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denise bandeira miriam sutter santuza cambraia naves ana chiara heinz langer ana paula kiffer raÏssa degoes marilena moraes alice sant’anna angelo abu clara passi gregÓrio duvivier joÃo xavier pedro rajÃo andrÉ sigaud felipe carvalho dos santos luiz coelho barbara hansen paulo gravina jÚnio louback gabriella lima nastassja pugliese paulo renato porto filho sabrina guedes de oliveira isabel wilker paloma espÍnola isabel diegues dimitri merino pedro braga mauro rebello sueli rios letÍcia simÕes plástico bolha envolvendo palavras Ano 3 - Número 19 - Março/2008 Distribuição Gratuita NESTA EDIÇÃO Ano novo, vida nova, bolhas novas! O jornal mais emocionante do início do século chega ao seu terceiro ano de vida com muito vigor. Para esta edição de reestréia, temos uma entrevista que Marilena Moraes fez com Denise Bandeira, sobre o mundo dos roteiros. Miriam Sutter vem mostrando como a Antigüidade pode ser atual na coluna Oráculo. Ana Chiara, da UERJ, estréia a nova coluna Quarto de despejo, que trará Maria Carolina de Jesus para o Bolha. Santuza Cambraia Naves, prossegue Por dentro do tom, sua coluna de observações e dicas musicais. Nastassja Pugliese apresenta um Puzzles sobre os mistérios biográficos de Leibniz, na série em que investiga a vida dos pensadores. Ana Paula Kiffer assume a coluna Mulheres-Damas, agora ilustrada por Raïssa Degoes. E, por falar em ilustração, temos o grande Angelo Abu, além de Heinz Langer, que prossegue como nosso grande astro da capa. Temos também a nova coluna Bolhetim — a meta-coluna que falará sobre o jornal. Gregório Duvivier adentra uma das temáticas mais subjetivas: o amor. Felipe Carvalho dos Santos apresenta a sabedoria do caracol nos Cen’átimos. O Desafio poético está repleto de saborosas amêndoas e a coluna mineira das Bolhas Geraes propõe um brinde à Biblioteca Nacional. E nós propomos um brinde aos nossos leitores, novos e antigos, colaboradores e apoiadores. Que o novo ano seja pretexto para muitos e muitos textos! volta às aulas! Heinz Langer A festa junina dos adultos é bem diferente da festa junina das crianças. A das crianças tem barraquinhas, bandeirinhas, brincadeiras. A dos adultos tem música alta, vozes ainda mais altas, ocasionalmente interrompidas por goles de bebida. A das crianças tem doces, danças, divertimentos. A dos adultos tem risadas, fofocas, política. A das crianças tem pescaria, latas, boca do palhaço. A dos adultos, namoro, latas viradas, filas no banheiro. Esta é uma festa junina dos adultos. Há, porém, duas crianças largadas no meio do jardim: Miguel e Sabrina. Ele de seis, ela de sete — vizinhos e amigos desde que conseguem se lembrar. Ele loiro, ela de olhos puxados. Ela, filha dos donos da casa; ele, no momento, segura uma bombinha em uma das mãos, pronta para ser estourada. — Vamos, vamos acender; vai ser legal. — Não. Se a minha mãe descobrir, ela vai ficar furiosa. — Ahh, Bina, vamos lá, tua mãe tá cuidando lá da festa. — Mas seus pais tão aí também. Eles nunca mais vão deixar você vir para cá... — Olha, tem um formigueiro ali no canto; vamos botar ali... — diz ele, já se dirigindo à lateral do jardim. Ela, mais curiosa do que preocupada, o segue. Ele encaixa o canudinho no formigueiro e acende. Bem depressa, os dois se escondem atrás de uma árvore. Ela pensa no fim da festa, na bronca, no castigo. Ele pensa no fim da festa, numa explosão de formigas invadindo a casa. Ela pensa na gritaria, nas orelhas doídas, em um mês sem brincar. Ele pensa na gritaria, na correria, no fim do mundo. Ele, de súbito, no meio daqueles segundos eternos olha para ela. Os olhos se tocam, as mãos se tocam, os lábios se tocam. Primeiro é estranho, mas depois as duas bocas começam a se acostumar ao beijo enquanto o mundo explode lá fora. Era o primeiro beijo de ambos, com o gostinho de último. Logo após a explosão, eles voltam ao jardim e observam que tudo estava exatamente igual: até o formigueiro permanecia praticamente intacto. A festa continuava a mesma, e os adultos apenas prestavam atenção ao que estava em seu alto horizonte. A decepção de ambos é gigantesca, até que, com um novo brilho nos olhos, ele propõe a ela: — Vamos acender de novo? Estalinho Paulo Gravina

plástico bolha · A das crianças tem barraquinhas, bandeirinhas, brincadeiras. A dos adultos tem música alta, ... na faculdade, em casa ou no ... Uma viagem em 108 fragmentos poéticos

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denise bandeira miriam sutter santuza cambraia naves ana chiara heinz langer

ana paula kiffer raÏssa degoes marilena moraes alice sant’anna angelo abu

clara passi gregÓrio duvivier joÃo xavier pedro rajÃo andrÉ sigaud

felipe carvalho dos santos luiz coelho barbara hansen paulo gravina

jÚnio louback gabriella lima nastassja pugliese paulo renato porto filho

sabrina guedes de oliveira isabel wilker paloma espÍnola isabel diegues

dimitri merino pedro braga mauro rebello sueli rios letÍcia simÕes

plástico bolhaenvolvendo palavras

Ano 3 - Número 19 - Março/2008Distribuição Gratuita

NESTA EDIÇÃO

Ano novo, vida nova, bolhas novas! O jornal mais emocionante do início do século chega ao seu terceiro ano de vida com muito vigor. Para esta edição de reestréia, temos uma entrevista que Marilena Moraes fez com Denise Bandeira, sobre o mundo dos roteiros. Miriam Sutter vem mostrando como a Antigüidade pode ser atual na coluna Oráculo.

Ana Chiara, da UERJ, estréia a nova coluna Quarto de despejo, que trará Maria Carolina de Jesus para o Bolha. Santuza Cambraia Naves, prossegue Por dentro do tom, sua coluna de observações e dicas musicais. Nastassja Pugliese apresenta um Puzzles sobre os mistérios biográficos de Leibniz, na série em que investiga a vida dos pensadores.

Ana Paula Kiffer assume a coluna Mulheres-Damas, agora ilustrada por Raïssa Degoes. E, por falar em ilustração, temos o grande Angelo Abu, além de Heinz Langer, que prossegue como nosso grande astro da capa. Temos também a nova coluna Bolhetim — a meta-coluna que falará sobre o jornal.

Gregório Duvivier adentra uma das temáticas mais subjetivas: o amor. Felipe Carvalho dos Santos apresenta a sabedoria do caracol nos Cen’átimos. O Desafio poético está repleto de saborosas amêndoas e a coluna mineira das Bolhas Geraes propõe um brinde à Biblioteca Nacional.

E nós propomos um brinde aos nossos leitores, novos e antigos, colaboradores e apoiadores. Que o novo ano seja pretexto para muitos e muitos textos!

vo l t a à s a u l a s !

Heinz Langer

A festa junina dos adultos é bem diferente da festa junina das crianças. A das crianças tem barraquinhas, bandeirinhas, brincadeiras. A dos adultos tem música alta, vozes ainda mais altas, ocasionalmente interrompidas por goles de bebida. A das crianças tem doces, danças, divertimentos. A dos adultos tem risadas, fofocas, política. A das crianças tem pescaria, latas, boca do palhaço. A dos adultos, namoro, latas viradas, filas no banheiro. Esta é uma festa junina dos adultos. Há, porém, duas crianças largadas no meio do jardim: Miguel e Sabrina. Ele de seis, ela de sete — vizinhos e amigos desde que conseguem se lembrar. Ele loiro, ela de olhos puxados. Ela, filha dos donos da casa; ele, no momento, segura uma bombinha em uma das mãos, pronta para ser estourada. — Vamos, vamos acender; vai ser legal. — Não. Se a minha mãe descobrir, ela vai ficar furiosa. — Ahh, Bina, vamos lá, tua mãe tá cuidando lá da festa. — Mas seus pais tão aí também. Eles nunca mais vão deixar você vir para cá... — Olha, tem um formigueiro ali no canto; vamos botar ali... — diz ele, já se dirigindo à lateral do jardim. Ela, mais curiosa do que preocupada, o segue. Ele encaixa o canudinho no formigueiro e acende. Bem depressa, os dois se escondem atrás de uma árvore. Ela pensa no fim da festa, na bronca, no castigo. Ele pensa no fim da festa, numa explosão de formigas invadindo a casa. Ela pensa na gritaria, nas orelhas doídas, em um mês sem brincar. Ele pensa na gritaria, na correria, no fim do mundo. Ele, de súbito, no meio daqueles segundos eternos olha para ela. Os olhos se tocam, as mãos se tocam, os lábios se tocam. Primeiro é estranho, mas depois as duas bocas começam a se acostumar ao beijo enquanto o mundo explode lá fora. Era o primeiro beijo de ambos, com o gostinho de último. Logo após a explosão, eles voltam ao jardim e observam que tudo estava exatamente igual: até o formigueiro permanecia praticamente intacto. A festa continuava a mesma, e os adultos apenas prestavam atenção ao que estava em seu alto horizonte. A decepção de ambos é gigantesca, até que, com um novo brilho nos olhos, ele propõe a ela: — Vamos acender de novo?

