O Nascimento da Tragédia surgem à nossa
frente. Fala Nietzsche:
―Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte88 está ligado a duplicidade do apolíneo e do dionisíaco.‖89
Abre-se o tempo da sugestão: uma introvisão que nos precipita no
fosso mítico em que os dois impulsos artísticos surgem numa luta aberta entre
si, a nos revelar o campo experimental que se tece atrás de si quando do seu
propício acontecimento a revestir o objeto com cores e matizes intensos a
assolar a retina. Ora luz, ora trevas. Claridade e escuridão. Apolo e Dionísio. O
objeto por nós visado neste estudo se veste da condição de possibilidade de ser
expressão artística genuína no tempo do acontecimento contemporâneo que o
recorta. Aqui a pixação se firma como esse contínuo desenvolvimento do que
outrora foi a arte parietal, em que sua aparição investiu nosso objeto com sua
memória atávica revelando-se em seu pleno fascínio do que supõe sua
expressividade matérica: tags e pixos como cargas explosivas.
87 BECKETT, Samuel. PIORAVANTE MARCHE (WORSTWARD HO). In: Últimos Trabalhos de
Samuel Beckett. CARDOSO, De Miguel Esteves. (Trad.). Lisboa: O Independente Assírio e Alvim. 1996. p.7.
88 Grifo nosso. 89 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. § 1. p. 27.
99
Com os impulsos artísticos nas figuras de Apolo e Dioniso, Nietzsche
cria um novo espaço para o pensamento da arte numa moldura de brilho
estranho, pois há tempos o pensamento tinha sido acometido de uma
sistematização lógica, herdeira da racionalidade socrático-platônica e anti-
poética, afinal, Platão já havia expulsado os poetas de sua República. Mas
Nietzsche instaura um diferencial: foca na relação que os gregos estabeleceram
com seus deuses olímpicos. É dessa experiência que o filósofo toma a arte,
especialmente a música, para mostrar o papel que esta irá desempenhar na
tragédia grega afirmando que só por ela o homem atinge a plenitude de sua
relação com o Absoluto afirmado, nesse momento, a partir do conceito de
Vontade em Schoppenhauer, aquele que foi sua influência inicial.90 E a
metafísica de artista de Nietzsche nos leva a um re-olhar a experiência da arte,
ao mesmo tempo em que postula uma crítica ao racionalismo estético, que tem
na figura de Sócrates sua referência central; e de um modo novo não só para o
século XIX como para o tempo que virá.
―É o processo de superação de um logocentrismo dogmático do princípio da razão que, sob o sopro do daimon socrático e cientificista, exilou o ser humano no fenomenal, desligando-o de sua relação com o seu outro ser, o das profundezas de sua natureza‖.91
E o caminho proposto da condição desse ser está fundamentalmente
marcado pela afirmação de Nietzsche quanto à função da música na tragédia,
mas ao mesmo tempo permitindo conexões diversas com as artes plásticas, o
teatro e a poesia. É esse olhar, essencialmente de artista, que torna a reflexão de
Nietzsche fascinante; misto de filósofo-artista-músico a produzir a densidade de
90 O livro de Schoppenhauer O Mundo como Vontade e Representação teve grande influência no
pensamento filosófico do jovem Nietzsche expressado em O Nascimento da Tragédia. 91 GUINSBURG, J. Nietzsche no teatro. In: NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da
Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 155.
100
um pensamento que atiramos na direção da pixação. Eis nossa explícita
identidade com ele. E Rimbaud reitera:
―O poeta se faz vidente através de um longo, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos‖.92
Inflama-se em Nietzsche aquela ambigüidade de um calculado
desregramento em suas felizes explosões de sentidos da arte, instaurando com
seu arguto olhar uma espécie de vidência a ampliar as possibilidades de
encontro com as experiências artísticas.
Apolo e Dioniso são a referência dual da origem da arte: as artes plásticas como
sendo as artes apolíneas e a música como sendo arte dionisíaca.
―Ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente em produções sempre novas,93 para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum ‗arte‘ lançava apenas aparentemente a ponte‖;94
É a luta dos impulsos contrários gerando produções sempre novas. E
a pixação, como experiência que adensa o cotidiano das cidades, reinventa os
espaços possíveis em que sua manifestação se instaura, posicionada como um
tipo de arte. Assenta-se aqui uma necessidade de pensar nosso objeto de
reflexão que o ligamos ao pensamento de Nietzsche, pois
―independente das vinculações factuais-históricas de sua interpretação da tragédia grega, abre, por seu intermédio, o espaço da interação concreta entre o visível e o invisível e restabelece, ao nível das culturas de nosso tempo, a necessidade de sondá-lo como experiência não apenas intelectual, porém como vivência sensível para um real conhecimento do humano.‖ 95
E tendo em vista esta dimensão da filosofia nietzscheana é que
entendemos a manifestação da pixação como uma arte da contemporaneidade.
92 RIMBAUD, Arthur. Carta do Vidente. In: Jornal Radical. Ano IV, Maio/2000. p. 9. 93
Grifo nosso. 94 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. §1. p. 27. 95 GUINSBURG, J. Nietzsche no teatro. In: NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da
Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 156/157.
101
Num primeiro momento, Nietzsche apresenta ambos os impulsos
artísticos separados, caracterizados pelo sonho e a embriaguez, e infere uma
contraposição correspondente entre ambos. Num segundo momento, ocorrerá a
conjugação de ambos os impulsos criando uma densidade maior nas expressões
artísticas, pois aqui se revela aquela luta entre os contrários na arte, um espaço,
tomado do lugar de sua construção agônica e misteriosa nos confins da mente
em estado de dormência. E vozes, e luzes, e escuridão e outra vez o que se quer
ver de maravilhoso que logo ali não está, pois que é preciso tomar o barco de
Apolo e deixar os desenhos na água envolver-nos com sua deformidade e beleza
que logo virão a ser como os desenhos na cidade, os signos em profusão; ou
como manchas de óleo que se espalham tornando a água incompreensível. E ao
descer do barco tomar o carro de Dionísio que vem para nos levar para
recônditos lugares de prazer e tensão. Logo ali à frente está o barco ancorado
com suas amarras puídas à espera dos que virão. Tomemo-lo.
102
4. O barco de Apolo.
4.
O barco de Apolo.96 - Para Nietzsche, os gregos puderam suportar a
sabedoria que batia à sua porta saída da boca de Sileno.97 A arte nesse momento
para os gregos é uma possibilidade de suportar a tragicidade da vida. O destino
final, a moira que se anuncia. A aparência colocava em suspensão os ditames do
cotidiano, aliviava, remetendo a estados outros para que se pudesse viver em
equilíbrio: condição apolínea de sobrevivência. Daí a arte como antídoto para a
vida. A tragédia grega de um certo modo respondia a essa condição de alívio
induzindo a um estado de bem-estar em que o espectador se instalava. Pois à
sua frente toda a fragilidade e tragicidade da vida se erguiam. As vivências dos
personagens atiravam-no para lugares diversos em que o impacto de suas
atribulações eram velados. Embaçava por um tempo determinado o estar diante
do fatídico, do trágico. Daí a recorrência à bela aparência: ―Na mais elevada
96 ―Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda
vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]‖. In: NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 30.
97 ―Reza a antiga lenda que o Rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companeiro de Dionísio. Quando, por fim veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor parati é logo morrer‖. In: NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J. Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 36.
103
existência dessa realidade onírica temos ainda, todavia, a transluzente sensação
de sua aparência‖.98
Nietzsche nos empurra para o mundo dos sonhos de onde surgem as
mais absurdas e belas construções imagéticas a excitar-nos e invadir o solo da
consciência com suas texturas e formas, pois no sonho há a experiência de todo
tipo de imagem, não só as agradáveis quanto as sombrias e podemos situar
todas as experiências, incluso a pixação, nessa manifestação, já que ela também
se revela como configuração explosiva de imagens oníricas. ―São fatos que
prestam testemunho preciso de que nosso ser mais íntimo, o fundo comum a
todos nós, colhe no mundo do sonho uma experiência de profundo prazer e
jubilosa necessidade‖.99 Responde a uma ordem sensória daqueles que dançam
na noite nas vielas tortuosas das cidades. Assim ocorre que o estado do sonho é
o que permite e antecipa a construção ou passagem do mundo da fantasia, do
imaginário, ao plástico, ao poético como efetivo engendramento de imagens as
mais diversas possíveis. É o que nos leva ao ser poético com suas maravilhas
estranhas até o ponto em que tudo é possível nesse lugar. O desdobrar-se da
matéria na arte é o vento que sopra dos sonhos, e Apolo, o deus da luz (o
resplendente), é responsável pela bela aparência do mundo. Uma configuração
imagética que nos dá as condições de tranqüilidade e calmaria. Inserindo-nos
num mundo equilibrado em que nossos tormentos são dirimidos para
experimentarmos o prazer da vida em imagens oníricas.
A experiência onírica é um dado disparador da experiência artística,
diria Nietzsche, uma ―realidade‖ gestada nesse estado que transforma todo ser
humano em artista. ―A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção
98 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 28 99 Idem. p. 29.
104
cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte
plástica, mas também, como veremos, de uma importante parte da poesia‖.100
Essa precondição intensifica-se na experiência da criação de imagens, assim
como de intervenções que pululam no espaço das cidades; intensidade de um
estado em que se revelam todo tipo de imagens:
―as sérias, sombrias, tristes, escuras, as súbitas, inibições, as zombarias do acaso, as inquietas expectativas, em suma, toda a ‗divina comédia‘ da vida, com seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de sombras – pois a pessoa vive e sofre com tais cenas – mas tampouco sem aquela fugaz sensação de aparência‖.101
Assim a condição do ser artista é a afirmação da aparência, enquanto
esta permite suportar o peso da vida. E esta é ―digna de ser vivida‖ na medida
em que pela aparência do mundo somos sustentados. Mas não há fugacidade
nessa aparência, pois que ela é um dado do real e revelação do mundo. A bela
aparência aqui se expande para um sentido diferenciado, na medida em que não
se trata da referência aos princípios clássicos do kalokagathia (ser belo e bom)
platônico, daquilo que agrada ver e ouvir.102 Assim como não diz respeito aos
princípios estéticos aristotélicos de harmonia, simetria e justa proporção. A bela
aparência aqui é lida como um acontecimento que instaura a bela torpeza do
mundo das inúmeras imagens possíveis. Não se localiza na perspectiva racional
de ordem em si, mas de uma ordem na desordem necessária, explosiva, beleza
da destruição, visto que o espaço da cidade torna-se uma totalidade dada pela
fragmentação de cada signo em intensificação. Aquilo que se presta como a bela
aparência, é vertida pela pixação nos traços que se amontoam, nos tags e pixos
que vibram pelas cidades ante os olhos de espectadores entorpecidos e irritados
frente ao fato de que as imagens produzem uma alteração latente no espaço, e
100 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 28 101 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 29. 102 Cf. NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 19.
105
tensionam a visão submetendo o espectador a inúmeros confrontos imagéticos.
Tais imagens irradiam das profundezas do mundo onírico como experiência
necessária da condição de vida e relação do homem com o mundo. Assim, a
natureza artística revela-se nesse impulso a deflagrar o instante, a construir
novos espaços, a inaugurar vertigens desde que sua densidade reveste-se com a
claridade do olhar de Apolo. Agora ele está no comando com sua sapiente
tranqüilidade do deus plasmador, sentado em seu barco;103 desliza sobre a
calmaria de um mar enfurecido e ilumina os caminhos por onde passa, porque
seus olhos estão sempre atentos a espreitar as trilhas que se abrem: o tempo, o
mar, a cidade em que explodem como lugares outros imagéticos. ―Seu olho deve
ser ‗solar‘ em conformidade com sua origem, mesmo quando mira colérico e
mal-humorado, paira sobre ele a consagração da bela aparência.‖104 Eis porque
a cidade pulsa pelas mãos dos pixadores como um objeto manipulável, é o olhar
colérico de Apolo a pulsar na fantasia agônica dos pixadores a desfigurar os
espaços. Um brinquedo que se monta e desmonta, em que as peças são
quebradas e interferidas para uma nova estrutura surgir. A máquina-cidade
veste-se com os traços de uma geografia estridente. Os mapas são reeditados
pelo estar-se encolerizado num tempo que sufoca. A beleza suja a surgir das
mãos de Apolo numa claridade entorpecedora, pois que aquilo que desordena
responde a essa pulsão que imprime novas formas no espaço. Erige-se aqui um
paradoxal perfil de Apolo em que um traço de sua identidade o aproxima mais e
mais de Dionísio: aquela parte escura que possibilita sua cólera. E com isso suas
ações dilacerantes, revelando um outro de Apolo:
―a palavra apolinismo designa a contemplação extasiada de um mundo de imaginação e de sonho, de mundo da bela aparência que nos liberta do devir, sente-
103 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 30 104 Idem. p. 29/30.
106
o subjetivamente como a volúpia furiosa do criador [...] tende ao devir, à volúpia de criar o devir, isto é, de criar e destruir‖.105
E este último traço rememora as marcas de Dionísio em seus
deslocamentos pelas terras gregas. Assenta-se em Apolo essa condição de figura
que permite o ato de destruição como forma de instauração de novos processos
artísticos e estéticos. E se nos gregos era condição de sobrevivência diante do
trágico da vida, no contemporâneo, afirma-se do mesmo modo por uma
descarga imagética de que está implicado esse suportar da existência trágica. E a
pixação veicula de forma plena essa condição de aparência suja e antídoto para
o existir dos sujeitos intervencionistas, e a tragicidade que dela emana é o
revelador de sua dimensão imanente. Um acontecimento autogerador que como
arte reinventa-se e articula sua própria prática: efêmera e letal. Assim a
presença de Apolo é vivificadora da condição da experiência estética e artística
da pixação. Em A Visão Dionisíaca do Mundo o jovem Nietzsche diz:
―Enquanto, portanto, o sonho é o jogo do homem individual com o real, a arte do escultor (em sentido lato) é o jogo com o sonho. A estátua como bloco de mármore é deveras real. Todavia, o real da estátua como figura do sonho é a pessoa viva do deus. Enquanto a estátua continuar pairando como imagem de fantasia diante dos olhos do artista, ele se manterá com o real. No momento em que traduz a imagem para o mármore, ele joga com o sonho.‖106
Estabelece-se aqui uma conexão entre a realidade que nos cerca e a
realidade do sonho na medida em que nesse jogo de transposição de mundos
em conexão é possível a efetividade da arte, neste caso a escultura, o que
permite com que o artista jogue com o sonho, transforme em imagem artística
aquilo que é da ordem do onírico. A dimensão da realidade onírica é
manifestada no momento em que há a transposição da imagem para a matéria,
neste caso o mármore. Não é diferente com a pixação. A pulsão dos pixos
105 NIETZSCHE, F. A Vontade de Potência, III-IV 1885/86. Liv. IV , t. II § 545, p. 368/69. In:
KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática, 1979. p. 124. 106 NIETSCHE, Friedrich W. A Visão Dionisíaca do Mundo. Marcos Sinésio Pereira Fernandes,
Maria Cristina dos Santos de Souza. (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 6. nota 4.
107
instaura-se por meio da intervenção como acontecimento que rege a imposição
dos estranhos signos nas superfícies das cidades, advindos das experiências
oníricas, entorpecedoras, entontecedoras: jogos oníricos com o real.
―Nietzsche nos dá uma importante indicação para a compreensão do apolinismo: a pulsão apolínea estética natural do sonho é um jogo com a realidade – ou seja, como ilusão, o sonho é sempre um furtar-se à realidade, é sempre uma aparição que ilude sem chegar, porém, às conseqüências do real; a arte plástica é, correlativamente, um jogo com o sonho – ou seja, o artista plástico procura fazer o real corresponder ao sonho, obrigando as suas matérias plásticas a se conformarem com o sonho na realização da obra de arte (no que é inerente uma irremediável distância, uma eterna insatisfação). 107
O sonho, energia agônica, produz essa espécie de efetividade da arte
no corpo da cidade, mas que de fato não atinge sua realidade em si, sua
conseqüência efetiva. É apenas um real por contingência, uma virtualidade
possível engendrada pelo sonho como sujeição ao real sem de fato sê-lo, pois
que sua condição ilusória é o que o define. Assim, os espaços urbanos se
recriam, se refazem, se descortinam em sua incessante mutabilidade. Nas mais
diversas direções os signos da pixação vão recobrindo os espaços, ao mesmo
tempo em que desaparecem afirmando mais e mais essa dimensão onírica sob a
égide de Apolo. O ilusório apolíneo na cena contemporânea reinstala novas
possibilidades de intensificação do espaço, pois os signos se sobrepõem criando
uma superfície que não é mais real, não obstante, dialogando com o real. Uma
casca se cria, um anteparo se gesta. A plena ilusão apolínea invadindo o corpo
da cidade nos gestos abruptos dos pixadores. Diríamos de um certo lugar que
Apolo joga luz sobre o processo de criação, ilumina seus caminhos tortuosos
para que se exprimam em sua desfiguração do espaço. E como espectadores,
quando nos impressionamos com as imagens a que somos submetidos
inevitavelmente a contemplar, imprime-se ali aquele frêmito de clareza e
107FERNANDES, Marcos Sinésio Pereira & SOUZA, Maria Cristina dos Santos de. (Trad.). In:
NIETSCHE, Friedrich W. A Visão Dionisíaca do Mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 6., nota 4.
108
sobriedade que nos leva a identificar e julgar o bom e o ruim das imagens,
julgamento inútil em sua condição de vazio moral, pois todo julgamento moral
na arte é da ordem de uma inutilidade. Mesmo assim, o estar em estado de
lucidez diante de cada imagem está implicado na pulsão apolínea nos
conduzindo mais e mais a encontrar todas as nuanças possíveis das imagens;
―nós desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas
nos falam, não há nada que seja indiferente e inútil.‖108 Para além do bem e do
mal as formas pulsam no espaço imprimindo à sua maneira sentidos que
alteram nosso modo de se relacionar com o mundo, a cidade, o tempo. Não há
como não responder às provocações que as formas produzem em nosso espírito.
Através delas vamos construindo nosso modo de ser e viver; inegavelmente as
formas estão aí a nos impregnar com suas tensões ou alívio das dores do mundo.
E assim, o barco de Apolo passeia lento pelo mundo até encontrar uma margem
tranqüila para ali ancorar; até novos trechos da viagem se desenharem no
espírito do tempo.
5. Do carro de Dionísio
5.
Do carro de Dionísio - E eis que surge de dentro da noite escura
Dionísio com seu carro triunfante cortando as estradas do oriente. Ele ―está
108 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 28.
109
coberto de flores e grinaldas: sob o seu jugo avançam o tigre e a pantera‖.109
Teremos agora que evocá-lo para que a outra face da arte seja dada a perceber.
Nietzsche faz uma referência a seu mestre Schopenhauer para localizar aquilo
que o dionisíaco é capaz de produzir no homem:
―um imenso terror se apodera do ser humano, quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em algumas de suas configurações, parece sofrer uma exceção."110
E isto pressupõe que pelas formas da aparência fenomenal o homem é
lançado nas profundezas do estranho. E de um modo diametralmente oposto
que em Apolo, ele já se encontra sem o controle de suas próprias forças e
sucumbe ao terror. E
―se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis111, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais perto possível com a analogia da embriaguez.‖112
E aqui se acende o fogo que nos faz arder o espírito. Dionísio nos
toma pela mão e nos leva para dentro da noite escura e nos submete aos seus
mais encantadores e fantasmáticos delírios. Rompem-se todas as ligaduras que
sustentam qualquer lucidez e sua boca se abre como que para nos engolir na
escuridão da noite que chega. E entontecidos por sua presença somos lançados
às feras. E tudo em nós pulsa. E tudo em nós se agiganta. E entoamos hinos. E
produzimos imagens: as mais loucas possíveis. Imagens delirantes estão em
todos os lugares, cidades em estado de tensão sob o frêmito intervencionista de
pixadores entontecidos. A pixação é o inventário ampliado dessas imagens no
109 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 31. 110 Idem. p. 30. 111 Princípio de Individuação: conceito metafísico schopenhaueriano que pode ser definido como
o princípio que liga o homem ao Uno-Primordial, o Ser em Si, o Absoluto. 112 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 30
110
corpo mundano das cidades; recobrindo com sua rede as fendas matéricas que
se expõem corruptivelmente.
Se em Apolo, Nietzsche enfatiza uma sobriedade da busca da bela
aparência, em Dionísio a pulsão criativa se dá de modo avassalador. Tudo
responde a uma extremada necessidade de intervenção, criação e destruição. É
da imagem de Dionísio que as formas mais vertiginosas da arte herdam sua
potência. E em sendo a pixação uma arte em que a pulsão dionisíaca é
extremada, é nela que seu caráter destrutivo se estriba e sua força embriagadora
se dimensiona: campo de ressonância das epifanias desse deus
metamorfoseador. Como demonstra Marcel Detienne: ―suas primeiras epifanias
são marcadas por confrontos, por conflitos ou por formas de hostilidade que vão
desde o desdém, o desconhecimento, à negação declarada, e até a
perseguição.‖113 Estamos diante de uma manifestação possível dos estados da
arte que atravessam a história. Um vislumbre da dimensão estética da pixação:
aquilo que é da ordem de uma dimensão explosiva, na medida mesma em que
destrói uma lógica asséptica espacial e visual, instaurando conflitos e confrontos
com a ordem que rege as cidades. Com isso o desdém, o desconhecimento, a
negação declarada, a perseguição, são dados que paradoxalmente ativam as
forças criativas das intervenções, gerando signos sempre novos e em crescente
dinamismo, como se aquelas forças de reação e contenção alimentassem os
processos de criação em suas diversas expressões, no limite mesmo de uma
epidemia. ―Há em Dioniso114 uma pulsão ‗epidêmica‘ que o afasta dos outros
113 DETIENNE, Marcel. Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p. 16. 114 É importante observar a grafia com que Detienne assinala o nome do deus: Dioniso.
Segundo Paulo César de Souza, tradutor de Nietzsche: ―alguns helenistas preferem a grafia ‗Dioniso‖, que embora mais próxima ao original, não se aclimatou tão bem á sonoridade do português‖. Cf. Nota 24 em NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal: prelúdio para uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 199. na pesquisa utilizamos a grafia corrente em português: Dionísio.
111
deuses de epifanias regulares, programadas e sempre arrumadas segundo a
ordem do culto das festas oficiais, e cada uma a seu tempo.‖115 Vê-se que em
Dionísio o diferencial está contido em seu modo de manifestação, imprimindo
nas forças criativas esse dado de desordem, colocando-se à margem das
possíveis oficialidades sócioculturais. E as epifanias dionisíacas a que se referiu
Detienne produzem processos de criação que assomam as narrativas
investigadas pelo historiador, e que podem ser identificadas nos modos de
geração de processos estéticos e presentificadas nas deflagrações sígnicas da
arte, potencializando, através daquela pulsão epidêmica, as formas explosivas e
destrutivas como no caso da pixação, em que se pode sentir, de espaço em
espaço, as metamorfoses, os deslocamentos irrefreáveis, os movimentos.