Estalinho

Paulo Gravina

CENA 1 – EXT./DIA – Escola Parque.

Esses sapatos amarelos são pequenos demais, apertam meus pés – ou são os pés que apertam os sapatos, não sei. Você tem tic-tacs no cabelo. E uma camisa listrada, ou listada, penso. Temos cílios, os dois, e grandes demais. Tentativa de vôo: pegar duas folhas secas, uma em cada mão. Correr e agitá-las o mais rápido possível. Não funciona. Contento-me com a gangorra. Sento-me no chão. Cato sementes de jaca e as enfio fundo na terra. Depois as choco com a mão e cuspo em cima, para fertilizar. Lembro-me de voltar aqui daqui a uns anos: faço um xis no chão para me lembrar onde foi. Você observa, perplexa, a minha fuga.

CENA 2 – EXT./NOITE – Calçadão de Ipanema

Um bumbo explode ao longe, em descompasso com as ondas do mar. Minha cabeça pesa e o mar estoura quase aos nossos pés. No ar, a ressaca em mil gotículas de sal. Tropeço em latas e em costas suadas demais. Talvez a ressaca seja de ambos. No chão, amêndoas secas (mortas?), tão boas de chutar. Entre confetes, e poças, e clara, você está: de óculos escuros, talvez. Licença. Quero viver com você a vida inteira e mais um pouco, quase disse. Mas há o bumbo, a ressaca e. Não estávamos sós (estaríamos prontos?). Acho que não. Daqui a um ano, quem sabe se nós. Quem sabe: a semente continuava sob o solo, fertilizada.

CENA 3 – EXT./DIA – Vargem Grande

Sob o som do sol e o céu a pino, descobrimo-nos do véu e expomo-nos ao mundo. Lábios correram pela nuca como o gelo que escorre pelos ombros como a cânfora que estoura no pulmão (nosso peito só explode, nosso peito). Enfim, fundimos nosso sangue que agora borbulha ultravioleta ao som de um psy-trance. E aquela semente plantada explode do fundo da terra: somos só terra, da cabeça aos pés. Só Terra. E o mundo é êxtase.

CENA 4 – INT./DIA – Quarto

Em uma manhã mais clara que qualquer outra manhã, se plantará funda sob os lençóis uma nova semente. E em outras manhãs ela vai florescer; e crescer; e permanecer crescendo. Com dentes grandes, olhos enormes e cílios maiores ainda – cílios de pinçar a realidade, capturá-la – ela terá pintinhas nas costas, dobrinhas nos dedos e correrá pela terra, de onde saiu e a quem pertencerá eternamente – como toda semente. E terá, assim, vontade de plantar sementes. E eu lhe darei, então, meus sapatos amarelos.

por Gregório DuvivierSubjetivas

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amor:esboço de um roteiro.

Envie seus textos para [email protected]

plástico bolhaproduzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio

Tiragem: 8.000Impresso na CUT Graf

Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte

CoordenaçãoThiago BentoLucas Viriato

RevisãoMarilena MoraesRubiane ValérioRafael AnselméGabriel Matos

EditoresLucas ViriatoPaulo Gravina

Editora AssistenteMarilena Moraes

Conselho EditorialLuiz CoelhoGregório DuvivierIsabel Diegues

Comissão AvaliadoraConstanza de CórdovaCarlos AndreasTomé LavigneJulia BarbosaIsabel WilkerEdson Santana

Projeto GráficoLucas Viriato

EquipeMárcia BritoBeatriz PedrasPaloma EspínolaFernando Fernandes

AgradecimentosHeloisa FéoLeo Carnevale

Conheci recentemente o Jornal e escrevo para dar os parabéns pela iniciativa, pela qualidade, e, é claro, pela ousadia de realizar uma publicação de conteúdo no mundo em que vivemos. A primeira edição que li foi a de número 17, ano 2, e minha empolgação foi tremenda! Junto a um amigo, organizo alguns eventos culturais e gostaria de poder contar com alguns exemplares para distribuição ao público que nos freqüenta enquanto aguardo o meu texto ser publicado.

— Jay Gatsby, via e-mail.

Olá, Jay. Como você já falou, enviar seus textos ao plástico bolha é só uma das formas de participar. Muitos colaboram apenas distribuindo o jornal para as pessoas próximas, na faculdade, em casa ou no trabalho, pois o plástico bolha conta com uma rede de leitores que leva a publicação onde estiver, e, dessa forma, já chegamos a Belo Horizonte, à Bahia, e até a França, com a ajuda da poeta Nicole O’Hara. Então, se você é professor e quer distribuir o jornal para sua turma, possui um estabelecimento comercial ou, ainda, se quiser distribuir o jornal onde quer que esteja, é só enviar um e-mail. Mandaremos as edições, inclusive as antigas. Agradecemos o seu interesse em participar; continue acompanhando o jornal.

Eu não sei escrever, mas sei desenhar, o que faço?— Frida Kahlo, via e-mail.

Bem, Frida, essa pergunta é um pouco estranha, porque está escrita. Mas, de todo o modo, o plástico bolha aceita não só textos, mas todo tipo de produção visual, pictórica e desenhística. Desde o ano passado, nós temos as ilustrações de Angelo Abu. Agora, Raïssa Degoes ilustra a coluna mulheres-damas. Isso sem falar no nosso tradicional cartunista, o querido Heinz Langer. Então, envie seus desenhos e charges para analisarmos. Lembramos que, para publicarmos, dependemos também da qualidade de impressão da imagem.

envie suas dúvidas, críticas e sugestões [email protected]

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Bolhetim

Entre muitos outros lugares você encontra o plástico bolha em:

— Livraria Café com Letras Av. Bartolomeu Mitre, 297, loja C, Leblon - RJ

— Restaurante Ettore Cucina Italiana Av. Armando Lombardi, 800, loja C/D/E, Barra da Tijuca - RJ

— Livraria Argumento Rua Barata Ribeiro, 502, Copacabana - RJ

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CONSULTORIA DE NEGÓCIOS E MARKETING ESPORTIVOAGENCIAMENTO DE CARREIRAS DE ATLETAS

EVENTOS CORPORATIVOSCAPTAÇÃO E GESTÃO DE PATROCÍNIOS

Av. Luis Carlos Prestes, nº 180 / 3º andar – Barra Trade V Barra da Tijuca – Rio de Janeiro / RJ. CEP: 22.775-055. Tel.55 21 2112 – 4909 / Fax. 55 21 2112 – 4601 / www.kpaz.net

Memórias Indianas de Lucas Viriato de Medeiros

Uma viagem em 108 fragmentos poéticosÀ venda na Banca da PUC - Ed. Cardeal Leme - PUC/Rio

[email protected]

A caminho do trabalho

Clara Passi

Na Rio Branco, tudo paradoCarros, ônibus, motos por todos os ladosSinal abre, sinal fecha, abre, fecha...Qualquer tentativa de fuga será inútilEle buzina, buzina, buzina, mas na Rio BrancoContinua tudo parado.

Gabriella Lima

Quando tiver um filho, trate de falar a verdade sobre as coisas do mundo. Diga a ele que quem ri por último é retardado, que os últimos serão desclassificados e que quem cedo madruga fica com sono o dia todo. Ah, e também que há males que vêm para pior. Em caso de sol e chuva, não esquecer de sair de guarda-chuva. Antes tarde do que mais tarde ou por que não antes nunca do que tarde? Não se esqueça de dizer que águas passadas já passaram e, por falar em água, diga também que depois da tempestade vem a gripe, e que água mole em pedra dura tanto bate até que molha tudo. E, por último, – um conselho para dar quando ele for mais crescido: quem dá aos pobres ainda tem que pagar o motel.

Pedro Braga

À palavra como existência primeira retorno. Fuga sem percurso e a volta ao ponto original. Cada saída, um muro; cada retorno, um círculo. Os mesmos motivos vãos — amor de fuga colorida, que pula no terraço e a desperta para a noite de sonho. Vozes indefinidas, cada vez mais distantes (em todas, o mesmo som), sopram irrelevâncias. Faces tão desconhecidas quanto previsíveis, porque é sempre o mesmo final . E os meios. E o começo ao qual voltarei. Encurralada no telhado. Lá fora a ficção iminente, não há realidade que não os sentimentos. Inelutável graça de sós nascermos e morrermos. Tons vivos que desbotam no sol ríspido da manhã frugal — grand finale previsível na solidão úmida de resto no copo vazio. Sôfrega e desesperada por carne viva. Encontrei apenas o telhado raso e vazio. E o brilho metálico da palavra fria onde não há negação.

Barbara Hansen

A tristeza não é triste,é só uma palavra.A tristeza triste,a poesia em estado bruto,são lágrimas.

Poema em estado bruto

Banca da PUCTel.: 2512-7109

ou no e-mail:

Puzzles LEIBNIZ, O AGENTE SECRETO DA CORTEPor dentro do tom

por Santuza Cambraia Naves

Nastassja de Saramago A. Pugliese mestranda em f i losof ia pela UFRJ

Naquele dia, ele chegou à Holanda num iate. Era o mês de novembro, no outono do ano de 1676. Diziam que, ao andar, Leibniz carregava sua cabeça sempre mais na frente do que o corpo e, muitas vezes, não sabia o que fazer com seus braços; mas, segundo um depoimento da Duquesa de Orleans, ela nunca viu um intelectual tão bem vestido e perfumado. Elegante, o homem de 30 anos que estava prestes a ser considerado o último grande gênio da Europa portava em sua bagagem de viagem uma máquina de cálculo aritmético daquelas consideradas um antecedente dos modernos computadores — a máquina era uma caixa feita de madeira, cheia de cordas e botões — atitude deveras compreensível já que um homem como ele não se separaria tão fácil de suas armas. Nessa época, Gottfried Whilhelm von Leibniz já havia dado sua contribuição nos campos da química, da geologia, da historiografia, do direito, da teoria política, da filosofia, da lingüística, da física e da poesia. Hoje, os escritos do menino que queria ser um prodígio podem ser encontrados nos arquivos de Hanôver e preenchem mais de 150 mil folhas.

Leibniz se deslocara da Alemanha para Holanda na intenção de conhecer o “homem mais ímpio e perigoso de todo o século”, Baruch de Spinoza. As biografias de Leibniz mostram que ele passou toda sua vida vinculado a figuras importantes da nobreza, desde princesas e imperadores a duques e homens da corte. Gottfried era um autodidata que, aos doze anos, já tinha conhecimento de grego e de latim avançado. Entrou em 1661 para a Universidade de Leipzig, quando tinha apenas 14 anos. Apesar de parecer uma idade precoce, para a época era comum e é possível que houvesse outros alunos com a mesma idade que ele. Dois anos depois, graduou-se com a tese De Principio Individui, em que enfatizava, discordando de Aristóteles, o valor metafísico do indivíduo, sugerindo uma explicação fundada em sua inteireza existencial e não apenas na matéria e na forma. Com dezoito anos Leibniz era mestre em Filosofia e, com 21, era doutor em Direito.

Essas conquistas levaram Leibniz ao mundo das altas transações políticas, no qual ele permaneceria pelo resto de sua vida. Na república das letras européias do século XVII, fraturada pela precariedade dos sistemas de comunicação, Leibniz era como uma agência de inteligência de um homem só. Através de uma rede de contatos intercontinental, Leibniz era um dos primeiros a receber pacotes com livros recém-publicados e, cumprindo o trabalho de espião, selecionava as obras e as reenviava para pessoas que julgava apropriadas para ter, criticar e divulgar os escritos. Fora em uma dessas encomendas que Leibniz travou contato com os dois livros publicados de Spinoza, Os Princípios de Filosofia Cartesiana e o Tratado Teológico-Político. Desde então, proferindo opiniões informais a respeito do autor, passou a fazer parte do círculo de leitores de Baruch, onde declarava seu desprezo por “um homem tão erudito ter sido capaz de cair em idéias tão baixas”. Leibniz, servindo à mais alta nobreza e aos cleros inglês e alemão, diz a eles o quão terrível, horripilante e diabólicos são os livros que acaba de ler. Gottfried, um luterano ortodoxo da Alemanha conservadora, desejava defender a mesma ordem teocrática que Spinoza, judeu excomungado de uma Holanda libertina, queria demolir.

E foi por essa rivalidade de ideologias que Leibniz, seis meses depois, envia uma carta para o “Senhor Spinoza, célebre doutor e profundo filósofo de Amsterdam”, procurando estabelecer contato. Algumas cartas foram trocadas entre eles, mas sempre clandestinamente para impedir os riscos de uma exposição pública e preservá-los de maiores complicações. Apesar de os motivos de Leibniz para escrever e querer encontrar Spinoza serem pouco claros, sua fama de conciliador e conhecedor de todas as ciências e produções intelectuais da Europa de seu tempo deixam mais aparente seu lado vaidoso do que seus interesses realmente científicos. Até porque não foi apenas com Spinoza que ele travou contato; um de seus mais controversos movimentos político-científicos foram suas cartas trocadas com Newton. Isaac Newton escreve uma carta a Leibniz contando-lhe suas recentes descobertas e a envia por intermédio de Oldenburg, que demora a entregá-la nas mãos do destinatário. Leibniz, ao recebê-la, responde imediatamente, mas também percebe que precisa publicar com urgência seus estudos senão Newton ganharia a glória de ter inventado o método para o cálculo diferencial. Mas esta “confusão dos correios” fez com que Newton, sabendo da publicação, suspeitasse de plágio. E, mais uma vez, sem provas ou explicações, esta vem a ser mais uma entre as inúmeras histórias mal contadas sobre a vida de Leibniz.

Apesar das más línguas, Gottfried mostrou ser um intelectual da mais alta classe, tendo desenvolvido vários métodos matemáticos, inclusive um sistema binário na aritmética. Acaba que no meio de tantas realizações, o rápido encontro entre Leibniz e Spinoza ficou registrado como um caso de menor importância. Muitos biógrafos quiseram, como também o desejava Leibniz, deixá-lo passar despercebido, mas acredito que lembrar pode ser vital para o entendimento dos pormenores e das sutilezas das relações que caracterizam um século. Essas duas personalidades antagônicas deixaram rastros bem visíveis de suas diferenças, mas os detalhes esquecidos no tempo nos mostram que eles estavam fundados num solo de pensamento muito semelhante.

Se Leibniz se fingiu de amigo para Spinoza, provavelmente o fez porque estava interessado e queria beber mais claramente das águas de seu pensamento. E, se Spinoza aceitou a visita de Leibniz, mesmo tendo conhecimento de que ele era um homem de personalidade cambiante, cheio de máscaras, talvez isso tenha se dado porque Spinoza queria a visibilidade que Leibniz lhe daria. Para o bem ou para o mal. Se Leibniz teve alguma relação direta com a morte de Baruch, isso é algo que não se pode afirmar. Mas que ele tentou de todas as formas apagar as marcas de spinozismo — tanto no mundo, quanto em seus escritos —, disso temos certeza. Agora fica no ar a questão: o que o levou a desejar tão ardentemente o fim das idéias de Spinoza? Será que conseguia enxergar suas próprias dúvidas no texto do filósofo herege? É possível que Leibniz tenha desejado menos apagar as idéias de Spinoza do que se esforçado para esquecer-se de seus próprios pecados.