―Dioniso, divindade sempre em movimento, forma em perpétua mudança, nunca sabe se será reconhecido, exibindo entre cidades e aldeias a estranha máscara de uma potência que não se assemelha a nenhuma outra.‖116
Aqui o historiador evidencia a errância de Dioniso e sua própria
mutabilidade matérica que pressentimos na pixação como espécie de herança
atávica inspiradora do ato criador e destruidor. Seu movimento transmutado
desde tempos imemoriais, reacende atos e gestos na correlação de força com a
matéria das cidades a exemplo do que ocorreu em Pompéia: o corpo da cidade
submetido a uma indisfarçável escritura: erótica, política, pública, publicitária.
O movimento é um dado que é preciso observar como característico
em incontáveis manifestações artísticas. Ele foi evidenciado por Umberto Eco ao
tratar das poéticas do Informal, demonstrando que ―o informal pictórico
poderia ser visto como o elo terminal de uma cadeia de experiências cujo
115 DETIENNE, Marcel. Op. Cit. p. 14/15. 116 DETIENNE, Marcel. Op. Cit. p. 14/15.
112
objetivo é introduzir um certo ‗movimento‘ no interior da obra‖.117 Tal como
demonstramos que a pixação é o elo terminal das experiências parietais. E Eco
observa que
―o termo ‗movimento‘ pode ter diversas acepções, e busca de movimento é também aquela, desenvolvida paralelamente à evolução das artes plásticas que já encontramos nas pinturas rupestres e na Niké de Samotrácia (busca portanto de uma representação, no traço fixo e imóvel, de um movimento próprio dos objetos reais representados)‖.118
E no curso da própria evolução das formas, o movimento se
desenvolve nas obras até o momento em que ele se torna uma realidade física,
palpável como em Calder, até atingir o ―campo de possibilidades‖ das poéticas
do Informal. E esse movimento tomado desde um campo de possibilidades
ampliado, se verifica nos processos de criação em que o gesto e a ação são
princípios geradores das formas, talcomo ocorre no Action Painting, e de um
modo pleno em Jackson Pollock e seus intrincados campos infinitos de cores e
formas: gestualidade e movimento equivalentes a uma coreografia desmedida,
uma dança compulsiva, primitiva, xamânica, investida de energia e explosão.
―Mais vastos e maciços são os movimentos que dão vida a esta pintura, mais
violentas e estridentes sãqo as cores, que têm timbres de todo insólitos‖,119
observa Dorffles sobre essa pintura.
Leon Kossovitch diz que ―é como movimento que Nietzsche pensa a
arte: não só como produtora mas por essência movimento‖.120 O movimento
tem uma importância capital na construção da pixação como formação de novos
processos de criação em que o próprio corpo do artista é o deflagrador.
Movimento que Nietzsche menciona como um dado próprio do criador, todo ele
117 ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São
Paulo: Perspectiva, 1991. p. 150. 118 ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São
Paulo: Perspectiva, 1991. p. 150. 119 DORFLES, Gillo. Tendências da arte de hoje. Lisboa: Arcádia, 1964. p. 83. 120 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática, 1979. p. 121.
113
revelado na sua condição vivencial: dança, canto, gesto em profusão a intervir
no espaço e no tempo. Diz o filósofo:
―cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento‖.121
E isto se fortalece nos atos de intervenção da arte nas cidades. É esse
mesmo movimento que investe a pixação com a estridência de seus signos.
Movimento compulsivo a perder-se no corpo da cidade. O bando atravessa a
noite e os cães ladram enquanto o carro de Dionísio passa. Esse bando recorre a
movimentos toscos e deixa um rastro de signos atrás de si, evidência atávica do
deus em deslocamento. Assinala-se aqui uma sugestão das danças primitivas
instaurando o delírio, a mania. ―Há no delírio, na manía dionisíaca, uma parte
de impureza. Diretamente imputável ao fato de estar fora de si, separado dos
outros e de si mesmo‖.122 E essa dimensão torna-se determinante nos processos
de intervenção artística da pixação atingindo estágios alternados de
consciência-inconsciência no próprio ato de intervir frente ao turbilhão de
energia que dilacera o corpo em ação. O gesto como dança deflagradora dos
signos explodem no tempo. ―Ou simplesmente porque Dioniso é o deus que
salta, que pula (pêdân) por entre as tochas sobre os rochedos de Delfos. O deus
cabrito, o filhote de cabra em meio às bacantes da noite‖.123 Gestualidade
agônica percorrendo os planos, deformando a matéria pela força, destituindo-a
de sua assepsia e restituindo-a a sua condição de impureza que é o lugar da
força, e que se manifesta através dos conflitos e confrontos, instaurando ordem
e desordem na vida das cidades na história.
121 NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. J.
Guinsburg (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 30. 122 DETIENNE, Marcel. Op. Cit. p. 40/41. 123 Idem. p. 83.
114
Estamos diante do deslocamento, dos pixadores a incensar a
matéria-cidade com seus signos. Deslocamento e gestualidade que é da ordem
de um acontecimento memorial – a dança das bacantes e dos sátiros no culto
dionisíaco – fato estético a aterrar o solo por onde o carro de Dionísio trafega
sendo puxado pelos pixadores cruzando os caminhos da noite nas cidades.124
Invasão, pilhagem, intervenção a marcar a matéria da cidade tatuada
vertiginosamente. Marcada a ferro e fogo no coração do tempo. É assim que o
carro de Dionísio se aproxima do tempo do agora a imantar com seus gestos a
deflagração dos signos pelas mãos dos pixadores. Rasgo estético pressentido e
encontrado nas cenas memoráveis e restauradas nas manifestações sígnicas da
pixação.
6.Dionísio pelas mãos dos pixadores.
6.
Dionísio pelas mãos dos pixadores. - Partimos nesta nova trilha
que se abre para encontrar as manifestações de Dionísio que vimos assinalando
como presentes na pixação, investindo-na de força e latência artística, trazidas
124
Margot Berthold diz: ―O ritual da dança coral e do teatro era precedido por uma procissão solene, que vinha da cidade e terminava na orquestra, dentro do recinto sagrado de Dioniso. O clímax dessa procissão era o carro festivo do deus puxado por dois sátiros, uma espécie de barca sobre rodas (carrus navalis), que carregava a imagem do deus ou, em seu lugar, um ator coroado de folhas de videira. O carro barca recorda as aventuras marítimas do deus, pois, de acordo com o mito, Dioniso, quando criança, fora depositado na praia pelas ondas do mar, dentro de uma arca‖. In: BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 105.
115
desde tempos imemoriais. Estamos diante de uma manifestação contemporânea
de Dionísio, pelas mãos dos pixadores. Margot Berthold o anuncia:
―Dioniso, a encarnação da embriaguez e do arrebatamento, é o espírito selvagem do contraste, a contradição extática da bem-aventurança e do horror. Ele é a fonte da sensualidade e da crueldade, da vida procriadora e da destruição letal. Essa dupla natureza do deus, um atributo mitológico, encontrou expressão fundamental na tragédia grega‖.125
Esses atributos mitológicos os pressentimos na pixação a intensificar
sua manifestação nas cidades. A embriaguez e o arrebatamento veiculam a
potência da intervenção, e por meio delas todo o gestual criador e destruidor se
vivificam no corpo mundano da cidade. Sensualidade e crueldade potencializam
os signos, pois estes são deflagrados como forma de intervenção aguda nas
paredes das cidades alterando a visualidade contemporânea. Em alguns casos a
destruição se faz presente desarticulando os mecanismos de controle do espaço
ou redefinindo a casca visual dos elementos urbanos. São processos regidos por
uma energia feroz que é vertida em gestos, traços e signos e que pressupõem
uma alteração na visualidade da cidade na medida em que esta pode ser
pensada como um sistema homogeneizador instituído. Dessa forma, as
manifestações dionisíacas são tomadas do lugar da rejeição e da resistência
como no caso da pixação; é que Dionísio é
―uma divindade assim tão próxima e integrada no próprio homem, um deus tão libertário e ‗politicamente‘ independente, não poderia mesmo ser aceito pela polis de homens e de deuses tão apolineamente patriarcais e tão religiosamente repressivos‖.126
Isto se evidencia de um certo modo na condição de rejeição dos signos
da pixação no espaço urbano, espaço constituído na sua lógica sistêmica em que
seus mecanismos são desde sempre o lugar de uma ordem instituída, mas que se
125 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.
104. 126 BRANDÃO, Junito Souza. Mitologia Grega. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. p. 137.
116
rende pela intensidade dos gestos a que a cidade é submetida. E Dionísio dança
na noite pelas mãos dos pixadores.
7.Da embriaguez.
7.
Da embriaguez. – A embriaguez é uma dimensão fundamental que
se apresenta da contribuição de Nietzsche para o pensamento artístico. Uma
trilha outra aberta pelo filósofo que enveredamos uma vez mais na busca de
tensionar as questões em torno da pixação. E nessa trilha topamos com uma de
suas obras mais intensas: O Crepúsculo dos Ídolo.127 Um Nietzsche o mais
destruidor possível: ―É naquilo que tua natureza tem de selvagem que
restabeleces o melhor de tua perversidade, quero dizer de tua
127 Utilizamos duas traduções brasileiras desta obra de Nietzsche: de Edison Bini e Márcio
Pugliesi de 1976; e de Paulo César de Souza de 2006. Isto em função da possibilidade de opção de cada trecho de Nietzsche que entendemos manter a força e a densidade do pensamento do filósofo a revestir nosso objeto de estudo.
117
espiritualidade‖.128 Assenta-se, nesta afirmação da selvageria e perversidade, a
força a definir um jogo irônico com as palavras, sempre tão preciosas no
pensamento do filósofo. Nessa obra Nietzsche trata diversos temas e a arte não
fica imune a seu olhar ferino. Recoloca questões anunciadas desde o
Nascimento da Tragédia como é o caso da embriaguez, apolinismo e
dionisismo. Ele dispara: ―para que haja arte, para que haja uma ação e uma
contemplação estética qualquer, é indispensável uma condição fisiológica
prévia: a embriaguez‖.129 E é pela embriaguez que a arte acontece. Pois é dela
que toda a chama interior acentua as descargas infinitas de energias a formar
signos a partir das matérias diversas e em inúmeras superfícies. E nas paredes
esta explosão de energia se faz presente nos vários momentos como vimos
através do tempo na primeira parte deste estudo.. Circunstâncias em que a
embriaguez estava presente de modo fundamental. Não tomando a totalidade
dos eventos mencionados, mas sempre presente.
Pela embriaguez são mobilizadas todas as energias que formam e
deformam os signos da arte em qualquer tempo e lugar. ―É mister que a
embriaguez aumentou a irritabilidade de toda máquina; sem isso a arte é
impossível‖.130 Aquela condição fisiológica prévia restitui no homem a condição
de sua ação artística. Sua força criativa e destrutiva aparecem sob o frêmito
dilacerante dos signos atingindo dimensões explosivas a ponto de só pelo estado
de embriaguez se explicar a potencialização artística no espaço urbano dada
pela pixação. ―Todos os tipos de embriaguez, ainda que estejam condicionados
o mais diretamente possível, tem potência artística e acima de todos, a
128 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e
Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 9. 129 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e
Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 67. 130 Idem. p. 67.
118
embriaguez da excitação sexual, que é a forma de embriaguez mais antiga e
primitiva‖.131 Vê-se que Nietzsche localiza a potência artística como da ordem
das energias instintivas que são disparadas através dos fluxos corpóreos, tal
como na excitação sexual. Uma dimensão instintiva a engendrar as ações
humanas, ao mesmo tempo que as acomete instantaneamente de sentidos e
não-sentidos, tudo manifesto numa materialidade intensiva. ―O mesmo efeito
produz a embriaguez que acompanha todos os grandes desejos, todas as grandes
emoções: a embriaguez da festa, da luta, do ato arrojado, da vitória, de todos os
movimentos extremos‖.132 Assim sendo, a potência artística que reveste esses
tantos atos humanos, produzem os fluxos estéticos que nos chegam na medida
mesma em que são impressos em nosso corpo, mente, sentidos. Elevando-nos a
diversos estados preceptivos e ativos. Atirando-nos na direção de posições
outras mas sempre deslocando-nos para novos campos:
―a embriaguez da crueldade, a embriaguez da destruição, a embriaguez que produz influências meteorológicas, como, por exemplo, a embriaguez da primavera, ou então a influência dos narcóticos, e por último a embriaguez da vontade, de uma vontade acumulada e dilatada‖.133
Nietzsche nos revela diversos estados de embriaguez que assomam às
nossas experiências diversas do mundo, estados esses afirmados em sua
dimensão estética. Cabe pois dizer que sob a influência dos narcóticos o olho
drogado na sua declinação pluriangular reveste a tez da cidade de fluxos
sígnicos a transformá-la em um campo de batalhas atrozes. Ou quem sabe, o
cruel desmonte da assepsia urbana sob os auspícios de uma necessidade insana
de destruição que só pela embriaguez é dada acontecer. Este é o vislumbre de
uma conexão íntima da pixação com a embriaguez afirmada como condição
131 Idem. p. 67/ 68. 132 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e
Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 68. 133 Idem. 68.
119
estética, pois ela reveste os atos dos pixadores com sua potência artística em
que os dados daqueles estados expostos por Nietzsche se presentificam nas
experiências da pixação: festa, luta, ato arrojado, vitória, movimentos
extremos, destruição, narcóticos, vontade acumulada e dilatada; são dados
que se mostram identificadores e definidores da pixação e que realizam de
modo pleno as condições de embriaguez a que o corpo da cidade é submetido,
portanto, potência artística em estado pleno, latejante. Atravessado por todos os
estados que o filósofo menciona. É dessa natureza embriagante que surgem por
toda parte os pixos alterando a visualidade das cidades pelo mundo, a inundar a
cena contemporânea com seus riscos cáusticos. E Nietzsche reitera: ―O essencial
na embriaguez é o sentimento de força e de plenitude‖.134 Desata-se na matéria
impura da cidade essa condição de plenitude que torna a cidade um novo corpo.
Todo ele regido pelas intensidades disparadas por esse estado de embriaguez do
qual a pixação é capaz.
―Nesse estado nós o enriquecemos com nossa própria plenitude. O que se vê, se vê inflado, vigoroso, tenso, sobrecarregado de força. O homem condicionado dessa maneira, transforma as coisas até que reflitam sua perfeição. Essa transformação forçada, essa transformação no perfeito é arte‖.135
Assim, a pulsação dos pixos na cidade contém esse mais de força,
realizado todo na tensão e vigor de que estão sobrecarregados. E nada mais
definitivo que essa condição realizada pelos pixadores, sua constante
necessidade de intervir na visualidade cotidiana, impondo marcas ditadas por
essa embriaguez dilacerante das matérias que ali se expõem, transformando a
força das intervenções naquilo de que é necessário atingir, naquilo de que é
necessário ser do seu estado de perfeição: arte.
134 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e
Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 68. 135 Idem. p. 68.
120
8. Apolíneo e Dionisíaco: o retorno.
8.
Apolíneo e Dionisíaco: o retorno. - Os fluxos sígnicos que
explodem nas cidades são ativados pela condição de embriaguez como uma
dimensão que se revela característica na pixação tal como apontado acima,
marcado no pensamento de Nietzsche. Essa dimensão é reificada pelo pensador
tendo agora os impulsos apolíneo e dionisíaco como dados dessa embriaguez,
não mais como impulsos antitéticos mas como fusão. Diz Nietzsche: ―Que
significam os conceitos opostos que introduzi na estética, apolíneo e dionisíaco,
os dois entendidos como espécie de embriaguez?136 Aqui o filósofo os une
caracterizando a embriaguez; assim, ambos os conceitos ampliam a potência
estética que os encerram. Esta amplitude pressupõe um dado maior de força a
revestir o objeto de nosso estudo com tudo o que de mais vigoroso podemos
pressentir do objeto. ―A embriaguez apolínea mantém sobretudo o olhar
excitado, de modo que ele adquire a força da visão. O pintor, o escultor, o poeta
épico são visionários par excellence‖.137 É evidenciado aqui um traço que recai
sobre os pixadores: o olhar excitado. Esse olhar que revela e cria um novo
espaço a partir do próprio espaço da cidade. Um espaço por sobre outro, como
camadas que são sobrepostas intumescendo a adiposidade da cidade, fazendo-a
pulsar. O olhar que supõe o perigo mas não se deixa intimidar por ele. Porque o
perigo é da ordem da visão, e tem que se estar plugado na cena. Ligado. O
visionário vê ao longe e por toda a parte. E aqueles que dançaram nas garras do
136 Paulo César de Souza diz no Posfácio de sua tradução de Crepúsculo dos Ídolos: “Os
conceitos de apolíneo e dionisíaco são apresentados como duas formas de embriaguez, enquanto na formulação original de O Nascimento da Tragédia são conceitos opostos”. In: NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução, posfácio e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 140.
137 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução, posfácio e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 69.
121
perigo foi porque sua visão ainda não havia atingido a perfeição. E o pixador
mantém-se completamente incorporado na cena: corpo, gestos, energias a
disparar os fluxos sígnicos na epiderme urbana.
―Já no estado dionisíaco, todo o sistema afetivo é excitado e intensificado, de modo que ele descarrega de uma vez todos os meios de expressão e, ao mesmo tempo, põe para fora a força de representação, imitação, transfiguração, transformação, toda espécie de mímica e atuação‖.138
Nietzsche coloca as condições com que o artista deflagra sua
intervenção na matéria, condicionado pelo estado de embriaguez dionisíaco.
Podemos perceber que diversos tipos de expressão se inflamam sob a égide
desse estado o que revela que a ampliação e intensificação das intervenções da
pixação na cidade é latente. Reiteram a condição matérica da cidade, o lugar
pleno de sua experimentação. Com isso o perfil do pixador se reinventa, se
desfaz, se metamorfoseia. Nada há que o contém, pois ele sempre está em todos
os lugares da cidade, a visitá-los com sua força e gesto. Basta que nos
desloquemos pelos espaços das cidades para que, num olhar atento, sejamos
surpreendidos pelos pixos nos lugares mais insólitos. Eles sempre estão aí, a
nos fazer pensar e sentir a carne da cidade nas suas possíveis mutabilidades
matéricas.
―Para o homem dionisíaco é impossível não entender alguma sugestão, ele não ignora nenhum indício de afeto, possui o instinto para compreensão e adivinhação no grau mais elevado. Ele entra em toda pele, em todo afeto: transforma-se continuamente‖.139
E é nessa contínua mudança que o pixador se relaciona com o corpo
da cidade, mutabilizando-a e sendo mudado por ela. Sofrendo os embates
cotidianos que o atiram nos confrontos com todas as forças em luta na cidade;
138 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução,
posfácio e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 69. p. 69. 139 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução,
posfácio e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 69.
122
seus gestos agenciam batalhas diuturnas que colocam a condição de
sobrevivência na cidade como um dado existencial. Os signos reformulam a
visualidade da cidade evocando as dores do mundo. Lei e ordem se desfazem
naquilo que é seu próprio vazio arbitrário, visto que toda lei e ordem não dão
conta de conter o jorrar de signos impuros que vazam nos dias. É dessa
metamorfose constante dos elementos envolvidos nas intervenções – o pixador,
a cidade, a lei, a ordem, os pixos veiculam um estado de vivência no mundo. A
arte, a pixação, é o condicionante a alterar os sentidos, perfil, fisionomia e
visualidade da cidade-mundo em tudo aquilo que comporta sua tragicidade. E
Nietzsche insiste:
―Que sentimento nos comunica o artista trágico? O que afirma não é precisamente a falta de temor diante do terrível e do incerto. (...) o valor e a liberdade do sentimento ante um inimigo poderoso, ante um revés sublime, ante um problema que espanta, é o estado triunfante que elege e glorifica o artista trágico‖.140
Artista esse que emerge das palavras de Nietzsche e assenta-se nas
caracterizações contemporâneas que neste estudo situamo-lo como sendo o
pixador. Aquele que comunica o vazio, a nulidade, o efêmero em suas
deflagrações explosivas de signos no espaço urbano, atingindo um estado
triunfante por meio de sua própria expressão: a glória do vazio. Destruição de
toda condição transcendente a investi-la da imanência fugaz da obra-cidade. ―E
o artista trágico oferece esta taça de crueldade, a mais doce de todas‖:141 algo de
arte. E uma de suas formas de manifestação? A pixação. Evidência da
manifestação apolíneo-dionisíaca nas cidades do mundo. E Nietzsche reafirma o
poder da arte como um conhecimento necessário onde podemos beber, até nos
140 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e
Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 79. 141 Idem. p. 79.
123
saciar ou curar. ―Como surge a arte? Como remédio do conhecimento. A vida só
é possível graças a imagens artísticas delirantes142. Eis a fala propícia. Eis o tom.
9. Epílogo II.
9.
Epílogo II. - Desses disparos estéticos nietzscheanos a arte se veste
com novos matizes instaurando uma densidade poética afirmativa, como não
poderia deixar de ser no pensamento de Nietzsche.
―A afirmação da vida até em seus problemas mais árduos e duros; a vontade de viver regozijando-se no sacrifício de nossos tipos mais elevados, é o que chamei de dionisíaco, e nisso acreditei encontrar o fio condutor que nos conduz à psicologia do poeta trágico‖.143
Isto repercute nos processos de intervenção da pixação nas cidades
construídos por nós. Pixadores-poetas dançando na noite com a máscara de
Dionísio e Apolo. Risos e escárnios. Luz e sombra. Alegria e dor. Essa arte da
pixação afasta-se aqui por completo da idéia da arte tomada do lugar da
representação, da imitação; pois a pixação foi densificada por um pensamento
que ao afirmar a aparência, atira-nos no confronto com os signos que são
projetados no corpo da cidade. Assim, as questões encontradas nas trilhas
142 NIETZSCHE, F. Sabedoria par Depois de Amanhã. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 7
[152]. p.13. 143 NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 110.
124
abertas por Nietzsche colocam a condição da pixação como arte
contemporânea, uma arte que alcança sua potência na condição de provocar as
mais estranhas reações e engendrar as sensações mais díspares na própria
experiência estética da cidade. O valor dos pixos erige-se não enquanto objetos
individualizados, como no sentido tradicional da arte, mas naquilo que
evidencia uma espécie de evento que marca o corpo da cidade e nesse corpo
deixa feridas que desaparecerão com o tempo. Ou que ali se fixem para dotá-la
de novos perfis, identidades, pois as identidades não são da ordem de uma
fixidez mas dos atravessamentos possíveis de sentidos e não-sentidos que
instaurados pelos pixos reinventam a identidade e os perfis das cidades
ganhando assim uma dimensão artística. E a cidade a pulsar pelas mãos dos
pixadores veste-se com uma constante mutabilidade. Assim, o desaparecimento
dos pixos, sua efemeridade, marca inalienável da pixação, é também marca de
um tempo depauperado em sua condição existencial. E a cidade marcada nesse
tempo, é reinventada pelos fluxos matéricos e sígnicos da pixação, que numa
certa inflexão estética com a tragédia grega, insiste em ―realizar-se em si
mesmo, acima do medo e da piedade, é a eterna alegria que leva em si o júbilo
do aniquilamento‖.144 Ave, Nietzsche!