Björk. Volta, o disco

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Volta, o mais recente álbum de Björk (Polydor/Universal. 2007), é conceitual. Como o show, o disco tem um clima ao mesmo tempo apocalíptico e comemorativo. A sensação de pós-tudo convive paradoxalmente com a idéia de um mundo novo a ser desbravado, ou de algo a ser modificado. Se Volta não nos convida a pensar em atos revolucionários, as situações que sugere, entretanto, não são propriamente apaziguadoras, dando a entender que há algo de rebelião no ar. A faixa que abre o disco, por exemplo, “Earth intruders”, que Björk faz em parceria com T. Mosley e N. Hills, tematiza poética e musicalmente a instauração do caos no planeta por sujeitos que se autoproclamam “invasores da Terra”. As imagens evocadas por música e letra lembram situações inusitadas que vivenciamos no mundo contemporâneo, em que figuras associadas à modernidade, como pára-quedistas e franco-atiradores, nos remetem muito mais à barbárie do que à civilização. Os conquistadores são descritos como seres “lamacentos com gravetos e galhos” que promovem “confusão” e “carnificina”. Musicalmente, como nas demais faixas, os instrumentos metálicos da orquestra feminina Wonder Brass convivem com a percussão eletrônica realizada por Timbaland, produtor e rapper norte-americano. E a interpretação ofegante de Björk reforça o tom de tensão criado pela letra. O clima épico de “Earth intruders” é de certa forma repetido na última faixa, a composição “Declare independence”, de Björk e Mark Bell. Nesta música, Björk assume um tom exortativo para com o interlocutor, dizendo-lhe de maneira imperativa para “declarar independência”, “criar sua própria moeda” e “seu próprio selo”, “proteger sua linguagem”, “fazer sua própria bandeira” e levantá-la bem alto. A música atinge o clímax com a seguinte passagem:

Damn colonists Ignore their patronizingTear off their blindfolds Open their eyesDeclare independenceDon’t let them do that to you

With a flag and a trumpetGo to the top of your highest mountain

O espírito apocalíptico do disco é reforçado por “Vertebrae”, composição povoada de bestas-feras e outras figuras aterradoras. A letra de “Vertebrae”, como outras do álbum, foi escrita por Björk em inglês, idioma que ela não domina por completo, e apresenta diversas passagens estranhas, a começar pelo título (literalmente “Vértebras por vértebras”).

The beast is back! On four legs Set her clock to the moon Raises her spine Vertebrae by vertebrae

Não só do épico trata o disco. “Wanderlust”, a segunda faixa (composta por Björk and Sjón), dá voz a um sujeito lírico que abandona o porto seguro e segue

a sua ânsia por viagens. Há também algo de transgressivo no espírito da composição — mostrando uma sensibilidade semelhante à contracultural que se manifestou nos anos 60 e 70 — ao revelar a repulsa deste sujeito pelos “erros” e “acertos” dos habitantes da cidade onde mora, como se vê na estrofe seguinte:

I have lost my originAnd I don’t want to find it againRather sailing into nature’s lawsAnd be held by ocean’s paws

Björk cuida também nesta faixa do arranjo dos metais, entre outros expedientes, cujos efeitos se fazem notar logo no início, com o som do apito do navio avisando a partida. Algumas experimentações ficam a cargo de Damian Taylor, como o emprego musical do código Morse. “I see who you are” (quinta faixa) surpreende pela letra, que retoma de maneira criativa a idéia do carpem diem, como observamos na citação abaixo:

let’s celebrate now all this flesh on our boneslet me push you up against me tightly

[…]let’s celebrate now all this flesh on our bonesand enjoy every bit of you

E o ponto alto do disco, na minha opinião, é a terceira faixa, “The dull flame of desire”, cuja letra é criada a partir de um poema do poeta russo Fyodor Tyutchev (1803-1873). A versão inglesa do poema, pela excelência, merece ser transcrita na íntegra:

I love your eyes, my dearTheir splendid, sparkling fire When suddenly you raise them soTo cast a swift embracing glance Like lightning flashing in the skyBut there’s a charm that is greater stillWhen my love’s eyes are lowered When all is fired by passion’s kissAnd through the downcast lashes I see the dull flame of desire

Outro aspecto surpreendente desta faixa é o dueto que Björk faz com o inglês Antony Hegarty (do grupo Antony & The Johnsons). Dotado de uma voz belíssima e técnica impecável, ele mais parece um intérprete de canções folclóricas inglesas do que um cantor pop. Antony Hegarty provoca um estranhamento ao cantar com Björk num registro próximo ao erudito, em meio a sons eletrônicos. Volta parece se orientar por uma concepção cíclica de tempo. Por um lado, por utilizar as batidas eletrônicas e operar à maneira repetitiva das criações estéticas atuais; por outro, por lidar com um eterno presente, num tempo em que os artistas já não estão mais voltados para a colonização do futuro. Paradoxalmente, entretanto, o disco é experimental, como o eram as criações das vanguardas históricas que se guiavam pela idéia de ruptura. Volta traz novidades em tempos de calmaria e repetição.

Algemado à minha mesa,Prisioneiro, só de mim.Minha voz sufoca, presaNum castelo de marfi m.

Só poetas nesta cela…— Liberdade, por favor!Sinto o ar pela janela,Aqui dentro, só tremor.

Só me resta então gritarCom a voz enrouquecida:— Sou um profano num altar!

Versos viram avenidas,Nelas nunca vou passar…Fecho o livro e peço “Vida!”

5

ooo

O caracol sem concha caminha vagarosamente, sem morada e sem proteção, em busca de sua nova casa. Ao encontrar uma concha que lhe serve, ele entra na espiral que se multiplica ao infi nito. Passa a carregar mais peso e aumentam suas responsabilidades. Espreita, caça, guerreia e anda incessante — movimento e repouso, sempre agindo. Tão logo se adapta à concha infi nita, fi ca demasiado vulnerável. Eis a hora de sua fuga, o momento de mais um arriscar-se. O tempo é lento, todavia, preciso; e, quando ele sente que sua hora chegou, foge de casa e busca seu novo espaço. A rotina deve ser quebrada para que não caia em armadilhas).

por Felipe Carvalho dos Santos

André Sigaud

Falso Poeta(sobre)vivências – dos cen’átimos (brevidades)

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por Ana Paula Kifferm u l h e r e s - d a m a s

AMORTUMOR

Pedro Rajão

www.urbandictionary.com

Mulher farpada e apaixonada,quando o delírio itinerante de cascos velhosnavegado sobre pedras e mares atracado ao corpo mais doce efervescente corpo roucoindependente de partes sempre outrora cegas de partes muito enxergantes desejosas de ver todas as suas direções empardecidas ou claras inusitadassurpreendente o romantismo velozcalçado de um arcaico programa burocráticosurpreendida na estonteante sensaçãode nunca tê-lo abandonadonem representado em anseios aquilo que deveras sentes.

Toda a história de um amor

Raïssa Degoes

Ao saber da existência de uma excursão organizada pelos alunos de Biblioteconomia da UFMG para conhecerem a Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, pensei em aproveitar a oportunidade para refletir a respeito do meu curso e resolvi conhecer a tão famosa Biblioteca. Achei que a visita poderia também servir como estímulo para meus estudos, já que, às vezes, pairam algumas incertezas na mente do estudante. Já na chegada ao prédio, a impressão foi muito forte. Fomos recebidos por um funcionário da instituição que, no saguão, forneceu detalhes sobre a construção do prédio, que data de 1910, e sobre conceitos históricos. Mas o que me chamou a atenção foi a descrição dos detalhes de duas pinturas localizadas no saguão do prédio. Do lado esquerdo da entrada, uma das telas mostrava a imagem de um cavalo montado por um esqueleto voando num céu nublado; deitadas no chão, pessoas com semblantes carregados pelo sofrimento e tristeza. Abaixo da tela, esculpidas em pedra, pessoas agredindo e violentando umas às outras. Essas imagens trazem um significado: o cavalo voador simboliza a ignorância, que resulta em tristeza, violência e morte — esta representada pela caveira amazona. Do lado direito, havia outra tela com a imagem de uma mulher descendo do céu azulado; na terra, pessoas — entre elas uma criança — traziam na face expressões de alegria. Toda a beleza presente nesse quadro retrata a sabedoria. Desde a mulher que desce do céu até a criança que “olha” para o espectador, dando a entender que a sabedoria contempla qualquer pessoa, sem distinção. Esculpidas em pedra abaixo da tela, viam-se pessoas colaborando e ajudando umas às outras, num ambiente de solidariedade, fruto do conhecimento. Isto foi apenas o início. Depois, visitamos algumas salas com enormes janelas e móveis da época, ali presentes desde a construção do edifício. Ao subirmos as escadas, cobertas por tapete vermelho, deparamos com o busto de Dom João VI. E, ao chegarmos ao segundo andar, mal sabíamos que o melhor estava por vir. Fomos presenteados com uma exposição de obras raras, acessíveis só em circunstâncias especiais para pesquisa. Ao apresentar aquelas preciosidades, a bibliotecária falou sobre o livro que estava bem diante de mim: uma obra do século XIV, um livro de oração, escrito em latim e com ilustrações. Quando a bibliotecária começou a folhear aquele livro, meus pensamentos acompanharam a trajetória que ele deve ter feito até chegar ali. Na verdade, me perdi entre o tempo e o espaço: imaginei embarcações em que aquele livro já esteve, tempestades enfrentadas, estradas de terras por onde passou. Apesar de tantas intempéries, me admirei que ele estivesse ali, bem conservado, diante de nós. Entre outras raridades, vimos uma carta escrita por Tiradentes, além de livros presenteados a reis e rainhas. Detalhes em madeira, couro e pigmentos em ouro embelezavam as capas desses livros, obras dos séculos XVII e XVIII. Tentei descrever o que ocorreu comigo naquele momento, mas não consegui. Só posso afirmar que senti uma emoção muito forte e que passei a alimentar uma certeza: escolhi uma profissão muito importante. Poderia falar dos lugares que visitei: o Museu de Arte Contemporânea, uma das mais belas obras de Oscar Niemeyer, a Fortaleza de Santa Cruz da Barra, construída em 1555 em Niterói, ou comentar sobre as noites agradáveis na Lapa, o Cristo Redentor e a Estação Primeira de Mangueira, onde tive a chance de ver a disputa do samba-enredo para o carnaval de 2008. Poderia descrever cada lugar e cada momento com sua singularidade. Contudo, para mim, estudante de biblioteconomia, não houve nada tão especial como conhecer a Biblioteca Nacional. Saímos de lá com a sugestão, dada pelo guia e pelo recepcionista, de aproveitar o calor e tomar uma cerveja bem gelada em algum dos bares nas imediações, no Arco do Telles. Notei certo desânimo entre alguns colegas, cansados da viagem, mas insisti que deveríamos comemorar com um brinde à Biblioteca Nacional. No caminho, alguns colegas agradeceram a sugestão, porque, apesar do cansaço, surgiu um motivo que reacendeu o ânimo da turma. Ao chegarmos aos bares do Arco do Telles, fizemos um brinde à Biblioteca Nacional e relembramos detalhes da visita. De volta a Belo Horizonte, pensei que uma visita como essa não é enriquecedora apenas para um estudante de Biblioteconomia, e sim para todos aqueles que entram nessa linda biblioteca e têm a oportunidade de conhecer sua riqueza cultural ao percorrer e descobrir cada sentido encerrado nos pequenos detalhes presentes na grandiosa Biblioteca Nacional.

Aqui volto mais uma vezà tecla que tanto pressionei.A repetição maçante, transformei.A antiga postura se desfez.

O buscador desliza com calmano mar gelado, abundante e lilás.A lua ganha vida no coração do aventureiro.É uma busca maior que sua alma.

O fim se dispõe no horizonteOra surpreende nas pedras e nas flores,ora nos choros, risos e amores.Inconsciente, bebo e vivo da fonte.

O corpo é um veleiro complexo,que se embriaga de água salgada,que rasga as ondas e encantaa si e a outros veleiros que perpassam.

Sempre haverá veleiros mais bonitos.Muitos se movem para a mesma lua,confundem uns aos outros e brincamdas maneiras mais diversas.

Tantas artimanhas do caminho.Tantas esperanças esvaziadas.Brincadeiras pobres são ensaiadas.Devo eu velejar sozinho?

Enquanto sofro e despedaço,a lua dança nas curvas do oceano.Perfuma e desafia o eu tirano.Ignorante, não percebo seu abraço.

Mas hei de me encantar com a procura, de apreciar os sabores com calma.Extrair do vazio a doçurae alimentar as potências de minh’alma.

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Bolhas Geraes

Júnio César Barbosa Louback

Dimitri Merino

O veleiro, o oceano

Um brinde à Biblioteca Nacional

A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores mineiros, que, desde a edição #13, recebem o plástico bolha em diversos pontos de Belo Horizonte. Envie também os seus trabalhos para [email protected]ão Xavier

Tel.: 2493-5611 / 2493-8939

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Vício

Marilena Moraes

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Nogueira não conseguia acreditar. O médico ali na sua frente, condenando-o a um sacrifício que lhe parecia duro demais. Como parar de fumar? Há quarenta anos ele carregava um cigarro entre os dedos ou no canto direito da boca. Sempre no direito. Acordava e já passava a mão no maço vermelho. Até fez a concessão de passar a fumar o do maço branco, mas se habituara a comprar o vício em pacotes; tinha estoques no armário do quarto. Poucas vezes deu bobeira e precisou comprar cigarros de madrugada, o que, naturalmente, nunca foi problema para quem mora no Leblon. Quando a mãe estava no hospital, a irmã reclamava. Tudo esterilizado e lá vinha ele, cigarro na mão, visitar a senhora. — Não me enche, Idalina, que eu fico ainda mais nervoso. Me deixa pitar!! Quando as crianças eram pequenas, a patrulha era da mulher, Violeta. — Lava essa mão, Nogueira! Como é que vai pegar no bebê fedendo a cigarro! Violeta chegara a fazer chantagem: — Fumante passiva! Olha a que você me obriga! Pois no quarto não fuma mais! Se insistir, vai dormir na sala! Vício, Nogueira, isso é vício! Não pode deixar ele te dominar! Apesar de todos os problemas e. . . perseguições — até na empresa inventaram um fumódromo — ele resistia, agarrado àqueles centímetros de nicotina e alcatrão como se fossem a saída de todo e qualquer problema. Agora, com os filhos maiores, até eles buzinavam na sua cabeça. Gustavo reclamava na hora do café. Batendo uma tigela de açaí com granola antes de ir surfar, o “Saúde”, como o chamava o pai, começava cedo: — Pô, pai. Pega leve! Já tá fumando a essa hora? Coitado do seu pulmão... Letícia apelava para a vaidade: — Ah, papai. Marca uma hora no dentista. Seus dentes estão todos amarelados! — E as mãos? — completava Violeta. — Já sabe que esse encardido não larga nunca mais... Agora, por mais dura que fosse aquela vida de fumante inveterado, tratado como um ser contaminado pela pior das pestes, pela primeira vez lhe davam um argumento forte: enfisema pulmonar. Este seria o seu destino se ele não largasse o cigarro.

Nogueira saiu do consultório apavorado o bastante para se livrar do maço no hall do elevador. Desta vez é sério, pensou. Não dá mais pra brincar. Quando chegou em casa, Violeta já sabia de tudo. O médico, velho conhecido da família, lhe telefonara, tal a gravidade da situação. A mulher já tinha o discurso preparado, mas desistiu ao ver o estado de Nogueira. O terno em desalinho, sem gravata, os olhos arregalados. Violeta resolveu ir devagar, para não piorar o momento. — Ah, Nogueira. Tenta ver o lado bom disso tudo. O paladar vai voltar, o olfato e olha (com um risinho maroto)... eu volto a te beijar na boca. Nogueira nem respondeu, foi tomar um banho. Não estava se sentindo nada bem. Já antecipava por que ia ter de passar. Os filhos e a mulher resolveram dar um desconto e fingiam não se ofender com o jeito brusco com que Nogueira passou a responder a uma pergunta simples, assim: — Nogueira, vamos jantar naquela cantina nova que abriu aqui perto? — Como, Violeta? Como? Depois da comida, vão me oferecer um café e como é que eu vou tomar um café sem poder fumar depois, Violeta? Como? Nada de cantina. Macarrão a gente come em casa mesmo. — Sua irmã nos chamou para um lanche, Nogueira. — Lanche? Café, bolo? Como, Violeta? Café sem puxar um cigarrinho? Liga e diz que nós não vamos. Gustavo passou a acordar mais cedo que o pai e a voltar para casa cada vez mais tarde. Letícia se trancava no quarto na hora do jantar e lá ficava Violeta agüentando o mau-humor do Nogueira. Mas a causa era justa e nobre. Estavam casados havia tantos anos, ele merecia sua compreensão. Assim se passaram dez dias. Nogueira parecia realmente alterado, mas o medo que o médico lhe impusera era maior que qualquer tentação. Ele resistiria. Ou seria o enfisema pulmonar. No décimo dia, Violeta acordou de madrugada com os soluços de Nogueira. Chorando? Nem quando a sogra morreu! O marido devia estar mesmo muito mal. — Nogueira, o que foi? — Prisão de ventre, Violeta. Prisão de ventre. Chama a ambulância.