144
NIETZSCHE, F. O Crepúsculo dos Ídolos; ou A filosofia a golpes de martelo. Edison Bini e Márcio Pugliesi (trads.). São Paulo: HEMUS, 1976. p. 111.
125
CAPÍTULO III: PIXAÇÃO: MANIFESTAÇÃO DE UMA ARTE CONTEMPORÂNEA
CAPÍTULO III
PIXAÇÃO: MANIFESTAÇÃO DE UMA ARTE
CONTEMPORÂNEA
I like the druggy downtown kids
who spray paint walls and trains
I like their lack of training
their primitive technique.145
Trouble With Classicists Lou Reed & John Cale
Do disco Songs For Drella
1. Graffiti: dos guetos para o mundo.
1.
Graffiti: dos guetos para o mundo. – Para marcarmos a
manifestação da pixação como um tipo de arte contemporânea, partimos do
clima pós-revolucionário e das experimentações que se deram na década de 60,
especialmente o surgimento do grafite. E esse clima que caracteriza o pós Maio
de 68, vimos a construção efetiva de um arsenal contracultural colocando na
ordem do dia a criação de novos modos de intervenção e insubmissão,
expressadas através de uma espécie de guerrilha urbana em que valia tudo: 145 ―Eu gosto dos garotos drogados do centro da cidade, que pintam com spray as paredes e os
trens. Eu gosto de sua falta de treino e de sua técnica primitiva‖.
126
paus, pedras, cartazes, pixações, como fora evidenciado no capítulo anterior.
―Passada a onda dos cartazes, o desejo de inscrição na cidade perdurou com a
utilização da pintura de frases sem tratamento de suporte ou qualquer solução
formal especial‖.146 A partir desse momento as práticas de intervenção urbana
ganharam corpo e entraram na década seguinte como uma das mais concretas e
transgressoras expressões de intervenção estética na história, pois, sendo
herança do Maio de 68, ela traz toda a fúria contracultural e social que lhe
marca a existência. Assim, ao nível dos signos, insurgirá nos Estados Unidos,
especificamente em Nova York, a onda do que fora denominado de graffiti
numa reportagem no jornal New York Time, batizando pejorativamente a
inscrição urbana TAKI 183 espalhada pela cidade. Mas o que é considerado obra
inicial é a inscrição JULIO 204 do ano de 1967, que já marcava a carne da
cidade com sua força inalienável. Assim, o graffiti tomou a cidade de Nova York
de assalto no início dos anos 70 e passou a constituir a mais nova forma de
expressão política e estética saída dos guetos para o mundo, produzindo um
impacto vertiginoso. Baudrillard nos dá a dimensão da potência
intervencionista daquela época. Ele diz:
―Uma coisa é certa: tanto muros pintados como graffitis, nasceram após a repressão das grandes revoltas urbanas de 66/70. Trata-se de uma ofensiva tão ‗selvagem‘ quanto as revoltas, mas de um outro tipo, uma ofensiva que mudou de conteúdo e de terreno. Estamos face a um novo tipo de intervenção na cidade‖.147
Intervenção que insurgiu como uma prática de luta, invasão sígnica e
territorial, uma fala em que comportava um poder mobilizador como gesto e
expressão de minorias guetificadas. E Baudrillard substancia a idéia de gueto:
―cada espaço/tempo da vida urbana é um gueto e todos eles estão conectados
146
KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 335. 147 BAUDRILLARD, Jean.“Kool Killer ou A Insurreição Pelos Signos”. Revista Cine Olho nº 5/6
jun/jul/ago 1979. p. 36. Pode ser encontrado também no site: rizoma.net.
127
entre si (...) todos estão alinhados no seu delírio respectivo de identificação com
modelos de simulação orquestrados‖.148 Eis que a linha de fuga sígnica se dá por
essa afirmação intervencionista, guerrilheira em que a lata de spray tornou-se
uma arma. Dos primeiros riscos da década de 70 até os dias atuais, o graffiti
ganhou em força, criatividade e explosão. Desenvolveu-se tecnicamente e
chegou ao que hoje conhecemos no Brasil como o grafite artístico.
Veremos então de que forma se constituirá essa expressão em termos
de sua designação e intervenção. Mas cabe deixar claro que este e os tópicos
subseqüentes não têm por objetivo uma história do grafite,149 mas apenas
apontar aspectos da sua manifestação para precisar os desdobramentos
ulteriores que envolvem o objeto deste estudo: a pixação.
2. Graffiti e Grafite: dos termos.
2.
Graffiti150 e Grafite: dos termos. – O que se vê geralmente nos
mais diversos autores estrangeiros é a utilização do termo graffiti, do italiano –
148 BAUDRILLARD, Jean.“Kool Killer ou A Insurreição Pelos Signos”. Revista Cine Olho nº 5/6
jun/jul/ago 1979. p. 37. 149 Alguns trabalhos importantes nos ajudam a entender a história do movimento do grafite no
Brasil de forma mais aprofundada: O ensaio de Paulo Knauss Grafite Urbano Contemporâneo; a dissertação de mestrado de Arthur H. Lara: Arte Urbana em Movimento; a dissertação de mestrado de Nelson E. Da Silveira Junior: Superfícies Alteradas: Uma cartografia dos grafites na cidade de São Paulo; e a pesquisa de Célia Maria Antonacci Ramos: Grafite, Pichação e Cia., que recorremos na medida em que a amplitude destes estudos nos dão um suporte histórico mais amplo.
150 ―A palavra "graffiti" é derivada da palavra latina "graphium," que significa "escrever‖. Foi usada originalmente por arqueólogos descrever os desenhos e as escritas encontrados em edifícios e em monumentos antigos em Pompéia, Egito e nas catacumbas romanas. A definição mais básica do termo "graffiti" é "inscrições ou os desenhos rabiscados, riscados, ou pulverizados em uma superfície, originalmente como inscrito em paredes antigas." In:
128
rabisco, e do latim – graphium (escrever), para designar os tipos de
intervenções parietais surgidas desde a Pré-História, passando por Pompéia, o
Maio de 68, as manifestações de Nova York até nossos dias. O professor
português Jorge Bacelar afirma que:
―Actualmente pode-se tentar categorizar as suas várias manifestações, desde o graffiti dos gangs, com a finalidade de demarcar territórios, o graffiti daqueles que utilizam as paredes como veículo das suas opiniões e mensagens, sejam políticas, sexuais, humorísticas (ou mesmo como exibição de total ausência de idéias...) e por fim uma última modalidade que emergiu e se consolidou nos últimos 30 anos, que se poderá, à falta de melhor designação, chamar 'graffiti artístico'.151
Esta afirmação nos possibilita adentrar no território dessa
manifestação. O autor situa as inúmeras formas de escritas parietais como um
tipo de graffiti até referir-se ao que chama de graffiti artístico, nos indicando
que qualquer tipo de inscrição sobre uma determinada parede pode ser
considerado graffiti. Consideração esta que está ligada à própria origem italiana
do termo mencionada anteriormente: rabisco.
O inglês Tristan Manco no livro Graffiti Brasil152 mostrando a
produção do grafite brasileiro, se utiliza do mesmo termo a que Bacelar se
referiu como graffiti artístico. Manco juntamente com Art Lost e Caleb Neelon
produziram uma ampla discussão e seleção de imagens de grafite e sua ascensão
ao mainstream artístico. Em entrevista à revista Bravo, Manco diz:
―Na história da arte e da comunicação, estudiosos consideram os desenhos nas cavernas como as primeiras manifestações artísticas. E essas pinturas também podem ser descritas como graffiti. Não é possível saber ao certo os significados das figuras antropomórficas e traços abstratos feitos pelos homens da Antiguidade, mas nós podemos interpretá-los como formas de expressão de uma identidade. No sentido moderno, graffiti refere-se a pinturas e desenhos não autorizados. Há muitos exemplos assim ao longo da história — mensagens grafitadas foram encontradas nas ruínas de Pompéia. Os desenhos em Pompéia eram muito
www.geocities.com/laeeque1650/graffiti.html. Visitado em julho de 2007. Usaremos o termo grafite, como ficou consagrado no Brasil tal manifestação.
151 BACELAR, Jorge. Notas sobre a arte mais velha do mundo. In: http://bocc.ubi.pt. Visitado em julho de 2007.
152 Observamos que o termo usado por Tristan Manco é o mesmo usado por Jorge Bacelar: graffiti, isto porque ambos os autores referem-se ao original italiano.
129
parecidos com os que nos deparamos hoje em espaços públicos, com mensagens como ―Celadus, o gladiador de Thracia, é a alegria de todas as mulheres!‖.153
Vê-se que Manco se mantém na linha de Bacelar e outros estudiosos,
considerando graffiti desde a arte que vem das cavernas pré-históricas até os
atuais graffitis artísticos; sendo que a estes atribui um sentido moderno e de
dimensão não-autorizada, considerando o tráfego histórico desta prática.
Uma curiosa observação pode ser feita aqui. No Brasil, o termo que
designa todo e qualquer escrito ou desenho sobre paredes e que no caso dos
autores estrangeiros é denominado de graffiti, seria a pixação, pelas suas
características formais e ideológicas na direção do que o professor Bacelar
especificou. Pois o que no Brasil é chamado de grafite não guarda mais uma
relação formal nem ideológica com os graffitis iniciais de Nova York, mas sim a
pixação, pelos motivos acima citados. E o que o professor chama de graffiti
artístico é o que hoje se constitui nas expressões urbanas que no Brasil será
consagrado com o termo grafite, referindo-se aos graffitis artísticos
mencionados por Bacelar e Manco e que se desenvolveram aqui a partir do
graffiti americano no início da década de 80; não à toa mantém os
estrangeirismos para designar seus diversos estilos: wild stile, bomb, throw up,
stencyl art etc. Gustavo Barbosa em seu livro Grafitos de Banheiro: A
Literatura Proibida usou o termo grafito para as inscrições e incisões com
materiais diversos tais como giz, caneta, caco de telha ou outros materiais
pontiagudos nos banheiros públicos por ele pesquisados. Assim podemos dizer
que o grafite inicial em Nova York é, sem sombra de dúvida, o equivalente à
pixação no Brasil, como podemos observar nas Figuras 58 e 59.
153 MANCO, Tristan. Graffiti com sotaque. In: BRAVO! On line. Entrevista a Gisele Kato.
130
Paulo Knauss evidencia a evolução estilística do grafite e seu caráter
de inscrições:
―A evolução formal dessas inscrições resultou na elaboração dos tags, espécie de assinatura ou contra-senha, que depois se espalharam pelo mundo. Trata-se de uma variedade particular de grafite contemporâneo propriamente dito. O tag constitui a base de todo o desenvolvimento formal que evoluiu das soluções alfanuméricas iniciais para soluções logotípicas das letras emboladas, quase criptogramas, por vezes. Adornadas com detalhes figurativos complementares ou pela tridimensionalidade‖.154
A arte dos tags possibilitou uma série de experimentações formais e
estilísticas que atingiram o estágio em que se encontra hoje.
O batismo das intervenções em Nova York tem sua voz dissonante.
MICO, um dos primeiros grafiteiros a estampar seu nome nos muros e trens do
Brooklyn, numa entrevista ao site cubano cubasi.cu comenta o batismo do
grafite pelo New York Time nos anos 70. Ele diz:
―Eu proponho que grafitti, palavra que provém do italiano grafito e que significa em espanhol garabatos [garatujas], é um termo ou nome racista, com o qual certos pilares da sociedade dos Estados Unidos como a imprensa e mesmo o mundo da arte, batizaram esta nova cultura de escrever nome em paredes e trens urbanos em Nova Yorke, devido ao que foi inventado pelos jovens latinos e negros em 1969/70. Se o mesmo fosse criado por jovens brancos, filhos da alta sociedade, com apelidos como Bush, Rockefeller ou Kennedy ao invés de Sánchez, Morrow ou Ramírez, então, talvez tivessem batizado a nova cultura com um nome mais legítimo como "avant garde pop art", por exemplo. (...) ―deve ficar claro que em nosso dicionário cultural a palavra graffiti não existiu nem existe. A propósito foi o mesmo New York Time, que batizou pejorativamente a nossa cultura com graffiti, mais ou menos em
154 KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 335. Ele aponta o trabalho de Craig Castleman, Getting Up:
Subway Graffiti in New York. Cambridge, The Mit Press, 1995, para uma visão mais ampla da evolução formal e estilística do grafite de Nova York. Podemos ver uma parte da análise de Castleman em Historia del Graffiti en el Metro de New York. In: http://es.geocities.com/erthisa/historiagraffitiny.htm. Visitado em agosto de 2007.
58. Tags em Nova York. Dec.de 70. 59. Pixos no Rio de Janeiro (Centro) - Brasil – 2007.
131
1971. Atualmente, outros de minha geração e eu nos referimos a nossa arte como Arte Aerosol, ou simplesmente Writing.‖155
Assim, a fala de MICO estabelece um ponto de contato com a
caracterização de inscrições usado por Paulo Knauss e Writing usado por
MICO. Essa é apenas uma das questões que marca as discussões em torno do
grafite desde aqueles tempos de subversão e explosão urbana em Nova York.
Mas mesmo pelo acento pejorativo que o designa, o termo pegou, e depois de
décadas o grafite está marcado, tal como ocorreu com os impressionistas,
fovistas e outros movimentos artísticos. Mas não somente pelo fato do termo ser
hoje totalmente aceito, mas fundamentalmente por uma posição política que se
revela na fala de MICO defendendo uma força e consciência de grupo: "quando
nós íamos levar a cabo nossa atividade clandestina de escrever nossos nomes,
não falávamos de ir a fazer graffiti. Não, nós sempre nos referimos a esta
atividade como ‗ir a escrever‘ ou ‗go writing‘‖.156 MICO demarca a partir da
defesa dos termos Arte Aerosol ou Writing, uma posição política que
dimensiona a prática do grafite como intervenção estético-política, em que sua
experiência o projeta como resistência ao modelo americano excludente e
guetificante das minorias negras e latinas nos Estados Unidos. E é fundamental
ter em conta este aspecto porque estamos diante de uma arte em que a palavra
tem um acento agudo, ela dialoga com formas, funde-se, identifica o sujeito por
trás do nome, mesmo que circunscrita a um grupo restrito. E ao defender tal
nomenclatura MICO articula uma defesa de uma prática política, ativista,
artística e estética. Assim se processou por todas as cidades onde os artistas,
155 Apelido de Jaime Ramíres, Entrevista a Daynet Rodríguez Sotomayor (05/04/2006). In:
http://cultura-entrevista.cubasi.cu. Visitado em agosto de 2007. 156 In: http://cultura-entrevista.cubasi.cu. Visitado em agosto de 2007.
132
escritores, grafiteiros, foram surgindo com seus mais diferentes estilos. As
Figuras 60 e 61, dão uma idéia das transformações sofridas pelo grafite.
A questão é que a designação da expressão, não é mais importante
que seu acontecimento, pois depende de quem fala-escreve, atribuindo o
termo que bem entender, ao mesmo tempo demarcando o sentido que lhe
cabe por trás do discurso. Além do mais, a própria potência estética dos
termos Graffiti, Writing ou Art Aerosol, se entrelaçam, se fundem, criam
divergências, ambigüidades e contradições, produzindo intensidades e
pulsões. E as intervenções nos muros e trens de metrô novayorkinos foram o
61. ―Bubble Letters‖ de PHASE 2. Déc. de 70.
60. Vagão inteiro grafitadopor DURTY. Déc. de 70.
62. NZONE. Nova York. 1994. In: Art & Crimes.
63. Mel Bernstine. Nova York. 1982 ou 1983. In: Art
& Crimes.
64. Caminhão grafitado por Hipe e outros. Nova York. 1994. Art &
Crimes.
133
ponto inicial de uma série de intervenções poético-políticas a assinalar uma
outra visualidade contemporânea. Um modo de experimentar a cidade
confrontando as relações sócio-econômicas das minorias nos guetos, mas que
se davam a partir da investida sígnica nos espaços configurados da metrópole
americana.
3.No Brasil: Grafite.
3.
No Brasil: Grafite. – A entrada do grafite no Brasil ocorreu por
volta do final dos anos 70 e início dos 80. Sabe-se que simultaneamente essas
manifestações estavam ocorrendo em várias partes do país: Rio, São Paulo,
Recife, Belém etc. Cabe destacar algumas cenas para se perceber o clima em
torno das intervenções. É claro que, como este estudo não se ocupa
134
especificamente com historicizar as manifestações do grafite, nossa abordagem,
fragmentária desde seu percurso inicial, evidencia cenas que, a posteriori, nos
levem a atingir uma distinção mais concreta do grafite em relação ao nosso
objeto de investigação: a pixação
Paulo Knauss aponta uma série de eventos ocorridos desde o Rio de
Janeiro e em outros pontos do país, que nos permitem perceber os processos
pelos quais o grafite ganhou campo no Brasil. A imprensa se ocupou em dar
projeção para esses eventos e com isso visibilidade às inscrições que apareceram
na Zona Sul carioca por volta de 1978, tais como Lerfa-mú; Wackapaon e
Celacanto provoca maremoto como sendo o ponto de partida de uma série de
outras inscrições; inclusive na linha dos tags americanos como 18 Tijuca que
remete ao originário TAKI 183. Knauss diz que ―nesse momento, se verificava o
conceito de pichação para identificar o grafite urbano. Trata-se de uma
referência à técnica de pintar com piche e anterior à lata de tinta em jato,
spraycan‖.157 Tanto em relação às ações do Rio de Janeiro quanto de outros
centros não havia uma clara distinção entre grafite e pixação. Seguia-se na
tentativa de um enquadramento das manifestações para um maior controle e
repressão como foi possível constatar em inúmeras tomadas de posições, desde
os planos de limpeza pública da prefeitura de Nova York que influenciaram as
políticas de limpeza no Brasil, um exemplo disso foram as campanhas de
limpeza da CONLURB no Rio como a Operação Spray e os Murais da Crítica
em Recife, que eram as áreas reservadas para todo tipo de inscrições, além das
estratégias policiais e repressoras das prefeituras de Rio e São Paulo.
O outro foco do grafite a se desenvolver de forma marcante no Brasil
se deu em São Paulo. Artistas como Alex Vallauri, Carlos Matuck, Waldemar
157
KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 340.
135
Zaidler e o grupo performático Tupi-Não-Dá formam os expoentes do início das
manifestações na capital paulista. Mas não se limitaram apenas à experiência do
grafite, produziam um misto de grafite, intervenção e performances.
―Foi, entretanto com Alex Vallauri que o grafite, com as características plásticas que são hoje em dia associadas à grafitagem, ganhou uma dimensão popular. Vallauri trabalha sozinho, utilizando máscaras simples, nas quais o contorno da figura predominava, para formar imagens de elementos do cotidiano, tais como o telefone, o cachorrinho, e as famosas botas. Sua figura mais conhecida foi a "Rainha do Frango Assado", mas seu repertório de imagens logo ganhou um vasto público nos bairros de classe média paulistana, como Pinheiros, Bexiga e Vila Madalena. Depois, quando ficou mais conhecido, passou a fazer trabalhos mais elaborados e tinha alguns assistentes, como Carlos Matuck e Júlio Barreto‖.158
A Bota e o A Rainha do Frango Assado de Vallauri; Tintin e o Ladrão
de Matuck e o Gordo e o Magro de Matuck e Zaidler estão entre os ícones mais
fortes dessa época de explosão do grafite em São Paulo, feitos por meio da
técnica de serigrafite. O grupo Tupi-não-dá,159 realizava performances urbanas.
―O grupo nem sempre recorria ao spraycan variando do muralismo ao gestualismo pictórico, caracterizando o grafite como forma diversificada de valorizar espaços degradados e desprestigiados no ambiente urbano e a partir de intervenção sem tratamento de suporte‖.160
Aqui temos uma relação de cumplicidade entre a linguagem do grafite
e a linguagem da arte contemporânea mesma. Esta relação se aprofunda do
ponto de vista técnico e estilístico, pois as intervenções transcendem a questão
do grafite e ganham características outras como Arthur Lara demonstra:
―Esta primeira geração da grafitagem paulistana produziu basicamente três tipos de grafites. Temos primeiramente aqueles realizados com máscaras que evidenciam o contorno da figuras, com temáticas do cotidiano, e valorização do humor. O pioneiro em levantar a temática do cotidiano foi Alex Vallauri seguido por Waldemar Zaidler. Em seguida os grafites com ênfase na plasticidade e influência das artes gráficas, influenciados pelos artistas franceses e americanos da livre figuração. Carlos Delfino, Ciro Cozzolino, John Howard, Jaime Prades, Rui Amaral e Zé Carratu são os principais representantes desta vertente. E, finalmente, os grafites elaborados com máscaras ou técnicas da stencil art, com ênfase em personagens das histórias em quadrinhos, portanto com valorização da repetição e
158 LARA, Arthur H. Arte Urbana em Movimento. Mestrado. Depto. De Comunicações e Artes,
ECA-USP, 1996. p. 43/44. 159 O grupo era formado inicialmente por Zé Carratú, John Howard, Rui Amaral e Jaime Prades.
Depois Rui, Prades e John fizeram suas carreiras individuais, e outros artistas como Carlos Delfino e Ciro Cozzolino, entre outros, participaram deste grupo. In: LARA, Arthur H. Op. Cit. p.45.
160 KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 346.
136
da ilustração. Entre os autores desta vertente situam-se Carlos Matuck, Júlio Barreto e, depois, Maurício Villaça.‖161
Esse é o momento de expansão das experiências do grafite em São
Paulo. Inúmeras outras cenas virão constituir o desafio dessa arte urbana que
vai se consolidar à margem do sistema num primeiro momento, até atingir a
aceitação e institucionalidade do sistema de arte162 como se verificará mais
tarde. Mas seu percurso reveste-se de conflitos e debates colocando sempre o
grafite como arte e a pixação como sendo crime, vandalismo, sujeira e
destruição. Contudo, não se trata apenas de distinções e diferenciações de
ambas expressões mas de sua força e potência intervencionista.
4. Grafite: do estatuto.
4.
161 LARA, Arthur H. Op. Cit. p.45. 162 Sobre a institucionalidade do grafite, ver o meu ensaio Grafite: submissão, asfixia e blá, blá,
blá. In: Encontro Nacional da Anpap (16. : 2007): Florianópolis, SC) Anais do [Recurso Eletrônico]/ 16º Encontro Nacional da ANPAP; (orgs) Sandra Regina Ramalho e Oliveira, Sandra Mackowiecky – Florianópolis: Cidade Multimídia, 2007.
65. Alex Valauri. A Rainha do Frango Assado. In:
www.stencilbrasil.com.br
66. Waldemar Zaidler. O gordo e o Magro. São Paulo, 1986. In: www.stencilbrasil.com.br
137
Grafite: do estatuto. – A afirmação do grafite como arte passa pela
imprensa e pelas manifestações de intelectuais assim como pela relação de
artistas com os meios artísticos tanto quanto pela opção de grafiteiros pelos
espaços de galerias. A revista americana New York Magazine considerou o
grafite como um tipo de arte urbana em 1973. E o escritor americano Norman
Mailer publicou em 1974 The Faith of Grafitti colocando em evidência e
qualificando as intervenções dos grafiteiros. O ensaio Kool Killer ou A
Insurreição pelos Signos data desse período, ―em que defendia um estatuto
para o grafite novayorkino‖.163
Na década de 70 surgiram as organizações de grafiteiros e as
realizações de Mostras de grafite. A formação da UGA (United Grafitti Artistis)
pelo sociólogo e professor Hugo Martinez que realizaram exposições até no
MOMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), é uma das primeiras iniciativas
desse porte. Além da NOGA (Nation of Grafitti Artists) fundada pelo ator e
bailarino Jack Pelsinger que realizou sua grande exposição em 1976.164
Os artistas Keith Haring (1958-1990) e Jean-Michel Basquiat (1960-
1986) tiveram uma participação importante na consagração do grafite como
arte. Ambos estiveram ligados às intervenções daquela época. Haring produziu
trabalhos que dialogavam com as histórias em quadrinhos, além de intervenções
performáticas como a do Time Square Show em 1980 e sua intervenção no muro
de Berlim. Basquiat era o grafiteiro SAMO que saiu das ruas para as galerias.
Sua obra mantém a força dos grafismos urbanos e erige-se em um íntimo
diálogo com a arte contemporânea. Ganhou projeção a partir de sua relação com
Andy Warhol que o ajudou a se projetar. Sua primeira exposição ocorreu em
163 KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 338. 164 Idem. p. 338.
138
1982 na Fun Gallery no centro do Lower Eastside de Manhattan que se dedicava
a lançar artistas marginais.
―Os percursos de Keith Haring e Jean-Michel Basquiat ilustram como a afirmação das artes plásticas nos EUA da década de 1980 se articulou com a cultura da urbanidade e do espaço da cidade, sendo o grafite o grande vínculo entre a arte institucionalizada e as ruas de Nova York‖.165
Paulo Knauss registra no Brasil duas exposições de grafite que se dão
a partir da década de 80. Em 1984 foi aberta na galeria Funarte do Rio de
Janeiro uma exposição denominada de Intervenções Urbanas. E no mesmo ano
a galeria Thomas Cohn de arte contemporânea de São Paulo realizou uma
exposição com trabalhos de grafiteiros. Esse é um momento em que o grafite irá
se confrontar com o mainstream possibilitando que se visualize nas
manifestações do grafite urbano uma relação com a arte contemporânea em que
os signos passam a conferir um lugar de novidade mas ao mesmo tempo de
renovação da visualidade contemporânea como ocorreu com Haring e Basquiat.
É notória a aceitação no meio artístico dos signos do grafite. São inúmeros os
exemplos dessa relação que viria se consolidar nos anos 90 e 2000. Nesses dois
períodos o avanço do grafite rumo às galerias e museus foi inevitável. Assim
como o surgimento de publicações especializadas e de estudos acadêmicos sobre
165 KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 339.
63. Keith Haring e uma intervenção urbana em Nova York. In:
www.designboom.com/history/haring/2.jpg
64. Basquiat e uma de suas obras. In: www.expositions-
exhibitions.com/03img
139
o tema. Essa amplitude do grafite pode ser constatada de forma bastante ampla
com a consolidação da Internet. Sites brasileiros como o Stencil Grafite e o Art
Sampa, assim como o estrangeiro Art and Crimes podem ser considerados hoje
verdadeiras bibliotecas de informação das manifestações do grafite, com ampla
bibliografia de publicações de livros, artigos e pesquisas, assim como banco de
imagens, entrevistas com artistas, grafiteiros e divulgação de eventos; o que
permitiu uma maior consolidação dessa arte pelas cidades do mundo. Assim,
entramos nos anos 90 e 2000 com a expansão e institucionalização
incontestável do grafite como arte contemporânea.
5.Grafite: o controle.
5.
Grafite: o controle. – A caracterização do grafite como arte
contemporânea a partir do ano 2000 consolida-se definitivamente. Mas com
essa consolidação, irrompe a nosso ver um aspecto negativo da presença do
grafite na cena do sistema de arte: a perda da potência subversiva que marca o
grafite como genuína manifestação de rua. Nesse novo estágio vem se tornando
uma arte de intervenção domesticada pelas estratégias de absorção do sistema
de arte,166 perdendo dia a dia o trem da história para o cinismo extático do
166 Essa tendência de perda da potência subversiva do grafite não se coloca como uma afirmação
totalizadora do fenômeno, pelo fato de que não entendemos uma uniformização e homogeneização deste aspecto do grafite em todos os grandes centros. Mas apenas uma tendência que está ligada ao surgimento das galerias especializadas em grafite no Brasil como a Grafiteria e a Choque Cultural em São Paulo e a Galeria Adesivo em Porto Alegre. Assim como às grandes exposições como a Graffiti no Brooklyn Museum de Nova York: In: O Globo. 09/07/06. Segundo Caderno. p. 8. Ver o debate em torno dessa relação com o
140
holofote midiático. Agenciado por arquitetos, curadores e produtores culturais
que o integram ao modelo visual contemporâneo numa estética que embevece e
satisfaz: harmonia e justa-proporção imemorial reeditada por exímios
grafiteiros engolidos pelo mainstream artístico. No caso bem específico do Rio
de Janeiro, foi abocanhado pela classe média da zona sul carioca que o levou
como arte decorativa para as paredes de seus apartamentos para diminuir o
tédio de crianças enjauladas na assustadora metrópole em compulsão. Um
drops estético para o longe das balas perdidas. Logo se vê que o grafite entrou
na moda. Tá na roupa, no carro, no tênis, na mídia-mundo. O grafite, enfim, foi
se transformando em arte de galeria, diluindo sua potência política e
intervencionista que privilegiava a cidade como seu espaço de intervenção e
discurso, colocando-o como resistência a um modelo de arte completamente
sujeito aos mecanismos de controle de museus, galerias, bienais, publicidade.
Ordem na cidade. Harmonia e beleza no desejo asséptico contemporâneo. O
grafite ganhou status de arte de galeria com direito à curadoria, patrocínio e
apoio governamental como no caso da exposição Fabulosas Desordens em
março de 2007 no Rio de Janeiro. Com isso se vê que o grafite, nascido dos
conflitos raciais, da miséria econômica e cultural como um disparo na direção
da ordem burguesa de homogeneização dos sujeito nas metrópoles modernas,
reinstala-se como o decorativismo morno em nome do novo nas mãos de
atravessadores da arte, ávidos pela descoberta de talentos que venham azeitar
as engrenagens do velho sistema de arte. Isto está completamente expresso no
texto da curadora Daniela Labra da Fabulosas Desordens - que diga-se de
passagem de desordem não havia absolutamente nada, na medida em que tudo
sistema de arte na matéria de capa Sociedade do Grafite na Revista Ocas. N. 42. Fev. 2006. Outro acontecimento importante foi a exposição FABULOSAS DESORDENS na Galeria da Caixa Cultural no centro do Rio de Janeiro em março último, que acirrou o debate sobre a institucionalização do grafite.
141
se estribava num total controle e ordenação de todos os processos e movimentos
no espaço expositivo do cubo branco e preto - corroborando uma espécie de
efeito domesticador do grafite inserido no sistema, na galeria, no modelo
midiático globalizado. A curadora diz:
―Os principais critérios para seleção dos participantes foram o tempo e o modo de inserção no mercado de trabalho e na mídia de cada um. Todos atuam na indústria do entretenimento há pelo menos seis anos; e também no mercado de arte – expondo em mostras coletivas e individuais. Muitos são autodidatas enquanto outros têm formação acadêmica em artes. Em comum: são compulsivos em desenhar sobre amplas superfícies e fascinados pela ocupação de locais públicos‖.167
O que demonstra que o grafiteiro virou um artista plástico com todas
as peculiaridades que caracterizam os artistas contemporâneos em geral,
incluindo a prática e o status dado pelo sistema. Talvez por isso a curadora use o
termo desenhar designando o fazer do grafiteiro a partir da tradição da arte na
história em que o desenho é um dado referencial. Portanto, situando-o na
ordem do capital, comum a todos que se submetem à formatação do sistema de
arte. Diante disso, o controle é afirmado, a perda de potência é inegável, embora
não cubra as experiências macros e radicais do grafite que se manifestam
noutros centros do país e do mundo. A arte está na rua. Dobre a esquina.
167 LABRA, Daniela. Fabulosas Desordens. Texto de apresentação da Exposição. Março/ abril de 2007.
142
6. Grafite e Pixação: con-fusões.
6.
Grafite e Pixação: con-fusões. – A distinção entre o grafite e a
pixação já é ponto pacífico. Passou-se a distinguir o grafite da pixação
atribuindo ao primeiro a condição de arte e ao segundo, um tipo de prática de
vandalismo e depredação das cidades com um sentido expressamente marginal
e ilegal, alçado à condição de crime na lei.168 Esta distinção se deu por conta do
próprio desenvolvimento técnico, formal, e de um certo modo, institucional
sofrido pelo grafite desde os anos 70. Naquela época a distinção entre as
expressões já estava em curso e se usava o termo pichação169 de modo genérico
para as manifestações que surgiam nas capitais brasileiras, o que levava a uma
não aceitação do grafite como arte urbana por conta dessa associação ou
confusão com a pixação. Paulo Knauss destaca esse aspecto:
―Nesse momento, verificava o conceito de pichação para identificar o grafite urbano. Trata-se de uma referência à técnica de pintar com piche e anterior à lata de tinta em jato, spraycan. A utilização da tinta a jato conduz, no entanto, a soluções diferenciadas do piche que não permite obter tons matizados e se restringe ao preto de manchas largas devido aos grandes pincéis empregados e à espessura densa do piche‖.170
Não obstante, ambas as práticas estão interligadas por se utilizarem
de latas de tinta spray como o material preferencial na produção das imagens.
Na Figura 65 esse diálogo é notório, pois constata-se na mesma
imagem que as transformações porque passou o grafite desde os anos 70 foram
acentuadas. Novos elementos foram acrescidos às produções como cores,
tonalidades, nuanças, texturas e composições, isto é, uma gama de elementos
caros às artes visuais, e tendo como base um figurativismo predominante. Isto
168 Art. 65 da Lei N.º 9.605/. 169
Com a grafia corrente: pichação. N.A. 170 KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 340.
143
facilitou com que o grafite fosse facilmente absorvido pois sua estética foi se
adequando às construções de imagens midiáticas, principalmente à publicidade
que passou a dialogar de modo amplo com o grafite. E aqui é preciso perceber
que a indústria da moda e de entretenimento soube tirar partido dessas formas
coloridas e agradáveis que compunham o espaço urbano.
A publicitária Ciça Mattos dá um panorama bastante interessante da
absorção do grafite pelo mundo da moda numa matéria para o site Bolsa de
Mulher. Ela produz uma rasa distinção entre ambas as expressões ao apontar a
absorção positiva do grafite pela moda. Diz: ―confundido algumas vezes,
injustamente, com pichação – um ato de vandalismo e poluição visual sem
propósito – ainda assim o grafite conseguiu ser respeitado a aplaudido mundo
afora.‖171 Faz a usual distinção entre arte e vandalismo e a clássica menção à
arte pré-histórica, aos egípcios, romanos e ao movimento novayorkino dos anos
60. Este exemplo pode parecer esdrúxulo mas é citado aqui apenas como um
dos incontáveis exemplos de textos jornalísticos e publicitários que costumam
171 In: http://www.bolsademulher.com/estilo/materia/grafite_na_passarela/5898/1. Ver
também: http://www.erikapalomino.com.br/moda/tendencias. Visitado em setembro de 2007.
65. Grafite e pixos na cena urbana carioca. Muro do Jóquei – Jardim Botânico - Rio de Janeiro
144
destacar o crescimento do grafite em diversos espaços e ao mesmo tempo
estabelecendo a distinção com a pixação mas sem muita preocupação analítica.
E no geral incorrem num erro crasso: acabam usando o termo pichar como
sinônimo de grafitar. Ao comentar um game Ciça Mattos ela diz:
―o grafiteiro virtual passeia por ruas abandonadas de uma cidade em decadência, picha (grifo nosso) literalmente cartazes de propaganda política autoritária, enfrenta membros de outras gangues, foge da polícia.‖172
Isto é muito comum em artigos e matérias principalmente na
Internet. Mas o que se verifica de fato na matéria é a ampla entrada do grafite
nos diversos meios como vimos apontando, devido a uma adequação visual
inegável ao gosto do público, atualizando a visualidade contemporânea,
percebida não só nas ruas, mas nos diversos ambientes da sociedade moderna,
incluso o virtual.
Mas a presença dos pixos não deixou de se expandir no espaço urbano
das cidades. Na imagem acima citada eles se espalham na parte superior e
inferior da parede compondo com a parte mais figurativa da imagem uma
dinâmica intensiva. O que evidencia um diálogo efetivo entre as duas formas de
expressão. Com isso é possível distinguir o grafite e a pixação por uma questão
formal e ideológica, mas não dá para visualizá-los apartados das mutabilidades
a que a cidade está submetida. A construção da visualidade contemporânea
revela que ambas as expressões sobrevivem em condições de interdependência,
diálogo e contradição, a ponto de constantemente serem confundidos,
sinonimizadas em suas interpretações e marcações teóricas, publicitárias e
jornalísticas. E para consubstanciar as afirmações acima, e que dialogam com a
172 Idem.
145
matéria da publicitária Ciça Mattos, citamos o exemplo da revista eletrônica
alemã DW-WORLD.173
A fusão de pixação e grafite é mais radical na Figura 66. E a confusão
no uso dos termos reflete essa própria fusão reiterando a força estética e
artística das expressões. Vejamos: existem três curiosidades na matéria. 1º - O
título: Grafite na fronteira entre o vandalismo e a arte. 2º. O sub-título: Crime
ou liberdade de expressão? Alemanha combate "artistas urbanos". Grafite é
visto como um problema social capaz de influenciar a formação cultural dos
jovens. E 3º. A referência à imagem é descrita da seguinte forma: Muro
pichado (grifo nosso) em Wiesbaden, capital do Estado de Hessen.
Há uma total confusão no uso dos termos, ora se diz que grafite é
pixação, ora o contrário. Assim como colocam a expressão artistas urbanos
entre aspas, o que supõe um colocar em dúvida a afirmação de tal expressão
como arte. Isso tudo demonstra que não há preocupação em se diferenciar
ambas expressões. O que de um certo ponto de vista para os meios de
173 http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1546487,00.html. Visitado em setembro de
2007.
66. ―Muro pichado em Wiesbaden, capital do Estado de Hessen‖.
146
comunicação esse não é um dado importante, na medida em que o
enquadramento é o que pressupõe a uma anulação de sua força. De outro modo,
tentar delimitar as fronteiras para o grafite e a pixação só tem eficácia numa
perspectiva didático-teórica, mas que na prática é perda de tempo, o que no
âmbito do espaço urbano as imbricações, fusões e metamorfoses dos signos é
um aumento de força, explosão e intensificação das intervenções no corpo da
cidade. Com isso acenamos para as distinções possíveis entre o grafite e a
pixação, ao mesmo tempo em que evidenciamos as com-fusões e distinções que
se pode forjar das expressões.
Contudo, em virtude das transformações formais porque passou o
grafite, um dado se evidencia ao nos voltarmos para o grafite em seus momentos
iniciais. A estrutura formal daqueles primeiros anos em Nova York legaram para
a construção da pixação no Brasil sua característica formal e sua densidade
estética e intervencionista. Podemos constatar nas Figuras 67 e 68, tal como
afirmada no aforismo 2 deste capítulo, de que o graffiti inicial desde Nova York,
tem nas pixações atuais sua semelhança concreta, isto é, os tags novayorkinos
equivalem à pixação brasileira. E isto se revela como um dado de extrema
relevância para dimensionarmos a intervenção da pixação na cidade. Sua força,
sua explosão e seu vazio.
66. Tags no Metrô de Nova York. Dec. de 70.
67. Pixos. Rio de Janeiro. Tijuca. 2007.
147
7. Pixação: do não-autorizado.
7.
Pixação: do não-autorizado. – Dado o fato de que pixação não é
grafite, e que sua própria constituição formal se distingue deste, ao mesmo
tempo em que o evoca por certos traços de sua origem, e na medida em que o
grafite foi sendo capturado pelo sistema de arte como uma das mais novas
expressões artísticas do contemporâneo, a pixação foi produzindo um outro
lugar a partir do princípio de não-autorização. E é nessa questão de autorização
e não-autorização174 que Tristan Manco175 se equivoca ao atribuir ao grafite a
condição de não-autorizado, na medida em que todo ele já se encontra
subjugado a um mecanismo que o reje. O não-autorizado é aplicável à pixação e
não ao grafite, na medida em que a dimensão tomada por este já é de um
reconhecimento e de uma institucionalização como um tipo de arte com eventos
organizados, galerias, seleção de artistas e estilos, especificados no atual sistema
de arte vigente. Portanto, a característica de não-autorizado foi se perdendo na
174 Ver nota 10. 175 ―Conheci galerias como a Choque Cultural e a Grafiteria, em São Paulo, e a Galeria Adesivo
em Porto Alegre, que não só expõem graffiti como oferecem assistência e encorajam os artistas a se desenvolverem e explorarem novas direções.‖ In: MANCO, Tristan. Op. Cit. E para uma maior constatação da condição do grafite como arte ver os sites: http://www.artsampa.com/;http://www.stencilbrasil.com.br; http://www.lost.art.br; http://www.artforall.com.br etc. Visitados durante todo o percurso da pesquisa.
148
medida em que o grafite foi sendo absorvido pelo sistema de arte a gerar o
estatuto da asfixia e da diluição daquilo que pressupunha sua natureza
subversiva.
E é na impossibilidade de um estatuto qualquer que a força da
pixação se evidencia, sendo que ela não é da ordem de uma autorização, pois
sua inserção numa dimensão autorizada pressupõe a diluição e a perda de sua
potência signo-estética. Por sua própria natureza e força, a pixação não é da
ordem de um estatuto que a sobrecodifique na mecânica do sistema de arte.
Não cabe nessa prática o modelo encarquilhado desse sistema a tomá-la desde
sua circunscrição no espaço, enquanto ela insurge nas paredes das cidades
reativando sua dimensão visual do espaço urbano, assaz desfigurado em sua
própria mutabilidade.
149
8. “Não há estatuto na zona!”
8.
“Não há estatuto na zona!” - É preciso observar que a pixação se
encontra numa zona difusa entre o sistema de arte e seu fora, a cidade. É essa
zona morta que produz sua dimensão estética e artística, seu outro com a
cidade. Intermitência e saturação. Perdas e vazios. Dados que atuam sobre o
fluxo sígnico produzido pelos pixos. E muitas possibilidades são disparadas
nessa zona intersticial; voltamos a reiterar uma delas: a impossibilidade da
formulação de um estatuto de arte para a pixação, objeto difuso, fluido,
mutável, efêmero. Com isso, o diálogo da pixação com o sistema de arte se dá
por meio de cortes e rupturas, nas fendas desse sistema, constituindo-se numa
exterioridade tácita. Não há estatuto na zona! A concretude dessa afirmação
são as intervenções disparadas nas manifestações ou eventos de arte produzindo
alterações nos processos instaurados e num certo sentido na própria abertura176
desses processos de criação. É o caso do pixo na obra do artista cubano
naturalizado americano Jorge Pardo na 26ª Bienal de São Paulo em 2004. O
artista fez um comentário sobre o ocorrido que surpreendeu os mais exaltados
com esse tipo de intervenção:
"Se alguém faz alguma coisa no seu trabalho, isso é positivo, para mim, porque escolheram a minha peça entre as expostas" (...). "Quem fez isso deve discordar de alguma coisa na obra. Pode ser outro artista fazendo sua própria obra dentro da minha. Pode ser só uma brincadeira"177, afirmou Pardo.
E ainda deixou claro que isso já havia ocorrido num outro trabalho
seu na Alemanha; e finalizou dizendo que “pichar a obra de alguém também
não é tão incomum. Já é tradicional".178
176 ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 8. ed.
São Paulo: Perspectiva, 1991. 177 Grifos nossos. 178 Cf. http://diversão. terra.com. br . Visitado em outubro de 2007.
150
O olhar de Pardo demarca a pixação como uma intervenção
positivante e ao mesmo tempo um corte sobre sua obra, mesmo definindo-a
enquanto um modo tradicional de intervenção. O que não lhe faz justiça pelo
fato de que seu agenciamento não se dá nos moldes tradicionais como Pardo
menciona; seu funcionamento produz relações com esse sistema na medida em
que as ações são deflagradas nas fendas de um sistema todo ele configurado,
viciado, atravessando-o, sem com isso compor o próprio mecanismo. Assim, da
zona para as fendas do sistema de arte a pixação pulsa, explode. Um corte no
próprio modo de se perceber as possibilidades outras das intervenções, dado
este que, na pixação, é todo intensidade e tensão.
Nessa direção, as obras que encontramos nos espaço das grandes
cidades também sofrem intervenções de diversas naturezas, como é possível
observar na obra O Grande Quadrado Vermelho de Franz Weissman no centro
do Rio de Janeiro.
68. Pixo na obra do Jorge Pardo na 26ª Bienal de São Paulo em 2004. Foto: Rogério
Lorenzoni/Terra.
151
9. Pixação: do princípio de volatibilidade.
9.
Pixação: do princípio de volatibilidade. – As evidências da
distinção entre o grafite e a pixação que foram destacadas anteriormente, em
vista da recorrência a inúmeros trabalhos mencionados, acentuam o
distanciamento com que a pixação passou a ser tratada pelos autores,
marcando-a com caracterizações a nosso ver reducionistas de sua potência de
69. Intervenção na obra de “Grande Quadrado Vermelho” (1996) de Franz
Weissman localizada na Av. República do Paraguai Centro do Rio de Janeiro.
152
intervenção e de outro modo de outras visadas possíveis. Tomemos como
exemplo a caracterização que Arthur Lara dá à pixação em sua pesquisa sobre o
grafite paulista. Ele diz:
―Há ainda uma outra inscrição urbana, geralmente chamada de pichação, que tem uma estrutura semelhante à da grafitagem. Diferentemente dela, porém, trata-se de uma forma de comunicação fechada, executada inicialmente por um único indivíduo mas que, em seguida, passa por um processo de identificação coletiva e a ser realizada por grupos, espalhando-se por todo o tecido urbano de forma repetitiva e desordenada‖.179
Observemos que Lara coloca em questão a incomunicabilidade da
pixação como sendo seu traço mais forte e sua identificação circunscrita aos
grupos, além de sua execução repetitiva e desordenada, caindo na dimensão
valorativa e negativa da pixação a partir da incomunicabilidade de seus signos,
rebatendo-o sobre o grafite, na medida em que este promove uma amplitude
maior no que tange à comunicação urbana, foco da abordagem de Lara. Ele
acrescenta ainda:
―Embora sejam realizadas por indivíduos anônimos ou gangues, sua motivação é a fuga do anonimato: através da pichação procura-se a fama rápida, a difusão do nome da gangue e, também, a destruição da ordem vigente, a aventura, o risco, a satisfação do vício. Assim, a interação se faz entre um emissor ativo e conhecido apenas por sua marca e um receptor passivo. Apenas os membros da própria comunidade de pichadores decifram o conteúdo das pichações. Em geral, há rejeição por parte do público maior, por causa da falta de compreensão e intelecção das inscrições‖.