— Como, prisão de ventre? — Faz dez dias que não vou ao banheiro, Violeta. Acho que vou morrer. Liga pro hospital. Violeta sentou na cama, assustada. — Que história é essa, Nogueira, você não vai ao banheiro há dez dias? Como pode? — Pois é, não pode! Vou morrer! — Mas você não tem comido as mesmas coisas de sempre, criatura de Deus? Como não vai ao banheiro? Não faz número dois? — Não vou porque não fumo, Violeta. Não fumo, não ca...! Violeta estremeceu, pois esse verbo — entre outros tantos — era de todo proibido naquela casa. — Como não . . .? Como não.....? Não Violeta, não ca... porque não fumo. Todo dia de manhã, depois do café, eu ia pro banheiro, com o jornal e o maço de cigarro. Era ali, naquele momento que eu cag... — Que palavra, Nogueira! — Tá bom, Violeta. Era nessa hora que eu fazia o número dois. Mas eu dependia do cigarro, agora entendi. Era tudo cronometrado. Eu lia a página de esportes na hora do café e deixava a política para ler no banheiro. Aproveitava para xingar os caras, do presidente ao vereador, puxava meu cigarrinho e... pronto, resolvia a questão. Mas, sem o cigarro, não consigo. Liga pro hospital, Violeta. Vão ter de fazer alguma coisa. Violeta foi rápida. Pegou o livrinho do plano de saúde, ligou para o hospital. Ligou também para a casa do médico. Afinal, Nogueira se contorcia em cólicas e empapava o lençol de suor. Os filhos se levantaram, assustados com os gritos do pai. Finalmente a ambulância, o hospital. Violeta se apavorou. Nogueira ficara realmente mal. O que ia acontecer dali por diante? Quando o marido voltou para o quarto, abatido, prostrado, Violeta quis falar com o médico. — E agora, doutor? Como é que ele vai se livrar desse problema de... constipação? Com um gesto de desânimo, o médico falou: — Bem, considerando a situação psicológica do Nogueira, acho que um cigarrinho só por dia pode resolver. Mas é só um, olhe lá. Mais que isso... é enfisema pulmonar!!

as mulheres da favela” e seus desbocamentos; gosta, na verdade, das frases ricas que leu nos livros. Frases como “o astro rei deslizava no espaço.... o sol está tépido”. Carolina é exótica, mas não admite que v. a ponha de quatro no Jardim Zoológico da literatura menor, junto ao Kafka e as suas complicações com o pai. Carolina desconhece freudismos, tudo gerou a partir dela própria sem machos. Carolina é o pai e a mãe de Vera Eunice, de João José e de José Carlos. “Não casei e não estou descontente. Os que preferiu-me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horríveis”. Ela é muito territorializada. Seu território é a favela do Canindé, a favela dura de São Paulo, de quase cinqüenta anos atrás: “A favela é uma cidade esquisita e o prefeito daqui é o diabo”. Favela sem o samba carioca. Carolina quer sair da favela e pertencer ao território da Literatura Maior. Dá para você entender, mon cher? Ela quer a Língua Portuguesa da Academia de Letras, quer o fardão de ouro e o poder, quer o seu poder. Não deseja o gueto da resistência, quer a potência máxima dos marimbondos de fogo, se é que você pode entender. O político — para Carolina — são os políticos: “Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As difi culdades corta o afeto do povo pelos políticos”. Posso perceber como você, ao ouvir Carolina, esboça um leve sorriso gratifi cado pela carga de afetos, perceptos e conceptos na frase que, se pudesse, anotaria para um belo artigo sobre o povo revolucionário, o povo do devir. Nem percebe que Carolina lança um olhar enviesado e mau na sua direção. Esquece que nela se concentram outras tantas Bertolezas e Macabéas dando pasto aos intelectuais. Mas a fome é professora, my dear. Nem público, nem privado, nem povo do devir. O negócio tem de ser pra já e quem vai entrar em transe somos nós dois. Com esta negra a história é diferente porque ela escreveu afi nal o livro, entrou no nosso circuito, ela está aqui dentro da bolha conosco e a bolha se estreita cada vez mais porque o corpo da negra cresce semelhante ao de uma giganta. Estou suando, parece que vou desmaiar. V. tenta seduzi-la com suas frases de efeito, desaba sobre a mulher uma estante de livros. Ouço Carolina dizer perto de seu rosto: “Parece um sabiá e sua voz é agradável aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro [...]. Cuidado sabiá, para não perder a gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são gatos. Tem fome”. Mas você teima em ignorar o aviso, está fascinado pela diferença ou pela diff erance? Eu estou com medo e começo a achar sinistra aquela entrevista com sua declaração contra os gatos, neste momento tudo aquilo soa como um cruel presságio. Quero sair deste círculo vicioso de leituras. Começo a sentir as vibrações do corpo dela, começo a sentir as dores de estômago, as náuseas. Eu tenho fome de quê? Começo a sentir culpa. Não deveria ter deixado Carolina se meter aqui na bolha com a gente, não deveria ter metido v. nessa embrulhada, eu poderia tê-lo simplesmente amado? Foi tudo um erro. Não é possível fazer essa mediação, estou para desistir. Nem você entende Carolina, nem a negra quer entender você. A rústica e bela poesia deste diário nos afetou sem remédio. Sinto que corremos perigo. Perigamos fi car a nenhum. Deus é sóbrio, como a escritora costuma dizer. E pode ser que estejamos agora confrontados com a sobriedade de Deus quando temos de encarar a fome desta mulher, acostumada a retirar alimento do lixão que é São Paulo. Talvez agora nossa bolha esteja realmente se deslocando para o Quarto de Despejo da cidade de São Paulo. Talvez agora nosso ar rarefeito já tenha começado a se contaminar com o cheiro da favela e, querido, talvez já estejamos realmente começando a feder...

“Quem trabalha como eu tem de feder”

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Dear Deleuze, Procuro estar junto a você dentro desta bolha asséptica, procuro respirar no seu ritmo este ar rarefeito, nossas bocas embaçando de ar cálido o plástico, procuro seu rosto desviante, tento segurar suas mãos. Suas mãos brancas e fi nas, mãos burguesas, mãos de intelectual, cuja única aspereza pode ser notada nas pontinhas dos dedos amarelos de gauloises talvez, suas unhas imensas, moles e sujas voltam-se contra a carne e os dedos anelares apontam para a boca que já foi bela. Fico fascinada por essas mãos que comunicavam ao papel a eletricidade de seu pensamento nômade. Na bolha, o tempo — o cristal tempo — está em suspensão. Então, podemos compor com nossos corpos imagens antigravitacionais num devir incessante e alucinado. Esticando nossas espinhas, encurvando-nos, tocando o plástico com as pontas dos pés, numa dança cômico-macabra. Materialidade tensa como você gosta. Nós dois, dois cérebros exaustos, dois sexos mudos e cansados. Foi nosso pai louco e sifi lítico, espécie surtada de fi lósofo dançarino, quem nos colocou neste ovo, para que pudéssemos respirar - sem sufocar - o ar do mundo fi ltrado por nossas leituras. Leves, nesta bolha, não enfrentamos o caosmos do real, estamos infensos à multiplicidade enervante do mundo das coisas. Fora da bolha, nada se repete, tudo é diferença, mas nós repetimos os mantras da não-metafísica, lutando contra nós mesmos. Somos um ovo gigante parido pelo pensamento Ocidental, fugindo do Pai, que nos persegue a marteladas. Estou aqui e quero fi xá-lo em mim, engatá-lo ao meu corpo e você não precisa temer. Quero ser seu duplo, quero ser você, quero repetir suas frases sofi sticadas, pensar a complexidade dos fenômenos, dar um toque erudito e belo esfregando a língua nessas lindas línguas mortas que você domina tão bem: o grego, o latim, o alemão e o francês. Gosto também de roçar seu corpo. Como um gato je frotte ta peau, provocando em você uma certa repulsa que se resolve numa careta desconcertada. Não consigo entender por que você rejeita os animais que se esfregam, sempre achei que seu sistema de idéias se esfregava como seixos deslizantes pelas experiências. Você balbucia alguma coisa, buscando uma linguagem nova, que não se arraste pelo senso comum, pela infi ndável cadeia das interpretações, uma linguagem selvagem, bárbara, que me faça ver claramente o quanto você não suporta essa proximidade incestuosa, esse arroubo de desejo fora do âmbito das palavras cujas possibilidades signifi cantes podem proliferar sem nunca s´arreter, mon cher. Na bolha, estamos a zero. Temos de inventar novas origens, o reservatório de idéias funcionando como uma fábrica, como uma máquina, desejante como uma Barbarella numa sex machine. Idéias delirantes, que não se estacam, não se deixam transformar em carne, no fato bruto da carne. Na brutalidade dos fatos. Nós... gêmeos no ovo ainda... podemos experimentar toda a radical solidão do mundo quase silencioso das letras, mundo no qual apenas se percebe o ruído abafado de páginas e mais páginas sucedendo- Ana Cristina Chiara