De fato Lara tem razão em suas caracterizações da pixação, mas
apenas num primeiro momento, pois estes elementos apontados pelo autor
davam à prática da pixação a condição de sua mais corrente afirmação: disputas
de territórios, intervenções em lugares mais difíceis de pixar, busca por fama
quando a mídia noticiava alguma intervenção mais ousada de certos pixadores,
como Binho e Neto no famoso caso do Cristo Redentor no Rio de Janeiro em
179 LARA, Arthur H. Op. Cit. p. 78/79.
153
1991.180 Mas isso é apenas parte dos processos de intervenção. É importante
observar que estas características contribuem para fazer da pixação exatamente
o que ela é, na medida em que ela é o outro lugar na cena contemporânea,
distinta em sua própria potência reducionista em relação ao grafite. Se este
evoluiu para um patamar em que sua aceitação o coloca dentro do sistema de
arte, com a pixação o ganho de força se deu a partir de sua própria
irredutibilidade, tal como Baudrillard apontava nos graffitis de Nova York:
"Irredutíveis por sua própria pobreza, eles resistem a toda interpretação, a toda conotação, e eles não mais denotam coisa alguma: nem denotação, nem conotação; é através disso que eles escapam do princípio de significação181 e, enquanto significantes vazios, irrompem na esfera dos signos plenos da cidade, os quais eles dissolvem com a sua simples presença.182.
Do mesmo modo que os tags novayorkinos estavam investidos dessa
potência esvaziada, os pixos mantiveram esse dado através das décadas como
uma de suas características principais. Mesmo que tal esvaziamento sígnico seja
um dos traços da pixação, ocorreram alterações nas intervenções pelas
cidades183, porém, sem perder seu esvaziamento agônico. Assim, do lugar de sua
potência intervencionista está sua dimensão incomunicativa, seu mutismo, seu
silêncio.
As palavras de Flávio Calazans combatem as classificações
superficiais e de um certo modo afirmam a idéia de um outro lugar: ―Grafites
figurativos e pichações verbais: uma distinção artificial feita por pseudo-
pesquisadores olhando de fora um movimento de arte das ruas, cuja
complexidade intermídia escapa a classificações superficiais.‖184 Isto é
recorrente, daí a necessidade de expansão das falas até a exaustão, sem que se
180 KNAUSS, Paulo. Op. Cit. p. 344. 181 Grifo nosso. 182 BAUDRILLARD, Jean.Op. Cit. p. 37 183 Esse aspecto poderá ser observado no Capítulo IV sobre a pixação em Belém e Rio de Janeiro. 184 CALAZANS, Flávio. In: http://www.revistaetcetera.com.br/artesvisuais. Visitado em outubro
de 2007.
154
caia apenas nas distinções e classificações ou nos reducionismos de praxe que
colocam a pixação apenas filtrada pelo discurso da lei ou de um modelo de
sistema de arte que tenta ocultar as suas linhas de fugas possíveis, evitando o
risco de se perceber o objeto em sua complexidade e contradição, tal como
Baudrillard percebeu a manifestação inicial do grafite em Nova York com seu
olhar diferenciado a expandi-lo para campos outros:
“Estes termos não possuem nenhuma originalidade: eles vêm todos das histórias em quadrinhos, lugar onde estavam encarcerados na ficção, mas eles saem explosivamente delas para serem projetados na realidade como um grito, como interjeição, como antidiscurso, como recusa de toda elaboração sintática, poética, política como o menor elemento radical incapturável por qualquer discurso organizado‖.185
E essa espécie de irredutibilidade interpretativa, da pixação é
também um dos traços que marcamos em nossa atitude teórica frente a tal
experiência no contemporâneo, ao percebermos que seu acontecimento gera
forças que se movem na direção de lugar nenhum, afastando-se freneticamente
do discurso artístico usual: o lugar de uma comunicação e expressão
passível de compreensão a vestir o objeto e reduzi-lo ao que o
enrijece e o dilui. Flávio Calazans dispara uma vez mais: ―lendas urbanas e
toda uma mitologia de grupo manifestam-se nas pichações velozes, feitas no
ritmo do videogame e com a mesma fragmentação do videoclipe‖.186 Esse é um
dado crucial na apreensão da intervenção: a fragmentação e o deslocamento,
que se vinculam à efemeridade de sua manifestação, sua velocidade contumaz
explodindo sobre as paredes das cidades para desaparecer no movimento
mutante do espaço urbano. Efemeridade essa que deixa o rastro de sua
insubmissão a qualquer discurso que tente enquadrá-la sem levar em conta seu
185
BAUDRILLARD, Jean.Op. Cit. p. 37. 186 CALAZANS, Flávio. In: http://www.revistaetcetera.com.br/artesvisuais. Visitado em outubro
de 2007.
155
próprio desaparecimento e esvaziamento significativo, é através disso que
eles escapam do princípio de significação. Fechá-la nas definições
redutoras, nas classificações limitativas é apenas uma forma de erigir
construções diluidoras, pois os pixos deslocam-se no tempo-espaço, surgindo e
desaparecendo naquilo que é próprio de sua natureza: sua volatibilidade.
70. Pixos na Lapa/ Rio de Janeiro. Foto: Adriano Castanho.
156
10. Pixação: na vitrine-virtual.
10.
Pixação: na vitrine-virtual - O diálogo da pixação com os outros
espaços é inevitável, o que permitiu o surgimento de estudos e pesquisas
acadêmicas de diversas abordagens, publicações, e de sua presença no mundo
virtual, criou-se uma produção intelectual em torno dessa prática. Sua potência
sígnica coloca-a como um tipo de pensamento artístico que de fato gera uma
configuração próximo do que poderia ser entendido como um estatuto de arte,
com regime mercadológico intrínseco, se pensarmos que há publicações sobre o
tema disponíveis nas livrarias do país.187 Isto nos levaria a uma conclusão causal
de que sites, blogs, comunidades, organizações, eventos, publicação dão já um
estatuto de arte para a pixação. No entanto, no espaço virtual o aparecimento
dos blogs, sites e comunidades, como no caso do Orkut,188 ligados à pixação,
demonstra não a constituição de um estatuto de arte, mas apenas a expansão da
presença dos pixadores e grupos que afirmam tal fazer constituindo-se numa
prática artística através de rede e conexões. À revelia de uma legalidade, esses
sujeitos e grupos estão presentes no mundo virtual, assim como revelados em
suas próprias intervenções urbanas. Todos os espaços são passíveis de
interferência, e o espaço virtual só constata esse dado. São conexões que
187 BOLETA. (Org.). Tsss: a grande arte da pixação em são paulo, Brasil. São Paulo: Editora do
Bispo, 2005; teve destaques no mercado editorial brasileiro cobrindo as experiências de pixação em São Paulo e fugindo do lugar comum por sua ousadia visual e temática, rivalizando com outro lançamento do mesmo ano: de MANCO, Tristan; LOST, Art & NEELON, Caleb. Graffiti Brasil. Londres: Thames & Hudson, 2005.
188 ―O Orkut é uma comunidade on line que conecta pessoas através de uma rede de amigos confiáveis. Proporcionamos um ponto de encontro on line com um ambiente de confraternização, onde é possível fazer novos amigos e conhecer pessoas que têm os mesmos interesses‖. Descrição oficial na home do site. Algumas comunidades do Orkut ligadas à pixação trazem o termo arte em seus títulos ou fazem referência à prática artística. Como ponto de partida para uma pesquisa das comunidades de pixação no Orkut, indicamos a comunidade http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=14068704. http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=7655731; http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=18886026; http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=10893459.
157
ampliaram a possibilidade de os visualizarmos para além de suas percepções
clichezadas. O espaço virtual como um espaço tomado por todos os discursos
possíveis: vitrine-virtual, projeta a pixação como um discurso artístico,
afirmando sua deriva a atingir a plenitude de sua densidade, pois no virtual
tudo é fluído, efêmero e saturado, condição pela qual a pixação acontece na sua
contingência sígnica. O vazio no vazio. O fluido no fluido. O efêmero no
efêmero. O saturado no saturado. Inibindo a instauração de uma ordem que a
reja como ocorre com as práticas artísticas correntes, pois que ela não passa de
um signo amorfo. Virtualmente morto. Eis sua força. Eis sua morte.
11. Da cidade-obra e seus atravessamentos.
11.
Da cidade-obra189 e seus atravessamentos. – A presença da
pixação na cidade se dá por distúrbio e ruído. À proliferação dos signos é
189 Desenvolvemos a noção da cidade-obra na dissertação de mestrado intitulada: Belém:
cidade-obra revelada em fragmentos caóticos (2003). Um olhar sobre a cidade de Belém pela ótica de seus fragmentos apodrecidos. A cidade vista como um objeto artístico a sofrer uma série de interferências.
158
impossível a um controle; isto se verifica diante de todas as políticas de
contenção das intervenções contemporâneas desde a década de 70. De um certo
modo isso evidencia o que Jonathan Raban disse sobre a cidade em Softy City:
―a cidade é um lugar demasiado complexo para ser disciplinada (...) labirinto,
enciclopédia, empório, teatro, a cidade é lugar em que o fato e a imaginação
simplesmente têm de se fundir‖.190 E se fundem. Com todas as suas dimensões
possíveis porque a cidade é um espaço de experimentação em estado pleno. E a
imaginação deflagra o tempo todo signos, cortes, rupturas, dilaceramentos,
alterações, esgarçamentos de sua forma. A constituição da cidade se dá a partir
dessa mutabilidade, o que se mostra evidente no processo histórico permitindo
diversas leituras. No ensaio Cidade ideal e cidade real Argan afirma a existência
da cidade-obra, cidade real, erigida em oposição à visão romântica da cidade
ideal. Ele diz que a cidade: ―não é apenas (…) um invólucro ou uma
concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma‖.191
Assim, projetada por Argan como obra, a cidade vai ser atravessada por uma
série de intervenções que constituirão sua forma, mas uma forma em constante
mutabilidade. Um devir-cidade a absorver todos os fluxos matéricos e sígnicos
deflagrados por diversos sujeitos em constante confronto com a cidade-obra. O
conceito de cidade-obra para Argan é confrontado com a visão de arte como
expressão de um indivíduo advinda da Renascença:
―o conceito se delineou de forma mais clara desde quando, com a superação da estética idealista, a obra de arte não é mais a expressão de uma única e bem definida personalidade artística, mas de uma soma de componentes não necessariamente concentrada numa pessoa ou numa época‖.192
190 RABAN, Jonathan. In: HARVEY, David. A Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
p. 17. 191 ARGAN. Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes,
1998. p. 73. 192 ARGAN. Giulio Carlo. Op. Cit. p. 73.
159
E os componentes a que Argan se refere nos permitem entrever na
cidade, as diversas intervenções possíveis que a constituem. Não somente no
âmbito de uma apreensão estética da cidade mas das redes de relações
estruturais que a projetam passando pela economia, à administração, planos
diretores, arquitetura, urbanismo etc. As intervenções ampliam-se para campos
diversos, e numa percepção macro e micro da cidade; os diversos eventos vão se
sobrepondo gerando camadas diversas da cidade ―a qual pode sem dúvida, ser
concebida como obra, uma obra de arte que no decorrer de sua existência,
sofreu modificações, alterações, acréscimos, diminuições, deformações, às vezes
verdadeiras crises destrutivas.‖193 Este é um aspecto essencial da análise de
Argan pois o historiador italiano corrobora aquela mutabilidade a que nos
referimos. Todas as alterações, acréscimos, diminuições etc., sofridas pela
cidade compõem os traços de sua identidade mutável, seus múltiplos perfis,
seus territórios contaminados, suas linhas de fuga. Nesse sentido é possível a
constituição de mapas estranhos, pois eles nunca serão acabados pois a cidade
muda o tempo todo, ―e pode continuar a mudar sem uma ordem providencial e
que, portanto, exatamente a sua mudança contínua é representativa‖.194 E nisto
está implicado no modo como a cidade vai se constituir na história, sem essa
ordem providencial, ordem do controle, do comando. Estes aspectos só se
insinuam numa projeção oficial e midiática, pois que todo o corpo da cidade é já
um corpo pulsante pelas condições de sujeitamento aos fluxos matéricos e
sígnicos que lhe submetem a carne. As intervenções agenciam a mutabilidade. A
mutabilidade agencia os fluxos. Os fluxos revertem-se em pixos e tudo pulsa na
cidade-obra. Os pixos aparecem e desaparecem marcando o corpo da cidade
193 Idem. p. 73. 194 Idem. p. 75.
160
com suas escamas, traços, riscos, esfoladuras, cortes: pixos descontrolados e
disparados em velocidades infinitesimais. Não-linear. Devir-pixo. Pois
―que o devir nunca tem um ritmo ou um andamento linear, não corresponde a nenhum esquema, ou padrão, a priori. Não é certamente a lógica da história, mas a desordem dos eventos que se reflete na realidade urbana herdada do passado.‖195
E essa desordem engendra a cidade-obra na história, com seus
eventos repentinos. E a pixação insurge no corpo da cidade como um dos
eventos a imputar em sua forma signos estranhos. Atravessamentos de pixos a
tatuar e cobrir a tez doída da cidade com novos perfis. As pulsações da cidade
vão se dando pelas mutabilidades das matérias que nela se inserem. A forma da
cidade passa por diversas metamorfoses e mutações que definem de um certo
modo seu caráter de organismo vivo. Dotá-la dessa condição mutável é senti-la
em seus perfis mais estranhos. Estranhezas necessárias paridas num ritmo
alucinado. O corpo da cidade experimentado à exaustão. Dilacerado em seu
próprio latejar. Cidade alterada. Cidade-obra como Corpo sem Órgãos.
195 ARGAN. Giulio Carlo. Op. Cit. p. 75. (Grifo nosso).
71. Nenhuma paz sem minha terra! Pichação nacionalista numa rua de Belém, em
1987. (Foto: Rula Halawami, in A Khilafah Info). In: http://www.mw.pro.br
161
12. Cidade-obra: instauração de um Corpo sem Órgãos.
12.
Cidade-obra: instauração de um Corpo sem Órgãos. –
Naquilo que flagra a explosão ilógica dos sentidos a pulsar num tempo retorcido
em todas as distâncias e fibras de nossas experimentações está a possibilidade
da cidade como obra de arte, visada por Argan e investida de uma estranheza
necessária e atravessada pelo que Antonin Artaud chamou de Corpo sem Órgãos
(CsO) e Deleuze e Guattari deram densidade. Um corpo possível aberto a
conexões diversas — num escape das cenas viciadas do modelo capital
empanturrado de signos artísticos — que na cena contemporânea é necessário
retomar, reviver, fazer ruir, na condição de que produz os fluxos explosivos,
interdições e experiências estéticas radicais. Porque o CsO
―é não-desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. Diz-se que: que é isto – o CsO – mas já se está sobre ele – arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto, nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos.‖196
E no vazio que nos assola abre-se a condição de retomada dessa
experimentação a se expandir no tempo-espaço. Na cidade-obra não há a
possibilidade de um fora, pois ela é todo corpo a recobrir os gestos nela
196 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de
Janeiro: Editora 34. p. 9/10.
162
incrustados; um todo expandido como um sistema em que podemos
experimentar a partir de sua própria mecânica; encontrar conexões que
permitam alterar sua configuração ou até desintegrar seu funcionamento.
Abrindo fendas possíveis, instaurando próteses, destruindo rituais previsíveis
gerados no acontecimento mudo de cada dia. Não há limites para interferências
e interdições, regozijos e dores. A não ser que se assentem na condição de
simulacro: reedição da mesmidade capital flagrada no esvaziamento do signo.
Fake-formas. Daí a necessidade de declaração de guerra nietzscheana aos
órgãos imantada em em Artaud: ―porque atem-me se quiserem, mas nada há de
mais inútil do que um órgão.‖197 Com isso a sujeição da cidade-obra pertence à
imaginação de cada indivíduo na sua prática artística ou não, a produzir suas
interferências possíveis, a deflagrar os processos absurdos que requer o
acontecimento da cidade-obra como esse CsO intenso, inviabilizando o pseudo
comfort moderno alardeado pelas estéticas da passividade. Estéticas de
boutique enfurnadas na reedição dos eventos e agendas das metrópoles. Esse
CsO em que a cidade se transforma pressupõe experimentações que podem se
dar em diversos níveis: articulação incisiva por sobre o socius, enterrando
minas do desejo que não são possíveis de identificação, a explodirem os órgãos
demarcados: a mecânica funcional da cidade e suas configurações decadentes.
Anulação da fantasmagoria e da fanfarronice institucional agenciadas pelo
suporte da tradição ou do ethos cínico sustentado nos velhos discursos.
Portanto, demanda destruição do antigo, mas o antigo como o que se quer como
verdade embalsamada. Tradição surda que evade a experimentação de um novo
como aquilo que desconstrói, inviabiliza e reduz. Pois
197 ―É uma experimentação não somente radiofônica, mas biológica, política, atraindo sobre si
censura e repressão. Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu canto”. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Op. Cit. p. 10.
163
―será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre.‖198
Deflagrações de processos que no nível da cidade tomam-na em suas
funções para desmontar ou inverter o funcionamento de seus órgãos. Torná-la o
que é possível como explosões de não-sentidos. Intervenções que se dêem de um
certo lugar naquilo que pode ser até mesmo a ordem do discurso a solicitar a
inviabilidade por uma lógica desde sempre reconhecível, semanticamente
assimilável, até atingir o desmonte do logos atávico. E com isso buscar a
interdição por descontinuidade:
―não se deve imaginar, percorrendo o mundo e entrelaçando-se em todas as suas formas e acontecimentos, um não-dito ou um impensado que se deveria, enfim, articular ou pensar. Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem.‖199
Não mais dizer aquilo que se espera ou que se evita dizer e captar as
estranhezas que escorregam pelas frestas da fala-escrita ou talvez nem isso, pois
os sentidos são deslocados e confrontados com sua própria materialidade e
espacialidade. Desmontando aquilo que sempre se espera de uma fala que seja
plasmada no logocentrismo que nos acompanha desde sempre. Mas
experienciar as alterações sintáticas para poder sentir o corpo da fala com
intensidades que se revelam e se abrem no descontínuo de sua própria
estranheza.
―Em diante volver para desdizer o poder desaparecer o vazio. Vazio não pode desaparecer. Salvo o desaparecer do obscuro. Tudo a desaparecer então. Nem tudo de todo desaparecido. Até volver o obscuro. Tudo a volver então. Nem tudo de todo desaparecido ainda. Um pode desaparecer. O par pode desaparecer. O obscuro pode desaparecer. O vazio não pode desaparecer. Salvo o desaparecer do obscuro. Tudo a desaparecer então.‖200
198 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Op. Cit. p. 11. 199 FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. 11. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 52. 200 Pioravante marche. In: Últimos Trabalhos de Samuel Beckett. CARDOSO, De Miguel
Esteves. (Trad.). Lisboa: O Independente Assírio e Alvim. 1996. p. 17.
164
Beckett como uma linha de fuga que não se presta a uma mímesis ou
a um tromp l‟oeil fantasmagórico, mas um percurso exteriorizado naquilo que
constitui ele mesmo. Importando seu caráter exterior a inventar uma função
outra para a fala-escrita que pulsa. Nenhuma transcendência. Nenhuma
metafísica circunscrevendo o flutuar dos sentidos. Apenas a matéria, sua
efetividade, expandida, explosiva, abjeta. Fisicalidade alterada. Cortes, fluxos e
mais uma vez depois: ―encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma
questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria.
É aí que tudo se decide,‖201 seja em qual dimensão for: na cidade como um
corpo matérico em que tudo está exposto ou no corpo próprio a solicitar os
interditos, as provocações. Recolocando os corpos que são possíveis na
procissão indicada por Deleuze e Guattari: corpo hipocondríaco, corpo
paranóico, corpo esquizo, corpo drogado, corpo masoquista. Corpos em que as
alterações são propostas: ―você começa a costura, costura o buraco da glande, a
pele ao redor deste à glande, impedindo-o de tirar a parte superior, você costura
o saco à pele das coxas. Costura os seios, mas com um botão de quatro buracos
solidamente sobre cada mama. Você pode reuni-los com um suspensório.‖202
Assim cabe o encontro de tantas experimentações que deflagrem novas
explosões de não-sentidos e fundamentalmente de intensidades. Para isso se
requer um constante jogo de forças que não admitem limites nem breaks mas
uma sistemática, como um programa de intervenções, mutilações, disarmes,
exposições.
―O CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um
201 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Op. Cit. p. 11. 202 Idem. p. 11.
165
fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso.‖203
Eis que se está diante de um modus operandi que produz a circulação
de novas intensidades experimentáveis, aberturas e cortes que se inscrevem
nesse corpo-forma da cidade. E que se faça passar pelas aberturas o que requer
o desordenar, o desmontar dos mecanismos agenciados desde a lógica redutora.
Infinito reduzir, estender, esgarçar ao máximo. Desfocar e fragmentar até que
nada mais seja, e recompor outra vez. Em cada espaço, acontecimento, ação:
produzir alterações, ligaduras, fechamentos. Poder ter sempre mais expostos os
órgãos que se formam como aquilo que limita. Jogar com eles. Brincar com eles.
Para não mais tê-los na sua ágil eficácia redutora. Alterar por repetibilidade e
exaustão. Ampliar sua eficiência à deficiência. Desde que o que se tenha em
mãos possa fazer surgir novas configurações, as mais impressionantes: por
mutilação, injeção, distensão. Neste tempo que nos imobiliza, o que se ergue por
sobre nós são os ritos fantasmagóricos, cabe-nos encontrar na cidade-material-
relacional a possibilidade de criação do CsO como aquilo que nos transporta
para o abuso das certezas. Alterando a química das matérias que compõem a
cidade-obra. Por aquilo que pode produzir um mais de força, herdado de
tempos outros da tradição moderna da arte. E instaurando esse outro corpo.
Esse outro lugar.
203
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Op. Cit. p. 13.
166
13. Pixo-ruído.
13.
Pixo-ruído.204 – Esse estado da arte que assombra a pixação tem
inúmeras conexões que vislumbramos neste percurso agenciado até o momento.
E que neste trecho da viagem é deflagrado na sua condição de ruído como
aquilo que altera o metabolismo da cidade em sua visualidade endêmica. Numa
ligação com outros eventos da história da arte e da literatura, que são lidos a
partir da condição de ruído, projetamos sobre a pixação a força dessa condição
que injeta potência intervencionista na cidade.
Antes mesmo da teoria da informação identificar o ruído como um
dado importante no processo de comunicação, surgiu na arte do final do séc.
XIX os sintomas do que viria ser sua presença nas pesquisas artísticas da época.
204 Para viabilizar um conceito de ruído, tomamos este citado por Nahman Armony em Ruído
em Psicanálise. In: www.saude.inf.br/nahman/ruido_em_psicanalise.doc. Visitado em outubro de 2007. ―O ruído é tomado, aqui, em seu sentido derivado do estudo das comunicações: trata-se de todos os fenômenos aleatórios parasitas que perturbam a transmissão correta das mensagens, e que geralmente procuramos eliminar ao máximo. Como veremos, existem casos em que, a despeito de um paradoxo que é apenas aparente, pode-se reconhecer nele um papel benéfico‖.
167
A idéia subjacente a este conceito instaura-se desde que consideremos por ruído
o estado de desordem na lógica de qualquer processo sígnico, em que sua
regularidade e linearidade são rompidas, produzindo níveis de colapso
comunicacional expandindo, de outro modo, a informação estética para campos
outros. Aqui o termo é adaptado metaforicamente ampliando seus sentidos,
pois não é possível observar uma efetivação de natureza matemática que
caracterize as condições informacionais de praxe. Neste caso, é apenas
enunciadora de um discurso estético. Uma conexão engendrada no plano deste
estudo da relação possível do que constitui a marca inalienável da pixação, o
pixo, com outras potências discursivas e ativas consideradas, desde seus
acontecimentos específicos, como um tipo de ruído. E assim o demonstramos no
caso de Cézanne e o cubismo; Duchamp e A Fonte; na experiência literária mais
extremada em Beckett e na cidade-obra e sua relação com as intervenções da
pixação. Daí a fusão que envolve dois processos de experimentação: o pixo e o
ruído. Logo, pixo-ruído: instalação de fluxos desordenados no corpo da cidade.
Esse percurso proposto indica uma percepção acerca da mutabilidade da
matéria da arte; e fundamentalmente, da constituição da forma da cidade como
um corpo expandido para campos outros comportando a natureza agônica do
que virá a ser a cidade como um Corpo sem Órgãos,205 densificada pela
potência desestabilizadora e afirmadora do pixo-ruído, ampliando, à exaustão,
sua carne mutante. E dessa condição verificamos aqueles eventos mencionados
anteriormente e articulados com o modo com que o pixo-ruído inflama sua
potência deflagradora de alterações na forma da cidade, em sua carne trêmula,
em seu corpo mundano.
205 Conceito de Antonin Artaud apropriado, recriado e expandido por Deleuze e Guattari na obra
Mil Platôs e disparado no aforismo 17 deste estudo.
168
14. Ruído 1: Cézanne e o cubismo.
14.
Ruído 1: Cézanne e o cubismo. – As vanguardas artísticas do
início do século XX foram capitais para a explosão dos processos de ruído na
informação artística que tem no pós-impressionismo sua eclosão, e que em
Cézanne repercute de forma fundamental para o desenvolvimento subseqüente
da pintura. O mestre de Aix-en-Provence percebeu em suas pesquisas a
possibilidade de construção de uma nova espacialidade em que os valores da
perspectiva linear consolidados desde a Renascença sofreram sua primeira
quebra. Cezánne intuiu de forma brilhante a idéia de realizar e modular
espacialmente a representação dos objetos de forma a se livrar tanto do rigor
matemático dos renascentistas quanto das soluções impressionistas. Com isso
torna sua pintura uma grande ―massa de cor‖ em que surge aos olhos do
espectador uma espécie de totalidade pictórica. Espaços interligados por meio
de pinceladas justas e precisas que uniformizam o espaço do quadro, onde os
olhos percorrem cada área sem perda de interesse pelo todo. Meyer Schapiro diz
que ―em suas pinturas, manchas isoladas do pincel revelam-se como estranha
opção, definindo a unidade de toda uma região de formas‖.206 Tal articulação se
estriba numa profunda observação da natureza e num modo de geometrizá-la de
forma inusitada para a época. Na observação Roland de Azeredo Campos,
Cézanne
206 SCHAPIRO, Meyer. A Arte Moderna: séculos XIX e XX. São Paulo: Edusp, 1996. p. 79.
169
―obtém a tridimensionalidade a partir do plano e não do ponto, destacando e geometrizando porções da paisagem, que adquirem assim individualidade e configuram ângulos de visão diversos, salientados por alternâncias de tons, em estreita conivência. Isto remete à questão da simultaneidade e dos diferentes pontos de vista de observadores inerciais (quanto ao tempo e às distâncias) na relatividade restrita‖.207
E esse espaço passa a ser percebido não mais a partir de um lugar
topológico mas no seu deslocamento retiniano. A pintura torna-se um grande
bloco de cor em que sua constituição se dá pelos constantes deslocamentos das
pinceladas, como ruídos dentro da informação pictural, ao mesmo tempo em
que desmonta o espaço euclidiano208 instaurando níveis de entropia,209 gerando
novas informações estéticas, e aprofundando o conhecimento que temos da
pintura como realidade autônoma. As pinceladas de Cézanne equivalem aos bits
de informação na medida em que esta é dada em porções gerando um paradoxo,
pois estilhaça o espaço euclidiano tornando-o de certa forma ininteligível e, ao
mesmo tempo, cria um leque de informações que solicita do receptor mudança
na postura visual para a apreensão dos novos códigos pictóricos insurgentes no
espaço. O que veicula um dado captado por Merleau-Ponty como uma dualidade
intrínseca no modo próprio de criação do pintor francês:
―para ele a linha divisória não está entre ‗os sentidos‘ e a ‗inteligência‘, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das idéias e das ciências. Percebemos coisas, entendemo-nos a seu respeito, nelas ancoramos e é sobre este pedestal de ‗natureza‘ que construiremos ciência.‖210
207 CAMPOS, Roland Azeredo. Arteciência: afluência de signos co-moventes. São Paulo:
Perspectiva, 2003. p. 22. 208 ―As formas da geometria clássica são as linhas e os planos, os círculos e as esferas, os
triângulos e os cones. Representam uma poderosa abstração da realidade, e inspiraram uma vigorosa filosofia de harmonia platônica. Euclides fez delas uma geometria que durou dois milênios, a única geometria conhecida da maioria das pessoas, até hoje. Os artistas viram nelas uma beleza ideal, os astrônomos ptolomaicos construíram uma teoria do universo com elas.‖ In: GLEICK, James. Caos: A Criação de uma Nova Ciência. 13. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990. p. 89/ 90.
209 Uma das três leis da Termodinâmica inventada pelo cientista alemão Rudolf Clausius (1822-1888). Determinados sistemas atingem um nível de desordem irreversível, em que tal desordem é maior que no estado inicial do sistema. Sua utilização aqui tem sentido totalmente metafórico, alusivo a um certo comportamento de eventos artísticos como no caso da pintura de Cezánne.
210 MERLEAU-PONTY, Maurice. A Dúvida de Cézanne. In: Maurice Merleau-Ponty. São Paulo: Editora Abril, 1975. p. 306. Col. Os Pensadores.
170
Não ciência no sentido positivista clássico, aquela que recusa-se em
habitar o mundo, pensamento de sobrevôo, como indicou Merleau-Ponty, mas
uma ciência da arte, erigida sob os auspícios da percepção, da vivência, tateada
no silêncio do seu fazer. Daí a importância do ruído que Cézanne processou na
informação pictórica: um desfigurar da compreensão, que aqui não tem o
sentido de domínio da informação ou algo parecido, mas um modo de se
relacionar com o fato estético em que compreender é o menor grau possível
dessa relação.
Na trilha aberta por Cezánne, os artistas Braque e Picasso produziram
um estilo de pintura que fundou o movimento cubista, onde a radicalização das
pesquisas cezannianas permitiu aos poucos uma fractalidade espacial maior e
mais intensa, deslocando e radicalizando o espaço e gerando o espaço cubista,
considerado a partir da presença de ruído na geração da informação pictórica.
Um tipo de ruído em que os deslocamentos dos planos pictóricos se entrelaçam
e se sobrepõem expandindo a unidade do ponto de vista do espectador,
permitindo alternativas de apreensão do fato estético, ativando uma polissemia
visual do objeto. Isto impôs uma revisão na idéia do espaço euclidiano como
paradigma vigente desde a Renascença ao promover com que mais e mais o
72. Paul Cézanne. A Montanha de Santa Vitória. (1904/ 1906). Museu da
Filadélfia- USA.
171
estilhaçamento espacial fosse agora retomado como um princípio
representacional de uma outra ordem, pois estamos em direção a um outro
conceito de pintura em que representar não mais será a tônica. E mais e mais o
nível de entropia, os transbordamentos e explosões no sistema pictórico cubista
intensificaram a experiência estética posterior com uma abismal perda dos
referenciais naturalistas enfatizados nos estilos anteriores. Esta nova práxis
artística articulava-se em proximidade com as chamadas geometrias não-
euclidianas que se processavam no mesmo período. Margareth Wertheim indica
nos escritos dos teóricos cubistas Albert Gleizes e Jean Metzinger o interesse na
quarta dimensão das novas geometrias, afirmando que apesar do desejo de
libertar a pintura das restrições da perspectiva, em fases posteriores houve uma
certa inspiração nas geometrias não-euclidianas que a autora aponta nas
palavras de Gleizes: ―se desejássemos vincular o espaço do pintor a uma
geometria particular, nós a teríamos referido aos especialistas não-
euclidianos‖.211 E o espaço pictórico de base naturalista foi aos poucos sendo
implodido pela presença exacerbada de ruídos signo-pictóricos que
desembocaram nas experiências da pintura abstrata.
211 WERTHEIM, Margareth. Uma história do espaço de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001. p. 145.
73. Georges Braque. Violino e cântaro. (1910).
172
Com isso a realidade da pintura produziu um corte em nossa
experiência do real, deixando-nos à mercê de nossos próprios delírios –
guardadas as devidas indicações nos títulos das obras em questão. E por não
termos um suporte representacional que nos assegurasse certo conforto na
apreensão dos sentidos, passamos a vagar num lugar sem lugar, onde os fluxos
de sentidos estão longe de nos proporcionar qualquer condição de informações
a priori. Não há mais orientação que nos dê qualquer certeza diante do fato
estético na experiência abstrata; agora todo o processo está nas mãos daquele
que olha e sente, na configuração matérica da pintura, nos deslocamentos
ininterruptos de sentidos e numa impalpável fala demarcadora daquele que vê-
sente.
74. Wasilli Kandinsky. Composição VI. 1913. Óleo sobre tela.
75. Piet Mondrian. Composição em linhas e cores. 1913. Óleo sobre
tela.
173
15. Ruído 2: Duchamp e a Fonte.
15.
Ruído 2: Duchamp e a Fonte. - Um outro rompimento com certa
linearidade e logicidade dado pela inserção de ruído na experiência estética
pode ser observada na provocação de Marcel Duchamp com seu ready made A
Fonte (1917). Octávio Paz diz em Marcel Duchamp Ou O Castelo Da Pureza:
―os ready made são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obras de arte. Ao mesmo tempo esse gesto dissolve a noção de obra. A contradição é a essência do ato; é o equivalente plástico do jogo de palavras: este destrói o significado, aquele a idéia de valor.‖212
E um dado de extrema importância está na contradição imposta aos
objetos e atitudes artísticas como o centro do deslocamento dos sentidos.
Duchamp enviou A Fonte, que se constituía num urinol de banheiro masculino,
apenas com a assinatura R. Mutt213 ao Salão dos Artistas Independentes de
Nova York. Tal gesto visto pela ótica do ruído, gerou um problema para o
estatuto da arte e do artista moderno, principalmente pelo estado de consciência
com que Duchamp ousou quebrar a institucionalidade do salão, rachando com
seus princípios reguladores intrínsecos, pois o próprio autor da obra fazia parte
do júri do salão. A bela ironia duchampiana plugou a desordem na história da
212 PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 23. 213 Vejamos um comentário de Duchamp acerca do fato: ―O trabalho foi simplesmente
suprimido. Eu era do júri mas não fui consultado, porque sabiam que tinha sido eu que tinha enviado. Eu assinei o nome Mutt para evitar qualquer relação pessoal. A Fonte foi simplesmente colocada atrás de uma divisória e, durante toda a exposição não soube onde ela estava. Eu não podia dizer que tinha enviado aquele objeto, mas creio que os organizadores sabiam através de boatos. Mas ninguém ousava comentar‖. In: VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 66.
174
arte. Algumas falas214 evidenciam o gesto de Duchamp que pela sua potência
transgressora não esgotou a possibilidade de sua reedição noutros tempos. Cá
estamos diante de um fato estético que se dobra por sobre a institucionalidade e
debate ironicamente o chamado estatuto do objeto artístico, da arte e do artista.
Paulo Venâncio Filho diz:
―De fato antes ninguém tinha pensado num urinol como arte. Mais do que criar ‗um novo pensamento para um objeto‘, o ready-made, como toda obra de arte moderna, coloca a própria arte em questão. O que é a arte e o que não é arte? Todo tipo de dúvidas, de incertezas, todo tipo de perguntas começam a aparecer. De repente tudo está sob suspeita. O ready-made é um dos trabalhos em que desaparece a ―aura‖ da obra, do artista, da arte. É um sintoma de que a arte está no mundo‖.215
Esta mundanidade que abraça a condição dos objetos na cena
contemporânea deve repercutir como fonte inesgotável do discurso estético
forçando cada vez mais a desdobramentos ulteriores do que se pode entender
como experiência estética. É que a simplicidade do gesto de Duchamp arrasta
consigo toda uma postura e uma atitude moderna para a lógica da suspeita ante
os fatos estéticos, que a partir desse gesto nunca mais foi a mesma, na medida
em que se foi perdendo a capacidade de dar aos gestos uma definitude de
significados. A arte nunca foi mais a mesma depois de Duchamp, sua ironia
passou a ser o ruído que produziu uma desordem não tanto na materialidade do
signo em si mas no modo de vê-los, ou no modo como o meio artístico passou a
ver a arte. Com isso, dar ao gesto duchampiano a importância que lhe cabe é
reeditá-lo como a instauração do ruído e da desordem no que constitui a
maquinaria capitalista do sistema de arte. O ruído produzido pela Fonte tem
proporções extremadas; dispara novas possibilidades de intervenção e
214 ―Se o sr. Mutt fez ou não fez um urinol com suas próprias mãos não tem importância. Ele o
escolheu. Ele pegou um objeto cotidiano e o colocou de uma maneira que o seu significado original desaparecesse sob o novo título e ponto de vista – ele criou um novo pensamento para aquele objeto‖. In: VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 66/ 67.
215 Idem. p. 67.
175
transgressão em que o artista, para além da lógica sistêmica que o enreda, deve
subverter na lógica institucional pelo jogo sígnico que deflagra, assegurando
com isso o lugar da desordem necessária que a arte produz.
16. Ruído 3. Fluxos literários.
16.
Ruído 3. Fluxos literários. - Partimos então ao encontro de outras
trilhas para o engendramento e a afirmação do ruído e seus deslocamentos para
outros espaços. No que constitui a prática do ruído, entendida como
pluralidades de posturas diante dos sistemas a que nos atrelamos
momentaneamente. O filósofo português Eduardo Prado Coelho nos aponta
alguns desvios da trilha da comunicação que se reverte em estratégias de
76. Marcel Duchamp. Fonte. 1917, porcelana. 33,5 cm. Indiana
University Arte Museum, Bloomington
176
afrontamento dos espaços. Ele diz: ―Podemos falar em ‗silêncios eloqüentes‘216 –
que querem comunicar, que se mostram portadores de sentido – e devemos
distingui-los dos silêncios que não querem comunicar e apenas significam a
erosão do sentido e o desejo de incomunicação‖.217 Ele aponta nesse sentido as
experiências de escritores como Samuel Beckett e Thomas Bernhard que
tentaram na experiência literária ―obter pela escrita qualquer ausência de
positividade‖. Em se tratando de um projeto paradoxal,218 como reitera o autor,
essa experiência supõe a inevitabilidade do afrontamento com a tradição linear
que se apossou do espaço literário. As experiências possíveis de não-sentidos
prefigura a tessitura da incomunicação pela instauração de processos de criação
radicais do texto literário. Deflagrar essas rasuras constitui sustar a lógica
calculada dos maquinismos interpretativos e redutores sobre tais estratégias.
Eduardo Prado Coelho propõe então ―não apenas um inventário e uma reflexão
sobre as figuras da incomunicação, mas, ao mesmo tempo, uma prática que
suspenda a comunicação precipitada pelo pressentimento insistente de uma
incomunicação inevitável‖,219 que nos atira num espaço fraturado pelas síncopes
discursivas, pelos retardamentos seriais, que deste novo lugar é recoberto por
figuras da incomunicação como deflagração dos desvios necessários da
experiência estética. Ele diz:
―O silêncio, é claro, mas também todas as formas que delimitam e demarcam os fluxos da produção de conteúdos (que, através da convergência numérica, passaram a ser vistos como forças inimigas), assim como tudo o que é esquecimento,
216 COELHO, Eduardo Prado. O fio da modernidade. Lisboa: Notícias Editoriais, 2004. p. 58.
Aqui o autor português faz referência a autores como Thomas Pynchon e Herberto Helder que optaram por uma estratégia de desaparecimento, mantendo-se afastados de certa contaminação mediática.
217 COELHO, Eduardo Prado. Op. Cit. p. 58. 218 ―como se tratava de um projecto paradoxal, baseado na permanente rasura de tudo o que era
dito sem nunca deixar de se afirmar como a positividade de uma rasura – eles foram obrigados a escrever sempre mais, a mobilizar todas as palavras para atingir o silêncio que provavelmente nelas existe (existirá talvez como comunicação improvável)‖. In: COELHO, Eduardo Prado. Op. Cit. p. 58.
219 COELHO, Eduardo Prado. Op. Cit. p. 58. Idem. p. 58.
177
recalcamento, perda, delapidação de sentido, obstáculo, pausa, distância intransponível, viscosidade, atrito, fricção, encurvamento do espaço-tempo, efeitos pulsionais, tensão entre atratores, barreiras, buracos, opacidades, sombras, corpos, sujidade, ruído, inconsciente, noite, comportas, diques, portas, vazios, fronteiras, limites, mutações, mudanças de discurso, mecanismos de embraiagem, textualidades concentradas, ilhas, sistemas de fortificações, manchas, sufocação, êxtases, respirações ofegantes, gritos, segredos. Todo um programa de vida e de morte.‖220
Estes acontecimentos geradores de outros tantos, é possivelmente o
caminho entontecido de nossas incursões em todas as fendas de sistemas em
composição e decomposição. E lançar mão desse arsenal que nos sugere o
filósofo é abrir outros percursos da experiência estética num nível entrópico
necessário. Como a instauração da pixação como processo artístico que deflagra
novos confrontos e conflitos na cidade-obra.
17. Ruído 4. Pixação: ruído no espaço urbano.
17.
Ruído 4. Pixação: ruído no espaço urbano. - Podemos
assinalar que em se tratando de macro-sistemas com possibilidades
experimentais para essa desordem sígnica está a cidade. Hoje ela constitui-se
num espaço privilegiado de inúmeras intervenções. Cidade-obra. Cidade-
suporte. Abrem-se, de forma ininterrupta, as explosões da pixação: desvios
ruidosos que plugam o lugar desconfortável de nossas experiências e expandem
o sufocamento das oscilações de ânimo pelas vias urbanas em
transbordamentos sígnicos. Condição de descontinuidade que lhe confere
sentidos e não-sentidos para quem os infere. E fundada na condição de
estilhaço, trama, fragmento, apropria-se do espaço num espalhamento
ininterrupto; interferência que dimensiona o espaço: sua forma e mutabilidade.
220 Idem. p. 58/ 59.
178
É o que pressupõe tal experiência que se move em direções várias. Sendo
explosivos e fragmentários, tais signos não se situam em nenhum lugar e em
todos os lugares. Onipresença estranha percorrendo cada micro-espaço
engendrando uma visualidade assombrosa, suja, tosca, cáustica. Tomamos
assim a pixação como uma prática alçada já em sua condição de ―obra‖, o que
necessariamente ela é com tudo o que seu esvaziamento propõe. Porque ela
―não tem nem conteúdo nem mensagem. É neste vazio que está sua força‖.221
Vazio abissal que apenas potencializa a carne da cidade para sua descoberta
visual. A desordem imputada pela pixação no corpo mundano da cidade revela
uma densidade nova do espaço na medida em que qualquer possibilidade de
assepsia, organização sígnica e controle espacial são impossíveis. Os
mecanismos de controle sofrem nas suas engrenagens um jorrar de signos que
interrompem o fluxo de sentidos comunicacionais, informativos, controlados,
que se espera que a cidade tenha. Mas a existência da cidade se sustenta de um
certo modo por esse paradoxo estranho que é gerado pelos signos num sentido
de ordem e desordem, necessariamente fundamental para nossa sobrevivência
no contemporâneo.
Com isso, a partir da idéia de ruído nos processos comunicacionais de
determinados espaços-sistemas-cidades apontamos manifestações que foram
produzidas no trânsito da história da arte e da literatura, intencionando marcá-
las em alguns pontos que entendemos necessário como condição de
possibilidade de resignificar os espaços-sistemas no tempo que se nos atravessa.
Assim, pela sua condição de manifestação paradoxal, o ruído pressupõe
inúmeras possibilidades de análise, todas inevitavelmente abertas, o que supõe
sua riqueza interpretativa. E estes flashes disparados sobre o a pixação como
221
COELHO, Eduardo Prado. Op. Cit. p. 38.
179
ruído vestem-se de estranheza e maldade em torno do acontecimento do objeto,
para fazer surgir a centelha entre duas espadas nas palavras de Nietzsche.
18. O som e a fúria.
18.
O som e a fúria. – Cai a noite e o dia vem e de novo a noite e o dia e
o tempo se refaz. Essa mutabilidade ativa os ânimos da cidade. Os filhos de
Dionísio enveredam por entre as ruelas da cidade armados com suas latas de
spray. Embriagados das dores do mundo e da estranha necessidade de tatuar
seus pixos no corpo da cidade. Nenhum controle ou repressão os inibe, pois
tomados por uma gigantesca fúria deflagram sobre a cidade seus disparos. A
gestualidade agônica desses artistas da lata é o que deixa o intrincado de linhas
e formas a tomar cada espaço visitado. Ou instaurar um novo corpo no corpo
mesmo da cidade. A pele colada noutra pele. Acontecimentos carregados de
força trazendo na latência de sua investida, o som da peteca do spray como o
start de onde as energias são enviadas pelas ramificações de nervos a produzir a
fúria criativa e fazer-se pixo engendrado no mundo como força de corrosão. Eis
que os pixos acenam para lugar nenhum e todos os lugares em que tudo o que
resta é uma mesmidade esvaziada de sentido e todos os sentidos carregados de
vazio. Os riscos e traços deixados são pegadas de animais em pleno cio criativo,
transporte de um mais de força nietzscheano: “a arte torna suportável a visão
da vida colocando sobre ela o véu do pensamento impuro”,222 véu este tecido
222 NIETZSCHE, F. Humano Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução,
notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 118.