se tristes e monótonas. Sentimos o peso dessa solidão e rolamos nosso ovo até próximo à janela que se abre para o mundo real. Perigamos cair no mundo das coisas: o mundo das cores quentes. A bolha começa a fi car mais e mais apertada. Do espasmo de um ectoplasma insólito — uma força confi nada prestes a se libertar — começa a surgir a fi gura da negra. O corpo quer tomar forma como nos quadros de Bacon. O calor que emana deste corpo parece aquecer terrivelmente a bolha, o calor suado dos tristes trópicos brutais. Vinda de esquálidas mitologias, do sujo das favelas, do pouco, da privação, reconheço a escritora Carolina de Jesus. O corpo da negra, tenso e magro, meu corpo frouxo e expectante e o seu, dear Deleuze, concentrado e crepuscular. Suas unhas podiam ameaçar minha pele sensível, mas não a curtida pele da negra. Seu corpo, my dear, fede um pouco a mofo, a cinzas, a civilização. O da negra exala o cheiro dos esgotos a céu aberto, odor de carne podre, a viande putrefata do seu pintor preferido. Carolina avisa “às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o dor dos excrementos que mescla com o barro podre” ; mas eu...eu disfarço o meu cheiro com um suave CK. Eu estou na mediação; bem no meio entre o pensamento europeu e o instinto de sobrevivência terceiro-mundista. Fiz com cuidado todas as lições de casa, li as últimas novidades e posso repetir, com uma certa elegância, os modismos críticos sem correr muitos riscos. Mas, diante dessa estupenda aparição, não sei mais o que fazer. Dou as costas aos dois, pois não quero testemunhar a cena de absoluta abjeção. Carolina é o seu outro absoluto. Tudo bem desde que ela fi que onde está, não é mesmo? Fique apenas a possibilidade de você exercitar — à distância — a frátria contra o pátrio poder, desde que ela não dispute com você a Sécurité Sociale. Ao contrário de você, ela ama os gatos, porque não se entregam aos seus donos... para ela “o gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna , provando que tem opinião”. A negra agora também se estica como um em torno de seu corpo retesado de susto. Carolina esfrega a língua vermelha e áspera na maciez desse contorno fi losofante. Nossa Alice negra e feia sorri como o gato absurdo, sorri sem os dentes, sorri gengivas. Esse buraco vermelho quer sugar-nos. O corpo da negra é sustentado por uma vontade férrea. Carolina quer que você a veja com o olho de seu estômago francês, quer que seu olho satisfeito se perca no buraco da fome, na cloaca que dói sem parar. Ela sussurra em seu ouvido: “percebi que no Frigorífi co jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago”. Carolina está sempre com dor de estômago, nervosa interiormente e em falta. O povo que falta, conforme você gosta de falar, excede em Carolina. Ela é um excesso histérico perturbando a calma e luxuosa impassibilidade francesa. Excede porque é excessiva a fome, porque é excessiva a degradação das condições da vida que leva, porque também tem excessiva imaginação e capacidade de se virar catando, no monturo do Lixão, comida e literatura. “Tenho um apetite de leão. Então recorro ao lixo”. Carolina literalmente arranca do invivível o alimento do diário. Ela quer agarrar o sol com as mãos. Ela torna a falta um excesso. Ela tem de catar a sobrevivência no lixo. O caso é fazer literatura deste regime concreto, nada simbólico — de privação. Ela está nos tacos, my dear, e fi xa a órbita triste dos seus olhos sobre sua boa digestão européia. Carolina tem fome de literatura, quer ser escritora, mas não do que você chama de literatura menor. O caso dela é com Harold Bloom, ela é canônica. Carolina “detesta

“Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civi-lizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino”. (Glauber Rocha. In. Eztetyka da fome)

“A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço de céu para fazer um vestido”. (Carolina de Jesus. In. Quarto de Despejo, p.25)

QUARTO DE DESPEJO

A procura da amêndoa Faceira, menina molequeSubo nos galhos de teu forte tronco.E saio a procurar-te. Tu que te escondes no verde de tuas folhas.Que desejos tenho de saborear-te!Que delícia é o teu fruto amendoeira!Ao achar-te, sinto-me agraciadapor poder desfrutar do sabor que tens,amêndoa de minha infância.

Sabrina Guedes de Oliveira

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Desafio poético

Infância

Zumbidos ferindo a tardepreguiçosada praia de Cueira.

Quase-mísseis se projetamrumo às faces sorri-dentes

A rápida geografia dos disparosdesenrola a trama entre coqueiros

É bela - mesmo que doa – a amêndoaem seu vôo fantásticoseu delírio de projétil.

O mais é a tarde demorandoquase adormecendonas areias claras de Moreré.

Paulo Renato Porto Filho

Na última edição de 2007, o plástico bolha propôs o desafio de escrever um poema sobre “a amêndoa”. Vejamos, a seguir, os poemas que recebemos. Para a próxima edição, o desafio é fazer um poema que contenha as seis seguintes palavras: sílabas, hortelã, breves, único, olhava e atravessou. Todos estão convidados a participar do desafio; basta mandar o seu poema, com as 6 palavras, para o e-mail do jornal: [email protected].

Amêndoa doce

A amêndoamarrom(redonda)caindovermelhaem cima do carrorasga a tintarompe a cor que antes era cinza

arrastada a tarde roxasó resta ao capô do carroum rastro seco de amarelo rúbeo.

Isabel Diegues

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A amendoeira A amendoeira assemelha-se ao pessegueiro,embora o seu porte o supere, e o tronco seja mais grosso.

As flores são róseas e o fruto é alongado, de casca dura e cor bege. A amêndoa é sua semente, contém uma película interna marrom, e a polpa é amarelada.

Existem dois tipos de amêndoa, a doce e a amarga, sendo que apenas a doce é indicada como alimento, pois a amarga contém ácido cianídrico, substância que pode causar intoxicações.

Luiz Coelho

Somente um punhado basta

semente com peleenrugadaque fazcroc!quando mordeescura porforamas clarapor dentrosomente umpunhadobasta!para fazerbatero coraçãoque sómentequando quer enuncamais Isabel Wilker

Miriam Sutter

ORÁCULO

Professora de Letras Clássicas da PUC-Rio

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Atos & palavras Apesar da distância temporal, atitudes e palavras nos soam extremamente familiares.

Admitir acusações de atos criminosos com astúcia e manha também faz parte do aprendizado retórico (e político, acrescentaria eu). Se algo torpe, que não possa ser negado, for levantado contra ti, sempre poderás esquivar-te com uma resposta divertida e tornar o assunto mais digno de riso do que de censura, tal como Cícero o fez, quando refutou o que não podia negar com um dito espirituoso e folgazão. Registrou-se que Cícero queria comprar uma casa no monte Palatino e, como não tivesse o dinheiro, aceitou em segredo um empréstimo de dois milhões de sestércios (cem mil dólares) de Públio Sulla, que então era réu (acusado de participar da conspiração de Catilina). Mas antes que comprasse a casa, essa transação foi descoberta e chegou aos ouvidos do povo, e lançou-se-lhe a acusação de ter aceito dinheiro de um homem acusado com o propósito de comprar uma casa. Então Cícero, abalado pela inesperada vergonha, negou que tivesse recebido o dinheiro e negou também que pretendia comprar uma casa, e acrescentou: “Por isso, se eu comprar a casa, eu realmente terei aceito o dinheiro”. Mais tarde, no entanto, quando efetivamente comprou a casa e, no senado, amigos censuraram-lhe a mentira, riu muito e respondeu-lhes entre risos: “Sois homens privados de senso comum, quando ignorais que, em vista de eventuais concorrentes de compra, é próprio de um prudente e cauto pai de família negar que irá comprar o que na verdade deseja comprar”.

In: GELLIUS, Aulo. Noctes Atticae; XII, 12.

- Quid ridemus? Mutatis nominibus, de nobis historia narratur.

Reflexão cardiovascular

Mauro Rebello

“Pode cursar assintomático ou apresentar, como característica principal, o pruridocardiovascular, freqüentemente noturno, que causa irritabilidade, desassossego,desconforto e sono intranqüilo...”

Há peso de menos pra que suporte a cama. Físico, ação, reação. No espaço entre a cama e corpo, o vetor, nulo. Neurastenia crônica, disse o doutor do dia. “Há de se fazer uma intervenção”. Cirurgia?! “Sim, cisões paralelas”. Mas por quê doutor? “Há de se cortar e ponto. Pontos!” Deus e suas cordinhas sufixais, passeando pelas mãos. “Inspire!” Doutor, o que eu tenho? “É muito grave! Tens sopro meu filho!” Sopro?! “Isso, expire!” Há cortes demais pra que suporte o corpo. Místico, verdade, perdão. No vácuo entre a cama e o nada, o credor, chulo. Cardiopatia crônica, lera o versículo do dia. “Há de se fazer uma oração”. Liturgia? “Sim, pregações sentinelas” Oh, Céus! Tanto, meu Senhor?! “Tens de sobrepor-se à bula. Burro!”. Schering-Plough, predinisolona. Ah, me sinto mal. Prontuário: Coma! Há metafísica demais pra se explicar o amor.