180
em som e fúria e coberto de rabiscos deslocados na superfície do tempo,
alimentado pela impureza de que a cidade, ela mesma, se veste e se despe ante
os olhos atônitos de quem toca, sente e vê. Eleva-se assim a força das
intervenções imantadas pelo som que inunda o espírito dos animais que
submetem a cidade a seus prazeres insuspeitados. Música estridente em que
som e fúria elevam-se ensurdecedoramente atingindo aquele estado de ruído.
Pois aqui o som e a fúria definem o estado de destruição de uma lógica tonal: a
lógica visual da cidade ou o seu sentido de ordem.
77. Pixo no bairro do Méier – Rio de Janeiro. Foto: Luizan Pinheiro.
181
19. Um si sem sim.
19.
Um si sem sim. – O risco corta o concreto e tudo o que se quer
como ordem perde-se na contaminação dos traços. Linhas desordenadas
sobrepondo-se em explosão. Pixos acelerados no incomensurável do espaço. A
cidade, esse grande acelerador de partículas a reinvestir os signos dessa
dimensão artístico-estética ad infinitum. Paredes de cidades como palco da
efemeridade de cada traço-gesto que escapa a uma conjunção uniforme.
Sordidez em cada olhar. Riscos a possuir o espectador, ativando seu gozo torpe
para logo voltar ao seu letárgico desespero urbano. As cidades contemporâneas
vestem-se desde muito com uma roupagem cáustica. Um fechar dos olhos
machucados pela desinstalação da assepsia citadina assombra as sombras
assustadas no cotidiano vazio. Tramas incisivas que instauram um outro cenário
para a a-trair os olhos numa tentativa de decodificação dos pixos em explosão.
Mas os pixos não são decodificáveis, identificáveis. A identificação é o que
submete o pixo à sua condição asfixiante. Sua redutora redenção. Os pixos são
tão somente matérias espúrias com sua nadificação perfeita. Expurgadas por si,
num si sem sim. Pois que é negação de si e daquilo que é pensável sustentar de
si. Eis aqui a fala já em sua condição distorcida porque fala do que não existe
mais. Ou do que ainda virá como apagamento, mutabilidade, efemeridade.
20. O outro lugar.
20.
O outro lugar. – Intervenção radical impondo à matéria uma
desnorteante visualidade. Cidade-suporte versus artista-pixador, pixador-
artista, nenhum dos dois e ambos ao mesmo tempo. Nenhum espaço limítrofe
182
às interferências. Todo espaço possível. Intumescido. Gordo. Engordado pelos
olhos do dono? Não. A cidade não tem dono. É campo ampliado, expandido à
exaustão. Todo o espaço é público. Publicável. Apto à recepção de todo tipo de
signo que o expõe. O espaço é todo convulsão a abrigar as potências
intervencionistas de naturezas díspares. O que revela que por contaminação a
pixação está no nível mais abismal dos instintos criativos. Nada limita sua
explosão instintiva. Nem a lei, nem a ordem, nem a repressão. Eis porque a cada
dia os espaços são tomados por esses pixos insólitos. Nada alimenta mais a
deflagração da pixação do que as energias dilacerantes que emergem das
profundezas do corpo do pixador compondo uma trama que impregna os
diversos espaços da cidade: Londres, Fortaleza, Belém, Rio, São Paulo, Paris,
Berlim, Bombaim e o que há por vir a ser vil. A pixação invadiu os espaços a
atormentar os hálitos cortantes das bocas das cidades entontecidas. Extrema
condição de possibilidade de seu ser arte. E um grande NÃO aos controladores
de vôos da imaginação e criação com escalas no solo pátrio. A possibilidade
artística e espúria como o outro lugar de alteração de uma homogeneidade
estética absolutizada em discursos legais. Pixação: arte contemporânea. Não
aquela. Esta que está aí por toda parte em todas as cidades. Sem rosto. Sem
dentes. Sem holofotes. Sem.
183
20.Epílogo III.
20.
Epílogo III. – Atravessando a cena contemporânea situamos
diversos eventos históricos, artísticos e estéticos que marcaram o grafite e a
pixação. Em alguns casos as manifestações deram-se de forma simultâneas.
Noutras, diametralmente opostas. E o modo como esses eventos foram
78. Explosão de pixos em Niterói. Foto: Luizan Pinheiro/ 2007.
184
evidenciados legou-nos diversas formas de visualizá-lo, levando-nos a explorar
sua dimensão intervencionista na cidade. E em sendo a pixação o objeto
preferencial do estudo, suas conexões com as formas em geral da arte, assim
como com os conceitos estéticos articulados, serviram para demonstrar que sua
inserção na cena contemporânea dialoga com inúmeras manifestações e dando-
se de um modo mais amplo do que comumente se pensa. As redes de relações
em que projetamos a pixação responde a uma leitura diferenciada do lugar
comum em que essa expressão é localizada, o que implicou em ampliar seu
sentido artístico desvencilhado também da idéia de arte que se centra num
objeto individualizado. Portanto, a condição de arte implicada na discussão
responde a uma dimensão múltipla que varia segundo o modo específico de ver
o objeto que se estrutura a partir de um plano estético. Nesse sentido, a idéia de
obra, que por um momento pode ser entendida como um constructo individual,
amplia-se desde um plano teórico-estético que o flagra em sua pulsão na cidade
submetendo-o a novas configurações, perfis, sentidos e não-sentidos, ―que se
constrói à medida que a obra avança, abrindo, misturando, desfazendo e
refazendo compostos cada vez mais ilimitados segundo a penetração de forças
cósmicas‖.223 Uma multiplicidade de conexões possíveis em que não há um
lugar para começar, como não há um mapa preconcebido com entrada e saída.
Há apenas um emaranhado de signos-formas-traços-riscos-pixos em que todos
os pontos são entrada e saída por onde todos os sentidos passam: visão-
audição-tato-olfato-paladar. Ou se fecham e se abrem num tempo sem tempo,
medida e contenção. Corpo sem Órgãos. Sem centro. Sem limites. A pixação
ganha força de intervenção a cada dia ampliando e desordenando seu modo de
223 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Muñoz. 2ª reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p. 216/ 217.
185
apreensão, pois, ao solicitar do espectador-fruidor-pesquisador novas leituras,
investe-se de uma forma de conhecimento necessária para se pensar a cidade e
a visualidade contemporânea na mutabilidade de seu acontecimento. O
contemporâneo passa pela pixação e suas redes de relações e conexões com a
cidade e as artes. Pois sendo um dado de composição do espaço e do tempo,
circuita em diálogo com outras linguagens artísticas como o cinema, o vídeo, a
fotografia, a cenografia incluso nelas como elemento importante da visualidade
contemporânea.224 Contudo, seu lugar pleno é a cidade: espaço em que o olhar
recai de forma mais fundamental neste estudo.
CAPÍTULO IV: DUAS CIDADES
CAPÍTULO IV
DUAS CIDADES
―A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata‖.
Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis.
1. Belém-Rio: um caso.
1.
Belém-Rio: um caso. – Erige-se aqui um caso. Do lugar de onde
nasceu a pesquisa: Belém; ao lugar onde ela se concretizou: Rio de Janeiro.
Estas duas cidades são tomadas aqui como o recorte da pesquisa: sínteses
matéricas onde a pixação é observada na sua mais esplêndida manifestação. Ao
mesmo tempo em que compõem o espaço teórico-experimental em que o objeto
224 Algumas produções em que o enquadramento da câmera inclui a pixação como um elemento
de composição da cena, ou apenas como o cenário onde a cena se desenrola: Edukators de Hans Weingartner (Alemanha/Áustria-2004); Tapas de Jose Corbacho/Juan Cruz (Espanha-2005); Constantine de Francis Lawrence (Estados Unidos-2005); Até o Fim do Mundo de Wim Wenders (Alemanha-1991); Correndo Pra Cachorro de Paddy Breathnach (Irlanda/ Inglaterra-2004); Caixa Preta de Richard Berry (França-2005); O Plano Perfeito de Spike Lee (Estados Unidos-2006); O Jardineiro Fiel de Fernando Meireles (Estados Unidos-2005); The Scientist-COLDPLAY (Vídeoclip-); GTA (Game).
186
é flagrado e constituem o campo da pesquisa em que os dados estão ali por toda
parte a gerando cenários insólitos. Duas cidades que representam
mundialmente as cidades onde a pixação é deflagrada em seus tags, pixos,
riscos e traços. Assinalam uma verdade da arte em seus corpos mundanos.
Corpos atravessados por signos de toda espécie. E neste ocaso que se anuncia,
marcaremos no corpo belenense e no corpo carioca a dimensão da pixação em
seus aspectos mais peculiares: cortes, incisões, lacerações, fusões, riscos, fendas,
fragmentações. E em cada corpo ver-se-á como os pixos produzem seus fluxos
estéticos, redimensionando sua carne de estados matéricos e intensos,
conectando-se uma vez mais com outras expressões.
79. Pixo na Rua Uruguai. Tijuca/ Rio de Janeiro. Foto: Luizan Pinheiro/ 2007.
80. Pixo na Rua José Malcher com Alcindo Cacela. Nazaré/ Belém. Foto: Fernando de Pádua/ 2007.
187
2. Belém: pixos e riscos.
2.
Belém: pixos e riscos. – Desde os anos 80 a capital paraense
carrega em seu corpo a presença dos pixos a entontecer seu espaço urbano. Os
jornais da época já estampavam notícias das intervenções: ―O patrimônio
belenense alheio ou histórico, anda estremecendo a cada caída noturna. É a
certeza de que o odor repugnante e o líquido decididamente pegajoso dos
―sprays‖ está para chegar‖.225 Palavras certeiras a imantar a história de Belém
com a certeza de que novos ares estavam à espreitar a cidade. As intervenções
das pixações entraram em ampla ativação naquela década. O espaço de Belém
era manipulado por sujeitos que experienciavam a carne da cidade, neste
momento inicial, com o objetivo de marcar seus nomes na tela-cidade. O que
equivalia a mostrar-se na cena urbana. Fernando de Pádua destaca:
―Saindo dos guetos e atacando principalmente o centro da cidade, acabaram transformando-a em enorme ―caderno de esboços‖, causando assim uma mudança significativa na visualidade urbana, imprimindo na ―tela-cidade‖ uma carga simbólica incontestável; instaurando através de traços muitas vezes grotescos, um outro olhar sobre o cenário urbano‖.226
225 Jornal O Diário do Pará. 07/01/1987. In: AZEVEDO, Fernando de Pádua Mesquita de.
Pichação e Grafite: uma experiência a partir da prática de ensino. (TCC -Trabalho de Conclusão de Curso). Belém - UFPA, 2005. p . 18.
226 AZEVEDO, Fernando de Pádua Mesquita de. Pichação e Grafite: uma experiência a partir da prática de ensino. (TCC -Trabalho de Conclusão de Curso). Belém - UFPA, 2005. p . 17.
188
Assim a explosão dos pixos em Belém entrou na ordem do dia. O
cenário urbano belenense passou a ser dimensionado por essas inscrições que
dia a dia surgiam compondo esse cenário já marcado por signos publicitários de
todo tipo: placas, faixas, outdoors, banners espalhados pelo espaço urbano de
Belém. E as interferências dos pixos passaram a ter um lugar de destaque na
mídia que ajudou a incitá-lo mais e mais positivando às avessas sua própria
aparição. E os olhares inflamaram-se de cólera e torpor diante dos signos
estranhos. ―Apesar das críticas bastante ofensivas por parte dos jornais, esta
forma de manifestação urbana passou a se tornar mais freqüente na cidade,
expondo em sua trama uma realidade não muito agradável‖.227 Isto foi ficando
mais latente na medida em que o espaço foi ficando saturado pelos pixos que
década a década foram tomando o corpo da ―morena‖,228 e se expandindo pelos
quatro cantos.
Inicialmente esses signos se aproximavam de garatujas infantis e sua
proliferação passava a cobrir praticamente todos os bairros de Belém, assim
como era prestigiada pela mídia paraense como aponta o jornal O Diário do
Pará:
―A cidade está entregue à mercê dos grafiteiros. Nada escapa. Das pichações. Nem muros residenciais, nem paredes de igrejas, nem portas de escolas. O concreto urbano em Belém nos últimos tempos parece ter virado um único cenário onde ―sprays‖ dos mais variados matizes fazem a festa diariamente‖.229
É curioso observar nessa matéria que há uma menção artística
(acreditamos que inconsciente, por assim dizer) com que são visualizadas as
intervenções, destacando os variados matizes dos sprays. E um outro aspecto é
quanto ao uso dos termos que designam ambas as expressões, dos jornais em 227
AZEVEDO, Fernando de Pádua Mesquita de. Pichação e Grafite: uma experiência a partir da prática de ensino. (TCC -Trabalho de Conclusão de Curso). Belém - UFPA, 2005. p . 18.
228 Belém é conhecida também como Cidade das Mangueiras e Cidade Morena. 229 “Grafiteiros invadem muros der Belém”. In: O Diário do Pará. 07/01/87.
189
Belém, comportamento que se mostra idêntico aos já mencionados no capítulo
anterior. Isso passou a constituir um fato corriqueiro em praticamente todas as
cidades.
Cabe aqui mencionar que do ponto de vista de sua estrutura formal, o
que predominava nas intervenções em Belém era a linha originária dos tags de
Nova York (TAKI 183, JULIO 204), mas sob a influência do Rio de Janeiro
(Lerfa-Mú, 18 Tijuca, - termos em inglês: Big, Brother, Goose, Wind‟s etc.),
assim como de São Paulo, em que predominou naquela década os personagens
como Tin Tin e o Ladrão, O Gordo e o Magro, a Bota, Rainha do Frango
Assado etc. O jornal O Diário do Pará evidencia este último aspecto destacando
tanto os nomes quanto os personagens, embora estes fossem feitos apenas de
traços e não em stencyl art (chapas vazadas) como em São Paulo:
―A cada dia, novos personagens surgem, ninguém sabe muito bem de onde.... NOMES ESTRANHOS... declaração de amor, filosofia de vida, nome de guerra ou simplesmente o registro da paixão por um ou outro concjunto de rock... ―PIG‖, ―CEBOLA‖, ―TOCHA‖, ―MAURO PRÉ‖, ―BAG‖, G. SHOCK, ―PHOENIX‖, ―KSKO‖. Entre os mais conhecidos está ―MAURO SÁ‖ que tem como marca registrada uma caricatura fálica, inclusive com uma expressão fisionômica e até de bonezinho‖230
Com isso, a entrada do grafite em Belém na década de 80 mantinha-
se em consonância com o que estava acontecendo nos outros centros do país,
mas sob o título de pixação, situação semelhante à observada por Paulo Knauss
em relação às intervenções do Rio de Janeiro.231 Não havia uma preocupação
em se distinguir um e outro, isto em vista de que o fenômeno era bastante novo
na cidade e sequer havia algum estudo sobre o fenômeno naquela época.232
230
Jornal O Diário do Pará. 07/01/1987. In: AZEVEDO, Fernando de Pádua Mesquita de. Pichação e Grafite: uma experiência a partir da prática de ensino. (TCC -Trabalho de Conclusão de Curso). Belém - UFPA, 2005. p . 19.
231 Ver Nota 146. 232 Só mais tarde verifica-se o aparecimento de uma pesquisa relacionada aos pixadores em
Belém: XAVIER, Mário Jorge Brasil. Nem anjos, nem demônios: etnografia das formas de
190
Mas o aspecto mais curioso sobre as intervenções em Belém é que as
primeiras manifestações do que se conhece como grafite artístico urbano de
fato, só irão aparecer nos anos 2000 (mais concretamente 2006/2007). Isto em
virtude do que se estava produzindo anteriormente: arte mural, pseudo-
grafites,233 tags (associados à pixação) e pixação de fato, que neste caso se
distinguia de todas as outras expressões. Mas este último dado só foi possível
com o desenvolvimento formal e estilístico do grafite e sua aceitação como arte
pela mídia e o sistema de arte. Com isso, as diferenças formais entre ambas as
expressões foram se cristalizando. Ao firmar-se como arte o grafite nacional
produziu a distinção em praticamente todas as cidades, associando a pixação,
do ponto de vista da forma, aos riscos, traços, inscrições e tags, sem o
tratamento plástico de composição, cores e tons, que passaram a predominar no
agora considerado grafite artístico urbano; e a pixação com seus riscos, traços
e inscrições à sujeira, poluição visual e vandalismo. Essas distinções são
necessárias apenas para uma espécie de verificação didática das formas, pois
estamos atualmente diante de amplos processos de pesquisa das formas e
intervenções urbanas nas universidades e escolas. O que significa afirmar que os
estudos sistemáticos das manifestações urbanas têm se consolidado nos meios
escolares e acadêmicos, daí as caracterizações e especificações necessárias.
Diante do exposto, tomaremos outras trilhas de acesso à pixação em
Belém para encontrar os aspectos que fogem do puramente classificatório. E
essa outra trilha se evidencia a partir da própria mutabilidade de Belém
sociabilidade de uma galera em Belém. BELÉM: UFPA/CFCH, (mimeo), 2000. (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social).
233 Termo usado por Fernando de Pádua para caracterizar os trabalhos que simulam elementos do grafite com elementos de pintura mural. E que pode bem ser visto como um misto de grafite e mural.
191
tornando-se um locus pleno da efemeridade e mutabilidade dos pixos em seu
corpo-forma, expandindo as possibilidades de sua leitura para campos outros.
3. Belém: Action Painting no corpo da cidade.
3.
Belém: Action Painting no corpo da cidade. - Belém foi
despida de seu modelito asséptico há algumas décadas. A metrópole paraense
tem se refundado como um objeto que incessantemente sofre intervenções
expressivas dos signos da pixação. Espaços intensamente interferidos por todo
os cantos da cidade, onde os traços do spray instauram uma visualidade cáustica
no cotidiano, assegurando, num certo sentido, isto que chamamos de real.
81. Pixos da década de 80 publicados no Jornal O Diário do Pará de 08/01/88. In:
AZEVEDO, Fernando de Pádua Mesquita de. Pichação e Grafite: uma experiência a partir da prática de ensino. (TCC -Trabalho de Conclusão de
Curso). Belém - UFPA, 2005. p . 18.
82. Pseudo-grafites. 83. Pintura Mural com técnica de
grafite.
84. Pixos na Rua Gama Abreu – Centro - Belém. Fotos: Luizan Pinheiro/2005.
192
Ao projetarmos a pixação, neste estudo, como um lugar artístico e
estético, e do diálogo com a estética e a história da arte, encontramos na Action
Painting tendência da pintura norte-americana denominada de pelo crítico
Harold Rosemberg na década de 50, uma articulação fundamental em nosso
estudo. Assim estabelecemos esta conexão que repercute no processo criativo
dos pixos, aspecto este que se dá especificamente Belém.
Gangs, vândalos, hordas urbanas e periféricas, ―artistas anônimos‖
demarcando territórios ativando intervenções, produzindo falas-formas, ta-ti-bi-
ta-ti no tempo do agora, marcam o contemporâneo dizimador das subjetividades
com suas interferências ressoando os grafismos parietais de cavernas pré-
históricas: alguma luta pela sobrevivência na selva-cidade aqui se instaura. A
Belém do 3º milênio é esta, marcada a ferro, fogo e pixo. Ela nada mais é que
campo de possibilidades para espectadores sonolentos em manhãs vazias.
Cidade revestida de vitalidade dos gestos a construírem uma cidade outra, onde
a ação pulsante vibra a partir de um emaranhado de linhas e formas e texturas.
O espaço de Belém agora é corpo totalizador, objeto bruto reverberante. E o
expressionismo veste suas paredes com uma assinatura nervosa, radical,
instigante. Pollock:
―A minha pintura é direta... O método de pintar é o crescimento natural a partir de uma necessidade. O que eu quero é expressar meus sentimentos, não ilustrá-los. A técnica é apenas um meio de se chegar a uma declaração, um depoimento‖.234
234 STANGOS, Nikos. (org.). Conceitos de Arte Moderna. Jorge Zahar Ed.: Rio de Janeiro, 1994.
p. 147.
193
Eis um processo artístico. Solicitado por uma necessidade interior,
emotiva, sentimental, social ou tudo ao mesmo tempo. Desregramento criativo
explodindo em campos de cores-formas-gestos. A fala de Pollock sugere uma
experiência deflagrada na ação em estado de latência. Essa gestualidade
criadora remete aos pixos desenvolvidos nas superfícies da cidade é acionada
por mecanismos geradores de práticas urbanas: um jorrar das energias
selvagens na relação que estabelecem com a cidade, desaguando nas expressões
e imagens corrosivas.
Conectamos assim as experiências da pixação em Belém com o
Expressionismo Abstrato. Esta conexão remete de um certo modo às indicações
nietzscheanas anteriores: movimento, gesto, dança. Isto em função de que o
movimento, o gesto, a ação tomados desde um campo ampliado que se verificam
nos processos de criação, são princípios geradores dos pixos, tal como ocorre no
Action Painting e de um modo pleno em Jackson Pollock, que por meio de sua
original técnica do dripping, criava intrincados campos infinitos de cores e
formas em grandes telas dispostas horizontalmente no plano, forjando uma
gestualidade e movimento equivalentes a uma coreografia desmedida, a uma
dança compulsiva, primitiva, xamânica235, investida de energia e explosão.
―Mais vastos e maciços são os movimentos que dão vida a esta pintura, mais
violentas e estridentes são as cores, que têm timbres de todo insólitos‖236,
observa Gillo Dorfles. A violência e a estridência gestual que atravessa o Action
Painting é a nosso ver elementos que marcam a pixação de Belém e esse é um
ponto chave em nossa visada. É a força que o próprio processo gera e intensifica
o modo como os signos são construídos no espaço. A gestualidade define as
235 Ver nota 11. 236 DORFLES, Gillo. Tendências da arte de hoje. Lisboa: Arcádia, 1964. p. 83.
194
explosões sígnicas e a pixação afirma-se na cidade, que é suporte, desvirginado
por mãos anônimas, marcando paredes insensíveis. Os gestos dos pixadores,
incorporam uma energia pulsante num processo que se quer também catártico e
caótico. Veste-se como afirmação intensa de vozes periféricas, prenhes de
necessidades e desejos na tela-cidade a solapar qualquer possibilidade de uma
cidade asséptica. Somos impelidos no cotidiano bocejante a contemplar as
pixações que apinham fachadas, muros, portões na epiderme doída da
metrópole paraense. Sobre a pintura de Pollock vale ouvir a voz de Argan:
―Pollock não utiliza a pintura para exprimir conceitos e juízos: desafoga sua cólera contra a sociedade do projeto, fazendo sua pintura uma ação não projetada e não garantida contra o risco‖237.
Tal afirmação é recorrente à pixação quando percebemos que a
intensidade de gestos e traços em ritmo e espessura, estão marcados por essa
cólera contra uma sociedade excludente, marginalizadora em algum nível:
político, social, cultural. A certeza do risco num confronto com a
institucionalidade está próxima, além de confrontar monstros interiores como
em Pollock. Os caminhos percorridos pelos pixadores quando do processo de
descoberta dos visíveis e potenciais espaços da cidade, reafirmam um sentido
intervencionista da arte com sua possibilidade de uma ordem visual da cidade.