Sueli Rios

Muitos presentes me destesAh, um deles tanto prezo!A linda flor que colhestesNo caminho do Peloponeso.

Presente presente

Acordo cigarroentorpecida pelo sonho obscurogrito no vácuo. Vomito em cima de suas falsas verdadesdestruo seus relicáriosalmoço melancoliana fumaça da solidão. durmo verdadeacordo mentira.

Letícia Simões

Cotidiano

DENISE BANDEIRA é atriz, roteirista e diretora. No cinema, atuou em filmes como À flor da pele e Se segura Malandro. Como roteirista, tem o nome ligado a sucessos do cinema como os premiados Bar Esperança e Vai trabalhar vagabundo. Na televisão, foi autora fixa dos programas Você decide e A vida como ela é, supervisionou textos de Malhação e colaborou nas novelas Celebridade e Cobras e Lagartos. Professora, criadora de oficinas de roteiro e membro de júris de festivais de cinema, Denise Bandeira conversou com o plástico Bolha sobre seu trabalho e a profissão de roteirista.

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O roteiro em cenaEntrevista por Marilena Moraes

Fale um pouco do seu trabalho de atriz. Como foi a transição de atriz a roteirista?

Sou uma boa atriz amadora, ser profissional era difícil para mim. Tenho muito orgulho de alguns trabalhos que fiz, mas o dia-a-dia da profissão me era penoso. As horas na maquiagem, as provas de roupa, as entrevistas, a exposição pública obrigatória. Só ensaiando ou representando eu era, realmente, feliz. Mas foi uma etapa importantíssima da minha vida. Li muitos textos de teatro, roteiros de cinema e televisão. Cedo ganhei intimidade com a linguagem e, talvez por isso, me atrevi a escrever. Estreei como atriz em 1975. Em 1978 escrevi meu primeiro roteiro e não parei mais. Mas dei o salto definitivo de uma profissão para a outra em 1986.

Ser atriz faz você escrever roteiros imaginando a melhor forma de interpretar?

Sem dúvida. Foi um ganho que trouxe comigo. “Ouço” os personagens falando. Há vozes vivas dentro da minha cabeça.

Qual a diferença entre escrever para cinema e TV? No caso de novela é mais difícil, por se tratar de uma “obra aberta”, sujeita aos índices de audiência?

Em tese, quem escreve para cinema escreve para a televisão. As ferramentas são as mesmas. O teatro, sim, é uma dramaturgia diferente. Mas tanto a televisão quanto o cinema são histórias contadas prioritariamente em ação, em imagens; portanto, exigem que o escritor tenha uma paisagem mental estruturada. Há quem diga que o cinema é mais “imagem” e a televisão mais “diálogo”. Pode ser. Mas nem isso é regra absoluta. A novela pede uma história com fôlego narrativo para muitos capítulos, que possa ser esticada internamente em vários conflitos e peripécias. Um roteiro de cinema dispensa esse critério — tem mais espaço para reflexão e subjetividade. Mas, ainda assim, acho que há pouca diferença entre as duas mídias.

Com a TV a cabo, o mercado para roteiristas cresceu. Há, hoje, maior valorização do trabalho do roteirista?

Claro que sim. Hoje ouço gente falar de “dramaturgia” como nunca se sonharia há dez anos atrás. Lemos recentemente, nos jornais, sobre uma greve de roteiristas americanos que paralisou a indústria áudiovisual nos Estados Unidos. No

Brasil, os suplementos de TV dos principais jornais publicam o resumo dos episódios de dezenas de novelas que serão exibidas na semana em curso. Mesmo que não saiba formular, o leitor sabe que uma novela, por exemplo, é uma história em processo, com eventos que evoluem, se multiplicam, se alteram. Escrever para a televisão ou cinema deixou de ser uma ocupação “mágica”. É, agora, uma profissão compreensível, transparente.

Ainda há poucos profissionais?

Ao contrário. Há muitos. Como há profissionais de sucesso que ganham bons salários, muita gente vem sendo atraída para a profissão. Mas, isso também cria muitas “vocações” equivocadas. Já dei cursos em que, na primeira aula, os estudantes só querem saber sobre direitos autorais. Sempre proponho a eles que, primeiro, escrevam ao menos um parágrafo e que depois se preocupem com direitos autorais.

Um bom escritor pode não ser um bom roteirista? Qual a principal qualidade de um roteirista?

Um escritor de livros trabalha com a imaginação livre de qualquer amarra. Sua criação final será um livro e as imagens mentais que ele cria são compartilhadas apenas com o leitor — ele é começo, meio e fim do próprio trabalho. O roteirista cria um texto que é só o primeiro passo

de uma cadeia de criação que envolverá outras pessoas e instâncias até, finalmente, transformar-se num filme ou num programa de televisão. Portanto, ele trabalha sempre dentro de limites concretos. Um romancista pode escrever “chove a cântaros”, quando bem entender. O roteirista, quando escreve “chove a cântaros” sabe que alguém vai ter que “produzir” essa chuva. Ela custará dinheiro, esforço, e trabalho de outras pessoas. Então, ele o tempo todo, precisa se perguntar: “Isso é realmente essencial para a minha história?” Tudo tem que ser levado em conta.

Como é trabalhar em grupo, no caso de novelas, em que diversos autores dividem o trabalho?

Eu adoro. Na televisão, até prefiro. Uma novela é uma coisa monumental, que consome um ano inteiro da sua vida, numa rotina de trabalho pesadíssima. É mais rico e divertido inventar aquilo tudo com outros escritores, propondo, ouvindo, testando a resistência das histórias e dos personagens, rindo, polindo, derrubando e construindo. O contato com os colegas é rico e refrescante. No cinema — se é um roteiro encomendado — também gosto de parcerias. Se é um roteiro original, prefiro fazer sozinha. Teatro, também, escrevo sempre sozinha.

Como ex-aluna de Gabriel Garcia Márquez, em Cuba, qual o seu conselho para quem quer fazer roteiros? Quais as principais leituras? Os cursos são úteis ou o principal é ler roteiros e ir ao cinema?

Tudo é útil. Quem quer escrever tem que se sentir bem escrevendo, tem que tolerar a solidão, ter intimidade com as palavras, merecer a amizade delas, ter um bom acervo de vida — de observação ou de imaginação. Tem que ser inquieto, curioso — o preguiçoso se esvazia rápido. A literatura, claro, é fundamental. Assim como o cinema e o teatro. Uma leitura profunda de Shakespeare vale mais que duzentos cursos. Dramaturgo brasileiro não pode viver sem Nelson Rodrigues, e assim por diante. Se quiser escrever para televisão e cinema tem que saber como os filmes e programas são produzidos. Cursos específicos são bons porque orientam os primeiros passos e é onde o estudante pode entrar em contato com os roteiros de cinema, de televisão, capítulos de novela etc. — que em geral, não estão à venda nas livrarias. Quanto mais se freqüenta a linguagem para a qual se vai escrever, melhor. E, finalmente, é bom viver a própria vida com ênfase. Para, acima de tudo, ter o que dizer.

Arqu

ivo

pess

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12

Paloma Espínola

1) os gatos vigiam plantas

no vaso, um par de sapatos

e todos objetos inanimados, eles

olham e às vezes deslizam

as pálpebras, permitem

um breve cochilo

2) os gatos têm bigodes

como antenas de inseto, são

fios eriçados que espetam e, bem como

as orelhas, estão sempre atentos

a movimentos, ruídos, ou

silêncios repentinos

3) os cachorros mexem o rabo

quando estão felizes, os gatos mexem o rabo

quando estão nervosos: quando estão contentes

os gatos fazem barulho de motor

que se chama ronronar

4) os gatos lambem as patas e as partes

íntimas e ficam com o cheiro ruim de saliva

de gato, mas depois ficam cheirosos

porque é assim que eles tomam banho

5) raramente os gatos atendem pelo nome

mas não são metidos

as pessoas é que são muito bobas

OS GATOS EM TRÊS ATOS

III

Envolto em silêncioo gato deita no quartoe fisga o que penso.

II

Os gatos brincandoabrem as asas da casae saem voando.

I

O gato ronrona:o mistério é seu impériono colo da dona.

Alice Sant’anna

os gatos

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