237 ARGAN,Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 622.
86. Jackson Pollock Number 23 1948 . Tate Gallery.
85. Pixo na Av. Magalhães Barata. São Braz – Belém. Foto:
Luizan Pinheiro/2005
195
E a pixação assoma o espaço urbano reeditando novos modos de
entendimento da cidade, ultrapassamento por experimentação sígnica e, de
algum modo, resistência às práticas dizimadoras da massa em turbação e
engendramento do cáustico no tempo histórico. Suas formas, constituídas a
partir de linhas, traços, riscos do spray sobre qualquer superfície, sugere o
rompimento com certa institucionalidade. Caracteriza uma ação que desafia
poderes e valores instaurando ritos sígnicos. Cidade alterada na sua mecânica
visual. Diríamos que a tela-cidade é tomada como potência deflagradora de uma
expressão coletiva, pois as sucessões de interferências, umas sobre as outras,
sugerem este repetir-se de imagens como se, de apenas uma única ação se
forjasse tal expressividade. Essas estratégias impõem-se como um brutal estado
alteração dos perfis da cidade, um interferir que promove os gestos gerados
pelas ―convulsões‖ caóticas da metrópole paraense implicando em certa medida,
o esfacelamento dos limites instituídos da cidade. E as interdições desses limites
como conjunto de intervenções agressivas e predatórias do espaço possibilitam,
mais do que o questionamento sobre o espaço público, a condição da cidade
como espaço experimental. Todo ele possível de descobertas. Pois,
196
―quando a fragmentação e o caos parecem avassaladores, defrontar-se com o desmedido das metrópoles como uma nova experiência das escalas, da distância e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir a cidade‖.238
E o desmedido da metrópole paraense é palco aberto onde as pixos
estão presentes num constante estado de processamento fruitivo caracterizando
uma redescoberta que pressupõe um perceber de todas as estruturas matéricas,
sociais, políticas e culturais da cidade. A pixação não representa a cidade, ela é a
cidade enquanto parte integrante de seu corpo mundano, de sua estrutura e
configuração. Não poderíamos pensar nessas intervenções que subvertem a
legislação vigente apenas como ato de destruição do espaço. Se tais impulsos no
plano da cidade sugerem a barbárie, de outro modo revela desejos e
necessidades que estão além do lugar ofuscado da legislação que a rechaça. A
pixação impõe-se pela ação artística, ato poético, marcado em sua dimensão
destruidora, o sentido mais profundo da arte: o dilatar de todas as esferas da
vivência humana. Essas imagens se espraiam pelo corpo de Belém tatuado de
grafismos estranhos.
238 PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagem Urbana. Editora SENAC São Paulo: Editora Marca
D‘Água, 1996. p.13.
87. Pixo na Av. Magalhães Barata. São Braz – Belém. Foto: Luizan
Pinheiro/2005.
88. Pixo na Av. Presidente Vargas. Centro-Belém. Foto: Luizan
Pinheiro/2005.
197
O que podemos entender dessas formas e sua perenidade interessam
menos que a própria a própria materialidade dos gestos, pois de uma certa
forma
“a experiência estética do mundo moderno parece, pois, consistir em violentas, mas transitórias, descargas emotivas, que não podem, contudo, dar lugar à fixação de valores ou à constituição de um patrimônio de imagens”.239
E nesse aspecto podemos afirmar o caráter efêmero das imagens da
pixação como sua dimensão de existência, fazendo parte de um sentido
totalizador da cidade como corpo-obra. Este modo de compreensão da prática
da pixação é focado numa demarcação de novas experimentações da cidade.
Formas construídas, ora como um conjunto de signos demarcadores de códigos
periféricos que caracterizam a assinatura dos grupos de pixadores, ora como
simples interferências de linhas a forjar as intrincadas tramas que se dão pela
superposição dos traços ou pela saturação das texturas criadas que transgridem
o espaço, ao mesmo tempo em que o revela como suporte às desmedidas
intervenções e criações: Action Painting no corpo da cidade.
239 FUSCO, Renato De. História da Arte Contemporânea. Lisboa: Presença, 1988.. p. 69.
89. Pixos na Rua Gama Abreu – Centro - Belém. 2005.
198
4.Rio de Janeiro.
4.
Rio de Janeiro. – A capital fluminense foi marcada desde seu
momento inicial pelos tags que atravessaram o oceano plugados pelos ventos
intervencionistas vindos de Nova York sob os auspícios da imprensa local. A
notícia era a empreitada do prefeito de Nova York na busca de contenção do
grafite na década de 70.240 E todo o processo de desenvolvimento das formas de
intervenção na cidade do Rio de Janeiro, exposto no capitulo anterior, permitiu
que tanto o grafite quanto a pixação se instaurasse definitivamente na cidade.
Na tradição do piche do período da ditadura militar a pixação mantinha-se
como forma de contestação política no primeiro momento. Em seguida, com a
lata de spray foram ganhando espaço e consolidaram-se nas inscrições e tags de
tradição novayorkina como já foi mencionado antes.
Não obstante o amplo desenvolvimento do grafite com suas novas
cores, estilos, formas e posteriormente sua absorção pelo sistema de arte, a
potência das intervenções da pixação manteve-se pelas décadas subseqüentes a
compor o espaço da cidade do Rio de Janeiro com sua rede de pixos-tags que se
240 ―Arriscada arte de pintar paredes‖. Jornal do Brasil, 17.01.73. In: KNAUSS, Paulo. Grafite
Urbano Contemporâneo. In: TORRES, Sonia. (Org.). Raízes e rumos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2001. p. 334.
199
espalharam pela cidade num movimento avassalador. Com isso cristalizou-se de
forma veemente a distinção entre o grafite e a pixação no espaço urbano
carioca. É evidente que as fusões e relações que as duas formas de expressão
estabelecem no espaço permanecem a pleno vapor visto que a mutabilidade da
cidade é um dos vetores dessa relação.
90. Pixos-tags na Rua Uruguai – Tijuca – Rio de Janeiro. Foto: Luizan Pinheiro/2007.
91. Pixos-tags na Av. Passos – Centro – Rio de Janeiro. Foto: Luizan Pinheiro/2007.
200
5. Rio de pixos-tags.
5.
Rio de pixos-tags. – Com os olhos atentos na paisagem é
desnorteante observar os deslocamentos dos pixos-tags no Rio de Janeiro. Esta
idéia aparentemente suspeita de sua evidência é um dado crucial na percepção
da pixação no corpo-carioca. O deslocamento que aqui situamos não pressupõe
um movimento do signo em si, como numa obra cinética, mas a condição de
entrada do espectador-transeunte na percepção da cidade, pois os
acontecimentos dos pixos-tags são deflagrados num gestual que supõe
movimento. E solicita um mover-se em direções diversas, pois em qualquer
localização que se está, é possível perceber os pixos-tags em profusão. Uma
idéia que resvala no que Umberto Eco diz quanto à obra em movimento.241 De
um outro modo, ao se entrar num ônibus deixando com que os olhos comam a
paisagem através da janela, ou sair perambulando pelas ruas e tocar nos pixos-
tags, vê-los bem de perto e sentir a força dos traços, o movimento do spray,
constitui uma das condições de experiência da pixação em sua manifestação
estético-artística das mais intensas.
Esse exercício matérico da pixação no espaço carioca tornou-se
condição fundamental na criação teórica deste trabalho. Podemos entender
assim que a metodologia da pesquisa requereu, no espaço do Rio, onde sua
construção e materialidade foram decisivas, uma relação física, direta, tátil,
peripatética com a cidade. Fisicidade e corporeidade com o espaço urbano
contribuíram para que pudéssemos pensar a pixação em sua condição artística e
estética. Assim, tomamos o caminho teórico da pesquisa também a partir do que
241 Ver Nota 105.
201
o próprio corpo da cidade supunha, projetando na escrita, sua condição de
objeto manipulado, interferido, dilacerado.
A experimentação do espaço do Rio é acionada a partir de longos
trajetos na companhia dos pixos-tags. Eis que as assinaturas vão se ordenando
através dos mais diversos pedaços de espaço. E aqui é preciso observar uma
característica que rege as intervenções: os pixos-tags preenchem grandes
superfícies a ponto de não se tocarem. E os espaços são interferidos tendo como
funcionamento este dado. Uma espécie de ―regra de construção‖ e interferência
em que cada inscrição anula sua condição individual para intensificar a
construção de uma nova casca, carapaça, pele para a cidade, como se pode
observar na Figura 96.
Este
aspecto não invalida as
tomadas de posições do espectador-fruidor diante das intervenções na cidade,
conquanto este opta por leituras e entendimentos que são ativados desde sua
condição existencial e urbana como indica Eco:
―No ato de reação á teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais,
92. Pixos-tags na Rua Uruguai – Tijuca – Rio de Janeiro. Foto: Luizan Pinheiro/ 2007.
202
de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual‖.242
Fato que promove as aberturas contínuas com que é possível na
relação com os pixos-tags no espaço carioca. É indiscutível o fato de que toda
leitura articula conteúdos individuais, visto que os pixos-tags são disparados
numa inflexão individual. No entanto, nossa ênfase recai nas articulações
totalizadoras engendradas pelas diversas tattootags, formando uma teia que
envolve o corpo da cidade; tecida em fibras-formas que conforta e esgarça esse
corpo carioca no tempo que se transforma pelas mãos dos pixadores.
―Daí a possibilidade – por parte do fruidor – de escolher as próprias direções e coligações, as perspectivas privilegiadas por eleição, e de entrever, no fundo da configuração individual, as outras individuações possíveis, que se excluem mas coexistem, numa contínua exclusão-implicação recíproca‖. 243
Isto é o que acentua essa condição de vertigem poética na tez da
cidade e sua maravilhosa estranheza a deformar a idéia de cartão postal que
esconde o caudaloso rio de pixos-tags que no Rio passa.
6. De Nova York ao Méier: o trem da história.
6.
De Nova York ao Méier: o trem da história. –
242
ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 40.
243 Idem. p. 154. 87. Trem de Nova York interferidos com os graffiti da
década de 70. In: http://www.artcrimes.com.
203
Ao localizarmos uma certa história da pixação articulada em vista de
sua densidade artística e estética, topamos, no nascedouro do que foram as
intervenções do graffiti em Nova York com os trens de metrô na década de 70,
utilizados como um dos suportes preferenciais das inscrições da época. Os trens
pela cidade carregavam os tags – bichinhos da Grande Maça (Big Apple),
correndo sob os trilhos, inscrevendo-se em vagões entontecidos e marcando o
corpo novayorkino de vozes periféricas em processo de experimentação do que a
cidade os ofertava: vozes em movimento. Os espaço do trem eram cobertos de
tags em profusão: sobrepostos, atravessados, explodidos, intercalados. E com
essa ação deixaram na história as marcas do que viria a se tornar arte urbana
nas décadas posteriores. E as ações iniciais em Nova York produziram na
história uma impressionante marca nas cidades pelo mundo como observamos
no decorrer da pesquisa.244
244
Este dado é passível de comprovação a partir das incursões nos sites citados na bibliografia do trabalho, principalmente no http://www.artcrimes.com/ que consideramos o site mais completo sobre o grafite no mundo.
204
O Rio de Janeiro, uma dessas cidades do mundo, expõe em seu corpo-
forma as marcas das intervenções, herança e extensão daqueles tempos
originários. O trem da história estacionou aqui. Méier, bairro da Zona Norte:
Estação Engenho de Dentro. Guarda no seu quintal um legado histórico da
afirmação da pixação como uma arte urbana e contemporânea. Vagões
desativados e cobertos de pixos-tags a rememorar o tempo do deslocamento em
trilhos americanos. Peça de um museu a céu aberto que permite à cidade ser
outra. Máquina expressiva em seu silêncio histórico.
O trem parou no Meier deixando vozes estranhas no seu vazio
concreto, ativando humores, redefinindo olhares, encantando as gentes que se
deterioram no tempo. Como a tez da cidade que se decompõe imensamente em
dias sujos com sua fisionomia sóbria de traços tensos. Cidade que insiste em
não perder o trem de uma história contada em riscos-pixos-tags e sordidez.
88. Trem desativado na Estação Engenho de Dentro. Méier – Rio de Janeiro. 2007.
205
7.Epílogo IV.
7.
Epílogo IV. – Belém e Rio de Janeiro duas cidades que marcaram
este estudo como seu campo de experimentação teórico, estético e artístico,
aqui manifestado como o ressoar da arte em estado de compulsão. Abrigo da
pixação: arte contemporânea. Arte dos pixos, dos pixos-tags espalhados em
seus corpos ativos. Guardam gestos e falas nem sempre audíveis. Cidades
abertas onde as teias de estímulos são reveladas em gestos poético-expressivos.
Nada de mais. Apenas corpos distorcidos em sua existência estranha. Corpos
sempre novos.
206
CONCLUSÃO
CONCLUSÃO
1. Aspectos finais em torno da pesquisa.
1.
Aspectos finais em torno da pesquisa. – A pixação foi visitada
neste estudo ganhando status de arte urbana na contemporaneidade. O que
propusemos aqui diz respeito fundamentalmente a um modo particular de
experienciar a pixação e seus diversos acontecimentos na cidade. É necessário
portanto afirmar que todo o trabalho se pautou por uma visão fragmentária a
entender a arte na sua dimensão explosiva.
Abrimos o trabalho afirmando as analogias e os eixos de similaridade
como um modus teórico-metodológico que a nosso ver comportava o objeto da
pesquisa e inserindo-o nas relações históricas possíveis. Daí o primeiro capítulo
denominar-se Uma História da Parede, pois a pixação só poderia ser visada a
partir da relação com a parede; e assim se deu uma espécie de tráfego pela
história da arte em que as experiências parietais permitiram conexões, analogias
e similaridades. Até encontrarmos o objeto na década de 60 com o movimento
207
contracultural e revolucionário do Maio de 68: estado terminal e ao mesmo
tempo inicial das experiências parietais.
O segundo capítulo intitulado A Pixação e sua Dimensão Estética
baseou-se nas indicações estéticas e explosivas do pensamento de Nietzsche.
Sua escrita em aforismos foi um insight a nosso ver preciso na medida em que a
ressoava a própria força fragmentária do objeto da pesquisa. Essa fala aforística
nietzscheana carregou nosso olhar e escrita de força poética como não deveria
ser diferente, pois o diálogo filosófico com Nietzsche solicitava em diversos
momentos da pesquisa essa dimensão. Momentos esses em que beiramos o
ficcional e o literário sem perda da noção analítica que deveria reverberar nas
construções teóricas acerca do objeto.
No terceiro capítulo denominado Pixação: Manifestação de Uma Arte
Contemporânea mantivemos uma busca incessante tanto com a história da arte
quanto com outras manifestações artísticas e literárias, tomando-as de diversos
ângulos: ora ruído, ora Corpo sem Órgão, ora fluxos matéricos, e assim se deu.
Foi o lugar da diversidade de noções estéticas e artísticas que ampliou a
possibilidade e riqueza do objeto em sua manifestação contemporânea,
afirmando mais uma vez sua dimensão fragmentária e efêmera. A pixação
ganhou um perfil múltiplo afastando-se de definições superficiais de praxe
comumente mostradas através dos meios de comunicação. Com isso suas
conexões e explosões com outras formas de pensamento tornaram-na um objeto
múltiplo.
Isso nos levou ao capítulo final denominado Duas Cidades, onde
revelamos dois achados importantes da pesquisa ampliando a percepção do
objeto: a relação da pixação com o Action Painting em Belém e a descoberta do
Trem da História no Rio de Janeiro. Achados que configuram duas
208
contribuições a nosso ver essências no trabalho, pois nesse momento pudemos
olhá-la em sua densidade poética e sóciocultural mais específica.
Entendemos, por fim, que nossa abordagem pautou-se por uma
liberdade teórica e ao mesmo tempo formal, no que diz respeito estrutura do
trabalho, que só nos deixou mais determinados a experimentar a teoria artística
e estética de um lugar mais confortável: a ousadia de pensar um outro lugar
para a pixação.
2. Fade out.
2.
209
Fade out. – E tudo se apaga. As cortinas se fecham. E abre-se um
tempo para percorrermos a cidade com olhos novos. Rejeitar a obviedade do
que o olhar contém. Porque tudo agora resvala naqueles traços, riscos que se
espalham maculando nossa visão com estranhas formas. A pixação foi alçada à
condição de arte neste estudo, para evidenciar as mutabilidades gritantes que
assolam o corpo da cidade. Arte do desaparecimento como é próprio de sua
natureza. E possibilidades múltiplas: intervenção urbana, ruído, fluxo,
volatibilidade, vazio e o que mais pode ser no oculto que lhe cabe algum outro
olhar. Componentes ativadores de sua força e tensão. A cidade, corpo
experienciado em sua torpeza, abriga as tantas ações que gestam uma escritura
sempre estranha a infringir a lógica visual da cidade. Essa arte dos tags e pixos
dispara um acontecimento que se fortalece por conta de sua repetição e
esvaziamento, alimentando as energias que a cidade faz pulsar. E através da
demarcação desses agenciamentos estéticos buscamos revelar os sentidos que se
manifestam nos territórios onde a pixação se presentifica. Apenas uma maneira
de, a partir da estética, da história e da teoria da arte, experienciar um
fenômeno que marca os corpos das cidades no contemporâneo. Um outro modo
de perceber a dimensão artística dos pixos através do cotidiano. Sua tensão, sua
força e seu desaparecimento. Fade out.
GLOSSÁRIO245
Da Pixação:
245 Este Glossário contou com a participação dos pixadores D‘Pádua (Fernando de Pádua) de
Belém. E COOL (Rodrigo Magalhães) e NUP (Gabriel Magalhães).
210
De Belém: Considerado – pixador que pixa em vários lugares, que levanta uma galera; pixador ou integrante de gang que tem acesso aos bairros tem moral. Cagão – aquele que pixa feio, não tem intimidade, calouro Cagueta – aquele que fala os planos para a outra gang Descer – sair pra pixar a noite, ir para o centro ou para as ruas mais movimentadas ( exemplo: vamo descer agora, tá afim?) Escalada – se arriscar para pegar uma "tela" em um lugar alto. Galera – grupo de pixadores de um determinado bairro Gang – união de adolescentes em torno de uma sigla que representa o grupo. Ex.: G2: Galera da Cidade Nova II; E.L: Equipe Light; T.S: Tropa Suicida; Q.S: Quiq Silver; VC: Van do Curió; F.C: Fissurados por Cola; G.B: Galera da Barra; A: Anarquia; DN: Demônios da Noite; C: Cólera (uma das primeiras de Belém) Invasão – fazer conexão com outras galeras ou provocar pânico, conquistar espaço. Jogar na tela – pixar na parede ou em uma superfície boa Lapada – quando um pixador pega toda uma tela, utilizando todo o spray somente em uma ação Pixação – intervenção urbana de natureza diversa que tem como base técnica a lata de tinta spray (color jet). Escritura urbana. Pixador – responsável por levantar o nome da galera, popularizar, fazer visível. Sujeito que utiliza-se do spray para mostrar união de galeras Pixo – qualquer interferência sobre qualquer espaço da cidade: casa, muro, prédio etc., feito especificamente com lata de tinta spray. A matéria da pixação. Pixo-tag – Como denominamos na tese a assinatura do pixador do Rio de Janeiro em função do predomínio da assinatura. Pegar o beco – sair na correria Queimar – pixar por cima de outra pixação, apagar, fazer sumir. Rel – dia em que os pixadores combinam para se encontrar, marcar ações na cidade, combinar invasões em outros bairros (ex: vai rolar uma rel pra ver qual é da galera). Risco – pixação de um determinado pixador (ex: teu risco é bom).
211
Rolar o breu – quando uma galera se encontrar na noite ( ex: rolou o breu com os caras ontem) Setor – local onde se localiza uma gang (ex: vamos invadir o setor dos AC pra fazer rolar o breu) Tag – Originalmente a assinatura do grafiteiro seguida de um número como (ex. TAKI 183). Tatoo-tag – variação dos pixo-tags onde há a presença da imagem. Vazar – fugir da cena no momento que se está pixando. Do Rio de Janeiro: O que caracteriza a fala dos pixadores do Rio é o fato de falarem as palavras de trás pra frente. Geralmente para confundir a polícia. Esta forma denomina-se de Tetecá: Catete de trás pra frente, bairro onde nasceu esta forma de expressão. Xarpi – Pixar, de trás pra frente, como os pixadores do Rio de Janeiro costumam falar. Sarangu – Segurança de rua. Tatin – Tinta. Darró – Rodar, ser pego no ato de xarpi. Celipo – Polícia. Reu – Reunião de pixadores. Drapé – Pedra, muro. Relíquia – Pixador antigo, de grande valor. Sigla – Grupo de pixadores. Do Grafite: Bebs - Bonecos que adornam ou compõem os graffitis. O mesmo que carachters. Bite - Dar bites, imitar o estilo gráfico de outro writer. Bomber - Graffiter que pratica bombing.
212
Bombing - Graffitis que se realizam rapidamente, pouco adornados e com letras pouco elaboradas. Caps - Cápsulas que se colocam na saída das latas de spray. Existem caps específicos para cada tipo de traço pretendido. Carachters - O mesmo que bebs. Crew - Conjunto de graffiters que usualmente pintam juntos, existindo nos seus trabalhos uma assinatura ou sigla que identifica esse colectivo. Cross-out (ou Cross) - Pintar algo (traço, tag ou desenho) sobre um trabalho alheio. Detonado - Local ou parede cheio de bombing. Fill-in - Preenchimento (simples ou elaborado) do interior das letras de um throw-up ou piece. Graff - Abreviatura de graffiti. Graffiti - O mesmo que writing. Componente visual (plástica) da cultura hip-hop. Hip-hop - Cultura urbana composta pelo graffiti, musica rap e break dance. Hot - Parede ou zona repleta de graffitis; zona de grande risco para os writers fazerem o seu trabalho. King - Graffiter experiente, com muitos skills e grande número de trabalhos realizados. O contrário de toy. Outline - Contorno das letras desenhadas. Piece - Graffiti a cores, bastante elaborado. Normalmente constituído por fundos trabalhados, letras estilizadas e adornadas com carachters. Props - Parabéns ou felicitações inscritas, dedicadas a Graffiters ou crews, por amizade ou porque a qualidade do trabalho o merece. Queimar Spots - Cobrir uma parede ou uma zona com trabalhos de pouca qualidade. Skills - Conjunto de técnicas dominadas por um Graffiter. Tag - Assinatura do Graffiter. Tagar - Escrever o tag com letras desenhadas com uma só linha de tinta. Toy - Graffiter inexperiente. O contrário de king.
213
Throw-up - Actividade do Graffiter quando este se limita a tagar paredes. Wall of Fame - Muro de grandes dimensões pintado com uma sequência longa de pieces. Wild Style - Graffiti caracterizado por uma forte estilização das letras, tornando-o praticamente ilegível. Writer - O mesmo que Graffiter Writing - O mesmo que graffiti
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